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Page 1: Livro - Direito Processual Civil - Silva, Ovidio Batista Da - Curso de Processo Civil - Processo Do Conhecimento - 2003
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6.a edição revista e atualizada com as Leis 10.352, 10.358/2001 e 10.444/2002

OVÍDIO A. BAPTISTA DA SILVA

I."edição: Porto Alegre : Fabris, 1987 - 2."edição: Porto Alegre ; Fabris, 1991 - 3."edição: Porto Alegre : Fabris, 1996 - 4a edição: São Paulo : RT, 1998 - 5." edição: São Paulo : RT, 2000. SUMARIO

Diagramação eletrônica: Microart Com. e Editoração Eletrônica Ltda. CNPJ 03.392.481/0001-16 Impressão e acabamento: Escolas Profissionais Salesianas CNPJ 60.927.290/0001-45

Atualização até outubro de 2002.

© desta edição: 2003

EDITORA REVISTA DOS TRIBUNAIS LTDA. Diretor Responsável: CARLOS HENRIQUE DE CARVALHO FILHO

Visite nosso site: www.rl.com.br

CENTRO DE ATENDIMENTO AO CONSUMIDOR: Tel. 0800-11 -2433

e-mail do atendimento ao consumidor: [email protected] Rua do Bosque, 820 • Barra Funda Tel. (Oxxll) 3613-8400 • Fax (Oxxll) 3613-8450 CEP 01136-000 - São Paulo, SP, Brasil

TODOS OS DIREITOS RESERVADOS. Proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo, especialmente por sistemas gráficos, microfílmicos, fotográficos, reprográfi-cos, fonográficos, videográficos. Vedada a memorização e/ou a recuperação total ou parcial, bem como a inclusão de qualquer parte desta obra em qualquer sistema de processamento de dados. Essas proibições aplicam-se também às características gráficas da obra e à sua editoração. A violação dos direitos autorais é punível como crime lart. 184 e parágrafos do Código Penal), com pena de prisão e multa, busca e apreensão e indentações diversas (arts. 101 a ] 10 da Lei 9.610. de 19.02.1998, Lei dos Direitos Autorais).

Impresso no Brasil

ISBN 85-2O3-I821-5 - Obra completa ISBN 85-203-2274-3 - Volume 1

1. O PROCESSO........................................................................................ 13 1.1 Conceito ...................................................................................... 13 1.2 Relação processual ..................................................................... 14 1.3 O processo como relação jurídica de direito público............. 16

2. JURISDIÇÃO......................................................................................... 23 2.1 Conceito ...................................................................................... 23

2.1.1 A doutrina de Chiovenda............................................ 26 2.1.2 A doutrina de AUorio .................................................. 30 2.1.3 A doutrina de Caraelutti ............................................. 32

2.2 Consideração conclusiva sobre o conceito de jurisdição........ 40 2.3 Jurisdição voluntária .................................................................. 41

2.3.1 Conceito ........................................................................ 4L 2.3.2 Classificação do procedimento ................................... 43 2.3.3 Natureza jurídica .......................................................... 44

2.4 Formas de jurisdição ................................................................. 50 2.5 Função do Poder Judiciário ...................................................... 52 2.6 Organização judiciária e competência...................................... 53

2.6.1 Distribuição constitucional da competência .............. 53 2.6.2 Distribuição interna da competência ......................... 56 2.6.3 Competência internacional da justiça brasileira........ 57 2.6.4 Classificação das espécies de competência ............... 57

3. PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS DO PROCESSO CIVIL................ 61 3.1 Princípio dispositivo .................................................................. 61 3.2 Princípio de demanda................................................................ 63 3.3 Princípio da oralidade................................................................ 66 3.4 Princípio de imediatidade.......................................................... 67 3.5 Princípio da identidade física do juiz..................................... 68 3.6 Princípio de concentração ......................................................... 68 3.7 Princípio da irrecorribilidade das interlocutórias ................... 68

Page 3: Livro - Direito Processual Civil - Silva, Ovidio Batista Da - Curso de Processo Civil - Processo Do Conhecimento - 2003

3.8 Princípio do livre convencimento do juiz ................................ 69 3.9 Princípio da bilateralidade da audiência .................................. 70 3.10 Princípio de verossimilhança .................................................... 71

4. A "AÇÃO" NO DIREITO PROCESSUAL CONTEMPORÂNEO . 75 4.1 Evolução do conceito de ação .................................................. 75 4.2 Direito subjetivo no plano do direito material ........................ 80 4.3 Direito subjetivo no plano do direito processual .................... 85 4.4 Teoria civilista da ação.............................................................. 93 4.5 Teoria do direito concreto de açâo ......................................... 94 4.6 Teoria do direito abstrato de ação ............................................ 97 4.7 Teoria eclética da ação .............................................................. 99 4.8 O conceito de condições da ação na teoria eclética .............. 104 4.9 Interesse atual do conceito de ação ......................................... 109

5. PROCESSO E PROCEDIMENTO ...................................................... 111 5.1 Introdução.................................................................................... 111 5.2 Tutela diferenciada e "ação" processual abstraía..................... 113 5.3 Tendência de superação do procedimento ordinário ............... 120 5.4 Processos interditais.................................................................... 126 5.5 Processos sumários documentais............................................... 128 5.6 Processos monitórios e injuncionais ........................................ 130

^V 5.7 'Tutela antecipada", na reforma do Código de Processo Civil. 133 5.7.1 Natureza da medida antecipatória .............................. 135 5.7.2 Natureza do provimento jurisdicional que a concede 136 5.7.3 Perigo de dano irreparável .......................................... 141 5.7.4 Abuso do direito de defesa ou manifesto propósito

protelatório do réu ....................................................... 143 5.7.5 Perigo de irreversibilidade do provimento antecipado. 144

—p( 5.7.6 Concessão da tutela antecipada no curso do processo 145 5.7.7 Precariedade do provimento antecipatório ................. 145 5.7.8 Prova .............................................................................. 146 5.7.9 Responsabilidade do autor .......................................... 146

5.8 Autotutela judicializada.............................................................. 146 ^ 5.9 Procedimento sumário ................................................................ 147

5.10 Ações para cumprimento das obrigações de fazer e não fazer como demandas unitárias .......................................................... 148

5.11 Ação monitoria ........................................................................... 153

6. AÇÕES DO "PROCESSO DE CONHECIMENTO" ....................... 157 6.1 Conceito ...................................................................................... 157 6.2 Classificação ............................................................................... 159 6.3 Ações declaratórias.................................................................... 162

6.3.1 Ação de consignação em pagamento ........................ 165 6.3.2 Ação de usucapião....................................................... 170

6.4 Ações condenatórias .................................................................. 171 6.4.1 Ações de cobrança ...................................................... 175 6.4.2 Ações de indenização ................................................. 177 6.4.3 Ações contra o uso nocivo da propriedade............... 179 6.4.4 Ações condenatórias para entrega de coisa certa...... 179 6.4.5 Ação confessória.......................................................... 180 6.4.6 Ação negatória .............................................................. 181

6.5 Ações constitutivas ..................................................................... 183 6.5.1 Ação de separação judicial.......................................... 185 6.5.2 Ação de interdição ....................................................... 187 6.5.3 Ações para desconstituição de atos e negócios jurídi

cos .................................................................................. 189 6.5.4 Ação de sonegados ...................................................... 192

7. ATOS PROCESSUAIS........................................................................... 195 7.1 Introdução.................................................................................... 195 7.2 Classificação dos atos processuais ........................................... 198

7.2.1 Atos processuais das partes......................................... 198 7.2.2 Atos processuais do juiz ............................................. 199

7.2.2.1 Sentença ....................................................... 200 7.2.2.2 Decisão interlocutória.................................. 201 7.2.2.3 Despachos ou despachos de mero expe

diente ............................................................ 201

7.3 Formas dos atos processuais ..................................................... 203 7.4 Tempo dos atos processuais ...................................................... 204 7.5 Prazos ........................................................................................... 206 7.6 Preclusão...................................................................................... 207 7.7 Lugar dos atos processuais........................................................ 211 7.8 Defeitos dos atos processuais ................................................... 212

7.8.1 Teoria das nulidades dos atos processuais................ 212 7.8.2 Efeitos da nulidade dos atos processuais .................. 214 7.8.3 Atos processuais inexistentes...................................... 217

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8. DEMANDA CIVIL ................................................................................ 221 8.1 Noções gerais.............................................................................. 221 8.2 O pedido e suas espécies .......................................................... 224

8.2.1 Pedido genérico ............................................................ 225 8.2.2 Pedido alternativo......................................................... 226 8.2.3 Cumulação alternativa eventual .................................. 226 8.2.4 Cumulação simples ...................................................... 227 8.2.5 Cumulação sucessiva eventual .................................... 228 8.2.6 Pedido cominatório ...................................................... 230

8.3 Da petição inicial ....................................................................... 232

9. SUJEITOS DA RELAÇÃO PROCESSUAL - AS PARTES ............. 235 9.1 Conceito de parte ....................................................................... 235 9.2 Capacidade processual das partes ........................................... 241 9.3 Capacidade postulatória ............................................................. 244

10. LITISCONSORCIO ............................................................................... 247 10.1 Introdução.................................................................................... 247 10.2 Espécies de litisconsórcio .......................................................... 252

10.2.1 Litisconsórcio necessário ............................................. 252 10.2.1.1 Litisconsórcio facultativo unitário ............. 257

10.2.2 Litisconsórcio facultativo............................................. 260 10.2.2.1 Litisconsórcio por comunhão de direitos ou

obrigações..................................................... 261 10.2.2.2 Litisconsórcio facultativo fundado em co

nexão de causas ........................................... 262 10.2.2.3 Litisconsórcio fundado em afinidade de

questões ........................................................ 262 10.2.2.4 Litisconsórcio por identidade de fundamen

to de fato ou de direito .............................. 263 10.3 Relação processual em litisconsórcio ....................................... 264

11. INTERVENÇÃO DE TERCEIROS ..................................................... 269 11.1 Conceito ....................................................................................... 269 11.2 Assistência adesiva simples ....................................................... 271 11.3 Efeitos da intervenção adesiva simples ................................... 275 11.4 Intervenção adesiva litisconsorcial ou autónoma..................... 279 11.5 Efeitos da intervenção adesiva litisconsorcial ......................... 284 11.6 Oposição ...................................................................................... 285 11.7 Nomeação à autoria ................................................................... 289

11.8 Denunciação à lide .................................................................... 293 11.9 Chamamento ao processo.......................................................... 302

12. O MINISTÉRIO PÚBLICO NO PROCESSO CIVIL ........................ 307 12.1 Funções do Ministério Público no processo civil................... 307

13. A RESPOSTA DO RÉU ...................................................................... 313 13.1 Bilateralidade da audiência ....................................................... 313 13.2 Contestação ................................................................................. 315

13.2.1 Defesa processual......................................................... 315 13.2.2 Exceções processuais................................................... 316 13.2.3 Exceções substanciais.................................................. 316

13.3 Reconvenção ............................................................................... 319 13.4 Ação declaratória incidental...................................................... 324 13.5 Revelia e reconhecimento do pedido ....................................... 329

13.5.1 Revelia .......................................................................... 329 13.5.2 Efeitos da revelia......................................................... 330 13.5.3 Reconhecimento do pedido ........................................ 332

14. DIREITO PROBATÓRIO ..................................................................... 335 14.1 Introdução ................................................................................... 335

14.1.1 Conceito de prova em direito judiciário ................... 335 14.1.2 Classificação das provas ............................................. 338 14.1.3 Objeto da prova ........................................................... 339 14.1.4 Princípios fundamentais de direito probatório .......... 341

14.1.4.1 Ónus da prova.............................................. 342 14.1.4.2 Princípio da necessidade da prova ............ 344 14.1.4.3 Princípio da contradição da prova.............. 345

14.1.5 Sistemas de avaliação da prova .................................. 345 14.1.5.1 Sistema da prova legal................................ 346 14.1.5.2 Sistema do livre convencimento ................ 347 14.1.5.3 Sistema de persuasão racional ................... 348

14.2 Meios de prova ........................................................................... 350 14.2.1 Conceito ........................................................................ 350 14.2.2 Provas ilícitas................................................................ 353 14.2.3 Prova emprestada ......................................................... 357

14.3 Das provas em espécie ............................................................... 359 14.3.1 Depoimento pessoal e confissão ................................ 359 14.3.2 Confissão ...................................................................... 362

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14.3.3 Prova testemunhal ........................................................ 368 14.3.3.1 Conceito ........................................................ 368 14.3.3.2 Sujeito da prova testemunhal .................... 371 14.3.3.3 Admissibilidade da prova testemunhal ...... 372 14.3.3.4 Produção da prova testemunhal ................. 373

14.3.4 Prova documental ......................................................... 375 14.3.4.1 Conceito de documento e sua natureza ju

rídica ............................................................ 375 14.3.4.2 Classificação geral dos documentos .......... 378 14.3.4.3 Valor probatório dos documentos ............. 379 14.3.4.4 Produção da prova documental ................. 381

14.3.5 Prova pericial................................................................ 383 14.3.5.1 Conceito de perícia..................................... 383 14.3.5.2 Admissibilidade da prova pericial............. 385 14.3.5.3 Agentes da prova pericial .......................... 385 14.3.5.4 Produção da prova pericial......................... 386

14.3.6 Inspeçào judicial ........................................................... 388 14.3.6.1 Conceito de inspeção judicial ................... 388 14.3.6.2 Objeto da inspeção judicial ....................... 389 14.3.6.3 Procedimento da inspeção judicial............ 390

15. AUDIÊNCIA DE INSTRUÇÃO E JULGAMENTO........................... 391 15.1 Audiência..................................................................................... 391

15.1.1 Conceito......................................................................... 391 15.1.2 Designação .................................................................... 393 15.1.3 Objeto ............................................................................ 394

15.2 Julgamento................................................................................... 396

16. SENTENÇA............................................................................................ 397 16.1 Conceito e natureza da sentença .............................................. 397 16.2 Estrutura lógica da sentença...................................................... 400 16.3 Classificação das sentenças de procedência ............................ 402

17. RECURSOS ............................................................................................ 405 17.1 Conceito e espécies de recursos ............................................... 405

17.1.1 Conceito......................................................................... 405 17.1.2 Espécies ......................................................................... 407

17.2 Efeitos dos recursos ................................................................... 408 17.2.1 Efeito devolutivo........................................................... 409

17.2.2 Efeito suspensivo.......................................................... 409 17.2.3 Efeito de retratação ...................................................... 411

17.3 Juízo de admissibilidade e juízo de mérito............................. 412 17.3.1 Juízo de admissibilidade.............................................. 412 17.3.2 Requisitos de admissibilidade ..................................... 413 17.3.3 Exame de mérito .......................................................... 414 17.3.4 Pressupostos de admissibilidade ................................. 414

17.3.4.1 Decisão recorrível ........................................ 415 17.3.4.2 Legitimação .................................................. 415 17.3.4.3 Tempestividade............................................. 417 17.3.4.4 Regularidade formal .................................... 418

17.4 Recursos em espécie .................................................................. 419 17.4.1 Apelação........................................................................ 419

17.4.1.1 Conceito........................................................ 419 17.4.1.2 Juízo de admissibilidade e efeitos da ape

lação ............................................................. 420 17.4.1.3 Procedimento na instância recursal........... 435

17.4.2 Agravos.......................................................................... 435 17.4.2.1 Conceito e espécies de agravo.................. 435 17.4.2.2 Procedimento recursal do agravo de instru

mento............................................................ 436 17.4.2.3 Efeitos do agravo de instrumento ............. 439 17.4.2.4 Agravo retido............................................... 440

17.4.3 Embargos ....................................................................... 442 17.4.3.1 Introdução ..................................................... 442 17.4.3.2 Embargos de declaração ............................. 442 17.4.3.3 Embargos infringentes................................. 444

17.4.4 Recurso extraordinário................................................. 449 17.4.4.1 Fundamentos................................................. 449 17.4.4.2 Hipóteses de cabimento do recurso extraor

dinário .......................................................... 451 17.4.4.3 Juízo de admissibilidade no recurso ex

traordinário ................................................... 453 17.4.4.4 Efeitos do recurso extraordinário ............... 455

17.4.5 Recurso especial........................................................... 459 17.4.6 Recurso adesivo ........................................................... 460

17.4.6.1 Conceito ....................................................... 460 17.4.6.2 Cabimento do recurso adesivo .................. 463

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17.4.6.3 Admissibilidade do recurso adesivo ........ 463 17.4.7 Embargos de divergência ........................................ 468 17.4.8 Interposição simultânea de recurso extraordinário e

especial................................................................... 468

18. FORMAS NÃO RECURSA1S DE IMPUGNAÇÃO À SENTENÇA E ACÓRDÃOS.............................................................................. 471 18.1 Ações autónomas e outros instrumentos de impugnação dos

atos jurisdicionais ................................................................ 471 18.1.1 Ação rescisória ....................................................... 472 18.1.2 Uniformização de jurisprudência............................. 472 18.1.3 Apelação ex ojficio (reexame necessário)................. 473 18.1.4 Correição parcial..................................................... 474 18.1.5 Avocação de causas ................................................ 475 18.1.6 Reclamação............................................................. 475 18.1.7 Mandado de segurança ........................................... 476 18.1.8 Embargos de terceiro .............................................. 476 18.1.9 Ação cautelar inominada......................................... 477 ISAAOHabeas corpus........................................................ 477

19. COISA JULGADA ........................................................................ 479 19.1 Conceito............................................................................... 479 19.2 Conteúdo da sentença e coisa julgada .................................. 482 19.3 Coisa julgada e declaração................................................... 490 19.4 Coisa julgada e eficácia da sentença.................................... 493 19.5 Teoria processual e teoria material sobre a coisa julgada .... 497 19.6 Eficácia da sentença perante terceiros .................................. 498

19.6.1 Terceiros juridicamente indiferentes........................ 500 19.6.2 Terceiros juridicamente interessados e efeitos reflexos

da sentença ............................................................. 501 19.6.3 Eficácia reflexa e "efeito de intervenção"................ 502

19.7 Efeitos anexos da sentença .................................................. 502 19.8 Efeitos de fato da sentença................................................... 503 19.9 Limites objetivos da coisa julgada ....................................... 504

BIBLIOGRAFIA ................................................................................... 517

ÍNDICE ONOMÁSTICO ...................................................................... 533

ÍNDICE ALFABÉT1CO-REMISSIVO.................................................... 541

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O PROCESSO

SUMÁRIO: 1.1 Conceito - 1.2 Relação processual - 1.3 O processo como relação jurídica de direito público.

1.1 Conceito

Processo {processus, do verbo procedere) significa avançar, caminhar em direção a um fim. Todo processo, portanto, envolve a ideia de temporalidade, de um desenvolver-se temporalmente, a partir de um ponto inicial até atingir o fim desejado. Nem só no direito ou nas ciências sociais existem processos. Também na química as transformações da matéria se dão através de um processo; e na biologia costuma-se falar em processo digestivo, processo de crescimento dos seres vivos etc.

No direito, o emprego da palavra processo está ligado à ideia de processo judicial, correspondente à atividade que se desenvolve perante os tribunais para obtenção da tutela jurídica estatal, tendente ao reconhecimento e realização da ordem jurídica e dos direitos, sejam individuais ou coletivos, que ela estabelece e protege.

A necessidade do processo judicial representa um custo para todos os titulares de direitos ou de outros interesses legalmente protegidos pela ordem jurídica estatal, à medida que, estabelecido o monopólio da jurisdição, como uma decorrência natural da formação do Estado, afasta-se definitivamente a possibilidade das reações imediatas tomadas pelos titulares para a pronta observância e realização do próprio direito. A ideia de processo afasta a ideia de instantaneidade da reação que o titular do direito ofendido poderia ter, se não tivesse de submetê-lo, antes, ao crivo de uma investigação sempre demorada, tendente a determinar sua própria legitimidade.

Assim, pois, sempre que o direito não se realiza naturalmente, pelo espontâneo reconhecimento do obrigado, seu titular, impedido como está de agir por seus próprios meios, terá de dirigir-se aos órgãos estatais em

Page 8: Livro - Direito Processual Civil - Silva, Ovidio Batista Da - Curso de Processo Civil - Processo Do Conhecimento - 2003

busca de proteção e auxílio, a fim de que o próprio Estado, depois de constatar a efetiva existência do direito, promova sua realização.

1.2 Relação processual

Afastada como teve de ser, necessariamente, a defesa privada, levada a efeito por seu próprio titular, em regime de autotutela, já porque este tipo de realização do direito gera uma constante intranquilidade e compromete irremediavelmente a convivência social, já porque a realização privada do direito nem sempre resultará na vitória daquele que efetiva-mente tinha razão, mas acabará impondo simplesmente a preponderância do interesse do mais forte, ou do mais astuto (FRIEDRICH LENT, Diritto processuale civile tedesco, p. 16), a exigência de submeterem-se as pretensões daqueles que se digam titulares de algum direito, eventualmente ameaçado ou já vulnerado por quem deveria cumpri-lo, a uma prévia averiguação de sua verdadeira existência e legitimidade faz com que a relação originariamente existente entre o titular do direito e o titular do dever jurídico, do ponto de vista do primeiro, dê origem a uma segunda relação, por meio da qual o titular do direito - impedido de realizá-lo por seus próprios meios - terá de exigir (pretensão) do Estado seu auxílio (tutela), a fim de que este, através de uma instituição, especialmente criada para tal fim (o Poder Judiciário), uma vez determinada a legitimidade da exigência de tutela jurídica daquele que se afirmara titular do direito, o torne efetivo e realizado, segundo a lei.

Esta segunda relação, que se estabelece entre aquele que exige a proteção do Estado, dizendo-se titular do direito (exercício de pretensão de tutela jurídica), e o próprio Estado, posto agora no pólo passivo desta relação como o obrigado a prestar este tipo de auxílio, que não é mais a relação privada - que o pretenso titular do direito afirmara existir entre ele e o devedor e cuja existência efetiva apenas agora será investigada -, constitui a relação processual.

A relação processual civil, que constitui propriamente o processo, é uma relação jurídica de direito público que se forma entre o pretenso titular do direito que o mesmo alega carecer de proteção estatal e o Estado, representado pelo juiz. Como qualquer outra relação jurídica, também ela se forma entre dois sujeitos, de forma linear, ligando o autor -aquele que age exigindo o auxílio estatal - e o Estado.

Mas a relação processual, como categoria jurídica formada com a finalidade de outorgar proteção estatal àquele que dela necessitar, tem

uma característica peculiar que a distingue nitidamente da relação, por exemplo, que se forma entre a atividade legislativa ou de administração pública e os respectivos destinatários. Tanto o legislador quanto o administrador público praticam os atos peculiares às suas funções sem "processualizarem" a própria atividade, ou seja, sem convocar os destinatários do ato administrativo e da própria lei - os seus "consumidores" - para opinarem no momento de sua formação. A relação processual, ao contrário, oferece esta peculiaridade fundamental: os destinatários do ato final do processo, aqueles a quem a sentença se dirige, como norma imperativa de comportamento, ou seja, as partes, contribuem com sua atividade para o desenvolvimento da relação processual e para a formação da sentença.

Daí a necessidade de que toda relação processual se angularize, depois de sua formação linear entre autor e Estado, mediante a convocação daquele que figura no outro pólo da relação jurídica litigiosa, para que venha integrá-la, na condição de demandado (réu). Não há relação processual sem a participação de, no mínimo, três pessoas, ou três sujeitos: autor, réu e juiz. Esta contingência levou os juristas medievais a declarar que a relação processual era um actum trium personarum, ou seja, uma relação formada por esses três sujeitos.

Como veremos ao estudar os princípios fundamentais do processo civil, esta peculiaridade da relação processual projetará consequências decisivas para toda a teoria geral do direito processual.

As concepções modernas de regime democrático, como forma de autogoverno (como se diz, "do povo e para o povo"), têm evidenciado uma tendência para conceituar a democracia não como a entendiam a Revolução Francesa e as concepções liberais dos séculos XVIII e XIX, ou seja, como democracia representativa, em que o povo apenas se limita a eleger os seus governantes, mas como governo participativo, e não simplesmente representativo. A respeito desta nova e fecunda perspectiva do direito público são fundamentais os inúmeros ensaios de MAURO CAPPELLETTI a respeito do que ele sugestivamente denomina giustizia coesis-tenziale, forma de produção e realização do direito não apenas pelo Estado que o produz para consumo da nação, e sim como produção do direito por seus próprios "consumidores", ou seja. pela comunidade jurídica a que a norma legal se destina, como imperativo de conduta social (veja-se, a respeito, igualmente VTCTORIO DENTI, Un progetto per Ia giustizia civile, p. 270).

Esta concepção de governo democrático como forma de governo participativo tem feito com que, nos países mais evoluídos, o próprio ato administrativo se

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"processualize" através do estabelecimento de um contraditório prévio entre as "partes" interessadas em sua produção. Antes de decidir pela realização de certa obra pública, ou antes de decretar certa medida administrativa, procura o administrador auscultar e debater com a comunidade que será diretamente atingida por tais a ti v idades administrativas sua conveniência e oportunidade.

Na verdade, o regime democrático representativo, que fora uma contingência do mundo moderno, imposta pela crescente dimensão dos Estados e pelo número cada vez maior de suas respectivas populações, vai perdendo a razão de ser, à medida que os progressos obtidos pela cibernética voltaram a permitir um contato pessoal, direto e constante entre os governantes e a comunidade social, sugerindo a ideia de que o mundo moderno voltou a ser uma aldeia, não obstante sua dimensão "global".

1.3 O processo como relação jurídica de direito público

O estudo do processo como uma relação jurídica de direito público, que se estabelece entre o Estado (juiz) e aquele que busca este tipo de tutela jurídica, deu origem, sem dúvida, ao nascimento do direito processual civil como uma ciência particular, com objeto próprio e com suas leis e princípios especiais, distintos dos princípios e leis que regem os ramos do direito material. Deve-se ao jurista alemão OSKAR VON BULOW o mérito de haver, em 1868, numa obra que se tornou clássica e universalmente conhecida, mostrar a importância do estudo da relação processual como relação de direito público que se forma entre o particular e o Estado, determinando as condições e pressupostos de sua existência e validade, assim como os princípios e regras que a presidem. Como afirma BÚLOW, até então os estudiosos do processo civil, em vez de considerarem o processo como uma relação de direito público, que se desenvolve progressivamente entre o Estado (tribunais) e as partes, limitavam-se a ver no processo apenas uma série de atos e formalidades a serem cumpridos pelos sujeitos que dele participavam, como uma mera consequência da relação de direito privado litigiosa {Excepciones procesales y presupuestos pmcesales, p. 3).

O direito como uma relação jurídica (a relatio dos antigos canonistas), que foi concepção dominante no século XIX europeu, a partir de KANT e daqueles

que, no campo das ciências jurídicas, foram seus seguidores, particularmente SAVIGNY, foi a ideia matriz tanto do Código Civil francês (Código Napoleônico) quanto do movimento cultural conhecido como pandetística germânica.

Hoje, todavia, reconhece-se que tal concepção sempre esteve historicamente comprometida com determinados pressupostos políticos, de índole liberal e burguesa (ORLANDO DE CARVALHO, Para uma teoria da relação processual, p. 44).

Não se pode, evidentemente, obscurecer a extraordinária importância que o estudo do processo como uma relação jurídica peculiar, de direito público, teve para o desenvolvimento do direito processual civil como uma disciplina científica autónoma. Mas também não seria adequado deixar de referir o preço extraordinário que a doutrina processual ainda hoje paga ao conceitualismo jurídico que caracterizou a ciência europeia do século XIX. A noção de direito subjetivo como direito de cada indivíduo, ou seja, como um poder da vontade individual (WINDSCHEID), ou mesmo como interesse juridicamente protegido (IHERING), teve reflexos mutiladores tanto nas questões de legitimação processual quanto, especialmente, na dificuldade que ainda hoje se observa na doutrina processual para conceber e disciplinar processualmente as ações coletivas ou públicas, em que se busca não a proteção de "direitos subjetivos", mas a tutela jurisdicional para os interesses de grandes coletividades humanas.

O atomismo individual, que caracterizou a doutrina política nascida na Revolução Francesa, a impedir as formações sociais intermediárias entre os indivíduos e o Estado (SÉRGIO CHIARLONI, Introduzione alio studio dei dirittoprocessuale civile, p. 39; ORLANDO DE CARVALHO, ob. cit., p. 46), refletiu-se nas concepções da doutrina processual com uma intensidade inaudita e ainda hoje oferece resistência tenaz às ideias contemporâneas, que procuram adequar o processo civil às novas necessidades sociais.

É importante observar, por outro lado, que a relação jurídica que se forma entre aquele que exige do Estado a prestação da tutela jurisdicional e o próprio Estado, na pessoa do juiz, e que dá origem à formação do processo, é uma relação jurídica peculiar, bem diversa da relação que vincula, no campo do direito material, por exemplo, o credor e o devedor. E, não obstante, os antigos processualistas, em verdade todos os juristas brasileiros do século XIX, consideravam - por influência do direito privado romano - a relação processual como um "quase contrato" que se formava entre o autor e o réu (vide, a respeito, J. FREDERICO MARQUES, Instituições de direito processual civil, v. 2, p. 86).

Esta concepção está hoje definitivamente abandonada pelos processualistas que procuram mostrar, justamente, como a relação processual é um vínculo de direito público, que subordina os litigantes ao

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processo e à sentença de um modo muito especial e diverso daquele existente entre um credor e um devedor, numa relação obrigacional de direito privado.

Em primeiro lugar, como demonstrou JAMES GOLDSCHMIDT {Derecho procesal civil, § 33), a relação jurídica de direito privado gera fundamentalmente direitos e obrigações para as partes, o que não acontece, ou apenas excepcionalmente acontece, na relação processual, onde nem o autor nem o réu têm - enquanto sujeitos de tal relação - direitos e obrigações um para com o outro. Com efeito, todo o direito subjetivo trazido por seu titular ao processo, como objeto de uma controvérsia a ser tratada por sentença judiciai, pela simples contingência de estar sujeito ao crivo de uma decisão do magistrado - que, por definição, poderá negar sua existência -, transformar-se-á, para aquele que se julga seu titular, numa simples expectativa de direito. Em segundo lugar, não há entre autor e réu uma verdadeira relação jurídica geradora de direitos e obrigações recíprocos, de tal modo que um pudesse exigir do outro uma prestação positiva ou negativa.

Mesmo o dever de veracidade a que ficam sujeitas as partes, de não afirmar como verdadeiro aquilo que sabem ser falso, nem controverter sobre o que sabem ser verdadeiro (ROSENBERG, La carga de Ia prueba, p. 59; ELÍCIO CRESCI SOBRINHO, O dever de veracidade das partes no novo Código de Processo Civil, p. 143), não poderia ser tratado como um autêntico vínculo obrigacional, nascido da relação processual. É verdade que nosso Código de Processo Civil impõe às partes e a seus procuradores o dever de expor os fatos em juízo conforme a verdade (art. 14,1), reputando-se litigante de má-fé aquele que alterar a verdade dos fatos (art. 17, II). Contudo, como chega a reconhecer ELÍCIO CRESCI SOBRINHO (ob. cit., p. 116), tais deveres são antes para com o Estado e do para com a outra parte (cf. também PONTES DE MIRANDA, Comentários..., v. 4, p. 263). Com efeito, um autêntico dever de veracidade que gravasse as partes mal poderia conviver com o princípio dispositivo, como observa CAPPELLETTI {La testimonianza delia parte nel sistema delVoralità, v. 1, p. 387).

E, ao menos em seus pressupostos fundamentais, o princípio dispositivo preside ainda o sistema do direito processual brasileiro.

O que há de característico na relação processual e que a torna distinta de qualquer outra relação jurídica de direito material, quer se trate de um vínculo de direito privado, quer mesmo de direito público.

é a circunstância de transformarem-se, perante ela, os direitos e obrigações, que as partes ponham em causa, em meras expectativas de direitos ou de obrigações. Este foi o mérito inegável de JAMES GOLDSCHMIDT, de sentido verdadeiramente genial, ao mostrar que o direito processual - ao contrário do direito material - caracterizava-se por um estado generalizado de incertezas, onde nenhuma das partes poderia saber os verdadeiros limites de seus direitos e obrigações. Daí negar GOLDSCHMIDT a teoria, geralmente aceita, de constituir o processo uma relação jurídica. Segundo sua doutrina, enquanto todo o sistema de direito material pode ser comparado a uma nação em estado de paz, o processo corresponde à incerteza própria de uma situação de guerra, onde predomina a insegurança quanto aos direitos e obrigações daqueles que se encontram submetidos ao estado bélico (Princípios genera-les dei proceso, p. 64 e ss.).

Valendo-se do conceito de "situação jurídica" devido a KOHLER, procurou mostrar GOLDSCHMIDT que a visão processual era uma forma nova e dinâmica de pensar o direito, diversa da visão estática do fenómeno jurídico, própria do direito material.

GOLDSCHMIDT cita a seguinte passagem da obra Decadência do ocidente, de OSWALD SPENGLER: "Os romanos criaram uma estática jurídica, nossa missão consiste em criar uma dinâmica jurídica".

A fecundidade, para a teoria processual, desta nova visualização do fenómeno jurídico é sem dúvida inegável. A incerteza é, indiscutivelmente, a marca essencial da relação processual. Diz GOLDSCHMIDT, com toda razão: "A incerteza é consubstanciai às relações processuais, posto que a sentença judicial nunca poderá ser prevista com segurança" (Princípios..., p. 66). Realmente, só existe jurisdição enquanto há incerteza para as partes a respeito do conteúdo da futura sentença que haverá de dizer qual delas merece a proteção estatal por ser titular do interesse protegido pela ordem jurídica. Toda sentença implica juízo e decisão, o que significa a possibilidade de o julgador decidir-se por desconhecer e negar a uma das partes o direito que a esta lhe parecia evidente e indiscutível. Perante o processo, não pode haver nada evidente e indiscutível, uma vez que a previsibilidade absoluta e matemática do futuro resultado contido na sentença eliminaria, por si só, o próprio julgamento, que implica, quanto à pessoa do julgador, num decidir-se entre duas alternativas possíveis. Se a possibilidade de decisões antagónicas desaparecesse, o próprio fenómeno jurisdicional estaria eliminado.

Só posso dizer-me proprietário de algum objeto que me pertença, segundo meu próprio entendimento e de acordo com a opinião geral daqueles que comigo se relacionam, até o momento em que o ponho numa relação processual como objeto

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de controvérsia e julgamento. A circunstância de pô-lo em causa, mesmo contra um adversário que se mantenha inativo e revel, sem oferecer contestação a meu direito, é suficiente para que este se transforme em simples expectativa de direito, pois não poderei admitir, ao mesmo tempo, a existência de uma sentença futura - que implique julgamento - e a previsibilidade matemática de seu resultado.

A doutrina do processo como situação jurídica, como observou EDUARDO COUTURE (Fundamentos dei derecho procesal civil, p. 139), não obstante ter sido recusada em geral pelos processualistas, na prática vem-se impondo a cada dia, ã medida que se destacam, sempre com maior relevância, certas categorias peculiares à relação processual e distintas das categorias correspondentes ao direito material, particularmente o conceito de ónus processual como categoria equivalente aos atos e negócios jurídicos de direito material.

Não obstante as críticas feitas à doutrina de GOLDSCHMIDT, cremos ser possível aceitá-la, quando mais não seja, como um importante princípio heurístico, capaz de auxiliar e orientar o processualista na busca daquilo que a ciência tem de peculiar e diverso das categorias estáticas do direito material, sem que tal perspectiva científica seja incompatível com a ideia do processo como relação jurídica. Cremos que uma coisa não exclui necessariamente a outra, como tornou claro uma das críticas mais percucientes formulada à doutrina de GOLDSCHMIDT, feita por LIEBMAN (L'opera scientifica di James Goldsch-midt e Ia teoria dei rapporto processuale, RDP9 v. 1, p. 336), ao mostrar que a teoria da situação jurídica, ao invés de explicar e definir o processo, enquanto unidade jurídica, preocupara-se em examinar a res in iudicio deducta que constitui o objeto do processo^ não o processo em si mesmo.

É possível, portanto, admitir-se que o processo configure efeti-vamente uma relação jurídica complexa, diversa, sem dúvida, da relação jurídica própria do direito material, como reconhece LIEBMAN (L'opera..., p. 333), e, não obstante, tratar as categorias processuais que compõem e informam esta relação especial como elementos componentes de uma situação jurídica, no sentido indicado por KOHLER.

Na verdade, como mostra LIEBMAN, o conceito de situação jurídica, na concepção de JAMES GOLDSCHMIDT, é diverso daquele indicado por KOHLER. Para este último, a situação jurídica seria um elemento, ou uma fase anterior ao nascimento definitivo do direito subjetivo. Aqui, a situação jurídica seria a condição em que se encontra aquele que tem uma mera expectativa de

adquirir um direito ainda não formado definitivamente. A situação jurídica, portanto, para KOHLER, corresponderia a uma relação jurídica em formação e, pois, ainda incompleta (J. FREDERICO MARQUES, Instituições, v. 2, p. 88), ao passo que, para GOLDSCHMIDT, o processo corresponderia a uma situação jurídica enquanto expectativa a respeito da futura sentença. O processo não seria, portanto, um minus e sim aliud em comparação com a relação jurídica. A condição de ser parente, por exemplo, é um elemento indispensável para a aquisição do direito à sucessão legítima. Todavia, a existência apenas de tal vínculo não gera nenhum direito sucessório. Se, no entanto, o autor da herança falecer sem testamento e sem que haja deserdação, o parente terá adquirido o direito subjetivo à herança (CHIOVENDA, Principii di diritto processuale civile, p. 859). A condição jurídica do parente em grau sucessível, relativamente à herança, configura o que se denomina simples situação jurídica. Este o sentido utilizado por KOHLER, que, como se vê, não equivale completamente ao de GOLDSCHMIDT, embora coincida num elemento fundamental: a condição de mera expectativa de direito em que se encontra o sujeito.

Para KOHLER, a situação jurídica correspondia à condição de um direito ainda não inteiramente constituído; para GOLDSCHMIDT, o conceito equivalia à de um direito tido como existente, capaz de desaparecer em virtude da sentença.

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2 JURISDIÇÃO

SUMÁRIO: 2.1 Conceito: 2.1.1A doutrina de Chiovenda; 2.1.2 A doutrina de Allorio; 2.1.3 A doutrina de Caraelutti - 2.2 Consideração conclusiva sobre o conceito de jurisdição - 2.3 Jurisdição voluntária: 2.3.1 Conceito; 2.3.2 Classificação do procedimento; 2.3.3 Natureza jurídica - 2.4 Formas de jurisdição - 2.5 Função do Poder Judiciário -2.6 Organização judiciária e competência: 2.6.1 Distribuição constitucional da competência; 2.6.2 Distribuição interna da competência; 2.6.3 Competência internacional da justiça brasileira; 2.6.4 Classificação das espécies de competência.

2.1 Conceito

A ideia de direito, no Estado moderno, suscita desde logo a ideia de jurisdição. O pensamento contemporâneo tende, irresistivelmente, a equiparar o direito à norma jurídica editada pelo Estado, cuja inobservância dá lugar a uma sanção. Na verdade, o crescimento avassalador do Estado moderno está intimamente ligado ao monopólio da produção e aplicação do direito, portanto à criação do direito, seja em nível legislativo, seja em nível jurisdicional.

Nos primórdios da civilização humana, contudo, a situação era diferente. O direito, antes de ser monopólio do Estado, era uma manifestação das leis de Deus, apenas conhecidas e reveladas pelos sacerdotes. O Estado não o produzia sob forma de normas abstratas, reguladoras da conduta humana. Nesse estágio da organização social e política, a ativi-dade desenvolvida pelos pontífices, como observa DE MARTINO em relação ao direito romano primitivo {La giurisdizione nel diritto romano, p. 49 e ss.), não pode ser equiparada à função nitidamente jurisdicional.

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A verdadeira e autêntica jurisdição apenas surgiu a partir do momento em que o Estado assumiu uma posição de maior independência, desvinculando-se dos valores estritamente religiosos e passando a exercer um poder mais acentuado de controle social.

Mesmo assim, conforme ensinam os romanistas, a atividade jurisdicional do pretor, na fase primordial do direito romano, correspondia substancialmente a uma função legitimadora da defesa privada, de vez que o direito era, de um modo geral, realizado por seu titular contra aquele que o ofendesse, ou por qualquer modo o desrespeitasse; e só excepcionalmente, e por iniciativa deste último, nos casos em que se julgasse ofendido pelo exercício arbitrário e ilegítimo de alguma atividade não fundada em direito, é que o pretor intervinha para julgar lícita ou ilícita a conduta do agente (GIUSEPPE GANDOLFI, Contributo alio studio dei processo interdittale romano, p. 130; LUZZATTO, // problema d'origine dei processo extra ordinem, p. 343 e ss.).

A atualidade do problema conceituai da jurisdição deriva de duas questões:

A) A teoria constitucional moderna pressupõe, como princípio legitimador do Estado democrático, a divisão dos poderes estatais, que deverão ser exercidos por autoridades independentes entre si, de tal modo que as funções administrativas de gestão do próprio Estado, a função legislativa e a função jurisdicional sejam atribuídas a poderes mais ou menos autónomos. Este dogma da separação de Poderes, segundo o qual os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário haveriam de ser independentes e harmónicos entre si, tem origem próxima na doutrina de MONTESQUIEU, tendo sido universalizado pela Revolução Francesa.

A teoria da separação de poderes, atribuída a MONTESQUIEU, na verdade é mais um mito do que uma realidade. O célebre filósofo francês não a defendeu como geralmente se supõe, nem considerou o judiciário um autêntico poder, de vez que, ao referir-se ao poder judicial ipuissance dejuger) num Estado democrático, MONTESQUIEU {Vesprit des lois, p. 6) afirma ser tal poder "invisível e nulo" (sobre isto, LOUIS ALTHUSSER, Montesquieu, a política e a história, p. 133), pois "os juizes não são senão (...) a boca que pronuncia as palavras da lei" (sobre isto, igualmente, a excelente exposição de FRANZ WIEACKER, História do direito privado na idade moderna, p. 502 e ss.).

A configuração contemporânea da premissa da separação de poderes, como essencial ao denominado Estado de Direito, revela duas questões fundamentais, que constituem modernamente objeto de intensa elaboração doutrinária: I) o problema da "plenitude do ordenamento jurídico", que haveria de ser editado por um legislador tão sábio a ponto de dispensar a "criação jurisprudencial do direito", dogma este que o pensamento jurídico contemporâneo decididamente recusa; II) a questão da jurisdição como atividade complementar da função legislativa e não, como a doutrina clássica a supunha, atividade mais próxima da função administrativa.

Devendo, portanto, a jurisdição ser confiada a um poder independente dos demais, é necessário, antes de mais nada, saber o que seja realmente a função jurisdicional e quais os seus limites, de tal modo que ela não seja, afinal, reabsorvida pelos demais poderes, em detrimento da liberdade e das garantias dos cidadãos.

B) Por último, é também fundamental a determinação do conceito de jurisdição porque, sendo o direito subjetivo concebido como um poder da vontade de seu titular, que poderá livremente exercê-lo de acordo com suas conveniências, usufruindo ou renunciando às vantagens que a lei lhe confere, ao tutelar seus próprios interesses, a atividade jurisdicional há de ser sempre provocada pelo titular do direito ou do interesse protegido pela lei. A jurisdição, diz-se, é uma função inerte que só se põe em movimento quando ativada por quem a procura, invocando a proteção do Estado. E o meio através do qual se desencadeia a atividade jurisdicional denomina-se ação. De modo que, para que se possa conceituar ação e delimitar-lhe as fronteiras, é imperioso que se defina antes o que se entende por jurisdição.

Quem observar o crescimento extraordinário da demanda por tutela jurisdicional, que se avoluma cada vez mais, tornando sempre insuficiente o aparelho judiciário do Estado, terá a impressão de que a evolução de nossas instituições políticas, no chamado Estado de Direito, orientou-se no sentido da ampliação da esfera de "juridicização" (ou jurisdicionalização) do "político", reduzindo o campo da atividade reservada ao administrador público, fazendo com que todas as expectativas, exigências ou controvérsias, porventura surgidas no campo da atividade pública, tornem-se questões jurisdicionais.

Contudo, o que se revela, num exame mais atento da realidade social e política de nossa experiência democrática, é, ao contrário, a constante ampliação do campo reservado à atividade administrativa do Estado, com a consequente "politização" do fenómeno jurídico, ou da atividade verdadeiramente jurisdicional, como observa ANTÓNIO CASTANHEIRA NEVES (O instituto dos -assentos' e

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a função jurídica dos supremos tribunais, p. 580 e ss.), ao mostrar a transformação radical operada no conceito de lei que, de norma geral e abstraia - destinada a orientar e colocar limites à ação humana, sem perder a natureza de uma norma genérica e pretensamente neutra quanto a fins - tornou-se "um fato político", um instrumento de governo, "de que o poder político lança mão para realizar a sua política", de modo que a racíonalidade que se supunha fundadora da lei torna-se puramente instrumental ou, como diz CASTANHEIRA NEVES, "racionalidade político-tecnológica", confundida, portanto, com o próprio poder.

A "substituição do princípio pelo objetivo", como mostra o filósofo português, "numa palavra, do jurídico pelo político", já era previsível, tendo-se em conta o conceito kelseniano de validade (apenas formal) da norma jurídica, que remonta, na verdade, às filosofias políticas do século XVII.

É interessante observar que esta transformação do conceito de lei, que, "de princípio normativo para a solução passou a ser a própria solução", de modo que a lei acabou se tornando um "processo de governo" - "a tentativa iluminista de reduzir o político ao jurídico" substituída pela instrumentalização política do jurídico (CASTANHEIRA NEVES, O instituto.,., p. 587) -, passou originariamente pela "juridicização" do político, que fora o propósito do Estado de Direito (KONRAD HESSE, A força normativa da Constituição, p. 28).

Veremos, pela breve análise que faremos a seguir, que o conceito de jurisdição aceito, ou pressuposto, pelos juristas modernos determinará o sentido e a função de inúmeros institutos fundamentais do direito processual civil. Tentaremos igualmente mostrar as grandes determinantes históricas e doutrinárias que forjaram a concepção moderna de jurisdição, como ela é entendida hoje pelos sistemas que descendem do direito ro-mano-canônico, a que pertence o direito brasileiro.

Inúmeras são as teorias que procuram explicar a natureza da ativi-dade jurisdicional do Estado e, embora profundas as divergências que aparentemente as separam, a maioria delas pode ser facilmente reunida sob um princípio teórico comum.

2,1.1 A doutrina de Chiovenda

Partindo CHIOVENDA do pressuposto de que, no Estado moderno, a confecção das leis, vale dizer, a produção do direito, é monopólio do próprio Estado, escreve o seguinte: "O Estado moderno considera, pois, como sua função essencial a administração da justiça; somente ele tem o poder de aplicar a lei ao caso concreto, poder que se denomina

'jurisdição*. Para isso ele organiza órgãos especiais (jurisdicionais), o mais importante dos quais são os juizes (autoridades judiciárias). Perante estes deve propor a sua demanda aquele que pretenda fazer valer um direito em juízo. A tarefa dos juizes é afirmar e atuar aquela vontade de lei que eles próprios considerem existente como vontade concreta, dados os fatos que eles considerem realmente existentes" (Principii di diritto processuale civile, § 2.°).

Sendo, pois, a função dos juizes essa de afirmar e atuar a vontade abstrata da lei, tomando-a realidade no caso concreto, diz então CHIOVENDA o seguinte sobre a natureza e finalidade da função jurisdicional: "Parece-nos que o que é característica da função jurisdicional seja a substituição por uma atividade pública de uma atividade privada de ou-trem. Essa substituição tem lugar de dois modos, referentes a dois estágios do processo, a cognição e a execução" (Principii..., p. 296).

A seguir, CHIOVENDA admite que as duas funções básicas em que a atividade jurisdicional se manifesta separam-se entre dois momentos, o primeiro dos quais corresponde à cognição, onde o juiz exerce atividade intelectual, identificada "con le parole giudicare", reservado o outro à realização de "atividade material" de execução da vontade da lei, já reconhecida pela sentença.

Observa-se, portanto, na doutrina de CHIOVENDA a nítida separação entre as duas funções processuais e os fundamentos teóricos que sustentam o processo de conhecimento, com suas três ações tradicionais (declaratórias, constitutivas e condenatórias), cujas sentenças de procedência ou prescindem de execução ou, no caso das condenatórias, relegam a atividade executória para um processo autónomo subsequente.

É possível então identificar, na doutrina de CHIOVENDA, os seguintes elementos. A soberania estatal pressupõe duas funções bem distintas, uma delas destinada a produzir o direito, ou seja, legislar; a segunda, destinada a atuá-lo. A atuação da vontade da lei, porém, quando feita pelo administrador, é bem diferente da maneira como o juiz a realiza. Este tem como objeto de seu agir a lei: "em outros termos, o juiz age atuando a lei; a administração age em conformidade com a lei; o juiz considera a lei em si mesma; o administrador considera-a como norma de sua própria conduta. E ainda, a administração é uma atividade primária ou originária; a jurisdição é uma atividade secundária ou coordenada" (Instituições de direito processual civil, v. 2, p. 12).

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Dessa distinção entre administração e atividade atribuída aos juizes surge a terceira função estatal, que é a jurísdicional. Existem, portanto, para CHIOVENDA, duas funções bem distintas na atividade estatal: a função de fazer as leis e a função de aplicá-las. O ato de aplicação do direito objetivo, contudo, faz-se de dois modos diferentes. Para o administrador, a lei é seu limite, enquanto para o juiz a lei é seu fim. O administrador não tem por função específica aplicar a lei. Ele atua (realiza) o direito objetivo, promovendo uma atividade destinada à realização do bem comum; constrói obras públicas, escolas, estradas, arrecada tributos, mantém os exércitos, e realiza uma infinidade de outras atividades similares, de todos conhecidas. Para realizá-las, todavia, deve o administrador manter-se dentro da lei; a lei é seu limite, não o seu fim. Ele não atua a lei, como se a função que lhe coubesse fosse essa, de atuação da vontade abstrata da lei. Seu objetivo é a realização do bem comum, dentro da lei. O juiz, ao contrário, não tem como finalidade de seu agir a realização do bem comum, senão de uma forma muito genérica e indireta; a finalidade que define sua atividade é a própria atuação da lei. Pode-se dizer que o juiz age para a atuação da lei, realizando o direito objetivo. E nisto reside, pois, a distinção entre administração e jurisdição.

CHIOVENDA destaca outra peculiaridade que devemos acentuar, para bem analisarmos sua doutrina. Diz ele que tanto o administrador quanto o juiz julgam, pois não se age senão com apoio num juízo. O administrador, porém, formula um juízo sobre a própria atividade, o juiz, ao contrário, julga uma atividade alheia.

A doutrina de CHIOVENDA é aceita por inúmeros processualis-tas, dentre os quais cabe destacar CALAMANDREI, UGO ROCCO, ANTÓNIO SEGNI, ZANZUCCHI e, dentre nós, particularmente, J. J. CALMON DE PASSOS, MOACYR AMARAL SANTOS e CELSO BARBI.

A principal objeção lançada contra a doutrina de CHIOVENDA vem resumida nesta crítica feita por GALENO LACERDA ao caráter substitutivo atribuído pelo jurista italiano à atividade jurisdicional: "Essa tese absolutamente insatisfatória não só não explica a natureza jurisdicional dos processos mais relevantes, que tiverem por objetivo conflitos sobre valores indisponíveis, cuja solução não se pode alcançar pela atividade direta das partes (processo penal, processo civil inquisitório - ex.: nulidade de casamento), senão que deixa in albis também o

porquê da natureza jurisdicional das decisões sobre questões de processo, especialmente daquelas que dizem respeito à própria atividade do juiz, como as relativas à competência e à suspeição, onde jamais se poderá vislumbrar qualquer traço de 'substitutividade' a uma atuação originária, direta e própria das partes" {Comentários ao Código de Processo Civil, v. 8, p. 22).

A crítica mais séria que se poderá fazer à doutrina de CHIOVENDA, que, todavia, não lhe retira o mérito, está em seu pressuposto doutrinário, mais do que na formulação propriamente da doutrina. A objeção a ser feita à célebre doutrina chiovendiana sobre jurisdição está em que o grande processualista italiano, sob a influência das ideias jurídico-filosóficas predominantes no século XIX, concebia como funções separadas, e até, em certo sentido, antagónicas, a função de legislar e a função de aplicar a lei. Sua doutrina sustenta-se na postulação de que o ordenamento jurídico estatal seja, para o juiz, um dado prévio, uma coisa existente, como se fora uma constelação posta, completa e definitivamente, pelo legislador, restando ao juiz a exclusiva tarefa de aplicação da lei ao caso concreto.

As modernas correntes de filosofia do direito, contudo, procuram mostrar que a atividade de aplicação da lei pelo juiz implica, de certo modo, também uma função criadora de direito, à medida que o preceito legal, abstraio como ele é, em sua formulação genérica, não passa de um projeto de norma reguladora da conduta humana, projeto que o julgador deve completar na sentença, de modo a concretizá-lo no caso particular submetido a seu julgamento.

A doutrina de CHIOVENDA, como de resto as demais de que iremos tratar, pressupõe a. plenitude do ordenamento jurídico, tal como a pressupunham as doutrinas filosóficas de inspiração positivista, predominantes no século XIX, que ainda exercem poderosa influência no pensamento contemporâneo, particularmente as variantes normativas, para as quais o direito é aquilo que o legislador edita como sendo direito, de modo que o juiz não apenas deveria ficar impedido de avaliar a eventual injustiça da lei, como seria totalmente desnecessário qualquer ato de criação do direito pelo juiz, posto que o ordenamento jurídico já teria em si mesmo todas as soluções para os casos futuros.

Esta visão do problema, que pressupõe uma nítida separação dos poderes do Estado, é que está superada, especialmente a partir do extraordinário impacto social e histórico provocado pela Segunda Guerra Mundial, cujos reflexos, no campo do direito, fizeram-se sentir através de uma profunda revisão das correntes positivistas predominantes na primeira metade deste século.

Outra ordem de considerações críticas à doutrina de CHIOVENDA pode ser estendida a todos aqueles que defendem a tese segundo a qual a finalidade precípua da jurisdição seria a aplicação

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do direito objetivo (WACH, ROSENBERG, SCHÕNKE, ANDRIOLI etc.). A aplicação ou a realização do direito objetivo não é uma atividade privativa ou específica da jurisdição. Também os particulares, quando cumprem a lei, quer observando seus preceitos imperativos, quer exercendo, em toda a sua extensão e plenitude, atos e negócios jurídicos, desenvolvem atividade realizadora do ordenamento jurídico. Assim como os particulares, também os demais poderes estatais desenvolvem ativida-des que realizam o ordenamento jurídico. Se, realmente, a função do Poder Judiciário fosse a de realizar o ordenamento jurídico, não se compreenderia que sua atividade necessitasse, sempre, do impulso inicial dos particulares, pois não seria compreensível que o Estado organizasse um poder especial incumbido de tornar efetivo e realizado o direito objetivo por ele próprio editado, e confiasse aos particulares a faculdade de fazê-lo atuar, segundo suas vontades e interesses (ZAN-ZUCCHI, Diritto processuale civile, v. 1, p. 7).

2.1.2 A doutrina de Allorio

Num célebre ensaio publicado na Itália em 1948, sustentou ALLORIO a tese de que a essência do ato jurisdicional está em sua aptidão para produzir coisa julgada (Saggio polemico sulla giurisdizione vo-lontaria, RTDPC, posteriormente incluído em Problemas de derecho procesal, v. 2, p. 1.963).

ALLORIO parte de uma premissa devida a KELSEN e aos demais filósofos normativistas, segundo os quais as funções do Estado não podem ser catalogadas e definidas por seus fins e sim por suas formas. De nada valerá, dizem eles, afirmar que a jurisdição, como o fazem os partidários das teorias objetivas, tem por finalidade a realização do direito objetivo. Tal proposição, em verdade, nada define. O ordenamento jurídico pode ser atuado e realizado pelas mais diversas formas, seja através dos particulares, quando estes se comportem em conformidade com a norma, realizando atos e negócios jurídicos, seja através dos órgãos do Poder Executivo, que igualmente realizam o ordenamento jurídico estatal.

Sendo assim, conclui ALLORIO que "o efeito declaratório, ou seja. a coisa julgada é o sinal inequívoco da verdadeira e própria jurisdição"

(Problemas..., p. 15). Em verdade, diz o ensaísta, a forma do processo declaratório, mais a coisa julgada como seu resultado, definem a jurisdi-cionalidade do processo; não havendo coisa julgada, como na jurisdição voluntária, não haverá verdadeira jurisdição.

A doutrina que restringe a jurisdição à coisa julgada, geralmente atribuída a ALLORIO, não é tão recente nem tão exclusiva. Defendeu-a também CALAMANDREI, num ensaio publicado em 1917, ao afirmar que a coisa julgada é o que "constitui a pedra de toque" do ato jurisdicional (Limites entre jurisdicción y administración en Ia sentencia civil, Estúdios de derecho procesal civil, p. 48), Segundo a opinião de CALAMANDRE1, defendida nesse estudo, apenas a função decla-ratória é verdadeira jurisdição. Para ele, a própria sentença constitutiva, como a que decreta separação judicial em processo litigioso, ou anula algum ato ou negócio jurídico, não é inteiramente jurisdicional, mas, ao contrário, constitui um ato complexo, formado por dois elementos, um dos quais verdadeiramente jurisdicional, que é a declaração contida na sentença, e outro administrativo, ou pertencente à chamada jurisdição voluntária, o que daria no mesmo, através do qual o juiz, baseado no ato declaratório e jurisdicional, decreta (efeito constitutivo) a separação judicial dos cônjuges, ou anula o ato ou o negócio jurídico anuláveis.

Também LIEBMAN, em várias oportunidades, mostrou-se partidário dessa doutrina que, de certo modo, reflete-se em sua conhecida teoria sobre o conceito de ação. Eis o que escreve, a este respeito, MICHELI, tratando a revogabilidade dos provimentos de jurisdição voluntária como critério para afastar desta o caráter jurisdicional: "... Ia doctrina tradicional ha tomado siempre como eje Ia presencia o no de Ia cosa juzgada para atribuir o para negar naturaleza jurisdiccional a una determinada providencia. Esta tesis ha sido ultimamente puesta sobre el tapete, aunque sea desde diversos puntos de vista por Allorio y por Liebman, los cuales Uegan, en sustancia, a Ia conclusión de contemplar Ia jurisdicción, allí donde existe Ia cosa juzgada, y de ahí Ia consecuencia (en particular ilustrada por Liebman) de que Ia disposición dei art. 742 dei Cód. de Proc. Civ. encuentra aplicación solo respecto de aquellas providencias emitidas en câmara de consejo..."(Perspectivas críticas en tema de jurisdicción voluntária. Estúdios de derecho procesal civil, v. 4, p. 89). MICHELI refere-se a um estudo de LIEBMAN intitulado Revocabilità dei

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provedimenti pronunciati in camera di consiglio, republicado em Proble-mi dei processo civile, p. 448).

Igualmente, COUTURE foi adepto declarado dessa doutrina, afirmando que a função imediata da jurisdição é a de "decidir conflitos e controvérsias de relevância jurídica" {Fundamentos..., p. 42). Segundo ele, o "objeto próprio da jurisdição é a coisa julgada", pois este resultado não aparece nem no ato administrativo, que pode sempre ser revisto e modificado, nem na atividade legislativa, cujo resultado, a lei, é por natureza essencialmente mutável. Daí concluir COUTURE, reproduzindo as palavras de CALAMANDREI, ser a coisa julgada "a pedra de toque" do ato jurisdicional (Limites..., p. 43).

As objeções levantadas contra esta teoria podem ser resumidas no seguinte: 1.°) considerando-se como ato jurisdicional apenas o processo chamado declarativo, onde houver produção de coisa julgada, ficariam excluídos da jurisdição todo o processo executivo e a jurisdição voluntária. E embora, quanto a esta última, haja predominância de opiniões que a consideram atividade de natureza administrativa, quanto ao processo de execução há consenso geral sobre sua jurisdicionalidade; 2.°) além destas limitações, que, por si sós, já seriam capazes de invalidar a doutrina, ainda poderíamos lembrar que, no próprio processo declaratório, poderiam ter lugar formas procedimentais em que não ocorre o fenómeno da coisa julgada, além da ausência da res iudicata no processo caute-lar, cuja jurisdicionalidade ninguém discute.

A ser verdadeira a doutrina que identifica jurisdição com coisa julgada, pressupondo, como afirma COUTURE, que a finalidade da jurisdição é a resolução de controvérsias sob a forma de sentença, a decisão pela qual o juiz decretasse a extinção do processo por falta ou insuficiência de algum pressuposto processual não seria jurisdicional. Além de tudo, como lembra ANTÓNIO SEGNI (Intervento in causa, Novíssimo digesto italiano, v. 8, p. 988), seria impróprio definir a jurisdição por seu efeito, sem dizer em que ela propriamente consiste.

2.1.3 A doutrina de Carnelutti

Segundo CARNELUTTI (Sistema dei diritto processuale civile, v. 1. p. 131 e ss.), a jurisdição consiste na justa composição da lide, mediante sentença de natureza declarativa, por meio da qual o juiz dicit

ius\ daí porque, segundo ele, não haveria jurisdição no processo executivo (p. 132).

