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LIVRO Literatura e Sociedade, De ANTONIO CANDIDO, p. 113-143 Equivalente a 109-138 Do Programa Da DisciplinaTRANSCRIPT
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LITERATURA E CULTURA DE 1900 A 1945
(panorama para estrangeiro)
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Se fosse possvel estabelecer uma lei de evoluo da nossa vida espiritual,
poderamos talvez dizer que toda ela se rege pela dialtica do localismo e do
cosmopolitismo, manifestada pelos modos mais diversos. Ora a afirmao
premeditada e por vezes violenta do nacionalismo literrio, com veleidades de criar
At uma lngua diversa; ora o declarado conformismo, a imitao consciente dos
padres europeus. Isto se d no plano dos programas, porque no plano psicolgico
profundo, que rege com maior eficcia a produo das obras, vemos quase sempre um
mbito menor de oscilao, definindo afastamento mais reduzido entre os dois
extremos. E para alm da inteno ostensiva, a obra resulta num compromisso mais ou
menos feliz da expresso com o padro universal. O que temos realizado de mais
perfeito como obra e como personalidade literria (um Gonalves Dias, um Machado
de Assis, um Joaquim Nabuco, um Mrio de Andrade) representa os momentos de
equilbrio ideal entre as duas tendncias.
Pode-se chamar dialtico a este processo porque ele tem realmente consistido
numa integrao progressiva de experincia literria e espiritual, por meio da tenso
entre o dado local (que se apresenta como substncia da expresso) e os moldes
herdados da tradio europia (que se apresentam como forma da expresso). A nossa
literatura, tomado o termo tanto no sentido restrito quanto amplo, tem, sob este
aspecto, consistido numa superao constante de obstculos, entre os quais o
sentimento de inferioridade que um pas novo, tropical e largamente mestiado,
Nota | preciso ter em mente que o "atual" deste estudo o ano de 1950, quando foi redigido. Isso explica certos erros de avaliao e de perspectiva, bem como o sentido ento diferente de algumas palavras, como o caso de "nacionalismo".
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desenvolve em face de
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velhos pases de composio tnica estabilizada, com uma civilizao elaborada em
condies geogrficas bastante diferentes. O intelectual brasileiro, procurando
identificar-se a esta civilizao, se encontra todavia ante particularidades de meio, raa
e histria nem sempre correspondentes aos padres europeus que a educao lhe
prope, e que por vezes se elevam em face deles como elementos divergentes,
aberrantes. A referida dialtica e, portanto, grande parte da nossa dinmica espiritual,
se nutrem deste dilaceramento, que observamos desde Gregrio de Matos no sculo
XVII, ou Cludio Manuel da Costa no sculo XVIII, at o sociologicamente
expressivo
Grito imperioso de brancura em mim de Mrio de Andrade, que exprime, sob
a forma de um desabafo individual, uma nsia coletiva de afirmar componentes
europeus da nossa formao.
Dentre as manifestaes particulares daquela dialtica, ressalta o que se poderia
chamar "dilogo com Portugal", que uma das vias pelas quais tomamos conscincia
de ns mesmos. Na lenta maturao da nossa personalidade nacional, a princpio no
nos destacvamos espiritualmente dos nossos pais portugueses. Mas, medida que
fomos tomando conscincia da nossa diversidade, a eles nos opusemos, num esforo
de auto-afirmao, enquanto, do seu lado, eles nos opunham certos excessos de
autoridade ou desprezo, como quem sofre ressentimento ao ver afirmar-se com
autonomia um fruto seu. A fase culminante da nossa afirmao a Independncia
poltica e o nacionalismo literrio do Romantismo se processou por meio de
verdadeira negao dos valores portugueses, at que a autoconfiana do
amadurecimento nos levasse a superar, no velho dilogo, esta fase de rebeldia.
Tomada de conscincia, portanto, como rebeldia de um lado e despeitado menosprezo
de outro. Os respectivos esteretipos se formaram lentamente. Do lado brasileiro, o
"magano de Portugal" prenuncia, desde Gregrio de Matos, o "marinheiro" dos dias da
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Independncia e da Regncia, o "galego"
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do Naturalismo e de todo o anedotrio desenvolvido at os nossos dias, culminando,
como ltima manifestao, na diatribe grosseira e ingnua de Antnio Torres, em As
razes da Inconfidncia (1925). Do lado portugus, veio desde o crudelssimo "neto
da rainha Ginga" de Bocage, contra o nosso pobre Caldas Barbosa, at o:
"Entenderam? claro como o mulato" de Camilo Castelo Branco, divertido e
agressivo desprezador de brasileiros.
Na verdade, esse longo e por vezes spero dilogo de famlia apresenta outros
aspectos, se, ainda aqui, passarmos da atitude literria para o mecanismo profundo das
influncias e das trocas culturais. Pode-se mesmo dizer que a nossa rebeldia
estereotipada contra o Portugus, representando um recurso de autodefinio, recobria
no fundo um fascnio e uma dependncia. Todo o nosso sculo XIX, apesar da
imitao francesa e inglesa, depende literariamente de Portugal, atravs de onde
recebamos no raro o exemplo e o tom da referida imitao. Quando o dilogo se
despoja da sua aspereza, amainando-se em mesuras acadmicas, convnios
ortogrficos, exaltaes e louvores recprocos, na retrica sentimental e vazia das
misses culturais (estamos descrevendo o que se passa no sculo XX), podemos ver
que a influncia morreu, praticamente, tanto verdade que a vida se nutre das tenses
e dos conflitos.
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Na literatura brasileira h dois momentos decisivos que mudam os rumos e
vitalizam toda a inteligncia: o Romantismo, no sculo XIX (1836-1870), e o ainda
chamado Modernismo, no presente sculo (1922-1945). Ambos representam fases
culminantes de particularismo literrio na dialtica do local e do cosmopolita; ambos
se inspiram, no obstante, no exemplo europeu. Mas, enquanto o primeiro procura
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superar a influncia portuguesa e afirmar contra ela a peculiaridade literria do Brasil,
o segundo j desconhece Portugal, pura e simplesmente: o dilogo perdera o mordente
e no ia alm da conversa de salo. Um fato capital se torna deste modo claro na
histria da nossa cultura; a velha me ptria deixara de
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existir para ns como termo a ser enfrentado e superado. O particularismo se afirma
agora contra todo academismo, inclusive o de casa, que se consolidara no primeiro
quartel do sculo XX, quando chegaram ao mximo o amaciamento do dilogo e a
consequente atenuao da rebeldia.
Convm assinalar que a literatura brasileira no sculo XX se divide quase
naturalmente em trs etapas: a primeira vai de 1900 a 1922, a segunda de 1922 a 1945
e a terceira comea em 1945. A primeira etapa pertence organicamente ao perodo que
se poderia chamar ps-romntico e vai, grosso modo, de 1880 a 1922, enquanto as
duas outras integram um perodo novo, em que ainda vivemos: sob este ponto de vista,
o sculo literrio comea para ns com o Modernismo. Para compreend-lo,
necessrio partir de antes, isto , da fase 1900-1922.
Comparada com a da fase seguinte (1922-1945), a literatura aparece a
essencialmente como literatura de permanncia. Conserva e elabora os traos
desenvolvidos depois do Romantismo, sem dar origem a desenvolvimentos novos; e, o
que mais interessante, parece acomodar-se com prazer nesta conservao. Como a
fase 1880-1900 tinha sido, em contraposio ao Romantismo, antes de busca de
equilbrio que de ruptura, esta, que a acompanha sem ter o seu vigor, d quase
impresso de estagnar-se. Uma literatura satisfeita, sem angstia formal, sem rebelio
nem abismos. Sua nica mgoa no parecer de todo europia; seu esforo mais tenaz
conseguir pela cpia o equilbrio e a harmonia, ou seja, o academismo.