De acordo com esta concepção, largamente difundida no Brasil, a jurisdição pressupõe um conflito de interesses, qualificado pela pretensão de alguém e pela resistência de outrem. Tal é o conceito de lide na doutrina do mestre italiano. Sem haver lide, não há atividade jurisdicional. A jurisdição é um serviço organizado pelo Estado com a finalidade de pacificar, segundo a lei, os conflitos de interesses das mais diferentes espécies, abrangendo não só os conflitos de natureza privada, mas igualmente as relações conflituosas no campo do direito público.

A partir dessa concepção de CARNELUTTI afirma JOSÉ FREDERICO MARQUES (Instituições..., v. 1, p. 261): "a atividade jurisdicional pressupõe, sempre, uma situação contenciosa anterior". Há necessidade, para haver processo jurisdicional, conforme o ponto de vista de CARNELUTTI, da prévia existência de uma "pretensão resistida", entendido, porém, o conceito de pretensão como a exigência de subordinação de um interesse alheio ao interesse de quem pretende. Entretanto, para ele, como para a doutrina em geral, especialmente italiana, pretender é afirmar a titularidade de um direito. A pretensão passa a ser a expectativa de que a futura sentença venha a reconhecer-lhe a existência, ao passo que o conceito de pretensão por nós aceito - originário da formulação de WINDSCHEID - corresponde a uma situação real, verdadeiramente existente, no plano do direito material. É claro que a pretensão, como qualquer outra categoria de direito material, quando submetida ao crivo do julgamento, transforma-se em mera expectativa. Mas isso ocorre tanto com a pretensão quanto com o direito subjetivo.

Temos, portanto, de ter bem presente que, para CARNELUTTI, como para a generalidade da doutrina italiana - que ignora o conceito de pretensão de direito material -, ter pretensão é simplesmente alegar, ou imaginar que se tem direito, é a condição processual daquele que se diz titular do direito cujo reconhecimento ele busca, através da jurisdição. Segundo este entendimento, tanto terá exercido pretensão o autor a quem a futura sentença atribuir o alegado direito quanto tivera pretensão o autor cuja sentença de improcedência não lhe reconheceu a titularidade do direito que ele imaginava possuir.

Segundo CARNELUTTI, portanto, poderá haver pretensão "infundada" {Diritto e processo, n. 32. nota 27), ao passo que, para nós, a pretensão, tal qual os direitos subjetivos. existe ou não existe, sendo absolutamente inaplicáveis aos

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direitos e pretensões o conceito de procedência e não procedência, de direitos e pretensões fundadas e não fundadas. Assim como não poderei dizer que meu direito é infundado, do mesmo modo não poderei afirmar que tenho uma "pretensão infundada". De acordo com este ponto de vista, que será melhor desenvolvido no capítulo dedicado à análise do conceito de "ação", a pretensão é o estado de quem tem um direito exigível. O direito ou a pretensão que a sentença declarassse "infundados", na verdade, nunca teriam existido, no plano do direito material.

Embora em sua formulação originária a doutrina de CARNELUT-TI excluísse a execução forçada do âmbito da jurisdição, posteriormente o próprio jurista e seus seguidores passaram a distinguir a atividade juris-dicional para composição de um conflito de interesses (lide), representada por uma pretensão contestada (processo de conhecimento), da outra lide destinada a compor um conflito de interesses originado do que CARNELUTTI passou a denominar "pretensão insatisfeita" (processo de execução).

Daí porque não havendo, na chamada jurisdição voluntária, nenhum conflito de interesses, capaz de ser definido como uma lide verdadeira, mas, ao contrário, "existindo tão-só atividade material de caráter administrativo, não se configura qualquer modalidade de tutela jurisdi-cional" (J. FREDERICO MARQUES, instituições,.., v. 1, p. 269).

O vício da doutrina carneluttiana reside, à semelhança daquela anteriormente exposta, em procurar definir o ato jurisdicional indicando não o que ele é, mas aquilo a que ele serve; não o seu ser, mas a sua função, ou sua finalidade. A composição dos conflitos de interesses pode dar-se de inúmeras formas, por outros agentes do Estado que não sejam juizes. E nem se salva a teoria acrescentando-lhe a nota qualifi-cadora, segundo a doutrina de CARNELUTTI, de que o ato jurisdicional realizaria uma "justa composição da lide", pois ninguém poderá dizer que as demais formas de composição de conflitos, realizadas pelos agentes do Poder Executivo, não sejam igualmente justas e conforme a lei.

A isto poderia CARNELUTTI responder que a justiça ou injustiça das demais formas de composição de conflitos não foram ainda determinadas de modo definitivo, podendo, em procedimento jurisdicional subsequente, ser declarado injusto o que a autoridade administrativa tivera por justa aplicação da lei, assim como poderia dar-se a situação inversa.

vindo o magistrado a ter por justa a solução que os órgãos do Poder Executivo tivessem considerado injusta.

A objeção, no entanto, seria excessiva, provando em demasia, pois, se a distinção entre a composição jurisdicional e as outras modalidades de composição de conflitos apenas reside na circunstância de ser aquela a definitiva palavra do Estado, impossível de ser controvertida em processo futuro, então estaria CARNELUTTI confessando que, para sua doutrina, o que realmente caracteriza o ato jurisdicional é a virtude, que lhe seria imanente, de produzir coisa julgada, ou seja, a composição da lide que seria justa, como aplicação incontrovertível da lei.

Uma interessante e radical manifestação da doutrina carneluttiana foi defendida por GALENO LACERDA (Comentários..., v. 8, p. 20 e ss.), para quem o ato jurisdicional tem na lide sua "pedra de toque", pois a jurisdição "só existe por causa do conflito e para solucioná-lo". "A lide, como realidade dialética, adquire feição polimórfica, extravasando-se em ambos os planos, o do direito material e o plano do processo, através das pretensões e razões controvertidas, a exigir decisão jurisdicional do magistrado. Exatamente porque as questões constituem projeção da lide é que a decisão delas, ainda das que sejam puramente processuais, como o seria a proferida sobre a própria competência, passam a ser também jurisdicionais".

"Onde houver, portanto, julgamento de questão, aí estaremos em presença de ato jurisdicional" (Comentários..., p. 23). Dessa asserção conclui GALENO LACERDA ser possível a ocorrência da autêntica jurisdição.

Desta conclusão percebe-se que o jurista retorna ao conceito de jurisdição sugerido, em 1917, por CALAMANDREI, no célebre ensaio a que o próprio pro-cessualista brasileiro se refere, segundo o qual só haveria legítima e autêntica atividade jurisdicional na sentença declarativa, no ato do juiz que decidisse uma controvérsia ou, em última instância, no ato de julgamento. Quando o juiz dirige o processo, praticando inúmeros e diferentes atos necessários para coordená-lo e conduzi-lo à finalidade que o anima, não exerceria atividade jurisdicional, mas, ao contrário, agiria como administrador. Ao presidir uma audiência, inquirir testemunhas, promover os atos de impulso da relação processual, designando audiências ou provendo sobre a regularidade formal do procedimento, o juiz não exerceria jurisdição, porque "ao efetuá-lo o juiz nada decide" {Comentários..., p. 25).

Além da manifesta confusão entre decisão e juízo, como se o ato intelectivo de julgar fosse sua própria consequência enquanto ato volitivo de decidir, o argumento central da teoria sugerida por GALENO LACERDA não pode ser aceito. É bem verdade que a mudança de perspectiva levada a efeito por ele, com a finalidade de explicar o caráter jurisdicional da decisão sobre competência e sobre as demais

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questões processuais, contorna o obstáculo que essa espécie de provimentos criara à doutrina de CHIOVENDA, pois estes provimentos instrumentais, em si mesmos, não se apresentam como substitutivos de uma atividade primária de outrem, como CHIOVENDA exige que o seja o ato jurisdicional.

Todavia, a dificuldade mais foi contornada do que transposta. A afirmação de que a controvérsia sobre a competência do órgão jurisdicional é uma questão da lide, além de sua brilhante feição retórica, não passa de um artifício argumentativo que poderia, com certa habilidade, ser igualmente usado pelos discípulos de CHIOVENDA, quando estes defendem a jurisdicionalidade da decisão sobre competência. Quando o mestre italiano definiu o ato jurisdicional como ato substitutivo, ele pretendia referir-se ao caráter secundário e substitutivo do ato jurisdicional típico, através do qual o Estado desincumbe-se de seu dever de prestar tutela jurisdicional, realizando o ordenamento jurídico, o que não afastaria igualmente a jurisdicionalidade de certas "atividades-meio", ou atividade s instrumentais que não fossem, em si mesmas, secundárias e substitutivas de uma atividade primária. A mesma contaminação que faria, para GALENO LACERDA, com que uma controvérsia sobre competência passasse a ser uma "questão da lide" poderia tornar jurisdicional a mesma atividade-meio, através da qual o juiz decide sobre a própria competência, para poder, afinal, prestar a atividade-fim, contida na sentença.

Além disso, a afirmação de que poderá haver jurisdicionalidade na chamada jurisdição voluntária, sempre que nela se suscite alguma questão que requeira juízo, parece comprometer irremediavelmente a teoria, tornando impossível a determinação do verdadeiro caráter dessa atividade judicial, posto que são frequentes os casos em que, em pleno domínio da jurisdição voluntária, surgem verdadeiras questões a demandar juízo do magistrado. Pense-se na divergência entre o representante do incapaz que pretenda vender, arrendar ou onerar os bens de seu pupilo (art. 1.112, III, do CPC) e o representante do Ministério Público que a isso se oponha. Indiscutivelmente terá surgido aí uma questão a exigir juízo por parte do magistrado. Porventura esse "julgamento" teria o condão de transformar em jurisdicional a jurisdição voluntária, que GALENO LACERDA, como os processualistas em geral, consideram substancialmente uma atividade administrativa? A resposta negativa é mais do que óbvia.

Então, como poderá haver "questão que requeira juízo" na chamada jurisdição voluntária para GALENO LACERDA? Apenas e exclusivamente quando o respectivo julgamento produzir coisa julgada, ou seja, quando houver autêntica "decisão", pois a doutrina identifica decisão e juízo.

Raras vezes o pressuposto ideológico que sustenta toda a doutrina processual moderna, segundo o qual a jurisdição pressupõe a produção de coisa julgada, reduzida a atividade jurisdicional apenas ao julgamento, mostra-se tão nítido e indiscutível como na lição de GALENO LACERDA. Sua proposição pressupõe que o juiz.

em nosso sistema, não exerça, enquanto função jurisdicional, a menor parcela de império, como denunciam, entre outros juristas contemporâneos, EDOARDO GRASSO (Rivista diDiritto Processuale, 1966) e JOHN HENRY MARRYMANN {La tradición jurídica romano-canónica).

Em primeiro lugar, como o chamado processo de conhecimento, no dizer de CARNELUTn, tem como "programa principal a ambiciosa busca da verdade" {Diritto e processo, n. 241) - porque a herança racionalista mantém o direito subserviente à metodologia das ciências empíricas ou puramente lógicas, como a matemática -, para os processualistas modernos todo provimento que o juiz emita baseado em juízo de simples verossimilhança não corresponde a verdadeiro julgamento; e nem a decisão tomada com base nesta espécie de convencimento é uma autêntica decisão. Quer dizer, para a doutrina dominante, decidir com fundamento no verossímil é simplesmente não decidir. É frequente encontrar, nos livros e nos julgados, afirmações declarando que o juiz, ao conceder uma medida liminar, nada decide, precisamente no sentido em que GALENO LACERDA emprega os vocábulos decisão e juízo. Em segundo lugar - e este pressuposto político é tão ou mais decisivo do que o anterior -, nosso juiz conserva-se preso à receita de MONTESQUIEU, para quem o juiz não poderia sequer interpretar a lei, posto que o poder de julgar haverá de ser um poder "invisível e nulo" (L'esprit des lois, VI, 3, e XI, 6), de modo que a admissão de que o provimento liminar seja um verdadeiro julgamento corresponderia a reconhecer ao juiz o poder de conceder uma vantagem ao litigante sem direito, sempre que o subsequente julgamento definitivo infirmasse o julgamento provisório. Isto seria não a justiça da lei, e sim a justiça do juiz, que, para THOMAS HOBBES, seria por isso mesmo injusta (Leviathan, XXVI, 7). Em última análise, reconhecer ao juiz o poder de conceder alguma vantagem processual que a lei não contemple - o que se dará sempre que a liminar antecipatória seja declarada, depois na sentença, infundada - será outorgar-lhe, além do dever de declarar a incidência da lei (iurisdictio), uma porção de imperium, que nosso paradigma teórico não admite.

O professor CELSO NEVES, da Universidade de São Paulo, defende a doutrina segundo a qual a verdadeira atividade jurisdicional apenas se dá no chamado processo de conhecimento, e exclusivamente através do processo de pura declaração: "Tudo o que excede a declaração já pertence ao plano da execução, que pode ocorrer ou imediatamente ou ex intervallo, em ação executaria ulterior" (Classificação das ações, Justitia 88/36).

Se a jurisdição esgota-se no processo declaratório, então já não se poderá buscar essa espécie de atividade no processo de execução, uma vez que ela já teria cumprido sua função no processo anterior. Na fase executória, "o que há é atividade iurissatisfativa - não jurisdicional -, porque o que se quer, nos limites objetivos e subjetivos da coisa julgada, é satisfazer o interesse do litigante" (ob. cit, p. 35).

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Esta concepção padece de um defeito notório, ao considerar a atividade executória como a única forma de tutela jurissatisfativa, na pressuposição de que a tutela de pura declaração, representada pela sentença proferida em demanda declaratória, ou pelo componente declaratório das sentenças que CELSO NEVES indica como correspondendo às "ações objetivamente complexas", não seja igualmente satisfativa de uma pretensão da parte. Contrapor-se jurisdição à satisfação dos direitos através de outra forma de tutela corresponde a dizer que a pessoa que demanda através de ação declaratória a eliminação de um estado de incerteza jurídica e obtém esta espécie de tutela, mediante sentença, com o natural efeito de coisa julgada, não teria satisfeita a sua pretensão.

Partindo precisamente do ponto de vista oposto, VICTOR FAIRÉN GUILLEN (El proceso como satisfacción jurídica, Temas dei ordenamiento procesal, t. I, p. 385) não só procura surpreender a essência da jurisdição na finalidade de dar satisfação ao direito como reprova a confusão entre satisfação e execução forçada.

Outro eminente professor da Universidade de São Paulo, J. I. BOTELHO DE MESQUITA, partindo de uma premissa praticamente antagónica à de seu colega, e em aberta oposição à doutrina sustentada por GALENO LACERDA, afasta o caráter de jurisdicionalidade justamente do ato de julgamento estatal, realizado pelo juiz, afirmando que a atividade de julgar ainda não corresponde à verdadeira função de prestar jurisdição, a que o Estado se obrigou. O ato de julgar, segundo ele, não passaria de uma atividade prévia, através da qual o juiz se capacita a dizer se o Estado, no caso concreto, está ou não obrigado a prestar jurisdição.

Para chegar a esse surpreendente resultado, BOTELHO DE MESQUITA, em seu brilhante estudo sobre a teoria da ação (Da ação civil, p. 94 e ss.), separa a pretensão de tutela jurídica reconhecida aos cidadãos em geral, que ele denomina "direito à administração da justiça", do verdadeiro "direito de ação". O primeiro, de assento constitucional, corresponderia ao "direito ao julgamento puro e simples", a que corresponderia, de parte do Estado, o "dever de julgar", o qual, todavia, ainda não é expressão da verdadeira jurisdição. Enquanto não houver exercício de ação - mas simples exercício desse poder preliminar e genericamente a todos atribuído - não haverá, igualmente, exercício de jurisdição.

Não consistindo a jurisdição no "ato de julgamento", através do qual o juiz apenas certifica estar ou não o Estado obrigado a prestar a atividade jurisdicionaí, considera BOTELHO DE MESQUITA como exercício verdadeiro de jurisdição apenas aquelas atividades que o Estado desempenha através do juiz consistentes na produção de algum efeito de direito ou de fato transformador de fatos contrários à ordem jurídica: "Segundo o fim a que se destina, pode, portanto, a atividade jurisdicionaí ser classificada em constitutiva ou executória", conforme a "atividade de transformação do mundo do direito ou dos fatos" se realize através de sentenças constitutivas de direito material (e secundariamente de direito processual, como sucede com a ação rescisória) ou de "atos executórios" (ob. cit., p. 102-103).

A ser correta a doutrina aceita por BOTELHO DE MESQUITA, teríamos então de excluir do campo da jurisdição a sentença que rejeitasse a ação por improcedência, assim como seria igualmente difícil justificar a jurisdicionalidade das sentenças declaratórias e condenatórias, uma vez que nestas duas espécies não se vislumbra qualquer efeito executório ou efeito modificativo de relações jurídicas que pudesse ser identificado com a constitutividade, mesmo porque, como o próprio jurista assevera, a sentença de condenação não altera a obrigação com base na qual o juiz profere a condenação nem produz qualquer transformação no mundo dos fatos (ob. cit., p. 104).

No que respeita à sentença de simples declaração, embora se mostre perplexo diante desta forma de atividade estatal, onde a parte não pode saber, até o momento em que a sentença é proferida - segundo afirma o jurista -, se o Estado afinal lhe prestará essa espécie de tutela "contra o estado de incerteza", dando-lhe segurança jurídica, parece-lhe que a eliminação da incerteza, através da coisa julgada, seja também uma forma de tutela produtora de "efeito jurídico" que elimina a "liberdade estatal", pondo fim à insegurança que a "liberdade do juiz" gera no direito (ob. cit., p. 107). Não fica, porém, esclarecido se este efeito especial - que em nada modifica a realidade ou o direito - seria também jurisdicionaí, pois esta eficácia modificativa dos fatos ou do direito seria a qualidade essencial do ato jurisdicionaí.

Se, no entanto, devemos ter a sentença declaratória como jurisdicionaí, porque o juiz produz um novo estado jurídico, ao eliminar a incerteza em que se encontravam as partes antes da sentença, parece então que não se pode negar o mesmo caráter jurisdicionaí à sentença condenatória, uma vez que esta não só cria um estado de segurança jurídica, decorrente de sua eficácia declaratória, produtora de coisa julgada material, como também constitui (efeito constitutivo) o título executivo, modificando também o mundo jurídico, embora com menor intensidade se comparada com as modificações introduzidas no campo do direito pelas sentenças constitutivas.

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Conquanto o jurista pretenda superar a doutrina íje LIEBMAN transpondo as dificuldades que a mesma apresenta, é visível a influência do mestre italiano sobre o pensamento do processualista de São Paulo, particularmente quando ele - buscando, como LIEBMAN, a unidade do conceito de ação - pressupõe uma nova dualidade: o "direito à administração da justiça", que seria, como querem os discípulos de LIEBMAN, expressão de um "direito constitucional de petição", ainda não jurisdi-cional, e o verdadeiro direito de ação, que apenas corresponderia aos que lograssem demonstrar que lhes é devida a prestação jurisdicional, demonstrando que o direito material lhes outorga a pretensão que reclamam.

Este compromisso da teoria defendida por BOTELHO DE MESQUITA com a denominada "teoria eclética" da ação toma-se visível quando ele inclui, como uma "condição da ação" (ob. cit., p. 99), "a ocorrência da hipótese à qual o direito material liga os efeitos pretendidos pelo autor contra o Estado".

Esta mesma dificuldade de tratar como jurisdicional a sentença de improcedência parece acometer o pensamento de outro processualista de São Paulo, CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO, eminente discípulo de LIEBMAN, ao aceitar a seguinte lição do mestre italiano: "Naturalmente, só tem direito à tutela jurisdicional aquele que tem razão, não quem ostenta um direito inexistente, porque, ao julgar improcedente a demanda, é claro que o juiz não estará dando tutela alguma ao autor" (Fundamentos do processo civil moderno, p. 203). O conceito de pretensão de tutela jurídica, através do processo, abrange o direito de ser ouvido, mesmo sem razão. A tutela cautelar é eventualmente tutela de quem não tem direito material.

2.2 Consideração conclusiva sobre o conceito de jurisdição

Depois dessa breve exposição das principais teorias sobre o conceito de jurisdição, cremos que as notas essenciais, capazes de determinar a jurisdicionalidade de um ato ou de uma atividade realizada pelo juiz, devem atender a dois pressupostos básicos: a) o ato jurisdicional é praticado pela autoridade estatal, no caso pelo juiz, que o realiza por dever de função; o juiz, ao aplicar a lei ao caso concreto, pratica essa atividade como finalidade específica de seu agir, ao passo que o administrador deve desenvolver a atividade específica de sua função tendo a lei por limite de sua ação, cujo objetivo não é simplesmente a aplicação da lei ao caso concreto, mas a realização do bem comum, segundo o direito objetivo; b) o outro componente essencial do ato jurisdicional é a condição de terceiro imparcial em que se encontra o juiz em relação ao interesse sobre o qual recai sua atividade. Ao realizar o ato jurisdicional, o juiz mantém-se numa posição de independência e estraneida-de relativamente ao interesse que tutela por meio de sua atividade.

Como observa MICHELI (Per una revisione delia nozione di giurisdi-zione volontaria, RDP, 1947, v. 1, p. 31; agora em Estúdios de derecho procesal civil, v. 4, p. 18), não é tanto o caráter de substitutividade, como afirmava CHIOVENDA, que define a jurisdição, mas seu caráter de imparcialidade. "A norma a aplicar é, pois, para a administração pública, a regra que deve ser seguida para que uma certa finalidade seja alcançada; a mesma norma é, para o órgão jurisdicional, o objeto de sua atividade institucional, no sentido de que a função jurisdicional se exercita com o único fim de assegurar o respeito ao direito objetivo. O juiz, por conseguinte, é portador de um interesse público na observância da lei" (MICHELI, Curso de derecho procesal civil, v. 1, p. 7), enquanto o administrador, quando cumpre e realiza o direito objetivo, tem posição similar à de qualquer particular.

Na doutrina brasileira, CALMON DE PASSOS defende a doutrina chioven-diana da jurisdição como atividade substitutiva {Da jurisdição, p. 31). Para o ilustre professor baiano, o que distingue a jurisdição das demais atividades desempenhadas pelos órgãos do Estado é o fato de manter-se o juiz como terceiro imparcial em relação ao objeto do processo (ob. cit., p. 22).

Em verdade, como observa CALMON DE PASSOS, reproduzindo lição de ZANZUCCHI, as críticas dirigidas à doutrina de CHIOVENDA quanto ao caráter de substitutividade da jurisdição não chegam a invalidá-la, se pudermos compreender bem o sentido correto de tal natureza substitutiva do ato jurisdicional. Quando CHIOVENDA definia a jurisdição como atividade secundária e substitutiva, ele apenas queria significar a imparcialidade do juiz sempre estranho aos interesses sobre os quais incidia sua atividade, mantendo-se numa posição equidistante das partes.

Na verdade, o caráter substitutivo da jurisdição decorre de um pressuposto inerente à atividade jurisdicional, que é o fato do monopólio da jurisdição. Em ter percebido esta óbvia circunstância inerente à função jurisdicional, que a torna necessariamente substitutiva, posto que aqui a atividade do Estado será sempre secundária de uma atividade primária dos interessados, que o próprio Estado proibira, reside o mérito da doutrina de CHIOVENDA.

23 Jurisdição voluntária

2.3.1- Conceito

Denomina-se jurisdição voluntária um complexo de atividades confiadas ao juiz, nas quais, ao contrário do que acontece com a jurisdi-

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ção contenciosa, não há litígio entre os interessados. A história da jurisdição voluntária remonta ao direito romano, mas as controvérsias sobre sua verdadeira natureza ainda permanecem vivas. Foi, porém, no direito italiano medieval que surgiu, com o sentido que atualmente se empresta a esse conceito, a locução iurisdictio voluntária (CHIOVENDA, Princi-pii..., § 14 bis), para designar a atividade que os órgãos da jurisdição desempenhavam nos assuntos em que houvesse apenas um interessado, ou quando todos os interessados estivessem de acordo. Dizia-se, então, que aí a jurisdição se dava inter volentes e não inter nolentes, como acontece na jurisdição contenciosa.

Como observam os romanistas, a locução iurisdictio contenciosa e voluntária só aparece num texto do jurista MARCIANO recolhido no Digesto (1.16.2), cuja redação é a seguinte: Omnes procônsules statim quam urbem egressi fuerint habent iurisdictionem, sed voluntariam; ut ecce manumitti apud eos possunt tam liberi quam servi et adoptiones fieri. § }.° Apud legatum vero proconsulis nome manumittere protest, quia non habet iurisdictio talem ('Todos os procônsules têm jurisdição tão logo transponham os limites de Roma, porém não contenciosa, mas voluntária, de modo que, perante eles se podem manumitir tanto filhos quanto escravos e celebrar adoções. § 1.° Ao contrário, perante o legado do procônsul ninguém pode ser manumitido, porque este não tem tal jurisdição").

O texto, porém, segundo os romanistas, não é clássico, mas fruto de interpolação introduzida pelos compiladores justineaneos (F. DE MARTINO, La giurisdizione nel diritto romano, p. 279).

Segundo a opinião dominante na doutrina brasileira, a chamada jurisdição voluntária não é verdadeira jurisdição, mas autêntica atividade administrativa exercida pelo juiz. Costuma-se dizer, em verdade, que a jurisdição voluntária nem é jurisdição e nem é voluntária, desde que os interessados estão obrigatoriamente a ela submetidos por imposição da lei.

CHIOVENDA, sugerindo confusão entre jurisdição e coisa julgada, declara: "O provimento de jurisdição voluntária, como ato de pura administração, não produz coisa julgada" (Instituições..., v. 2, p. 17).

E curiosa a observação de que tanto o direito romano quanto o germânico medieval se hajam servido da chamada jurisdição voluntária para finalidades jurídico-negociais, como nota WACH (Manual de derecho procesal civil, v. 1, p. 87). Em direito romano, o processo^zcto da in iure cessio destinava-se a formalizar um negócio jurídico de alienação; no direito germânico, a investidura e outros

contratos solenes (HANS PLANITZ, Princípios de derecho privado germânico, § 11, II) eram realizados perante órgãos judiciais.

2.3.2 Classificação do procedimento

CHIOVENDA (instituições..., v. 2, p. 21), seguindo a orientação de WACH, classifica os procedimentos de jurisdição voluntária nas seguintes categorias:

1.° Intervenção do Estado na formação de sujeitos jurídicos, como nos casos em que a lei subordina a constituição ou o reconhecimento de pessoas jurídicas à prévia homologação judicial;

2.° Atos de integração da capacidade jurídica, tais como os casos de intervenção judicial na nomeação de tutores e curadores, e nos processos de emancipação;

A natureza do processo de interdição é controvertida em doutrina, afirmando muitos que se trata de verdadeiro procedimento de jurisdição voluntária, pois não há interesses contrapostos que possam ser definidos como uma controvérsia, enquanto outros julgam tratar-se de um processo contencioso. Nosso Código de Processo Civil (art. 1.177 e ss.) inclui a curatela dos interditos entre os procedimentos de jurisdição voluntária.

3.° Intervenção na formação do estado das pessoas, como no caso da autorização ao menor para contrair casamento, nos processos de reti-ficação de atos de registro civil e na homologação da separação judicial;

4.° Atos de comércio jurídico, tais como autenticação de livros comerciais e jurisdição referente a registros públicos, quando não contenciosa.

CHIOVENDA arrola, ainda, a conciliação como mais uma atividade de jurisdição voluntária desenvolvida pelo juiz, aduzindo que tal função é exercida pelo magistrado visando prevenir a lide (Instituições..., p. 24). Todavia, como ele próprio reconhece, o conciliador pode exercer uma dupla função, jurisdicional e de simples conciliação. LOPES DA COSTA (A administração pública e a ordem jurídica privada, p. 344) entende que a atividade de conciliação, mesmo em fase contenciosa, seja ato de jurisdição voluntária.

O direito brasileiro não conhece a figura do juiz simplesmente conciliador, e &fase de conciliação introduzida pelo Código de Processo Civil, sob forma obrigatória, em todos os litígios que versem sobre direitos patrimoniais de caráter privado

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(art. 447) - não seria interessante falar aqui da audiência do art. 331 também? - não transforma esse momento da relação processual contenciosa em procedimento de jurisdição voluntária. Se a conciliação se der em processo de jurisdição voluntária, como sucede nas ações de separação judicial, então, sim, a atividade desenvolvida pelo juiz será também ato de jurisdição voluntária.

Outros procedimentos de jurisdição voluntária podem ser indicados, tais como: a) a aprovação dos estatutos das fundações, hipótese do art. 27, parágrafo único, do CC, correspondente ao art. 65, parágrafo único, do novo Código Civil (FREDERICO MARQUES, Ensaio sobre a jurisdição voluntária, p. 296); b) a concessão de assistência judiciária (Lei 1.060, de 05.02.1950); c) a arrecadação dos bens da herança jacente ou de ausentes (arts. 1.142 e 1.160 do CPC); d) a alienação, arrendamento ou oneração de bens dotais, ou de menores, órfãos ou interditos; e) a alienação, locação ou administração da coisa comum, quando haja divergência entre os condóminos; e f) a extinção de usufrutos e fideicomissos (art. 1.112, VI, do CPC).

2.3.3 Natureza jurídica

Os principais argumentos de que se valem os juristas para demonstrar a natureza administrativa dos atos de jurisdição voluntária são estes: 1.°) a diversidade de escopo entre a jurisdição contenciosa e a voluntária: enquanto a primeira teria caráter repressivo, a jurisdição voluntária teria caráter preventivo do litígio (CARNELUTTI); ou porque a jurisdição seria função meramente declaratória de direitos, enquanto a chamada jurisdição voluntária se destinaria à formação de atos e negócios jurídicos, tendo, assim, uma função constitutiva estranha à natureza da jurisdição (WACH, CALAMANDREI); 2.°) a jurisdição voluntária não comportaria o princípio do contraditório, não existindo, portanto, partes, no sentido técnico-processual, mas simples interessados; 3.°) no tocante à sua eficácia, os atos de jurisdição voluntária não produziriam coisa julgada material, enquanto a sentença proferida em processo de jurisdição contenciosa produziria coisa julgada (FREDERICO MARQUES, Ensaio..., p. 61); 4.°) segundo alguns, a jurisdição verdadeira diferenciar-se-ia da jurisdição voluntária: a primeira corresponderia a uma forma de atuação do direito objetivo, enquanto a última teria por finalidade a realização de certos interesses públicos subordinados ao direito (LIEBMAN, Giurisdizione volonta-ria e competenza, RDP, v. 2, p. 179), ou, como se costuma dizer, a

jurisdição voluntária seria simples administração pública de interesses privados, cuja realização, conforme ao direito, deve ser protegida pelo Estado.

Todos os argumentos, no entanto, têm sido vantajosamente respondidos pelos que defendem a natureza jurisdicional da chamada jurisdição voluntária. Vejamos:

O primeiro argumento, de que a jurisdição voluntária não seria verdadeira jurisdição por não se limitar à função declaratória de direitos, mas ter por fim a constituição de atos ou negócios jurídicos, defendido por WACH e depois reproduzido por CALAMANDREI, está hoje com-pletamente superado, pois é um dado da ciência moderna o reconhecimento de que a jurisdição, além da função declarativa, pode igualmente constituir novos estados jurídicos, de modo que a função constitutiva de atos ou negócios jurídicos de que sempre se reveste a jurisdição voluntária não serve para distingui-la da jurisdição verdadeira, como se esta não pudesse ser, muitas vezes, também de natureza constitutiva.

Tendo-se presente ainda a posição dos que pretendem mostrar que a jurisdição voluntária não seria verdadeira jurisdição por ser de caráter preventivo, enquanto a jurisdição contenciosa seria de caráter repressivo, a improcedência do fundamento parece evidente. Inúmeros são os exemplos de atividade contenciosa preventiva, bastando citar a sentença cau-telar e a sentença declaratória pura, cuja função preventiva de futuros litígios ninguém discute.

O segundo argumento^ de que na jurisdição voluntária não se poderia vislumbrar a existência de partes verdadeiras, existindo apenas interessados que têm escopo comum, à medida que desejam o mesmo resultado, sem verdadeiro contraste de posições, como acontece na jurisdição contenciosa, poderia ser aceito, desde que bem definido o conceito de parte como elemento componente de um todo que seria o litígio. Se reduzirmos o conceito de parte até esse limite, definindo-o como o elemento subjetivo de um conflito jurídico de interesses, então poderemos dizer que na jurisdição voluntária realmente inexistem partes, o que, de resto, nada mais provaria senão o fato já sabido de que aí não há litígio, por ser justamente voluntária a jurisdição. Se, todavia, quisermos significar com o conceito de parte aqueles que participam da relação processual, no sentido de participarem dela como sujeitos, não vemos inconveniente em afirmar que a jurisdição voluntária compõe-se também de partes. Está claro que, por ser voluntária a jurisdição, não haverá aqui

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partes em conflito Justamente porque é o conflito que define a jurisdição contenciosa. Mas não se demonstrou que só exista jurisdição quando haja conflito de interesses.

O terceiro argumento, segundo o qual a jurisdição voluntária seria substancialmente uma função administrativa, por não produzir coisa julgada a respectiva sentença, também não convence. Como vimos, inúmeros casos de jurisdição contenciosa também não são idóneos para a produção de coisa julgada. E novamente aqui o exemplo mais típico e indiscutível é a sentença de mérito proferida no processo cautelar, onde há, a toda evidência, contenciosidade sem coisa julgada material.

Finalmente, o quarto argumento, segundo o qual a jurisdição contenciosa teria por função a atuação do direito objetivo, ao passo que a jurisdição voluntária tenderia à realização de certos interesses públicos, para cuja formação o juiz é convocado de modo a cooperar em sua efe-tivação, segundo nos parece, também não demonstra a natureza administrativa da jurisdição voluntária. Embora aqui não haja, como na jurisdição contenciosa, aplicação de sanções ou jurisdição declarativa de direitos, a verdade é que o juiz intervém no processo de jurisdição voluntária para assegurar a tutela de um interesse a que ele se mantém estranho, decidindo como terceiro imparcial e mantendo sua independência quanto aos efeitos jurídicos produzidos por sua sentença, que nunca lhe dizem respeito. Ora, o resultado de todo ato administrativo diz respeito e atinge diretamente o agente que o realizou. O administrador jamais poderá ficar alheio e indiferente ao resultado de seu ato, como o juiz há de ficar com relação à sentença proferida nos processos de jurisdição voluntária (MI-CHELI, Significato e limiti delia giurisdizione volontaria, RDP, p. 551). Aliás, MICHELI já havia, num ensaio anterior, chamado a atenção para esse elemento peculiar à jurisdição e comum tanto à jurisdição voluntária quanto à contenciosa, que é a imparcialidade do juiz e sua estraneidade com relação ao interesse que ele tutela com sua sentença (Per una revi-sione..., RDP, v. 1, p. 33, e Estúdios..., ob. cit., p. 21), ao ressaltar a diferença essencial que existe entre a atividade do tutor e do juiz tutelar, em que o primeiro efetivamente pratica atividade negociai em representação do incapaz, enquanto o juiz, embora desenvolva atividade tendente a tutelar também o mesmo interesse do menor, não realiza, com sua sentença, nenhuma atividade negociai e muito menos uma atividade negociai própria em que ele seja interessado ou dela participe. Na verdade, afirma MICHELI, o juiz não decide as questões tute-

ladas para substituir a deficiente vontade do incapaz, como o faz o tutor, mas para garantir a atuação, segundo o direito, de um interesse protegido pela lei. De modo que há, também na jurisdição voluntária, uma forma especial de atuação do direito objetivo, realizada por órgão público que sobrepaira aos interesses privados, como terceiro imparcial, e que tem, como o juiz da jurisdição contenciosa, essa mesma atuação como objetivo final de sua atividade.

Por tal motivo, não consideramos correta a conclusão a que chegam CIN-TRA-GRINOVER-DINAMARCO, ao escreverem: "Na jurisdição voluntária, o juiz age sempre no interesse do titular daquele interesse que a lei acha relevante socialmente..." (Teoria geral do processo, p. 107). O juiz do processo contencioso também age para preservar o interesse do litigante que tenha razão, pois sua função, lá como aqui, tem por objetivo a realização da lei no caso concreto. Se o juiz verdadeiramente agisse sempre no interesse do requerente da providência de jurisdição voluntária, não se poderia imaginar a decisão de improcedência, através da qual o juiz nega o pedido por considerá-lo não tutelado pelo direito objetivo. O juiz, nos processos de jurisdição voluntária, é tão imparcial quanto o seria se o processo fosse de jurisdição contenciosa. Agirá no interesse do titular apenas se ele tiver razão, como o fará em qualquer processo contencioso.

ALFREDO ROCCO (La sentenza civile, p. 14) sugere um critério para diferençar a função jurisdicional da administrativa, que merece reprodução. Escreve ele: "Na atividade jurisdicional, o Estado provê a realização do interesse cuja satisfação, embora querida pelo direito, é impedida por obstáculos encontrados na atuação da norma jurídica que o tutela. A atividade jurisdicional, portanto, é sempre dirigida a remover obstáculos à satisfação de interesses: ela não satisfaz diretamente os interesses concretos, mas provê para que tais interesses sejam satisfeitos; daí porque apenas indiretamente lhes dá satisfação. Ao contrário, com a atividade administrativa, o Estado provê diretamente à satisfação de seus interesses. Na atividade administrativa, não se trata, portanto, de transpor uma dificuldade que, pela incerteza ou inobservância de uma norma legal, pudesse impedir a satisfação do interesse tutelado'".

A consequência mais evidente dessa premissa é a conclusão de que tanto o juiz da jurisdição contenciosa quanto o da jurisdição voluntária antes preparam o caminho para que o destinatário da norma, afinal, uma vez removido o obstáculo, usufrua de sua proteção e tenha satisfeito o interesse tutelado pelo direito; enquanto o administrador, diferentemente do que ocorre com o juiz, ao praticar o ato administrativo, provê diretamente à satisfação de um interesse público, cuja realização não está a necessitar a intervenção do administrador para a remoção de algum obstáculo que impeça sua satisfação.

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Esses obstáculos a que se refere ALFREDO ROCCO podem ser de duas ordens: ou decorrem eles de uma impossibilidade física, ou provêm da própria lei que proíbe o exercício da atividade diretamente pelo interessado (cf. MICHELI, Per una revisione..., RDP, v. 1, p. 32). A atividade de jurisdição voluntária é apenas mediadora e, nesse sentido, instrumental entre o interesse tutelado e seu respectivo titular, tendo por função exclusiva a remoção de um obstáculo - criado pela lei - a fim de que o interessado tenha satisfeito e realizado o interesse tutelado pela ordem jurídica. Ora, o administrador certamente não depara em sua atividade com essa fase instrumental tendente à remoção de um determinado obstáculo posto pela lei a sua atividade administrativa. O administrador, ao contrário do juiz da jurisdição voluntária, age ao praticar o ato administrativo como agiria o particular na gestão de seus próprios interesses. A ordem jurídica é observada e afinal realizada do mesmo modo tanto pelo particular quanto pelo administrador. Tanto o administrador quanto o particular têm a lei por limite para seu agir; eles devem agir segundo a lei, ou dentro de suas fronteiras, para a consecução de seus próprios interesses. Ora, o juiz da jurisdição voluntária não age apenas segundo a lei, senão que age para aplicar a lei. E nesta tarefa de aplicação da lei ao caso concreto resume-se sua missão. E ele não administra seus próprios interesses.

Em verdade, como adverte M. I. FROCHAM (La jurisdicción, p. 99), os administrativistas não tomaram parte no monólogo conduzido apenas pelos processualistas, a fim de poderem explicar o que é o ato administrativo, pois, se lhes fosse dado o ensejo de participarem da controvérsia, provavelmente "se arquivaria a legendária tese administrativa" sobre a jurisdição voluntária.

Também o Prof. EDSON PRATA faz observação semelhante: "Parece-nos que os alinhados nesta corrente [refere-se ele aos partidários da corrente administrativa] preocupam-se muito em arredar a jurisdição voluntária do terreno ocupado pela jurisdição, e até do processo, para limpar o caminho que traçam e no qual não querem óbices que impeçam o diálogo em linha reta, mas se esquecem de ajeitá-la entre os atos da atividade administrativa. Retiram a jurisdição voluntária do terreno jurisdicional, jogam-na na seara da administração, porém sem indagação prévia da possibilidade jurídica desta providência. Talvez nenhum se tenha perguntado, com a necessária paciência do pesquisador, se a jurisdição voluntária, não se comportando adequadamente ao conceito de jurisdição, se ajeita plenamente no conceito de administração" (Jurisdição voluntária, p. 75).

A jurisdição voluntária distingue-se da contenciosa em razão de em que na primeira não há jurisdição declarativa de direitos, o que é responsável pela ausência de coisa julgada, determinada pela maior relevância da eficácia constitutiva da sentença proferida em processo de jurisdição voluntária, justamente em detrimento da eficácia declara-

tória. Este fenómeno, embora não analisado suficientemente por RO-SENBERG, é por ele descrito ao mostrar que na jurisdição voluntária - que também é jurisdição em sentido estrito (Tratado de derecho pro-cesal civil, v. 1, § 10,1, 2) - o juiz nada declara, com eficácia suficientemente relevante para a produção da coisa julgada, pois, se o caso exige uma declaração sobre a existência de um determinado direito de um sujeito contra outro, a via apropriada será o processo de jurisdição contenciosa (ob. cit., p. 76). Nos casos de jurisdição voluntária, não está em causa a existência (eficácia declaratória) de um determinado direito, mas simplesmente sua regulação (id. ibid.), como não está em causa a declaração de existência do direito a que se dá proteção de simples segurança, na sentença cautelar, do que resulta que também ela não possui coisa julgada material e, não obstante, é uma forma indiscutível de jurisdição contenciosa.

A exclusão da jurisdição voluntária do campo que a doutrina reserva ao que considera verdadeira jurisdição decorre, na verdade, de um pressuposto essencial do paradigma sob o qual nosso sistema foi concebido, qual seja o caráter exclusivamente declaratório da função jurisdicional.

Se ao Poder Judiciário - na concepção radical da doutrina da separação de poderes, como nós a praticamos - cabe apenas a função de declarar a "vontade da lei", como dizia CHIOVENDA, então não lhe sobrará qualquer margem para criação do direito, como função inerente à atividade jurisdicional; em última análise, o juiz do sistema romano-canônico não decide, não tem o menor poder decisório, pois, como advertia CARNELUTTI (Diritto e processo, n. 137), o juiz, para decidir, terá de decidir-se.

Entretanto, somente quem dispuser de, pelo menos, duas alternativas possíveis - e, no caso do juiz, de duas alternativas igualmente legítimas - poderá eleger, dentre elas, a que lhe parecer mais adequada ou mais conveniente, aquela que lhe pareça mais justa, permitindo-lhe fazer a melhor justiça no caso concreto.

Ora, sabidamente, o sistema não confere a nossos magistrados qual quer margem, por menor que seja, de autêntica discricionariedade que lhe permita encontrar, na lei, aquelas duas ou mais alternativas, aqueles dois ou mais caminhos, legislativamente autorizados, que lhe permitis sem a eleição, inerente, como mostra CARNELUTTI, a todo ato verda deiramente decisório.

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Isto seria conceber o sistema jurídico como um organismo incompletamente formado, a ser complementado pela sentença. Em última análise, seria reconhecer - o que, de resto, todos os que lidam no fórum não ignoram - que o ato jurisdicional é, sim, discricionário, não sendo, portanto, apenas declaratório, enquanto ato puramente intelectivo, mas, ao contrário, formado também por um essencial componente volitivo. Esta é a diferença da chamaásijunsdição voluntária, que o sistema exclui do que considera jurisdicional, em virtude de ser atividade tipicamente discricionária, condição que a doutrina não admite que possa existir na jurisdição contenciosa, não obstante se tenha tornado hoje absolutamente impossível ocultar esta qualidade do ato jurisdicional contencioso, como acabou tendo de reconhecer KARL ENGISCH (Introdução ao pensamento jurídico, Cap. VI - como tivemos ensejo se mostrar em estudo publicado na revista Ajuris, v. 70, referindo-nos à introdução, em nosso sistema, das denominadas tutelas antecipatórias).

2.4 Formas de jurisdição

1. A jurisdição, como atividade específica de um dos ramos de poder do Estado, é essencialmente idêntica no modo pelo qual se desenvolve, qualquer que seja a espécie de órgão em que ela internamente se desdobre e a natureza do conflito a ser dirimido, não perdendo, assim, não obstante as múltiplas subdivisões que lhe são impostas, seu caráter unitário, no sentido de que as distinções que se verificam entre jurisdição civil e criminal ou ainda entre jurisdições especiais e jurisdição comum não se fundam em diversidade funcional, mas simplesmente em critérios de conveniência baseada na diversidade do objeto sobre o qual a mesma atividade jurisdicional deve operar (CALAMAN-DREI, Istituzioni di diritto processuale civile, § 21; J. FREDERICO MARQUES, lnstituições...,v. 2, n. 136; H. THEODORO JÚNIOR, Curso de direito processual civil, v. 1, n. 39).

Outra nota peculiar à jurisdição, capaz de confirmar que ela em verdade é una enquanto função do Estado, é a circunstância de ser o seu exercício soberano e exclusivo, qualquer que seja o órgão jurisdicional a que a lei haja conferido competência, ainda que este se encontre em posição de rigorosa inferioridade na escala hierárquica em que se dividem os órgãos do Poder Judiciário. Quando, por exemplo, as leis de organização judiciária de cada Estado federado, no Brasil, atribuem com-

petência a certos juizes integrantes do respectivo Poder Judiciário estadual, eles serão tão soberanos e sua competência será tão exclusiva quanto seria a competência do mais alto tribunal do País, de tal modo que nenhum órgão de hierarquia superior poderá privá-los da competência para conhecer e julgar aquele caso cujo julgamento a lei lhes confiara, ou a eles substituir nessa função.

Desta peculiaridade inerente ao poder jurisdicional decorre o princípio de que o juiz não está sujeito a subordinação hierárquica de qualquer espécie, não cabendo a nenhum tribunal superior interferir no exercício da atividade jurisdicional dos juizes que exerçam jurisdição de grau inferior. Esta característica, própria do Poder Judiciário, ao mesmo tempo em que assegura a absoluta independência dos juizes, não só perante os órgãos superiores da magistratura mas igualmente frente aos Poderes Executivo e Legislativo, realça o princípio do juiz natural, segundo o qual ninguém poderá ser privado do julgamento pelo juiz a que a própria Constituição haja outorgado competência para o caso (J. FREDERICO MARQUES, instituições..., v. 2, n. 78), sendo vedada a instituição de tribunais de exceção.

A Constituição Federal procura assegurar a independência dos juizes outorgando-lhes as três prerrogativas fundamentais, peculiares ao Poder Judiciário, inscritas no art. 95, segundo o qual os juizes, salvo restrições expressas constantes da própria Constituição, gozarão das seguintes garantias: a) vitaliciedade, não podendo o magistrado perder o cargo senão em virtude de sentença judiciária; b) inamovibilidade, segundo a qual nenhum magistrado poderá ser removido de uma circunscrição para outra, senão a seu próprio pedido, a não ser por motivo de interesse público, decidido pelo tribunal competente ou pelo órgão especial de tais tribunais, em escrutínio secreto e pelo voto de dois terços de seus membros, assegurando-se ao interessado a adequada possibilidade de defesa (art. 93, VIII); c) irredutibilidade de vencimentos, os quais, no entanto, sofrem a incidência dos impostos gerais, inclusive o imposto de renda, assim como dos impostos ditos extraordinários, cuja decretação é permitida à União pelo art. 22 da Constituição Federal, em casos de iminência de guerra externa, ou durante o desenvolvimento de tais conflitos.

2. Não obstante se considere una a jurisdição, no sentido que acaba de ser exposto, internamente subdivide-se ela em inúmeras espécies, seja em razão da hierarquia recursal, seja em atenção à natureza da lide. Tem-

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se, pois, segundo estes critérios, uma jurisdição federal ao lado da jurisdição ordinária, que é estadual; a jurisdição de juizes de grau inferior e a jurisdição dos tribunais ordinários dos Estados, além dos tribunais federais superiores; e a jurisdição do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, que, em princípio, são jurisdições extraordinárias e de cúpula em relação às instâncias ordinárias.

Uma das subdivisões da jurisdição, tradicional no direito brasileiro, é a que distingue em jurisdição civil e penal, sendo possível aos Estados, e à própria União, nos limites de suas respectivas competên-cias constitucionais, atribuir a juizes e tribunais especiais a competência exclusiva para o julgamento de cada uma destas espécies de conflitos. Deve-se, todavia, observar que a chamada jurisdição civil, no direito brasileiro, tem um alcance muito mais amplo do que aquele que lhe deveria corresponder se a expressão se ligasse ao direito civil, ou mesmo ao direito privado, aí compreendidos os ramos gerais da ciência jurídica, conhecidos como direito civil e direito comercial. Na verdade, considera-se jurisdição civil, no direito brasileiro, toda jurisdição não-criminal, ainda que os conflitos envolvam pessoas jurídicas de direito público e se qualifiquem como lides de direito constitucional, ou administrativo, uma vez que o Brasil, contrariamente ao que sucede nos países europeus, não possui, ao lado dos órgãos do Poder Judiciário, uma justiça administrativa, incumbida do julgamento dos conflitos entre a administração pública e os particulares, caso em que haveria não unidade mas dualidade da jurisdição (ATHOS GUSMÃO CARNEIRO, Jurisdição e competência, n. 26).

2.5 Função do Poder Judiciário

A função precípua do Poder Judiciário, como decorre de sua própria destinação constitucional, como um dos ramos do poder do Estado, é assegurar a aplicação do direito objetivo, exercendo a atividade juris-dicional. Além desta função específica, porém, competem também aos órgãos do Poder Judiciário determinadas funções secundárias de natureza administrativa ou de autogoverno e, em certas circunstâncias, o exercício de funções chamadas anómalas (cf. J. FREDERICO MARQUES, Instituições..., v. 2, n. 68).

As atribuições de autogoverno que a Constituição e as leis reconhecem ao Poder Judiciário, por meio das quais compete aos tribu-

nais a organização administrativa de seus próprios serviços, são-lhe conferidas para assegurar a independência política de seus juizes, tornando o Poder Judiciário autónomo e independente dos outros poderes do Estado.

Dentre as funções consideradas anómalas, o Prof. J. FREDERICO MARQUES (ob. cit., n. 68) lembra a atribuição aos juizes de duas funções especiais que nada têm a ver com a função jurisdicional, por eles exercidas de forma esporádica: a) o exercício da atividade disciplinar que caberia à Ordem dos Advogados do Brasil, quanto ao desempenho profissional dos advogados, nas comarcas onde não haja órgão especial da classe; b) a remessa ao Procurador-Geral de Justiça dos autos do inquérito policial quando o Promotor de Justiça se houver recusado a oferecer a denúncia (art 28 do CPP).

2.6 Organização judiciária e competência

2.6.1 Distribuição constitucional da competência

Dissemos, pouco antes, ao examinar a jurisdição como função de Estado, que ela é una enquanto atividade específica atribuída ao Poder Judiciário. Não obstante essa unidade e identidade da respectiva atividade funcional, o exercício efetivo e concreto da função jurisdicional é atribuída internamente pelo Poder Judiciário, segundo a competência que a própria Constituição Federal e as leis de organização judiciária de cada Estado e da União conferem a seus juizes e tribunais superiores. Costuma-se dizer, para definir a competência, que a jurisdição é o poder de julgar, conferido aos juizes e tribunais, e que a competência é a medida da jurisdição, vale dizer, a porção dela atribuída pela lei a cada magistrado, ou aos tribunais colegiados, ou a porções fracionárias destes, para apreciar e julgar determinada causa (MATTIROLO, Trattato di diritto giudiziario civile, v. 1, p. 9; J. I. RAMALHO, Practica civil e comercial, p. 27; MANUEL PELAEZ DEL ROSAL, La competência territorial en el proceso civil, p. 42; ATHOS GUSMÃO CARNEIRO, Jurisdição e competência, n. 41).

Como observa FREDERICO MARQUES (Instituições..., v. 1, n. 159), a distribuição da competência pelos vários órgãos que formam o Poder Judiciário é um imperativo decorrente da divisão do trabalho.

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A distribuição da competência é feita originariamente pela Constituição Federa], que estabelece a respeito o seguinte:

Art. 92. São órgãos do Poder Judiciário: I - o Supremo Tribunal Federal; II - o Superior Tribunal de Justiça; III - os Tribunais Regionais Federais e Juizes Federais; IV - os Tribunais e Juizes do Trabalho; V - os Tribunais e Juizes Eleitorais; VI - os Tribunais e Juizes Militares; VII - os Tribunais e Juizes dos Estados e do Distrito Federal e

Territórios. A não ser o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de

Justiça, que apenas em certas demandas funcionam como corte de justiça ordinária, tendo como destinação específica preservar a unidade e a observância do direito federal, os demais tribunais superiores são órgãos de segundo grau de jurisdição, com competência para o reexame, em grau de recurso ordinário, das decisões e sentenças proferidas pelos magistrados de grau inferior. A competência que o Tribunal Federal de Recursos, extinto pela Constituição de 1988, desempenhava como segunda instância ordinária agora é exercida pelos Tribunais Regionais Federais, que, instalados em algumas capitais dos Estados, exercem sua jurisdição sobre a respectiva região em que se encontram, conforme o território e sede fixados peio antigo Tribunal Federal de Recursos, como dispõe o art. 27, § 6.°, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, baixado com a Constituição Federal.

A justiça estadual, organizada pelos Estados que compõem a federação brasileira, é integrada por Tribunais de Justiça e por juizes inferiores. A anterior Constituição Federal, em seu art. 144, § 1.°, autorizara os Estados a criar "tribunais inferiores de segunda instância", mediante proposta do respectivo Tribunal de Justiça. Com base nesse dispositivo constitucional, foram criados Tribunais de Alçada em São Paulo, Minas Gerais, Paraná, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, dos quais os dois últimos foram extintos. A Constituição em vigor autoriza a União e os Estados a criar, em suas respectivas jurisdições, "juizados especiais", providos por juizes togados, ou togados e leigos, competentes para a conciliação, julgamento e a respectiva execução de causas

cíveis "de menor complexidade", assim como infrações penais "de menor potencial ofensivo", bem como justiça de paz, composta por cidadãos eleitos pelo voto direto, universal e secreto, com mandato de quatro anos e competência para, na forma da lei, celebrar casamentos, verificando, de ofício ou mediante impugnação dos interessados, o processo de habilitação, exercendo, além disso, as atribuições conciliatórias, sem caráter jurisdicional, e outras atribuições que a lei lhe confira (art. 98). Foi mantida, pela Constituição de 1988, a Justiça Militar, que os Estados, mediante proposta do Tribunal de Justiça, poderão instituir, formada por Conselhos de Justiça e Tribunais de Justiça Militar, como órgãos, respectivamente, de primeiro e segundo graus, desde que os efe-tivos de suas polícias militares sejam superiores a vinte mil integrantes, cabendo a esta justiça especial o processo e julgamento dos policiais militares e bombeiros militares, nos crimes militares, definidos em lei (art. 125, §§ 3.° e 4.°). E o art. 126 da Carta Constitucional permite que os Tribunais de Justiça designem juizes de entrância especial para dirimir "conflitos fundiários", assim considerados os que digam respeito a "questões agrárias".

Com a promulgação da Lei federal 7.244, de 7 de novembro de 1984, que dispunha sobre a criação e funcionamento dos Juizados Especiais de Pequenas Causas, ficaram os Estados autorizados a criar, em seus respectivos territórios, como unidades jurisdicionais autónomas, tais juizados especiais sob forma de varas, com competência para o processo e julgamento das causas de reduzido valor económico. Esta lei foi revogada pela lei que instituiu os Juizados Especiais.

Com a promulgação da Lei 9.099, de 26 de setembro de 1995, foram criados, segundo os mesmos princípios que haviam inspirado os Juizados de Pequenas Causas, os chamados Juizados Especiais, tanto no âmbito da jurisdição civil quanto no da criminal, com competência para conciliação e julgamento, no campo da jurisdição civil, das causas cujo valor não exceda a sessenta vezes o salário mínimo, as enumeradas no art. 275, II, do CPC, bem como as ações de despejo para uso próprio e as possessórias sobre bens imóveis cujo valor não exceda a quarenta salários mínimos.

Ficam, porém, excluídas dessa competência, independentemente do respectivo valor, as causas de natureza alimentar, falimentar, fiscal e as demais de interesse da Fazenda Pública, bem como as relativas a acidentes de trabalho, a resíduos e ao estado e capacidade das pessoas, ainda que de cunho patrimonial.

Estas justiças especiais, para as causas de reduzida expressão económica, inspiradas na experiênciade outros povos, particularmente nas Small Claims Courts,

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existentes nos Estados Unidos da América, foram sugeridas pela lei federal, cabendo aos Estados criá-las ou não, segundo seus próprios critérios de conveniência, numa tentativa de introduzir no Brasil uma forma de justiça alternativa, despida do formalismo próprio das cortes de justiça ordinária, e de índole mais participativa e menos profissionalizada e burocrática, através da convocação de juizes não integrantes dos quadros do Poder Judiciário, e com o nítido sentido de justiça conciliadora, menos técnica e mais democrática.

Estes Juizados Especiais, cuja criação foi autorizada pela aludida lei federal, foram inspirados na experiência pioneira levada a efeito pela Associação dos Juizes do Rio Grande do Sul (Ajuris).

2.6.2 Distribuição interna da competência

A distribuição interna da competência, entre órgãos judiciários inferiores e tribunais superiores, tem por fim o controle de legalidade das decisões e o interesse tanto do Estado quanto dos cidadãos na obtenção de sentenças adequadas e justas. Já a distribuição da competência em razão da natureza da lide, ou a distribuição dela por dois ou mais juizes com competência equivalente, obedece a outras finalidades. Aqui, a distribuição da competência ou se dá com o propósito de criação de órgãos jurisdicionais especializados, para o processo e julgamento de certos e determinados conflitos, como ocorre com as justiças especiais do trabalho, eleitoral e militar, ou se dá entre juizes de igual hierarquia e a quem as leis de organização judiciária hajam conferido atribuições da mesma natureza, apenas tendo em vista o grande volume de feitos da mesma espécie porventura existentes numa mesma circunscrição judiciária. São os casos das varas especializadas ou distritais, existentes nas grandes cidades.

Assim, por exemplo, a cidade de São Paulo possuía 30 varas cíveis em 1984 (cf. CINTRA-GRINOVER-DINAMARCO, Teoria geral do processo, p. 149) e Porto Alegre, 16, nessa mesma época, todas com idêntica competência, a ser fixada através da distribuição dos feitos (art. 251 do CPC), além das varas distritais.

A distribuição destas competências é feita pela lei segundo alguns critérios fundamentais, minuciosamente prescritos nos arts. 86 a 124 do CPC, além, naturalmente, dos princípios estruturais constantes da própria Constituição Federal e das regras deixadas pelo legislador federal à competência dos Estados e constantes de seus respectivos códigos de organização judiciária.

2.6.3 Competência internacional da justiça brasileira

A quem necessite, perante o direito brasileiro, determinar a competência para o processo e julgamento de uma determinada causa de natureza civil, a primeira tarefa a ser realizada é a comprovação de que a jurisdição brasileira é efetivamente competente para tal causa, o que se faz consultando as disposições constantes dos arts. 88-90 do CPC, a respeito da chamada competência internacional.

2.6.4 Classificação das espécies de competência

Inúmeros são os critérios através dos quais se costuma classificar as espécies de competência. Vejamos alguns:

Competência absoluta e competência relativa. Segundo este critério, a competência é classificada tendo em vista a possibilidade de sua derrogação, ou não, pela vontade das partes. Segundo o art. 111 do CPC, a competência que a lei estabelece em razão da matéria e da hierarquia é inderrogável por convenção das partes, enquanto a competência estabelecida em razão do valor e do território poderá ser modificada por acordo das partes, que poderá eleger o foro onde haverão de ser propostas as ações correspondentes.

Nos casos de incompetência absoluta, tanto o juiz pode dar-se por incompetente independentemente de arguição formulada pela parte quanto esta estará dispensada de suscitar o incidente de arguição de incompetência através de petição separada, destinada a instruir um procedimento acessório ao processo principal e autónomo (arts. 307-311 do CPC), bastando que a parte argua a incompetência absoluta na própria contestação (art. 301,11).

Sendo caso de incompetência apenas relativa, fundada no valor da causa ou tendo por base o território (ratione loci), se a parte não suscitar a respectiva exceção (art. 304), ocorrerá a modificação da competência do juízo que, originariamente, fora incompetente e que terá sua competência prorrogada, por não haver o réu oposto a exceção declinatória do foro ou do juízo (art. 114).

Cabem dentro do conceito de competência territorial tanto a competência territorial - que é a genérica, conforme dispõe o art. 94 do CPC -quanto a competência determinada pela situação do imóvel, dita rei situe.

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estabelecida, segundo prescreve o art. 95, para as ações fundadas em direito real sobre imóveis. Este tipo de competência, no entanto, passa a ser regida pelos critérios da competência absoluta nas hipóteses mencionadas nesse artigo, ou seja, quando a causa versar sobre direito de propriedade, vizinhança, servidão, posse, divisão, demarcação e nunciação de obra nova.

São casos de competência absoluta: a) a competência em razão da matéria (ratione materiae), ou seja,

pela natureza da causa, e que tanto pode ser critério para determinação da justiça competente (justiça federal ou do trabalho ou militar, estadual ou eleitoral) quanto para estabelecer, depois de estabelecida a justiça com petente, o juiz ou tribunal a que tenha sido conferida a respectiva compe tência para a causa. Neste último caso, é o que acontece com os chama dos juízos privativos. Assim, em comarcas de grande movimento foren se, as leis de organização judiciária podem criar varas com competência exclusiva, por exemplo, para o processo e julgamento das causas cíveis ou criminais, para os processos oriundos do direito de família e suces sões, para os acidentes de trânsito etc;

b) a competência em razão da pessoa (ratione personae), como acontece, por exemplo, com a própria justiça federal, cuja competência se determina em virtude da presença da União Federal como parte, ou como interessada no feito. Na esfera da justiça estadual, pelo menos em muitas capitais dos Estados, também existem varas especiais com a com petência exclusiva para o processo e julgamento dos feitos em que o Estado e suas autarquias sejam partes, conforme dispõe, para o Rio Gran de do Sul, o art. 84 do Coje;

c) a competência funcional, que tanto pode estabelecer-se no plano horizontal quanto no plano vertical (ATHOS GUSMÃO CARNEIRO, Jurisdição e competência, p. 60). Em verdade, a chamada competência funcional é praticamente a mesma competência em razão da matéria e, quando se dá no sentido vertical, é chamada competência hierárquica, a não ser, neste último caso, quando a competência dos tribunais superio res seja originária e não uma competência recursal, como, por exemplo, a competência para o processo e julgamento para a açao rescisória, quan do se poderia dizer que o elemento preponderante para o estabelecimento da competência é mais funcional do que hierárquico.

A verdadeira competência funcional, no sentido indicado pelos processua-listas italianos (CHIOVENDA. Instituições.... v. 2. n 173: M. T. ZANZUCCHI.

Diritto processuale civile, v. 1, n. 67), deve corresponder à competência atribuída a órgãos jurisdicionais diferentes para conhecer de certas fases de um mesmo processo, tal como acontece, por exemplo, nos sistemas jurídicos que possuam juizes preparadores e como sucede em nosso processo penal nos crimes de competência do Júri, cujas fases procedimentais são da competência do juiz singular e do próprio Júri de modo exclusivo. ZANZUCCHI (ob. loc. cits.), como observa J. FREDERICO MARQUES (Instituições..., v. 2, p. 168), considera também como uma espécie de competência funcional a competência territorial inderrogável, estabelecida segundo critérios de interesses superiores.

A. A. LOPES DA COSTA (Direito processual civil, v. 1, n. 336), confirmando o que há pouco dissemos sobre a identidade entre os critérios de classificação da competência em funcional e hierárquica, considerava funcional a competência do juiz do recurso.

A competência relativa, prorrogável, só decretável quando o réu a suscita por meio da respectiva exceção, como vimos, pode corresponder a uma competência fixada em razão do valor ou do território ou, ainda, em certos casos, quando ela se determina pela situação do imóvel (rei sitae).

A competência em razão do valor, antes tida por absoluta, hoje é considerada relativa, especialmente podendo prorrogar-se quando haja conexão de causas (J. FREDERICO MARQUES, Instituições..., v. 2, n. 242), ao menos no sentido "do mais para o menos", ou seja, o juiz que possua competência para causas de valor mais elevado poderá conhecer das causas de menor valor, não sendo possível, no entanto, prorrogar-se a competência do juiz de alçada inferior para o julgamento das causas que excedam o valor da respectiva alçada (cf. ATHOS GUSMÃO CARNEIRO, Jurisdição e competência, p. 59).

A competência pelo valor da causa serve, às vezes, para determinar a competência dos tribunais superiores e dos juizes temporários, e agora também como critério de atribuição de competência para os Juizados Especiais Cíveis, regulados pela Lei 9.099, de 26 de setembro de 1995.

Modificação da competência. Os casos chamados de modificação da competência devem também ser considerados como critérios para sua determinação. Assim, por exemplo, nos casos em que haja conexão de causas, o juiz que originariamente seria incompetente passará a ter sua competência prorrogada, sendo-lhe atribuído o po-

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der de julgar tanto a causa originária quanto a causa a ela conexa (arts. 102 e 105 do CPC).

Outro critério de fixação de competência é a chamada prevenção. Havendo dois ou mais juizes com idêntica competência para a mesma causa, terá a jurisdição preventa aquele juiz originariamente competente, como os demais, que primeiro despachá-la; da mesma forma, nos casos de demandas conexas que tramitem perante juizes diferentes, a competência se determinará pelo critério de prevenção, ou seja, a reunião das causas se dará perante o juiz que primeiramente houver despachado numa das causas conexas (art. 106).

PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS DO PROCESSO CIVIL

SUMARIO: 3.1 Princípio dispositivo - 3.2 Princípio de demanda - 3.3 Princípio da oralidade - 3.4 Princípio de imediatidade - 3.5 Princípio da identidade física do juiz - 3.6 Princípio de concentração - 3.7 Princípio da irrecorribilidade das interlocutórias - 3.8 Princípio do livre convencimento do juiz - 3.9 Princípio da bilateralidade da audiência - 3.10 Princípio de verossimilhança.

A doutrina processual costuma indicar certos princípios informadores do direito processual que, com maior ou menor intensidade, ocorrem em todos os sistemas legislativos e servem para auxiliar-nos na classificação e avaliação de cada um deles, indicando-nos os respectivos pressupostos doutrinários em que eles se alicerçam e suas tendências mais marcantes. Vejamos a natureza de alguns deles e como esses princípios podem obter expressão legislativa.

3.1 Princípio dispositivo

Segundo este princípio, o juiz deve julgar a causa com base nos fatos alegados e provados pelas partes (iudex iudicare debet allegata et probata partium), sendo-lhe vedada a busca de fatos não alegados e cuja prova não tenha sido postulada pelas partes. Tal princípio vincula duplamente o juiz aos fatos alegados, impedindo-o de decidir a causa com base em fatos que as partes não hajam afirmado e obrigando-o a considerar a situação de fato afirmada por todas as partes como verdadeira (CARNE-LUTTI, La prueha civil. p. 9). Assim, se o autog fundado num contrato

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de mútuo, promove uma ação de cobrança contra o devedor e este não contesta a existência do contrato, mas simplesmente alega já haver pago a dívida, ou que a mesma está prescrita, ao juiz não é dado ter o contrato de mútuo por inexistente.

Ao princípio dispositivo costuma-se contrapor o chamado princípio inquisitório, segundo o qual compete ao juiz o poder de iniciativa probatória, para a determinação dos fatos postos pela parte como fundamento de sua demanda.

Esses princípios não ocorrem de modo exclusivo em nenhum sistema processual, sendo normal que o legislador de ambos se utilize, dando prevalência ora a um deles ora a outro. Dessa forma, mesmo naqueles sistemas mais comprometidos com o princípio dispositivo, onde o juiz tenha limitados poderes de iniciativa probatória, encontram-se exemplos de aplicação do princípio inquisitório. Nas demandas que versem sobre direitos indisponíveis, tais como as chamadas ações matrimoniais, a lei confere ao juiz amplos poderes para a investigação dos fatos da causa, tornando-se sensivelmente atenuado o princípio da disponibilidade pelas partes do material probatório. Numa ação desse género, digamos uma ação em que o autor alega algum vício que torne anulável o casamento, para demandar que o juiz o desfaça com base em tal defeito, mesmo que a outra parte nada oponha quanto à existência do alegado vício o julgador não ficará, de modo algum, adstrito a esse fato, podendo de sua própria iniciativa ordenar toda sorte de provas que lhe pareçam indicadas para a descoberta da verdade dos fatos articulados na causa, devendo rejeitar a demanda se não for convencido da existência do questionado defeito capaz de invalidar o casamento, mesmo que ambas as partes o afirmem existente.

No direito brasileiro, pode-se dizer que ainda vigora o princípio dispositivo como regra fundamental, ou como simples princípio diretivo, sujeito, porém, a severas limitações previstas pelo legislador em inúmeros dispositivos legais que o abrandam consideravelmente, outorgando ao juiz uma apreciável faculdade de iniciativa probatória, o que, aliás, como observa CAPPELLETTI (Iniciativa probatória dei juez y bases prejurídicas de Ia estructura dei proceso, La oralidad y Ias pruebas en el proceso civil nel diritto comparato, p. 118), apenas demonstra que o princípio dispositivo, tal como a doutrina o descreve, jamais foi observado historicamente como uma norma absoluta.

A regra fundamental, em direito probatório, que confere expressão legal ao princípio dispositivo está no art. 333 do CPC, segundo o qual o ónus da prova incumbe às partes, cabendo ao autor a prova do fato constitutivo de seu direito e ao réu a prova da existência de algum fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor.

Tal princípio, porém, é afastado em inúmeras hipóteses nas quais o juiz não fica na dependência da iniciativa das partes na investigação dos dados da causa. Eis algumas delas: a) o juiz, segundo dispõe o art. 342, pode, de ofício, em qualquer estado do processo, determinar o compare-cimento pessoal das partes, a fim de interrogá-las sobre os fatos da causa; b) sempre que não haja normas jurídicas particulares, o juiz aplicará as regras de experiência comum subministradas pela observação do que ordinariamente acontece e as próprias regras de experiência técnica, independentemente de qualquer iniciativa probatória das partes (art. 335); c) o juiz pode, também de ofício, ordenar a exibição parcial de livros e documentos (art. 382); d) igualmente de ofício, pode o juiz inspecionar as pessoas ou coisas, para esclarecer algum fato que interesse à decisão da causa (art. 440); e) o juiz pode ordenar a inquirição de testemunhas referidas nas declarações das partes ou de alguma testemunha (art. 418, II); e f) finalmente, há a limitação fundamental ao princípio dispositivo contida no art. 262, que adota o princípio do impulso oficial, segundo o qual, embora o processo só comece por iniciativa da parte, desenvolve- se por impulso oficial, e as dispostas nos arts. 130 e 131, que outorgam amplo poder ao juiz na determinação e avaliação da prova.

3.2 Princípio de demanda

De um modo geral, não se faz distinção entre o princípio dispositivo e o chamado princípio de demanda. A distinção, porém, é relevante. O primeiro deles diz respeito ao poder que as partes têm de dispor da causa, seja deixando de alegar ou provar fatos a ela pertinentes, seja desinteressando-se do andamento do processo.

Como LIEBMAN observou (Fondamento dei principio dispositivo, Problemi dei processo civile, p. 15), a razão fundamental que legitima o princípio dispositivo é a preservação da imparcialidade do juiz, pressuposto lógico do próprio conceito de jurisdição. Dificilmente teria o julgador condições de manter-se completamente isento e imparcial, se a lei lhe conferisse plenos poderes de iniciativa probatória, pois.

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à medida que o magistrado abandonasse a condição de imparcialidade que a função jurisdicional pressupõe, para envolver-se na busca e determinação dos fatos da causa, de cuja prova a parte se haja desinteressado, certamente ele poderia correr o risco de comprometer a própria imparcialidade e isenção.

Enquanto o princípio dispositivo diz respeito aos poderes das partes em relação a uma causa determinada, posta sob julgamento, o princípio de demanda refere-se ao alcance da própria atividade jurisdicional. O primeiro corresponde à determinação dos limites dentro dos quais se há de mover o juiz, para o cumprimento de sua função jurisdicional, e até que ponto há de ficar ele na dependência da iniciativa das partes na condução da causa e na busca do material formador de seu convencimento; ao contrário, o princípio de demanda baseia-se no pressuposto da disponibilidade não da causa posta sob julgamento, mas do próprio direito subjetivo das partes, segundo a regra básica de que ao titular do direito caberá decidir livremente se o exercerá ou deixará de exercê-lo.

A compulsoriedade de exercício de uma faculdade legal ou de um direito subjetivo contradiz o próprio conceito de direito. Ninguém pode ser obrigado a exercer os direitos que porventura lhe caibam, assim como ninguém deve ser compelido, contra a própria vontade, a defendê-los em juízo. Desse pressuposto decorre o princípio de que nenhum juiz prestará tutela júrisdicional senão quando a parte ou o interessado a requerer, nos casos e forma legais, inscrito no art. 2.° do CPC. Se alguém, sendo credor de cem, pede que o juiz condene seu devedor a pagar-lhe apenas oitenta, por mais convencido que o magistrado esteja de que o autor realmente deveria receber os cem de que era credor, nunca poderá condenar o réu a pagar-lhe mais do que os oitenta pedidos na ação. De igual modo, se o -autor de uma ação de reivindicação deixar de cumular ao pedido de restituição da coisa o pedido de condenação do possuidor injusto a inde-nizar-lhe perdas e danos, o juiz jamais poderá incluir em sua sentença esta condenação não cumulada pelo demandante em seu pedido inicial.

O Código de Processo Civil, em diversas disposições, acolhe o princípio de demanda. Além do art. 2.° acima indicado, no art. 128 volta o legislador a referir-se ao mesmo princípio, ao declarar que o juiz há de ficar sempre adstrito ao pedido do autor, decidindo a lide nos limites em que ela haja sido proposta, sendo-lhe defeso conhecer de questões não suscitadas, a cujo respeito a lei exija a iniciativa da parte; no art. 294, dispõe o Código sobre a vedação de novos pedidos depois

da citação do réu, determinando que os mesmos só possam ser formulados em demanda distinta; finalmente, o art. 460 declara ser vedado ao juiz proferir sentença, a favor do autor, de natureza diversa da pedida, bem como condenar o réu em quantidade superior ou em objeto diverso do que lhe foi demandado.

Pelo denominado princípio de demanda, o juiz fica limitado aos pedidos formulados pelas partes, ao passo que pelo princípio dispositivo o juiz fica contingenciado pela iniciativa das partes quanto ao modo de condução da causa e quanto aos meios de obtenção dos fatos pertinentes a essa determinada lide. O princípio de demanda responde à questão sobre que lide demandar?, enquanto o princípio dispositivo atende a estas duas questões bem distintas: escolhida a demanda sobre a qual as partes haverão de litigar, indaga-se: por que forma o farão e com que meios probatórios demonstrarão a existência dos fatos referentes a tal controvérsia? O primeiro princípio preserva a soberania das partes na determinação das ações sobre as quais elas pretendam litigar, ao passo que o outro - uma vez já determinadas as causas sobre que há de versar o litígio - define e limita o poder de iniciativa do juiz com relação a essas causas efetivamente ajuizadas pelas partes, no que respeita à condução do processo e à coleta do material probatório.

Ao contrário do que acontece com o princípio dispositivo, que jamais se apresenta, num determinado sistema processual, como pressuposto exclusivo de todo o ordenamento jurídico, o princípio de demanda só muito raramente admite exceções ou algum abrandamento. Em nosso sistema, como de resto também nos demais a que o brasileiro mais dire-tamente se liga, pode-se afirmar que a quebra do princípio é raríssima, podendo-se dizer que a única exceção conhecida de procedimento ex officio, no qual o juiz pode dar início ao procedimento independentemente do pedido da parte, é a possibilidade de declaração da falência contra o devedor concordatário quando o pedido de concordata preventiva ressinta-se de algum defeito que a lei considera grave, de modo a impossibilitar a concessão desse privilégio. A não ser essa, as outras possíveis exceções ao princípio de demanda dizem respeito a casos de jurisdição voluntária, cujo caráter jurisdicional, aliás, é posto em dúvida pela grande maioria dos processualistas brasileiros.

Aqui poderiam ser mencionadas pelo menos mais duas hipóteses em que estariam configuradas exceções ao princípio de demanda, que são a faculdade

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que o juiz tem de ordenar, de ofício, que se inicie o processo de inventário e partilha, quando nenhuma das pessoas legitimadas a fazê-lo o tenha requerido no prazo legal (art. 989 do CPC); e, já fora do campo do processo civil stricto sensu, a execução trabalhista, também capaz de ser iniciada de ofício pelo juiz (art. 878 da CLT). Em ambos os casos, porém, a quebra do princípio é mais aparente que real. Na hipótese do processo de inventário e partilha, pode-se objetar que tal procedimento, na verdade, pertence ao campo da jurisdição voluntária, como muitos sustentam, sendo imprópria a inclusão dele nos processos especiais de jurisdição contenciosa; no que respeita à execução trabalhista, não seria impossível sustentar-se a tese de que a demanda executória já estava imanente no pedido inicial do processo de conhecimento, tendo ocorrido, no direito do trabalho, uma transformação geral das demandas condenatórias em demandas executivas, de tal modo que o acolhimento do pedido formulado pelo autor implique, desde logo, na concessão da ordem de execução imediata, como, de resto, acontece seguidamente no campo da jurisdição civil, com as ações ditas executivas lato sensu e mandamentais.

3.3 Princípio da oralidade

Conforme prevaleça o uso da comunicação oral ou escrita, no que se refere às alegações das partes e na apresentação das provas, diz-se de um determinado ordenamento processual que ele é de tipo oral ou escrito. Pelo princípio da oralidade, as alegações das partes só possuem eficácia quando formuladas oralmente perante o magistrado que haverá de julgar a causa; ao contrário, o princípio da escritura exige que as alegações e declarações das partes sejam feitas por escrito, devendo o juiz julgar a causa com base nos elementos que se encontrem registrados por escrito nos autos: o que não consta dos autos não tem a menor relevância e não pode fundamentar a decisão (quodnon est in actis non est in mundo).

Na verdade, como ensina CHIOVENDA - o principal defensor do princípio da oralidade -, esse nome foi adotado para satisfazer a necessidade de exprimir-se com uma fórmula simples e representativa um complexo de ideias e princípios que, embora sejam perfeitamente identificáveis e autónomos, são entre si ligados por um propósito comum {Instituições..., v. 3, § 309).

A prevalência da palavra falada como meio de expressão, ao invés da escrita, é uma proposição que, em si mesma, nada representa, tendo apenas relevância para o processo à medida que. sendo empregada como

instrumento para a comunicação entre o juiz e as partes, força necessariamente um contato pessoal entre o julgador e os litigantes, tornando possível ao juiz uma apreensão imediata do litígio, em sua versão original e autêntica, que lhe transmitem de viva voz os próprios contendores, dando-lhe, igualmente, o ensejo de presidir a coleta do material probatório com base no qual haverá de fundamentar a futura decisão, tendo um contato direto e pessoal com as partes e com as testemunhas, podendo, assim, avaliar-lhes a credibilidade das informações prestadas em juízo, certamente com muito maior segurança do que teria o julgador que apenas recebesse essa prova reduzida a um simples registro mecânico constante do processo, que, seguidamente, lhe chegaria às mãos muito tempo depois de prestado o depoimento.

CHIOVENDA (Instituições..., v. 3, p. 47), procurando destacar a superioridade da comunicação oral sobre a forma escrita, refere a seguinte passagem com que JEREMY BENTHAM, o eminente jurista inglês do século XVIII, combatia o processo escrito: "Não pode o juiz conhecer por suas próprias observações esses caracteres de verdade tão relevantes e tão naturais que se manifestam na fisionomia, no som da voz, na firmeza, na prontidão, nas emoções de medo, na simplicidade da inocência, no embaraço da má-fé; pode-se dizer que ele cerrou a si próprio o livro da natureza, e que se tornou cego e surdo em casos nos quais é necessário tudo ver e tudo ouvir...".

Por essa sumária exposição, já se pode ver que a oralidade pressupõe um outro requisito, sem o qual ela nem seria imaginável, que é o chamado princípio da imediação, ou da imediatidade entre o juiz e as partes e entre o juiz e as provas. Para facilitar a compreensão do que se entende por principio da oralidade, devemos relacionar os demais princípios a ele vinculados e que formam aquele complexo de ideias e princípios a que se refere CHIOVENDA, que o tornam praticável e lhe dão significação e relevância processual. São eles, além deste da predominância da palavra falada, que seria verdadeiramente o núcleo do princípio, os que se seguem.

3.4 Princípio de imediatidade

Este princípio é tão indispensável à oralidade que nem mesmo seria possível imaginar-se processo oral sem o contato direto e pessoal do juiz com as partes. Este princípio exige que o juiz que deverá julgar a causa

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haja assistido à produção das provas, em contato pessoal com as testemunhas, com os peritos e com as próprias partes, a quem deve ouvir, para recepção de depoimento formal e para simples esclarecimento sobre pontos relevantes de suas divergências.

3.5 Princípio da identidade física do juiz

Os dois primeiros princípios, o da oralidade e o da imediatidade entre o juiz e as partes, ainda necessitam de um outro que lhes dá consistência e os torna efetivos. É o princípio segundo o qual o mesmo juiz que haja presidido a instrução da causa há de ser o juiz da sentença. Ora, se a oralidade, como se viu, tem por fim capacitar o julgador para uma avaliação pessoal e direta não só do litígio mas da forma como as partes procuram prová-lo no processo, não teria sentido que o juiz a quem incumbisse prolatar a sentença fosse outra pessoa, diversa daquela que tivera esse contato pessoal com a causa.

3.6 Princípio de concentração

Para que a oralidade, representada por esse contato pessoal do julgador com a causa, surta todos os seus benéficos efeitos, torna-se necessária a redução de toda a instrução processual a um número mínimo de audiências, se possível a uma única audiência, onde se façam, desde logo, a instrução da causa e seu julgamento. A proximidade temporal entre aquilo que o juiz apreendeu, por sua observação pessoal, e o momento em que deverá avaliá-lo na sentença é elemento decisivo para a preservação das vantagens do princípio, pois um intervalo de tempo excessivo entre a audiência e o julgamento certamente tornará difícil ao julgador conservar, com nitidez, na memória os elementos que o tenham impressionado na recepção da prova, fruto de sua observação pessoal, sujeita a desaparecer com o passar do tempo.

3.7 Princípio da irrecorribilidade das interlocutórias

Para tornar-se realmente efetivo o princípio da oralidade, à medida que ele se vincula com o princípio da concentração, toma-se necessário impedir, tanto quanto possível, as contínuas interrupções no andamento do processo motivadas pelos recursos opostos pelas partes

contra as decisões tomadas pelo juiz sobre os incidentes surgidos na tramitação da causa. Contra tais decisões, ditas interlocutórias, em nome da preservação do princípio da oralidade, ou não se concede recurso algum, ficando a matéria aí decidida imune à preclusão, de modo a ser apreciada eventualmente pelo tribunal do recurso interposto da sentença final, ou admite-se o recurso sem suspensão da causa, como acontece com o agravo de instrumento, que se processa sem prejuízo da tramitação do feito, podendo, no entanto, pela nova redação dada ao art. 527 do CPC, conceder, o relator do recurso, efeito suspensivo ao agravo de instrumento.

3.8 Princípio do livre convencimento do juiz

Na verdade, o próprio princípio da oralidade, que acabamos de dar como básico e determinante dos demais que depois dele foram expostos, só tem sentido, no direito moderno, como demonstrou amplamente CAPPELLETTI (La testimonianza...\ se com ele, e com os outros que lhe servem de suporte, se puder colocar o juiz em condição de avaliar livremente a prova que oralmente recebe, tirando dela, sem limitações técnicas, o próprio convencimento. A oralidade, em seu sentido contemporâneo, portanto, pressupõe, além de outras, a faculdade reconhecida ao julgador de livre e ampla apreciação da prova, sem as peias que o ordenamento processual lhe possa criar por meio de princípios limitadores de sua ampla investigação e convencimento. Em suma, não pode haver autêntica oralidade onde persistam as arcaicas limitações impostas pelo princípio da prova legal, de que decorre, em última análise, um convencimento não livre, mas imposto pela própria lei a que o julgador deve obediência. São resquícios atuais da limitação probatória derivada do princípio da prova legal as restrições que ainda persistem contra a prova testemunhal, considerada, às vezes, por disposição de lei, inidônea ou insuficiente para sustentar o convencimento do juiz.

Como mostra CAPPELLETTI, o sentido contemporâneo do princípio da oralidade exige o abandono de todas as limitações impostas à admissão e avaliação da prova testemunhal e a concomitante ampliação da faculdade de utilização, pelo juiz, da prova indiciaria. As próprias normas disciplinadoras do ónus da prova, que, em última análise, são regras de verdade formal limitadoras do livre convencimento (CAPPELLETTI, La testimonianza.... v. I. p. 177), hão de ser considera-

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das como restrições ao princípio da oralidade enquanto restritivas do livre convencimento que com a oralidade se busca.

3.9 Princípio da bilateralidade da audiência

O princípio da audiência bilateral, também conhecido como princípio do contraditório, é certamente o princípio cardeal para a determinação do próprio conceito de função jurisdicional. Como afirma ROBERT WYNESS MILLAR, em obra clássica sobre este assunto, o princípio da audiência bilateral (auditur et altera pars), absolutamente inseparável da função estatal de administração da justiça, existiu tanto no direito romano quanto no direito germânico primitivo (Los princípios formativos dei procedimiento civil, p. 47).

A história do princípio do contraditório confunde-se, em verdade, com a própria história do processo civil, desde o direito romano primitivo. Para assegurá-lo e torná-lo efetivo no processo, muitos institutos ainda hoje conservados foram postos em prática pelos antigos sistemas. Nossa atual concepção da tutela posses-sória, outorgada através dos interditos, e a função das provisões mais tarde transformadas em simples liminares do processo possessório tiveram primordialmente, no direito romano primitivo, a função de assegurar, ou ao menos provocar, a presença em juízo do demandado, como aconteceu com o interdictum quemfundum e com a própria actio ad exhibendum, outorgados pelo pretor romano como sanção contra o não compareci mento do réu na demanda reivindicatória (GIUSEPPE PROVERA, II principio dei contraddittorio nelprocesso civile romano, p. 2, nota 2). Todavia, se o princípio da audiência bilateral imprimiu características que o processo possessório ainda conserva, muito mais decisivo ele se mostra na formação do moderno conceito de tutela cautelar. Quem investiga, por exemplo, as origens do instituto do arresto, no direito medieval, logo notará a decisiva importância que essa medida, agora apenas cautelar, teve como instrumento de técnica processual concebido como um meio de forçar o compareci mento em juízo do demandado rebelde, necessário à formação bilateral da relação processual (consultar o que escrevemos em Doutrina e prática do arresto ou embargo, p. 9-37).

Em verdade, como afirmava um velho provérbio alemão, a alegação de um só homem não é alegação - o juiz deve ouvir a ambas as partes. Esta outra dimensão do princípio do contraditório - que o direito moderno ignora, pela submissão das ciências humanas à metodologia das ciências experimentais, com seu correspondente conceito de verdade científica - pressupõe que a audiência bilateral seja uma necessidade mais do julgador que propriamente da parte, o que. ante a contingência do conhecimento através de um juízo de simples verossimilhança, somente poderá alcançar um nível aceitável de segurança para o julgamento ouvindo os argumentos

e contra-argumentos das partes (sobre o conceito clássico de prova, consultar ALESSANDROGIULIANI,//conceito di prova -Contributo alia lógica giuridica).

O princípio do contraditório, ou a audiência bilateral, dá expressão a um princípio de natureza constitucional no direito brasileiro, que é o direito de defesa, ou direito ao devido processo legal, consubstanciado no art. 153, § 4.°, da Constituição Federal (CINTRA-GRINOVER-DI-NAMARCO, Teoria geral do processo, p. 26).

Também o princípio da bilateralidade da audiência sofre limitações, dentre as quais se pode indicar a possibilidade que o juiz tem de conceder liminares inaudita altera pars, como acontece, com maior frequência, no processo cautelar, sempre que a prévia audiência do demandado possa tornar ineficaz (rectius, ineficiente) o resultado da tutela jurisdicional final. Uma segunda ordem de restrições ao princípio do contraditório poderia ser encontrada nos casos em que o próprio demandado haja, previamente, renunciado a uma tal audiência, como se ele, através da assinatura de um documento com força de título executivo, admitisse a propositura contra si de um processo executório imediato (ROBERT W. MILLAR, ob. cit., p. 53).

O princípio do contraditório, por outro lado, implica um outro princípio fundamental, sem o qual ele nem sequer pode existir, que é o princípio da igualdade das partes na relação processual. Para a completa realização do princípio do contraditório, é mister que a lei assegure a efetiva igualdade das partes no processo, não bastando a formal e retórica igualdade de oportunidades. Da exigência deste requisito, como pressuposto de justiça material, decorrem todas as providências administrativas e processuais de representação e assistência aos pobres e carentes de recursos materiais, de modo a assegurar-lhes uma adequada e eficiente defesa judicial de seus direitos.

3.10 Princípio de verossimilhança

CALAMANDREI, em um de seus conhecidos ensaios (Verità e verosimiglianza nel processo civile, Opere giuridiche, v. 5. p. 616). refere a seguinte sentença de VOLTAIRE: "Les vérités historiques ne soni que cies probabilités". E esse relativismo das verdades históricas, hoje se sabe, é comum igualmente, em grande medida, às ciências naturais e até mesmo às denominadas ciências exatas. Como diz MIGUEL REALE. "muitas asserções que andam por aí como 'exatas' não passam de conje-

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turas inevitáveis, que seria melhor recebê-las e aplicá-las como tais, mesmo porque são elas que, feitas as contas, compõem o horizonte englobante da maioria de nossas convicções e atitudes" (Verdade e conjetura, p. 26).

Se isto pode ser dito das ciências em geral, que dizer da tentativa de atribuir-se ao processo civil a missão de descobrir ou estabelecer a verdade dos fatos sobre os quais ele opera? WACH, como aliás observa CALAMANDREI, já afirmava que a comprovação da verdade jamais poderá ser a finalidade do processo civil {Conferencias sobre Ia ordenan-za procesal civil alemana, p. 224).

O estabelecimento dos fatos, através das provas colhidas num determinado processo judicial e a convicção que sobre eles formamos, jamais poderá afastar a possibilidade de que o contrário possa ter ocorrido; a verdade dos fatos judiciais, em verdade, não passa de simples verossimi-lhança (WACH, Conferencias..., 241; CALAMANDREI, Verità..., p. 616).

Ora, o princípio de verossimilhança preside a atividade processual, tanto do juiz quanto, especialmente, dos litigantes que, como advertiu JAMES GOLDSCHMIDT, não podem contar, enquanto figurantes da relação processual, como partes, senão com expectativas a respeito de seus pretensos direitos.

Se a separação entre verdade e aparência é um fenómeno natural em todas as ciências, especialmente nas ciências sociais, não é menos verdade que nossa civilização urbana de massas haja tornado ainda mais profunda a distância entre a verdade e as simples aparências.

Tal e tão profunda tornou-se a complexidade da vida moderna e a inevitável desorientação quanto a valores a que ficam submetidos os indivíduos que um eminente sociólogo e filósofo do direito contemporâneo não vacilou em afirmar que a função primordial do processo é reduzir a complexidade das possíveis soluções comportamentais e orientar na escolha de alternativas legítimas (NIKLAS LUHMANN, Legitimação pelo procedimento).

O extraordinário prestígio que o princípio da boa-fé objetiva adquiriu no direito moderno outra coisa não é senão a tutela jurídica da aparência. E nem é por outro motivo que a proteção da aparência cresce e desenvolve-se em todos os setores do direito privado, protegendo-se cada vez mais aqueles que, de uma forma ou de outra, relacionam-se com o "herdeiro aparente", ou com o "credor aparente", ou "procurador aparente" (R. MOSCHELLA, Contributo alia teoria delVapparenza giuridica; KARL LARENZ, Derecho civil - Parte general. § 33).

O princípio de verossimilhança domina literalmente a ação judicial. É com base nele que o juiz profere a decisão de recebimento da petição inicial, dando curso à ação civil, assim como, igualmente baseado em critério de simples verossimilhança, emite todas as decisões interlocu-tórias e, eventualmente - nos casos em que nosso direito o permite -, profere sentenças liminares, provendo provisoriamente sobre o meritum causae, como nos interditos possessórios.

A importância que o princípio de verossimilhança desempenha em todo o direito probatório é decisiva, como teremos ensejo de ver (sobre isto, a percuciente observação do Prof. SALVATORE PATTI, Libero convincimento e valutazione delia prova, RDP, p. 481).

É este princípio, e a necessidade absoluta que a civilização moderna tornou imperiosa, de tratamento cada vez mais intenso e frequente dos litígios com base na aparência e na plausibilidade do direito obtidas com provas sumárias (prima facie), de que as liminares são apenas os exemplos mais notórios, o grande responsável pela decadência, sempre mais acentuada, do procedimento ordinário, com sua pretensiosa aspiração a alcançar a verdade definitiva dos fatos da causa.

Como tivemos ensejo de mostrar num breve ensaio recentemente publicado (Ajuris, v. 51), toda a ideologia formadora do denominado "processo de conhecimento" - com a pressuposta e necessária exclusão de qualquer forma de atividade executiva em seu interior - não apenas dá alicerce dogmático à ordinariedade, como, ao suprimir as sentenças liminares, já que para a doutrina e para nossa lei somente será sentença, contendo decisão sobre a causa, o ato final que encerre o litígio, dizendo o direito, acaba suprimindo também as mais importantes formas de demandas sumárias, que são precisamente aquelas em que - mediante a concessão de liminares - inverte-se o contraditório, conseguindo-se, com isso, a pronta satisfação, ainda que provisória, do direito posto em causa.

Como observou MICHELI (La carga de ia prueba, p. 203), os sistemas jurídicos da Europa continental, de origem romano-canônica, de onde provém o direito brasileiro - ao contrário do direito inglês -, impedem que o magistrado decida com base em prova obtida prima facie, dado que o próprio conceito de sentença é infenso à ideia de uma decisão (de mérito) provisória.

,0 compromisso de nosso direito com a ordinariedade tornou-se ainda mais radical no Código de 1973, com a drástica separação entre conhecimento e execução, visto que o intento do legislador, ao unificar os "meios executórios" num processo separado, foi consagrar a vedação de sentenças liminares, pois é sabido

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que as liminares apenas podem antecipar efeitos executivos ou mandamentais, coisa que se torna impossível em nosso Código, que não contém atividade de conhecimento e execução simultâneas. Foi o pressuposto da ordinariedade que fez com que o legislador tratasse como sendo interlocutónos todos os provimentos judiciais que não sejam o último por meio do qual se encerra o processo.

O que surpreende, em tudo isso, é que o reinado que se poderia imaginar absoluto, da ordinariedade - se tivéssemos os olhos voltados apenas para o Código de Processo Civil -, desaparece sempre que o legislador, através de leis especiais, mantidas fora do Código, pretende privilegiar determinados interesses, seja do próprio Estado, seja das demais manifestações de poder informal que gravitam em torno dele. Para tais formas especiais de tutela desaparece, como que por encanto, a laboriosa construção teórica que sustenta a separação radical entre conhecimento e execução, destinados a serem tratados em processos separados.

A "AÇÃO" NO DIREITO PROCESSUAL CONTEMPORÂNEO

SUMÁRIO: 4.1 Evolução do conceito de ação - 4.2 Direito subjetivo no plano do direito material - 4.3 Direito subjetivo no plano do direito processual - 4.4 Teoria civilista da ação - 4.5 Teoria do direito concreto de ação - 4.6 Teoria do direito abstrato de ação - 4.7 Teoria eclética da ação - 4.8 O conceito de condições da ação na teoria eclética - 4.9 Interesse atual do conceito de ação.

4.1 Evolução do conceito de ação

Não seria possível estabelecer o conceito de "ação" processual, no direito moderno, sem antes examinar, ainda que sumariamente, a longa história deste problema, a partir das primeiras cogitações formuladas na segunda metade do século XIX, tendo por fim demonstrar a autonomia do direito processual, como disciplina independente, relativamente ao direito material. Não se deve esquecer que toda a teorização sobre a autonomia da relação processual esteve sempre ligada ao conceito de "ação" processual.

Por outro lado, a história deste problema seria impossível se antes não se examinassem alguns conceitos referentes a categorias conexas com o conceito de ''ação" processual, tais como as categorias denominadas direito subjetivo, pretensão e ação de direito material. ..Seria supérfluo dizer que o direito subjetivo é uma categoria funda mental para a construção de qualquer doutrina jurídica, tanto no domínio do direito processual civil quanto no campo do direito material, especial mente do direito privado.

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Disse VON TUHR, reproduzindo, em linhas gerais, a definição clássica, ser o direito subjetivo a faculdade reconhecida à pessoa, pela ordem jurídica, em virtude da qual o sujeito exterioriza sua vontade, dentro de certos limites, para a consecução dos fins que a sua própria escolha determine.

Como se vê dessa definição, o elemento central para a determinação do conceito está na noção de direito subjetivo como poder da vontade de seu titular, ou seja, na faculdade que a ordem jurídica confere àqueles a quem outorga o direito subjetivo para torná-lo efetivo pelo exercício, ou para defendê-lo contra as eventuais agressões de terceiros, ou para exigir o seu reconhecimento e realização pelos órgãos públicos incumbidos de prestar jurisdição, ou, finalmente, para renunciá-lo.

A existência do direito subjetivo tem sido negada modernamente por inúmeras correntes de inspiração positivista, para as quais o dever jurídico imposto pela norma legal é que teria prioridade lógica sobre o chamado direito subjetivo, que, nesta perspectiva, não passaria de uma simples consequência do dever (NATALINO IRTI, Introduzione alio studio dei diritto privato, p. 60 e ss.). Como se sabe, esta orientação doutrinária inspira-se numa obra fundamental de AUGUST THON, intitulada Norma jurídica e direito subjetivo, surgida na Alemanha, em 1878. Na doutrina subsequente, HANS KELSEN foi sem dúvida quem, pela forma mais radical e coerente, negou a existência dos chamados direitos subje-tivos. Este eminente jusfilósofo austríaco, na verdade, ataca a validade do conceito de direito subjetivo a partir da noção de pessoa jurídica que, para ele, não passaria da "personificação de um complexo de normas jurídicas" {Teoria pura do direito, p. 265), de modo que o sujeito do direito desempenharia apenas a "função" de tornar efetivo, através de sua conduta, o propósito do legislador contido na norma jurídica.

Para o nosso estudo, todavia, não tem relevância esta controvérsia sobre a existência do chamado direito subjetivo. Basta-nos saber que, mesmo para aqueles que o negam, não desaparece o pressuposto de que a ordem jurídica, ao valer-se desta técnica de realização de seus próprios objetivos, atribui aos sujeitos de direito o poder de, através de sua conduta voluntária, tornar efetivo o enunciado contido na norma. Se este fenómeno corresponde a um direito ou a uma simples "função" atribuída aos sujeitos de direito, é problema que não interfere em nossa exposição.

Na perspectiva puramente dogmática de onde visualizamos esta questão, o direito subjetivo corresponde sem dúvida a uma técnica de que o legislador lança mão como uma forma de tornar efetivo o enunciado contido na norma jurídica. No plano dogmático, não pode haver

direito subjetivo anterior ao momento da positivação do direito. Se o legislador o cria ou apenas o revela, é problema que agora não nos compete resolver.

Destas breves considerações resultam duas consequências importantes: (a) sempre que a ordem jurídica atribui a alguém o que se denomina direito subjetivo, pela simples razão de eleger esta forma de tornar-se efetiva, confere a seu titular a faculdade de exercer o poder que a lei lhe concede, ou de não exercê-lo, sem que implique em violação da norma legal. Isto significa que a ninguém, senão ao titular, salvo os raríssimos casos de representação legal de incapazes, é permitido defender em juízo o direito de outrem; (b) tem absoluta importância para nosso tema uma outra conclusão que se pode tirar também das considerações anteriores: a de que o direito subjetivo é um status, uma categoria jurídica estática, ao contrário da ação, que pode ser esse próprio direito subjetivo em seu momento dinâmico de realização. Assim, pois, pode-se dizer que o proprietário é titular de seu domínio, ou o credor tem direito subjetivo de crédito, sem pressupor que esta posição jurídica de que goza o respectivo titular implique qualquer atividade de sua parte. Ambos gozam do estado de sujeitos de um poder que a ordem jurídica lhes confere, sem que nenhuma atividade lhes seja exigida para a configuração do direito subjetivo.

Temos, portanto, de evitar desde logo a frequente confusão que se faz entre "ação" e direito subjetivo público de invocar a tutela jurisdi-cional, ou de suscitar a atividade dos órgãos estatais encarregados de prestar esta atividade. A ação não é um direito subjetivo pela singela razão de ser ela própria a expressão dinâmica de um direito subjetivo público que lhe é anterior e no qual ela mesma se funda, para adquirir sua pressuposta legitimidade.

O conceito de "ação" processual assenta-se na premissa de existir, como um plus lógico, um direito público subjetivo que a precede, por meio do qual o Estado reconhece e outorga a seus jurisdicionados o poder de invocar proteção jurisdicional. Não se pode, portanto, confundir as duas categorias. Uma coisa será o direito subjetivo processual, por meio do qual a ordem jurídica reconhece a alguém o poder de tornar efetivo o direito através do exercício da "ação" processual. Outra, não o poder, mas b exercício efetivo desse direito, por meio da "ação".

Todavia, há ainda outras distinções a serem reveladas, para que se possa atingir finalmente o conceito de "ação" processual. Definindo-se o

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direito subjetivo como status jurídico de que goza seu titular, impõe-se distinguir as duas posições básicas que o sujeito do direito poderá assumir, em relação ao próprio direito e perante o titular do dever jurídico ou da obrigação. Em primeiro lugar, a existência do direito subjetivo não implica necessariamente a ideia de seu exercício. Em segundo lugar, poderá haver direito subjetivo sem que haja, ainda, ou não mais exista, a faculdade reconhecida ao titular de poder exigir a observância e realização de seu direito. A partir destas considerações, podemos distinguir entre direito subjetivo, exigibilidade, inerente ao direito subjetivo, e exigência efetiva exercida por seu titular para que o mesmo se realize.

Se sou titular de um crédito ainda não vencido, tenho já direito subjetivo, estou na posição de credor. Há o status que corresponde a tal categoria do direito das obrigações, porém ainda não disponho da faculdade de exigir que o devedor cumpra o dever correlato, satisfazendo meu direito de crédito. No momento em que ocorrer o vencimento, nascer-me-á uma nova faculdade de que meu direito subjetivo passará a dispor, qual seja o poder exigir que o devedor preste, satisfaça, cumpra a obrigação. Nesse momento, diz-se que o direito subjetivo - que já existia, embora se mantivesse em estado de latência - adquire dinamismo, ganhando uma nova potência a que se dá o nome de pretensão. Observe-se que a pretensão ainda é uma potência^ uma mera potencialidade de que o direito subjetivo se reveste, não implicando a ideia de exercício efetivo da pretensão, de tal modo que, examinando-se o direito subjetivo nesta perspectiva, devemos distinguir os dois momentos que lhe são inerentes, o da pura exigibilidade e o de sua exigência efetiva.

A partir do momento em que posso exigir o cumprimento do dever que incumbe ao sujeito passivo da relação jurídica, diz-se que o direito subjetivo está dotado de pretensão. Se, todavia, embora possa fazê-lo, deixo de exigir do obrigado o cumprimento de sua obrigação, terei, pelo decurso do tempo e por minha inércia, prescrita essa faculdade de exigir o pagamento, ou, de um modo geral, o cumprimento da obrigação. Haverá, a partir de então, direito subjetivo, porém não mais pretensão, e, consequentemente, não mais ação, que, como logo veremos, é um momento posterior na vida do direito subjetivo.

A confusão entre direito subjetivo e faculdade de exigir, isto é. a assimilação do direito à pretensão de direito material, a partir da premissa posta por AUGUST THON [Norma jurídica e direito subjetivo, p. 12) de que a norma jurídica estabe-

lece deveres e não direitos, e que o direito subjetivo corresponderia à tutela outorgada a seu titular, em caso de transgressão da norma, como se o direito fosse a tutela estatal e não a situação existencial que a condiciona e justifica, foram sem dúvida responsáveis pelo desaparecimento do conceito de pretensão e de ação de direito material da ciência processual moderna.

Temos, portanto, que existem, no campo do direito material, o direito subjetivo e a pretensão, que é faculdade de se poder exigir a satisfação do direito. Sendo assim, no campo do direito material, não se pode falar, como muitos fazem, de uma pretensão procedente, como se pudesse haver "direitos improcedentes" ou "pretensões improcedentes". O direito é ou não é, existe ou não existe, tal como a faculdade de exigir sua satisfação, que igualmente existe ou não existe. Procedência e improcedência, como veremos, são categorias de direito processual que correspondem ao resultado da investigação que no processo se faz para determinar justamente essa existência ou inexistência do direito e da pretensão. No plano do direito material, o direito existe e será sempre procedente quando invocado no processo; ou não existe e o resultado será a improcedência da demanda em que seu pretenso titular afirmara sua existência.

Verifica-se, então, que a ordem jurídica, o direito objetivo de um Estado, pode outorgar a condição de sujeito de direito a alguém, mas não lhe reconhecer ainda, ou já não mais lhe reconhecer, o poder de exigir a satisfação de tal direito. Neste caso, haverá o direito subjetivo e não haverá a pretensão de direito material. Certamente a hipótese de um direito subjetivo privado de pretensão é extremamente rara no direito moderno, pois na normalidade dos casos a todo direito corresponde uma pretensão, que não é um segundo direito, mas apenas uma nova virtualidade de que se reveste o próprio direito subjetivo. O direito a que se cortou a pretensão, tal como o direito cuja pretensão prescreveu, é um estado de titularidade absolutamente estático; a pretensão de direito material é que potencializa o direito subjetivo, dotando-o do dinamismo em virtude do qual o direito poderá realizar-se como consequência da exigência por seu titular.

Se em tais circunstâncias o titular do direito subjetivo exige do obrigado que satisfaça seu direito, cumprindo o dever que a norma legal lhe impõe, diz-se que o titular do direito subjetivo está a exercer pretensão, ou seja," passando do estado de exigibilidade para a exigência efetiva.

Temos, portanto, três fenómenos diferentes: o direito subjetivo, a pretensão de direito material, que são estados de que desfruta seu titu- F

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lar, e o exercício dessa faculdade de exigir, que não é mais um estado, mas o desenvolvimento de uma ação por parte do titular da pretensão. Contudo, ao exigir que o titular do dever jurídico (obrigado, lato sensu) se comporte de acordo com a norma e cumpra a obrigação, ainda não estará agindo para a realização de seu direito. Enquanto limito-me a exigir, ainda não ajo (PONTES DE MIRANDA, Tratado das ações, v. 1, § 6.°). A pretensão é meio para um fim, mas este fim, à medida que apenas exijo o cumprimento do dever jurídico, é obtido mediante uma conduta voluntária do obrigado. O exercício da pretensão, pois, ainda não realiza meu direito subjetivo, uma vez que sua satisfação ficará na dependência da ação do obrigado, prestando, cumprindo, satisfazendo a obrigação. O exigir, que é conteúdo da pretensão, não pode prescindir do agir voluntário do obrigado, ao passo que a ação de direito material - novo conceito de que ainda não tratamos - é um agir do titular do direito para sua realização, independentemente da vontade ou do comportamento do obrigado.

Na generalidade dos casos, o exercício da pretensão de direito material se dá fora do processo, e a satisfação do direito ocorre por ato ou omissão do obrigado, mas pode haver pretensão cujo atendimento não se dê senão quando a exigência se faça através de ação judicial, como a exigibilidade do divórcio, que é pretensão à desconstituição, como seria qualquer outra, mas que não poderá ser atendida fora do processo. Aliás, como se verá ao estudar as ações constitutivas, nos chamados direitos formativos - ditos também direitos potestativos - não há, no sentido técnico rigoroso, um autêntico dever jurídico do sujeito passivo, pois nesta espécie o obrigado sofre a ação do sujeito, mais propriamente do que presta, em cumprimento da obrigação.

Se, todavia, o titular da pretensão exige do obrigado a satisfação, e tal exigência torna-se infrutífera, porque o sujeito passivo viola o dever jurídico e o infringe, nasce ao titular da pretensão a ação de direito material, que é o agir - não mais o simples exigir - por meio do qual o titular do direito realizá-lo-á por seus próprios meios, ou seja, independentemente da vontade ou de qualquer conduta positiva ou negativa voluntária do obrigado.

4.2 Direito subjetivo no plano do direito material

Como vimos, ao direito subjetivo corresponde o dever que onera o sujeito passivo. Pode haver, e normalmente há, a possibilidade para o

titular do direito exigir diretamente do devedor (lato sensu) o cumprimento da obrigação, que já é dever exigível. Se a satisfação do direito pode ser exigida por seu titular, diz-se que ele está munido de pretensão, que, como já se disse, consiste precisamente nessa faculdade de exigir a satisfação do direito. O direito condicional ou a termo são formas de direito subjetivo já existentes a que ainda falta a exigibilidade (= pretensão). Verificada a condição, ou ocorrido o termo, surge para o titular do direito subjetivo o poder de exigir sua satisfação e para o sujeito passivo a obrigação (lato sensu) de satisfazê-lo. Se o titular do direito exige que o obrigado cumpra a obrigação, terá havido exercício de pretensão, normalmente realizada extrajudicialmente. Ainda não há, até este momento, contrariedade a direito. Se, no entanto, o obrigado, ante a exigência do titular do direito, recusa-se a satisfazê-lo, ao titular da pretensão (= direito exigível) nasce a ação de direito material, que é o agir do sujeito para a realização do próprio direito.

Todo direito tende a realizar-se no plano das relações sociais. Ter direito é ter, em última análise, a faculdade de gozá-lo. A não ser nos raros casos em que o direito subjetivo aparece, numa fase de sua existência, destituído de exigibilidade, o seu titular sempre poderá exigir do obrigado que o satisfaça. Se este, ante a exigência do titular do direito, não o atende, de duas uma: ou o próprio titular procurará realizá-lo por seus próprios meios ou o direito simplesmente desaparece, porque ter direito que se frustre completamente ante a recusa do obrigado em satisfazê-lo é pura e simplesmente não ter direito algum.

Do que acaba de ser dito conclui-se, portanto, que o direito haverá de realizar-se ou pelo cumprimento espontâneo do obrigado ou por suas próprias forças.

A distinção entre pretensão e ação de direito material está em que a pretensão - enquanto exigência - supõe que a realização ainda se dê como resultado de um agir do próprio obrigado, prestando, satisfazendo a obrigação. Enquanto exijo, em exercício de pretensão, espero o cumprimento, mediante ato voluntário do obrigado, ainda não ajo para a satisfação, com prescindência de qualquer ato de cumprimento por parte do sujeito passivo. A partir do momento em que o devedor, premido por minha exigência, mesmo assim não cumpre a obrigação, nasce-me a ação. Já agora posso agir para a satisfação, sem contar mais com a ação voluntária do obrigado cumprindo a obrigação. A ação de direito material é, pois, o exercício do próprio direito por ato de seu titular, independentemente de qualquer atividade voluntária do obrigado.

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Se disponho de um direito subjetivo exigível (= dotado de pretensão) e, no exercício dessa faculdade de exigir a satisfação, realizo alguma atividade tendente a que o obrigado cumpra espontaneamente a obrigação, como por exemplo escrevendo-lhe uma carta em que lhe peço o cumprimento, ou tomando qualquer outra providência idónea a forçá-lo à satisfação de meu direito, ainda não exerço ação de direito material, porque apenas estou a exigir, o que pressupõe conduta voluntária de cumprimento por parte do obrigado. Minha atividade, aí, não pode prescindir de um ato voluntário do próprio obrigado, de cumprimento da obrigação. A ação de direito material é um novo poder que surge depois do exercício infrutífero da pretensão e corresponde, como dissemos, à faculdade, inerente a todo direito, que tem seu titular de agir para sua realização. A todo direito exigível (pretensão) há de corresponder uma ação. Tal o princípio que está expresso no art. 75 do CC. Este agir para a realização inerente a todos os direitos é o que se chama ação de direito material. Certamente, este agir que se contém em todos os direitos raramente é permitido, nos sistemas modernos, ao titular do direito para que ele o torne efetivo por seus próprios meios. Na generalidade dos casos, este agir para a realização há de ser veiculado através da "ação" processual, ou seja, ao invés de o titular do direito agir privadamente para torná-lo efetivo ante a resistência do obrigado, deverá invocar a tutela jurídica estatal, a fim de que o órgão encarregado de prestar jurisdição, uma vez comprovada a existência do direito (eficácia declaratória da sentença), o realize no lugar de seu titular, desenvolvendo a atividade que este fora impedido de realizar. Quanto mais o Estado alargou, através da história, o seu campo de atividades e ampliou o monopólio da jurisdição, proibindo a realização privada do direito, tanto menor passou a ser a possibilidade de exercer-se a ação de direito material sem a invocação da proteção jurisdicional.

Cabe, neste momento, uma observação importante. Não se deve confundir jamais a ação de direito material com a "ação" processual, bem como não se deve supor que todos os pedidos de tutela jurídica dirigidos ao juiz ("ação" processual) envolvam uma ação de direito material. Assim como pode ocorrer exercício de ação de direito material fora da jurisdição, embora isto seja raro no direito moderno, igualmente pode suceder que o titular da pretensão de direito material (direito exigível) valha-se da jurisdição, formulando um pedido ao juiz, para simples exercício (processualizado) de sua pretensão, e não para que o Estado realize, através da ação de direito material, o seu direito. Neste caso, teríamos "ação" sem ação.

ou seja, estaríamos em presença de uma "ação" processual, enquanto pedido de tutela jurisdicional, sem ação. Tal é o caso da interpelação judicial. Quem interpela ainda não age, apenas exige. A ação, nesta hipótese, ainda será atividade do obrigado, prestando voluntariamente.

Nos direitos absolutos, chamados direitos com sujeitos passivos totais, como o são os direitos de personalidade e o domínio, a pretensão - enquanto exigência de respeito por parte de terceiros obrigados à omissão - nasce junto com o direito subjetivo.

Não se deve, portanto, confundir nos direitos reais os momentos em que lhe surgem a pretensão e a ação. É comum encontrar-se na doutrina a afirmação de que as pretensões reais apenas nascem no instante em que o direito é violado. Sem violação, segundo este entendimento, não haveria pretensão real. Ora, como já ficou demonstrado, havendo violação do direito, a seu titular nada mais resta do que agir para sua realização, sem mais contar com a cooperação do obrigado. E isto não é mais simples exercício de pretensão, e sim, já, ação de direito material (PONTES DE MIRANDA, Tratado das ações, v. 1, § 7, p. 3).

A doutrina processual, de um modo geral, recusa-se a emprestar importância científica ao conceito de ação de direito material, quando não lhe nega, até mesmo, existência nos sistemas jurídicos modernos, sob a alegação de que, proibida como está a autotutela privada - e, pois, o exercício da ação pelo titular do direito -, teria ela sido substituída pela "ação" processual. Segundo tal entendimento, a ação de direito material teria, em seu longo percurso histórico, sofrido uma completa inversão de sentido. Modernamente, a ação de direito material, em vez de um agir do titular do direito para sua própria realização, ter-se-ia transformado num fazer agir, a que se resume a atividade do sujeito do direito e por meio do qual ele desencadeia a atividade jurisdicional do Estado (assim PEKE-L1S, Azione (diritto moderno), Novíssimo digesto italiano, v. 2, p. 33).

Este gravíssimo equívoco foi possível e tem ganho a dimensão impressionante que se verifica da aceitação, de certo modo implícita, de tal pressuposto pela doutrina contemporânea, em virtude de um outro engano não menos grave, a respeito do conceito de jurisdição. J. FREDERICO MARQUES, ao tratar das chamadas "ações de conhecimento", dá-nos um bom exemplo desta limitação conceituai, ao escrever que, "nas ações de conhecimento, constitui objeto da tutela jurisdicional o pronunciamento da sentença que componha o litígio" {Manual de direito processual civiL v. 2, § 48). Para ele, como de resto para a doutrina de um modo geral, tutelar significa declarar ("pronunciar") o direito. O que

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sobra - as demais eficácias do ato sentenciai - são efeitos da tutela, e, por definição, devem estar fora de seu conteúdo.

Este curioso resultado, através do qual se esvazia de conteúdo o denominado "processo de conhecimento", reduzido apenas ao momento declarativo do direito, como hoje se sabe, esteve sempre comprometido com uma concepção liberal-burguesa, em que a atividade do juiz não deveria ir além da função de um simples "oráculo da lei". Esta concepção, que foi adequada para a sociedade burguesa, especialmente no apogeu do capitalismo moderno, a partir da Segunda Guerra Mundial, entrou em franca decadência não só nos sistemas da Europa continental, como até mesmo nas regiões da common law, nos casos em que este sistema porventura adotasse o mesmo conceito de jurisdição (vide MICHELI TARUFFO, II processo civile "adversary" nelVesperienza americana, especialmente a partir da p. 277).

A suposição, que a doutrina faz, de que a ação de direito material haja desaparecido para dar lugar à "ação" processual contém um defeito lógico tão evidente que dificilmente seria explicável sem levar-se em conta o profundo comprometimento da doutrina processual com a ideologia social então dominante. Com efeito, dizer, como o fez PEKELIS (Azione, p. 34), que a primitiva acuo se teria transformado numa "não-ação", com a criação do Estado romano e o consequente monopólio da jurisdição, passando a significar o seu contrário, apenas porque o titular do direito subjetivo não mais podia realizá-lo pessoalmente, tendo de valer-se, ante a resistência do obrigado, de uma idêntica atividade realizadora, a ser praticada pelo magistrado, sob o ponto de vista lógico, seria tão absurdo como, por exemplo, afirmar, no domínio do direito comercial, que o contrato de comissão fizera desaparecer a compra e venda mercantil! Apenas porque o comitente, em vez de vender, limita-se afazer vender.

O que ocorre, na verdade - e aqui reside a razão de todo o equívoco -, é que a atividade jurisdicional do Estado não se limita à "certificação" da existência do direito, senão que deve igualmente realizá-lo, praticando rigorosamente a mesma atividade que antes proibira ao particular, o que significa que a ação de direito material, longe de desaparecer ou ser substituída pela "ação" processual, simplesmente, verificado o monopólio da jurisdição, passou a ser exercida pelos órgãos estatais.

A realização coativa do direito, com absoluta prescindência da vontade ou da colaboração do obrigado, que se consegue através da jurisdição, é rigorosamente a mesma ação de direito material, ou seja, o mesmo agir para a realização inerente a todo direito, com a única diferença que. proibida a autotutela privada, a efetivação do direito se dá através da ação dos órgãos estatais. Portanto, longe de haver supressão, ou substituição, da ação de direito material, o que em verdade ocorreu foi uma duplicação de ações: uma dirigida contra o obrigado, outra endereçada contra o

Estado, para que este, uma vez "certificada a existência do direito, o realize coativamente, praticando a mesma atividade de que fora impedido seu titular".

4.3 Direito subjetivo no plano do direito processual

Como ficou dito, no plano do direito material, o direito subjetivo não se confunde com a exigibilidade que o próprio direito possui, através da qual ele tende a tornar-se efetivo e a realizar-se no ambiente social. No plano do direito positivo, a faculdade de exigir (pretensão) de outrem a prática de algum ato, ou a observância de certa conduta, distingue o preceito jurídico das normas éticas que não são dotadas, ou dispensam a coercibilidade estatal para se realizarem. Como vimos, pode haver direito subjetivo sem que haja, ainda, ou não mais exista, esta faculdade de exigir de outrem a satisfação. O direito subjetivo é um estado. A pretensão ainda é um estado de que o direito se reveste, a partir do momento em que se torne exigível. Há, portanto, o direito subjetivo, como há a pretensão; e há o exercício da pretensão que corresponde à atividade de quem exige. Enquanto o direito e a pretensão correspondem a estados de que goza seu titular, o exercício da pretensão, ou seja, a exigência concreta por meio da qual o titular da pretensão procura forçar o obrigado ao cumprimento da obrigação, já não é mais status, e sim atividade desenvolvida com a finalidade de obter-se o cumprimento espontâneo da obrigação (PONTES DE MIRANDA, Tratado de direito privado, v. 5, § 615).

Finalmente, ainda no plano do direito material, há a ação do titular do direito, que também é conduta, também é um agir (agere, ação), porém agora a atividade do titular do direito tende, direta e imediatamente, a realizá-lo, independentemente e com total prescindência de' qualquer ato voluntário do obrigado. Quando o titular do direito subjetivo exerce a sua actio, é porque não houve cumprimento voluntário por parte do obrigado.

No plano do direito processual, as coisas acontecem de modo semelhante. Também aqui há o direito público subjetivo a que o Estado preste a tutela a que ele próprio se obrigou, ao proibir a autotutela originariamente exercida pelo titular do direito.

Na verdade, não se pode nem mesmo conceber a existência do Estado sem este mínimo de controle social, representado pelo monopólio da jurisdição. Como o direito é um instrumento de convivência social.

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não se poderia imaginar a existência de uma ordem jurídica a que o Estado - depois de impedir a atividade do titular do direito (ação) para realizá-lo - não assegurasse uma tutela equivalente, outorgando-lhe os meios para torná-lo efetivo através de seus órgãos estruturados e predispostos para o cumprimento desse dever fundamental de toda organização estatal. Não seria exagero, aliás, afirmar que o Estado só existe, como fenómeno histórico, por haver monopolizado a jurisdição e a própria produção do direito estatal como fonte exclusiva da norma jurídica.

A verdadeira essência da função jurisdicional não é, portanto, o "pronunciamento" da sentença que compõe o litígio - que não passa de uma atividade-meio, apenas instrumental -, senão que corresponde à realização do direito material que o Estado impediu que se fizesse pela via privada da auto-realização. O que ocorre, no entanto, é que o Estado, para poder realizar o direito material, terá necessariamente de averiguar, antes, a existência do direito cuja titularidade seja porventura afirmada por aquele que o procura para exigir a tutela jurisdicional. Desta contingência decorre a circunstância inevitável de ter-se de conceder "ação", no plano do direito processual, igualmente ao que não tenha direito, não tenha pretensão nem ação.