No romance, o Naturalismo, desprovido da forte convico determinista que
animou um Alusio Azevedo e um Adolfo Caminha, enlanguesce nas mos de
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Emanuel Guimares, Xavier Marques, Canto e Mello. A criture artiste e o relevo
psicolgico de Raul Pompia so agora a retrica e o amaneiramento de Coelho Neto,
que domina esta fase com foros de gnio. Mas o produto tpico do momento o
romance ameno, picante, feito com alma de cronista social para distrair e embalar o
leitor. Forma-se pela confluncia do que h de mais superficial em Machado de Assis,
da ironia amena de Anatole France e dos romances franceses do Ps-naturalismo,
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sentenciosos, repassados de sexualismo frvolo: Paul Bourget, Abel Hermant. Afrnio
Peixoto o representante-padro desta trplice tendncia, enquanto Lo Vaz se atem
aos aspectos mais puramente iruchadianos. Veiga Miranda, Hilrio Tcito, Tho Filho,
Benjamin Costallat so exemplos, em escala decrescente, do pendor cada vez mais
acentuado para a leviandade do tema sexual-humorstico.
O regionalismo, que desde o incio do nosso romance constitui uma das
principais vias de autodefinio da conscincia local, com Jos de Alencar, Bernardo
Guimares, Franklin Tvora, Taunay, transforma-se agora no "conto sertanejo", que
alcana voga surpreendente. Gnero artificial e pretensioso, criando um sentimento
subalterno e fcil de condescendncia em relao ao prprio pas, a pretexto de amor
da terra, ilustra bem a posio dessa fase que procurava, na sua vocao cosmopolita,
um meio de encarar com olhos europeus as nossas realidades mais tpicas. Esse meio
foi o "tonto sertanejo", que tratou o homem rural do ngulo pitoresco, sentimental e
jocoso, favorecendo a seu respeito idias-feitas perigosas tanto do ponto de vista social
quanto, sobretudo, esttico. a banalidade dessorada de Catulo da Paixo Cearense, a
ingenuidade de Gornlio Pires, o pretensioso exotismo de Valdomiro Silveira ou do
Coelho Neto de Serto; toda a aluvio sertaneja que desabou sobre o pas entre 1900
e 1930 e ainda perdura na subliteratura e no rdio.
A publicao de Os sertes, de Euclides da Cunha, em 1902, assim como a
divulgao dos estudos de etnografia e folclore, contribuiu certamente para esse
movimento. Ele falhou na medida em que no soube corresponder ao interesse ento
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multiplicado pelas coisas e os homens do interior do Brasil, que se isolavam no
retardamento das culturas rsticas. Caberia ao Modernismo orient-lo no rumo certo,
ao redescobrir a viso de Euclides, que no comporta o pitoresco extico da literatura
sertaneja.
A poesia se apresenta, nessa fase, bastante solidria em esprito ao romance. Ao
contrrio do Naturalismo, que trouxe a este um vigoroso impulso de anlise social, o
Parnasianismo pouco trouxera de essencial nossa poesia, apesar do grande talento de
Olavo
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Bilac, Alberto de Oliveira, Raimundo Corra ou Vicente de Carvalho. Dera-lhe uma
regularidade plstica maior, mas agravara a sua tendncia para a retrica,
aproximando-a do tipo de expresso prosaica e ornamental. Talvez o que haja de
melhor nos parnasianos seja o seu romantismo e foi justamente o que desapareceu
nos epgonos deste sculo, para deixar em campo as frmulas e a logomaquia, num
academismo rotundo que lembra os neoclssicos da ltima gerao (primeiro quartel
do sculo XIX).
O Simbolismo, projeo final do esprito romntico, constitui desenvolvimento
mais original, limitando-se, porm, obra de Cruz e Sousa (ainda prxima dos
parnasianos a despeito de tudo), e de Alphonsus de Guimaraens, pouco conhecida
antes dos nossos dias. Como movimento esttico e ideolgico, o Simbolismo serviu de
ncleo a manifestaes espiritualistas, contrapostas ao Naturalismo plstico dos
parnasianos. As tendncias oriundas do Naturalismo de 1880-1900, tanto na poesia
quanto no romance e na crtica, propiciaram na fase 1900-1922 um compromisso da
literatura com as formas visveis, concebidas pelo esprito principalmente como
encantamento plstico, euforia verbal, regularidade. o que se poderia chamar
Naturalismo acadmico, fascinado pelo Classicismo greco-latino j diludo na
conveno acadmica europia, que os escritores procuravam sobrepor s formas
rebeldes da vida natural e social do Novo Mundo.
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Alma de origem tica e paga Nascida sob aquele Armamento Que azulou as divinas epopias, Sou irmo de Epicuro e de Renan, Tenho o prazer sutil do pensamento E a serena elegncia das idias diz no fim dessa fase Raul de Leoni, resumindo toda a ideologia de que se nutriram os seus contemporneos mais caractersticos.
Esta busca de elegncia mediterrnea em que se adelgaou at esgarar o
Naturalismo vigoroso do sculo anterior, de inteno
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mais cientfica do que esttica, contamina a prpria explorao dos temas
regionais, pelo gnero ambguo do conto sertanejo.
Em Alphonsus de Guimaraens e Augusto dos Anjos, em Euclides da Cunha e
Lima Barreto, poderiam os escritores dessa fase encontrar discordncias estimulantes
para a sua atividade literria. No entanto, ou os deixaram de lado, ou foram buscar
neles o que tinham de comum com as limitaes de que padeciam: a tenuidade afetiva
do primeiro, o desequilbrio verbal dos outros dois, a ironia superficial do ltimo.
Em crtica literria, a fase 1880-1900, por suas trs principais figuras Slvio
Romero, Araripe Jnior e Jos Verssimo, havia desenvolvido e apurado a
tendncia principal do nosso pensamento crtico, isto , o que se poderia chamar a
crtica nacionalista, de origem romntica. Como em todos os pases empenhados
ento na independncia poltica, o Romantismo foi no Brasil um vigoroso esforo de
afirmao nacional; tanto mais quanto se tratava aqui, tambm, da construo de uma
conscincia literria. A nossa crtica, rudimentar antes de Slvio Romero e do
Naturalismo, participou do movimento por meio do "critrio de nacionalidade",
tomado como elemento fundamental de interpretao e consistindo em definir e
avaliar um escritor ou obra por meio do grau maior ou menor com que exprimia a terra
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e a sociedade brasileira.
Fruto direto da esttica romntica, relativista, ciosa dos fatores histricos,
inspirada sobretudo em Madame de Stal e Schlegel, atravs de Garrett e Ferdinand
Denis ela foi no Brasil um elemento importante de autodefinio e diferenciao,
principalmente quando se associou s filosofias naturalistas da segunda metade do
sculo.
Na fase que nos ocupa, esta linha se prolonga sem a coerncia e sem a
necessidade do sculo anterior. No injusto dizer que, amparando-se nos trs mestres
e modelos j citados, os crticos se eximiram de aprofundar e renovar pontos de vista.
Denotam conformismo e superficialidade, indicando no apenas o esgotamento da
crtica nacionalista, mas a incapacidade de orientar-se para rumos mais estticos e
menos cientficos, como se esperaria de uma gerao inclinada ao diletantismo, o
purismo gramatical, o culto
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da forma. A passagem do historicismo esttica se esboava na obra de Jos
Verssimo, o mais literrio dos nossos velhos crticos, e nessa fase tentada pela
crtica de inspirao simbolista e idealista, representada sobretudo por Nestor Victor,
mas que no chegou a amadurecer e realizar-se. A crtica se acomodara em frmulas
estabelecidas pelos predecessores.
A Pequena histria da literatura brasileira, de Ronald de Carvalho (1919),
resume toda a evoluo crtica anterior, combinando o arcabouo interpretativo do
nacionalismo com um sentimento mais vivo da beleza, devido, porm, menos a um
critrio esttico definido do que euforia verbal prpria do autor. Neste livro e nos
ensaios posteriores de Ronald, se encontra a fuso superficial e elegante da crtica
brasileira do sculo anterior, menos a ideologia naturalista, com a inclinao esttica
dos simbolistas, menos o fervor espiritualista.