Não se deve, pois, confundir, no plano do direito processual ou pré-processual, o direito de acesso aos tribunais com o exercício desse direito, que é a "ação" processual. O direito é status, a ação é exercício de um direito preexistente. Ou é puro arbítrio, e violência ilegítima.

Grande parte das divergências existentes na doutrina processual a respeito do conceito de "ação" resulta da indevida equiparação entre o direito público subjetivo de acesso aos tribunais e o exercício desse direito, por meio da "ação". O agir - quer encarado no plano do direito material, quer considerado em relação ao processo - pressupõe, necessariamente, a anterioridade do próprio direito, não podendo com ele confundir-se. A ação será, em qualquer caso, o exercício de um direito preexistente ou simplesmente deixará de ser ação legítima, fundada em direito. Tenho "ação" processual porque, antes, deverei ter direito subjetivo público para exigir que o Estado me preste a tutela capaz de tornar efetivo o meu direito, cuja realização privada o próprio Estado tornou impossível.

Para que estes conceitos sejam claramente compreendidos é, pois, fundamental que se conceba o direito de acesso aos tribunais como um prius lógico e, conseqiientemente, distinto da categoria a que se dá o nome de "ação" processual, já que esta há de ser. por definição, o

exercício daquele. Qualquer integrante de uma determinada comunidade jurídica, organizada sob forma de Estado, terá direito público subjetivo à proteção do próprio direito, cuja realização privada lhe foi negada. O direito de acesso aos tribunais terá maior ou menor amplitude segundo as peculiaridades de cada ordenamento jurídico, mas será dificilmente imaginável uma organização estatal onde não houvesse tribunais com as funções que hoje lhes são próprias, sem que isto provocasse a eliminação total do próprio direito e o estabelecimento de um regime de arbítrio e terror absolutos.

A realização privada e completa do direito redundaria na abolição do Estado. Ao contrário, a eliminação completa da jurisdição, simultaneamente com a proibição da autotutela privada, poderia causar a supressão do próprio direito, que então passaria a confundir-se com as demais relações sociais.

Esta forma a tal ponto integra o conceito moderno de direito que os teóricos socialistas, de inspiração marxista, chegam a afirmar que o direito está condenado a desaparecer, como qualquer outra manifestação social burguesa, a partir do momento em que ele passe a ser "administrado" pelo Estado socialista, perdendo, então, a forma jurídica qualquer especialidade capaz de distingui-la das demais relações sociais (assim IMRE SZABÓ. Les fondements de Ia théorie du droit, p. 320).

Este entendimento parte, naturalmente, da ideia de que o direito consiste essencialmente numa forma de composição de conflitos sociais imposta pelo Estado. Segundo as inúmeras correntes doutrinárias ligadas ao positivismo jurídico, o direito pressupõe um conflito causado pela conduta do obrigado violadora da lei e a exigência do titular do direito de que o Estado a restaure.

Seria, no entanto, possível imaginar uma organização social onde os conflitos interpessoais tivessem completo tratamento preventivo. A semelhança do que se busca modernamente no campo da medicina social preventiva, procurar-se-ia evitar a eclosão dos conflitos sociais compondo-os em nível legislativo, de modo a prescindir-se de seu tratamento curativo, tal como agora acontece com o remédio jurisdicional.

Se fosse possível criar instrumentos de produção normativa que assegurassem uma participação amplamente democrática dos "consumidores" do direito (cf. MAURO CAPPELLETTI. Acceso a Ia justicia, Boletin Mexicano de Derecho Comparado, n. 48, p. 805), poder-se-ia imaginar uma forma de convivência social sem conflitos e, não obstante, juridicamente regulada, sem que o Estado se transformasse em poder arbitrário e externo à sociedade civil. No estágio atual de desenvolvimento cultural da humanidade, seria completameme utópico um projeto de tal natureza, mesmo porque, ao que tudo indica, a competitividade e os conflitos que dela decorrem são inerentes e necessários ao desenvolvimento natural e sadio da convi-

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vencia social (RALF DAHRENDORF, Sociedade e Uberdade, p. 151; ANATOL RAPPOPORT, Lutas, jogos e debates, p. 199).

Quaisquer que sejam, porém, nossas cogitações a este respeito, temos de aceitar as categorias antes indicadas, de direito subjetivo, pretensão e ação, como válidas e operativas, diante das formas de produção e realização do direito que hoje se praticam. Veremos, no entanto, que a ciência processual moderna tem procurado superar as limitações que o conceito de direito subjetivo lhe tem imposto, quando forem abordadas as questões ligadas à legitimação processual.

Deixando esta análise para momento mais apropriado, voltemos ao conceito de ação. Quando o Código Civil, em seu art. 75, declara que a todo direito (pretensão) corresponde uma ação que o assegura - capaz de torná-lo efetivo e realizado -, faz afirmação correia, porque está no plano do direito material, a falar da ação de direito material. Quando, porém, a Constituição, ou algum outro texto de direito público, afirma, querendo referir-se à garantia de acesso ao Poder Judiciário, que a lei assegura a todos o direito de serem ouvidos pelos tribunais, "em caso de lesão ou ameaça de lesão do direito", está a fazer afirmação incorreta: o direito de ser ouvido pelos tribunais é assegurado a todos indistintamente, tanto aos que tenham quanto aos que não tenham sofrido qualquer violação ou ameaça a seus direitos; e até mesmo àqueles que, não tendo direito algum, exijam que o Estado lhes preste tutela jurisdicional, ainda que seja para que o juiz os declare sem direito.

Direito de acesso aos tribunais é uma coisa; o efetivo exercício desse direito ("ação") é outra muito diferente. Há, todavia, uma diferença entre o que acontece no plano do direito material e aquilo que ocorre no processo. O exercício da pretensão, como simples exigência, não bastaria perante o direito processual, tal como poderia bastar no campo do direito material. O exercício da pretensão de tutela jurídica seria insuficiente. A quem pretenda obter tutela jurisdicional não basta exigir e esperar que o juiz sozinho aja por ele, tal como poderia ocorrer no campo do direito material com o exercício da pretensão. O direito processual exige mais, exige que o titular da pretensão de tutela jurídica formule sua exigência e, ao mesmo tempo, através do juiz, também ele efetivamente aja no sentido de obtê-la.

Comparemos os dois planos. Se tenho um direito de crédito ainda não vencido, apenas tenho direito subjetivo de crédito, mas ainda não

disponho de pretensão, porque meu direito não é, então, exigível; vencida a obrigação, a partir daí, posso exigir a satisfação, ou seja, exercer a pretensão de que já disponho, adotando as providências que julgar adequadas a forçar o cumprimento voluntário da obrigação, por ato espontâneo do obrigado. Se este, ante minha exigência, não satisfaz o direito de crédito pelo pagamento, então posso agir contra ele, exercendo não mais uma simples pretensão, enquanto exigência de satisfação, mas minha ação de direito material, que é a conduta do titular do direito idónea a realizá-lo por seus próprios meios e sem mais contar com a atividade voluntária do obrigado. Bem, se o Estado me impedir de agir privadamente, ele próprio então há de me dar o sucedâneo jurisdicional, de modo que meu direito se realize por meio do juiz, cumprindo este a mesma atividade (ação) que o titular do direito poderia ter realizado privadamente. Vê-se, pois, distintamente, os três momentos do direito.

No plano do direito processual, todavia, o exercício da pretensão de tutela jurídica está condicionado não apenas à exigência formulada pelo interessado, por meio de um pedido dirigido ao juiz, mas, além de simplesmente exigir, terá o interessado de agir processualmente, em atividade simultânea à desenvolvida pelo Estado. Se a ordem jurídica se contentasse com a simples provocação da atividade jurisdicional, com o simples exercício da pretensão, enquanto exigência de tutela, deixando ao juiz toda a atividade necessária subsequente, teríamos a prestação da tutela jurisdicional mediante o simples exercício da pretensão. Todavia, não é isso que acontece. Em verdade, o autor (aquele que age), na relação processual, não só exige como, juntamente com o juiz, deve também ele exercer atividade, agindo para obter a prestação da tutela jurisdicional. A este agir para obtê-la dá-se o nome de "ação" processual. Antes do julgamento de procedência, no entanto, a ação de direito material é apenas uma hipótese a ser ou não confirmada pela sentença.

Aquele que exerce a "ação" processual age; a parte adversa contra quem a "ação" é exercida defende-se, reage à ação do autor. Aquele que não age apenas reage à ação do autor. Ambos, porém, tanto o autor que age. quanto o réu que se defende, têm igual pretensão de tutela jurídica e, portanto, idêntico direito de obter uma sentença de mérito. Diz-se pretensão de tutela jurídica a este poder atribuído a qualquer pessoa de exigir do Estado a prestação da atividade jurisdicional, consistente não no auxílio que o juiz possa dar àquele em favor de quem ele haja reconhecido a existência do direito e julgado procedente o pedido, mas

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na simpies atividade jurisdicional, mesmo que esta conclua por negar ao interessado a proteção que o juiz daria se a situação que o autor descreve no processo fosse verdadeira e não infirmada pela prova. Têm, pois, direito à jurisdição tanto o autor que a põe em movimento com sua "ação" quanto o réu que apenas se defende e, mesmo sem agir, com sua presença em juízo, reagindo à ação contrária do autor, exige também ele que o Estado, assim provocado pela "ação", preste-lhe idêntica tutela, decidindo a controvérsia e recusando-se a realizar a ação de direito material de que o autor falsamente se dissera titular, julgando a "ação" improcedente. Tal princípio está assegurado pelo art. 267, § 4.°, do CPC, que impede que o autor desista da "ação", sem o consentimento do réu, depois de decorrido o prazo para sua resposta. Neste caso, a oposição do réu coloca o Estado no dever de prestar-lhe a mesma atividade que a "ação" do autor provocara. Sua discordância em que o autor desista da "ação" traduz-se, portanto, numa efetiva exigência de tutela jurisdicional. E, como já vimos, a este poder exigir, tanto no plano do direito material quanto no plano do direito processual, dá-se o nome de pretensão.

Estas considerações permitem-nos estabelecer uma conclusão importante: não seria correto considerar como jurisdicional apenas a prestação de auxílio que o juiz possa outorgar ao litigante a quem reconheça razão, seja ao autor, ao julgar a demanda procedente, ou ao rejeitá-la, por entender que a razão esteja com o réu. Também quando algum defeito porventura existente na formação do processo lhe impeça de apreciar o mérito da causa, obrigando-o a declarar impossível a prestação de qualquer socorro, exercerá o juiz verdadeira jurisdição. Somente a ele, no legítimo exercício de sua atividade, é dado investigar e decidir sobre estes pressupostos de regularidade formal do procedimento.

Para que o Estado possa prestar assistência ao titular do direito será necessário que ele investigue quem, dentre todos os postulantes dessa assistência, teria realmente direito a tal auxílio. Para poder restaurar o direito violado, ou protegê-lo preventivamente contra futuras violações, o Estado não tem outro recurso senão examinar, perquirir, investigar quais, dentre aqueles que se afirmam vítimas de violações a seus direitos, realmente o são. E naturalmente esta atividade prévia de "acertamento". através da qual o juiz julga procedente ou improcedente o pedido, para só agir - exercendo a ação de direito material - em favor do autor a quem ele haja reconhecido razão, este juízo que lhe dará legitimidade para agir, caso a situação afirmada pelo autor no processo

seja realmente existente no plano do direito material, é verdadeiro exercício de jurisdição.

Temos, portanto, que o autor, ao formular sua demanda, desencadeia duas atividades que o juiz deve realizar, uma delas incondicionada, e necessariamente produzida em decorrência do exercício da "ação", e a outra condicionada ao êxito da demanda, que será a final a tutela jurisdicional que o Estado presta ao demandante vitorioso.

J. FREDERICO MARQUES (Manual..., v. 1, § 123) distingue com nitidez as duas espécies de atividades jurisdicionais que o magistrado deve praticar no processo: uma consistente no "acertamento" por meio do qual ele declarará se "acolhe ou rejeita" o pedido; outra, a atividade de satisfação da pretensão. A primeira de tais atividades é uma obrigação do Estado, tanto que a "ação" seja proposta; a outra apenas será praticada se a demanda for julgada procedente. Quando se diz "pretensão de tutela jurídica " e exercício efetivo desta pretensão, através da "ação" processual, quer-se significar que as partes têm direito a ambas as atividades, uma vez que também o litigante sem razão tem direito a essa primeira forma de tutela. Quando, portanto, LIEBMAN declara que "o direito de agir é dado para a tutela de um direito ou interesse legítimo" e que, como consequência, "é claro que incumbe somente quando há necessidade de tutela", ou seja, "quando o direito ou o interesse legítimo não tenha sido satisfeito" (Manuale di diritto processuale civile, v. 1, p. 133), ele assimila tutela jurisdicional ao auxílio que o Estado deve prestar depois de verificar que o direito ou o interesse legítimo, afirmado pelo autor no processo, é realmente existente no plano do direito material e digno de tutela jurisdicional. O direito de agir, provocando a atividade jurisdicional por meio da propositura da "ação", é uma atividade reconhecida sem dúvida a todos quantos tenham efetivamente, no plano do direito material, necessidade de amparo jurídico, "para tutela de um direito ou de algum interesse legítimo"; mas um idêntico direito de agir necessariamente deve ser atribuído também àqueles que, buscando a proteção jurisdicional, apenas supunham ser legítimo seu interesse, ou apenas imaginavam ser titulares de um direito necessitado de proteção jurisdicional, e até para aqueles que, cientes de não terem direito algum, mesmo assim, proponham uma "ação" que saibam ser improcedente.

Como poderia o Estado desincumbir-se de sua obrigação de prestar assistência aos verdadeiros titulares de um direito subjetivo ou de um simples "interesse legítimo", violados ou ameaçados de

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violação, senão admitindo que todos, indistintamente, tenham seus direitos apreciados pelo juiz, de modo que este possa saber, dentre todos os postulantes, quais realmente serão dignos de tal proteção? A declaração sentenciai de que a parte não tem o direito que alega ter é, como todos sabem, uma autêntica atividade jurisdicional que só um juiz pode realizar. Seria impossível ao Estado submeter os pedidos a um processo de triagem prévia, a ser realizada por qualquer outro órgão estatal que não fosse o próprio órgão judiciário, de tal modo que ao juiz só fossem encaminhados os pedidos procedentes; ou apenas aqueles processos cuja regularidade formal uma autoridade administrativa se encarregara antes de verificar. Tal expediente redundaria numa total impossibilidade lógica, pois esse estranho órgão seletor - supostamente integrante do Poder Executivo - acabaria exercendo completamente as funções jurisdicionais. Para tanto, bastaria que ele recusasse encaminhamento aos órgãos jurisdicionais de certos pedidos que essa autoridade encarregada da filtragem prévia, por ignorância ou má-fé, julgasse irregularmente processados ou que, havendo regularidade formal no procedimento, não tivesse a parte necessidade de tutela; ou que, finalmente, o direito de agir invocado pelo demandante não correspondesse a um direito ou interesse legítimo, como afirma LIEBMAN.

Reafirmando, pois, o que já ficou dito, podemos distinguir bem as duas formas de agir e, portanto, as duas espécies de ação: uma delas que se desenvolve no plano do direito material e corresponde ao agir contra o obrigado, para realização do direito, independentemente de sua colaboração; a outra, dirigida contra o Estado, para que ele, provocado pelo interessado (autor), exerça a atividade jurisdicional a que se obrigou e preste a respectiva tutela, dando resposta adequada ao pedido. A primeira espécie de ação tem como pressuposto um direito material preexistente de que é titular aquele que age; esta, a "ação" processual, por força há de estar igualmente fundada num direito anterior. Também ela, como qualquer outra atividade lícita, deve corresponder a um direito exigível (~ pretensão), sob pena de configurar o puro arbítrio e a violência. Este direito à tutela estatal nasce a todos os participantes de uma dada comunidade jurídica, organizada sob a forma de Estado, precisamente a partir do momento em que a autotutela privada foi proibida, estabelecendo-se o monopólio da jurisdição.

A tal direito exigível, através do qual os cidadãos podem recorrer a seus tribunais, dá-se o nome de pretensão de tutela jurídica, que.

todavia, nada tem a ver, diga-se de passagem, com o conceito similar exposto por WACH {La pretensión de declaración, Cap. II; e Manual de derecho procesal civil, v. 1, § 2.°), apenas correspondente à "assistência judicial" que o Estado deve prestar ao titular de um direito ou de um interesse legítimo, quando violados ou ameaçados de violação. Evidentemente, no conceito moderno de pretensão de tutela jurídica inclui-se também a proteção jurisdicional ou, dizendo-se de modo mais próprio, a atividade jurisdicional, que o magistrado pratica em favor, ou perante aquele que não é efetivamente titular de direito algum. Tanto quanto o autor, também o réu, ao defender-se, independentemente de ter ou não razão, exerce pretensão de tutela jurídica (PONTES DE MIRANDA, Comentários ao Código de Processo Civil, 1974, v. 1, p. 103). Ambos têm direito ao julgamento.

Mas ainda existe outra distinção conceituai entre o que se denomina ação de direito material e a chamada "ação" processual. Quando definimos a primeira, procuramos mostrar que a sua essência está em que o agir do titular do direito deixa de carecer de qualquer colaboração do obrigado para que o direito se realize. Isso certamente não ocorre com o exercício da "ação" processual. Aquele que age (exerce ação) no plano do processo absolutamente não pode prescindir da atividade do Estado para realização de seu direito à jurisdição. Ao contrário, o exercício da "ação", aqui, é tanto o agir quanto o exigir que o Estado aja, prestando tutela jurídica.

A rigorosa e clara determinação de todas estas categorias conceituais não só é decisiva para a investigação de outros conceitos e institutos do processo civil, como permitir-nos-á o exame das várias teorias que tentaram estabelecer o conceito de "ação" processual.

4.4 Teoria civilista da ação

A primeira teoria que se formou, no direito moderno, tentando estabelecer o conceito de "ação" processual - e da qual, sem dúvida, derivaram todos os progressos subsequentes, responsáveis pelo surgimento do direito processual civil como disciplina científica especial e autónoma - foi a chamada "teoria civilista" da "ação". de que foram expoentes SAVIGNY, GARSONNET, MATTIROLO e, entre nós, PAULA BAPTISTA, JOÃO MONTEIRO, CLÓVIS BEVILÁQUA, EDUARDO ESPÍNOLA, CÂMARA LEAL e tantos outros. Partindo do conceito de

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ação dado pelo jurista romano CELSO, os partidários deste entendimento trataram da ação de direito material em vez de estabelecerem a verdadeira natureza e função da "ação" processual. Com efeito, a definição que CELSO dava à actio romana nunca poderia servir aos juristas modernos para a definição da "ação" processual. Como mostrou WINDSCHEID, a acuo não correspondia, em direito romano, à "ação" processual, estando mais próxima do conceito de pretensão de direito material. Disse CELSO, definindo a actio: nihil aliud est actio quam ius quod sibi debea-tur, indicium persequendi (a ação nada mais é do que o direito de perseguir em juízo o que nos é devido). Ora, a categoria de que estamos agora a tratar - a "ação" processual, enquanto exercício de uma pretensão de tutela jurídica - não é "direito de perseguir em juízo o que nos é devido", a não ser que tenhamos em mente que o que "nos é devido pelo Estado" seja a atividade jurisdicionaL

Ora, definindo a denominada "teoria civilista" a "ação" processual como o direito de perseguir em juízo "o que nos é devido pelo obrigado", confundiu e misturou as duas realidades, ou seja, o exercício da pretensão de tutela jurídica estatal e a ação de direito material, que é o agir do titular do direito para obtenção "do que lhe é devido", e, ao assim proceder, não teve como explicar os casos em que o agente houvesse promovido um processo sem ter direito, ou seja, ficou impossibilitada de explicar o fenómeno da ação improcedente, pois, evidentemente, em tal caso, a "ação" processual não teria sido o direito de perseguir em juízo "o que nos é devido"... pelo obrigado.

4.5 Teoria do direito concreto de ação

A denominada teoria clássica, ou civilista, da ação seguiu-se a chamada teoria do "direito concreto da ação", devida a ADOLF WACH. Este eminente jurista alemão, em obra que se tornou clássica e uma das mais importantes para o desenvolvimento posterior da ciência do processo, partindo de uma perspectiva um pouco diferente daquela em que se colocara a teoria clássica, e tendo sua atenção despertada por um fenómeno novo no campo do processo, decorrente da introdução feita pela Ordenança Processual Civil alemã de 1877, de uma pretensão especial e autónoma para a simples declaração de existência ou inexistência de uma relação jurídica, demonstrou que o agir em juízo poderia ter como finalidade não a defesa, ou a perseguição, daquilo que nos era devido, mas

simplesmente o exercício de uma pretensão de tutela para que o juiz declarasse a inexistência de uma pretensão do adversário, para que o juiz declarasse a inexistência de uma suposta relação jurídica, o que corresponderia, em verdade, a usar-se o processo para declarar que nada nos era devido, ou que nada era devido pelo autor.

Ora, se a "ação" processual podia, no caso da ação declaratória negativa, cuja possibilidade estava prevista pelo § 231 (depois 256) da Ordenança Processual Civil (ZPO) alemã, ser intentada para que o juiz nos outorgasse não "aquilo que nos era devido" pelo obrigado, e sim para que declarasse que nada era devido por ninguém, então não seria apropriado afirmar-se que a "ação" processual corresponderia sempre ao direito de perseguir em juízo o que nos era devido, como até então se ensinara.

Poderia haver, portanto - e esta foi realmente a contribuição de WACH (La pretensión de declaración) -, uma pretensão processual adequadamente formulada através de uma "ação", onde não se buscava "aquilo que nos era devido" no plano do direito material, mas simplesmente pedia-se que o juiz declarasse por sentença que nada era devido por ninguém.

Este resultado tornava evidente a existência de uma relação processual legitimamente formada e idónea a conduzir a uma sentença de mérito, sem que houvesse uma relação de direito material posta em causa pelo demandante, ou sem que este se servisse do processo para protegê-la, desde que o processo se formara, neste caso, para que o juiz declarasse a inexistência de uma dada relação jurídica.

O resultado alcançado por WACH vinha assim reforçar e destacar ainda mais a importância de uma outra pesquisa levada a efeito por OSKAR VON BULOW, outro jurista alemão que, alguns anos antes, chamara a atenção dos processualistas para a necessidade de estudar-se não apenas a relação de direito material configuradora da pretensão para cuja tutela seu titular servia-se do processo, como objeto central do direito processual, mas também a relação de direito público que se formava entre o demandante e o Estado a que aquele invocava a proteção jurisdicional {Excepciones prvcesales...). Como se sabe, o processo como ciência teve seus alicerces formados por estas duas pesquisas célebres.

À teoria do "direito concreto de ação", concebida por WACH, deu sua valiosa adesão GIUSEPPE CH1OVENDA. sem dúvida um dos maio-

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res processualistas italianos de nossa época, o qual, em sua famosa pre-leção feita na Universidade de Bolonha, em 1903, mostrava ser a "ação" processual um direito especial de natureza potestativa por meio do qual se realizava, no caso concreto, a vontade da lei, abstratamente prevista pelo ordenamento jurídico.

Denominam-se "direitos potestativos", também chamados "direitos formativos", uma classe especial de direitos subjetivos cuja satisfação não depende propriamente do cumprimento de um dever do obrigado, ou de uma prestação a ser realizada por este.

Os direitos potestativos, em verdade, são poderes que o respectivo titular tem deformar direitos, mediante a simples realização de um ato voluntário e sem que se exija do obrigado o cumprimento de uma prestação correspondente. Ao contrário das demais espécies de direitos subjetivos, nos denominados potestativos o obrigado, em vez de prestar, satisfazendo a obrigação, apenas submete-se à vontade do titular do direito. Estão nesta classe, por exemplo, o direito que o contratante tem de pôr fim ao contrato, exercendo o direito de denunciá-lo; ou a faculdade que o titular do direito de preferência tem de torná-lo efetivo pelo simples exercício da preferência.

Em todos estes casos, a realização efetiva do direito prescinde de qualquer atividade voluntária de cumprimento do obrigado, que apenas sofre o efeito da manifestação de vontade daquele que forma o direito. Esta espécie de direito subjetivo, quando seja posta no processo, como conteúdo de alguma demanda, gera uma classe especial de sentenças, denominadas constitutivas, como oportunamente veremos.

Em regra, a execução da lei se dá no campo das relações sociais pela espontânea observância de seus preceitos por parte dos integrantes da comunidade jurídica. Todavia, nem sempre é assim, pois em muitos casos não têm os particulares o poder de realizar, ou de atuar, a vontade da lei por sua própria iniciativa, no âmbito privado, função esta que fica reservada a um órgão público que ou age ex officio ou terá de agir, para atuação da vontade da lei, somente quando provocado pelo interessado. Neste caso. a "atuação da lei" fica na dependência de uma condição, qual seja a manifestação de vontade do particular interessado. A esta manifestação de vontade, capaz de pôr em movimento o órgão jurisdi-cional do Estado, é que se dá o nome de "ação" processual. A "ação", pois, tal como os demais direitos potestativos, é um poder jurídico, por

meio do qual se realiza a condição necessária para a atuação da vontade da lei, no caso concreto.

Tanto WACH quanto CHIOVENDA, no entanto, ao tentarem definir a "ação" processual, estudavam-na como se a mesma fosse um poder atribuído ao titular do direito subjetivo material, para que este, invocando a proteção do Estado, pudesse tornar efetivo o seu direito contra o obrigado.

Esta concepção teve o mérito de mostrar que a "ação" não podia ser confundida com o direito subjetivo, como afirmava a teoria clássica, desde que WACH mostrara a possibilidade de haver "ação" a que não correspondia nenhum direito subjetivo. Por sua vez, CHIOVENDA demonstrara ser a "ação" um novo direito, distinto e autónomo do direito material, caracterizado como "o poder jurídico de realizar a condição para a atuação da vontade da lei".

A tal conclusão, aliás, o próprio WACH já chegara, ao afirmar que a "pretensão da tutela jurídica" {Rechtsshutzanspruch) constituía um direito relativamente independente, destinado à manutenção da ordem dos direitos privados, sendo assim um direito secundário e independente, quanto a seus requisitos, do direito subjetivo material (La pretensión de declaración, Cap. II, n. 2).

Contudo, assim como WACH, também CHIOVENDA, ao identificar a "ação" processual com um novo direito atribuído apenas ao titular do direito subjetivo posto na demanda, para que este desencadeasse a atividade jurisdicional e realizasse a condição necessária para que o Estado aplicasse a "vontade da lei" no caso concreto, deixava sem explicação o fenómeno da ação improcedente, desde que, neste caso, o juiz teria prestado indiscutivelmente jurisdição, outorgando tutela jurídica através de sentença de mérito, sem. todavia, proteger o direito subjetivo de quem exercera a "ação".

4.6 Teoria do direito abstrato de ação

Enquanto os seguidores de WACH e CHIOVENDA procuravam demonstrar a autonomia do "direito de ação", atribuindo-o, porém, ao próprio titular do direito subjetivo material como um novo direito secundário, porém autónomo, frente ao Estado, outra concepção, devida também a um jurista alemão. DEGENKOLB, cujo ensaio, aliás, antecedera

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cronologicamente ao de WACH, tendo surgido em 1877, afirmava ser a "ação" realmente um direito autónomo, porém não apenas outorgado àqueles a quem a lei conferia algum direito subjetivo material, e sim a todos quantos invocassem um direito autónomo, porém completamente desvinculado de qualquer direito subjetivo material de que porventura fosse titular aquele que "agia" perante o magistrado.

E por não estar o chamado "direito de ação" ligado a, ou na dependência de, nenhum direito subjetivo material que lhe servisse de causa, dizia-se que este direito era abstraio, ou seja, outorgado pela ordem jurídica a todos quantos invocassem a proteção jurisdicional, independentemente de serem ou não os mesmos titulares dos direitos alegados em juízo.

Para a chamada teoria do "direito abstraio de ação" (DEGENKOLB, PLÓSZ e seus seguidores), este é um direito público subjetivo conferido a todos indistintamente, sendo irrelevante para sua existência que o autor tenha ou não razão, seja ou não titular do direito posto em causa perante o magistrado. Tanto aquele que tiver sua demanda declarada procedente quanto o outro que propusera "ação" julgada improcedente eram igualmente titulares de um idêntico direito subjetivo público, através do qual impunham ao Estado o cumprimento de sua obrigação de prestar jurisdição. Logo, tanto o autor que visse sua demanda acolhida pela sentença quanto aquele que tivesse repelida sua pretensão por infundada teriam um idêntico "direito de ação", enquanto exercício de uma pretensão de tutela jurídica perante o Estado.

A teoria do "direito abstrato de ação" não foi aceita por muitos juristas, por considerarem estes impossível confundir-se o "direito de ação" com o denominado "direito de petição", este sim equivalente ao "direito de acesso aos tribunais" (GALENO LACERDA, Despacho sa-neador, p. 76), outorgado indistintamente a todos os cidadãos.

Diferentemente de um mero direito abstrato e indeterminado, o verdadeiro "direito de ação" haveria de qualificar-se através de determinados requisitos prévios, ou condições legitimadoras de seu exercício, de tal modo que - não se identificando com o direito a uma sentença favorável, como o concebiam defensores da teoria do "direito concreto de ação" - também não fosse assimilado a mero direito cívico de petição, faculdade esta que todo cidadão tem de reclamar providências perante os órgãos do Estado, tenha ou não procedência a reclamação.

4.7 Teoria eclétíca da ação

Destas premissas nasce uma quarta teoria sobre a "ação" processual, denominada ''teoria eclética", devida a ENRICO TULLÍO LIEBMAN, um eminente processualista italiano que, durante vários anos, residiu no Brasil, sendo professor na Universidade de São Paulo. Embora haja deixado LIEBMAN inúmeros ensaios escritos no Brasil, sua célebre teoria a respeito da "ação" só foi exposta em sua forma definitiva em 1949, quando o jurista já regressara à Itália.

Tentando superar as duas posições extremas, parte LIEBMAN da afirmação de que este fenómeno, a que se dá o nome de "direito de ação", corresponde a um agir dirigido contra o Estado, em sua condição de titular do poder jurisdicional, e, por isso, em seu exato significado, o direito de ação é, no fundo, o direito à jurisdição; entre ação e jurisdição existe, por isso mesmo, uma exata correspondência, não podendo haver um sem o outro (L'azione nella teoria dei processo civile, Problemi dei processo civile, p. 45 e 47).

Sendo, como vimos, inerte a jurisdição, a "ação" processual corresponde ao "agir" daquele que pede a tutela estatal, que a porá em movimento. Portanto, se o Estado prestou jurisdição é porque alguém exerceu "ação", ou seja, porque alguém, a quem se dá o nome de autor, o provocou para que o mesmo prestasse tutela jurisdicional. De igual modo, se alguém exerceu "ação", terá necessariamente desencadeado a atividade jurisdicional. Havendo exercício de "ação", terá havido desempenho de atividade jurisdicional.

Até este ponto, "ecletistas" e partidários da doutrina no "direito abstrato de ação" não divergem. Tanto uma quanto a outra destas correntes concordam em que a "ação" absolutamente não é dada apenas ao autor que tenha razão e logre sucesso em sua demanda. Igualmente, o litigante que veja repelida por infundada sua ação terá exercido realmente "ação" processual, desde que, tanto para os juristas da doutrina "eclética" quanto para os defensores da teoria abstraía, o direito de "ação" é o direito à jurisdição.

Todavia, onde começa, para LIEBMAN, a atividade jurisdicional? Eis aqui o ponto de discórdia. Porventura haverá, segundo o entendimento deste processualista, atividade jurisdicional quando o juiz rejeita preliminarmente a "ação" por considerar inepta a petição inicial (art. 295,1,

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do CPC)? Ou por reconhecer como inexistente a legitimação para a causa, porque verifique o magistrado, desde logo, que o direito subjetivo material posto em causa não pertence àquele que se afirma dele titular? Ou se ocorre, a um primeiro exame, evidente falta de interesse processual no provimento solicitado pelo autor, de tal modo que o juiz liminarmente encerre tais processos inviáveis?

Segundo LIEBMAN, a decisão do juiz que julgar estas questões preliminares ainda não corresponde à verdadeira atividade jurisdicional (L'azione..., p. 47). Só haverá jurisdição, diz LIEBMAN, quando - ultrapassada essa fase de averiguação prévia - constatar o juiz que a causa posta em julgamento está constituída, no processo, de forma regular e capaz de ensejar uma decisão de mérito sobre a demanda, ainda que esta decisão seja contrária ao autor.

A doutrina de LIEBMAN representa, de certa forma, uma inter-mediação entre os dois extremos, representados pelas correntes do "direito concreto de ação" e do direito "abstrato". Reagindo contra a doutrina "civilista" da ação, ou contra a sua variante moderna representada pelos "concretistas", e, ao mesmo tempo, negando também a tese oposta, que identifica a ação com o simples exercício de um direito público subjetivo incondicionado, por meio do qual qualquer pessoa pode provocar a atividade jurisdicional, coloca-se LIEBMAN num ponto intermediário, ao definir a "ação" como um direito subjetivo público dirigido contra o Estado, correspondente ao direito reconhecido a todo cidadão de obter uma sentença de mérito capaz de compor o conflito de interesses representado pela lide.

Sendo assim, embora o "direito de ação" seja outorgado indiferentemente ao litigante que tenha razão e ao que tenha repelida por infundada a sua demanda - e neste sentido seja ele "abstrato" -, só existirá efetivamente "ação" processual quando existentes determinadas "condições" prévias indispensáveis para que o juiz possa decidir sobre o mérito da causa. Se algum defeito existente na relação processual, ou algum requisito prévio porventura não satisfeito pelo autor, relativamente ao direito posto em juízo, impedir que o magistrado julgue o meritum cau-sae, a decisão que encerre tal processo não será verdadeiramente jurisdicional. E não tendo havido, nesta hipótese, desempenho de função jurisdicional, exercício de "ação" igualmente não houve.

Segundo a doutrina de LIEBMAN, de larga aceitação no Brasil, a ponto de ser consagrada pelo próprio Código de Processo Civil de 1973.

deve estabelecer-se distinção entre o direito de ação no plano constitucional - que corresponderia ao chamado "direito de petição", completa-mente abstrato e incondicionado, conferido a qualquer pessoa, indistintamente, como consequência do monopólio da jurisdição pelo Estado -e o verdadeiro "direito processual de ação", este igualmente abstrato, é verdade, pois existirá mesmo que o direito material invocado como sua causa não exista, porém condicionado à existência de certos pressupostos, a que a doutrina "eclética" denomina "condições da ação".

O chamado direito constitucional de ação apenas teria relevância enquanto pressuposto deste último, do verdadeiro "direito processual de ação" (J. FREDERICO MARQUES, Instituições..., v. 2, n. 260).

O argumento central desenvolvido pelos defensores da "teoria eclética" consiste em recusar um direito de "ação" que seja tão absoluto que não tenha condições capazes de legitimar seu exercício (GALENO LACERDA, Despacho saneador, p. 76). Daí porque não se poderá confundir o verdadeiro "direito processual de ação" - dizem eles - com o simples direito, abstrato e incondicionado, de "acesso aos tribunais".

Como se observa, pela linha de argumentação desenvolvida pelos partidários da "teoria eclética", é visível sua preocupação de se oporem à teoria do "direito abstrato de ação".

O erro fundamental de ambas as teorias, tanto a do chamado "direito concreto de ação" quanto desta última, está na confusão entre ação e direito subjetivo; ou ainda entre direito subjetivo e pretensão. A doutrina confunde, de um modo geral, quando trata do conceito de "ação" processual, o "direito subjetivo de acesso aos tribunais" com o exercício efetivo e concreto deste direito, através da "ação". Ora, o "direito de acesso aos tribunais", como temos insistentemente afirmado, ainda não é ação, mas simples estado de quem tem direito subjetivo e que tanto pode estar, como ocorre entre nós, num texto de direito privado (art. 75 do CC) quanto em algum preceito constitucional; ou até mesmo não estar expresso em qualquer regra jurídica escrita, porque o direito de ser ouvido pelos tribunais é princípio imanente e insuprível em toda e qualquer comunidade estatal.

A ação, tanto no campo do direito material quanto no domínio do processo, haverá, por definição, de ser um agir conforme o direito. Admitindo-se que todos tenham o "direito subjetivo de acesso aos

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tribunais", o que evidentemente ninguém põe em dúvida, é natural que todos possam exercê-lo (agir para a realização). Se o direito de acesso aos tribunais é abstraio e outorgado a todos indistintamente, é lógico que a ação que lhe compete há de ser igualmente abstrata e incondicionada.

Quando CHIOVENDA referia-se a um "direito de ação" capaz de determinar sempre a procedência da demanda, afirmando que somente haveria ação quando o juiz reconhecesse ao autor o "direito de provocar a coação do Estado" (Prin-cipii..., p. 47), para realização do próprio direito subjetivo, estava a tratar da mesma ação de direito material de que trata o art. 75 do CC.

Está claro que este agir para realização do direito existe, mas nada tem a ver com outro agir que se dá com a "ação" processual, pois aqui age-se duplamente: contra o Estado, para a realização de um direito subjetivo público à tutela jurisdicional, a que o Estado se obriga a partir do momento em que impede a auto-realização do direito; e contra o réu, se a sentença reconhecer que o autor efetivamente tinha razão e era titular da situação de direito material afirmada na demanda.

A ação de direito material evidentemente existe como expressão do direito, mas nada tem a ver com a "ação" processual, que é também um agir, todavia para a realização do direito subjetivo público, de que é sujeito passivo o Estado. A tutela jurisdicional, no direito moderno, ao contrário do que sucedia no direito romano clássico, não se limita à simples declaração de que o demandante tem razão e de que a situação de direito material de que o mesmo se dizia titular, na causa, era realmente existente e verdadeira: estendida também a todas as formas de execução (rectius, realização) do direito judicialmente afirmado, existente o mesmo monopólio estatal, incumbirá ao juiz prolongar a tutela jurisdicional e, pronunciada a sentença de procedência, realizar, por meio de uma segunda atividade (ação), o direito que a sentença reconhecera existir em prol do autor. Aqui, neste segundo momento da função jurisdicional, o Estado solidariza-se com o titular do direito que ele próprio reconheceu ter razão, substituindo a originária atividade privada de realização do direito por uma forma de atividade estatal correspondente. Esta segunda forma de atividade jurisdicional, que o Estado presta apenas no caso de a ação ser procedente, corresponde ao auxílio estatal para a realização do direito material que ele próprio reconheceu como existente e merecedor de proteção jurisdicional.

A ação chiovendiana nada tem a ver com o "direito de acesso aos tribunais" e menos ainda com o exercício de tal direito ("ação" processual). De modo que, ao atacar-se a teoria do "direito concreto de ação", procurando mostrar que a "ação" processual há de ser abstrata e incondicionada - pois também o demandante que perde a demanda teve e exerceu "ação" -, em verdade, acusa-se a doutrina de um equívoco que ela só cometeu por imprecisão lógica e em virtude de duas ambiguidades que a teoria "eclética" conservou, quais sejam a de confundir o

direito com seu exercício e tratar da "ação" processual definindo-a como se a mesma fosse a ação de direito material.

Assim como não se deve dizer "direito reivindicatório", e sim direito de propriedade e ação reivindicatória, que lhe compete, como um autêntico direito potestativo, tal como afirmava CHIOVENDA, assim também ao "direito constitucional de ação" (direito de acesso aos tribunais) - incondicionado e abstraio - há de corresponder, a seus respectivos titulares (todos os cidadãos), o poder (direito potestativo) de fazê-lo efetivo no plano processual. E a este poder, fundado num direito preexistente, dá-se o nome de "ação" processual.

A "teoria eclética", não obstante afirmar que o chamado "direito de ação" é autónomo e abstrato, considera que ele só existirá verdadeiramente quando estejam presentes, no processo, determinadas condições que o legitimem, ou seja, o "direito de ação" é abstrato, mas deve ser "conexo a uma pretensão de direito material", ligado como deve estar, segundo se diz, a uma concreta situação de fato. O "direito de ação" na realidade só existiria quando houvesse um motivo justificador do pedido de tutela jurisdicional, isto é, quando surgisse "uma situação de fato contrária ao direito, que possa ser resolvida tão-só pelas vias jurisdicio-nais" (J. FREDERICO MARQUES, Instituições..., v. 2, p. 14).

Quais serão, pois, estas condições que qualificam e fazem nascer o "direito processual de ação", segundo a "teoria eclética"? Utilizemo-nos, mais uma vez, das palavras do Prof. FREDERICO MARQUES: "O direito de agir, embora autónomo e abstrato, será conexo, instrumental-mente, a uma pretensão, pelo que se liga a uma situação concreta sobre a qual deve incidir a prestação jurisdicional invocada. Por este motivo, o jus actionis se subordina a condições que se relacionam com a pretensão a ser julgada" (Instituições..., p. 28). E pouco mais adiante: "As condições da ação nada têm a ver com as condições de decisão favorável ao autor. E também não se confundem com os denominados pressupostos processuais" (p. 29).

Tanto os pressupostos processuais - que dizem respeito à regularidade da relação processual - quanto as denominadas "condições da ação" apresentam-se como requisitos indispensáveis ao julgamento da pretensão contida na demanda, devendo ser examinadas pelo magistrado antes de decidir o meritum causae. Em verdade, para a "teoria eclética". tais pressupostos são anteriores e estão fora do mérito da causa, de tal modo que, faltando uma das condições da ação, a decisão do juiz que constatar tal ausência não corresponderá, sequer, a um ato jurisdicional.

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Como se sabe, três são as condições da ação para a "teoria ecléti-ca": a) possibilidade jurídica do pedido; b) legítimo interesse; e c) legitimação para agir.

Não é demais registrar, todavia, o fato de haver LIEBMAN, a partir da terceira edição de seu célebre Manual de direito processual civil - editado na Itália em 1973 -, excluído a possibilidade jurídica do pedido como uma das condições da ação. Mesmo assim, continua-se no Brasil a incluí-la dentre elas. Nosso Código de Processo Civil também considera a "possibilidade jurídica do pedido" como uma das condições da ação (art. 267, VI).

De modo que, ultrapassando o primeiro momento, aquele em que o juiz investiga a respeito da regularidade da relação processual, dando como existentes, ou como inexistentes, os denominados pressupostos processuais - necessários à regularidade formal da relação processual, tais como a capacidade processual das partes e sua correta representação na causa -, haverá ele de passar a um estágio subsequente, que a doutrina considera intermediário entre o julgamento das questões formais atinentes à relação processual e a apreciação do mérito da causa, propriamente dito, averiguando, então, neste momento, se estão ou não presentes as denominadas condições da ação. Se o juiz constatar que o pedido formulado não é admitido, nem hipoteticamente, pelo ordenamento jurídico, perante o qual esse pedido seria, em tese, impossível; ou se ficar evidenciado que o autor não tem interesse legítimo na tutela que pretende; ou que ele não é o legitimado para agir, ou o demandado não o é para responder a ação como réu (legitimatio ad causam, ativa e passiva), então deverá pronunciar uma sentença declarando o autor carecedor da ação, sem, todavia, dizem os partidários da "teoria eclética", julgar o mérito da causa, pois precisamente a presença de tais condições é que tornaria possível o julgamento da lide. Inexistente que seja qualquer uma das três condições da ação, o processo deve encerrar-se sem que o juiz decida o mérito da causa" (MOACYR AMARAL SANTOS, Primeiras linhas de direito processual civil, v. l, p. 144).

4.8 O conceito de condições da ação na teoria eclética

Vejamos, por meio de exemplos, como a "teoria eclética" desenvolve o conceito de condições da ação. Comecemos pela condição denominada legitimatio ad causam. Imaginemos que o locatário ingresse em

juízo com uma ação de consignação em pagamento, para depositar em juízo os aluguéis que o locador recusa receber, visando obter, por tal meio, a correspondente quitação. Contudo, em vez de mandar citar o locador, como demandado, equivocadamente propõe sua demanda contra a imobiliária que apenas administra o prédio locado. Neste caso, haveria carência de ação, por falta de legitimidade passiva do réu para ser demandado em ação de consignação de pagamento, pois a ação só poderia ser dirigida contra o locador. Num segundo exemplo, o locador ajuíza uma ação de despejo, dirigindo-a, porém, contra o procurador do inquilino, ou contra qualquer outro terceiro que eventualmente resida no prédio, com o qual, todavia, ele não mantém qualquer vínculo locatício. Novamente estaríamos ante uma situação de carência de ação de despejo, por falta de legitimatio ad causam passiva. Pode igualmente acontecer que o autor, sendo simples administrador do locador, ingresse em juízo com uma ação de despejo contra o inquilino. Neste caso haveria também carência de ação, por falta de legitimidade para a causa (legitimatio ad causam ativa). Em todas estas hipóteses, segundo a doutrina, o processo deverá ser encerrado com uma sentença em que o juiz simplesmente declare o autor carecedor da ação, por ausência de legitimatio ad causam, sem, contudo, apreciar o mérito da demanda.

Imaginemos, agora, que tanto o autor quanto o demandado presentes no processo sejam os verdadeiros titulares da relação jurídica posta em causa - ou, como diria CARNELUTTI, os sujeitos do processo identificam-se com os sujeitos da lide -, mas falte ao autor um outro pressuposto para que sua ação exista (cf. LIEBMAN, Manuale..., v. 1, n. 75), qual seja a possibilidade jurídica do pedido. Suponha-se que o autor, tendo sofrido lesão a seu direito líquido e certo, proponha ação de mandado de segurança contra um particular, quando no sistema jurídico brasileiro tal demanda só é outorgada contra atos de autoridade; ou, então, aquele que exerça posse ad usucapionem de um imóvel urbano, por mais de oito anos, ingresse com uma ação de usucapião (J. J. CALMON DE PASSOS, Em torno das condições da ação e da possibilidade jurídica, RDPC, v. 4, p. 61); ou este mesmo possuidor, tendo sido vítima de um esbulho possessório, demande o agressor, pretendendo recuperar a posse, por meio de uma ação de reivindicação fundada no art. 524 do CC (art. 1.228 do novo CC). Nesta segunda série de exemplos, haveria legitimidade ad causam tanto do autor quanto do réu, pois ambos seriam os titulares da situação jurídica litigiosa. No entanto, haveria a mesma carência de açãOy agora por "impossibilidade jurídica do pedido".

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Pode haver, ainda, uma terceira hipótese de carência de ação: quando falte ao autor "legítimo interesse" para estar em juízo. Trata-se, aqui, do que a doutrina chama de "interesse processual", que não coincide com o interesse que tem, no plano do direito material, o respectivo titular do direito. O legítimo interesse de agir, a que se refere o art. 3.° do CPC, define-se como a necessidade que deve ter o titular do direito de servir-se do processo para obter a satisfação de seu interesse material, ou para, através dele, realizar o seu direito. Se o provimento judicial pretendido por aquele que pede a proteção jurisdicional não for idóneo para a realização do direito cuja proteção se requer, seria realmente inútil prosseguir-se no processo, até a obtenção de uma sentença que desde logo se sabe incapaz de proteger o respectivo interesse da parte. Daí dizer J. FREDERICO MARQUES (Instituições..., v. 2, p. 33) que "para que haja interesse de agir é necessário que o autor formule uma pretensão adequada à satisfação do interesse contido no direito subjetivo material. O interesse processual, portanto, se traduz em pedido idóneo a provocar a atuação jurisdicional".

Se não houver adequação entre a situação concreta de direito material indicada pelo autor e o provimento que o mesmo solicita para protegê-la, o processo resultaria inútil e o interessado estaria a fazer uso indevido do Poder Judiciário, sem qualquer utilidade prática.

Não se confunde, pois, esta categoria de interesse com o real interesse substancial ou material (J. M. ARRUDA ALVIM, Curso de direito processual civil, v. 1, p. 288). O autor poderá ter interesse em ver restaurado seu direito, cuja violação vem afirmada no processo, sem que, no entanto, tenha legítimo interesse na obtenção daquele tipo de tutela por ele reclamada, justamente porque entre a violação do direito e o meio escolhido para protegê-lo há um descompasso capaz de tornar o processo inidôneo para a finalidade pretendida pelo interessado.

"A existência do conflito de interesses" - diz LIEBMAN - "fora do processo é a situação de fato que faz nascer no autor interesse de pedir ao juiz uma providência capaz de resolvê-lo. Se não existe o conflito ou se o pedido do autor não é adequado para resolvê-lo, o juiz deve recusar o exame do pedido como inútil, anti-econômico e dispersivo" (O despacho saneador e o julgamento de mérito, Estudos sobre o processo civil brasileiro, p. 125).

Busquemos então outros exemplos desta categoria a que a doutrina denomina "carência de ação". A. A. LOPES DA COSTA (A carência

da ação, especialmente com relação à legitimação para a causa, RDPC, v. 3, p. 13) refere-se à hipótese em que o herdeiro não contemplado num testamento, depois revogado por um testamento posterior, todavia nulo, ingressa em juízo com a competente demanda de nulidade deste segundo testamento. A "carência de ação" deveria ser decretada, pois falta-lhe legítimo interesse na decretação da nulidade, uma vez que, mesmo que ele lograsse êxito na demanda, o resultado do processo ser-lhe-ia inútil, uma vez que o testamento anterior a ser restaurado pela sentença não o contemplava como herdeiro.

O sócio de uma sociedade comercial vem ajuízo pedir a decretação da nulidade do contrato social, quando, todavia, já fora ajuizada antes uma ação de dissolução de tal sociedade, encontrando-se a mesma, em virtude disso, em fase de liquidação. Mesmo que fosse realmente nulo o contrato, nenhum interesse teria o sócio em promover a pretendida ação de nulidade, pois a sociedade já havia sido dissolvida. PONTES DE MIRANDA {Comentários ao Código de Processo Civil, 1.1, p. 157) alude ao caso de alguém que ajuíza uma ação de cobrança contra o réu, tendo o autor em seu poder dinheiro daquele, com que poderia compensar seu crédito, sem necessidade de decisão judicial condenatória do pagamento. Neste caso, a ação deveria ser repelida por falta de interesse processual.

Segundo a denominada "teoria eclética", enquanto o juiz examina e decide sobre as "condições da ação" não estará ainda a exercer verdadeira jurisdição, uma vez que, como assevera LIEBMAN, "recusar o julgamento ou reconhecê-lo possível não é ainda propriamente julgar; são atividades que por si próprias nada têm de jurisdicionais e adquiririam esse caráter só por serem uma premissa necessária para o exercício da verdadeira jurisdição. A ordem jurídica tende, com a jurisdição, ao fim de realizar-se praticamente. Esse fim é conseguido pela decisão de mérito, não pelo exame da existência das condições para que ela possa ser proferida" (O despacho saneador..., p. 128).

Não sendo verdadeira atividade jurisdicional, para LIEBMAN, "nessa fase preparatória o processo funciona, em certo sentido, como um filtro para evitar que haja exercício de jurisdição quando faltam os requisitos que a lei considera indispensáveis para que se possam alcançar resultados satisfatórios" (idem).

Daí porque LIEBMAN define a açào como o "direito à sentença de mérito", qualquer que seja o seu conteúdo; e como, para ele, "julgar a lide

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e julgar o mérito são expressões sinónimas" (O despacho saneador..., p. 122), conclui-se que só existirá ação e, pois, jurisdição quando se verificar a existência das "condições da ação", de modo a possibilitar ao juiz a decisão da lide, ou a decisão do meritum causae.

Como se vê, confunde LIEBMAN, mais uma vez, o direito à sentença de mérito - portanto, a categoria do estado de quem tem direito -com a ação que corresponde a seu exercício. Direito e pretensão (exigibilidade) a que o juiz decida a lide no mérito tanto têm o autor quanto o réu, pois, decorrido o prazo para a defesa, o autor não mais poderá desistir da ação, o que significa que o réu pode compeli-lo a permanecer no processo até a prolação da sentença de mérito. Também o demandado, portanto, tem direito à sentença de mérito, desde que é evidente a legitimidade de seu interesse em obter uma sentença que declare a improcedência da ação. E naturalmente não se poderá dizer que o réu, enquanto demandado, esteja a exercer ação. Quem age é autor. E o sujeito do agir (ação). O réu não age, simplesmente reage à ação do adversário. O que tanto o réu quanto o autor têm é pretensão de tutela jurídica, de que é titular, como vimos, também o litigante que não tenha razão.

De modo que a doutrina de LIEBMAN contém, no mínimo, dois inconvenientes graves: (a) para se manter coerente, teve de imaginar uma atividade prévia, exercida pelo juiz, que ainda não seria "verdadeira" jurisdição, uma espécie de atividade de "filtragem", através da qual o magistrado deve investigar se concorrem os pressupostos processuais e as condições da ação; (b) acaba por reconhecer um direito de ação tanto ao réu quanto ao autor, resultado este que ultrapassa o próprio problema, dissolvendo-o, em vez de resolvê-lo.

Quando o juiz declara inexistente uma das "condições da ação", ele está em verdade declarando a inexistência de uma pretensão acionável do autor contra o réu, estando, pois, a decidir a respeito da pretensão posta em causa pelo autor, para declarar que o agir deste contra o réu - não contra o Estado - é improcedente. E tal sentença é sentença de mérito. A suposição de que a rejeição da demanda por falta de alguma "condição da ação" não constitua decisão sobre a lide, não fazendo coisa julgada e não impedindo a reproposição da mesma ação, agora pelo verdadeiro legitimado ou contra o réu verdadeiro, parte do falso pressuposto de que a nova ação proposta por outra pessoa, ou pela mesma que propusera a primeira, agora contra outrem, seria a mesma ação que se frustrara no primeiro processo. Toma-se o "conflito de interesses" existente fora do processo, a que CARNELUT-TI denominava "lide", como o verdadeiro e único objeto da

atividade jurisdicional. Como este conflito não fora composto pela primeira sentença que declara o autor carecedor de ação, afirma-se que seu mérito permaneceu inapreciado no julgamento anterior. Daí porque, no segundo processo, com novos figurantes, estar-se-ia a desenvolver a mesma ação.

Ora, no segundo processo, nem sob o ponto de vista do direito processual, e muito menos em relação ao direito material, a ação seria a mesma. Mudando-se as partes, transforma-se a demanda. Afirmando o juiz que o autor não tem legítimo interesse para a causa, sem dúvida estará afirmando que o conflito de interesses por ele descrito na petição inicial não merece que o Estado lhe outorgue proteção, o que significa declarar que tal conflito é irrelevante para o direito. E, neste caso, igualmente lhe falta a ação de direito material, ou esta seria ilegítima por falta de interesse. Não a ação processual, que jamais será ilegítima por falta de interesse, e da qual o autor não carecerá jamais, pois o direito a ser ouvido por um tribunal é princípio constitucional a todos assegurado.

Dizer-se, como afirmam os partidários da "teoria eclética", que a sentença que declara o autor carecedor de ação por ilegitimidade ad causam não decide o mérito de sua ação é imaginar que a demanda que o autor descreve na petição inicial pudesse ter seu mérito num segundo processo e na lide de outrem!

Como se vê, a tentativa de LIEBMAN de afastar-se de ambas as teorias precedentes, procurando um conceito de "ação" processual que não se confundisse nem com o fenómeno estudado pela doutrina do "direito concreto de ação" nem com o chamado "direito constitucional de petição", não teve em conta o fato de que apenas existem duas relações jurídicas, uma de direito material - conteúdo do processo -, que é a lide, outra, relação de direito público, que se estabelece entre as partes e o Estado, como manifestação da pretensão destas a que ele preste jurisdição. Como o autor terá direito à tutela jurídica estatal sempre, e, tendo razão, terá igualmente direito contra o réu, por serem, neste caso, duas as relações jurídicas de que nascem direitos subjetivos, duas haverão de ser as ações: a ação de direito material e a "ação" processual. Não pode haver terceira categoria, que não se confunda com o fenómeno já identificado pelos "concretistas" nem seja a "ação" abstrata indicada pela teoria pura do "direito abstrato de ação".

4.9 Interesse atual do conceito de ação

Chegados a este ponto, indaguemos qual seria o interesse atual que toda essa controvérsia sobre o conceito de "ação" processual poderia ter

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para a ciência contemporânea. Nao seria exagero dizer-se hoje que toda essa longa discussão, em seus aspectos fundamentais, não passou de um equívoco. Tal juízo, porém, seria injusto se não destacasse a extrema importância que a controvérsia sobre o conceito de "ação" teve não só para o progresso, mas até mesmo para o nascimento do direito processual civil, como disciplina autónoma e destacada do direito privado.

Quaisquer que tenham sido as razões teóricas alimentadoras de toda essa controvérsia secular, uma coisa, no entanto, é certa: todas as teorias que procuraram demonstrar a falsidade da denominada "teoria civilista" da ação, com maior ou menor intensidade, tentaram construir um conceito abstraio de "ação" processual e, ao mesmo tempo, ignoraram, ou recusaram, o conceito de ação de direito material, a ponto de afirmarem muitos processualistas brasileiros que o art 75 do CC estava em desuso!

Por que e qual o resultado de tais proposições doutrinárias? A resposta é fácil. Se a ação processual é invariavelmente abstraía, ou seja, sem causa, dela dispondo tanto o autor que tenha razão quanto aquele que não a tenha, e desprezando-se o conceito de ação de direito material como um fenómeno estranho ao direito processual, não haveria por que conservarem-se as inúmeras "ações especiais", de ritos diferentes. Se é verdade que, no plano do direito material, a cada direito corresponde uma ação que o assegura, perante o direito processual, todos os direitos só terão uma "ação", que há de ser uma ação ordinária e plenária, abolindo-se as ações especiais e sumárias.

Este foi realmente o verdadeiro pressuposto ideológico oculto em toda a controvérsia, de que voltaremos ainda a ocupar-nos quando tratarmos do ponto sobre processo e procedimentos.

PROCESSO E PROCEDIMENTO

SUMÁRIO: 5.1 Introdução - 5.2 Tutela diferenciada e "ação" processual abstrata - 5.3 Tendência de superação do procedimento ordinário -5.4 Processos interditais - 5.5 Processos sumários documentais - 5.6 Processos monitórios e injuncionais - 5.7 "Tutela antecipada", na recente reforma do Código de Processo Civil: 5.7.1 Natureza da medida antecipatória: 5.7.2 Natureza do provimento jurisdicional que a concede; 5.7.3 Perigo de dano irreparável; 5.7.4 Abuso do direito de defesa ou manifesto propósito protelatório do réu; 5.7.5 Perigo de irreversibilidade do provimento antecipado; 5.7.6 Concessão da tutela antecipada no curso do processo; 5.7.7 Precariedade do provimento antecipatório; 5.7.8 Prova; 5.7.9 Responsabilidade do autor - 5.8 Autotutela judicializada - 5.9 Procedimento sumário - 5.10 Ações para cumprimento das obrigações de fazer e não fazer como demandas unitárias -5.11 Ação monitoria.

5.1 Introdução

A atividade desenvolvida pelos órgãos jurisdicionais pode ser obje-to de classificações que levem em conta a natureza de tal atividade, preocupando-se com as funções que ela desempenha para a realização da ordem jurídica estatal; ou ainda pode ser classificada segundo as diversi-dades formais que cada uma das espécies de tutela processual apresenta em sua estrutura e sua projeção dinâmica.

Quando pretendermos classificar o ato jurisdicional típico - decisões e sentenças, tanto do "processo de conhecimento" quanto do processo de execução por créditos -, teremos de examinar e ordenar o produto desta atividade estatal conforme os efeitos que cada um deles

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produz no mundo jurídico, de acordo com o respectivo verbo por meio do qual o ato sentenciai reflete a ação de direito material correspondente, contida na demanda, de que a decisão judicial de procedência é consequência necessária.

Os provimentos judiciais, tanto de jurisdição contenciosa quanto de "jurisdição voluntária", segundo este critério, podem ser divididos em sentenças declaratórias, constitutivas, condenatórias, executivas e man-damentais, conforme a pretensão de direito material do autor vitorioso seja dirigida a obter a simples declaração de existência ou inexistência de uma determinada relação jurídica; ou tenha por fim sua constituição, modificação ou extinção; ou colime a simples condenação do demandado a cumprir uma obrigação; ou finalmente tenha por objeto obter, desde logo, a realização do direito litigioso no processo de conhecimento, mediante um ato de execução praticado pelo juízo ou através de um simples mandado ou ordem que o magistrado emita, como porção do conteúdo do ato sentenciai.

Esta classificação diz respeito às sentenças de procedência, de modo que é ilusória a suposição de que ela seja uma forma apenas processual de classificarem-se sentenças. Em verdade, como as classificações antigas, que costumavam levar em conta, por exemplo, a natureza do bem objeto do litígio, para distinguir as ações em mobiliárias ou imobiliárias, ou a natureza do direito posto em causa, para classificá-las em reais e pessoais, também esta, que divide as ações e sentenças em declaratórias, constitutivas, condenatórias, executivas e mandamentais, diz respeito à natureza do direito litigioso e reflete a correspondente ação de direito material que há de ser realizada pela sentença.

Dissemos que esta forma de classificarem-se as sentenças é válida tanto para o "processo de conhecimento" quanto para o processo de execução, inclusive para as sentenças proferidas no processo de "jurisdição voluntária". Certamente que isto é possível e legítimo. Contudo, como oportunamente veremos, as sentenças proferidas na chamada "jurisdição voluntária" jamais terão a eficácia declaratória como sua expressão máxima, pois. do contrário, acabariam produzindo coisa julgada material, resultado este estranho a tal tipo de atividade jurisdicional.

Deixemos, por ora, em suspenso o tratamento deste tipo de classificação, que haverá de ser oportunamente examinado, ao estudarmos a demanda judicial e suas espécies.

Cuidemos agora de investigar as formas de atividade jurisdicional segundo os diversos tipos de procedimentos e as técnicas de que o direito processual civil se vale para instrumentalizar cada espécie de direito litigioso.

*açâo" processual abstraía

A determinação do conceito de "ação" processual acompanhou, pode-se dizer, toda a trajetória percorrida pela moderna ciência do direito processual civil, podendo-se mesmo afirmar que este ramo da ciência jurídica contemporânea nasceu a partir das controvérsias a respeito do conceito de "ação" processual. Hoje, decorrido mais de um século desde que estas polémicas tiveram início, chega-se afinal à curiosa conclusão de que o assunto não possuía, na verdade, a importância que todos imaginavam que ele tivesse para a ciência do processo, e a contribuição mais moderna e prestigiada a respeito do tema, de marcante influência na doutrina brasileira, representada pela teoria de LIEBMAN, acaba constatando que - da perspectiva sob a qual as investigações sobre o conceito de ação foram invariavelmente desenvolvidas - tanto o autor quanto o réu têm "ação" (cf. LUIG1 MONACCIANI, Azione e legiti-mazione, p. 363).

Todavia, se as inúmeras teorias existentes sobre o conceito de "ação" processual foram as resultantes de um equívoco doutrinário, porventura não teriam as próprias polémicas que as alimentaram, e encheram milhares e milhares de folhas de papel, algum sentido ideológico que as pudesse explicar? Indiscutivelmente, sim. Todo o movimento doutrinário que sustentou o próprio estabelecimento do direito processual civil como um ramo autónomo da ciência jurídica, a partir justamente do conceito de "ação" processual, estava inserido no amplo contexto histórico do liberalismo capitalista do século XIX europeu, a serviço de suas proposições teóricas fundamentais.

Estes ideais, no campo do direito processual, refletiam-se na exigência de que a jurisdição fosse confiada a juizes desprovidos de qualquer poder de império, passivos e inertes, cuja única missão deveria ser a mera aplicação do direito legislado. Eis a razão de ser do denominado "processo de conhecimento", com suas três espécies de sentenças, através das quais o magistrado simplesmente julga, diz o direito, realizando uma atividade puramente lógica, e nada executa, no plano da realidade social.

5.2 Tutela diferenciada e

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Existem autores modernos de merecido prestígio, como é o caso de HENRY VIZIOZ, presos ainda à ideia - que outros processualistas sequer verbalizam - de que os "actes de comandement" não seriam verdadeiramente jurisdicionais (Études de procédure, p. 41), reduzida esta função estatal específica à declaração dos direitos.

As mesmas exigências do nascente Estado industrial refletiam-se igualmente no campo do direito processual civil com uma intensidade sequer suspeitada pelos doutrinadores, no sentido de se buscarem formas e estruturas procedimentais capazes de atender a duas outras necessidades básicas do Estado liberal: a certeza do direito e a maior simplicidade e celeridade procedimentais.

Nem seria realmente possível imaginar a vitória da civilização industrial contemporânea, a partir do liberalismo dos séculos XVIII e XIX, se o direito não pudesse assegurar ao litigante vitorioso em juízo, para sempre, os resultados práticos de sua vitória. Para o empresário moderno, sempre que ele tenha de sujeitar-se a uma controvérsia judicial, é mil vezes preferível uma rápida derrota do que uma vitória demorada ou parcial, que ainda deixe pontos litigiosos capazes de alimentar novas demandas posteriores.

Para os "homens de negócio", a perda de uma demanda judicial pouco ou nada representa, em termos de encargos financeiros, pois são inúmeras e conhecidas as técnicas de composição de custos, de produção, por meio das quais é perfeitamente possível, e fácil, transferir ao "consumidor" os prejuízos decorrentes da derrota judicial. Estes, assim como os lucros, são perfeitamente escrituráveis. A incerteza jurídica não. Nenhum empresário, seja ele pertencente ao setor de atividade que se quiser, poderá conviver com a incerteza.

Aos juristas formados na suposição de que o direito seja uma ciência normativa pura, desligada das realidades sociais, este tipo de cogitação poderá parecer inútil ou impertinente. Contudo, a atitude mental de absenteísmo ético e político que tem caracterizado os juristas modernos ficou superada, especialmente a partir das profundas transformações culturais ocorridas no mundo ocidental, depois da Segunda Guerra Mundial.

As contribuições trazidas pela sociologia acabaram demonstrando que o direito - qualquer que seja a definição teórica que se lhe dê -funciona objetivamente, no campo das relações sociais, como um instru-

mento de convivência humana, condicionado segundo o tipo e as exigências de cada comunidade social, determinado pelos valores e contingências históricas dominantes. Como diz LAWRENCE FRIEDMANN, a verdadeira história do direito haveria de ser escrita a partir de todos os componentes que o "produzem", para um determinado momento histórico, assim como teríamos de incluir no campo de nossas investigações -como um fenómeno de produção jurídica também - as consequências que o direito efetivamente vigente e aplicado pelos tribunais provoque, como um reflexo social, no seio de uma determinada comunidade, ordenando e influindo novos comportamentos humanos (// sistema giuridico nella prospettiva delle scienze sociali, p. 36 e ss.).

Estas rápidas observações, sobre problemas teóricos gerais de tanta importância, tornaram-se necessárias para que o assunto que nos deve ocupar pudesse ser compreendido e avaliado adequadamente. Não seria possível, em nosso atual contexto cultural, recolocar como objeto de investigação toda a problemática ligada aos processos sumários sem revelar os componentes ideológicos que determinaram sua exclusão dos domínios do direito processual.

Na verdade, a teorização sobre o conceito de "ação" processual escondeu sempre a proposição ideológica básica que a alimentava, e que tinha por fim legitimar a universalização do procedimento ordinário, como a única forma de tutela processual compatível com os valores e padrões culturais da civilização moderna, ao mesmo tempo em que -com um único golpe - derrotava-se outro inimigo, contra o qual, na realidade, a luta se dirigia, quais sejam os processos sumários.

Se a "ação" é una e abstraia, não haveria então razão para continuar a repetir os "equívocos" cometidos pelos velhos praxistas quando estes procuravam distinguir e classificar as inúmeras espécies de ações.

Todas as classificações que se fizessem a respeito das ações não teriam nenhum interesse para o processualista, uma vez que, qualquer que fosse a pretensão de direito material, o veículo processual correspondente haveria de ser a única "ação" existente, rigorosamente formal e abstrata, correspondente a. procedimento ordinário^ desde que, demonstrada que a "ação" era una, não mais se justificava a insistência com a categoria das "ações especiais".

Na verdade, todos os processos sumários - e a técnica de "sumari-zação" precisamente nisto consiste - operam um corte da totalidade do

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conflito, trazendo-o para o processo através de uma demanda que não o envolve em sua plenitude, de tal modo que determinados pontos ou questões litigiosas devem ficar "reservadas" para futuro exame em processo subsequente. E, se não todas, ao menos a grande maioria das ações especiais - além de apresentarem particularidades rituais que as fazem distintas do procedimento ordinário - correspondem também a pretensões de direito material de conteúdo menor do que as reais dimensões do conflito de interesses em que se acham envolvidos os litigantes.

Não obstante considerar-se o procedimento ordinário como aquele "em que o juiz decide a lide através da completa cognição, e em que as partes discutem o litígio amplamente" (J. FREDERICO MARQUES, Procedimento ordinário, p. 100), aceitando-se, portanto, a correspondência entre ordinariedade formal eplenariedade material, de um modo geral sempre considerou-se a inclusão das ações especiais nos códigos brasileiros como uma simples homenagem à tradição, tanto menos justificada quanto mais progredia a "ciência processual". Dizia-se então que a ação, enquanto direito de exigir do Estado a prestação da tutela jurisdicional, "não tem nome", e, a rigor, nem o Código deveria referir-se, por exemplo, às ações possessórias, ou à nunciação de obra nova, ou a outra qualquer ação especial (EGAS MON1Z DE ARAGÃO, Procedimento ordinário, p. 153). Segundo a doutrina consagrada, a "ação" processual deveria ser concebida como una e abstrata, equivalente ao direito de exigir que o Estado preste tutela jurisdicional. As ações especiais apenas diferenciar-se-iam daquelas tratadas pelo procedimento ordinário em virtude de algum "desvio de rito padrão", sem, todavia, haver, do ponto de vista substancial, razão bastante para justificar esse tratamento separado" (J. C. BARBOSA MOREIRA, A estrutura do novo Código de Processo Civil, RF 246/35), uma vez que a inclusão destes procedimentos especiais nos códigos modernos apenas responderia a uma tradição vetusta, tanto do direito brasileiro quanto dos outros sistemas.

Partindo da doutrina de LIEBMAN sobre o conceito de ação, CÂNDIDO DINAMARCO, na obra Fundamentos do processo civil moderno, p. 272), ainda insiste em considerar obsoleta e "incompatível com o direito contemporâneo" a conservação, nos códigos modernos, das "ações especiais", na suposição de que estas categorias correspondem a "ações" processuais "substancializadas", e não às ações de direito material.

Hoje, porém, transcorridos alguns anos, a maior novidade científica, no campo do processo civil, passou a ser, justamente, a busca de formas especiais de tutela jurisdicional indicadas pelos processualistas como espécies de "tutela diferenciada", que outra coisa não é senão a

redescoberta tardia de que a todo direito corresponde, ou deve corresponder, uma ação (adequada) que efetivamente o "assegure", proclamando-se, mais uma vez, a função eminentemente "instrumental" do processo.

Volta-se, pois, a tratar- ao lado da "ação" processual "una e abstrata" - de ações especiais que, longe de significarem simples desvios do padrão ritual ordinário, equivalem a formas muito especiais de tutela processual sumária.

Para que este assunto seja suficientemente esclarecido, fixemos através de um exemplo a natureza e função exercida pelas denominadas ações especiais, comparando-as com as reais proporções do conflito de interesses existente fora do processo entre os litigantes. Imaginemos que exista, entre duas pessoas, uma determinada relação jurídica, sobre cuja verdadeira natureza se controverta, envolvendo a posse de certo imóvel. Segundo um dos litigantes do conflito - que se afirma proprietário do imóvel -, a pessoa que o possui não tem legitimidade alguma para estar em sua posse, ao passo que este sustenta possuí-lo em virtude de um contrato verbal de locação. O estado de conservação do imóvel é precário, exigindo que se lhe façam reparações urgentes.

Esta situação de conflito poderá, sem dúvida, dar origem a múltiplas demandas judiciais. O proprietário poderá, desde logo, ajuizar uma ação reivindicatória - que é ordinária e plenária - através da qual pedirá que o juiz o declare proprietário e, no mesmo processo, ordene que se lhe restitua o imóvel, imitindo-o em sua posse efetiva. Se ele preferir esta via, provavelmente nada mais restará para ser discutido numa eventual demanda posterior, que pudesse ter por objeto a posse do aludido imóvel, admitindo-se a procedência da reivindicatória, a não ser naturalmente a pretensão que ainda lhe restaria de ser indeniza-do pelos prejuízos porventura causados pela ocupação de seu imóvel, que o magistrado considera injusta. Se o proprietário vitorioso na reivindicatória não tiver cumulado, numa mesma petição inicial, as duas demandas - a ação de reivindicação e a indenizatória -, então ainda sobrar-lhe-á esta última, com que ele poderia voltar a juízo com uma segunda ação.

Precisamente em atenção aos mesmos princípios de economia e segurança, também aqui a lei estimula, até onde pode, a reunião, num mesmo processo, de todas as possíveis pretensões que as partes tenham uma contra a outra, de modo que a profilaxia do conflito se faça pela forma mais radical e completa possível.

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Entretanto, se, em nosso exemplo, o possuidor que se diz inquilino antecipar-se a seu contendor e ajuizar uma ação de consignação em pagamento dos aluguéis de que ele se diz devedor, porque o outro, em tais circunstâncias, naturalmente irá recusar recebê-los (art. 890 do CPC, c/ c o art. 973,1, do CC) (art, 335,1, do novo CC); ou então, ante a ameaça concreta de turbação ou esbulho possessório, ingressar o pretenso inquilino com uma ação de interdito proibitório (art. 932 do CPC), o resultado final obtido com estas ações especiais apenas "comporá" uma parcela do conflito total existente entre as partes fora do processo, deixando, portanto, sem tratamento extensas áreas de discórdia, que as sentenças proferidas em tais procedimentos especiais não poderão apreciar e que, muito provavelmente, irão alimentar outras demandas subsequentes.

Se o possuidor sagrar-se vitorioso na ação possessória, é quase certo que o pretenso proprietário sucumbente voltará a juízo, agora como autor de uma demanda reivindicatória, tentando obter a recuperação da posse do imóvel que a sentença anterior deixará com o possuidor. Esta contingência tòrna-se inevitável justamente porque a ação de interdito proibitório é uma demanda que, além de formalmente especial, é rigorosamente sumária sob o ponto de vista material, desde que ao demandado, no juízo possessório, ficam vedadas todas as possíveis defesas que ele teria fundadas em direito. E estas defesas que os processos sumários tornam inviáveis é que irão alimentar demanda subsequente. O proprietário, em nosso exemplo, não poderia defender-se, na ação de interdito proibitório, alegando sua condição de titular do domínio, ou o fato de ser ele locador, ou titular de qualquer outra relação jurídica que não fosse de natureza possessória também. Todas as defesas chamadas petitórias passarão a constituir o que se denomina "exceções reservadas". E com elas é que o demandado sucumbente na ação possessória formará a lide subsequente, através da qual voltará ajuízo para tentar obter a posse definitiva do imóvel.

Neste caso, o conflito de interesses só pôde ser definitivamente composto por meio de duas ações consecutivas, separadas e autónomas.

Se, no entanto, ao invés de promover uma ação possessória, o pretenso inquilino, que, simultaneamente com os atos de ameaça à posse, também tivesse recusada sua oferta de aluguéis, ajuizar uma ação de consignação em pagamento, procurando liberar-se desta obrigação pelo depósito em juízo dos aluguéis recusados, e perder, nem por isso perderá ele a posse do imóvel. A demanda de consignação em pagamento é ainda

mais sumária do que a ação possessória, circunstância esta que poderia determinar, ao menos em teoria, a necessidade de três ações consecutivas para que o conflito de interesses existente entre as partes fosse integralmente composto, pois quanto mais uma determinada demanda se "suma-riza" tanto mais sobrarão "exceções reservadas", a justificar outras demandas posteriores. E, na hipótese de haver o inquilino proposto a ação de consignação em pagamento, poderia ele tornar a juízo com sua demanda possessória, pois a discussão desta matéria estaria fora dos limites da primeira ação.

No caso da ação consignatária, fracassa até mesmo a intenção de nosso Código de Processo Civil liberalizar a possibilidade de ações reconvencionais (art. 315), pois o demandado, numa ação de consignação em pagamento, não poderia reconvir com uma ação reivindicatória, servindo-se do processo de seu contendor para obter, desde logo, a posse definitiva do imóvel.

Pode acontecer também que, durante a ação possessória, ou até mesmo no curso da ação de consignação em pagamento, o pretenso proprietário ou locador demandado requeira ao juiz a realização de "obras de conservação da coisa litigiosa" (art. 888,1, do CPC), tendo em vista a necessidade de reparações urgentes de que o prédio careça, cuja natureza ou gravidade tornem impossível esperar o resultado final daquelas demandas. Neste caso, haverá de formar-se um novo processo acessório para discussão e decisão a respeito do pedido de realização de tais obras de prevenção contra o dano.

Como nas hipóteses anteriores, e ainda com maior rigor, a demanda cautelar é rigorosamente sumária, impossibilitando todas as defesas que o demandado poderia suscitar nesta ação, que não tivessem por fundamento exclusivo a demonstração de que o imóvel não corria qualquer risco de dano iminente capaz de justificar as indicadas obras de conservação.

Poderia acontecer que, em vez de obras de conservação, o futuro autor de uma ação reivindicatória requeresse o sequestro preparatório do imóvel (art. 822 do CPC), sob a alegação de que o possuidor o estava danificando. Também aqui o réu não poderia defender-se alegando simplesmente sua condição de possuidor, mesmo porque tal condição seria até mesmo um dos pressupostos para o cabimento do sequestro. As possibilidades de defesa na ação cautelar ficariam contidas dentro de limites ainda mais estreitos. Apenas as objeções que tivessem por fim

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afastar a alegação de que o prédio estaria sendo danificado seriam relevantes. Havendo sério risco de dano iminente ao imóvel, o juiz deveria conceder o sequestro, mesmo que a propriedade e a posse dele fossem duvidosas.

Para ter-se, pois, uma exata compreensão do que seja uma ação sumária e do verdadeiro papel por ela desempenhado, assim como para se compreenderem as razões que determinaram a universalização do procedimento ordinário no direito contemporâneo, antes de mais nada é necessário distinguir os conceitos de lide, no sentido carneluttiano, e litígio. No sentido técnico-processual, como se viu, o litígio - a lide que vem descrita na petição inicial - nem sempre compreende toda a lide, tal como ela se apresenta, como conflito de interesses entre os litigantes.

5.3 Tendência de superação do procedimento ordinário

Se o procedimento ordinário oferecia reconhecidas vantagens sobre os processos sumários, à medida que aquele normalmente poderia conter uma demanda plenária, capaz de trazer para o processo todo o conflito de interesses qualificador da lide, as necessidades e contingências atuais de nossa realidade têm mostrado, muito mais do que suas possíveis vantagens, as enormes e insuportáveis desvantagens desse tipo procedimental, exacerbadamente moroso e complicado, a ponto de tornar-se inadequado ao nosso tempo e às novas exigências decorrentes de uma sociedade urbana de massa.

É por este ângulo, precisamente, que os defeitos e inconveniências do procedimento ordinário mais se destacam, porque, além de sua natural morosidade - que o transforma em instrumento processual de índole conservadora, enquanto preserva às vezes por longos e longos anos o status quo anterior à propositura da demanda -, funda-se ele igualmente num outro princípio herdado do liberalismo do século XIX, qual seja a existência de um magistrado destituído de quaisquer poderes para intervir no objeto litigioso, dando-lhe, através de decisões liminares, alguma forma de disciplina provisória enquanto a demanda se processa.

A natureza conservadora de certas técnicas processuais que privilegiam a posição processual de quem se defende, preservando o status quo, fora já denunciada por FRANÇOIS GENY, em uma de suas obras capitais, de marcante influência na doutrina do direito contemporâneo (Science et technique en droit prive positif, v. 3, p. 274).

Resumindo: o procedimento só é ordinário porque - ao seguir-se a ordem natural dos juízos {ordo judiciorum privatorum) - riscam-se dele todas as decisões liminares, por meio das quais poderia o magistrado eventualmente dar disciplina provisória aos fatos da lide, ou mesmo antecipar-lhe, como acontece, por exemplo, com as liminares dos processos interditais, o resultado final da provável sentença de procedência. A inserção de uma decisão liminar transformaria, por si só, o procedimento de ordinário em especial.

Por outro lado, consistindo toda técnica de sumarização processual, em última análise, na criação de formas procedimentais por meio das quais se inverte o contraditório através de decisões liminares, fica entendido que o procedimento, além de ordinário, sob o ponto de vista formal, é também o instrumento idóneo para veicular as demandas plenárias.

E o que se observa atualmente, tanto no Brasil quanto nos demais sistemas derivados do direito romano-canônico, é uma fonte incontida de "sentenças liminares", numa gigantesca rebelião contra o procedimento ordinário, acusado como um dos responsáveis pela crise em que se debate o Poder Judiciário.

Para facilitar a compreensão do que acaba de ser dito a respeito da passividade do juiz do procedimento ordinário, figuremos outro exemplo. Imaginemos que alguém, titular da propriedade de uma extensa fazenda de terras férteis, depois de havê-la adquirido, tentando imitir-se na posse efetiva de suas terras, seja impedido por alguém que se afirme possuidor legítimo da aludida fazenda, em virtude de um contrato verbal de arrendamento, ou de comodato, ou mesmo sem qualquer título formal legitimador de sua posse que, todavia, se diz de boa-fé e revestida dos demais requisitos necessários para gerar usucapião. Neste caso, se o adquirente ingressar em juízo com uma ação de reivindicação (art. 524 do CC) (art. 1.228 do novo CC), mesmo que o juiz verifique que a defesa oposta pelo demandado é absolutamente infundada e meramente protelatória, sendo certo que a futura sentença irá reconhecer a procedência da ação de reivindicação, mesmo assim, e apesar de tudo, este juiz estará completamente impedido de proteger desde logo o direito do autor, outorgando-lhe, por exemplo, sob forma de medida incidental, a posse provisória das terras que lhe pertencem, enquanto o procedimento ordinário se arrasta.

Nestas circunstâncias, terão o autor e o magistrado de assistir impotentes, às vezes por longos e longos anos, ao conhecido sortilégio

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de escaramuças e manobras de que o demandado se servirá para prolongar ao máximo a duração da causa, enquanto se locupleta com os rendimentos produzidos pelo imóvel, empregando-os justamente na luta judiciária contra seu dono, que outro remédio não terá senão esperar e preparar-se para promover, depois do dano consumado, uma improvável ação de ressarcimento pelos prejuízos ocasionados pela injusta exploração da terra, cuja posse pelo demandado desde o início se sabia injusta.

No direito brasileiro, como se sabe, esta situação de verdadeira angústia, em que frequentemente se vê posto o litigante que enfrenta o procedimento ordinário, ainda se torna mais dramática em virtude da forma como nosso Código de Processo Civil disciplina a execução provisória da sentença de primeiro grau. Segundo o art. 520 do CPC, em nosso exemplo, ainda que o magistrado afinal venha a reconhecer a procedência da ação reivindicatória, ao injusto possuidor bastará a propositura do recurso de apelação (art. 513 do CPC) para que sua posse se prolongue até que o tribunal superior confirme a sentença de procedência.

Pior ainda: segundo uma concepção errónea, mas extremamente arraigada em nossa jurisprudência, a açào de reivindicação é simplesmente condenatória, e não executiva lato sensu, de modo que a execução da respectiva sentença haveria de fazer-se numa segunda demanda de execução para entrega de coisa certa (art. 621 do CPC), onde o mesmo possuidor injusto, como tal reconhecido pela sentença, ainda poderia opor embargos de retenção por benfeitorias (art. 744 do CPC). E, não obstante o art. 625 fale em embargos não suspensivos de execução, sabe-se que todos os embargos opostos pelo executado têm a virtude de suspender o curso do processo executório, ou, se a não têm sempre, na prática a suspensão invariavelmente ocorre.

Na experiência forense brasileira contemporânea, ou o magistrado persiste em sua obediência ao esquema tradicional do procedimento ordinário, mantendo-se "imparcial", sem intervir na disciplina pro tempore do objeto litigioso, ou a situação de injustiça apresenta-se com tonalidades tão graves que o magistrado acabará rompendo os grilhões que o prendem ao procedimento ordinário, para decretar medidas provisórias, sob a forma de decisões liminares, que importem na execução antecipada da futura sentença de procedência.

Na realidade, o que se verifica na experiência forense brasileira, independentemente do que o Código prescreva, ou daquilo que a doutrina nos ensine, é uma batalha sem quartel contra a lentidão e a inoperância do procedimento ordinário, e, mais do que contra seu emperramento, contra a passividade em que o mesmo coloca o magistrado.

Preso ainda a um ultrapassado galicismo judiciário, herdado da revolução francesa liberal do século XVIII, o legislador brasileiro manteve uma visível desconfiança contra o juízo de primeiro grau, evitando, na medida em que o pôde, as decisões liminares e reduzindo severamente os casos de cabimento de execução provisória.

A "imparcialidade" que o procedimento ordinário impõe ao magistrado, impedindo-lhe de conceder medidas liminares ou, por qualquer forma, de dar regulação provisória ao estado de fato da lide é uma consequência natural dos princípios que presidiram à formação da "ciência" jurídica europeia no século XIX, especialmente da ideia de que ao Poder Judiciário cabia apenas a missão de cumprir a lei, sem mesmo poder interpretá-la, lei essa perante a qual "todos os homens eram iguais", independentemente das injustiças concretas e de toda sorte de discriminações sociais que a ordem jurídica estivesse a produzir em homenagem a estes princípios.

Eis aí as raízes e os fundamentos filosóficos que induziram CARNELUTT1 a redigir o célebre art. 324 de seu Projeto de Código de Processo Civil italiano e que é o antecedente dos arts. 798 e 799 de nosso Código atual. Daí porque é natural e compreensível o emprego do processo cautelar, na prática forense brasileira, como instrumento de sumarização processual, posto que o legislador de 1973, como se disse, cortou as demais vias alternativas de tutela preventiva e urgente.

Acaba-se, afinal, de redescobrir que os homens concretos não são iguais, e que toda tentativa de tratá-los igualmente, na relação processual, pode transformar-se numa injustiça notória. O "homem", que segundo ROUSSEAU teria nascido livre e igual em direitos - com que se alimentaram todas as teorias jurídicas de índole liberal do século XIX -, é sem dúvida uma bela fantasia política que a história contemporânea transformou em ideologia conservadora.

CHIOVENDA. em sua luta contra a ideia de que possa haver "criação judicial do direito", através das sentenças, afirmava que "os juizes rigorosamente fiéis à lei conferem aos cidadãos maior garantia e confiança do que os farejadores de novidades em geral subjetivas e arbitrárias" (Instituições.... v. 1. p. 43) - sem dúvida, desde que se tenha uma concepção de lei como a entendia MONTESQUIEU - "uma relação necessária derivada da natureza das coisas" (L'esprit des Uns. p. 530).

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Entretanto, os que conhecem os legisladores modernos e as circunstâncias em que certas leis são criadas, o que de resto não difere em nada do que sempre ocorreu com os legisladores históricos, por certo não terão grande entusiasmo com a doutrina de MONTESQUIEU e dificilmente poderão crer que as leis existentes sejam realmente uma "relação necessária fundada na natureza das coisas". E nem poderão conservar qualquer ilusão com a proclamada fidelidade dos juizes às leis existentes, como instrumento de garantia das liberdades civis e dos direitos individuais, especialmente depois que os modernos meios de comunicação social tornaram tão evidentes e notórias as ligações da lei com as estruturas de poder dominante e deixaram à mostra os compromissos e ideologias que rondam os legisladores modernos.

ANTÓNIO SEGNI nos dá, nesta passagem, um novo exemplo de repúdio aos processos sumários:"... e le forme, le complicate forme processuali, sono il presidio delia sostanziale giustizia, assicurano una parità de trattamento fira le parti, affidata alia forma obiettiva delia leggi, non ai mutevole impressionabile giudizio deli'uomo, creano tra Ia matéria, spesso passionale, dei processo e il giudice uno strato isolante il giudizio dalle acesse contese umana. Dove si è voluto, dal potere statale, violare Ia giustizia se è ricorso piú che a giudici speciali giudizi con forme speciale o senza formalità" (L'unità dei processo, Scritti giuridici, v. 1, p. 255).

Ora, a "parità di trattamento fra le parti", por natureza desiguais, nada mais era do que uma maneira sofisticada, mas extremamente injusta, de tratar as situações reais e as pessoas concretas, completamente diferentes entre si, de uma maneira uniforme, como se as leis e os fenómenos sociais pudessem ser equiparados às uniformidades existentes nas ciências experimentais!

Mesmo assim, e apesar de tal atitude doutrinária, de duvidosa legitimidade, os mesmos escritores que condenavam os "processos sumários", ou, como diz SEGNI, os "juízos especiais", nunca repudiaram, por exemplo, a longa e laboriosa teoria dos títulos de crédito, por meio dos quais os "empresários" podiam livrar-se do tão elogiado procedimento ordinário, servindo-se do mais puro e bem feito processo sumário que a doutrina moderna jamais concebeu!

Contrariando as posições teóricas até agora predominantes, os pro-cessualistas voltam a preocupar-se com outros dois valores fundamentais, inerentes à tutela processual: a garantia da efetividade dos direitos subjetivos e das demais situações protegidas pelo direito e o desenvolvimento de novas formas de tutela preventivas e até mesmo "promocio-nais", em vez de confinar-se a jurisdição a seu papel tradicional de órgão sancionador para condutas violadoras da lei (GIOVANNI VERDE, Uni-cità e pluralità di riti nel processo civile, RDP, p. 663; DENTI, Processo civile e giustizia sociale, p. 47 e 59),

Estas modernas exigências do direito processual civil, com respeito à obtenção de uma justiça rápida e capaz de tornar efetivo o direito material, como lembra DENTI (Un progetto..., p. 263 e 299), recordando uma oportuna observação de GINO GORLA, leva-nos a restaurar as antigas formas de processos sumários anteriores à Revolução Francesa, fato este, aliás, observado também por ROGER PERROT, a propósito do crescimento moderno descomunal da "juridiction des

Como diz o Prof. J. C. BARBOSA MOREIRA, "se o processo é instrumento de realização do direito material, o resultado do seu funcionamento deve situar-se a uma distância mínima daquela que produziria a atuação espontânea das normas substanciais" (Temas de direito processual, p. 3), porque, diz o aludido escritor, "toma-se consciência cada vez mais clara da função instrumental do processo e da necessidade de fazê-lo desempenhar de maneira efetiva o papel que lhe toca".

Também na Itália esta mesma preocupação pela efetividade dos direitos proclamados pelas constituições e previstos nos códigos, ou até mesmo deduzidos dos textos constitucionais antes que os legisladores ordinários lhes dêem consagração legislativa, tem sido objeto de uma extensa e importante literatura, a ponto de afirmar-se hoje como temática predominante nas modernas investigações científicas nesse país.

Segundo se diz, se a função do processo há de ser verdadeiramente instrumental, deverá ele ser concebido e organizado de tal modo que as pretensões de direito material encontrem, no plano jurisdicional, formas adequadas, capazes de assegurar-lhes realização específica, evitando-se, quanto possível, que os direitos subjetivos primeiro sejam violados para, só então, merecer tratamento jurisdicional, concedendo-se a seu titular, às mais das vezes, um precário e aleatório sucedâneo indenizatório.

A partir desta ideia básica, busca-se hoje, tanto no campo doutriná rio quanto na prática judiciária, desenvolver formas especiais de proce dimentos sumários por meio dos quais a ordem jurídica assegure a reali zação efetiva de cada direito subjetivo, protegendo-o, quando necessário, através de alguma forma de tutela preventiva. A recente reforma introdu zida em nosso Código de Processo Civil, como veremos mais adiante, introduziu, no processo de conhecimento, uma liminar antecipatória que atende a esta exigência.

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5.4 Processos interditais

Uma espécie de procedimento especial bastante conhecida é o denominado processo interditai, cuja característica genérica está na possibilidade de o juiz poder outorgar ao autor uma decisão liminar que antecipe, em parte, o resultado da futura sentença de procedência da ação.

A denominação de processos interditais, ou simplesmente interditos, provém do direito romano. Como se sabe, o processo civil romano, ao lado das actiones - originariamente destinadas a tutelar apenas as pretensões nascidas do direito das obrigações -, dispunha de um processo especial, de cunho predominantemente administrativo, chamado interdictum, por meio do qual se dava proteção a múltiplas e variadas situações jurídicas, especialmente às relações de direito público, incluindo a posse.

O procedimento interditai, que se encerrava com um decreto pronunciado pelo pretor romano, deixava, no entanto, fora de julgamento determinadas questões litigiosas que poderiam alimentar, num momento posterior, uma ação ordinária que, em razão de sua origem, dizia-se actio ex interdicto. Em verdade, tanto nos casos em que o processo interditai romano desempenhava uma função preparatória em relação ao futuro processo reivindicatório, como naqueles casos em que ele se revestia de autonomia, de modo a prescindir de um juízo petitório subsequente, os interditos correspondiam, em linguagem moderna, a uma ação sumária com redução da controvérsia processual, decorrente da superficialidade da cognição do pretor, a respeito das questões litigiosas. O decreto que concedia o interdito não declarava, com força de coisa julgada, o direito do autor precisamente porque os fatos da causa eram avaliados pelo magistrado sumariamente.

Esta mesma estrutura procedimental conserva-se ainda nos modernos interditos possessórios que, de procedimentos especiais e separados do "juízo declaratório" que lhes poderia suceder, no caso de resistir o demandado à ordem pretoriana, agora passaram, no direito brasileiro, a constituir um pedaço da ação possessoria ordinária que, em razão disso, transformou-se em ação especial, sob o ponto de vista formal. Conservam os interditos, no entanto, sua verdadeira natureza de ações sumárias, posto que neles - mesmo depois de ultrapassada a fase interditai -todas as alegações e defesas fundadas em direito à posse permanecem vedadas às partes.

Mesmo que os interditos possessórios (arts. 920-933 do CPC) se transformem numa ação possessoria ordinária, uma vez ultrapassada a fase interditaL a redução do campo litigioso persiste, a caracterizar a lide possessoria como uma ação sumária.

Pode-se muito bem conceber uma ação sumária processada pelo rito ordinário. E o exemplo mais notável desta possibilidade seria o caso de retirar-se a eficácia de "título executivo" que o art. 585,1, do CPC confere às cambiais. Revogado que fosse este dispositivo, de tal modo que o portador de um dos títulos de crédito que aí se indicam tivesse de cobrá-lo através de "processo de conhecimento", vale dizer, por meio de uma ação de procedimento ordinário (ou sumário) condenatória, nem por isso a demanda transformar-se-ia em plenária. A ação cambiaria de cobrança sempre será sumária, posto que a franquia para todas as defesas causais porventura permitidas ao obrigado cambiário, facultando-lhe discutir amplamente o "negócio causal" que subjaz ao título de crédito, por si só e automaticamente, o anulariam. A cambial só existe por ser um título abstraio. E o fenómeno da abstração só pode ser entendido, no plano jurisdicional, por meio da sumarização da respectiva demanda (cf. nossa A ação de imissão de posse no direito brasileiro atual, p- 119 e ss.).

Nossos interditos possessórios empregam duas conhecidas técnicas de sumarização, por meio das quais se consegue reduzir o campo de cognição judicial, transformando-se a respectiva demanda de plenária em sumária. A sumarização aqui se faz através de um corte das defesas no sentido vertical, de tal modo que o juiz fique impedido de examinar completamente determinadas questões litigiosas que, não obstante existirem como "conflito de interesses" entre as partes, fora do processo, nele não ingressam, não integrando a res deducta do processo interditai. É o que sucede com as defesas fundadas no direito à posse, que não entram na demanda possessoria. Corta-se, portanto, em profundidade o campo litigioso, que fica reduzido apenas às questões possessórias.

Ao contrário dessa técnica de sumarização, empregam os interditos possessórios uma outra forma de redução do campo de cognição judicial, que consiste em permitir-se que o juiz examine e decida sobre todas as questões litigiosas, porém que o faça de modo provisório e superficial. Neste caso, o corte das exceções dá-se no plano longitudinal, e não mais vertical (consultem-se, a respeito, CHIOVENDA, Instituições..., v. 1. p. 237; e PONTES DE MIRANDA. Comentários..., 1939, v. 8. p. 183).

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A sumarização da ação possessória dá-se, portanto, por meio destas duas técnicas: corta-se, no sentido vertical, todas as defesas petitórias, impedindo que o réu se defenda alegando seu direito de propriedade, retirando-se, assim, toda esta área litigiosa do campo de investigação judicial; finalmente, na fase preliminar do interdito, antes que a ação tome o curso ordinário, permite-se que o juiz conheça de todas as questões possessórias, porém que o faça de forma superficial e provisória, decidindo, si et in quantum, com os elementos probatórios que o autor unilateralmente lhe forneça e de forma que as questões assim decididas sejam objeto do contraditório processual que se segue, e possa finalmente o magistrado julgá-las com base em plena e exaunente cognição, por ocasião da sentença final de mérito.

Este último tipo de sumarização é amplamente empregado no direito brasileiro. Além das ações possessórias, interditais, valem-se da mesma técnica de sumarização a ação de busca e apreensão de coisa móvel objeto da alienação fiduciária em garantia (art. 3.° do Decreto-lei 911, de 1.". 10.1969), a imissão liminar na ação de desapropriação (art. 15 do Decreto-lei 3.365, de 21.06.1941) e a liminar de suspensão do ato impugnado na ação de mandado de segurança {art. 7.° da Lei 1.533, de 31.12.1951).

Também nas ações cautelares, que são demandas materialmente sumárias, contidas em procedimentos formalmente também sumários - e que serão objeto de estudo ao lado dos processos executivos, a ser feito em outro volume deste Curso -, é possível concederem-se medidas liminares (cf. art. 804 do CPC) cuja natureza guarda estreito parentesco com os interditos romanos.

Não se deve, todavia, esquecer que a proliferação dos processos tidos como cautelares, não só no direito brasileiro como nos demais sistemas processuais a que mais diretamente o nosso se liga - como o francês, o alemão e o italiano -, na verdade são formas dissimuladas de procedimentos monitórios, como no lugar oportuno veremos (vejam-se, especialmente, DENTI, Processo civile..., p. 71; PROTO PISANI, Sulla tutela giurisdizionale differenziata, RDP, p. 575; e nossa análise nos Comentários ao Código de Processo Civil).

5.5 Processos sumários documentais

Além das duas técnicas de sumarização antes indicadas, é ainda possível reduzir-se a área de cognição judicial, numa determinada demanda, impedindo que as partes se valham de certas provas, ou impossibilitando-lhes a prova de certos fatos, cuja demonstração exija o emprego de algum instrumento probatório demasiadamente complexo e de produ-

ção demorada. Temos um exemplo bem conhecido desta espécie de sumarização em nossa ação de mandado de segurança, onde apenas as provas documentais são permitidas.

Se o autor de uma ação de mandado de segurança não puder provar, desde logo e documentalmente, o seu direito liquido e certo, violado ou ameaçado de violação, por ato ilegal de autoridade, ou por ela praticado com abuso de poder (art. 5.°, LXIX, da CF e art. 1.° da Lei 1.533/51), não lhe será concedida prestação por meio de mandado de segurança, restando-lhe, neste caso, a possibilidade de valer-se da correspondente ação de procedimento comum, para a tutela do direito não protegido pelo mandamus.

A lide, portanto, contida na ação de mandado de segurança, tem proporções bem menores do que o inteiro conflito de interesses extrapro-cessual em que se encontram envolvidos os litigantes.

A redução do campo probatório que se faz nos chamados "processos sumários documentais", ao mesmo tempo em que torna menos extensa a área de cognição reservada ao magistrado, permite a obtenção também de um procedimento curto, sob o ponto de vista formal, pois, sendo apenas documental a prova admitida, é possível suprirem-se as audiências destinadas à produção de provas orais, tais como a tomada de depoimentos das partes e a inquirição de testemunhas.

Na verdade, nos processos sumários documentais, como é o caso da ação de mandado de segurança, todo o itinerário procedimental reduz-se quase exclusivamente à fase postulatória, posto que, respondida a ação através das informações prestadas pela autoridade indicada como "coa-tora", a demanda estará em condições de ser logo julgada.

Os processos sumários documentais, como de resto todos os demais processos sumários, surgiram e se desenvolveram a partir do direito germânico medieval, que os concebeu, sem dúvida, com elementos herdados do direito romano.

O "processo cambiário", que entre nós dá lugar a um processo de execução por título extrajudicial (art. 585, I, do CPC), originariamente foi processo sumário documental, e talvez o mais importante (CHIOVENDA, Instituições.... v. 1, p. 241; LIEBMAN, Embargos do executado, n. 143).

Mesmo sendo agora uma demanda de execução forçada, a ação cambiaria permanece sendo uma demanda sumária, como ação de direito material, uma vez

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que o obrigado cambiário não poderá, na ação incidental de embargos que propuser para livrar-se do processo executório, valer-se das eventuais "exceções pessoais" ou "não-1 iterais" contra o portador de boa-fé do título de crédito.

E, naturalmente, toda a matéria com que poderia defender-se, do que foi impedido em virtude da natureza do título cambiário, formará as "exceções reservadas" que irão alimentar a futura ação ordinária a ser eventualmente proposta com base no possível enriquecimento cambiário resultante da cobrança levada a efeito contra o devedor, forcado a pagá-lo sem poder defender-se plenamente. De resto, todo "negócio jurídico abstrato" dará necessariamente lugar a uma demanda sumária.

Ocorre, no caso dos processos sumários, a reprodução do velho e conhecido princípio segundo o qual o demandado antes de tudo prestará, para só depois discutir o seu direito e recobrar-se do que haja prestado injustamente {solve et repete).

A técnica de sumarização processual é uma aplicação importante de um dos princípios fundamentais do direito processual civil, o princípio da verossimilhança, de que tratamos no lugar adequado.

Toda e qualquer demanda somente poderá ser tornada sumária, pelo direito processual, por meio desta técnica: a) uma porção do "conflito extraprocessual de interesses" em que as partes se acham envolvidas é deixada fora da demanda, vedando-se ao réu a possibilidade de usar determinadas defesas; b) o demandado que fora impedido de valer-se de tais defesas, denominadas "exceções reservadas", terá de promover, se assim o desejar, uma segunda demanda, para tentar obter, agora como autor, o reconhecimento de seus direitos, não apreciados na demanda sumária.

Ante as necessidades, que podem ser meramente circunstanciais ou políticas, de obter-se uma pronta e eficaz proteção para determinadas situações jurídicas, o juiz é autorizado a prover desde logo, com base na simples plausibilidade do direito afirmado pelo autor.

5.6 Processos monitóríos e injuncionais

Os procedimentos monitórios, nascidos da mesma vertente que nos deu os processos documentais* caracterizam-se também pelo emprego de uma técnica similar de sumarização, com inversão de contraditório, através da inserção de uma fase preliminar, onde o juiz - com base na simples verossimilhança do direito sumária e superficialmente provada pelo autor - profere uma decisão liminar condenatória. Proferida a deci-

são liminar, o réu então há de ser citado para defender-se. Nos processos monitórios puros, de que nossa antiga ação cominatória (art. 302 do CPC de 1939), era um exemplo, a contestação oferecida pelo demandado, por si só, tem a virtude de transformar o preceito contido na decisão liminar em simples citação, e o processo, a partir daí, prosseguirá como se fora desde o início uma ação ordinária comum.

Esta técnica de sumarização, que consiste em antecipar a eficácia condenatória por meio de uma decisão liminar, destinada a desaparecer se o réu comparece e contesta a ação, não teria nenhum significado perante nosso atual Código de Processo Civil que, modificando, em relação ao direito anterior, os efeitos da revelia (art. 319), insere sempre, no mandado de citação, a cominação de terem-se por verdadeiros os fatos afirmados pelo autor, se o demandado não contestar a ação, caso em que o juiz poderá desde logo proferir sentença de mérito (art. 330, II).

Certamente nosso procedimento ordinário não se transformou, só por isso, em processo cominatório. Mesmo havendo a advertência de que a revelia importará no julgamento antecipado da lide, reputando-se verdadeiros os fatos alegados pelo autor, o magistrado não emite sentença ou decisão liminar de condenação provisória, a ser - como ocorria nos processos monitórios - confirmada apenas pelo fato de não haver o réu contestado a ação.

Se, no entanto, introduzirmos uma pequena modificação no conceito do processo monitório que acaba de ser descrito, regulando de maneira diferente a influência que a defesa oferecida pelo demandado terá sobre a decisão liminar, poderemos facilmente alterar-lhe a estrutura e obter um processo sumário altamente eficaz.

Como vimos, no processo monitório puro, a decisão liminar condenatória resolve-se em simples citação {resolvitur in vim citationis) em virtude da contestação do demandado. Na ausência de manifestação do réu, mantendo-se ele revel, a sentença liminar transformar-se-á em título executivo.

Os denominados processos monitórios documentais, com efeito. introduziram esta modificação conceituai há pouco mencionada, fazendo com que a ordem ou injunção liminar, por meio da qual o juiz condene o réu ao pagamento (as causas contempladas com este privilégio geralmente são ações de cobrança de valores monetários ou coisas fungíveis), não desapareça mas apenas se suspenda, quando este, por

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sua iniciativa, compareça ao processo e provoque o contraditório. A decisão liminar, neste caso, persiste, apenas com sua eficácia executo-ria suspensa.

Pode-se, todavia, em tais casos, outorgar uma cláusula de execução provisória ao decreto de condenação liminar, permitindo-se que o autor promova a execução provisória do decreto injuntivo, tal como se pratica no direito italiano, segundo o art. 662 do Código de Processo Civil desse país, quando o crédito que dera origem ao processo injuncional seja fundado numa cambial ou em título de crédito semelhante ou quando seja de temer-se a ocorrência de um grave perigo de demora (pericolo di grave pregiudizio nel ritardo).

Além da ação sumária de tipo injuncional que se pratica no direito italiano, sob a denominação de "procedimento d'ingiunzione", reservado à tutela de créditos documentais que tenham por objeto a cobrança de somas de dinheiro ou coisas fungíveis (art. 633 do CPC italiano), outras espécies de processos sumários também do tipo monitório podem ser concebidas, tal como o chamado "procedimento por convalida di sfratto", existente no direito italiano. Este procedimento corresponde a uma ação especial de despejo, sob forma de procedimento injuncional, por meio do qual o locador procura desalojar o inquilino e recuperar a posse do prédio locado, intimando-o desde logo da ordem liminar de desocupação, a fim de que o demandado a ela se oponha e inicie, deste modo, o contraditório processual, sob a condição de que a ordem imediatamente se execute se o inquilino, comparecendo para defender-se, não oferecer exceções fundadas em prova escrita (art. 665). Neste caso, as exceções não-documentais, que exijam demonstração probatória mais complexa, ficam reservadas para uma fase subsequente à execução do despejo.

No direito brasileiro, existe um exemplo típico de ação onde as limitações impostas à defesa do demandado são extremamente severas. É a ação de desapropriação por necessidade ou utilidade pública ou interesse social (art. 5.°, XXIV, da CF), regulada pelo Decreto-lei 3.365, de 21.06.1941. Segundo dispõe o art. 20 deste diploma legal, a contestação somente poderá versar sobre vícios do processo ou sobre o valor atribuído ao bem objeto da desapropriação. Todas as demais defesas que o desapropriado poderia suscitar terão de ser articuladas em ação posterior, dita "ação direta". A ação de desapropriação, não obstante sua indiscutível sumariedade material, é demanda autónoma, completa e terminal.

A Lei 9.079, de 14 de julho de 1995, introduziu em nosso direito a "ação monitoria" para créditos consistentes em soma em dinheiro, entrega de coisa fungível ou de determinado bem móvel, quando o interessado disponha de "prova escrita sem eficácia de título executivo".

Segundo o modelo dos procedimentos monitórios, o juiz, ao receber a petição inicial, não se limita a ordenar a citação do réu, mas deferirá de plano a expedição de mandado de pagamento ou de entregada coisa, no prazo de quinze dias. Se, nesse prazo, o réu não oferecer embargos, ou sendo eles rejeitados, o mandado liminar converter-se-á em título executivo, intimando-se o devedor e prosseguindo-se na execução, na forma do disposto no Livro II, Título II, Capítulos II e IV, do Código de Processo Civil.

5.7 "Tutela antecipada", na reforma do Código de Processo Civil

O exame a que vimos procedendo, relativamente à ordinarização do processo civil, através da introdução em nosso sistema do processo de conhecimento, deve ter em conta a reforma, constante da Lei 8.952, de 13 de dezembro de 1994, que introduziu, no Livro I do Código de Processo Civil, uma forma de antecipação da tutela, ou dos efeitos da tutela pretendida pelo autor, ou, o que significa o mesmo, antecipação dos efeitos da futura sentença de procedência.

0 dispositivo tem a seguinte redação: "Art. 273, Q juiz poderá, a requerimento da parte, antecipar, total

ou parcialmente, osjrfeitosjiajujejaj)rej£i^^ desde que, existindo prova inequívoca, se convença da verossimilhança cOT Iflegação e:

1 -Jiaja fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação; ou

II - fique caracterizado o abuso de direito de defesa ou o manifesto propósito protelatório do réu. ^——

§ 1.° Na decisão que antecipar a tutela, o juiz indicará, de modo claro e preciso, as razões do seu convencimento.

§ 2.° Não se concederá a antecipação da tutela quando houver perigo de irreversibilidade do provimento antecipado.

§ 3 .° A execução da tutela antecipada observará, no que couber, o disposto nos incisos II e III do art. 588.

§ 4.° A tutela antecipada poderá ser revogada ou modificada a qualquer tempo, em decisão fundamentada.

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§ 5.° Concedida ou não a antecipação da tutela, prosseguirá o processo até final julgamento.

A Lei 10.444, de 7 de maio de 2002, alterou a redação dada ao § 3.° pela Lei 8.952 e acrescentou ao art. 273 mais dois parágrafos. O § 3.° passou a ter a seguinte redação: "A efetivação da tutela antecipada observará, no que couber e conforme sua natureza, as normas previstas nos arts. 588, 461, §§ 4.° e 5.°, e 461-A".

Os parágrafos acrescentados têm esta redação: "§ 6.° A tutela ante---ripada, também podará se»- rnnrWHHa qn^Hniimoi] mais dos pedidos cumulados^ou parcela deleSjjnostrar^se incontroverso^. "§ /.^Se o au-t^a~Tmjío^deantecipação de tutela, requerer providência de natureza cautelar, poderá o juiz, quando presentes os respectivos pressupostos, deferir a medida cautelar em caráter incidental do processo ajuizado."

A nova redação do § 3.°, ao mesmo tempo que estendeu às antecipações de tutela do art. 273 as disposições dos arts. 461 e 461 -A, ampliou também a incidência do art. 588 do CPC, para cominar ao autor que obtenha essa forma de tutela a responsabilidade objetiva prevista para as execuções provisórias pelo art. 588, inc. I, do CPC, com a redação dada a este artigo pela Lei 10.444 citada.

Com a alteração deste § 3.°, frustra-se, ao menos em seu aspecto normativo, a tentativa de introduzir-se no sistema uma forma genérica de tutela interditai. A incidência completa do art. 588 - que é norma aplicável apenas às execuções obrigacionais - faz com que a assimilação das "antecipações de tutela" às execuções de sentenças condenatórias torne-se completa. Pode-se avaliar o sentido da alteração introduzida no § 3.° do art. 273, comparando-o com a responsabilidade atribuída aos autores que obtêm medidas antecipatórias nas demais ações de índole interditai existentes em nosso sistema, como as liminares em mandados de segurança e nas ações possessórias. Nestes casos, o sistema admite que a responsabilidade do autor submeta-se aos princípios comuns do art. 17 do CPC. A contradição entre o tratamento desses casos pontuais de tutela antecipatória e o que agora se dará à tutela genérica da mesma natureza é evidente.

O § 6.° declara que a tutela poderá ser antecipada quando um ou mais dos pedidos cumulados, ou parcelas deles, mostrem-se incontroversos. O conceito de "pedido incontroverso" dado pelo art. 334, inc. III, do CPC não se harmoniza com a disposição do § 6.° do art. 273. Se aceitássemos a identidade conceituai, então teríamos de ler este parágrafo como se ele

dissesse que a tutela poderá ser antecipada quando os fatos sejam admitidos no processo como incontroversos. Neste caso, teríamos de pensar em tutela definitivamente concedida, não mais apenas antecipada. Se os fatos são incontroversos - e o direito conhece-o o juiz -, a tutela que vier a ser concedida não poderá mais ser desfeita pela sentença final, condição essencial para que se configure o conceito de tutela "antecipada".

A questão não é tão singela como à primeira vista poderá parecer. Observe-se que o § 6.° tem limites mais amplos que o art. 334, inc. III. Esta norma refere-se a "fatos incontroversos", enquanto este parágrafo fala de "pedido incontroverso".

É verdade que a causa deverá prosseguir para apreciação das parcelas do pedido ou de outros pedidos, eventualmente cumulados, que não se apresentem "incontroversos", porém a lide terá sido reduzida às questões litigiosas remanescentes.

Quanto ao § 7.°, devemos considerar que o deferimento da medida antecipatória como medida cautelar determinará que se processe a ação cautelar incidental ao processo principal, assegurando-se ao demandado o contraditório, com produção de prova e sentença.

5.7.1 Natureza da medida antecipatória

O legislador da reforma, ao redigir o art. 273, dispôs sobre a possibilidade de o juiz antecipar os efeitos, entendidos estes como as consequências geradas pela sentença que acolher o pedido formulado pelo autor, o que é diferente da faculdade eventualmente concedida ao juiz de, em vez de efeitos, antecipar julgamento, proferindo sentença liminar de mérito. Na verdade, evitou o legislador aludir à antecipação dos efeitos da sentença de procedência. Mas é evidente que antecipar "efeitos da tutela pretendida pelo autor" corresponderá sempre a antecipar efeitos da sentença de procedência.

Para compreendermos a natureza dessa medida antecipatória, agora introduzida em nosso direito, é indispensável ter presente uma premissa doutrinária, em geral não tematizada pelos processualistas, mas sempre pressuposta em suas construções teóricas. O ato jurisdicional típico, assim entendido o ato de julgar, "para dirimir controvérsias" (GALENO LACERDA, Comentários..., v. 8. t. I, p. 23). será invariavelmente uma declaração sobre a procedência ou improcedência do pedido formulado na ação. Daí dizer BUZA1D: "O julgamento desse conflito de pretensões

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(lide ou litígio), mediante o qual o juiz, acolhendo ou rejeitando o pedido, dá razão a uma das partes e nega-a à outra, constitui uma sentença definitiva de mérito" (Exposição de Motivos do Código de Processo Civil). Ou, como diz LIEBMAN: "Julgar a lide e julgar o mérito são expressões sinónimas que se referem à decisão do pedido do autor para julgá-lo procedente ou improcedente e, por conseguinte, para conceder ou negar a providência requerida" (O despacho saneador e o julgamento de mérito, Estudos sobre o processo civil brasileiro, p. 122).

A proposição teórica que só vê julgamento nos julgamentos definitivos, produtores de coisa julgada - excluindo de sua compreensão os "julgamentos provisórios", ou os julgamentos fundados em juízo de ve-rossimilhança -, coloca-nos ante o seguinte problema: o provimento judicial que concede a antecipação dos efeitos da tutela pretendida pelo autor será uma decisão de mérito ou será, ao contrário, uma decisão interlocutória? Em última análise, antecipar efeitos será o mesmo que antecipar uma porção do mérito? Afinal, o que é mérito?

5.7.2 Natureza do provimento jurisdicional que a concede

Parece evidente que o legislador procurou inserir essa forma de antecipação, não da tutela, mas dos efeitos da tutela - a sugerir que tutelar é apenas declarar a procedência -, sem questionar a estrutura elementar do processo de conhecimento nem a definição de interlocutória, constante do art. 162, muito menos questionando o próprio conceito de processo de conhecimento, ligado ao processo de execução pela sentença condenatória, o que significa preservar incólume o procedimento ordinário, pressupondo que a inserção de uma medida antecipatória não tenha o condão de "desordinarizar" o procedimento. Quer dizer, como aí não houve juízo, "capaz de dirimir a controvérsia", não houve nenhum julgamento, menos ainda julgamento de mérito. Cuida-se, portanto, de uma interlocutória, segundo o entendimento do legislador.

Enquanto laborarmos no domínio da prática forense, teremos de ter, desta forma antecipada de tutela jurisdicional, a seguinte compreensão: o provimento judicial que a concede é uma decisão interlocutória, contra a qual é cabível o recurso de agravo de instrumento, como se dá, no sistema do Código, relativamente a todas as liminares.

Não se deve, porém, esquecer que as medidas que antecipam efeitos da tutela pretendida pelo autor, como qualquer antecipação de sentença

satisfativa, realizam, quer dizer, antecipadamente satisfazem, essa parcela de efeitos do ato jurisdicional final.

Mesmo que as medidas antecipatórias do art. 273 não sejam necessariamente liminares, serão sempre antecipações dos efeitos de uma sentença satisfativa, portanto realização provisória dos eventuais efeitos da sentença de procedência.

Todo provimento antecipatórlo dos efeitos de uma futura sentença de procedência, em demanda satisfativa, deve apresentar o seguinte espectro eftcaciah^aljuízo declaratório de verossimilhança, por meio do qual o julgador manifestará seu convencimento a respeito defumus boni iuris, ou seja, o juiz haverá, necessariamente, para conceder a antecipação da tutela pretendida pelo autor, de ter como verossímil o direito que o autor pusera como fundamento para a ação;j2Í^om base nesse juízo de probabilidade da existência do direito alegado pelo autor, o magistrado proverá ordenando que se tomem medidas executivas ou mandamentais, em que haverão de consistir os efeitos antecipados. Com relação à antecipação dos efeitos executivos, as medidas antecipatórias devem respeitar a natureza da pretensão de direito material invocada na açãof se a pretensão executiva fundar-se em relação obrigacional, o provimento antecipará condenação, dando ensejo à formação (antecipada) do título executivo, com base no qual proceder-se-á à execução provisória da medida antecipatória; se, ao contrário, a hipótese for de pretensão real, então o provimento antecipatório dará lugar à execução imediata, na própria relação processual supostamente de (puro) conhecimento. Este último caso pode ser ilustrado com o exemplo da ação de despejo, que poderá admitir a concessão de uma medida antecipatória de despejo, segundo o art. 59, § 1.°, da Lei 8.245, de 18 de outubro de 1991, que não se subordina ao procedimento das execuções para entrega de coisa certa, previsto pelo Código para as execuções fundadas em sentenças condenatórias. (Tratamos no segundo volume deste Curso a respeito da distinção entre ações reais e obrigacionais.)

Dissemos há pouco que os "efeitos da tutela pretendida pelo autor" haverão de consistir em alguma forma de tutela definida como executiva ou mandamental. A explicação é simples. Os outros possíveis efeitos da sentença, sejam eles declaratórios, constitutivos ou condenatórios, são, enquanto tais, incompatíveis com a ideia de antecipações provisórias.

O juiz não poderá antecipar declaração, constituição ou condenação sob forma de tutela provisória, e, se o fizer, seu provimento será

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inteiramente inócuo, sem qualquer relevância processual. Se o juiz dissesse, por exemplo, numa ação declaratória de ilegalidade de exigência fiscal, que "tudo indica que o tributo é realmente ilegal"; ou dissesse que, "pelas provas até agora existentes nos autos, sou levado a supor que o autor realmente tem razão"; ou dissesse, em seu provimento liminar, mais ou menos isto: "o direito do autor apresenta-se com um elevado grau de verossimilhança"; ou então, numa ação de anulação de contrato, dissesse o magistrado: "pela prova de que disponho até agora, considero verossímil a alegação do autor, razão pela qual decreto a anulação provisória do contrato"; ou então, numa ação condenatória, expedisse decisão liminar com este teor: "o réu é provisoriamente condenado, até que eu possa confirmar ou revogar esta condenação na sentença final", todas essas proposições não teriam nenhuma relevância processual.

Ora, dizer, por exemplo, que "tudo indica que o tributo seja realmente ilegal", assim como ter o contrato por nulo, provisoriamente, ou o réu por condenado, até prova em contrário, são expressões de efeitos declaratórios, constitutivos e condenatórios em si mesmas irrelevantes para o processo. Esta intrínseca irrelevância dos três efeitos normativos (não práticos) da sentença, porém, pode tornar-se decisiva e imprescindível se a lei autorizar o julgador a extrair deles algum tipo de efeito prático (executivo ou mandamental). Se o juiz se limitasse a declarar, na decisão liminar, que "parece realmente que o tributo é ilegal", tal declaração não produziria qualquer consequência processual.

Entretanto, se o juiz puder extrair, desse juízo declaratório de verossimilhança, algum efeito executivo ou mandamental, teríamos então composto inteiramente uma medida antecipatória dos efeitos da tutela pretendida pelo autor, segundo a previsão do art. 273.

Se, numa ação de interdição, o juiz declarasse, em decisão liminar, que a prova sugere que o interditando seja realmente incapaz, a declaração de verossimilhança da incapacidade seria inteiramente irrelevante para a causa, a não ser que lhe fosse dado compor a liminar, adicionando ao juízo declaratório de verossimilhança - em si mesmo inútil para o processo - outra eficácia, por meio da qual lhe fosse permitido extrair dessa "declaração provisória" algum efeito prático. A situação mudaria completamente, por exemplo, se a liminar fosse concebida assim: "A prova sugere que o interditando realmente é incapaz. Isto posto, nomeio F. F. seu curador provisório, a fim de que seus bens sejam por este administrados durante o curso da demanda". É claro que o juiz não decretara a interdição do provável incapaz.

limitando-se a extrair algum tipo de consequência prática e provisória de seu juízo de verossimilhança quanto à incapacidade do interditando.

a) O modo como o legislador concebeu essa espécie de "antecipação dos efeitos da tutela pretendida pelo autor" cria, no entanto, algumas dificuldades de ordem sistemática. É possível que o legislador da reforma não tenha separado inteiramente os conceitos de antecipação de tutela satisfativa e tutela cautelar, permanecendo fiel a CALAMANDREI, para quem a "decisione antecipata e provisória dei mérito" formava a categoria mais eminente de tutela cautelar (Introdu-zione alio studio sistemático dei provvedimenti cautelari. p. 39).

Somos induzidos a esta conclusão a partir do seguinte raciocínio: o legislador da reforma não questionou os fundamentos básicos acolhidos pelo Código de 1973, inserindo a chamada "antecipação de tutela" no processo de conhecimento, quer dizer, numa instituição processual que, por definição, não contém execução, limitando-se, portanto, naturalmente além das declaratórias e constitutivas, a oferecer a sentença condenatória como forma universal de tutela, caracterizada por sua função de preparar a execução que se fará noutro processo.