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Desde o tempo da Primeira Guerra Mundial vinha-se esboando aqui um
fermento de renovao literria, ligado ao Espiritualismo e ao Simbolismo. As suas
manifestaes mais interessantes so a difuso da filosofia de Farias Brito, a crtica j
mencionada de Nestor Victor e, mais tarde, o apostolado intelectual do catlico
Jackson de Figueiredo; coincidindo com isso, a poesia penumbrista e intimista, o verso
livre, ligados influncia dos belgas (Maeterlinck, Rodenbach, Verhaeren) e de
Antnio Nobre, que vem a ser o ltimo portugus de acentuada influncia em nossa
literatura, antes da voga atual de Fernando Pessoa entre os jovens. Esta tendncia
costeou por assim dizer o Modernismo, conservando uma atmosfera algo bolorenta de
Espiritualismo lrico, que se manifestar no grupo das revistas Terra de Sol e Festa e,
depois, sobretudo a partir de 1930, constituir at os nossos dias o contrapeso do
localismo, da libertinagem intelectual, do Neonaturalismo implcito no movimento
modernista. Convm notar que desta tendncia brotaram sugestes decisivas para a
criao das modernas ideologias de direita, como o integralismo e certas orientaes
do pensamento catlico.
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todavia, a renovao que propunha, na sua fase inicial, no teve lugar, porque ela no
se separava marcadamente da tradio, constituindo de certo modo outro aspecto da
literatura de permanncia, j referida; e sobretudo porque irrompeu noutro plano, e
com esprito diverso, o movimento muito mais forte e radical do Modernismo.
A Semana da Arte Moderna (So Paulo, 1922) foi realmente o catalisador da
nova literatura, coordenando, graas ao seu dinamismo e ousadia de alguns
protagonistas, as tendncias mais vivas I capazes de renovao, na poesia, no ensaio,
na msica, nas artes plsticas. Integram o movimento alguns escritores intimistas
como Manuel Bandeira, Guilherme de Almeida; outros, mais conservadores, como
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Ronald de Carvalho, Menotti del Picchia, Cassiano Ricardo; e alguns novos que
estrearam com livre e por vezes desbragada fantasia: Mrio de Andrade, Oswald de
Andrade, na poesia e na fico; Srgio Milliet, Srgio Buarque de Holanda, Prudente
de Moraes, neto, no ensaio. Dirigindo aparentemente por um momento, e por muito
tempo proclamando e divulgando, um escritor famoso da gerao passada: Graa
Aranha.
No terreno literrio, os novos encontraram as duas referidas tendncias estticas,
em grande parte combinadas entre si de vria forma, e como se disse, praticamente
esgotadas pela ausncia de agitao intelectual: o idealismo simbolista e o
Naturalismo convencional. Aquele dissolvendo-se no penumbrismo vers-libriste; este
no diletantismo acadmico.
A primeira corrente se amparava sobretudo na pesquisa lrica de inteno
psicolgica; procurava a beleza na expresso de estados inefveis, por meio de
tonalidades raras ou delicadas. Quando ertica, preferiu certa anemia afetiva nem
sempre desprovida de perversidade, como se pode ver em Ribeiro Couto (O jardim
das confidencias) e Manuel Bandeira (Cinza das horas, Carnaval). No ensaio, visava
ao debate metafsico (Renato Almeida: Fausto Ensaio sobre o problema do ser) ou
o idealismo esttico (Andrade Muricy: O suave convvio), no raro resvalando para o
tico e religioso (Tasso da Silveira: A igreja silenciosa). Vista de conjunto, parece-nos
hoje uma soluo literria e ideolgica frgil e pouco construtiva. Uma espcie de
gorjeio esmaecido, em que se refletia aqui o idealismo literrio da burguesia europia;
e, por isso mesmo, pouco apto a intervir na nova fase que se impunha, ante o
esgotamento do academismo cosmopolita, diletante e ps-naturalista.
Como vimos, este era sobretudo uma conservao de formas cada vez mais
vazias de contedo; uma tendncia a repisar solues plsticas que, na sua
superficialidade, conquistaram por tal forma o gosto mdio, que at hoje representam
para ele a boa norma literria. Uma literatura para a qual o mundo exterior existia no
sentido mais banal da palavra, e que por isso mesmo se instalou num certo oficialismo
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graas, em parte, ao estabilizadora da Academia Brasileira, que de 1900 a 1925
teve o seu grande, de certo modo nico, perodo de funcionamento bem ajustado. As
letras, o pblico burgus e o mundo oficial se entrosavam numa harmoniosa mediania.
O Modernismo rompe com as duas tendncias, mas sobretudo esta, que ataca
com a cooperao assustada dos espiritualistas. Na verdade, ele inaugura um novo
momento na dialtica do universal e do particular, inscrevendo-se neste com fora e
at arrogncia, por meio de armas tomadas a princpio ao arsenal daquele. Deixa de
lado a corrente literria estabelecida, que continua a fluir; mas retoma certos temas que
ela e o Espiritualismo simbolista haviam deixado no ar. Dentre estes, a pesquisa lrica
tanto no plano dos temas quanto dos meios formais; a indagao sobre o destino do
homem e, sobretudo, do homem brasileiro; a busca de uma forte convico. Dentre os
primeiros, o culto do pitoresco nacional, o estabelecimento de uma expresso inserida
na herana europia e de uma literatura que exprimisse a sociedade.
uma retomada, porm, que aparece sobretudo como ruptura, e realmente o
se atentarmos para o fato de que o plano em que se d bem diverso.
Na pesquisa lrica, por exemplo, em lugar do idealismo vagamente esotrico e
decadente veremos um apelo s camadas profundas do inconsciente coletivo e pessoal.
O nosso Modernismo importa essencialmente, em sua fase herica, na libertao de
uma srie de
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recalques histricos, sociais, tnicos, que so trazidos triunfalmente a tona da
conscincia literria. Este sentimento de triunfo, que assinala o fim da posio de
inferioridade no dilogo secular com Portugal e j nem o leva mais em conta, define a
originalidade prpria do Modernismo na dialtica do geral e do particular.
Na nossa cultura h uma ambiguidade fundamental: a de sermos um povo
latino, de herana cultural europia, mas etnicamente mestio, situado no trpico,
influenciado por culturas primitivas, amerndias e africanas. Esta ambiguidade deu
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sempre s afirmaes particularistas um tom de constrangimento, que geralmente se
resolvia pela idealizao. Assim, o ndio era europeizado nas virtudes e costumes
(processo tanto mais fcil quanto desde o sculo XVIII os nossos centros intelectuais
no o conheciam mais diretamente); a mestiagem era ignorada; a paisagem,
amaneirada. No perodo 1900-1920, vimos que o caboclo passou por um processo de
idealizao; no plano sociolgico, Oliveira Viana elabora a partir de 1917 a sua
ridcula teoria das elites rurais, arianas e fidalgas, como foco de energia nacional.
O Modernismo rompe com este estado de coisas. As nossas deficincias,
supostas ou reais, so reinterpretadas como superioridades. A filosofia csmica e
superficial, que alguns adotaram certo momento nas pegadas de Graa Aranha, atribui
um significado construtivo, herico, ao cadinho de raas e culturas localizado numa
natureza spera. No se precisaria mais dizer e escrever, como no tempo de Bilac ou
do conde Afonso Celso, que tudo aqui belo e risonho: acentuam-se a rudeza, os
perigos, os obstculos da natureza tropical. O mulato e o negro so definitivamente
incorporados como temas de estudo, inspirao, exemplo. O primitivismo agora
fonte de beleza e no mais empecilho elaborao da cultura. Isso, na literatura, na
pintura, na msica, nas cincias do homem.
Mrio de Andrade, em Macunama (a obra central e mais caracterstica do
movimento), compendiou alegremente lendas de ndios, ditados populares,
obscenidades, esteretipos desenvolvidos na stira popular, atitudes em face do
europeu, mostrando como a cada valor aceito na tradio acadmica e oficial
correspondia, na
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tradio popular, um valor recalcado que precisava adquirir estado de literatura.