Se levássemos a sério o conceito de processo de conhecimento, teríamos de concluir, como aliás o fez J. J. CALMON DE PASSOS (Inovações no Código de Processo, p. 13), que ele não admite essas liminares, a não ser que lhe déssemos a natureza de provimentos cautelares. Sabe-se, com efeito, que, para CALAMANDREI, todas as formas de tutela executiva anteriores às sentenças, por força desta contingência topológica, transformar-se-iam em medidas cautelares (vide este Curso, 2. ed., v. 3, p. 44).

Pois bem. Preservando o processo de conhecimento, teremos inevitavelmente de concluir que a única forma de execução dos provimentos através dos quais o juiz antecipe os efeitos da tutela pretendida pelo autor seria uma das espécies de execução por crédito do Livro II do Código. Isto obriga-nos a considerar que o legislador teria introduzido, através do art. 273, uma espécie de procedimento monitório, ou injuncional, que é a forma historicamente consagrada de antecipação de condenação, para rápida formação do título que dê ensejo à execução provisória. Entretanto, a Lei 9.079, de 14 de julho de 1995, introduziu em nosso direito a "ação monitoria", a infirmar, portanto, a suposição de que o art. 273 trate da mesma espécie de tutela.

Sendo assim, teremos de retornar a CALAMANDREI, estabelecendo, como ele fazia, a distinção entre os denominados "accertamenti con prevalente funzione esecutiva", da classificação de CHIOVENDA, de que é exemplo o processo monitório, e os denominados provimentos cautelares antecipatórios, segundo o provimento em questão antecipe julgamento, caracterizando-se, portanto, sua vocação "a diventar definitivo", ou simplesmente antecipe efeitos, caso em que. "per sua natura", o provimento, que é cautelar para CALAMANDREI. é "destinato ad esaurirsi" tanto que sobrevenha a sentença definitiva. Daí dizer CALAMANDREI que "il provvimento sommario è provvisorio nella formazione, ma definitivo nello

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scopo", porém "quello cautelare, anche se formato atraverso una cognizione ordinária, è provvisorio nel fine" (Introduzione..., p. 14-15). Quer dizer, o provimento antecipatório que CALAMANDREI tinha como uma espécie de provimento cautelar "non può aspirare a diventare esso stesso definitivo", porque os efeitos antecipados, sendo provisórios, "sono destinati a cadere senz' altro", sobrevindo a sentença definitiva (idem, p. 40-41).

Sendo assim, mantido intocado o processo de conhecimento, torna-se difícil introduzir nele uma "antecipação de tutela", capaz de ser tornada efetiva, quer dizer, auto-exequível, na própria relação processual de conhecimento, o que, em tese, valeria também para as formas de tutela interditais, de natureza mandamental. Por outro lado, teríamos que as "antecipações" previstas no art. 273 igualmente não seriam uma forma de tutela monitoria, cuja função seria antecipar sentença de mérito e não apenas seus efeitos.

Restaria, portanto, ao que parece, a alternativa de considerar essas antecipações de efeitos, não de julgamento, como provimentos "cautelares" antecipatórios, no sentido de provimentos de natureza processual, como a doutrina sempre considerou as medidas cautelares. Em última análise, as medidas antecipatórias seriam apenas provimentos de natureza interlocutória, sem implicar decisão sobre a lide.

Contra esta conclusão, no entanto, conspira um argumento de ordem, sistemático, incontornável. Como se sabe, foi intenção do legislador expurgar do processo cautelar justamente as denominadas "cautelares satisfativas", que, em linhas gerais, compõem as antecipações introduzidas agora no processo de conhecimento, por não considerá-las cautelares.

b) Cremos, porém, que a aparente ambiguidade ou indeterminação da verdadeira natureza dos provimentos previstos pelo art. 273 provém de um pressuposto de que a doutrina não abre mão, quando analisa o ato jurisdicional, procurando distinguir o que seria conteúdo e o que haveria de ser seus efeitos. Em outras palavras: o que seria mérito e "consequência" do julgamento de mérito; ou, ainda, o que seria julgamento de mérito e o que seriam efeitos deste julgamento.

Acabamos de ver que os provimentos liminares, ou antecipatórios, mesmo que não sejam liminares, conterão necessariamente alguma dose de declaratividade, consistente no juízo positivo a respeito do fumus boni iuris. O juiz, quando se decide pela concessão da medida antecipatória, fá-lo declarando que a "tutela pretendida pelo autor" mostra-se verossímil. Isto, naturalmente, é uma forma de antecipar juízo, produzir julgamento sobre o meritum causae. Certamente este juízo sobre o mérito do pedido é precário e tomado sob a forma de juízo provisório que haverá de ser revisto pelo julgador, no momento da sentença final.

Segundo nosso entendimento, o provimento "antecipatório" antecipa julgamento de mérito, porém, para a doutrina, somente haverá julgamento quando este, sendo fruto de um juízo de certeza, componha a lide, produzindo coisa julgada. Para a doutrina, decidir provisoriamente, ou emitir julgamentos provisórios, é o mesmo que nada decidir e nada julgar.

c) Feitas estas considerações, podemos resumir nosso ponto de vista relativamente às "antecipações" de tutela do art. 273, dizendo que elas são formas, lato sensu de execução urgente, provimentos através dos quais o juiz, considerando verossímil o direito do autor, concede-lhe, desde togo, algum efeito executivo ou mandamental da futura sentença de procedência. Trata-se daquela fundamental distinção entre "segurança da execução", que se traduz em cautelaridade, e "execu-ção-para-segurança", que haverá de ser tida como execução urgente, execução verdadeira, qualificada pela urgência, tomada sob o signo da provisoriedade, que, todavia, nem por isso perde a natureza de provimento lato sensu executivo (vd. Curso, 2. ed., v. 3, especialmente p. 42, 87 e 169).

5.7.3 Perigo de dano irreparável

A conclusão de que as "antecipações" do art. 273 não são cautelares não deve invalidar-se com a referência feita no inc. I desse artigo ao pressuposto de que igualmente se vale a tutela cautelar, qual seja a existência de "fundado receio de dano irreparável". Certamente seria preferível que o legislador empregasse, aqui, a categoria conhecida como periculum in mora, muito mais adequada à ideia de antecipação e historicamente ligada às execuções provisórias, reservando a categoria indicada como "perigo de dano irreparável" para as cautelares.

O que, todavia, irá caracterizar a natureza do provimento será seu respectivo conteúdo. Se ele antecipar efeitos da sentença de procedência, em demanda satisfativa - ante o "fundado receio de dano irreparável" -, o provimento terá naturalmente caráter também satisfativo, logo não-cautelar. Se, ao contrário, ante o mesmo "fundado receio de dano irreparável", protege-se o direito, sem satisfazê-lo, apenas assegurando sua futura satisfação (realização), então o provimento será cautelar.

Ao que tudo indica, porém, estamos na iminência de inverter o emprego dos dois conceitos, teimando em conjugar o pressuposto do periculum in mora com as cautelares, para ligar o "receio de dano irreparável*' às antecipações satisfativas, quando eles, para manterem-se fiéis às suas origens históricas e dogmáticas, deveriam inverter as respectivas posições, passando o periculum in mora a determinar execução urgente, reservando-se a alegação de "receio de dano irrepará-veP para a tutela cautelar.

Como disse ANDREA PROTO PIS ANI, referindo-se a CALAMANDREI, quando este escrevera sobre medidas cautelares, depois introduzidas no sistema italiano como "provvedi menti d'urgenza" do art. 700 do

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CPC, a análise feita em 1936, pelo mestre de Florença, tivera em vista mais os provimentos monitórios, enquanto antecipatórios, do que propriamente as medidas cautelares (Sulla tutela..., p. 575). Podemos, sem dúvida, tecer considerações análogas com relação às antecipações de tutela do art. 273. Diríamos que a distância que as separa dos provimentos monitórios é mais simbólica do que real. Além da presença da urgência, que o art. 273 pressupõe para concessão da medida, na hipótese do inc. I do art. 273, que o processo monitório não prevê - embora não seja com ele incompatível -, pode-se dizer que na sentença liminar monitoria o juiz emite uma sentença de condenação provisória, a cuja estrutura corresponderá uma proposição deste tipo: "Pelas provas oferecidas pelo autor, declaro o réu desde logo condenado, salvo prova em contrário". Já no provimento com que o juiz "antecipa efeitos" da condenação, dirá: "As provas apresentadas pelo autor oferecem um consistente grau de verossimilhança da existência do direito por ele invocado. Isto posto, concedo-lhe antecipação dos efeitos da tutela por ele pretendida".

Qual a diferença, no que diz respeito ao elemento declaratório, entre os dois provimentos antecipatórios? Em ambos ele declara que o direito alegado pelo autor é verossímil, ficando-lhe, porém, em qualquer das duas hipóteses, a faculdade de revogar essa declaração, caso a prova colhida depois, no curso da causa, desminta seu convencimento inicial. A declaração, em ambos os casos, é provisória, sujeita a ser ou não confirmada pela sentença final. Na sentença liminar monitoria, o juiz condena com base na verossimilhança do direito invocado pelo autor; no provimento com que ele antecipa os efeitos da tutela, segundo o art. 273, não há emissão de sentença condenatória, mas apenas antecipação de seus efeitos. E claro que, para antecipar efeitos da condenação, o juiz terá de valer-se de um raciocínio análogo àquele que dera lugar à liminar monitoria. Entre condenar antecipadamente, para permitir a execução provisória, ou para que esta condenação se torne definitiva caso o demandado não a conteste (sentença liminar monitoria), e permitir, desde logo, a execução, antecipando o efeito executivo (art. 273), mesmo sem explicitar o juízo condenatório que lhe serve de fundamento, não há diferença substancial. Trata-se de duas decisões equivalentes quanto ao efeito declaratório da verossimilhança do direito invocado pelo autor.

Na sentença liminar monitoria, antecipa-se julgamento de mérito -ainda que provisório e sujeito a ser revogado; no provimento antecipató-rio do art. 273. antecipam-se os efeitos do juízo condenatório que se oculta. É necessário esclarecer. O que pode ser antecipado, no provimen-

to condenatório, é seu efeito executivo (diferido). Assim como o juízo declaratório é antecipado em qualquer provimento liminar, como simples verossimilhança, assim também "tem-se o réu por condenado" (provisoriamente, com base em juízo de verossimilhança), para que este pressuposto legitime a futura execução.

5.7.4 Abuso do direito de defesa ou manifesto propósito protelatório do réu

O inc. II do art. 273 autoriza a mesma antecipação dos efeitos da tutela pretendida pelo autor, quando fique caracterizado o "abuso do direito de defesa" ou "manifesto propósito protelatório do réu".

Na hipótese anterior (inc. I), o juiz, ante o "fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação*', concede a antecipação dos efeitos da tutela; aqui (inc. II), convencendo-se igualmente da verossimilhança do direito do autor, ante a prova de que o réu abusa do direito de defesa, ou comporta-se com "manifesto propósito protelatório", poderá o juiz igualmente antecipar os efeitos da tutela pretendida pelo autor.

O que o legislador quis significar, quando outorgou ao juiz a faculdade de antecipar os efeitos da tutela, nos casos do inc. II do art. 273, não foi, de modo algum, a consideração de que essa antecipação teria caráter punitivo contra a litigância temerária. O que se dá, com a conduta do réu, nestes casos, é que o índice de verossimilhança do direito do autor eleva-se para um grau que o aproxima da certeza. Se o juiz já se inclinara por considerar verossímil o direito, agora, frente à conduta prote-latória do réu, ou ante o exercício abusivo do direito de defesa, fortalece-se a conclusão de que o demandado realmente não dispõe de nenhuma contestação séria a opor ao direito do autor. Daí a legitimidade da antecipação da tutela.

Melhor teria sido que o legislador evitasse condicionar a concessão do provimento antecipatório, nas situações previstas pelo art. 273, II, à ocorrência de "abuso do direito de defesa" ou de "manifesto propósito protelatório" do réu. Quem conhece nossa experiência judiciária e, principalmente, as raízes culturais que tornam extremamente tolerante nossa reação contra todas as formas de litigância temerária, não terá muito otimismo quanto à utilização da prerrogativa constante deste dispositivo. Ao contrário, talvez o aceno a esses pressupostos seja uma boa razão para não se conceder a antecipação da tutela, mesmo que a

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verossimilhança se tenha reforçado em razão da litigância temerária, preferindo o juiz de espírito mais conservador ou mais tímido negá-la, sob o fundamento de que não estaria caracterizado quer o abuso do direito de defesa quer o propósito protelatório, condutas estas, como se sabe, de difícil comprovação.

O legislador francês foi mais sábio, ao permitir a concessão de análogas medidas antecipatórias, sempre que o juiz não vislumbre a existência de alguma contestação séria a ser oposta ao direito invocado pelo autor (arts. 808 e 872 do Nouveau Code de Procédure Civile). É verdade que o Código francês, para concessão desses provimentos, exige, como o nosso, a demonstração da urgência em prover, para afastar o periculum in mora. Mas nada impediria que eles fossem empregados em nosso sistema, nos casos indicados pelo art. 273, II, sempre que o juiz, ante a resposta do demandado, considere-a incapaz de abalar os fundamentos do direito invocado pelo autor, independentemente da alegação de periculum in mora. A recusa em prover, nestas hipóteses, antes de preservar a pretensa neutralidade do juiz - que nosso sistema somente pode julgar com base na certeza -, significará sempre a concessão ao demandado, cuja vitória é improvável, do benefício recusado ao autor.

É evidente que o comportamento indesejável do réu, nas hipóteses indicadas pelo art. 273, II, faz presumir que ele não disponha realmente de nenhuma "contestação séria", a opor ao autor. Neste caso, a antecipação será concedida porque a verossimilhança do direito do autor tornara-se ainda mais consistente ante a conduta do réu, sem que o juiz esteja necessariamente obrigado a fundá-la nos pressupostos indicados por este dispositivo.

Há necessidade do perigo de dano irreparável para a concessão da tutela antecipada com base no art. 273, II?

5.7.5 Perigo de irreversibilidade do provimento antecipado

O § 2.° do art. 273 exagerou na prudência que deve orientar o magistrado na concessão das antecipações de tutela, proibindo-lhe de concedê-las quando "houver perigo de irreversibilidade do provimento antecipado". Pode acontecer - e esta ocorrência não é rara na prática forense - que o estado perigoso imponha ao juiz uma opção entre alternativas capazes, em qualquer sentido que a decisão seja tomada, de gerar risco de irreversibilidade dos efekrç práticos, seja esta «reversibilidade decorrente do

"estado perigoso" contra o qual se busca a tutela, seja uma irreversibilidade análoga provocada pela concessão da medida. Pode ocorrer que o risco de irreversibilidade seja uma consequência tanto da concessão quanto do indeferimento da medida antecipatória Se a verossimilhança pesar significativamente em favor do autor, o magistrado estará autorizado a sacrificar o direito improvável, em benefício do direito que se mostre mais verossí-mil, posto que, como disse TOMMASEO, "sacrificare Timprobabile ai probabile, in questo consiste 1'ética delia giurisdizione d'urgenza" (Les mesures provisoires en procédure civile, p. 304).

Pode ocorrer igualmente que o índice de verossimilhança de ambos os direitos em conflito seja equivalente, ou apresente diferenças pouco significativas, mas um deles tenha relevância, para o ordenamento jurídico, expressivamente superior à de seu antagonista. Neste caso - ante a "bilateralidade" do risco de dano irreparável que poderá ocorrer sempre que a não concessão da medida possa causar também um dano irreversível ao autor-, estará o juiz autorizado a sacrificar o interesse considerado menos relevante.

5.7.6 Concessão da tutela antecipada no curso do processo

Cabe observar que os provimentos antecipatórios do art. 273, não sendo, como realmente não o são, sempre medidas liminares, nada impede que eles sejam concedidos pelo juiz nas fases subsequentes do procedimento, inclusive na sentença final de procedência, pois, sendo em regra recebida a apelação no duplo efeito, pode muito bem ser antecipada a execução provisória, por ordem do juiz (ope iudicis).

Idêntico raciocínio autoriza-nos a concluir que também o relator do recurso poderá conceder antecipação dos efeitos da tutela, sempre que estejam presentes os pressupostos do art. 273.

5.7.7 Precariedade do provimento antecipatório

O § 4.° do art. 273 exagerou no que se refere à precariedade do provimento antecipatório, dispondo que a tutela antecipada poderá ser revogada ou modificada "a qualquer tempo", exigindo apenas que a modificação ou revogação se faça em decisão fundamentada. As medidas antecipatórias não devem ter sua estabilidade tão ou mais precária do que o seriam as medida cautelares. Seria recomendável que o legislador tivesse condicionado a modificação ou revogação da tutela antecipada à ocorrência de modificações nas circunstâncias. Dl D |_ | f; r r r

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5.7.8 Prova

É importante salientar que o art. 273 não exige exclusivamente prova documental, para demonstração do "fundado receio de dano irreparável". Disto decorre, no entanto, uma dificuldade exegética. O silêncio do legislador quanto à previsão de uma instrução liminar, para produção de outras provas que não a documentai, oferecida com a petição inicial, terá de ser interpretada como vedação desta forma de dilação probatória? Cremos que não. Inclinamo-nos por considerar aplicáveis, analogica-mente, as regras que disciplinam a liminar no processo cautelar, pois, no que diz respeito à demonstração de periculum in mora, não há diferença significativa entre proteção cautelar e proteção antecipatória.

5.7.9 Responsabilidade do autor

Sustentáramos nas edições anteriores que à responsabilidade do autor que obtém e torna efetiva medida antecipatória, com fundamento no art. 273, não se deve aplicar o princípio da responsabilidade objetiva, estabelecida pelo art. 811 para o regime das medidas cautelares.

O projeto que tramitava no Congresso Nacional visando a alterar o § 3.° do art. 273, para adotar o princípio da responsabilidade objetiva, previsto no art. 588,1, do CPC, para as execuções provisórias, transformou-se na Lei 10.444, de 7 de maio de 2002, de modo que foi instaurado o regime da responsabilidade objetiva vigente para as execuções obrigacionais, também para as antecipações de tutela do art. 273, que deveriam ter natureza interditai.

5.8 Autotutela judicializada

O direito brasileiro moderno conhece igualmente formas de processos sumários extremamente simples e eficientes, cuja natureza atípica impede que eles sejam catalogados dentre as espécies já examinadas. Tendo em vista suas características especiais, indicamo-las como autotutela judicializada. Nestes casos, permite-se que a execução se faça fora do processo, por iniciativa do próprio credor, que poderá apropriar-se do bem objeto da garantia, vendendo-o privadamente.

Deste tipo de processo sumário é exemplo a ação de busca e apreensão de bens objeto de alienação fiduciária em garantia, na qual, obtida a apreensão liminar do bem, o credor poderá vendê-lo a terceiros, indepen-

dentemente de leilão ou hasta pública, dispensando-se até mesmo avaliação prévia ou qualquer outra medida judicial (art. 2.° do Decreto-lei 911, de 1.° de outubro de 1969), sendo, além disso, rigorosamente limitado o campo da contestação (art. 3.°, § 2.°).

O Decreto-lei 70, de 21 de novembro de 1966, que dispõe sobre associações de poupança e empréstimos e "dá outras providências", vai ao extremo de permitir a execução privada total, em rigorosa e completa justiça de mão própria, autorizando o credor, em caso de mora do devedor, a publicar editais para o leilão público de venda do imóvel dado em garantia (arts. 31 e 32).

Somente depois de realizado o leilão público é que o adquirente necessitará do auxílio do Poder Judiciário para pedir a imissào de posse no imóvel, expulsando dele o devedor hipotecário.

É evidente que as possíveis objeções legítimas que o devedor teria contra o credor hipotecário e das quais foi privado pela violência da execução privada poderão indiscutivelmente ser levadas ao Poder Judiciário, em ação a ser proposta pelo devedor hipotecário expropriado privadamente, porque, segundo o preceito constitucional inscrito no art. 5.°, XXXV, da CF, a lei não poderá excluir da apreciação do Poder Judiciário nenhuma lesão a direito individual. Todavia, neste caso, ter-se-ia realizado, em sua plenitude, o velho princípio do solvet et repetel Primeiro, será o devedor compelido a pagar, para depois, em demanda a ser por ele proposta, reaver o que indevidamente pagara.

Reproduz-se, aqui, em todo seu rigor, a estrutura procedimental dos mandata sine clausula justificativa do direito germânico medieval, de onde provêm todos os processos sumários modernos, especialmente o processo cautelar (cf. nossos Comentários..., p. 22 e ss.)

5.9 Procedimento sumário

A primeira coisa a dizer-se a respeito do procedimento sumário, denominação dada ao sumaríssimo dos art. 275-281, na redação original do vigente Código de Processo Civil, é que ele, ao contrário dos demais até agora examinados, não é um processo materialmente sumário. As demandas contidas no procedimento sumário previsto no art. 275 são plenárias, e não sumárias. Sumário apenas sob o ponto de vista formal é o procedimento, o que equivale a dizer que o litígio veiculado através dele não sofre absolutamente qualquer restrição em seu campo, não obs-

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tante haja um encurtamento dos prazos procedimentais e a dispensa de certas formalidades inerentes ao rito ordinário.

O nosso procedimento sumária corresponde aos juízos denominados plenários rápidos, que tiveram origem numa decreta] do Papa Clemente V, de 1306, conhecida como Clementina Saepe contingit (sobre isto, VICTOR FAIRÉN GUI-LLÉN, Eljuicio ordinário y los plenários rápidos, Cap. III).

O procedimento sumário, quando bem compreendido em sua função e desde que adequadamente destinado às demandas que exijam provas singelas, poderá oferecer resultados positivos, evitando as delongas próprias do procedimento ordinário. Todavia, não se pode jamais perder de vista que o chamado plenário rápido, ou sumário indeterminado, é um processo ordinário apenas encurtado, onde as fases próprias da ordinariedade procedimental simplesmente tornaram-se indistintas e misturadas pela compressão temporal, e onde a marca mais significativa e profunda da ordinariedade persiste, uma vez que também o sumário, de certa forma, obedece ordem dos juízos (ordo judiciorum privatorum) e impede a concessão de liminares. E a antecipação de tutela?

5.10 AçÕes para cumprimento das obrigações de fazer e não fazer como demandas unitárias

O título deste parágrafo inspira-se num conhecido ensaio de LIEBMAN intitulado "Unità dei procedimento cautelare", publicado originalmente na Rivista di Diritto Processuale (1954) e depois reproduzido nos Problemi dei processo civile (1962).

O interesse nesta referência está no fato de haver LIEBMAN procurado mostrar que o procedimento cautelar, sendo unitário, quer dizer, contendo simultaneamente conhecimento e execução - ou falso conhecimento, como ele dizia, e falsa execução -, seria na verdade tertium genus que não se confundiria nem com o processo de conhecimento nem com o processo de execução ("perciò il processo cautelare si contrappone come tertium genus a quello di cognizione ed a quello di esecuzione").

A) Sendo assim, pode-se dizer que, mais vigorosamente do que as "antecipações de tutela" do art. 273 do Código, nega o conceito de processo de conhecimento a ação para cumprimento das obrigações de fazer, outorgada pelo art. 461 do CPC.

Com efeito, na concepção originária do Código, o cumprimento das obrigações de fazer exigiam, invariavelmente, duas demandas, uma veiculada pelo processo de conhecimento, de natureza condenatória, com a

correspondente formação de título executivo, com base no qual haveria de ser proposta a ação de execução de sentença (art. 632).

O interesse nesta significativa transformação da estrutura elementar de nosso Código não reside apenas nessa novidade. Mais importante ainda é o modo como a "execução" das obrigações de fazer foi disciplinada pelo art. 461.

Para uma análise mais adequada do sentido dessa regulação, é conveniente que se transcreva integralmente o preceito:

"Art. 461. Na ação que tenha por objeto o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, o juiz concederá a tutela específica da obrigação ou, se procedente o pedido, determinará providências que assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento.

§ 1.° A obrigação somente se converterá em perdas e danos se o autor o requerer ou se impossível a tutela específica ou a obtenção do resultado prático correspondente.

§ 2.° A indenização por perdas e danos dar-se-á sem prejuízo da multa (art. 287).

§ 3.° Sendo relevante o fundamento da demanda e havendo justificado receio de ineficácia do provimento final, é lícito ao juiz conceder a tutela liminarmente ou mediante justificação prévia, citado o réu. A medida liminar poderá ser revogada ou modificada, a qualquer tempo, em decisão fundamentada.

§ 4.° O juiz poderá, na hipótese do parágrafo anterior ou na sentença, impor multa diária ao réu, independentemente de pedido do autor, se for suficiente ou compatível com a obrigação, fixando-lhe prazo razoável para o cumprimento do preceito.

§ 5.° Para a efetivação da tutela específica ou para a obtenção do resultado prático equivalente, poderá o juiz, de ofício ou a requerimento, determinar as medidas necessárias, tais como a imposição de multa por tempo de atraso, busca e apreensão, remoção de pessoas e coisas, desfazimento de obras e impedimento de atividade nociva, se necessário com a requisição de força policial" (redação da Lei 10.444, de 7 de maio de 2002).

A Lei 10.444 acrescentou, ao lado do art. 461, um novo dispositivo, numerado como 461-A, com a seguinte redação: "Na ação que tenha por objeto a entrega de coisa, o juiz, ao conceder a tutela específica fixará o prazo para o cumprimento da obrigação. § 1.° Tratando-se de entrçgade

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coisa determinada pelo género e quantidade, o credor a individualizará na petição inicial, se lhe couber a escolha; cabendo ao devedor escolher, este a entregará individualizada, no prazo fixado pelo juiz. § 2.° Não cumprida a obrigação no prazo estabelecido, expedir-se-á a favor do credor mandado de busca e apreensão ou de imissão na posse, conforme se tratar de coisa móvel ou imóvel".

O dispositivo, em sua redação primitiva, era reprodução do art. 84 da Lei 8.078, de 11 de setembro de 1990 (Código de Defesa do Consumidor), estando, de certo modo, ligado às ações coletivas, criadas para defesa do consumidor.

B) Há duas ideias, porém, na formulação do preceito legislativo que devem ser destacadas por sua importância teórica: (a) o princípio de que o processo deve, tanto quanto possível, satisfazer o direito como se ele estivesse sendo cumprido voluntariamente pelo devedor, a evidenciar o caráter instrumental do processo, o que, por si só, já seria capaz de romper a camisa de força com que a ciência do processo se vestiu ao reduzir o fenómeno executivo exclusivamente à execução obrigacional, estruturada em esquemas rígidos e estereotipados, liberando-a para adequar-se, instrumentalmente, ao direito material que lhe cabe tornar efetivo e realizado; (b) o outro princípio, de certo modo ligado ou decorrente do anterior, pode ser formulado como uma tentativa, cuja importância é inegável, de superação da ordinariedade, atacando-a pelo lado do conceito de jurisdição e de ação condenatória, como simples "conclamação" ao condenado para que ele voluntariamente cumpra a obrigação (art. 580 do CPC; LIEBMAN, Processo de execução, p. 35).

Esses dois princípios, que negam o paradigma teórico sob o qual foram elaborados os demais princípios, conceitos e institutos de nosso processo civil, permitem, quando bem compreendidos, uma nova compreensão da função verdadeiramente instrumental do processo, aproximando as ações para cumprimento das obrigações de fazer - aí compreendidas, em geral, as obrigações de não fazer, posto que a pretensão que cabe ao credor, quando tenha sido violado o dever de abstenção, é também um fazer - das ações mandamentais. Basta considerar que os poderes conferidos ao magistrado pelo art. 461, além de afastarem definitivamente a demanda do conceito de pretensão e ação condenatórias, correspondem aos poderes que o art. 799 do CPC confere ao juiz, para concessão dos provimentos cautelares que, como se sabe, não têm o menor parentesco com as ações e sentenças condenatórias. Além desses poderes imperativos que o preceito outorga ao magistrado, a torná-lo

norma inconfundível com aquelas que disciplinam a sentença condenatória, ainda temos, no art. 461, a sentença como provimento auto-exeqiií-vel, onde não apenas a execução se faz no mesmo processo, como poderá até mesmo ser antecipada, sob forma de liminar que, como as medidas antecipatórias do art. 273, não são cautelares (concedidas para "segurança de uma futura execução"), mas provimentos antecipatórios da futura sentença de procedência ("execução-para-segurança", ou seja, execução urgente).

C) Sensível ao perfil dos conflitos judiciários modernos, de nossa civilização urbana de massas, centrados nas pretensões de fazer e não fazer, decorrentes de uma economia caracterizada preponderantemente pelas relações jurídicas e prestação de serviços, o legislador buscou dotar justamente essas pretensões de ações, genericamente concebidas, com instrumentos jurisdicionais flexíveis, por isso capazes de se adaptarem a exigências de cada direito material formador do objeto litigioso do res pectivo processo.

Não são diversas, aliás, as oportunas e corretas observações de KAZUO WATANABE, principal inspirador deste preceito legal, feitas em seus comentários ao Código Brasileiro de Defesa do Consumidor (Lei 8.078, de 11.09.1990), cuja leitura se recomenda (Código Brasileiro de Defesa do Consumidor comentado).

D) Resta, sem dúvida, a conquista, ou a reconquista,, da distinção entre obrigações e deveres que o direito moderno suprimiu, a partir do período bizantino do direito romano tardio, generalizando, contra as legí timas fontes do direito romano clássico, o conceito de ohligatio, de que proveio nossa genérica e exclusiva execução por créditos - com supressão das ações mandamentais, e das execuções reais, que correspondiam basi camente à tutela romana interditai -, para que a compreensão do campo de incidência da norma contida no art. 461 evidencie que, no conceito de obrigação com que labora este artigo, compreendem-se tanto as obriga ções stricto sensu, do direito das obrigações, quanto genericamente os deveres, aí compreendidos tanto aqueles nascidos do direito privado quan to os deveres sociais e os que nascem no campo do direito público.

Pode-se perfeitamente dizer que a norma legal do art. 461 acena para.o ideal da "execução inominada" ou atípica, assim como o ordenamento jurídico já concebeu a ação cautelar inominada como expressão máxima do princípio de instrumentalidade do processo, enquanto instrumento de realização do direito material.

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O art. 461, além de generalizar a execução das obrigações de fazer e não fazer, buscando tornar o instrumento processual executivo adaptado às peculiaridades do caso concreto, ainda arma o juiz de poderes de império de que é carente, por definição, a sentença condenatória. Quer dizer, a norma do art. 461 responde afirmativamente à indagação que a doutrina italiana frequentemente faz, procurando determinar se poderia haver sentenças condenatórias cuja execução não se submetesse aos rígidos padrões da execução por crédito.

E significativo observar como a doutrina italiana vem reagindo contra a insuficiência do instrumento executivo, reduzido como ele o foi, no direito moderno, exclusivamente à execução obrigacional, particularmente nos dois setores mais sensíveis da disciplina jurídica privada, o direito do trabalho e o direito de família, os dois ramos onde em geral costumam surgir os primeiros sinais de reação contra o divórcio entre as exigências sociais e os esquemas processuais que o tempo tenha superado. Nos últimos anos, têm-se intensificado, na doutrina italiana, as manifestações contra a rigidez dos intrumentos executórios destinados ao cumprimento de sentenças condenatórias, tanto no direito do trabalho (ELISABETTA SILVESTRI, Problemi e prospettive di evoluzione delPesecuzione degli obblighi di fare e di non fare) quanto no direito de família (LUCA MALAGÚ, Esecuzioni fonata e dirítto difamiglia, especialmente às p. 114 e ss.).

E) Convém destacar que o preceito do art. 461, concebido com sábia flexibilidade, poderá agasalhar tanto as demandas executivas quanto - o que é ainda mais significativo, em termos de teoria geral do processo - as mandamentais que porventura decorram das pretensões fundadas em obrigações de fazer ou não fazer.

Como se lê no § 3.° do art. 461, o juiz poderá "conceder a tutela liminarmente", o que afasta, definitivamente, a suposição de que a demanda fosse apenas condenatória, pois, como se sabe, nestas ações, jamais o magistrado poderia antecipar execução, que é eficácia inteiramente ausente da demanda de conhecimento condenatória. Ora, se o juiz pode antecipar a tutela, para "determinar as providências que assegurem o resultado prático equivalente ao adimplemento", então é sinal evidente de que a futura sentença de procedência terá, necessariamente, o efeito antecipado, posto que o juiz não poderá tê-lo tirado do nada.

Fica, assim, demonstrado que as ações do art. 461 contêm simultaneamente conhecimento e execução. Mas poderá igualmente ocorrer que o "resultado prático equivalente ao do adimplemento" não possa ser obtido através do ato executivo, por tratar-se de pretensão a um fazer infungível -o que é comum nas obrigações de não fazer consistentes em prestações infungíveis -, hipótese em que a sentença haverá de assumir natureza

mandamental. Assim como o juiz poderá, executivamente, na mesma relação processual, determinar o "desfazimento de obras" porventura construídas contra direito, poderá igualmente "impedir" a atividade nociva porventura praticada pelo demandado (§ 5.°), proibindo-lhe, sob pena de desobediência, a prática do ato ou do comportamento proibido.

5.11 Àção monitoria

A Lei 9.079, de 17 de julho de 1995, introduziu, no direito brasileiro, a chamada "ação monitoria", de que trata o art. 1.102, letras a, b e c, do CPC. Pode-se dizer que esta nova espécie de tutela processual representa, sob certos aspectos, uma novidade em nosso sistema. O antigo direito luso-brasileiro conheceu um procedimento análogo que nos veio das Ordenações portuguesas e que o revogado Código de Processo Civil de 1939 ainda conservava, com a denominação de "ações cominatórias".

A) O procedimento monitório agora introduzido em nosso direito descende mais diretamente do moderno "procedimento di ingiunzione" do direito italiano e dos procedimentos análogos existentes nos demais sistemas europeus. Enquanto a "ação cominatória" do Código de 1939 descendia dos antigos mandata do direito medieval - que, por sua vez, provinham dos interditos romanos -, nossa atual "ação monitoria", em bora tenha essa mesma origem comum, distancia-se substancialmente da tutela de tipo interditai, mantendo-se como forma especial de processo de conhecimento, destinado à rápida formação do título executivo, para realização de um direito de natureza obrigacional, conformando-se, por tanto, com a estrutura geral de nosso Código.

B) Para melhor compreender a diferença entre o procedimento moni tório atual e a antiga "ação cominatória", basta ver que esta tinha por finalidade o cumprimento das obrigações de fazer e não fazer, ao contrário do que ocorre com a "ação monitoria", destinada a tutelar o cumprimento de obrigações de entregar coisas fungíveis, especialmente de natureza monetária, e, ocasionalmente, o cumprimento das obrigações de entregar coisa certa, de natureza móvel (art. 1.102a). Sobre esta essencial diferença, escreveu MOACYR AMARAL SANTOS: "Diversamente dos processos alienígenas, que se destinam a ações condenatórias tendentes ao cumpri mento de obrigações de dar, o de preceito cominatório, regulado pelo Código (refere-se o jurista ao revogado Código de 1939), como era no direito anterior e no velho direito português, serve de instrumento a ações que visam o adimplemento de obrigações de fazer ou não fazer" {Ações cominatórias no direito brasileiro, v. 1, n. 49). Com efeito, o processo

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monitório ou injuncional do direito italiano não se aplica às obrigações de fazer e não fazer nem ao cumprimento das obrigações de dar, quando estas tenham por objeto coisas infungíveis (CALAMANDREI, 11 procedimento monitório nella legislazione italiana, p. 28). Esta mesma limitação está presente no direito francês (ROGER PERROT, D procedimento per ingiun-zione - Studio di diritto comparato, RDP, p. 721).

Enquanto as "ações cominatórias" aproximavam-se da tutela interditai possessória à semelhança dos interditos proibitórios do direito romano, a ponto de serem por muitos reduzidas apenas à tutela da posse (MOACYR AMARAL SANTOS, Ações cominatórias..., n. 28) - capazes, portanto, de produzir sentenças mandamentais -, nossa atual "ação monitoria" produz apenas sentenças de condenação, destinadas a legitimar a subsequente execução por quantia certa, ou eventualmente execução para cumprimento de obrigações de entregar coisa certa móvel - em qualquer das hipóteses, porém, execução obrigacional, nunca execução real, de que trataremos no 2.° volume deste Curso.

A doutrina refere-se sempre a procedimento monitório ou injun cional, não à "ação monitoria", como preferiu designã-la o legislador no art. 1.102a. E está certa a doutrina, pois não existe, no plano do direito material, uma pretensão à cominação e, portanto, não há uma correspon dente ação (de direito material) cominatória. A pretensão à cominação nasce do processo (PONTES DE MIRANDA, Comentários ao Código de Processo Civil (1939), t. V, p. 5). E, por sua vez, a "ação" processual, sendo, como é, abstrata, impede que se lhe dêem qualificações, que a substancializem, como na locução "ação monitoria". Quando se diz "ação reivindicatória", "ação de investivação de paternidade", "ação de despe jo", "ação de anulação" e a infinidade das demais ações de que nossa prática forense se ocupa diuturnamente, cuida-se de qualificar a respec tiva pretensão de direito material que a demanda busca tornar efetiva. Esta, a dita ação monitoria, nada mais é do que um procedimento espe cial, de índole condenatória, como acertadamente sustenta EDOARDO GARBAGNATI (// procedimento d'ingiunzione, n. 10), apenas abrevia do, na busca da rápida formação do título executivo.

Nosso procedimento monitório, não obstante sua filiação ao direi to italiano, oferece algumas peculiaridades que merecem destaque. Uma delas diz respeito à relativa timidez com que o legislador o disciplinou, nos arts. 1.102a a 1.102c de nosso CPC. Embora exija a lei prova escrita para que o autor tenha acesso ao procedimento monitório. não sendo, portanto, suficiente a simples afirmação do credor, como se dá no chamado monitó-

rio puro, a lei não prevê hipóteses de execução provisória do decreto injun-tivo, ou monitório, como ocorre no chamado monitório documental, e como o admite, para determinadas hipóteses, o direito italiano, como já vimos ao tratar dos procedimentos de tipo monitório ou injuncional.

E) Na forma do que dispõe o art. 1.102a, aquele que dispuser de documento sem força de título executivo poderá promover a respectiva demanda por meio da "ação" monitoria, em vez de se sujeitar ao procedi mento ordinário. Ao contrário do que ocorre no procedimento comum, no monitório o juiz, ao receber a petição inicial, não se limitará a simplesmen te ordenar a citação do réu, mas, verificando que a petição inicial está devidamente instruída, emitirá uma decisão (não simples despacho) defe rindo de plano a expedição de mandado de pagamento, ou mandado de entrega, tratando-se de ação que diga respeito a entrega de coisa (art. 1.102b).

F) A consequência decisiva que distingue o monitório do procedi mento comum, ordinário ou sumário, é justamente a situação que se cria para o réu contra quem é emitido o mandado liminar. Enquanto no proce dimento comum ele será apenas citado para defender-se, apresentando contestação, no monitório deverá embargar o preceito contido na decisão liminar, sob pena de constituir-se, de pleno direito, o título executivo, pela conversão do mandado inicial em mandado executivo, prosseguindo-se na forma de um procedimento de execução, por quantia certa ou para entrega de coisa (Livro II, Título II, Capítulos II e IV). Este é outro ponto que distingue nossa "ação" monitoria do procedimento injuncional italiano. Enquanto lá, no caso de revelia, o juiz deverá emitir um provimento, de natureza sentenciai, com base no qual o mandado liminar não embargado adquire eficácia de título executivo (GARBAGNATI, ob. cit., p. 123), entre nós dá-se a conversão automática do mandado inicial em mandado execu tivo, de modo que o documento com que o autor instruíra a petição inicial, não sendo título executivo extrajudicial, dará lugar, em virtude do não oferecimento de embargos, a uma execução por título judicial.

G) O réu poderá adotar uma das três alternativas seguintes: a) cum prir o mandado, satisfazendo a prestação que lhe é exigida, caso em que ficará isento do pagamento de custas e honorários; b) deixar de cumprir o mandado e mesmo assim não embargar a ação, hipótese ern que, como vimos, o mandado liminar transforma-se em título executivo; c) oferecer embargos, no prazo de quinze dias, com automática suspensão da eficá cia do mandado liminar, prosseguindo-se, a partir daí, segundo as normas do procedimento ordinário, cabendo então ao juiz decidir a respeito da procedência ou não dos embargos. Se estes forem rejeitados, constituir-

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se-á, de pleno direito, o título executivo judicial (art. 1.102c. § 3.°).

AÇÕES DO "PROCESSO DE CONHECIMENTO" SUMÁRIO: 6.1 Conceito - 6.2 Classificação - 6.3 Ações

declaratórias: Ação de consignação em pagamento; 6.3.2 Ação de usucapião - 6.4

Ações condenatórias: 6.4.1 Ações de cobrança; 6.4.2 Ações de indeniza- ção; 6.4.3 Ações contra o uso nocivo da propriedade; 6.4.4 Ações conde natórias para entrega de coisa certa; 6.4.5 Ação confessória; 6.4.6 Ação negatória - 6.5 Ações constitutivas: 6.5.1 Ação de separação judicial;

Ação de interdição; 6.5.3 Ações para desconstituição de atos e negócios jurídicos; 6.5.4 Ação de sonegados.

6.1 Conceito

Toda demanda - qualquer que seja sua natureza e finalidade - compõe-se de três elementos indispensáveis à formação de seu conceito, que são as partes, a causa de pedir (causa petendi) e o pedido. Assim como a omissão ou a insuficiência de qualquer um destes três elementos torna defeituosa a formulação da demanda judicial, assim também a mudança de qualquer deles importará na transformação da demanda em outra, diferente. Partes, causa petendi e pedido são, pois, os elementos formais de toda e qualquer demanda, independentemente de seu conteúdo específico.

Trataremos agora de estudar não as demandas em seu aspecto formal, e sim algumas ações de direito material contidas no "processo de conhecimento" e que correspondem propriamente ao conteúdo de cada demanda.

É comum na doutrina processual ligar-se o conceito de demanda apenas àquelas existentes do "processo de conhecimento". ROSENBERG, por exemplo. inicia o estudo deste tema declarando que "com a demanda se inicia o processo de decisão; com a sentença ele termina" (Tratado..., v. 2. § 83,1,1). E, logo a seguir: "Demanda é o pedido de outorga de tutela mediante sentença". Como nosso processo civil distribui a atividade jurisdicional em "processo de conhecimento", processo cautelar e processo de execução, poderia parecer que

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no processo de execução não houvesse lugar para uma demanda executória, desde que, segundo se sabe, no processo de execução por créditos (Livro II do Código), não há lugar para sentença.

E como muitos se recusam a admitir que a ação cautelar contenha julgamento de mérito (assim THEODORO JÚNIOR, Processo cautelar, § 120), poderia parecer igualmente que inexiste neste tipo de tutela jurisdicional uma demanda cautelar.

Contudo, definida a demanda com o pedido formal de tutela jurisdicional que a parte formula perante o Estado, não vemos como se possa excluir a existência de uma demanda de execução, ou de uma demanda cautelar, nestes tipos de atividade jurisdicional.

Tendo em vista os objetivos desta obra, certamente não seria possível transformada num extenso tratado das ações. Daí porque limitamo-nos ao exame tão-somente dos aspectos essenciais de algumas ações do processo de conhecimento que, por sua singularidade ou pelo índice de sua frequência na experiência do foro brasileiro, possam servir-nos para uma exposição adequada deste assunto, de tanta importância prática para os operadores forenses do direito.

Considerando os princípios doutrinários e o próprio desenvolvimento histórico do conceito de "processo de conhecimento", incluiremos nele apenas as ações declaratórias, constitutivas e condenatórias, que verdadeiramente são aquelas que realizam o preceito contido no art. 463 do CPC, segundo o qual, prolatada a sentença de mérito, "o juiz cumpre e acaba o ofício jurisdicional", o que pode significar o que se prevê nesse dispositivo, ou seja, que depois de publicada a sentença, é vedado ao juiz alterá-la; mas igualmente pode corresponder a que toda atividade jurisdicional posterior à sentença ou não será mais jurisdicional, ou não terá lugar no "processo de conhecimento", desde que, segundo a doutrina e a própria lei, este tipo de tutela jurisdicional começa com a petição inicial e termina com a sentença.

Das demais ações que exijam atividade tipicamente jurisdicional, dentro da mesma relação processual, depois que a sentença de mérito haja sido proferida, trataremos quando nos for dado tratar do processo de execução lato sensu.

6.2 Classificação

Se todas as demandas, corno dissemos, hão de ter aqueles três elementos estruturais, que são indispensáveis à formação de seu próprio conceito - e por eles todas as demandas se equivalem -, como então distingui-las umas das outras? Como identificá-las e saber por que uma ação de despejo é realmente uma ação de despejo e em que ela se distingue, por exemplo, de uma ação de reintegração de posse, ou de uma ação de reivindicação, nas quais também ocorre o mesmo fenómeno de expulsão do demandado da posse da coisa até então existente em seu poder e a correspondente imissão do autor na posse do objeto mediato do litígio? Certamente - poder-se-ia responder - uma ação de despejo, ou de anulação de contrato, ou de separação judicial, ou de cobrança, diferem entre si porque, em cada uma delas, se faz valer um direito completamente distinto do direito afirmado nas demais. Esta resposta, sem dúvida corre-ta, estaria, no entanto, incompleta. Não se deve identificar a demanda com o eventual direito subjetivo material de que ela provém, e sim da respectiva pretensão, igualmente de direito material, que a demanda procura tutelar, como procuramos esclarecer quando tratamos da teoria da "ação" processual.

Se uma ação de usucapião difere de outra qualquer em virtude da pretensão de direito material afirmada existente pelo autor, como acabamos de ver, ou se uma ação de anulação de contrato ou de casamento diferem entre si em razão da natureza do direito material posto em causa, então a classificação das sentenças em declaratórias, constitutivas e condenatórias diz respeito à natureza da controvérsia de que o respectivo processo se ocupa, e nada tem a ver com a relação processual enquanto tal. Uma ação será declaratória ou constitutiva ou condenatória, ainda que ela seja ordinária, sumária ou especial, não porque a relação processual imprima nela tais características, e sim porque a lide contida no processo tende para um resultado declaratório, constitutivo ou condena-tório. Duas demandas processadas, digamos, pelo rito ordinário, sendo uma delas declaratória e outra constitutiva, apresentar-se-ão, sob o ponto de vista formal, absolutamente idênticas, até a prolação da sentença de mérito que julgue ambas procedentes. A distinção entre elas - distinção da maior importância para a ciência processual - somente aparece depois de haver sido proferida a sentença e corresponde às respectivas eficácias de cada uma delas.

Devemos, portanto, deixar bem claro, desde logo, que as classificações usuais das ações e sentenças feitas pela doutrina são classificações das respectivas ações de direito material, que constituem a substância dos

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respectivos processos onde elas se encontram. A classificação das ações não diz respeito à relação processual e sim à lide, nada tem a ver com a forma do processo, sim com o seu conteúdo. Quando se diz que as ações - e as respectivas sentenças de procedência — podem ser declaratórias, constitutivas ou condenatórias, está-se a indicar ações de direito material afirmadas existentes, na correspondente petição inicial, e que na perspectiva da relação processual concreta onde elas se apresentam não serão mais do que simples hipóteses de trabalho com que o magistrado se depara. Se a ação for julgada improcedente, terá havido, sem dúvida, "ação" processual, de começo a fim legitimamente exercida, mas o autor que a exercera não tivera, no caso, a ação declaratória, constitutiva ou condenatória que afirmara possuir, daí a declaração (toda sentença de rejeição é declaratória) de improcedência da ação (de direito material).

Costuma-se dizer que a petição inicial contém o projeto da futura sentença pretendida pelo autor. Isto é sem dúvida verdadeiro. Mas a conclusão apenas confirma o que acaba de ser dito. A petição inicial é realmente o projeto da respectiva sentença, porém da sentença de procedência! O autor, ao elaborá-la, deve conhecer, com suficiente segurança, a natureza de sua pretensão (de direito material), de modo a poder determinar o tipo de providência judicial por meio da qual ela poderá ter efetiva realização. Se o autor apenas pretende que o juiz o declare titular de algum direito, limitando o ato sentenciai a uma simples declaração, haverá de rematar a petição inicial formulando o pedido para que o juiz assim o declare; contudo, se o autor se disser locador, pretendendo, por meio da respectiva ação, retomar o imóvel locado, que o inquilino, segundo sua versão, se recusa injustamente a restituir, certamente a simples declaração de que o autor teria direito à restituição (eficácia declaratória), quando a ação viesse a ser declarada procedente, seria insuficiente e a sentença menor do que o pedido (citra petita). Neste caso, além de declarar que o autor tem direito a retomar o imóvel locado, deverá o juiz, na própria relação processual, determinar as providências concretas subsequentes, capazes de tornar efetiva e realizada a pretensão de retomada. Neste caso, como se vê, a sentença terá outras eficácias e produzirá outros efeitos que não se encontram na sentença anterior, meramente declaratória.

Daí porque, considerando-se o princípio da congruência - segundo o qual o juiz só poderá prestar jurisdição nos estritos limites do pedido que a parte lhe fizer -, tanto faz classificarem-se as ações como as sentenças. A cada ação (de direito material) - quando procedente - haverá de corresponder uma sentença de igual natureza. Através de uma açào declaratória. pede-se, e no caso de procedência, obtém-se uma sentença declaratória: se a ação diz-se constitutiva ou condenatória. é porque o autor pretende, em caso de procedência, uma sentença respectivamente constitutiva ou condenatória.

Certamente as antigas classificações das ações pelos velhos processualistas, tais como aquelas que as distinguiam em ações mobiliárias e imobiliárias, têm, hoje, escassa relevância para a ciência processual moderna. O Código de Processo Civil, contudo, a elas se refere, quando trata da competência (arts. 94 e 95) ou da capacidade processual das partes (art. 10). A mais importante, sem dúvida, é a classificação das ações e sentenças por suas respectivas eficácias, que LIEBMAN afirma ser a única legítima (Manuale..., § 76). Todas são legítimas, apenas este critério classificatório é mais relevante para a ciência processual, pelas consequências que de cada sentença decorrem no direito moderno. Mas é necessário ter presente que não são a ciência nem o legislador do processo a determinarem as eficácias das respectivas sentenças de procedência.

Não se pode afirmar, como o faz LIEBMAN, que, tendo em vista os respectivos direitos que se pretendem ver tutelados pela sentença, as ações podem distinguir-se em reais e pessoais, mobiliárias ou imobiliárias, como a sugerir que a outra classificação, que ele dá como a "única legítima" - que considera apenas suas eficácias -, não deve ter igualmente em conta a natureza do direito (pretensão) afirmado pelo autor, na petição inicial. Todas as classificações são relativas às ações de direito material de que o autor pretende ser titular. A não ser, naturalmente, que se trate de classificações meramente formais relativas ao tipo do processo ou procedimento, tal como a distinção que se faz entre ações ordinárias e sumárias ou especiais, e até mesmo entre uma ação ordinária e outra monitoria ou injuncional, porque aqui a pretensão injuncional é categoria puramente processual (cf. nossa A ação de imissão de posse, 2. ed., p. 132 e ss.). Estas classificações, evidentemente, referem-se à relação processual e não à lide, ou ao conteúdo do processo.

O equívoco que tem levado os juristas a afirmar que a única classificação legítima, do ponto de vista da ciência processual, seria aquela que distingue as ações e sentenças por suas respectivas cargas de eficácia decorre da suposição de que a separação entre o chamado "processo de conhecimento" e o processo de execução seja um fenómeno apenas processual e que nada tenha a ver com o direito material de que o processo se ocupe, supondo-se que o processualista e o legislador sejam soberanos absolutos neste domínio, podendo fazer e desfazer as coisas, criando ou extinguindo ações condenatórias ou executivas ou declaratórias, ou íransfor-mando*as de uma categoria em outra. Contudo, o exame mais superficial que se fizesse seria suficiente para mostrar que uma determinada ação será invariável e necessariamente constitutiva, por exemplo, segundo a natureza da pretensão a ser tutelada pela sentença seja desta espécie. Jamais poderá o legislador do processo

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mudar a natureza constitutiva de uma açao de separação judicial ou de anulação ou rescisão de um contrato!

Se as ações declaratórias e constitutivas têm esta natureza segundo a índole da respectiva pretensão de direito material, reconhecida como existente pela sentença, então por que igualmente as condenatórias não o seriam também por força de uma correspondente pretensão (de direito material) condenatória? Como veremos oportunamente, a separação do fenómeno jurisdicional entre "processos de conhecimento" e processos de execução tem uma razão histórica perfeitamente conhecida e explicável, que não invalida, antes confirma, a tese de que também a classificação usual entre os processualistas das ações por suas eficácias leva em conta a natureza da pretensão de direito material, e não a relação processual.

Feitas estas observações preliminares, tratemos de examinar os exemplares mais significativos e frequentes de cada tipo de ação existente no denominado "processo de conhecimento".

6.3 Ações declaratórias

A ação (de direito material) declaratória tem por fim a obtenção de uma sentença que simplesmente declare a existência ou a não existência de uma determinada relação jurídica. Pode acontecer que o titular do direito, ou aquele que se julgue tal, veja-o contestado, questionado ou negado pelo devedor, ou mesmo por algum terceiro com quem o pretenso titular do direito mantenha relação jurídica. Pode acontecer que alguém se diga credor de outrem e este se recuse a aceitar a condição de devedor, alegando que a relação jurídica pelo suposto credor afirmada, na realidade, não existe, ou existe de modo diverso. Se alguém afirma haver emprestado a outrem determinada quantia em dinheiro e este, ao contrário, insiste em que a recebera de presente, como doação, certamente ambos terão interesse em obter uma sentença judicial, o primeiro pretendendo que o juiz declare a existência da relação jurídica de empréstimo, o segundo para que o juiz a declare inexistente, ou para que declare a existência do contrato de doação. Qualquer das partes, neste caso, pode assumir a posição de autor, deixando à outra a condição de ré. Conforme a natureza do pedido, a ação declaratória pode assumir o ca-ráter de uma ação declaratória positiva, ou negativa, segundo se peça a declaração da existência ou da inexistência da relação jurídica.

A função da ação declaratória, portanto, é fundamentalmente a eliminação da incerteza em torno da existência ou inexistência de uma

determinada relação jurídica, quando haja, em virtude de circunstâncias especiais, necessidade jurídica e interesse capaz de legitimar este tipo de ação.

A tutela declaratória, enquanto tal, esgota-se com a simples emissão da sentença e com a correspondente produção da coisa julgada material. O bem da vida, neste caso, para usarmos a terminologia de CHIO-VENDA, é justamente, e apenas, a obtenção de uma sentença com força de coisa julgada, que torne indiscutível, numa eventual demanda futura, a existência, ou a inexistência, daquela relação jurídica que o juiz declarara existir ou não existir.

Na ação declaratória, portanto, o juiz não vai além de um juízo de pura realidade, não ultrapassando o domínio do ser ou do não ser: não profere qualquer juízo de valor, não reprova ou condena ninguém, assim como não cria, nem modifica ou extingue qualquer direito ou relação jurídica. Limita-se a declarar o que existe ou o que não existe, no domínio do direito (cf. PONTES DE MIRANDA, Tratado das ações, v. 1, §§ 25-33).

A ação declaratória está prevista no art. 4.° do CPC, nestes termos: "O interesse do autor pode limitar-se à declaração: I - da existência ou da inexistência de relação jurídica; II - da autenticidade ou falsidade de documento".

A não ser o caso, único, da ação declaratória de autenticidade ou de falsidade documental, somente uma relação jurídica ou um estado podem ser objeto de ação declaratória. A única exceção admitida pela lei é esta, em que um simples fato (autenticidade ou falsidade de documento) pode constituir objeto de uma demanda autónoma.

O interesse que legitima a açâo declaratória, porém, deve ser demonstrado objetivamente. Não basta o autor estar em estado de dúvida a respeito de seu direito para que a demanda seja procedente. Ele haverá de demonstrar que a incerteza provém de alguma circunstância externa e objetiva, diversa e mais grave do que a simples incerteza subjetiva, ou puramente académica (LIEBMAN, Manua-le..., p. 16). Não posso, por exemplo, mesmo que esteja em dúvida séria e fundada a respeito de meu direito de propriedade sobre minha casa ou meu automóvel, ingressar em juízo com uma ação declaratória, para que o juiz me declare por sentença proprietário. Se assim procedêssemos. legitimando este tipo de pretensão, estaríamos transformando o juiz em nosso conselheiro, outorgando-lhe a função de um simples parecerista. chamado a opinar independentemente da existência de um conflito de interesses, ao menos virtual, entre os interessados.

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Contudo, se pretendo, por exemplo, dar em garantia um prédio de minha propriedade a um determinado estabelecimento bancário, ou dá-lo em locação a alguém, e vejo-me embaraçado de realizar tais negócios porque alguém afirma que esse direito de propriedade não me pertence, então, sim, nascer-me-á o indispensável interesse processual para a ação declaratória. Teria surgido, neste caso, a controvérsia jurídica sobre a existência ou inexistência de uma dada relação jurídica - passa a existir uma lide, que pode ser objeto de uma demanda autónoma de mera declaração.

Pode acontecer - e isto frequentemente acontece na prática - que alguém se diga vítima de alguma lesão a um direito seu, causada por outrem, que, por sua vez, nega e se recusa a reparar o dano que se afirma causado pela alegada ofensa. Digamos que o prejudicado afirme haver sofrido danos materiais em sua propriedade por ato culposo de outrem; ou que este, ao recusar-se a cumprir uma promessa de contratar, igualmente lhe cause danos. Nestas duas hipóteses, caberia já uma ação condenatória, tendo em vista que, diferentemente dos exemplos anteriores, aqui o pretenso direito à indenização já existiria, tendo em vista a afirmada violação de um dever jurídico por parte do demandado. Contudo, ainda neste caso, o autor poderia íimitar-se a propor uma demanda simplesmente declaratória, como o permite o art. 4.°, parágrafo único, do CPC. Naturalmente, se o autor escolher a ação declaratória, a sentença que lhe der razão, julgando-a procedente, não criará nenhum título executivo, capaz de legitimar o processo de execução subsequente. Neste caso, aquele que sofrera o dano, reconhecido por sentença meramente declaratória, teria de promover uma segunda demanda condenatória, caso o demandado persistisse em descumprir a obrigação, para só então legitimar-se para a execução forçada.

Toda e qualquer ação e, pois, todas as sentenças proferidas em processo contencioso, ou em procedimento de jurisdição voluntária, contêm eficácia declaratória, em grau de intensidade mais ou menos acentuado. O juiz, enquanto tal, ao proferir a sentença, terá de aplicar, no caso concreto, algum preceito normativo e portanto genérico. A esta operação lógica, por meio da qual o julgador investiga e determina a incidência ou a não incidência de certo preceito legal no caso particular, denomina-se "subsunção", ou "concreção" da norma abstrata ao caso concreto. Tal corresponderá invariavelmente a um dizer o direito, ainda que de forma elíptica, ou implícita, daí porque a sentença de procedência numa ação condenatória ou constitutiva conterá declaração, pois o juiz não poderá -tal como o faria um particular, ou mesmo um administrador estatal -interferir numa dada relação jurídica existente, para modificá-la, ou extingui-la, ou para criar um novo vínculo jurídico até então inexistente; ou

para condenar o demandado, sem antes declarar, ainda que de forma elíptica, a incidência de alguma norma jurídica, de onde ele haja retirado a consequência constitutiva ou condenatória.

O juiz não poderá, por exemplo, condenar o réu a índenizar sem antes, na própria sentença, reconhecer que o autor tem direito de ser indenizado, tendo em vista a existência de alguma norma legal que faz o réu responsável, perante o autor, por indenização. A afirmação de tal direito, de que o magistrado haverá de extrair a consequência condenatória - geralmente expressa na sentença com a fórmula "julgo procedente a ação" -, é um juízo sobre a existência de um preceito legal que incidiu na espécie sob julgamento, e que ele aplica como pressuposto para a condenação.

Na verdade, as sentenças contêm mais de uma eficácia, sendo impossível, ou ao menos muito rara, a ocorrência de sentenças que sejam puramente declaratórias ou apenas condenatórias, ou constitutivas, ou executivas ou somente mandamen-tais, sem que qualquer delas não contenha, em doses menos intensas, outra ou outras eficácias.

Segundo a conhecida doutrina de PONTES DE MIRANDA, cada sentença deverá conter todas as eficácias conhecidas, distribuídas em doses diferentes, a ponto de ser possível quantificá-las matematicamente, descobrindo-se em todas as sentenças uma soma constante de eficácias. Esta concepção, de inspiração pitagórica, que busca a redução ontológica da realidade social a uma simples expressão numérica, é artificiosa, sem dúvida, e destituída de fundamentação científica.

Contudo - é preciso que isto fique desde logo assentado —, se a doutrina de PONTES DE MIRANDA, a respeito da "constante quinze", como a soma invariável das eficácias de todas as sentenças, há de ser rejeitada, nem por isso se lhe deve recusar o mérito de haver insistido no fato de que as sentenças em geral não são puras e que as classificações que delas se fazem levam em conta apenas a eficácia que nelas prepondera, além de mostrar que todos os critérios usuais de classificação das sentenças apenas dizem respeito às sentenças de procedência, o que prova que o objeto dessas operações classificatórias é invariavelmente a ação de direito material.

6.3.1 Ação de consignação em pagamento

a) O pagamento por consignação é uma forma pela qual o devedor pode liberar-se da obrigação, mediante o depósito judicial da coisa devida, nos casos em que o pagamento direto ao credor e a respectiva quita-

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ção encontrem algum obstáculo previsto em lei, que legitime o depósito em juízo do objeto do pagamento.

Segundo o art. 972 do CC (art. 334 do novo CC), "considera-se pagamento, e extingue a obrigação o depósito judicial da coisa devida, nos casos e formas legais". As hipóteses previstas em lei para que a consignação tenha lugar estão arroladas no art. 973 do CC (art. 335 do novo CC): I - se o credor, sem justa causa, recusar "receber o pagamento, ou dar quitação na devida forma; II - se o credor não for, nem mandar receber a coisa no lugar, tempo e condições devidas; III - se o credor for desconhecido, estiver declarado ausente, ou residir em lugar incerto, ou de acesso perigoso ou difícil; IV - se ocorrer dúvida sobre quem deva legitimamente receber o objeto do pagamento; V - se pender litígio sobre o objeto do pagamento; VI - se houver concurso de preferência aberto contra o credor, ou se este for incapaz de receber o pagamento".

A disciplina processual da ação de consignação em pagamento consta dos arts. 890-900 do CPC (com as modificações introduzidas pela Lei 8.951, de 13.12.1994). E a natureza desta ação, como demanda preponderantemente declaratória, está confirmada pela seguinte disposição contida no art. 897 do CPC, onde está dito: "Não oferecida a contestação, e ocorrentes os efeitos da revelia, o juiz julgará procedente o pedido, declarará extinta a obrigação e condenará o réu nas custas e honorários advocatícios".

Como se vê deste dispositivo, ao declarar procedente a ação igualmente declarará extinta a obrigação e condenará o réu no pagamento de custas e honorários. É muito importante constatar, no contexto da sentença de procedência, a existência dessas duas declarações que o magistrado há de fazer, pois elas deixam claras as duas ordens de atividades jurisdi-cionais desenvolvidas pelo julgador, quando a sentença for de procedência. Como antes mostramos, através da fórmula usualmente empregada pelo juiz para declarar a procedência da ação ("julgo procedente a ação" ou "declaro a ação procedente"), realiza-se a concreção da norma legal ao caso litigioso, mediante a declaração de que o preceito invocado pelo demandante efetivamente incidiu na espécie. Se isto ocorrer, então a ação de direito matéria! é declarada procedente, o que significa conside-rá-lu existente, reconhecendo-se, portanto, a legitimidade da pretensão de que o autor se dissera titular no processo. A partir daí. cabe ao magistrado reali/ar a conduta correspondente à ação de direito material de que o autor fora privado, em virtude do monopólio da jurisdição pelo tstado.

No caso da ação de consignação em pagamento, o autor pretendia (tinha pretensão) liberar-se da obrigação pelo pagamento, obtendo do credor a correspondente quitação. Se a ação for declarada procedente, o juiz fará exatamente aquilo que o réu deverá fazer e não o fez: declarará legítimo o pagamento e extinta a obrigação.

Diversamente do que acontece com a revelia do demandado, cujo efeito normal, segundo o art. 319 do Código, é terem-se por verdadeiros os fatos afirmados pelo autor, aqui, na ação de consignação em pagamento, segundo dispõe o art. 897, a consequência da omissão do réu em contestar o pedido será a procedência da ação.

No sistema do Código de Processo Civil, a revelia determina apenas o julgamento antecipado da lide. tornada desnecessária a realização da audiência, uma vez que a omissão do réu em defender-se importa em terem-se por verdadeiros os fatos afirmados pelo autor. O juiz, em ocorrendo revelia, deve julgar antecipadamente a causa, mas não necessariamente no sentido de sua procedência. Ao contrário da regra geral contida nos arts. 319 e 330, II. a revelia do demandado na ação de consignação em pagamento não determina o julgamento antecipado da lide. mas, ao contrário, torna-o supérfluo, uma vez que o juiz, nesta hipótese, teria de declarar sempre procedente a demanda. A procedência não decorreria de um ato decisório do julgador, mas seria resultado necessário da revelia. ADROALDO F. FABRÍCIO {Comentários ao Código de Processo Civil, p. 155) entende que não se pode ver no dispositivo do art. 897 a intenção do legislador de obrigar ao julgamento de procedência, automático e inelutável. sempre que haja revelia, pois. segundo ele. faltando alguma prova documental tida por indispensável, ou verificando o juiz que, dos fatos expostos, não poderia decorrer a consequência jurídica pretendida pelo autor, mesmo assim, julgar-se procedente a ação seria um absurdo.

SÉRGIO FADEL (Código de Processo Civil comentado, v. 5, p. 18) critica PONTES DE MIRANDA porque este, ao examinar o art. 317. § 2.°. do Código de 1939. dissera que. em caso de revelia, o juiz não eslava adstrito, sempre, a julgar subsistente o depósito, dando pela procedência da ação de consignação em pagamento. Não nos parece, no entanto, procedente a crítica. É sabido que o regime do Código de 1939. quanto à disciplina da revelia do demandado, era justamente o oposto ao do Código de ] 973. de modoque a conclusão de PONTES DE MIRANDA poderia ser legítima perante o sistema anterior e não sê-lo mais frente ao disposto no art. 897.

■ PONTES DE MIRANDA, porém, ao transpor para seus novos comentários o que dissera antes, cm análise ao Código revogado, nãn pôde evitar a eontradiçãn. Depois úc atirmnr que. "se a contestação não foi oferecida dentro do pra/n. procedente e o pedido" [Conwnuínn .̂.., \. 1 3. p. 40). repete o que dissera cm seus anliyo-.

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comentários ao art. 317, § 2.°, do Código anterior, ou seja, que o juiz nao estaria adstrito a julgar, sempre, procedente o pedido (p. 41).

Cremos, todavia, que o Código está certo. Se o credor não contesta o pedido de depósito, não vemos como possa o juiz declarar improcedente a ação, negando eficácia liberatória ao pagamento.

O que se deve ter presente é o fato de ser a ação de consignação em pagamento uma ação sumária, sob o ponto de vista material, onde nem todas as defesas possíveis podem ser admitidas. Seu objeto exclusivo é o pagamento por consignação, ocorrendo algumas das hipóteses previstas no art. 973 do CC (art. 335 do novo CC), que a revelia do credor impõe que se tenha por verdadeira.

ADROALDO F. FABRÍCÍO (Comentários..., p. 53) afirma ser plenária, e não sumária, sob o ponto de vista material, a ação de consignação em pagamento, sob argumento de que "o objeto da discussão e da cognição" deve ser o mais amplo possível, nesta espécie de demanda, ficando restrito apenas o "conteúdo autoritativo da sentença", vale dizer, os limites objetivos da coisa julgada. Ainda neste particular, ousamos divergir do ilustre processualista. O que fica coberto pela coisa julgada é, certamente, a declaração de que o devedor, autor da ação de consignação em pagamento, efetuou o pagamento. A relação de direito material de onde teria emergido o dever de pagar, afirmado pelo autor - e, havendo contestação, objeto de cognição do julgador -, não será definida ou declarada e muito menos constituída pela sentença (LUIZ MACHADO GUIMARÃES, Comentários ao Código de Processo Civil, v. 4, p. 324).

Certamente a eficácia declaratória da sentença de procedência não é diversa das demais eficácias desta espécie, contidas em sentenças proferidas em ações declaratórias (ADROALDO FABRÍCÍO, Comentários...,p . 159), não sendo corre-to afirmar, como o fez CLÓVIS DO COUTO E SILVA (Comentários ao Código de Processo Civil, v. 11,1.1. p. 48), que a coisa julgada se forme "sob reserva". O que se dá nas ações sumárias é a "reserva de exceções", mas acoisajulgada que se forma sobre a declaração de que o autor vitorioso pagou e que o pagamento tivera eficácia liberatória é indiscutível para sempre.

Esta conclusão, todavia, não impede que se tenha a ação de consignação em pagamento como ação sumária. Para saber se uma determinada demanda é plenária ou sumária, de nada vale afirmar que. nela, a sentença "faz coisa julgada nos limites da lide" (ADROALDO F. FABRÍCÍO. Comentários..., p. 159). ou que a coisa julgada, nesta espécie de ação. não prejudica a situação de direito material "na parte em que não podia ser objeto de conhecimento" (CLÓVIS DO COUTO F SILVA, ob. cit . . p. 48}. Ambas as proposições sem dú\ida são corretas. e até mesmo óbvias como decorrência do princípio contido nos arts. 2.°e 128 doCPC. Mas. alem da superficialidade do nível da cognição judicial, a verticalidade do corte que se faça na matéria litigiosa também "sumariai" a demanda que. em virtude dessa limitação da defesa, deixa de ser plenária (cí. CH1OVENDA. Insti-

tuições..., v. 1. n. 71), ensejando, com as "exceções reservadas", uma demanda subsequente, que pode desfazer, em certos casos, o resultado prático conseguido com o primeiro processo.

Vejamos. Poderia o autor da ação de consignação em pagamento, que fora vitorioso, demandar a nulidade do negócio jurídico de que proviera a obrigação solvida com o depósito judicial da "coisa devida" (art. 972 do CC; art. 334 do novo CC), e, cumuladamente pedir a repetição do que antes pagara por consignação. Admitindo-se como verdadeiros os pressupostos aceitos por ADROALDO FABRI-CIO, de que as questões atinentes a relação de direito material teriam sido apreciadas pelo juiz da consignatória apenas incidentalmente, como simples "motivos de convencimento", sem integrar o decisum e, pois, sem se tornarem indiscutíveis (p. 52). parece fora de dúvida que a admissibilidade da subseqiiente ação de nulidade do negócio jurídico que servira de causa ao pagamento não poderia ser recusada. E, neste caso, a repetição do pagamento, em virtude de negócio jurídico nulo, está justificada, até mesmo pelo disposto no art. 158 do CC (art. 182 do novo CC).

Assim como o pagamento do aluguel, reiteradamente feito pelo inquilino, ou o pagamento de juros, periodicamente efetuado pelo mutuário, não os impede de promover as ações de nulidade dos respectivos negócios jurídicos, não vemos como a sentença de procedência, proferida na ação de pagamento por consignação, possa impedir a decretação de nulidade do negócio jurídico que motivara o pagamento. Se, como afirma ADROALDO FABRÍCÍO (Comentários..., p. 52), a controvérsia referente à declaração de que o autor deve, quanto deve, porque deve e a quem deve há de ficar fora do decisum, sendo objeto apenas de discussão e cognição do juiz, não vemos como se possa evitar, numa demanda subsequente, o reexame destas mesmas questões que, como vimos, poderiam até legitimar o pedido de repetição do indébito.

Mesmo que se quisesse aceitar a opinião de PONTES DE MIRANDA, de que, alegando o credor demandado que sua recusa fora justa (art. 896. II, do CPC), poderia ele "arguir o que entender, como se estivesse a contestar ação de outra natureza" (Comentários.... v. 13, p. 33), não se pode supor que os limites para a contestação fossem tão amplos a ponto de transformar a demanda de consignação em pagamento em ação plenária (CLÓVIS DO COUTO E SILVA, ob. cit., p. 44).

b) Se o credor, em vez de se manter revel, comparecer em juízo, receber o objeto da consignação e der quitação, segundo determina o mesmo art. 897. parágrafo único, do CPC, o juiz deverá sentenciar, declarando extinta a obrigação. Neste caso, a procedência da ação decorre mais do "reconhecimento do pedido" (art. 269, II. do CPC) do que de uma decisão de cunho declaratório. iNa verdade, a sentença, neste caso, ao lado da eficácia declaratória. contém um visível componente constitutivo, decorrente de sua função homoloeatórj^

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c) É importante observar, aliás, que nem todas as ações de consignação em pagamento contêm cargas de eficácia rigorosamente iguais entre si, não obstante todas elas tenham por fim a realização de uma idêntica pretensão, qual seja o pagamento e a correspondente liberação do devedor, por meio do depósito judicial da coisa devida. Assim, por exemplo, se a ação de consignação em pagamento fundar-se em dúvida sobre quem deva receber o objeto do pagamento (art. 973, IV, do CC; art. 335, IV do novo CC), a demanda terá dupla função. O devedor que haja proposto a ação obterá, como nos demais casos, a sua liberação, através do depósito judicial da coisa devida, mas a ação prosseguirá entre os credores pretendentes, como se se tratasse de um concurso de credores.

A Lei 8.951, de 13 de dezembro de 1994, criou um procedimento alternativo de que o futuro autor da consignatória poderá valer-se, se preferir não ajuizar desde logo a ação. Como se verifica pela atual redação do art. 890 do CPC introduzida por essa lei. o devedor poderá - tratando-se de obrigação em dinheiro - optar pelo depósito da quantia devida em estabelecimento bancário, cientificando do depósito o credor. Se este não manifestar recusa em aceitar o depósito, reputar-se-á liberado o devedor. Havendo recusa, dispõe o § 3.° do art. 890 que o devedor, ou o terceiro legitimado para a ação, poderá propor a ação de consignação.

6.3.2 Ação de usucapião

a) A ação de usucapião, segundo o entendimento geral da doutrina, é também uma ação declaratória. Por meio dela, aquele que houver adquirido pela posse contínua, e qualificada por outros requisitos, alguma coisa móvel ou imóvel, pode pedir que o juiz o declare proprietário por sentença. Conforme está no art. 550 do CC (art. 1.238 do novo CC) e nos demais textos legais que tratam do assunto (vide art. 1.° da Lei 6.969, de 10 de dezembro de 1981. que dispõe sobre a usucapião especial), o que o autor prelende com a ação é apenas que o juiz o declare titular de uma propriedade por ele já adquirida pela posse.

Segundo a doutrina corrente, a necessidade de pronuner-se a ação de usucapião estaria em que. sem a sentença que declare o autor proprietário, este não teria título hábil para o registro de sua propriedade no respectivo registro imobiliário.

Este argumento, todavia, mostra-se insuficiente para explicar a mesma nature/a alegadamente declaratória da sentença proferida na ação de usucapião de coisas móveis e semoventes, onde inexiste qualquer necessidade de registro. Se a sentença fosse meramenle declaratória, o usucapiente de coisas móveis não teria a menor necessidade de promover a ação correspondente, podendo alienar a coisa usucapi-da como seu verdadeiro proprietário e sem que o proprietário anterior pudesse reivindicá-la do terceiro adquirente. O componente constitutivo da sentença, portanto, é ineliminãvel (destacando a eficácia constitutiva que emerge do registro imobiliário, ADROALDO F. FABRÍCIO, Comentários..., p. 698).

Isto não impede que se conserve a usucapião entre as ações declaratórias. dado o peso considerável de tal eficácia na composição eficacial da sentença, tendo-se, porém, presente que a preponderância de sua eficácia é constitutiva. E, tratando-se de usucapião de imóveis, a eficácia mandamental, traduzida no mandado para registro da sentença no cartório imobiliário, igualmente se manifesta.

b) Não obstante ser declaratória a sentença proferida na ação de usucapião, sua eficácia opera erga omnes, em virtude do procedimento edital, através do qual consideram-se citados para a causa - e, pois, litis-consortes necessários - todos os possíveis interessados integrantes da comunidade jurídica. O que os atinge não é o efeito constitutivo da sentença, mas verdadeiramente a coisa julgada que decorre de haverem sido citados para a causa todos os eventuais interessados. No "procedimento edital", como afirma PONTES DE MIRANDA (Tratado das ações, v. 2. p. 260), há muito de provocatio ad agendum, uma vez que, citando-se todos os eventuais interessados, quer eles compareçam a juízo para contestar a ação, quer não, a sentença de procedência extingue os eventuais direitos sobre a coisa usucapienda, de que poderiam eles ser titulares.

6.4 Ações condenatórias

Nas edições anteriores deste Curso, adotáramos a classificação das ações proposta por PONTES DE MIRANDA, incluindo, ao lado das outras quatro espécies, a ação condenatória. Entretanto, como dissemos na 3.a edição da Teoria gerai do processo civil (RT, 2002. p. 256), meditações posteriores convenceram-nos da existência, neste ponto, de uma grave contradição na concepção de PONTES. Aceitando a distinção que o jurista fazia entre pretensão e ação, no campo do direito material. torna-se inevitá\el a exclusão da ação condenatória.

A contradição entre seu conceito de ação {de direito material) e a pretendida existência de uma ação condenatória parece-nos tão óbvia

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que surpreende que ele não a tenha percebido. Com efeito, a distinção entre ações e pretensões está em que exercer ação é praticar uma determinada atividade capaz, por si só - sem a colaboração do devedor -, de realizar a respectiva pretensão. Ao contrário, iLexercer pretensão"1 é praticar uma conduta incapaz - sem a colaboração do devedor - de tornar concretamente realizada a ação. Quando "exijo", diz PONTES, limito-me a exercer pretensão. Se apenas i4exijo'' ainda não ''ajo", exercendo ação. O agir próprio de quem exerce ação prescinde da colaboração do devedor. A ação é uma atividade, por si só, capaz de realizar a pretensão.

Os exemplos são esclarecedores. Se o credor, valendo-se de todos os imagináveis expedientes suasórios, exige do devedor o pagamento, esperando porém que este, por tal modo premido por essa exigência, espontaneamente cumpra a obrigação, terá exercido pretensão, não ação. Se exijo que o inquilino restitua-me o imóvel locado, estando findo o contrato, valendo-me, por exemplo, de uma notificação judicial, ou de qualquer outra forma de pressão, visando a obter a satisfação de meu direito a recobrar a posse do imóvel, ainda não estarei a exercer ação, pois minha exigência pressupõe que o inquilino voluntariamente desocupe o imóvel. Se confio no "cumprimento voluntário", então ainda não estou a exercer ação.

Verifica-se, com a sentença condenatoria, um fenómeno que confirma esta conclusão. O autor que obtém condenação carece de uma nova atividade espontânea do condenado, através da qual ele, voluntariamente, satisfará o julgado, cumprindo a obrigação. Na verdade, o fenómeno é ainda mais esclarecedor: a sentença condenatoria, ao invés de satisfazer a pretensão, apenas gera outra ação. esta sim a ação executória. realizadora da pretensão de direito material. Pensemos na hipótese de uma ação de indenização. A pretensão exercida pelo autor terá por objetivo receber o valor que o indenize, que elimine o dano. A sentença condenatoria reconhecerá (declarando) que o autor tem direito a ser indenizado, condenando o réu a indenizá-lo. A indenização, porém, dependerá de uma conduta espontânea do condenado, cumprindo a sentença. Somente no caso de o condenado não satisfazer voluntariamente o julgado é que nascerá ao autor o direito de promover uma nova ação de execução da sentença. É isto o que está contido no art. 580 e respectivo parágrafo único do Código de Processo Civil.

Resumindo, o autor, ao exercer a chamada ação condenatoria, estará apenas "exigindo" o cumprimento da obrigação. Esta sempre foi a

concepção sustentada por PONTES DE MIRANDA, conforme se lê tanto no Tratado de direito privado, (tomoV, 1955, §§ 615-617), quanto em seu Tratado das ações (tomol, 1970, §§ 5-19). Nesta última obra diz ele: "A pretensão contém exigir; a ação, além de exigir (exigere), que é premir para que outrem aja, leva consigo o agere do que pretende: ação sua; e não de outrem, premido" (p. 48).

O equívoco que permitiu aos processualistas conceber a existência de uma autêntica ação condenatoria - permitindo-lhes sustentar sua autonomia - deve-se à suposição de que as três ações, as declaratórias, constitutivas e condenatórias, sejam uma criação do direito processual. Como as ações deciaratórias e constitutivas prescindem de uma atividade executória subsequente à sentença, pareceu-lhes justificada uma igual terminalidade da ação condenatoria. Seria ela, no entanto, uma ação que, ao invés de satisfazer a pretensão, limitar-se-ia a gerar outra ação.

Esta conclusão foi reforçada pela circunstância, observada por VON THUR {Teoria general dei derecho civil, trad. de 1946, Buenos Aires, vol. I, § 5.°, I), de ser impossível obter, fora do processo, o resultado que ele produz quando realiza, através das respectivas ações, pretensões declaratórias e constitutivas. Nem a coisa julgada - produto da sentença declaratória -, nem as modificações que se alcançam com a sentenças constitutivas podem ser obtidas privadamente pelo titular do direito. Isto induziu à falsa crença na processualidade das pretensões declaratórias e constitutivas, de que se originou a célebre classificação "trinaria" das ações, que seriam categorias criadas peio direito processual.

Este equívoco nutre-se de outra sutileza que o mantém disfarçado. Acontece que a ação condenatoria é realmente uma categoria criada pela ciência processual, pois, como acabamos de ver, não existe, no plano do direito material, uma ação desta espécie. O titular do direito a ser indenizado e o credor com direito a receber o pagamento não realizam as respectivas pretensões com a sentença condenatoria. A condenação compõe apenas uma etapa, realiza apenas o estágio inicial na vida da pretensão de direito material a ser indenizado ou a receber o pagamento.

A doutrina não levou em conta que, ao transferir, equivocadamente, para o direito processual, além da condenatoria - que era criação sua -. as ações declaratórias e constitutivas, com que formavam o "processo de conhecimento", estavam a classificar "ações procedentes", como tanto os juristas de direito material quanto os antigos processualistas sempre fizeram. Não haverá condenação nas sentenças proferidas em ações con-

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denatórias se o julgamento for de improcedência, assim como não haverá constitutividade nas sentenças de improcedência produzidas pelas ações constitutivas. As sentenças de improcedência são todas deciaratórias (da improcedência). Isto é a demonstração cabal de que essa classificação leva em conta as respectivas pretensões de direito material. A declaração, a constituição e a condenação são produtos da sentença de procedência.

Não se discute que as pretensões deciaratórias e constitutivas não se podem realizar fora do processo, mas a circunstância de carecerem do processo para realizaram-se não significa que elas não existam fora do processo. Até porque o afirmar que essas ações não podem prescindir do processo já é indício seguro de que elas existem antes ou fora dele. Existir e poder realizar-se são coisas distintas.

A conclusão, portanto, é a seguinte: temos sentenças condenatórias, mas não temos uma correspondente ação condenatória. Quem exerce o que se diz "ação condenatória", na verdade limita-se a exercer "pretensão condenatória". A verdadeira ação, neste caso, é executiva ou, se quisermos, "condenatório-executiva". A sentença condenatória deve funcionar como sentença incidental, contendo julgamento parcial de mérito, devendo a relação processual prosseguir executivamente. Por uma determinação lógica, imposta pelo próprio sistema, devemos eliminar a autonomia da ação condenatória, de modo que a execução que se seguir à sentença de procedência seja simples fase final de uma única ação, que, começando com a petição inicial, prossiga até o ato final realizador da pretensão.

Todavia este modo de conceber a "ação" (processual) condenatória não interfere com o seu conceito e nem altera sua relação com as demais ações de direito material, especialmente com as deciaratórias e constitutivas. A única consequência relevante desta concepção será a perda da autonomia dessa categoria, conceituada como "ação condenatória".

A "ação" condenatória sempre esteve, e continuará estando, ligada ao direito das obrigações, onde ela nasceu em Direito Romano. Conseqúentemente. as fontes de que a condenação se alimenta serão o contrato e o ilícito. A demanda condenatória deve, além disso, conter uma certa dose de eficácia declaratória e outra de eficácia executiva. A eficácia executiva, no entanto, não poderá realizar-se sem agredir, depois da sentença, património legítimo do condenado, tal como estas formas de tutela executiva vêm reguladas no Livro II do Código de Processo Civil.

Mesmo que se elimine o art. 580 e respectivo parágrafo único de nosso Código, ainda assim as sentenças condenatórias não se tornarão idênticas às ações reais (ações indicadas por PONTES como executivas lato sensu). A diferença, significativa, está em que o "conflito executivo" não integra as sentenças do primeiro grupo, ao passo que é interno às ações reais. A distinção está em que a execução que se seguir a uma sentença condenatória incidirá sobre bens de propriedade ou posse legítimas do condenado, o que não ocorrerá nas ações reais, cuja sentença de procedência já terá se pronunciado sobre a ilegitimidade da posse do bem a ser objeto da atividade executiva.

Trataremos ex professo deste ponto no 2.° volume deste Curso, quando mostrarmos a distinção entre o conflito condenatório, de que se origina a correspondente sentença de procedência, e o conflito executivo.

O campo natural das ações condenatórias, como dissemos, é o direito das obrigações, quer se trate das obrigações nascidas dos contratos ou dos atos ilícitos, ou das obrigações impostas por lei (KARL LARENZ, Derecho de obligaciones, I, § 4, III), pois o direito moderno, a partir do direito romano do período bizantino, ampliou o conceito de obrigação, através das denominadas obrigações ex lege, dando origem ao conhecido fenómeno da universalização da ação condenatória. com a correspondente supressão das tutelas de tipo interditai (execuções reais e ações mandamentais), como procuramos mostrar em outra oportunidade (Jurisdição e execução na tradição romano-canônica).

Vejamos, através de alguns exemplos, as características essenciais das "ações" condenatórias e o elemento que as distingue das denominadas ações executivas lato sensu, porque se as condenatórias, ao contrário das deciaratórias e constitutivas, dão ensejo à execução forçada, nem todas as formas de execução jurisdicional decorrem de uma sentença condenatória. E isto que mostraremos ao estabelecer a distinção entre elas e as chamadas por PONTES DE MIRANDA executivas lato sensu.

6.4. i Ações de cobrança

Dizem-se ações de cobrança todas as que tenham por fim obter a condenação do devedor, obrigado a prestar uma determinada obrigação consistente em dinheiro ou qualquer outra quantidade de coisa fungível. Quando o objeto da prestação for alguma coisa fungível, ou a prestação

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de um facere a cuja condenação o devedor fique sujeito, as correspondentes ações condenatórias incluem-se no grupo a que se dá a denominação de ações de cobrança.

Todas as espécies de ações de cobrança, contudo, são condenatórias. E inumeráveis as suas espécies. Em verdade, poder-se-ia dizer que todos os contratos bilaterais (art. 1.092 do CC; arts. 476 e 477 do novo CC) dão origem a pretensões condenatórias. Assim, pois, o vendedor que haja cumprido com a respectiva obrigação que o contrato de compra e venda lhe impunha, transferindo ao comprador a coisa vendida, terá ação de cobrança do preço; tê-la-á igualmente o locador, para cobrança dos aluguéis devidos pelo locatário; e o mandatário para exigir do mandante o pagamento da remuneração ajustada (art. 1.310 do CC; art. 676 do novo CC); assim como o mutuante - caso, aliás, em que a pretensão é mais típica - terá ação de cobrança contra o mutuário, para obter sentença que o condene a restituir-lhe o que dele recebeu em coisas do mesmo género, qualidade e quantidade (art. 1.256 do CC; art. 586 do novo CC).

Mas nem só os contratos bilaterais e plurilaterais, como é o contrato de sociedade, podem dar lugar a ações de cobrança. Também nos negócios jurídicos unilaterais pode ocorrer, e frequentemente ocorre, este tipo de ação. Quem promete publicamente recompensa (art. 1.512 do CC; art, 854 do novo CC), obriga-se por meio do negócio jurídico unilateral. O titular da recompensa, satisfeitos os pressupostos, terá ação de cobrança contra o promitente para exigir a recompensa (art. 1.513 do CC; art. 855 do novo CC). A promessa de recompensa, como negócio jurídico unilateral que dispense a promessa ou a contraprestação do destinatário para vincular o promitente à sua oferta, pode não ser dirigida ao público, posto que unilateral (PONTES DE MIRANDA, Tratado de direito privado, t. XXXI, § 3.586). E, naturalmente, poderá ter lugar a mesma ação de cobrança pelo destinatário.

Mas são igualmente frequentes as ações de cobrança fora do direito das obrigações, quando se trate de negócios jurídicos bilaterais de direito das coisas, ou de obrigações oriundas do direito de família. Assim, por exemplo, contra o enfiteuta, o senhorio direto tem as ações de cobrança de foro e laudêmio; o rentista tem ação executiva para cobrança da renda (art. 585. IV, do CPC), mas pode renunciar ao privilégio executivo, para promover ação condenatório-executiva de cobrança {PONTES DE MIRANDA, Tratado de direito privado, v. 19. § 2.412. 3); o condómino tem ação de cobrança contra os demais para reaver o que eventualmente haja

pago para as despesas de conservação da coisa comum (art. 624 do CC; art. 1.315 do novo CC); o vizinho também tem ação de cobrança contra seu vizinho para exigir o valor das despesas relativas à construção e conservação dos tapumes divisórios de suas propriedades (art. 588, § 1.°, do CC; art. 1.297 do novo CC); e o confrontante é obrigado a contribuir com sua quota nas despesas necessárias à demarcação entre os dois prédios confinantes (art. 569 do CC; art. 1.297 do novo CC), o que poderá dar lugar a ações de cobrança, quando tais despesas não sejam rateadas em ação de demarcação, de modo a dispensar a propositura de ação de cobrança posterior; as ações para exigir pagamento de pensão alimentar, já fixada, são ações de cobrança.

Todas as ações de cobrança são condenatórias, processadas quer pelo procedimento ordinário, quer pelo sumário, conforme os pressupostos do art. 275 do CPC.

6.4.2 Ações de indenização

Como as de cobrança, com as quais se parecem, também são condenatórias todas as ações de indenização, e, como aquelas, igualmente processadas pelo rito ordinário ou sumário, observados os pressupostos do art. 275.

A pretensão indenizatória de que nasce a respectiva ação (de direito material) pressupõe um dano jurídico ressarcível, derivado de uma lesão a um determinado bem ou interesse juridicamente protegidos e uma consequência prejudicial a seu titular. Estas duas circunstâncias sugerem a existência de uma causalidade fundadora da responsabilidade e de uma causalidade implementadora, no sentido de que não basta a lesão, sendo necessário que fique demonstrado o prejuízo efe-tivo para o titular do interesse lesionado. Embora estas duas ordens de causações não venham sempre definidas em lei com a desejável clareza, elas se tornam visíveis em textos como o seguinte: "O dano resultante do inadimplemento do contrato" (H. P. WESTERMANN, Código Civil alemão - Direito das obrigações - Parte geral, § 14, II. I). O inadimplemento do contrato sem dúvida representa uma lesão a um interesse juridicamente protegido, mas, por si só, não autoriza ainda a exigência (pretensão de direito ma(erial) da indenização. O inadimplemento desempenharia, na concepção de WESTERMANN. a "causalidade fundadora" do dever de indenizar. Se. além dela. ficar igualmente

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provado que a vítima da lesão jurídica sofrera também um prejuízo, então nascerá a pretensão ao ressarcimento.

Via de regra, a composição das perdas e danos, no direito brasileiro. faz-se através de indenização por seu equivalente monetário. Todavia. sempre que seja possível, segundo as circunstâncias e os princípios que dominam o chamado ''direito de dano", o ressarcimento há de fazer-se in natura (KARL LARENZ. ob. cit., I, § 14, VI, a; WESTERMANN, ob. cit., § 15, II. a).

Nas ações de indenização que visem ressarcimento in natura. seja através do conserto ou restauração da coisa danificada, seja por meio da entrega de algo equivalente que não seja dinheiro, seja, finalmente - nas ações de indenização por danos morais -, pela retratação a ser feita pelo ofensor, ao elemento condenaiório, que qualifica a demanda, ajunta-se uma eficácia menor mandamentai

O que, todavia, determina a natureza condenatória destas demandas, e faz com que as ações de cobrança se igualem, quanto à sua eficácia preponderante, às ações de indenização e a todas as demais desta espécie, é a peculiaridade de estar fora do "conflito condenatório'' a relação jurídica existente entre o demandado e o objeto da futura execução. Somente depois da sentença de procedência é que se cuidará do conflito executivo, ao contrário, como já vimos, do que acontece com as sentenças proferidas em ações reais.

Distíngue-se, a partir deste elemento, com facilidade, uma "ação" condenatória de outra que seja executiva. Enquanto, por exemplo, nas "ações" condenatórias até aqui examinadas discute-se a respeito do dano e de suas consequências para o prejudicado, procurando-se estabelecer o dever de indenizar que onera o seu causador, ignora-se em todo o litígio, e naturalmente na sentença, com que bens integrantes de seu património haverá o condenado de satisfazer a condenação. A relação jurídica existente entre o réu condenado e seus bens permanece intocada mesmo depois de transitar em julgado a sentença condenatória. Esta circunstância exige, no momento em que se queira executar a sentença, uma agressão ao património legitimamente possuído pelo condenado. Ao contrário, nas ações executivas lato sensu (execuções reais), a relação jurídica entre o réu e o objeto da execução subsequente faz parte da controvérsia e é apreciada c decidida pela sentença, para declarar a ilegitimidade do respectivo vínculo existente entre o demandado e a coisa sobre que recairá a execução.

Como dizia CARNELUTTI (Diritto e processo nella teoria dell'obbligazioni, StudL v. 2, p. 214), o devedor condenado paga com o que é seu. enquanto o esbulhador e todos aqueles que tenham declarada por sentença a ilegitimidade de sua posse sobre a coisa a respeito da qual se controverta restituem o que não lhes pertence. Como a sentença, nas ações reais, já declarara a ilegitimidade da relação possessória existente entre o réu e a coisa objeto da execução, deixa de ser necessária a propo-situra de uma demanda inteira de execução que, neste caso, se contrai, para reduzir-se a um simples ato ou procedimento integrante da própria demanda do "processo de conhecimento"'. É o que acontece, por exemplo, com a conhecida e rotineira ação de despejo, ou com a ação de depósito, cuja natureza executiva é atestada pelo art. 904 do CPC.

6.4.3 Ações contra o uso nocivo da propriedade

a) As ações contra o uso nocivo da propriedade fazem parte do direito de vizinhança e podem dar lugar a açòes condenatórias, embora não seja raro ocorrerem aqui ações mandamentais, como é o caso da cautio damni infecti dos arts. 529 e 555 do CC (arts. 1.281 e 1.280 do novo CC), e a ações executivas, tais como algumas ações de nunciação de obra nova (art. 936 do CPC).

b) Em geral, as ações condenatórias fundadas em mau uso da pro priedade assumem o caráter de ações cominatórias, por envolver a con denação do réu a uma obrigação de fazer ou de abster-se (art. 287 do CPC), que, todavia, não se confundem com as ações cominatórias espe ciais de nosso antigo direito. As cominatórias que ainda remanescem no processo brasileiro resumem-se a ações ordinárias ou sumárias com pe dido de condenação em cominatória. A própria caução de dano infecto, que é normalmente uma caução cautelar - e. pois. demanda nitidamente mandamentai -, pode ser concebida em pedido condenatório. para que o réu preste a caução ou sofra a condenação, sob forma cominatória, por tanto (PONTES DE MIRANDA. Tratado das ações. t. V. ij 65, 4).

6.4.4 Ações condenatórias para entrega de coisa certa

As pretensões à restituição de posse de coisas infungíveis. assim como as que tenham por fim a aquisição de posse, em geral são executivas, e não condenalórias. Os exemplos são conhecidos: a ação reivin-dicatória. a de despejo, a ação de imissão de posse, a de depósito (art.

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904 do CPC), a ação de adjudicação compulsória (art. 641 do CPC), a ação de reintegração de posse, todas elas são executivas, e não conde-natórias para entrega de coisa certa. Isto, todavia, não significa que inexistam ações condenatórias, correspondentes a pretensões a entrega de coisa certa.

Sempre que o autor propuser a demanda com a finalidade de obter a entrega de coisa certa e a respectiva sentença de procedência não declarar a ilegitimidade da relação possessória existente entre o réu e a coisa que será objeto dos atos executórios subsequentes, a ação será condena-tória, e não executiva lato sensu. O exemplo mais significativo é o da ação movida pelo inquilino para obrigar o locador a transferir-lhe a posse do prédio locado. Ao contrário da ação de despejo, que é executiva, como se sabe - e justamente por corresponder à situação inversa -, a ação do inquilino é simplesmente condenatória, a exigir que a execução se faça através da propositura de uma demanda autónoma de execução para entrega de coisa certa, segundo o art. 621 do CPC. Mesmo que se tenha as condenatórias como ações condenatório-executivas, em que a fase executiva ocorra na mesma relação processual do que seria um processo exclusivamente de conhecimento, a execução que se seguir à sentença deverá observar os princípios da execução obrigacional.

6.4.5 Ação confessaria

A ação confessaria é uma ação real imobiliária que tem por fim a proteção das servidões prediais. Ela tem cabimento sempre que o proprietário do prédio serviente, negando a existência do gravame que constitui a servidão, cria embaraço ao proprietário do prédio dominante, dificultando ou impedindo o livre exercício de tal direito.

Não obstante considerar-se, em certos sistemas jurídicos, como o italiano, declaratória a ação confessória (assim DOMENICO BARBE-RO, La legitimazione ad agire in confessória e negatoria servitutis, n. 31 e ss.; GIUSEPPE BRANCA, htituzioni di diritto privato, p. 272; B. B1ONDI, ístituzioni di diritto romano, § 73), no direito brasileiro ela conserva a natureza de ação condenatória (PONTES DE MIRANDA. Tratado de direito privado, t. XIV. § 1.585, 2, e XVIII, § 2.244, 7).

A ação confessória compete ao titular do direito real de servidão. seja ele proprietário, enfiteuta ou usufrutuário do prédio dominante, para pedir ao juiz que reconheça a existência da servidão (eficácia declarató-

ria) e proíba o réu, que há de ser o proprietário do serviente {eficácia condenatória), a não embaraçar o livre exercício da servidão, podendo ainda pedir-se, na própria ação confessória, a indenização pelos danos causados pelo embaraço a que fora submetido o titular da servidão {CÂMARA LEAL, Teoria e prática das ações, v. 1, n. 1.037; CORRÊA TELLES, Doutrina das ações, § 112).

A condenação, em ação confessória. pode ter duplo sentido, segundo a maneira como o autor concebeu o pedido inicial, envolvendo o pedido de uma caução de non turbando contra os embaraços futuros (CÂMARA LEAL, ob. cit., CORRÊA TELLES, ob. cit.) ou sem que o pedido importe em cominação de pena. Se houver obras que devam ser destruídas, para que se restabeleça o pleno exercício da servidão (J. M. CARVALHO SANTOS, Código Civil brasileiro interpretado, v. 9, p. 181), a sentença, neste ponto, é executiva, ordenando o juiz, desde logo, as operações necessárias ao cumprimento da sentença, independentemente da propositura de uma ação de execução forçada para cumprimento de obrigação de fazer.

A importância que a ação confessória tem para a teoria da classificação das ações está em ser ela condenatória, e não executiva lato sensu, como o seria a ação de esbulho possessório; ou mandamental, como o seriam a ação de manutenção de posse e o interdito proibitório.

Sua condenatoriedade resulta da natureza mesma da servidão predial que, sendo um direito real que se estabelece entre prédios, nem por isso exclui ou prescinde da relação obrigacional que onera o proprietário do prédio serviente, criando-lhe o dever de uma prestação de nonfacien-do, que permita o exercício da servidão. Naturalmente, entre o turbador que seja réu na ação possessória de manutenção, ou o esbulhador, contra quem se proponha ação de reintegração de posse, e o possuidor turbado ou esbulhado inexiste qualquer relação jurídica que possa ter sido violada pela agressão contra a posse. Daí não haver lugar, nestes casos, para sentença condenatória.

6.4.6 Ação negatoria

Também condenatória é a ação pela qual o dono do prédio que se diz onerado por alguma servidão pede ao juiz que declare a inexistência de tal gravame e condene o demandado a não servir-se da servidão por ta] modo declarada inexistente. Também esta não é ação meramente decla-

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ratória de estar o prédio, de que o autor é proprietário, livre de servidão (PONTES DE MIRANDA, Tratado de direito privado, v. 14, § 1.586. 3). senão que exige o uso ilegítimo de uma pretensa servidão por parte do réu. Daí o elemento eondenatório, que consiste em que a sentença comine ao demandado a obrigação de abster-se de novas turbações. Como na ação confessória. pode haver, também na ação negatória, alguma eficácia executiva, tendente a obter a remoção ou o desfazimento de obras que devam ser retiradas do prédio declarado livre de servidão pela sentença. Neste caso, a carga de eficácia executiva, como acontece na ação de nunciação de obra nova (art. 936, I, do CPC) e nas ações possessórias (art. 921,111, do CPC). permite que a execução se faça na mesma relação processual da ação, "sem nova citação" (PONTES DE MIRANDA, Tratado de direito privado, v. 14, § 1.586, 2).

O autor não necessita provar a inexistência da servidão, bastando-lhe alegar não ter o prédio qualquer gravame, cabendo ao réu a prova do lato positivo da existência da servidão (CORRÊA TELLES, ob. cit, § 117).

O dano ão direito de propriedade é o pressuposto para a ação negatória, porém seus legitimados ativos não são apenas os proprietários, mas todos os titulares de algum direito real sobre o imóvel, questão prejudicial esta que, no entanto, servirá apenas de fundamento tanto para a ação confessória quanto para a negatória (art. 469, III, do CPC), sem integrar o decisum e sem que a respectiva sentença declare, com força de coisa julgada material, a relação de propriedade, ou algum direito real limitado, e possa impedir a propositura posterior da ação reivindicatória. Não havendo propositura de ação declaratória incidental a respeito da relação jurídica prejudicial (art. 470), o domínio ou algum outro direito real que haja sido fundamento para tais ações serão decididos apenas incidenter tantum (J. M. CUESTA SAENZ, ha acción publiciana, p. 444).

A negatória, à semelhança das ações de abstenção, tais como a ação de manutenção de posse e o interdito proibitório, contém igualmente eficácia mandamental. ao lado da condenatória. de tal modo que a sentença, ao decidir sobre a ilegitimidade da conduta do réu praticada contra o prédio onerado por servidão, ordena que o mesmo se abstenha, no futuro, da prática de atos que limitem o exercício do domínio sobre o prédio pertencente ao autor.

A ação negatória. segundo o modelo romano adotado pelo direito brasileiro, permanece limitada à tutela dos direitos de vizinhança, sem alcançar a generalidade com que foram concebidas as ações de abstenção

em outros sistemas jurídicos, como é o caso do § 1.004 do Código Civil alemão, que prevê uma ação similar à nossa negatória para defesa do direito de propriedade contra quaisquer turbações causadas por terceiros, independentemente da relação de vizinhança entre prédios (PONTES DE MIRANDA, Tratado de direito privado, t. XIV, § 1.568, 2, c). Tendo em vista a generalidade com que foi concebido o art. 461 do CPC, entendemos que será, em princípio, admissível sua utilização para defesa da propriedade nos casos em que não caibam as ações do direito de vizinhança.

6.5 Ações constitutivas

Como as demais ações que compõem o "processo de conhecimento", também as constitutivas são ações cujas sentenças de procedência exaurem a atividade jurisdicional, tornando impossível ou desnecessária qualquer atividade subsequente tendente à realização de seu próprio enunciado.

Por meio das ações constitutivas, busca-se a formação, a modificação ou a extinção de uma relação jurídica. Diferenciam-se elas das duas primeiras por certas particularidades importantes. As sentenças constitutivas prescindem de uma ação executória posterior para realizarem com-pletamente a pretensão posta em causa pelo autor: se este pedira a rescisão do contrato, ou a anulação do negócio jurídico, a sentença de procedência dirá que o autor tem direito a obter tais resultados (eficácia declaratória) e, desde logo, na própria sentença, decretará a rescisão ou a anulação pretendida pelo demandante. A eficácia constitutiva, nestes dois exemplos, está na atividade sentenciai, por meio da qual o magistrado desconstitui a relação jurídica até então existente. Enquanto a sentença meramente declaratória não iria além da simples declaração da existência ou inexistência de uma relação jurídica, a constitutiva não se limita a declarar-lhe a existência ou a inexistência, senão que busca criá-la, modificá-la ou extingui-la.

Porque as constitutivas tanto podem criar como extinguir uma determinada relação jurídica sobre a qual se controverta na causa, diz-se que elas tanto podem constituir quanto desconstituir. podendo ter sinal positivo ou sinal negativo. No primeiro caso. dizem-se constitutivas positivas, neste último, constitutivas negativas.

A ação de separação judicial c uma típica ação constitutiva negativa. porque, através dela. obtém-se a desconstituição do casamento (dissolu-

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ção da sociedade conjugal, segundo o art. 2.° da Lei 6.515, de 26.12.1977). Nesta açào, o juiz não declara a existência ou a inexistência da relação jurídica matrimonial, senão que a extingue, como efeito direto e imediato de seu ato sentenciai. Um exemplo contrário, de ação constitutiva positiva, é a ação de interdição. Neste caso, a sentença cria novo estado jurídico para alguém que, antes dela, fora simplesmente portador de uma enfermidade mental e que, com a sentença, adquire o estado jurídico de interdito.

Dissemos há pouco que, como as demais ações do "processo de conhecimento", também as constitutivas prescindem de uma demanda de execução subse-qiiente, tornando impossível qualquer atividade jurisdicional subsequente à respectiva sentença de procedência. É preciso lembrar, no entanto, que as sentenças, sejam elas preponderantemente declaratórias, condenatórias ou constitutivas, frequentemente contêm, dentre suas eficácias, certos elementos de outra espécie que. em determinadas circunstâncias, podem exigir alguma provisão judicial posterior. Na generalidade dos casos, ou, como pretende PONTES DE MIRANDA, invariavelmente em todos eles, as sentenças não são puras: nem a sentença de simples declaração é apenas declaratória, nem as condenatórias apenas contêm eficácia de condenação, assim como as constitutivas nunca se apresentam dotadas apenas desta eficácia, sem conter um mínimo de alguma eficácia de outra espécie. Se reuníssemos, para análise, diversas sentenças declaratórias, ou várias sentenças constitutivas, ou condenatórias. veríamos que as sentenças pertencentes ao mesmo grupo estariam identificadas pelo mesmo elemento eficacial preponderante, qual seja a eficácia declaratória nas sentenças declaratórias, a condenatória nas sentenças pertencentes a esta classe, e todas as constitutivas teriam esta eficácia como sua força eficacial preponderante. No entanto, dentre as sentenças classificadas num mesmo grupo, seria possível encontrarem-se diversidades em suas eficácias de grau inferior, de tal modo que, se todas as sentenças examinadas fossem declaratórias ou condenatórias ou constitutivas, e, portanto, identificadas por suas eficácias preponderantes, entre si poderiam divergir, distinguindo-se umas das outras peias demais eficácias que cada uma delas apresentasse em qualidade e grau diferentes.

Tomemos um simples exemplo deste fenómeno. Tanto a ação declaratória de autenticidade quanto a declaratória de falsidade documental pertencem ao mesmo grupo das ações declaratórias. Entretanto, a última poderá conter eficácias de grau inferior, que a doutrina às vezes denomina secundárias, que não ocorreriam na ação declaratória de autenticidade de documento. Na declaratória de falsidade documental, por exemplo, poderá o juiz que declarar falso o documento ordenar a sua destruição. Esta ordem judicial vai além da eficácia própria das sentenças de mera declaração, como sucederia se a ação fosse para declarar simplesmente a autenticidade do documento. Por sua vez. a eficácia declaratória que emerge da procedência da ação de falsidade documental provia a desconstituição do documento julgado

falso, retirando-lhe qualquer eficácia jurídica. A eficácia constitutiva presente na ação declaratória de falsidade documental é tão evidente que ATTARD1 classificou a respectiva sentença como constitutiva, e não simplesmente declaratória (L! interesse ad agire, p. 188).

A ação de separação judicial, fundada em conduta desonrosa ou em ato que importe em grave violação dos deveres do casamento {art. 5." da Lei 6.515, de 26.12.1977), certamente será tão constitutiva quanto a açao de separação judicial em que um dos cônjuges alegue, como fundamento para a separação, a circunstância de ser o outro portador de "grave doença mental" manifestada após o casamento e "que tome impossível a continuação da vida em comum" (art. 5.°, § 2.°, da Lei 6.515). Contudo, não se pode obscurecer que a eficácia declaratória da culpa da primeira sentença, como simples expressão de uma eficácia inferior, mas que pode produzir consequências de direito material, não se irá encontrar na última.

Também a ação de despejo para uso próprio será tão executiva quanto todas as demais ações de despejo, mas ninguém poderá ignorar a diferença existente entre ela e uma ação de despejo fundada em infração contratual.

Normalmente, as ações de despejo têm, ao lado de sua eficácia executiva preponderante, uma acentuada dose de eficácia constitutiva, uma vez que o juiz, para conceder o despejo, terá de decretar antes a rescisão do contrato de locação. Pode, todavia, acontecer que esta eficácia constitutiva não ocorra, como sucede na hipótese de estar previsto no contrato de locação que a rescisão se dará automaticamente e de pleno direito no caso em que uma das partes o infrinja. A sentença, aqui, em vez de desconstituir o contrato, limita-se a declará-lo rescindido (eficácia declaratória).

A análise cuidadosa e paciente destas eficácias menores próprias de cada espécie de sentença tem grande relevância para a ciência processual.

Vejamos sumariamente alguns exemplos de ações constitutivas.

6.5.1 Ação de separação judicial

A ação de separação judicial, antigamente denominada ação de desquite, então regulada pelos arts. 315-324 do CC, hoje tem sua disciplina estabelecida pela denominada Lei do Divórcio (n. 6.515, de 26 de dezembro de 1977). Esta demanda, como se sabe, é um dos exemplos mais típicos conhecidos de ação constitutiva negativa. Seu objetivo, como está dito no art. 3.° da aludida lei, é pôr termo aos deveres de coabitação. fidelidade recíproca entre os cônjuges e ao regime matrimonial de bens. "como se o casamento fosse dissolvido". Não obstante declarar a lei que a sentença de procedência na ação de separação judicial desfaz, o regime matrimonial dos bens e põe lertno aos deveres inerentes ao casamento, "como se esle fosse dissolvido", é evidente que sua dissolução dá-se por

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força de sentença (YUSSEF SAID CAHALI, Divórcio e separação, p. 271). Não há apenas aparência ou simulação do efeito constitutivo, como se a sentença de procedência, na ação de separação judicial, não fosse, como é, o ato que determina a dissolução do casamento.

A eficácia constitutiva prepondera tanto nas sentenças que decretam a separação judicial litigiosa quanto nas resultantes de separação judicial por mútuo consentimento dos cônjuges (art. 4° da Lei do Divórcio).

Além da eficácia constitutiva, contêm as sentenças de procedência, seja de separação litigiosa, seja homologatória de separação consensual, eficácia executiva, uma vez que, decretada a dissolução do casamento, passa a sentença a ser título executivo para a subsequente partilha dos bens do casal, salvo, naturalmente, se o regime de bens for o da separação. O que prova que este efeito de menor relevância, que é o executivo, pode separar-se, como efeito independente do constitutivo, ou desaparecer, como acontece nas ações de separação judicial por mútuo consentimento quando os cônjuges já propõem a demanda com o plano de partilha por eles previamente acordado (PONTES DE MIRANDA, Tratado das ações, v. 4, § 232, 4).

Em se tratando de separação por culpa, segundo YUSSEF SAID CAHALI (ob. cit., 271), a sentença que reconhecer a existência de culpa de um dos cônjuges como causa para a separação conteria, neste ponto, eficácia declaratória. PONTES DE MIRANDA, ao contrário, julga que a sentença que reconheça a culpa do cônjuge demandado, para fundar a procedência da ação, conteria eficácia condenatória, e não simplesmente declaratória (Tratado das ações, § 232,1). Apesar de termos, em oportunidade anterior, sustentado a tese de que a sentença de procedência, nas ações de separação judicial, fundadas em conduta desonrosa ou em ato que importe grave violação dos deveres do casamento, segundo preceitua o art. 5." da Lei do Divórcio, além da eficácia constitutiva preponderante, conteria igualmente eficácia condenatória (cf. Teoria geral do processo civil, 2. ed., p. 257), estamos dispostos a mudar este ponto de vista. Não cremos que se possa realmente atribuir natureza de verdadeira eficácia condenatória à declaração sentenciai.

Não resta dúvida de que. a partir deste elemento sentenciai, qua! seja a declaração da culpa, é que se irá dar disciplina, por exemplo, para a questão eventual da condenação em alimentos e a respeito da guarda dos filhos do casal. Mas seria forçado atribuir-se a estes efeitos a condição de consequência executiva de uma suposta condenação precedente. Parece mais próprio dizer-se que o reconhecimento da culpa é simples eficácia declaratória da sentença, com base na qual podem, ocorrendo os pressupostos, derivar as demais eficácias mandamental ou constitutiva

(como se dá com relação às disposições sobre a posse e guarda dos filhos), ou mesmo condenatória (condenação em alimentos).

A prévia separação de corpos, ou, como hoje a lei denomina, o "afastamento temporário de um dos cônjuges da morada do casal" (art. 888, VI, do CPC), é adiantamento de uma das eficácias da futura ação de procedência da ação de separação judicial, ou das ações de nulidade ou anulação de casamento. Como temos dito, não se trata, na espécie, de medida cautelar (Comentários..., v. 11, p. 90 e 674). A separação de corpos é uma das eficácias da própria sentença de separação judicial; portanto, é, como refere LIEBMAN, ato do processo, e não ato ou medida provisional de outra demanda, qual seja a cautelar. Com a medida provisional de separação de corpos, apenas antecipa-se uma eficácia da sentença de mérito na ação de separação. E, como em toda antecipação, também aqui ocorre satisfação, embora provisória, do direito controvertido no processo principal.

6.5.2 Ação de interdição

A interdição é a ação pela qual se estabelece o estado de incapacidade legal de determinada pessoa. Também aqui se está em presença de ação constitutiva. O erro de considerá-la ação declaratória poderia explicar-se pela circunstância de ocorrer, quanto à ação de interdição, um fenómeno especial que não ocorre, por exemplo, com a ação de separação judicial e tantas outras constitutivas. Nesta, existe o casamento que a sentença desconstitui. Na ação de interdição por enfermidade mental, o louco existe antes da sentença, podendo-se imaginar que a respectiva demanda e o ato sentenciai que a julga procedente apenas estivessem a declarar um estado de incapacidade jurídica anterior. O art. 452 do CC estimula este equívoco, ao dispor que a sentença que declarar a interdição produzirá efeitos desde logo, embora sujeita a recurso (o equívoco foi mantido no art. 1.773 do novo Código Civil).

Outra circunstância capaz de dificultar a correta classificação da ação de interdição é a possibilidade de que a respectiva sentença de procedência produza efeitos ex tunc, retroagindo até o momento em que teve início a causa da incapacidade do interditando. Como se sabe, em geral as sentenças que desconstituem uma determinada relação jurídica não deveriam ter efeito sobre o pretérito. Apenas das ações decla-ratórias. em princípio, e justamente porque o são, deveriam emanar

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eficácias que pudessem alcançar o passado. Nas constitutivas, que desfazem, ou modificam, ou criam uma relação jurídica, seria lógico supor que esta operação, pela qual o juiz intervém no mundo jurídico para de algum modo alterá-lo, só pudesse surtir efeitos para o futuro. Há hipóteses, todavia, em que as sentenças, mesmo sendo constitutivas, alcançam o passado e produzem efeitos retroativos. É o que se dá em certas ações de interdição.

A ação de interdição é constitutiva porque o estado de interdição é criação do ato sentenciai. Antes dele havia o enfermo mental, não o interdito, assim como, antes da sentença que "declare" a falência, falido não existe. Antes da sentença que reconhece a procedência da ação fali-mentar apenas existe o estado de insolvência, cujo passivo seja superior a seu património. O estado jurídico áe-falido é uma criação do ato sentenciai, como a condição jurídica do interdito é produto da sentença que julga procedente a ação de interdição.

Tem-se dito que a sentença que decreta a interdição não produz coisa julgada material, porque ela comportará revisão futura, sempre que as condições do interdito se modifiquem e legitimem a modificação ou até mesmo o completo levantamento da interdição. A confusão é semelhante à que se faz, por idênticas razões, com as ações de alimentos, igualmente capazes de permitir futuras modificações e, até mesmo, extinção da obrigação alimentar, em virtude de fatos e circunstâncias supervenientes.

A modificação subsequente, porventura determinada por nova sentença que decida sobre fatos supervenientes, de modo algum interfere ou invalida a coisa julgada que indiscutivelmente se formara na sentença anterior, tanto naquela proferida na ação de alimentos quanto na ação de interdição. A declaração sentenciai, feita pelo magistrado na ação de interdição, de que o interdito, naquele momento e naquelas circunstâncias, era incapaz para os atos da vida civil, torna-se evidentemente indiscutível em qualquer processo futuro. O que se pede nas eventuais ações futuras modificativas terá sempre como fundamento algum fato ou circunstância subsequente, posterior à sentença, que legitima uma nova ação constitutiva de sinal contrário. Se a sentença de interdição foi constitutiva positiva, geradora do estado jurídico de interdito, a ação que porventura faça cessar este estado,, determinando o levantamento da interdição, será

sentença constitutiva negativa, na medida em que desfaz o que a primitiva sentença criara.

Discute-se, desde muito, na doutrina moderna, sobre a natureza da ação de interdição, se ela deveria ser considerada uma ação do processo contencioso ou, ao contrário, seria um procedimento de jurisdição voluntária. Os que defendem o ponto de vista de que a ação de interdição deve ser considerada como um procedimento de jurisdição voluntária destacam a circunstância de não existir, nesta demanda, um verdadeiro conflito de interesses entre as partes, sendo a ação proposta não propriamente contra o interditando, mas tendo em vista a defesa de seus interesses: assim WACH {Manual..., v. 1, p. 97) e FRANCESCO CARNELUTTI (Instituciones dei proceso civil, v. 1, n. 18); na doutrina brasileira, LOPES DA COSTA (A administração pública..., p. 259) e, recentemente, ALCIDES DE MENDONÇA LIMA (Comentários ao Código de Processo Civil, v. 12, p. 431). Em sentido contrário, no entanto, considerando a ação de interdição como uma verdadeira demanda contenciosa na literatura estrangeira, principalmente CHIO-VENDA (Principii..., § 14, bis, 2.°, II, e § 95, III) e, entre nós, GALENO LACERDA (Comentários..., v. 8,1.1, p. 61) e PONTES DE MIRANDA (Comentários ao Código de Processo Civil, 1973, t. XVI, p. 376).

Segundo nosso ponto de vista, a ação de interdição, erroneamente incluída por nosso Código dentre os procedimentos de jurisdição voluntária, deve ser considerada como pertencente à jurisdição contenciosa. E tal entendimento decorre da circunstância de produzir a respectiva sentença coisa julgada material, conforme demonstrara CHIOVENDA, resultado que certamente não ocorre nos processos de jurisdição voluntária.

6.5.3 Ações para desconstituição de atos e negócios jurídicos

Tanto o ato jurídico stricto sensu quanto o negócio jurídico podem ser desfeitos em razão de algum vício que os invalide, causando-lhes a nulidade ou a simples anulabilidade, assim como podem ser revogados ou rescindidos e ainda desconstituídos por resolução. As demandas que tenham por objeto a desconstituição de algum negócio jurídico, ou ato jurídico stricto sensu, são, como as anteriores, constitutivas, com a particularidade de serem, ao contrário da ação de interdição, ações constitutivas negativas.

,A nulidade e a anulabilidade são defeitos que tomam inválidos os atos e negócios jurídicos, cujos elementos essenciais ressentem-se de alguma deficiência, segundo os arts. 145e 147 doCC (arts. 166e 171 do novo CC).

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A revogação, a rescisão ou resilição assim como a resolução pressupõem negócio jurídico que se formara sem qualquer defeito invalidante. A desconstituição, nestes casos, dá-se porque um dos figurantes deixou de implementar alguma condição prévia, necessária à sua plena eficácia, ou porque algum deles o infringiu, deixando de cumpri-lo segundo o avençado, ou, ainda, no caso de revogação, por exemplo, por ter se verificado algum fato subsequente, capaz de autorizar a desconstituição da relação jurídica. Em todas essas hipóteses, a ação correspondente pela qual se busca desfazer o ato ou o negócio jurídico é constitutiva negativa.

As ações constitutivas, como já dissemos, assim como as demais ações do "processo de conhecimento", produzem eficácia no plano das relações jurídicas, mas em geral são impotentes para a modificação da realidade fáctica. por efeito direto e imediato de alguma de suas eficácias internas. Assim, por exemplo, havendo desconstituição do negócio jurídico através de uma ação de rescisão ou revogação, a posse do bem porventura transferido ao demandado não retornará ao demandante vitorioso se ele não houver cumulado à ação constitutiva o pedido de restituição da posse (cf. nosso A ação de imissão de posse..., p. 216-218).

A respeito da eventual eficácia executiva das ações de nulidade ou anulação, o problema toma-se de solução difícil em virtude do preceito contido no art. 158 do CC (art. 182 do novo CC), segundo o qual, "anulado o ato, restituir-se-ão as partes ao estado, em que antes dele se achavam, e, não sendo possível restituí-las, serão indenizadas com o equivalente".

PONTES DE MIRANDA não parece mostrar coerência ao tratar do problema. Estudando a hipótese de nulidade parcial, disciplinada pelo art. 153 do CC, escreve: "A sentença, por exemplo, quanto à nulidade do contrato de compra e venda, somente desconstitui esse contrato: não vai à disposição, que foi cumprimento. Razão por que se há de pedir a restituição. O juiz que determinasse a volta da coisa entregue, sem ter sido pedida, julgaria ultra petita; em ação constitutiva negativa, executaria'* (Tratado de direito privado, t. IV, § 369, 5).