Ao lado do problema de aceitao (poder-se-ia at dizer redeno) destas
componentes recalcadas da nacionalidade, colocava-se de modo indissolvel o
problema da sua expresso literria. No campo da pesquisa formal os modernistas vo
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inspirar-se em parte, de maneira algo desordenada, nas correntes literrias de
vanguarda na Frana e na Itlia. Assinalemos, porm, que esse emprstimo se reveste
de carter bastante diverso dos anteriores. Com efeito, o Brasil se encontrava, depois
da Primeira Guerra Mundial, muito mais ligado ao Ocidente europeu do que antes; no
apenas pela participao mais intensa nos problemas sociais e econmicos da hora,
como pelo desnvel cultural menos acentuado. Alm disso, alguns estmulos da
vanguarda artstica europia agiam tambm sobre ns: a velocidade, a mecanizao
crescente da vida nos impressionavam em virtude do brusco surto industrial de 1914-
1918, que rompeu nos maiores centros o ritmo tradicional. As agitaes sociais,
trazendo ao nvel da conscincia literria inspiraes populares comprimidas,
esboavam-se tambm aqui, embora em miniatura. No campo operrio, com as grande
greves de 1917, 1918, 1919 e 1920, em So Paulo e no Rio, a fundao do Partido
Comunista em 1922. No setor burgus, com a fermentao poltica desfechada no
levante de 1922, mais tarde na revoluo de 1924. Finalmente, no se ignora o papel
que a arte primitiva, o folclore, a etnografia tiveram na definio das estticas
modernas, muito atentas aos elementos arcaicos e populares comprimidos pelo
academismo. Ora, no Brasil as culturas primitivas se misturam vida quotidiana ou
so reminiscncias ainda vivas de um passado recente. As terrveis ousadias de um
Picasso, um Brancusi, um Max Jacob, um Tristan Tzara eram, no fundo, mais
coerentes com a nossa herana cultural do que com a deles. O hbito em que
estvamos do fetichismo negro, dos calungas, dos ex-votos, da poesia folclrica nos
predispunha a aceitar e assimilar processos artsticos que na Europa representavam
ruptura profunda com o meio social e as tradies espirituais. Os nossos modernistas
se informaram pois rapidamente da arte
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Europia de vanguarda, aprenderam a psicanlise e plasmaram um tipo ao mesmo
tempo local e universal de expresso, reencontrando a influncia europia por um
mergulho no detalhe brasileiro. Impressionante a concordncia com que um
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Apollinaire e um Cendrars ressurgem, por exemplo, em Oswald de Andrade.
Desrecalque localista; assimilao da vanguarda europia. Sublinhemos tambm
o nacionalismo acentuado desta gerao renovadora, que deixa de lado o patriotismo
ornamental de Bilac, Coelho Neto ou Rui Barbosa, para amar com veemncia o
extico descoberto no prprio pas pela sua curiosidade liberta das injunes
acadmicas. Um certo nmero de escritores se aplica a mostrar como somos diferentes
da Europa e como, por isso, devemos ver e exprimir diversamente as coisas. Em todos
eles encontramos latente o sentimento de que a expresso livre, principalmente na
poesia, a grande possibilidade que tem para manifestar-se com autenticidade um pas
de contrastes, onde tudo se mistura e as formas regulares no correspondem
realidade. Cria o teu ritmo livremente.
Este verso de Ronald de Carvalho assinala o novo estado de esprito.
Enquanto certos escritores procuravam exprimir a forma e a essncia do seu pas, outros mais arrojados porfiavam em pesquisar, em experimentar formas novas e descobrir sentimentos ocultos. Dentre os primeiros, Guilherme de Almeida (Raa, Meu) e Ronald de Carvalho (Toda a Amrica), atrados pela clareza, a harmonia que se poderia captar na terra virgem, no povo moo. uma derivao da linha csmica de Graa Aranha, muito afeita aos ritmos dinmicos, exaltao da paisagem, e procurando embriagar-se pela ao e o nativismo. Na sequncia, ou num desvio desta linha, situam-se porventura as correntes que, no Modernismo, passaram do nacionalismo esttico ao poltico, e at ao fascismo: o Verde-amarelismo, o movimento da Anta
(Menotti del Picchia, Cassiano Ricardo, Plnio Salgado) [pg. 129]
A segunda linha, qui mais tpica, aborda temas anlogos com esprito
diferente. Mais humour, maior ousadia formal, elaborao mais autntica do folclore e
dos dados etnogrficos, irreverncia mais consequente, produzindo uma crtica bem
mais profunda. Sobretudo a descoberta de smbolos e alegorias densamente
sugestivos, carregados de obscura irregularidade; a adeso franca aos elementos
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recalcados da nossa civilizao, como o negro, o mestio, o filho de imigrantes, o
gosto vistoso do povo, a ingenuidade, a malandrice. E toda a vocao dionisaca de
Oswald de Andrade, Raul Bopp, Mrio de Andrade; este haveria, alis, de elaborar as
diversas tendncias do movimento numa sntese superior. A poesia Pau Brasil e a
Antropofagia, animadas pelo primeiro, exprimem a atitude de devorao em face dos
valores europeus, e a manifestao de um lirismo telrico, ao mesmo tempo crtico,
mergulhado no inconsciente individual e coletivo, de que Macunaima seria a mais alta
expresso.
Esta corrente a que assimila melhor as influncias das vanguardas francesas e
do Futurismo italiano, no que respeita s tcnicas de pesquisa e expresso artstica. Da
sua atividade, combinada com a influncia de Manuel Bandeira, reponta propriamente
o estilo moderno na literatura, que encontra as suas mais tpicas expresses nas lindes
da poesia e da prosa. Prosa telegrfica e sinttica de Oswald de Andrade, nas
Memrias sentimentais de Joo Miramar, que avana a cada instante rumo poesia;
poesia vibrante e seca de Manuel Bandeira em Libertinagem, anexando virtudes da
prosa.
caracterstico dessa gerao o fato de toda ela tender para o ensaio. Desde a
crnica polmica (arma ttica por excelncia, nas mos de Oswald de Andrade, Mrio
de Andrade, Ronald de Carvalho, Srgio Buarque de Holanda), at o longo ensaio
histrico e sociolgico, que incorporou o movimento ao pensamento nacional,
grande a tendncia para a anlise. Todos esquadrinham, tentam snteses, procuram
explicaes. Com o recuo do tempo, vemos agora que se tratava de redefinir a nossa
cultura luz de uma avaliao nova dos seus fatores. Pode-se dizer que o Modernismo
veio criar condies para aproveitar e desenvolver as intuies de um Slvio
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Romero, ou um Euclides da Cunha, bem como as pesquisas de um Mina Rodrigues.
Sob este ponto de vista, o decnio mais importante o seguinte, de 1930. Na
-
mar montante da Revoluo de Outubro, que encerra fermentao antioligrquica j
referida, a literatura e o pensa mento se aparelham numa grande arrancada. A prosa,
liberta e amadurecida, se desenvolve no romance e no conto, que vivem uma de suas
quadras mais ricas. Romance fortemente marcado de Neo-naturalismo e de inspirao
popular, visando aos dramas contidos em aspectos caractersticos do pas: decadncia
da aristocracia rural e formao do proletariado (Jos Lins do Rego); poesia e luta do
trabalhador (Jorge Amado, Amando Fontes); xodo rural, cangao (Jos Amrico de
Almeida, Raquel de Queirs, Graciliano Ramos); vida difcil das cidades em rpida
transformao (rico Verssimo). Nesse tipo de romance, o mais caracterstico do
perodo e frequentemente de tendncia radical, marcante a preponderncia do
problema sobre o personagem. a sua fora e a sua fraqueza. Raramente, como em
um ou outro livro de Jos Lins do Rego (Bangu) e sobretudo Graciliano Ramos (S.
Bernardo), a humanidade singular dos protagonistas domina os fatores do enredo:
meio social, paisagem, problema poltico. Mas, ao mesmo tempo, tal limitao
determina o importantssimo carter de movimento dessa fase do romance, que aparece
como instrumento de pesquisa humana e social, no centro de um dos maiores sopros
de radicalismo da nossa histria.
Ao lado da fico, o ensaio histrico-sociolgico o desenvolvimento mais
interessante do perodo. A obra de Gilberto Freyre assinala a expresso, neste terreno,
das mesmas tendncias do Modernismo, a que deu por assim dizer coroamento
sistemtico, ao estudar com livre fantasia o papel do negro, do ndio e do colonizador
na formao de uma sociedade ajustada s condies do meio tropical e da economia
latifundiria (Casa-grande & senzala, Sobrados e mucambos, Nordeste). Outras obras
completam a sua, vlida sobretudo para o Nordeste canavieiro, como a sntese de
Srgio Buarque de Holanda (Razes do Brasil) e a interpretao ma-
[pg. 131]
terialista de Caio Prado Jnior (Evoluo poltica do Brasil). Os ensaios desse gnero
se multiplicam, nesse decnio de intensa pesquisa e interpretao do pas. Ajustando-
-
se a uma tendncia secular, o pensamento brasileiro se exprime, ainda a, no terreno
predileto e sincrtico do ensaio no especializado de assunto histrico-social.
Parece que o Modernismo (tomado o conceito no sentido amplo de movimento
das idias, e no apenas das letras) corresponde tendncia mais autntica da arte e do
pensamento brasileiro. Nele, e sobretudo na culminncia em que todos os seus frutos
amadureceram (1930-1940), fundiram-se a libertao do academismo, dos recalques
histricos, do oficialismo literrio; as tendncias de educao poltica e reforma social;
o ardor de conhecer o pas. A sua expanso coincidiu com a radicalizao posterior
crise de 1929, que marcou em todo o mundo civilizado uma fase nova de inquietao
social e ideolgica. Em consequncia, manifestou-se uma "ida ao povo", um V Narod,
por toda parte e tambm aqui, onde foi o coroamento natural da pesquisa localista, da
redefinio cultural desencadeada em 1922. A alegria turbulenta e iconoclstica dos
modernistas preparou, no Brasil, os caminhos para a arte interessada e a investigao
histrico-sociolgica do decnio de 1930. A instaurao do Estado Novo ditatorial e
antidemocrtico marcaria o incio de uma fase nova. Ele coincide realmente com o
znite do Modernismo ideolgico e uma recrudescncia do Espiritualismo, esttico e
ideolgico, que vimos perdurar ao lado dele, tendo comeado antes e, mais de uma
vez, convergido nos seus esforos de luta contra o academismo.
O decnio de 1930 com efeito, no Brasil, sobretudo em seus ltimos anos, de
intensa fermentao espiritualista. Do Simbolismo, da pregao catlica de Jackson de
Figueiredo, do nacionalismo, resultaro vrias tendncias ideolgicas e estticas. O
romance introspectivo de Cornlio Pena (Fronteira) e Lcio Cardoso (Luz no subsolo,
Mos vazias); social, de Plnio Salgado (O esperado, O cavaleiro de Itarar);
dramtico, de Octvio de Faria (Mundos mortos, Caminhos da vida), exprimem, seja
um inconformismo com o Neorealismo dos modernos, seja com a sua interpretao
geralmente
[pg. 132]
radical da sociedade. A poesia de Augusto Frederico Schmidt, neo-romntica, a de
-
Jorge de Lima e Murilo Mendes, catlica, marcam neste campo tendncias
dependentes do Modernismo.
No terreno propriamente das idias, sociais e polticas, o catolicismo de Tristo
de Atade (Alceu Amoroso Lima) se afirma como oposio a certas posies
ideolgicas do Modernismo, no sentido amplo, porque nelas via perigo de dissolver a
tradio religiosa e moral do pas. Mais extremado na resistncia transformao dos
valores surge, imitao do fascismo, o integralismo de Plnio Salgado, logo
avolumado em poderosa organizao partidria. Ele representou, de certo modo, a
exacerbao de um aspecto do localismo modernista: o nacionalismo, transferido para
o terreno da poltica.
Assim, vemos que as tenses da Europa repercutiram ponderavelmente aqui.
No mais como transposio, mas como manifestao de uma solidariedade cultural
intensificada depois da Primeira Guerra Mundial e do nosso progresso econmico.
Direita e esquerda poltica refletindo na literatura; populismo literrio e problemas
psicolgicos; socialismo e neotomismo; Surrealismo e Neo-realismo; laicismo e
arregimentao catlica; libertao nos costumes, formao da opinio poltica; eis
alguns traos marcados e frequentemente contraditrios do decnio de 1930,
assinalando, quer a projeo esttica e ideolgica do Modernismo, quer a reao do
Espiritualismo literrio e ideolgico.
4
Depois de 1940, ou pouco antes, vamos percebendo a constituio de um
perodo novo. Nos dois decnios de 1920 e 1930, assistimos o admirvel esforo de
construir uma literatura universalmente vlida (pela sua participao nos problemas
gerais do momento, pela nossa crescente integrao nestes problemas) por meio de
uma intransigente fidelidade ao local. A partir de 1940, mais ou menos, assistiremos,
-
ao lado disso, a um certo repdio do local, reputado apenas pitoresco e extraliterrio; e
um novo anseio generalizador, procurando fazer da expresso literria um problema
de intelign-
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cia formal e de pesquisa interior. O Modernismo regionalista, folclrico, libertino,
populista, se amaina, inclusive nas obras que os seus prceres escrevem agora,
revelando preocupao mais exigente com a forma ou esforo anti-sectrio no
contedo. No obstante, o momento em que os prceres dos dois decnios publicam
algumas das suas melhores produes (Fogo morto, de Jos Lins do Rego, e Terras do
sem-fim, de Jorge Amado, por exemplo, ambos de 1943; Sentimento do mundo e Rosa
do povo, de Carlos Drummond de Andrade, em 1940 e 1946).
At 1945, mais ou menos, vemos uma produo intensa, favorecida por grande
surto editorial, em que brilham veteranos e novos, estes com tendncia crescente para
repudiar a literatura social e ideolgica, o que veio finalmente a predominar sob a
forma de uma queda da qualidade mdia do romance e uma grande voga de pesquisas
formais e psicolgicas na poesia. Entretanto, o abandono da linha modernista no se
deu segundo os rumos previstos e propugnados pelos espiritualistas, a saber, a
ateno para o drama moral e o catolicismo potico. Os novos manifestaram pouco
interesse pela literatura ideolgica de esquerda e de direita, e os que tinham vocao
poltica desleixaram no raro a literatura, passando diretamente militncia.
Desenvolve-se, desse modo, o que parece constituir um dos traos salientes dessa fase:
a separao abrupta entre a preocupao esttica e a preocupao poltico-social, cuja
coexistncia relativamente harmoniosa tinha assegurado o amplo movimento cultural
do decnio de 1930. Com a definio cada vez mais clara das posies polticas (no
s entre direita e esquerda, como antes, mas dentro da prpria esquerda e da prpria
direita), os escritores polticos se tornaram cada vez mais sectrios, no sentido tcnico
da expresso. Tornaram-se especializados na direo propagandstica e panfletria,
enquanto por outro lado os escritos de cunho mais propriamente esttico (sobretudo a
-
poesia e a crtica, os dois gneros em expanso nos nossos dias) se insulavam no
desconhecimento, propositado ou no, da realidade social.
O decnio de 1930 nos aparece agora como um momento de equilbrio entre a
pesquisa local e as aspiraes cosmopolitas, j
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novamente dissociadas em nossos dias de sectarismo estreito acotovelando-se com o
formalismo. A queda do movimento editorial, a voga avassaladora da rdio-novela e
do rdio-teatro, do cinema e dos strips; o conflito entre a inteligncia participante e a
inteligncia contemplativa, que se vo tornando, uma e outra, cada vez mais estritas e
inconciliveis; a prpria mobilidade da opinio culta, sempre fascinada pela Europa e
agora tambm pelos Estados Unidos: eis alguns traos que ajudam a compreender
as contradies literrias dos nossos dias e o afastamento em relao ao perodo
precedente. Vivemos uma fase crtica, demasiado refinada nuns, demasiado grosseira
noutros; em todo o caso, pouco criadora, embora muito engenhosa.
Em poesia, as melhores vozes ainda nos vm de antes, com a de Henriqueta
Lisboa (Flor da morte, 1949) ou Vincius de Moraes (Poemas, sonetos e baladas,
1946), para no citar Murilo Mendes e Carlos Drummond de Andrade, cujos primeiros
livros so de 1930, ou Manuel Bandeira, pr-modernista e modernista da primeira
hora. No romance, significativo o xito de um veterano, Jos Geraldo Vieira, cuja
obra revalorizada depois da publicao, em 1943, de A quadragsima porta. Obra de
cunho cosmopolita, s voltas com problemas intemporais do destino humano, no raro
tendo a Europa por cenrio, carregada de intenes simblicas, de vistosa erudio e
complicados arrojos vocabulares. No menos significativo, o de Clarice Lispector
(Perto do corao selvagem, 1944; O lustre, 1946), que situa os seus romances fora do
espao, em curiosas encruzilhadas do tempo psicolgico.
Mais significativo do que tudo, porm, so as revistas e agrupamentos poticos
e crticos, as mais das vezes fascinados por problemas de organizao formal da
-
sensibilidade, de clarividncia potica, e manifestando irritada impacincia com as
impurezas literrias da gerao anterior. Rapazes frequentemente afeitos nova
crtica, neoformalista, ou dialtica existencial; admiradores de T. S. Eliot e Rilke,
umas vezes excessivamente maduros, outras com o ingnuo egotismo da adolescncia.
Em qualquer caso, raras vezes passando alm da habilidade superficial, do drama
simulado ou da
[pg. 135]
revolta aparente. Para quem l com mais ateno a poesia brasileira dos ltimos
anos, impressiona desde logo o pouco ou nada que ela tem para dizer. E quando tem, o
quanto devido sensibilidade e aos temas da gerao anterior. Salvo num ou noutro
mais bem dotado (um Bueno de Rivera, um Wilson Figueiredo, sobretudo um Joo
Cabral de Melo Neto, para citar apenas trs), esta poesia de pouca personalidade e
menor ressonncia humana. Em vo buscaramos entre estes jovens o sopro ardente
das Cinco elegias, de Vinicius de Moraes, ou a comovedora profundidade de
Henriqueta Lisboa em Flor da morte.
No entanto, como conjunto e como experincia, os novos poetas representam
algo aprecivel: com a sua exigncia crtica e psicolgica, representam a barragem que
ser estourada quando as correntes represadas da inspirao adquirirem, na
experincia individual e coletiva, energia suficiente para superar as atuais experincias
tcnicas, mais de potica do que de poesia.
uma constante no desmentida de toda a nossa evoluo literria que a
verdadeira poesia s se realiza, no Brasil, quando sentimos na sua mensagem uma
certa presena dos homens, das coisas, dos lugares do pas. Esta presena pode ser
ostensiva em certas obras-primas, como o LEITO DE FOLHAS VERDES, de
Gonalves Dias, e mais ainda O NAVIO NEGREIRO, de Castro Alves; e pode ser
implcita, misteriosamente pressentida, como em JUVENLIA, de Varela. De qualquer
modo, ela por assim dizer o penhor de eficcia dos nossos poetas, e a condio de
que dependem para chegar a esferas menos presas s condies locais. Para alarem o
-
vo dos HINOS, (Gonalves Dias), de SUB TEGMINE FAGI (Castro Alves), do
CNTICO DO CALVRIO (Varela). Pouco sentimos desta impregnao nos atuais
poetas. Tero eles superado realmente uma etapa de poesia mais contingente, toda
cheia de modismos, pitoresco, sentimentos, para lanar a nossa literatura em sendas
mais largas, nas quais seja definitivamente sublimada a dialtica do local e do geral?
Ou representam (ao mesmo ttulo que os ltimos parnasianos, embora sob aspectos
totalmente diversos) um momento de cosmopolitismo, que convm ultrapassar
rapidamente? No possvel responder
[pg. 136]
desde j. Apenas parece que orientaes como as deles (ou melhor, dos mais
caractersticos dentre eles) so antes experincias do que realizaes; neste caso, tero
cumprido o papel de fornecer aos sucessores um instrumento renovado e ajustvel s
necessidades de uma sensibilidade nova, que se desenvolver certamente quando
transpusermos este limiar de coletivismo em que vivemos. A sua conscincia artesanal
poder, ento, ser conservada e fecundada.
5
Tendo feito a sntese interpretativa do movimento literrio nos ltimos
cinquenta anos, podemos agora fazer algumas consideraes sociolgicas sobre a
funo da literatura na cultura brasileira e a sua posio atual.
Constatemos de incio (como j tive oportunidade de fazer em outro escrito) que
as melhores expresses do pensamento e da sensibilidade tm quase sempre assumido,
no Brasil, forma literria. Isto verdade no apenas para o romance de Jos de
Alencar, Machado de Assis, Graciliano Ramos; para a poesia de Gonalves Dias,
Castro Alves, Mrio de Andrade, como para Um estadista do Imprio, de Joaquim
Nabuco, Os sertes, de Euclides da Cunha, Casa-grande & senzala, de Gilberto
Freyre livros de inteno histrica e sociolgica. Diferentemente do que sucede em
-
outros pases, a literatura tem sido aqui, mais do que a filosofia e as cincias humanas,
o fenmeno central da vida do esprito.
O exemplo da sociologia elucidativo a este respeito. Esboados os trabalhos e
a orientao sociolgica desde o ltimo quartel do sculo XIX, sobretudo com A
mulher e a sociogenia, de Lvio de Castro, e alguns trabalhos de Slvio Romero, o
primeiro livro propriamente sociolgico, no sentido estrito da palavra, s veio a
aparecer entre ns em 1939: Assimilao e populaes marginais no Brasil, de Emlio
Willems. Antes, de Euclides da Cunha a Gilberto Freyre, a sociologia aparecia mais
como "ponto de vista" do que como pesquisa objetiva da realidade presente. O
poderoso m da literatura interferia com a tendncia sociolgica, dando origem
quele gne-
[pg. 137]
ro misto de ensaio, construdo na confluncia da histria com a economia, a filosofia
ou a arte, que uma forma bem brasileira de investigao e descoberta do Brasil, e
qual devemos a pouco literria Histria da literatura brasileira , de Slvio Romero,
Os sertes, de Euclides da Cunha, Populaes meridionais do Brasil, de Oliveira
Viana, a obra de Gilberto Freyre e as Razes do Brasil, de Srgio Buarque de Holanda.
No ser exagerado afirmar que esta linha de ensaio, em que se combinam com
felicidade maior ou menor a imaginao e a observao, a cincia e a arte constitui
o trao mais caracterstico e original do nosso pensamento. Notemos que, esboada no
sculo XIX, ela se desenvolve principalmente no atual, onde funciona como elemento
de ligao entre a pesquisa puramente cientfica e a criao literria, dando, graas ao
seu carter sincrtico, uma certa unidade ao panorama da nossa cultura.
Ora, nos nossos dias houve uma transformao essencial deste estado de coisas.
Deixando de constituir atividade sincrtica, a literatura volta-se sobre si mesma,
especificando-se e assumindo uma configurao propriamente esttica; ao faz-lo,
deixa de ser uma viga mestra, para alinhar-se em p de igualdade com outras
atividades do esprito. Se focalizarmos no mais o ritmo esttico da nossa literatura
-
(que parece desenvolver-se conforme a dialtica do local e do cosmopolita), mas o seu
ritmo histrico e social, poderamos talvez defini-la como literatura de incorporao
que vai passando a literatura da depurao.
Com efeito, fcil perceber que o verbo literrio vai perdendo terreno, no
apenas em relao matria que lhe cabia, mas ao prestgio que tinha como padro de
cultura. Para dar um nico exemplo: hoje no compreenderamos mais fenmenos
como a escola baiana de medicina, ou o prolongamento que lhe deram, na Faculdade
do Rio, Francisco de Castro e os seus discpulos. No se poderia admitir, de um lado, a
cincia mdica expressa em retrica literria; de outro, a literatura considerada como
requisito de preeminncia cientfica e social.
A longa soberania da literatura tem, no Brasil, duas ordens de fatores. Uns,
derivados da nossa civilizao europia e dos nossos
[pg. 138]
contatos permanentes com a Europa, quais sejam o prestgio das humanidades
clssicas e a demorada irradiao do esprito cientfico. Outros, propriamente locais,
que prolongaram indefinidamente aquele prestgio e obstaram esta irradiao.
Assinalemos, entre os fatores locais (que nos interessam mais de perto), a ausncia de
iniciativa poltica implicada no estatuto colonial, o atraso ainda hoje to sensvel da
instruo, a fraca diviso do trabalho intelectual.
A literatura se adaptou muito bem a estas condies, ao permitir, e mesmo
forar, a preeminncia da interpretao potica, da descrio subjetiva, da tcnica
metafrica (da viso, numa palavra), sobre a interpretao racional, a descrio
cientfica, o estilo direto (ou seja, o conhecimento). Ante a impossibilidade de formar
aqui pesquisadores, tcnicos, filsofos, ela preencheu a seu modo a lacuna, criando
mitos e padres que serviram para orientar e dar forma ao pensamento. Veja-se, por
exemplo, o significado e a voga do Indianismo romntico, que satisfazia tanto s
exigncias rudimentares do conhecimento (graas a uma etnografia intuitiva e
-
fantasiosa), quanto s da sensibilidade e da conscincia nacional, dando-lhes o ndio
cavalheiresco como alimento para o orgulho e superao das inferioridades sentidas.
Uma consequncia interessante foi a supremacia dos estudos de direito. Aos
problemas coloniais de estabelecimento de fronteiras e consolidao do territrio,
sucederam no sculo XIX os graves problemas de estabelecimento e consolidao do
Estado, inclusive a ordenao de uma sociedade pouco organizada alm dos limites
paternalistas da famlia. pois compreensvel que se tenha propiciado a cultura
jurdica (provida desde logo de bases universitrias), com toda a sua tendncia para o
formalismo, como orientao, atravs da retrica, como tcnica. Se lembrarmos que o
discurso e o sermo (sobretudo este) foram os tipos mais frequentes e prezados de
manifestao intelectual no tempo da Colnia, veremos quanto a sua fuso no corpo
da jurisprudncia importa em triunfo do esprito literrio como elemento de
continuidade cultural.
Justamente devido a essa inflao literria, a literatura contribuiu com eficcia
maior do que se supe para formar uma conscincia
[pg. 139]
nacional e pesquisar a vida e os problemas brasileiros. Pois ela foi menos um
empecilho formao do esprito cientfico e tcnico (sem condies para
desenvolver-se) do que um paliativo sua fraqueza. Basta refletir sobre o papel
importantssimo do romance oitocentista como explorao e revelao do Brasil aos
brasileiros.
No perodo em que a nossa literatura ganhou corpo (do sculo XVIII ao sculo
XIX) eram muito restritos os grupos sociais ao seu alcance. Foi justamente em funo
destes que ela trabalhou, dando-lhes de certo modo alimento espiritual e recursos
mentais para compreender o pas. As cincias naturais e humanas, a despeito do belo
incio que tiveram aqui em fins de sculo XVIII e incio do XIX (quando delimitam a
nossa breve Aufklrung), no se desenvolveram em seguida no mesmo ritmo que as
-
letras ou o direito. Em parte, porque no tinham ressonncia ou possibilidade, como
demonstra simbolicamente o ineditismo em que os poderes conservaram os escritos de
Alexandre Rodrigues Ferreira, ou a odissia das pranchas de frei Mariano da
Conceio Veloso; em parte, porque a tarefa social mais urgente era, como ficou
indicado, de ordem poltica e jurdica. Desde modo, o esprito da burguesia brasileira
se desenvolveu sob influxos dominantemente literrios, e a sua maneira de interpretar
o mundo circundante foi estilizada em termos, no de cincia, filosofia ou tcnica, mas
de literatura. Toda a renovao intelectual do Naturalismo, a partir do que Slvio
Romero chamou a Escola do Recife, nos aparece hoje sobretudo como um sistema de
retrica. Bacharis de mente acesa, alastrando de literatura, e mesmo literatice, noes
cientficas vagamente aprendidas em Haeckel, Huxley ou Bchner. difcil encontrar
maior verbalismo do que, por exemplo, nos estudos em que Fausto Cardoso pretendeu
consolidar cientificamente os fundamentos da sociologia por meio do monismo
haeckeliano.
Toda essa onda vem quebrar n'Os sertes, tpico exemplo da fuso, bem
brasileira, de cincia mal digerida, nfase oratria e intuies fulgurantes. Livro posto
entre a literatura e a sociologia naturalista, Os sertes assinalam um fim e um comeo:
o fim do imperialismo literrio, o comeo da anlise cientfica aplicada aos aspectos
mais
[pg. 140]
importantes da sociedade brasileira (no caso, as contradies contidas na diferena de
cultura entre as regies litorneas e o interior).
A obra de Euclides da Cunha foi escrita num tempo em que j estavam bastante
modificadas as condies de formao do nosso pensamento, com indcios vivos de
superao da tirania jurdico-retrica. Mas, como vimos acima, a literatura se
caracterizava, no incio do sculo XX, por uma acentuada inconscincia desta
transformao. Ajustava-se superfcie da vida burguesa, sem pressentir as novas
exigncias de sensibilidade e conhecimento, percebidas apenas por alguns.
-
Nesta ordem de consideraes, o Modernismo representa um esforo brusco e
feliz de reajustamento da cultura s condies sociais e ideolgicas, que vinham,
desde o fim da Monarquia, em lenta mudana, acelerada pelas fissuras que a Primeira
Guerra Mundial abriu tambm aqui na estrutura social, econmica e poltica. A fora
do Modernismo reside na largueza com que se props encarar a nova situao,
facilitando o desenvolvimento at ento embrionrio da sociologia, da histria social,
da etnografia, do folclore, da teoria educacional, da teoria poltica. No preciso
lembrar a sincronia dos acontecimentos literrios, polticos, educacionais, artsticos,
para sugerir o poderoso impacto que os anos de 1920-1935 representam na sociedade e
na ideologia do passado.
Mas, apesar da cultura intelectual se haver desenvolvido em ritmo acelerado
desde o incio do sculo; apesar da intensa diviso do trabalho intelectual, com o
estabelecimento da vida cientfica, em escala aprecivel; apesar do surto das cincias
humanas a partir sobretudo de 1930; apesar de tudo isto, a literatura permaneceu em
posio-chave. Vimos que alguns dos produtos mais excelentes dessa poca no campo
dos estudos sociais, como Casa-grande & senzala, Sobrados e mucambos, Razes do
Brasil, lhe so tributrios, no apenas pelo estilo mas principalmente pelo ritmo da
composio e a prpria qualidade da interpretao. Por outro lado, o romance social e
narrativo do decnio de 1930 segue a tradio naturalista de concorrncia ao
conhecimento cientfico; s que, neste caso, conhecimento mais sociolgico e poltico,
no obstante a cincia j
[pg. 141]
haver, neste setor, alcanado e superado os recursos da fico. Em todo o caso, os
decnios de 1920 e de 1930 ficaro em nossa histria intelectual como de harmoniosa
convivncia e troca de servios entre literatura e estudos sociais.
Hoje, vemos que necessrio chamar Modernismo, no sentido amplo, ao
movimento cultural brasileiro de entre as duas guerras, correspondente fase em que a
literatura, mantendo-se ainda muito larga no seu mbito, coopera com os outros
-
setores da vida intelectual no sentido da diferenciao das atribuies, de um lado; da
criao de novos recursos expressivos e interpretativos, de outro.
A inteligncia tomou finalmente conscincia da presena das massas como
elemento construtivo da sociedade; isto, no apenas pelo desenvolvimento de
sugestes de ordem sociolgica, folclrica, literria, mas sobretudo porque as novas
condies da vida poltica e econmica pressupunham cada vez mais o advento das
camadas populares. Pode-se dizer que houve um processo de convergncia, segundo o
qual a conscincia popular amadurecia, ao mesmo tempo em que os intelectuais se iam
tornando cientes dela. E este alargamento da inteligncia em direo aos temas e
problemas populares contribuiu poderosamente para criar condies de
desenvolvimento das aspiraes radicais, que tentariam orientar, dar forma, ou quando
menos sentir a inquietao popular. O que se poderia, no melhor sentido, chamar de
libertinagem espiritual do Modernismo contribuiu para o fermento de negao da
ordem estabelecida, sem o qual no se desenvolvem a rebeldia social e o consequente
radicalismo poltico. Aquilo que chamei o V Narod do decnio de 1930 apresenta,
visto de hoje, uma configurao nitidamente renovadora, a despeito da atitude poltica
e filosfica assumida ulteriormente pelos seus protagonistas. preciso coloc-los no
contexto daquele momento para compreender o sentido da sua ao. Um autor como
Gilberto Freyre, que parece hoje um socilogo conservador, significou ento uma
fora poderosa de crtica social, com a desabusada liberdade das suas interpretaes. A
destruio dos tabus formais, a libertao do idioma literrio, a paixo pelo dado
folclrico, a busca do esprito popular, a irre-
[pg. 142]
verncia como atitude: eis algumas contribuies do Modernismo que permitiriam a
expresso simultnea da literatura interessada, do ensaio histrico-social, da poesia
libertada.
Paralelamente, a ameaa aos valores tradicionais estimulou, no plano
intelectual, manifestaes que, embora tributrias em parte do Modernismo (como
-
vimos), constituem sobretudo um prolongamento ou uma superao da linha
espiritualista originada do Simbolismo e que hauriu no Modernismo alguns
instrumentos formais, mas sobretudo o nacionalismo e a pesquisa do eu profundo. A
poesia espiritualista, o romance de orientao problemtica, o ensaio catlico
tradicionalista constituem modos, bastante diversos, e nem sempre ligados entre si, de
reagir no sentido de uma preservao, ou reajustamento de valores sociais, polticos,
ideolgicos, ameaados pelas manifestaes modernistas. Diante da crise das velhas
estruturas, e portanto dos valores tradicionais, a literatura reagiu com bastante
sensibilidade quer no sentido da reforma, contribuindo para a formao de uma
atitude crtica, quer no da reao, intensificando o apelo daqueles valores.
Em nossos dias, estamos assistindo ao fim da literatura onvora, infiltrada como
critrio de valor nas vrias atividades do pensamento. Assistimos, assim, ao fim da
literatice tradicional, ou seja, da intromisso indevida da literatura; da literatura sem
propsito. Em consequncia, presenciamos tambm a formao de padres literrios
mais puros, mais exigentes e voltados para a considerao de problemas estticos, no
mais sociais e histricos. a maneira pela qual as letras reagiram crescente diviso
do trabalho intelectual, manifestado sobretudo no desenvolvimento das cincias da
cultura, que vo permitindo elaborar, do pas, um conhecimento especializado e que
no reveste mais a forma literria.
Vista luz da evoluo literria, esta diviso do trabalho significa o
aparecimento de um conflito no interior da literatura, na medida em que esta se v
atacada em campos que haviam sido at aqui (numas fases mais, noutras menos) seus
campos preferenciais. Um Alencar ou um Domingos Olmpio eram, ao mesmo tempo,
o Gilberto Freyre e o Jos Lins do Rego em seu tempo; a sua fico
[pg. 143]
adquiria significado de iniciao ao conhecimento da realidade do pas. Mas hoje, os
papis sociais do romancista e do socilogo j se diferenciaram, e a literatura deve
retrair, se no a profundidade, certamente o mbito da sua ambio. Da as modernas
-
tendncias estetizantes aparecerem ao socilogo e ao historiador da cultura como
reao de defesa e ajustamento s novas condies da vida intelectual; uma
delimitao de campo que, para o crtico, principalmente uma tendncia ao
formalismo, e por vezes gratuidade e ao solipsismo literrio. Tanto para o crtico
quanto para o estudioso da cultura e da sociedade, ela , contudo, uma elaborao de
novos meios expressivos e um desenvolvimento de nova conscincia artesanal, que
produziro novas formas de expresso literria, mais ou menos ligadas vida social,
conforme os acontecimentos o solicitem.
No h dvida, porm, que o presente momento de relativa perplexidade,
manifestada pelo abuso de pesquisas formais, a queda na qualidade mdia da
produo, a omisso da crtica militante. Se encararmos estes fatos de um ngulo
sociolgico, veremos que eles esto ligados entre outras causas transformao
do pblico e transformao do grupo de escritores.
Vejamos o primeiro caso. Os analfabetos eram no Brasil, em 1890, cerca de
84%; em 1920 passaram a 75%; em 1940 eram 57%. A possibilidade de leitura
aumentou, pois, consideravelmente. Muito mais, todavia, aumentou o nmero relativo
de leitores, possibilitando a existncia, sobretudo a partir de 1930, de numerosas casas
editoras, que antes quase no existiam. Formaram-se ento novos laos entre escritor e
pblico, com uma tendncia crescente para a reduo dos laos que antes o prendiam
aos grupos restritos de diletantes e "conhecedores". Mas este novo pblico, medida
que crescia, ia sendo rapidamente conquistado pelo grande desenvolvimento dos
novos meios de comunicao. Viu-se ento que no momento em que a literatura
brasileira conseguia forjar uma certa tradio literria, criar um certo sistema
expressivo que a ligava ao passado e abria caminhos para o futuro, neste momento
as tradies literrias comeavam a no mais funcionar como estimulante.
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Com efeito, as formas escritas de expresso entravam em relativa crise, ante a
concorrncia de meios expressivos novos, ou novamente reequipados, para ns,
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como o rdio, o cinema, o teatro atual, as histrias em quadrinhos. Antes que a
consolidao da instruo permitisse consolidar a difuso da literatura literria (por
assim dizer), estes veculos possibilitaram, graas palavra oral, imagem, ao som
(que superam aquilo que no texto escrito so limitaes para quem no se enquadrou
numa certa tradio), que um nmero sempre maior de pessoas participasse de
maneira mais fcil dessa quota de sonho e de emoo que garantia o prestgio
tradicional do livro. E para quem no se enquadrou numa certa tradio, o livro
apresenta limitaes que aquelas vias superam, diminuindo a exigncia de
concentrao espiritual.
O grupo de escritores, aumentado e mais claramente diferenciado do conjunto
das atividades intelectuais, reage ou reagir de maneira diversa em face deste estado
de coisas: ou fornecer ao pblico o "retalho de vida", prximo reportagem
jornalstica e radiofnica, que permitir ento concorrer com os outros meios
comunicativos e assegurar a funo de escritor; ou se retrair, procurando assegur-la
por meio de um exagero da sua dignidade, da sua singularidade, e visando ao pblico
restrito dos conhecedores. So dois perigos, e ambos se apresentam a cada passo nesta
era de incertezas. O primeiro faria da literatura uma presa fcil da no-literatura,
subordinando-a a desgnios polticos, morais, propagandsticos em geral. O segundo,
separ-la-ia da vida e seus problemas, a que sempre, esteve ligada pelo seu passado,
no Brasil. E a alternativa s se resolver por uma redefinio das relaes do escritor
com o pblico, bem como por uma redefinio do papel especfico do grupo de
escritores em face dos novos valores de vida e de arte, que devem ser extrados da
substncia do tempo presente.
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