Tratando, mais adiante, das "consequências da anulação" (ob. cit., § 413, 3), reafirma a mesma conclusão: "A sentença, em plano de realidade pura, desconstituiu o ato jurídico, desde todo o começo (e.x tunc). Se a coisa não estava, ao ser alienada, no património de quem a alienou, porém no de outra pessoa, é ao património dessa que volta. Quem obtém a anulação do ato jurídico de disposição pode. por isso. reivindicar". Segundo este entendimento, a restituição da coisa exigiria uma demanda cumulada de reivindicação.

Todavia, ao tratar das ações anulatórias por fraude contra credores (art. 106 doCC; art. 158 do novo CC) eda ação revocatóna falência!, escreve PONTES DE

MIRANDA (ob. cit., § 497,2): "O que se pede na açao de anulação é a desconstituição do ato jurídico fraudulento. Se apenas se assumira o dever, ou se outorgara poder, sem se prestar algo, a sentença satisfaz o autor de si-mesma. Se fora prestado algo, há de haver condenação à restituição, ou ao ressarcimento (art. 158) [art. 182 do novo CC], que é cumulável e se sói cumular, implicitamente". Ora, cumulação implícita de pedidos, em boa técnica processual, é simples eufemismo retórico: ou exige-se pedido expresso ou o que se supõe implícito há de fazer necessariamente parte integrante da única demanda, a que nada se cumulara.

Sabe-se, por exemplo, que a ação de despejo, pela qual se obtém a restituição da posse do prédio locado, pressupõe que se decida, na mesma causa, a desconstituição do contrato de locação, ou seja, o pedido de rescisão do contrato está implícito, como pretensão à desconstituição do negócio jurídico; ou, no mínimo, se a rescisão se dera de pleno direito, em razão de cláusula contratual, haverá o pedido para que o juiz declare que a rescisão ocorrera e, com base nela, decrete o despejo. Seria, no entanto, impróprio dizer que, na ação de despejo, haveria uma cumulação de ações, uma relativa ao pedido implícito de rescisão do contrato, outra propriamente de despejo. O implícito, se é que se pode considerã-lo tal, só pode pertencer à única lide existente, que é o despejo.

Na hipótese figurada por PONTES DE MIRANDA, porém, não se poderia jamais considerar o pedido de condenação a restituir como pedido implícito da ação pauliana, a não ser que a restituição fosse consequência necessária e inelutável da demanda de desconstituição do ato jurídico, caso em que não seria sequer imaginável um tal pedido apenas às vezes ("sói cumular-se, implicitamente") formulado.

Depois, "a sentença de anulação contém o elemento eficacial da condenação a restituir determinada coisa, ou dinheiro, ou coisa de género" (§ 497, 3).

As ambiguidades, todavia, vão mais longe: "A anulação desconstituindo o ato jurídico dá a ação de restituição, se o desconstituir o ato jurídico não exauriu a eficácia da sentença. Onde não se pode restituir, indeniza-se. Donde as ações que são eficácias mediatas da sentença de anulação (reivindicação, enriquecimento indevido etc, indenização)" (ob. cit., § 456,1).

Pouco antes, ao tratar do "conteúdo do art. 158 do Código Civil", escrevera (ob. cit.. §424, 13): "Seoatojurídicoénulo, a decisão já pode mandar restituir, não só condenar a restituir. Idem, se foi declarado ineficaz o ato. Em ambas as espécies não há, propriamente, condenação a restituir".

Segundo esta nova variante, as ações de nulidade ou anulação nem mais teriam eficácia apenas condenatória. mas seriam, ao contrário, executivas, uma vez que o juiz propriamente não condenaria, mas. ao contrário, ordenaria desde logo a restituição, ao que se supõe, sem que tivesse havido um pedido reivindicatório expresso da coisa, ou uma demanda cumulada de imissão ou reintegração de posse.

Todavia: "No direito brasileiro, a ação de anulação não faz a posse do bem que foi alienado entrar no património do autor, ou do devedor, em se tratando de

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anulação por fraude contra credores, ou da massa" (PONTES DE MIRANDA, ob. cit., § 424, 14).

As ações constitutivas, pelas quais se busque obter a desconstitui-ção de atos ou negócios jurídicos, quando não cumuladas com alguma demanda de restituição da posse da coisa eventualmente transferida ao réu em virtude do cumprimento do negócio jurídico desfeito, não têm eficácia capaz de permitir nem a condenação a restituir e menos ainda eficácia capaz de autorizar o juiz, ao julgá-la procedente, a ordenar a restituição. A anulação, rescisão ou revogação do ato ou negócio jurídico não envolve, necessariamente, qualquer pretensão à restituição da posse, que somente poderá compor outra demanda, inconfundível com a ação constitutiva negativa. Especialmente nos casos em que o negócio jurídico desconstituído pela sentença haja servido de base para uma nova transferência da coisa a terceiro de boa-fé, torna-se visível a impropriedade de tratar-se de restituição da coisa como mera questão da lide constitutiva (sobre isto, GEORGES LUTZESCO, Teoria ypráctica de Ias nulidades, p. 352 e ss.; LLOVERAS DE RESK, Tratado teórico-práctico de Ias nulidades, p. 462).

6.5,4 Ação de sonegados

Dispõe oart. 1.780 do CC: "O herdeiro que sonegar bens da herança, não os descrevendo no inventário, quando estejam em seu poder, ou, com ciência sua, no de outrem, ou que os omitir na colação, a que os deva levar, ou o que deixar de restituí-los, perderá o direito, que sobre eles lhe cabia"(art. 1.992 do novo CC).

A pena de sonegados, prescreve o art. 1.782, só se pode requerer em ação ordinária, proposta pelos herdeiros ou pelos credores da herança (art. 1.994 do novo CC).

Esta ação é constitutiva, porque importa em sobrepartilhar-se, pelos demais herdeiros, o bem sonegado. Mas a eficácia executiva que a demanda contém poderia recomendar seu tratamento dentre as executivas, fora do "processo de conhecimento". Julgada procedente a ação de sonegados, não haverá necessidade de promover, em processo autónomo subsequente, uma nova ação executória fundada no art. 621 do CPC, para-Leíítreg^de coisa certa (PONTES DE MIRANDA, Tratado das açõesyjll, § 26, 2).

Não se deve confundir a açao de sonegados, de que resulta a imposição da pena, só decretável por sentença de ação ordinária proposta com tal objetivo, com o pedido de colação que os herdeiros podem fazer no próprio inventário, a fim de que os bens não incluídos pelo inventariante, na respectiva declaração, ou não mencionados pelo herdeiro obrigado a colacioná-los, sejam dados a inventário e partilha (arts. 1.000 e 1.014 do CPC). Evidentemente, a inclusão nos inventários de bens que hajam sido involuntariamente omitidos por algum herdeiro, sem dolo ou má-fé, não importará em aplicar-lhe a pena de sonegados.

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ATOS PROCESSUAIS

SUMÁRIO: 7.1 Introdução - 7.2 Classificação dos atos processuais: 7.2.1 Atos processuais das partes; 7.2.2 Atos processuais do juiz - 7.3 Formas dos atos processuais - 7.4 Tempo dos atos processuais - 7.5 Prazos - 7.6 Preclusão - 7.7 Lugar dos atos processuais - 7.8 Defeitos dos atos processuais: 7.8.1 Teoria das nuiidades dos atos processuais; 7.8.1 Efeitos da nulidade dos atos processuais; 7.8.3 Atos processuais inpxiçtpntf*.*; inexistentes.

7.1 Introdução

A ideia de processo implica a de movimento, a partir de um determinado* ponto inicial e orientado para um fim determinado. O movimento que possibilita a realização desse percurso tem como causa a atividade das pessoas que participam da relação processual, praticando atos jurídicos das mais diversas naturezas e finalidades. Estes atos dizem-se processuais, quando pertençam ao processo e exerçam um efeito jurídico direto e imediato sobre uma determinada relação processual, servindo para constituí-la, modificá-la ou extingui-la (LIEBMAN, Manuaíe..., n. 98).

Segundo CARNELUTTI, para estabelecer-se a qualidade de um ato como processual, é necessário investigar se é ou não inerente à relação jurídica que resulta, em virtude de seus efeitos, constituída ou modificada, de tal modo que a processualidade do ato não decorre propriamente da circunstância de haver sido ele praticado dentro do processo, mas de sua relevância ou valor para o processo Ustituzioni dei processo civile indiano, n. 282). Segundo ele. mesmo realizados fora do processo seriam atos processuais, por exemplo, o compromisso arbitrai, ou a convenção por meio da qual os contratantes elejam o foro para as futuras demandas porventura oriundas do contrato, enquanto não seriam atos processuais - ainda quando praticados dentro da relação processual -, por exemplo, o reconhecimento do pedido e a renúncia (art. 269, incs. II e V). Ao contrário, para LIEBMAN, uma transação, realizada fora do processo, ou o ajuste de um compromisso arbitrai, não podem ser considerados atos processuais. Se-lo-ão, todavia, quando se realizem em juízo, dentro de uma dada relação processual

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(Manuale..., p. 197). Neste caso. como se vê, a processualidade do ato decorreria não apenas de sua relevância para o processo, mas de sua respectiva topologia. PONTES DE MIRANDA (Comentários..., 111/17) afirma que há atos que vêm de fora, do direito material pré-proces-sual, ou do direito material relativo à res in iudicium deducta, e se processualizam ao entrar no processo, tais como a transação judicial e o compromisso.

Os atos processuais são espécies de atos jurídicos. Discute-se, todavia, em doutrina se ao lado dos atos haveria também negócios jurídicos processuais. As opiniões divergem profundamente a respeito.

CARNELUTTI admitia sem reservas a existência de negócios jurídicos processuais, dentre os quais considerava como o mais típico a propositura da demanda (Istituzioni..., n. 290). CHIOVENDA (Instituições..., t. III, n. 291) inclinava-se para a doutrina contrária, mostrando que os casos frequentemente indicados como correspondentes a negócios, na verdade, poderiam ser tidos como atos processuais, desde que tanto as formalidades quanto seus efeitos deveriam vir regulados pela lei processual.

A distinção entre ato jurídico stricto sensu e negócio jurídico está bem estabelecida pela doutrina e tem relevância para a ciência do direito. Como adverte CHIOVENDA (Intituições...), a circunstância de exigirem os atos processuais, em certos casos, condições especiais de capacidade do agente, como a confissão, não induz necessariamente à conclusão de que tais atos sejam verdadeiros negócios jurídicos. LIEBMAN escreve: "Em sua qualidade de atos jurídicos, os atos processuais são indubitavelmente, e por definição, atos voluntários; e nem seriam pensáveis senão como resultantes da vontade do sujeito que os pratica. Mas trata-se, neste caso, de uma vontade tipicamente genérica: a simples vontade e consciência de cumprir o ato, não se exigindo absolutamente que ela tenha por fim a realização de um determinado efeito e não podendo sequer determiná-lo ou adaptá-lo à sua intenção, porque o efeito vem já fixado e preestabelecido pela lei. Nisto os atos processuais distinguem-se de outras categorias de atos jurídicos, e particularmente dos negócios jurídicos" (Manuale..., n. 102).

Com efeito, a distinção básica entre atos jurídicos stricto sensu e negócios jurídicos está em que. nestes, a lei deixa à autonomia privada uma margem de liberdade, dentro de cujos limites podem os sujeitos criar, modificar ou extinguir direitos.

pretensões e ações (PONTES DE MIRANDA, Tratado de direito privado, t. III, § 249; EMÍLIO BETTl, Teoria geral do negócio jurídico, 1.1, p. 148; TRIMARCHT, Istituzioni di dirittoprivato, p. 177). No negócio jurídico, existe sempre uma margem de autonomia privada que a lei reserva aos particulares, possibilitando-lhes estabelecer uma determinada forma de auto-regulamento de seus próprios interesses e ações para o futuro, de tal modo que o ato e suas consequências jurídicas são determinados pela vontade, ou. se nem sempre por um ato volitivo expresso, ao menos em decorrência daquela margem de autonomia que a lei reserva aos participantes do ato. Nos atos jurídicos stricto sensu, ao contrário, os efeitos que os atos humanos hão de produzir estão determinados diretamente pela lei, não obstante possa haver uma classe de atos que não são negociais em que a vontade do agente se manifeste e tenha relevância (ENNECCERUS-NIPPERDEY, Tratado de derecho civil ~ Parte general, t. I, 2.a

parte, p. 12 e ss.). Nestes casos, todavia, haverá simples manifestação não declarativa de vontade (PONTES DE MIRANDA, Tratado de direito privado, § 249,2), em geral incapaz de configurar negócio jurídico. A aquisição da posse, pela apreensão da coisa, não é negócio jurídico. Mas a apreensão da coisa que se encontre em oferta de venda em supermercado, por exemplo, é ato negociai.

Estas análises são importantes porque, como adverte LIEBMAN {Manuale..., n. 102), os atos processuais revestem-se de um indispensável formalismo, onde a função da vontade passa a ser secundária, de tal modo que se possa, por este meio, conceder aos figurantes um mínimo de segurança e agilidade no desenvolvimento da relação processual, que seria simplesmente impossível de obter se cada ato processual pudesse ficar sujeito a ser invalidado em virtude de erro ou por outros defeitos que em geral viciam a vontade do agente e que autorizam, nas relações de direito material, as pretensões e ações de invalidade. Raros são os atos processuais capazes de ser invalidados por vício de vontade. Em geral, os atos processuais que correspondem a negócios jurídicos "processualizados", como a transação ou a desistência, podem ser objeto de ação de anulação (cf. o art. 486 do CPC). Por exemplo, na ação de separação judicial, o acordo a respeito da partilha pode ser anulado por erro, violência, ou outro qualquer vício de vontade (PONTES DE MIRANDA, Comentários ao Código de Processo Civil, t. V, p. 356). Mas os princípios de direito material aplicáveis a respeito de anulabilidade dos atos jurídicos por erro, violência ou outros defeitos de manifestação de vontade não têm aplicação quanto aos atos processuais (SCHÕNKE, Derecho procesal civil § 31, II, 2).

Ainda que se aceite a existência de verdadeiros e próprios negócios processuais, como o admitem FRIEDRICH LENT {Diritto processuale civile tedesco, p. 122) e SALVATORE SATTA {Diritto processuale civi-le, n. 108), os atos processuais, contrariamente aos negócios jurídicos de direito material, sujeitam-se a outros princípios quanto a suas possíveis causas de invalidade e sanação, como teremos oportunidade de ver ao estudar as nulidades processuais.

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7.2 Classificação dos atos processuais

A variedade quase infinita dos atos processuais, como afirma LIEBMAN (Manuale..., n. 100), torna senão impossível ao menos extremamente difícil classificá-los segundo critérios gerais, ou, ao menos, as classificações possíveis, com raras exceções, têm se mostrado de escasso interesse prático. Vejamos, todavia, algumas destas, que poderiam ter relevância dogmática.

7.2.I Atos processuais das partes

Para a classificação dos chamados atos processuais das partes, devemos incluir no conceito de partes outros sujeitos da relação processual cuja função não corresponde rigorosamente ao conceito por nós conferido às partes. Assim, praticam atos processuais, além do autor e do réu e litisconsortes, também os assistentes simples e o representante do Ministério Público, mesmo que sua função numa determinada causa não corresponda à posição de parte.

Estes atos podem classificar-se em: a) atos postulatórios; b) atos instrutórios; c) atos dispositivos; e d) atos reais ou materiais (J. FREDERICO MARQUES, Instituições..., v. 2, n. 426; CINTRA-GRINOVER-DINAMARCO, Teoria geral do processo, n. 195).

Dizem-se atos postulatórios todos aqueles por meio dos quais as partes procuram obter um pronunciamento do juiz a respeito da lide ou do desenvolvimento da própria relação processual. Certamente o mais importante ato postulatório é a petição inicial, com que o autor propõe a demanda em juízo. São igualmente atos postulatórios a contestação, os recursos, a petição por meio da qual a parte propõe a denunciação da lide, ou o chamamento ao processo, assim como a proposição de reconvenção ou o pedido de declaração incidental. O ato pelo qual a parte propõe um determinado meio de prova participa de uma dúplice natureza: é um ato de postulação e ao mesmo tempo um ato instrutório, na medida em que tem por fim não apenas provocar uma providência do juiz, mas fornecer-lhe os elementos de prova capazes de formar o seu futuro convencimento (J. FREDERICO MARQUES, Instituições.... v. 2, n. 428).

Definem-se como atos instrutórios todos aqueles praticados pelas partes com o fim de aportar ao processo elementos de prova com os quais pretendam demonstrar a procedência de seu direito. Aqui, diver-

samente do que ocorre com o ato de postulação, o ato tem por fim convencer o juiz da veracidade das afirmações de fato feitas pela parte. Os atos probatórios podem ser atos através dos quais a parte formula o pedido de prova e atos por meio dos quais ela realiza a produção da prova. Assim, por exemplo, a petição com que a parte requer ao juiz a juntada aos autos de algum documento, com finalidade probatória, pode conter um ato de proposição de prova documental e, simultaneamente, um ato de produção de prova documental. Neste sentido, a própria petição inicial, que é o mais característico ato postulatório, como ato complexo que é, participa igualmente da natureza do ato probatório, pois, segundo uma determinação legal, a proposição das provas e, tratando-se de provas documentais, a própria produção do documento devem ser formuladas na petição inicial (arts. 282 e 283 do CPC).

Atos dispositivos são aqueles por meio dos quais as partes abdicam de algum direito ou vantagem processual, tais como a desistência da ação e a renúncia ou desistência do recurso, a transação e a desistência de algum prazo ou de certa prova já proposta e admitida pelo juiz.

São atos reais, ou materiais, aqueles que as partes praticam através de uma conduta processual concreta, tais como o comparecimento a uma audiência, a entrega em cartório de alguma petição ou documento, o pagamento de custas etc.

É importante ter-se presente que os atos processuais das partes tanto podem ser comissivos quanto omissivos (ROSENBERG, Tratado..., I, § 59,1). Não só as omissões porventura cometidas pelas partes podem produzir consequências processuais, como seu próprio comportamento em geral tem relevância para a causa. Assim, por exemplo, segundo o art. 302 do CPC, se o demandado, ao contestar a ação, omite qualquer impugnação a algum fato afirmado pelo autor em sua petição inicial, esta omissão tem como consequência a admissão do fato não impugnado como verdadeiro pelo julgador. A própria revelia e seus efeitos decorrem de uma omissão do demandado em contestar a ação (art. 319 do CPC). E o instituto da preclusão, de extraordinária importância para o direito processual civil, outra coisa não é. na maioria dos casos, senão a atribuição de consequências processuais a alguma omissão das partes (ROSENBERG, Tratado..., § 76, II, 2, a).

7.2.2 Atos processuais do juiz.

Também os atos processuais do juiz podem ser classificados nas seguintes categorias: a) atos decisórios; b) atos de documentação; e c) atos reais.

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Os mais importantes, sem dúvida, são os atos decisórios, também chamados provimentos. Compreendem eles os atos praticados pelo juiz para decidir a respeito de questões atinentes ao curso da relação processual ou da própria lide, subdividindo-se em provimentos finais e decisões interlocutórias.

Segundo a classificação empregada pelo legislador brasileiro (art. 162 do CPC), os atos do juiz consistem em sentenças, decisões interlocutórias e despachos.

7.2.2.1 Sentença

Sentença é o ato jurisdicional por excelência e consiste no provimento por meio do qual o juiz põe termo ao processo decidindo ou não o mérito da causa. Tendo em vista esta circunstância, subdividem-se as sentenças em terminativas - quando extinguem a relação processual sem decidir a respeito do mérito da causa - e definitivas - quando encerram a relação processual decidindo o mérito da causa.

Esta classificação tríplice dos provimentos judiciais, ou aios decisórios, ado-tada por nosso Código teve, como se sabe, finalidades mais práticas do que propriamente científicas. Pretendendo o legislador simplificar e dar unidade ao sistema de recursos que adotara, houve por bem denominar sentenças a todos os provimentos que ponham termo ao processo, mesmo que esta ocorrência se deva à extinção da relação processual motivada por alguma irregularidade, ocorrida nela própria e que nada tenha a ver com a decisão da causa. Assim, segundo nosso Código, as decisões que vão desde o indeferimento da petição inicial (art. 295) até o provimento que determina o arquivamento do processo, porque a parte, por exemplo, a quem incumbia alguma diligência, abandonou a causa por mais de trinta dias, são consideradas sentenças, como o são igualmente todos os provimentos através dos quais o juiz encerre o processo pelos motivos indicados no art. 267 do Código.

Reunidos, assim, sob uma mesma denominação, todos os provimentos decisórios que importem extinção do processo, quer haja ou não julgamento do mérito da causa, submeteu-os o legislador a uma única disciplina recursal, ao prescrever, no art. 513, que das sentenças caberá sempre apelação, tanto das terminativas quanto das definitivas.

Esta concepção, adotada pelo legislador de 1973, alterou a tradição de nosso direito, que reservava o recurso de apelação apenas para as decisões finais por meio das quais o juiz decidisse o mérito da causa, reservando para os provimentos a que hoje se dá o nome de sentenças terminativas o recurso de agravo de petição (art. 846 do CPC de 1939).

Se esta opção do legislador serviu para simplificar a determinação do recurso cabível em cada caso, facilitando em geral a tarefa das partes, isto nem sempre acontece, pois inúmeros são os provimentos judiciais que decidem o mérito da causa sem implicar a imediata extinção da relação processual, como ocorre, apenas para dar um dos exemplos mais notórios, com as sentenças que julguem procedentes as ações de divisão ou demarcação (arts. 955 e 968 do CPC), que indiscutivelmente são provimentos que decidem o meritum causae mas que, nem por isso, põem fim ao processo; o que, a dar-se interpretação rigorosa ao preceito do art. 162, § 1.°, combinado com o do art. 513 do CPC, obrigaria a que se considerasse tais sentenças de mérito como meras decisões interlocutórias (art. 162, § 2.°), atacáveis por agravo de instrumento (art. 522). Hipóteses semelhantes povoam diutumamente o campo da experiência forense brasileira.

7.2.2.2 Decisão interlocutória

Decisão interlocutória, ou simplesmente decisão, é todo ato realizado pelo juiz, no curso do processo, por meio do qual ele resolve alguma questão incidente. A ideia de decisões tomadas pelo juiz no curso do processo é uma consequência da própria concepção do processo como uma série temporal de atos entre si conjugados, visando a um resultado comum. Como a ideia de processo repele a possibilidade da instantanei-dade, é natural que surjam nesse evoluir da relação processual, desde o ajuizamento da ação até a prolação da sentença final, inúmeras e variadas questões a exigir decisões a serem tomadas pelo magistrado. São exemplos de decisões interlocutórias: o provimento com que o juiz defere ou indefere a produção de determinada prova proposta por uma das partes; o que ordena a exibição de coisas ou documentos (art. 355); o que declara intempestiva a apresentação da resposta do réu (art. 297); o que declara inadmissível a reconvenção (art. 315); aquele por meio do qual o juiz se declara ou não competente para a causa (art. 311); assim como a mais importante decisão interlocutória, que é o denominado "despacho sanea-dor"(art. 331).

7.2.2.3 Despachos ou despachos de mero expediente

Despachos, ou despachos de mero expediente, como às vezes eles são designados, são todos os demais atos que o juiz pratica no processo, de ofício ou a requerimento da parte, que não impliquem decisões capazes de causar algum gravame a qualquer das partes. A circunstância de provocar um determinado provimento judicial qualquer gravame às partes é elemento suficiente para catalogá-lo não como simples despacho, mas como decisão interlocutória. Em geral, os despachos

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são provimentos judiciais de simples impulso processual, por meio dos quais o juiz provê a respeito do andamento do feito. São despachos, por exemplo, o provimento através do qual o juiz designa audiências, ordena a intimação das partes ou de alguma testemunha ou designa data para a realização de praça (art. 685, parágrafo único, do CPC). Neste último caso, todavia, se houver controvérsia entre as partes a respeito da legitimidade da prática de tal ato processual, o provimento já não será um simples despacho, mas uma verdadeira decisão interlocutória, e, como tal, recorrível.

Não se deve esquecer que no conceito de sentença, que é o provimento jurisdicional emanado do juiz de primeiro grau de jurisdição, incluem-se também os acórdãos, que são atos similares originados das decisões colegiadas tomadas pelos tribunais superiores.

Além dos atos decisórios, que constituem o núcleo da atividade jurisdicional, pratica o juiz, no curso do processo, ainda, atos de documentação, quando, por exemplo, rubrica as folhas dos autos, assina termos e atos processuais; e atos reais, também chamados atos materiais, tais como a inspeção de lugares, coisas ou pessoas; o ato de presidir a uma audiência, ouvir testemunhas etc.

Embora as pessoas que desempenham funções de auxiliares do juízo, tais como os oficiais judiciários (escrivães), oficiais de justiça, avaliadores, distribuidores e contadores judiciais, não sejam consideradas sujeitos do processo, praticam igualmente atos processuais. Os escrivães, por exemplo, certificam, por meio de termos, as ocorrências verificadas durante o desenvolvimento das relações processuais, desde que a petição inicial lhes é apresentada, praticando, neste caso, o termo denominado autuação (art. 166 do CPC), até que o processo se encerre. São mais frequentes os termos de juntada, através dos quais o escrivão, ou chefe de secretaria, certifica haver incluído no processo algum novo documento; o termo de vista, com o qual ele certifica haver dado vista dos autos às partes ou ao Ministério Público; o termo de conclusão, por meio do qual ele certifica haver remetido o processo à consideração do juiz (art. 168 do CPC); e o termo de audiência (art. 457 do CPC).

Os auxiliares do juízo, além de atos, realizam também autos processuais, tais como os praticados pelos oficiais de justiça ao proceder à penhora (art. 665 do CPC) ou à busca e apreensão (art. 839 do CPC). Também na ação de nunciação de obra

nova, uma vez deferido o embargo liminar, o oficial de justiça, encarregado de seu cumprimento, lavrará auto circunstanciado, descrevendo o estado em que se encontra a obra (art. 938 do CPC).

7.3 Formas dos atos processuais

A disciplina da forma dos atos processuais, não obstante a grande variedade de que estes se revestem, obedece a certos princípios gerais adequados e compatíveis com a natureza e finalidades do direito processual. Como se sabe, a forma dos atos em geral é não só uma necessidade inerente à comunicação jurídica, mas fundamentalmente uma garantia de segurança e da própria Uberdade jurídica. A abolição das formas por meio das quais cada ato jurídico deva ser praticado provocaria a instauração imediata do arbítrio absoluto, tornando simplesmente impossível a convivência social.

Sendo o direito processual uma disciplina essencialmente formal, seria natural imaginar, em seu campo, o predomínio do princípio da rigidez das formas, segundo o qual haveriam de ter-se por inválidos todos os atos processuais que não obedecessem rigorosamente à determinação de forma estabelecida para sua realização. E nos sistemas jurídicos rudimentares, como se verificava no direito romano primitivo, as solenidades processuais e a rigidez formal eram absolutas. A mais insignificante inobservância dos ritos impostos por lei era motivo suficiente para causar a nulidade do processo. Contudo, no direito moderno tal não ocorre. Precisamente por sua natureza eminentemente instrumental, domina no direito processual o princípio da Uberdade deformas, consagrado pelo art. 154 do CPC, segundo o qual os atos e termos processuais não dependem de forma determinada, senão quando a lei expressamente a exigir, reputando-se válidos os que, realizados de modo diverso, hajam preenchido a finalidade essencial que a lei lhes atribuir.

Este princípio de certo modo corresponde, ou é complementado, pelo princípio da finalidade, inscrito no art. 244 do CPC, também chamado princípio da instrutnentalidade das formas, segundo o qual, mesmo que a lei estabeleça determinada forma, sem a cominação de nulidade, o juiz considerará válido o ato se, realizado de outro modo, alcançar ele a finalidade a que se destinava. A este, todavia, opõe-se o princípio da legalidade das formas ou da relevância das formas, em virtude do qual o ato processual só terá validade quando praticado em obediência à for-

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ma expressamente exigida por lei. O uso do vernáculo, por exemplo, em que deverão ser redigidos todos os documentos, atos e termos processuais, é uma determinação imperativa constante do art. 156 do CPC. Se algum documento estiver expresso em língua estrangeira, deverá ser previamente traduzido, antes de ser juntado aos autos (art. 157). Neste caso, a forma é relevante e deve ser obedecida sem exceção.

Embora possam as partes, em certas circunstâncias, formular pedidos orais, particularmente durante a realização das audiências, ou de diligências, tais como vistorias, perícias ou inspeções judiciais, certos atos das partes devem necessariamente obedecer a forma escrita, como é o caso da petição inicial, que não pode, no direito processual civil brasileiro, ser formulada oralmente.

7.4 Tempo dos atos processuais

Se o tempo tem inegável relevância para o direito em geral, sua importância para o processo é ainda mais fundamental, pois, como já dissemos, a própria ideia de processo implica, necessariamente, numa atividade temporal, que há de realizar-se através de uma cadeia de atos singulares, com alguma duração. CARNELUTTI, numa conhecida passagem de uma de suas obras mais importantes, fez a respeito da relevância do tempo para o direito processual a seguinte observação: "O valor que o tempo tem para o processo é imenso e, em grande parte, desconhecido. Não seria exagero comparar-se o tempo a um inimigo contra o qual o juiz luta sem descanso. De resto, também sob este aspecto o processo é vida. As exigências que se apresentam ao magistrado, com relação ao tempo, são três: detê-lo, retroceder ou acelerar o seu curso" {Diritto e processo, n. 232). Esta é uma verdade indiscutível e dramática. O juiz labora, no processo, em permanente tensão provocada pelos interesses conflitantes das partes, com relação aos tempos processuais. Muitas vezes, como diz CARNELUTTI, a uma delas e ao próprio juiz interessaria provocar uma regressão temporal, de tal modo que alguma cena da existência humana ou algum episódio processual já pretérito pudessem ser reproduzidos para melhor observação; noutras, o interesse de uma das partes concentra-se no seu empenho em que a marcha do processo seja significativamente acelerada, de modo a que ela obtenha, com toda a brevidade possível, a satisfação de seu direito, enquanto, neste caso, em geral, a parte adversa trabalha e empenha-se para que a máquina judiciária opere em câmera lenta, permitindo-lhe, pelo maior tempo possível.

usufruir das comodidades que a relação de uso ou de posse da coisa ou do direito litigioso lhe conferem.

Raramente a duração de um determinado processo terá agradado por igual a todos os litigantes que dele hajam participado. Esta, todavia, é uma contingência humana que nunca poderá ser superada. A duração é uma ideia inerente ao conceito de qualquer processo. Como dissemos em outro lugar, as ideias de processo e instantaneidade são antitéticas. O legislador e os juizes podem, é certo, dentro de limites modestos, minorar as angústias que a demora processual pode causar aos litigantes. Jamais poderão, no entanto, superar o eterno dilema entre celeridade e justiça.

ANTÓNIO JANYR DALL'AGNOL JÚNIOR (Comentários ao Código de Processo Civil, v. 3, p. 91) cita, a propósito, estas palavras de CARNELUTTI, nem sempre lembradas pelos próprios juristas e ignoradas pelo grande público: "O slogan da justiça rápida e segura, que anda na boca dos políticos inexpertos, contém, desgraçadamente, uma contradição in adiecto: se a justiça é segura, não é rápida; se é rápida, não é segura. As vezes a semente da verdade necessita de anos, ou mesmo de séculos, para tornar-se espiga (veritas filia temporis)". É necessário, porém, observar que processo demorado não é sinónimo de justiça mais perfeita nem fórmula capaz de assegurar essa ilusória busca da verdade material. Ao contrário, o normal é que os processos que se eternizam, buscando uma verdade inatingível, acabem gerando insegurança, angústia, desilusão para as partes.

Os problemas referentes ao tempo podem ser encarados de dois modos: ou no sentido do momento temporal, como diz CARNELUTTI, em que determinado ato deva realizar-se, ou seja, naqueles casos em que a lei prescreve o dia da semana, do mês ou ano, ou até mesmo as horas em que certo ato deve ser realizado; ou no sentido de que o ato a ser praticado deverá sê-lo dentro de certo período de tempo (J. FREDERICO MARQUES, Instituições..., v. 2, n. 446). São exemplos de normas que tratam do tempo para a prática de atos e termos processuais os preceitos constantes dos arts. 172 e 173 do CPC. Segundo o primeiro destes dispositivos, os atos processuais realizar-se-ão em dias úteis, das seis às vinte horas. O art. 173 determina que não se pratiquem atos processuais durante as férias coletivas do Poder Judiciário e durante os dias feriados, salvo as exceções aí mesmo previstas. No segundo sentido, a consideração do tempo para a prática dos atos processuais diz respeito aos prazos dentro dos quais devem eles ser praticados.

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Prazo é o período de tempo dentro do qual determinado ato processual deve ser praticado. H. THEODORO JR. (Curso..., v. 1, n. 229) define prazo como sendo o "espaço de tempo em que o ato processual da parte pode ser validamente praticado". Mas a limitação do conceito de prazo apenas aos que digam respeito às partes restringe injustificada-mente o correto sentido de prazo processual. Não são apenas as partes a estarem submetidas aos prazos processuais, também os juizes e tribunais. É claro que, no que diz respeito às partes, a não observância, por parte delas, dos prazos que lhes sejam assinados importa na invalidade do ato praticado intempestivamente, enquanto a sanção para a não observância dos prazos por parte dos magistrados não determinará jamais a invalidade do ato processual. Mesmo assim, e não obstante a diversidade de consequências, tanto as partes quanto os juizes e seus auxiliares estão sujeitos ao cumprimento de prazos processuais.

7.5 Prazos

Os prazos ou são determinados por lei ou são deixados ao prudente arbítrio do juiz. Dizem-se por isso legais e judiciais. E a estes podem-se ainda acrescentar os chamados prazos convencionais, aqueles cuja determinação a lei admite que seja ajustada por acordo das partes. Nesta última classe inclui-se, por exemplo, o prazo de comum acordo estabelecido pelas partes para a suspensão do processo (art. 265, II, do CPC). Em processo civil, todavia, é muito escassa a margem deixada pela lei para que as partes convencionem a respeito de prazos processuais. Em geral, os prazos ou são impostos por lei ou dependem do arbítrio do juiz.

O art. 177 do CPC dispõe: "Os atos processuais realizar-se-ão nos prazos prescritos em lei. Quando esta for omissa, o juiz determinará os prazos, tendo em conta a complexidade da causa". Estão aí previstos os prazos legais e os judiciais. Tanto uns quanto os outros são contínuos, isto é, uma vez iniciados não se interrompem quando haja em seu curso algum domingo ou dia feriado (art. 178).

A regra da continuidade dos prazos processuais, no entanto, sofre exceções. Se os domingos e feriados não constituem obstáculo à fluência dos prazos, quando ocorram durante o seu curso, suspendê-los-ão, todavia, se coincidirem com seus termos finais, ou seja, se o domingo ou feriado ou o dia em que o expediente forense não for integral coincidir com o último dia do prazo. Neste caso, o término dele prorrogar-

se-á para o primeiro dia útil subsequente. Por sua vez, os prazos somente começam a correr a partir do primeiro dia útil após a intimação (art. 184, § 2.°, do CPC).

Suspende-se também o curso do prazo quando haja obstáculo criado pela parte ou quando ocorrer a morte ou a perda da capacidade processual de qualquer das partes, assim como nos casos em que for oposta exceção de incompetência, suspeição ou impedimento do juízo (art. 180 do CPC).

Havendo suspensão de prazo processual, o período que restava para sua consumação será restituído à parte, uma vez cessada a causa determinante da suspensão (art. 180 do CPC).

7.6 Preclusão

O art. 262 do CPC dispõe: "O processo civil começa por iniciativa da parte, mas se desenvolve por impulso oficial". Este princípio, no entanto, deve ser entendido em estreita conexão com as regras e princípios que impõem às partes o ónus de promover o andamento do processo. O início da atividade processual depende, sempre, da iniciativa da parte, conforme o preceito contido no art. 2.° do CPC, segundo o qual "nenhum juiz prestará a tutela jurisdicional senão quando a parte ou o interessado a requerer". Mas o desenvolvimento subsequente da relação processual nem sempre ocorre apenas como uma decorrência do impulso oficial. É certo, sem dúvida, que ao juiz não só incumbe determinar o andamento do processo, de modo que ele percorra as etapas que lhe são próprias, até o encerramento final da relação processual, como igualmente lhe confere a lei os poderes indispensáveis ao cumprimento desta tarefa. Sucede, porém, que também as partes são gravadas com certos encargos, a que a doutrina denomina ónus processuais, por meio dos quais ficam elas sujeitas a praticar certos atos ou cumprir alguma formalidade processual dentro de um tempo determinado, sob pena de perderem a oportunidade de realizá-los.

O conceito de ónus processual é de importância capital para os sistemas processuais de tipo liberal, sujeitos ao princípio dispositivo. Na medida em que a realiçação da ordem jurídica estatal, nos casos em que haja conflito entre as pessoas que se digam titulares de alguma pretensão e os respectivos obrigados, é deixada à livre iniciativa do próprio interessado, segundo o principio de demanda (arts. 2.° e 128 do CPC). fica subentendido que nem ao juiz nem a ninguém é dado

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reparar quaisquer lesões a direitos individuais - mesmo que o juiz tenha ensejo de constatá-las no processo - se o interessado não requer expressamente um provimento judicial específico capaz de restaurar-lhe o direito lesado.

Este tipo de comportamento processual que a lei reserva às partes onera-as com o que se denomina ónus processual, que não se confunde com o conceito de obrigação em geral, A distinção entre estas duas categorias, como ensina CARNELUTTI {Teoria geral do direito, § 92), faz-se com relativa facilidade, considerando-se a natureza das consequências impostas por lei para o caso de violação dos preceitos que imponham, respectivamente, um ónus ou uma obrigação. O interessado a quem incumbia algum ónus e que deixa de cumpri-lo sofrerá, em razão disso, uma certa perda ou ver-se-á privado de alguma vantagem, mas não terá, em nenhum caso, praticado ato ilícito. O ónus não é uma obrigação, e sim uma. faculdade que o interessado tem no cumprimento de algum encargo processual, cuja realização lhe trará vantagem. No cumprimento da obrigação, as vantagens que daí decorram não serão obtidas pelo obrigado, e sim pelo titular do direito em favor do qual a obrigação foi cumprida. O ónus é uma faculdade que o interessado tem de realizar o ato, ou cumprir o encargo em seu próprio benefício (CARNELUTTI, Sistema..., v. 1, n. 21).

A preclusão é uma categoria própria do direito processual estritamente ligada ao conceito de ónus processual.

Diz-se preclusão, no campo da teoria dos prazos processuais, a impossibilidade em que se encontra a parte de praticar determinado ato processual em virtude de se haver esgotado o momento adequado para fazê-lo. Preclusão (do latim praecludere, fechar, cerrar, impedir) é, em última análise, a perda de uma faculdade processual, ou a extinção do direito que a parte tivera de realizar o ato, ou de exigir determinada providência judicial.

Esta impossibilidade a que se denomina preclusão pode ter como causa três fatores determinantes, o que permite classificarem-se as pre-clusões em temporais, lógicas e consumativas (J. FREDERICO MARQUES, Instituições..., v. 2, n. 466).

Preclusão temporal é a perda de uma faculdade processual em virtude de seu não exercício no momento previsto para sua realização. O réu, por exemplo, tendo 15 dias para contestar a ação, deixa esgotar-se este prazo sem oferecê-la; no procedimento sumário, o autor deveria indicar suas testemunhas na petição inicial (art. 276 do CPC); e o réu haveria de fazê-lo, caso pretendesse produzir prova testemunhal, juntamente com a sua resposta na própria audiência (art. 278, caput, do CPC). Se qualquer das partes deixar de postular a produção de tais provas no

momento que a lei indica, haverá preclusão da faculdade correspondente, ficando elas impedidas de fazê-lo em tempo posterior.

Preclusão lógica diz-se a impossibilidade em que se encontra a parte de praticar determinado ato ou postular certa providência judicial em razão da incompatibilidade existente entre aquilo que agora a parte pretende e sua própria conduta processual anterior. Por exemplo, o réu condenado pela sentença comparece a cartório e paga o valor da condenação; depois de praticar este ato, estando ainda a fluir o prazo para recurso, volta a cartório para apelar da mesma sentença. A aceitação da sentença, expressa pela conduta da parte de comparecer espontaneamente ao cartório e cumprir a condenação, importa em ter-se por preclusa a oportunidade para o recurso (art. 503 do CPC).

Se o inquilino é citado para responder a uma ação de despejo por falta de pagamento e espontaneamente purgar a mora, realizando o pagamento dos aluguéis em atraso e dos demais encargos porventura exigidos na ação, não lhe será possível, a partir daí, contestar a ação. Haveria preclusão por incompatibilidade lógica entre as duas condutas, entre o ato de pagar os aluguéis reconhecendo a procedência da ação e o ato de contestá-la.

A preclusão consumativa dá-se quando uma determinada faculdade processual já foi proveitosamente exercida, no momento adequado, tornando-se impossível o exercício posterior da mesma faculdade de que o interessado já se valeu. A parte a quem se confere o direito de apelar da sentença que lhe seja desfavorável poderá fazê-lo nos quinze dias subsequentes à intimação (arts. 184, § 2.°, e 240 do CPC). Se, todavia, ao invés de valer-se de todo o prazo, a parte oferecer o seu recurso, por exemplo, no décimo dia, não lhe será permitido propor uma segunda apelação mais ampla ou diversa da anterior, ainda que dentro do prazo legal.

Das três espécies de preclusão, apenas a temporal diz respeito à teoria dos prazos processuais de que ora tratamos. As outras duas categorias ligam-se mais diretamente à coisa julgada e ao princípio de vedação do bis in idem em direito processual.

Não obstante aparecer o vocábulo preclusão (em francês jorelusion) desde o direilo medieval romano-canônico (COUTURE, Fundamentos..., n. 121), o tratamento moderno deste conceito, com a extensão e importância que o mesmo assumiu em direito processual civil, deve-se sem dúvida a CHIOVENDA. que o estudou especialmente para compará-lo e distingui-lo do conceito de coisa jul-

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gada. Também a coisa julgada, tanto formal quanto material, como veremos no lugar próprio, importa numa certa forma de perda de oportunidade, ou da faculdade de controverter sobre certas questões jurídicas, seja porque o momento oportuno para levantá-las já foi ultrapassado, seja porque das mesmas algum processo anterior já tratou, tendo havido a seu respeito sentença definitiva de mérito.

A preclusão, quer se tome este conceito em sua significação temporal, quer em seu sentido lógico, representa sempre uma arma que o processo usa em defesa da segurança das relações processuais, em detrimento da justiça material, que é a outra polaridade de tensão a que está submetido o fenómeno jurídico. Não é, portanto, de estranhar que haja sido CHIOVENDA - o grande mestre do liberalismo burguês do início do século - o precursor e sistematizador do princípio da preclusão em direito processual civil, assim como serão igualmente compreensíveis as tentativas contemporâneas, senão de repúdio, o que em verdade seria absurdo, pelo menos de sensível abrandamento das consequências de tal princípio, tendo em vista, precisamente, as modernas tendências da filosofia do direito, cuja díreção se tem voltado constantemente para o retorno aos padrões de uma sempre almejada justiça material do caso concreto.

Alguns exemplos poderão esclarecer os graves problemas postos pela rigorosa observância do princípio de preclusão processual. Segundo o art. 302 do CPC, cabe ao réu, ao contestar a ação, manifestar-se precisamente sobre os fatos narrados na petição inicial, de tal modo que seu silêncio a respeito de alguns deles importará em serem tidos estes fatos como verdadeiros. Se, por hipótese, o réu, ao defender-se, impugnou os fatos articulados numa ação de cobrança, alegando, por exemplo, que o crédito pretendido pelo autor era menor do que o alegado na petição inicial, que o autor não era legitimado ativo para a causa, que a ação estava prescrita e que, além disso, o réu tinha direito a compensação, deixando, porém, de alegar pagamento, não obstante tivesse em seu poder o respectivo recibo de quitação, esta defesa, segundo o disposto no art. 303, não seria mais possível naquele processo, depois de encerrada afasepostulatória. Como ao réu competia, de acordo com o art. 396, juntar o aludido recibo de quitação na oportunidade em que contestara a ação, não lhe sendo lícito fazê-lo depois - a não ser para a prova de "fatos ocorridos depois dos articulados" (art. 397) -, a conclusão seria a de que o direito de produzir aprova do pagamento estava, neste caso,/?rec/«síz. Ora. é evidente que nenhum juiz ou tribunal poderá aceitar uma conclusão desta espécie, que simplesmente prestaria homenagem ao puro formalismo jurídico. sem a menor preocupação com a justiça e a equidade. Segundo o art. 267, VI. do CPC. a possibilidade jurídica, o interesse e a legitimação para a causa seriam preliminares de mérito, ou matéria estranha e anterior ao meritum causae, cabendo ao juiz apreciá-las por ocasião da fase de saneamento do processo. Se, por exemplo, alegada pelo réu. na contestação, a ilegitimidade ad causam do autor.

nao a reconhecera o magistrado no despacho saneador (art. 331 c/c o art. 239 do CPC). mesmo que venha a convencer-se depois de que o réu tinha razão e que, de fato, o autor não está legitimado para a causa, segundo o disposto no art. 471, não lhe seria lícito decidir novamente a questão já decidida, para declarar, agora, o autor parte ilegítima ad causam. Também neste caso é compreensível, pelos padrões modernos, a rebeldia manifestada nos tribunais, que cada vez com maior frequência têm proclamado que a decisão sobre condições da ação não causa preclusão, sendo lícito ao juiz, ao sentenciar a causa, reapreciar a matéria e decidir em sentido contrário a seu pronunciamento anterior.

Neste sentido, o art. 267, § 3.°, do CPC de 1973 alterou a doutrina que se formara sob a vigência do estatuto revogado, segundo a qual a decisão sobre as condições da ação, tomada no saneador, ficava preclusa.

7.7 Lugar dos atos processuais

Ao contrário do Código anterior, que não continha dispositivo expresso a respeito desta matéria, o Código de Processo Civil de 1973 prescreve, em seu art. 176, que os atos processuais realizam-se, de ordinário, na sede do juízo, podendo, todavia, em razão de deferência, ou no interesse da justiça, ou em virtude de obstáculo arguido pelo interessado, realizar-se em outro lugar. Todavia, este "outro lugar" entende-se como sendo dentro dos limites da respectiva circunscrição judiciária onde o magistrado exerce jurisdição (JOÃO BONUMÁ, Direito processual civil, v. 2, p. 78).

Se o ato tiver de praticar-se dentro dos limites atribuídos à competência de outro juiz, a este haverá de ser pedida a sua realização, por meio de cartas, que podem ser precatórias, quando dirigidas ajuízes de igual categoria no território nacional; de ordem, quando formuladas por tribunais superiores a juizes que lhes sejam subordinados; e rogatórias, quando a diligência seja solicitada a alguma autoridade judiciária de país estrangeiro (art. 202 do CPC).

Os atos praticados pelos auxiliares do juízo frequentemente são realizados fora de sua sede. Assim, por exemplo, a citação do réu, que há de ser feita no lugar em que este se encontre (art. 216); a penhora, que se fará "onde quer que se encontrem os bens" (art. 659, § 1.°); a praça de arrematação, que se realizará "no átrio do edifício do fórum"; e o leilão, "onde estiverem os bens, ou no lugar designado pelo juiz" (art. 686, § 2.°).

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7.8 Defeitos dos atos processuais

7.8.1 Teoria das nulidades dos atos processuais

Os atos processuais, como todos os atos jurídicos, podem apresentar certos vícios que os tornem inválidos ou ineficazes. No campo do processo civil, estes vícios, em geral, decorrem da inobservância de forma por meio da qual um ato determinado deveria realizar-se. Observe-se que o conceito de forma, aqui, deve corresponder ao modo pelo qual a substância se exprime e adquire existência (J. FREDERICO MARQUES, instituições..., v. 2, n. 432), compreendendo, além de seus requisitos externos, também as circunstâncias de tempo e lugar, que não deixam de ser igualmente modus por meio dos quais os atos ganham existência no mundo jurídico.

A teoria das nulidades dos atos processuais, por defeito de forma, tem de ser construída, portanto, segundo os princípios adotados por um dado ordenamento jurídico para a disciplina das formas dos atos processuais.

Diferentemente da doutrina ainda dominante no Brasil sobre nulidades no campo do direito privado material, as nulidades no direito processual civil são informadas por princípios em que predominam as ideias de finalidade e instrumentalidade das formas, segundo as quais os defeitos dos atos processuais, em geral, não lhes causam nulidade sempre que os atos, ainda que realizados com algum desvio de forma, hajam atingido o fim a que se destinavam.

Deve-se a EUGENE GAUDEMET, como mostra JACQUES GHESTIN {Traité de droit civil, v. 2, n. 737), a tentativa mais eficaz de construção de uma teoria moderna das nulidades em direito civil, capaz de superar a doutrina clássica a respeito deste assunto e de dar explicação convincente a muitas hipóteses que não encontravam solução adequada pelos critérios da doutrina dominante. A ideia fundamenta! de que parte GAUDEMET é a de que a nulidade não é uma qualidade do ato, ou uma carência sua, de modo que o ato jurídico seja nulo quando, *'ana-tomicamente", houver nascido com alguma malformação, ou com deficiência de certo elemento que a lei considere indispensável à sua existência ou à sua validade. Segundo a doutrina clássica, diz GAUDEMET, os atos jurídicos seriam como os seres vivos, que nascem, vivem, contraem enfermidades e morrem {Théoriegéné-rale des obligations, p. 162).

O ponto de parti da de GAUDEMET baseou-se na tentativa anterior de JAPIOT de construir uma teoria geral das nulidades dos atos jurídicos sob o ponto de vista objetivo. Segundo tal entendimento, dever-se-ia abandonar a concepção da nulidade como uma qualidade ou uma carência do ato jurídico - ou a ideia correlata de "ato-organismo" - para tê-la simplesmente como sanção contra a violação de uma determinada norma legal, cuja consequência seria a faculdade que a própria lei outorga a alguém de impugnar o ato praticado em contravenção à norma (idem, p. 163). O critério para classificar as nulidades não estaria, portanto, no "sujeito" portador do vício, vale dizer, no ato defeituoso, mas na natureza da norma e do interesse por ela protegido. Daí considerar-se esta nova perspectiva como um critério objetivo para a teoria das nulidades.

Segundo a doutrina clássica, conforme a gravidade do defeito, os atos jurídicos poderiam estar viciados de nulidade absoluta, caso em que qualquer interessado poderia denunciar-lhes o defeito, cabendo ao magistrado declará-lo, em qualquer juízo ou instância - independentemente da propositura da correspondente ação de nulidade, que seria neste caso dispensável - mesmo ex officio, não produzindo, jamais, o ato nulo, qualquer efeito no mundo jurídico; ou, sendo de menor gravidade o vício que o atacasse, a nulidade deixaria de ser absoluta para ser uma nulidade relativa, caso em que o direito de impugnação caberia a um número mais reduzido de legitimados: o ato seria eficaz e produziria efeitos até que a sentença o descontituísse, não podendo o juiz desconstituí-lo sem que a parte interessada o requeresse.

GAUDEMET, ao contrário, considera sempre necessária a ação de nulidade, ainda que o ato seja nulo de pleno direito, uma vez que, como uma consequência de sua existência no mundo jurídico, dele surgirão certas consequências ou determinadas aparências jurídicas que devem ser desfeitas pelo juiz. Considera, por exemplo, o jurista que uma ação de reivindicação promovida pelo proprietário contra o mero possuidor injusto, sem título, não poderá ser idêntica a uma outra ação reivindicatória que se deva promover contra alguém que, além de simples possuidor, o seja em virtude de título translativo da propriedade imóvel, regularmente registrado, porém nulo de pleno direito, por lhe ter sido transmitido por um alienan-te absolutamente incapaz. Nesta hipótese, diz GAUDEMET, ao pedido reivindicatório ter-se-ia de cumular um outro pedido de desconstituição do título viciado de nulidade, tendo em vista que o juiz não deveria tratar a demanda como se o título nulo não existisse e não houvesse produzido qualquer efeito, simplesmente ignorando-o para julgar a reivindicatória procedente. Mesmo porque, neste caso, o nulo teria provocado a constituição de um outro registro que demandaria cancelamento.

•Segundo a concepção moderna de nulidade que se vem formando a partir destas proposições básicas, devidas a JAPIOT e GAUDEMET. sempre que o ato jurídico - qualquer que seja a importância ou a gravidade do defeito de que ele se ressinta - haja feito nascer alguma aparência, ou produzido alguma consequência

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no mundo social, deve ser desconstituído por sentença judicial, ainda que se o considere nulo de pleno direito (J. GHESTIN, Traité..., p. 633).

A consequência de maior relevo, no entanto, conseguida por esta doutrina foi sem dúvida a mudança de perspectiva através da qual a ciência jurídica pôde tratar os defeitos dos atos jurídicos em geral, no campo do direito privado. Em vez de manter, como até então, os olhos fixos no ato e em suas possíveis deficiências, passou-se a considerar as nulidade segundo a natureza das normas jurídicas porventura violadas pelo ato jurídico. Se a norma desatendida pelo ato viciado tutelava um interesse meramente privado da parte interessada, estar-se-ia em presença de uma nulidade relativa; se. ao contrário, a norma legal violada pelo ato jurídico visava à proteção de um interesse público (intérêt general), qualquer interessado poderia demandar o reconhecimento do vício e a nulidade seria absoluta.

De acordo com essa concepção, as nulidades, no campo do direito privado, já não se dividem em absolutas e relativas segundo a gravidade do vício de que seja portador o ato jurídico, mas tendo em vista a relevância ou a natureza do interesse protegido pela norma legal desatendida pelo ato viciado.

7.8.2 Efeitos da nulidade dos atos processuais

Em direito processual civil, vigoram princípios semelhantes aos estabelecidos pela doutrina objetiva das nulidades em direito privado. Como mostrou GALENO LACERDA, em conhecido ensaio publicado em 1953: "O que caracteriza o sistema das nulidades processuais é que elas se distinguem em razão da natureza da norma violada, em seu aspecto teleológico. Se nela prevalecem fins ditados pelo interesse público, a violação provoca a nulidade absoluta, insanável, do ato" (Despacho saneador, p. 72). Se, ao contrário, a norma, de preferência, protege o interesse privado da parte, estar-se-á em presença de simples nulidade relativa ou anulabilidade. Segundo seu ponto de vista, ainda, a distinção entre as nulidades relativas e as anulabilidades repousa na natureza da norma desrespeitada pelo ato que a infrinja. Se a norma tivesse por fim preferentemente a proteção de um interesse processual da parte, porém contivesse uma prescrição cogente, o ato processual viciado determinaria uma nulidade relativa; se, no entanto, a lei deixasse à livre disposição da parte a arguição da nulidade, a consequência do vício corresponderia à simples anulabilidade, cuja decretação não poderia ser ordenada pelo juiz senão quando o» interessado o requeresse.

TITO PRATES DA FONSECA, sem chegar embora a uma sistematização geral da teoria das nulidades processuais, segundo o critério objetivo, chegara antes a resultado semelhante, ao mostrar que a distinção entre o ato processual nulo e o anulável deveria ser feita a partir da natureza do interesse tutelado pela norma, ocorrendo nulidade absoluta se a norma desrespeitada visasse ao interesse público e simples anulabilidade se a norma visasse "mais de perto aos interesses individuais" {Nulidades em processo civil, n. 109).

Segundo a teoria das nulidades processuais adotada por GALENO LACERDA, amplamente aceita pela doutrina brasileira, os defeitos dos atos jurídicos processuais podem, portanto, acarretar: a) nulidade absoluta; b) nulidade relativa; c) simples anulabilidade.

Ao lado dessas três categorias de vícios dos atos processuais, cuja ocorrência pode determinar consequências relevantes para o desenvolvimento natural da relação processual, costumam os processualistas indicar uma quarta espécie de defeito dos atos processuais, a que denominam irregularidade, cuja existência não tem sequer a força de provocar a ineficácia do ato viciado ou da relação processual. Tal seria, por exemplo, o erro ou a omissão do serventuário na numeração das folhas dos autos do processo (E. M0N1Z DE ARAGÃO, Comentários ao Código de Processo Civil, n. 349).

Nulidade absoluta, segundo a doutrina sustentada por GALENO LACERDA, ocorrerá, como vimos, quando o ato processual ofenda uma norma que protege um interesse público, caso em que o vício será insa nável e deve ser declarado de ofício pelo juiz, podendo qualquer das partes invocá-lo. A nulidade relativa terá lugar quando a norma desaten dida, embora de natureza imperativa, tenha por fim prevalentemente o interesse da parte. Neste caso, o vício poderá ser sanado, mas, tendo em vista a natureza cogente da norma ofendida pelo ato viciado, o juiz deve rá ordenar de ofício o saneamento do vício. Tal seria o caso, por exemplo, da ilegitimidade processual motivada por falta de representação. O juiz, uma vez constatado o fato, não poderá tolerar o desrespeito à norma que impõe a representação regular dos incapazes, cabendo-lhe ordenar a necessária integração da capacidade processual, mesmo sem requeri mento da parte. Finalmente, o vício acarretará simples anulabilidade quando a ofensa se dê igualmente contra alguma norma que tutele inte resse privado da parte, porém, neste caso, regulado em preceito de natu reza dispositiva, a respeito do qual o interessado seja Itvre para transigir ou renunciar.

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Nos casos de nulidades relativas, o saneamento dependeria de provocação da parte, enquanto nas hipóteses de anulabilidade o saneamento se daria por simples inatividade ou omissão do interessado. Tal seria o caso da omissão da parte em suscitar oportunamente a exceção processual (arts. 304 e 305 do CPC).

Não se pode negar, evidentemente, que todas as tentativas feitas no sentido de conceituar e classificar os defeitos dos atos processuais são válidas e podem oferecer resultados apreciáveis, mas estão sem dúvida longe de solucionar, com a segurança que seria desejável, todos os problemas encontráveis na prática forense. Muitas vezes, uma determinada hipótese que, teoricamente, teria de ser classificada como uma dessas categorias de defeitos do ato processual, tem tratamento legislativo diverso. Em outros casos, como observa FÁBIO GOMES (Teoria gerai do processo civil, p. 228), um mesmo vício pode merecer um duplo tratamento legal, como sucede, por exemplo, com as hipóteses de incompetência territorial que, num primeiro momento, poderão configurar uma nulidade relativa, podendo o juiz, no primeiro ato que praticar na causa, recusar de ofício a competência; se não o fizer, no entanto, o vício passará a ser tratado como simples anulabilidade, dependente da provocação da parte e sanável por simples inatividade do interessado (cf. E. MONIZ DE ARAGÃO, Comentários..., p. 333).

Por outro lado, todo o sistema das nulidades dos atos processuais está dominado por um conjunto de princípios específicos e peculiares ao direito processual, de cuja observância resulta um certo relativismo de todas as regras sob as quais se pretenda classificar os defeitos dos atos processuais e suas consequências.

Assim, por exemplo, todo o sistema de nulidades está subordinado ao princípio da finalidade (art. 244 do CPC) do ato processual, ou princípio da instrumentalidade das formas, segundo o qual, quando a lei prescrever determinada forma, sem cominação de nulidade, o juiz deverá considerar válido o ato se, realizado por outro modo, haja ele alcançado a finalidade que a lei lhe atribuía.

A partir deste princípio, classificam-se as nulidades em cominadas e não-cominadas, das quais somente as primeiras impediriam a sanação do ato nulo, ou a relevação de seu defeito, enquanto as nulidades não-cominadas admitiriam sempre a consideração de validade do ato quando ele, sendo praticado de outro modo, tenha atingido sua finalidade. Mesmo que o ato deva ser considerado viciado de nulidade absoluta, se não houver cominação de nulidade é possível a sanação (PONTES DE MIRANDA, Comentários..., v. 3, p. 469; CINTRA-GRINOVER-DINAMARCO, ob. riu n. 203; FÁBIO GOMES. ob. cit.. p. 228). Mesmo este princípio fundamental, no entanto, não tem sido observado com o rigor que seria de se supor, pelos tribunais. A participação do Ministério Público, nos processos em que sua presença seja obrigatória, é imposta pelo Código com a cominação de nulidade (arts. 84 e 246 do CPC). No entanto, já não são raros os exemplos de

decisões nas quais os tribunais têm relevado este vício, declarando-o sanado pela intervenção do representante do Ministério Público somente em segunda instância, no curso do procedimento recursal. A aplicação rigorosa do princípio que preside as nulidades cominadas na verdade deveria impedir a sanação deste tipo de defeito do ato processual.

Na verdade, em direito processual civil, como observa ROSENBERG (Tratado..., § 74. II), os defeitos porventura existentes nos atos processuais jamais causarão nulidade absoluta e insanável, no sentido em que esta categoria é considerada em direito material, uma vez que, em processo, a sanação do ato nulo sempre será possível.

Outro princípio que domina todo o sistema das nulidades processuais é o chamado princípio do prejuízo, segundo o qual nenhuma nulidade será decretada se não houver prejuízo para a parte, decorrente do defeito do ato processual (arts. 249, § 1.°, e 250, parágrafo único, do CPC). Este princípio, em verdade, é apenas uma consequência, ou um reflexo, do princípio da finalidade, de que já tratamos (cf. FÁBIO GOMES, ob. cit., p. 230).

Aos anteriores, ainda se poderiam aduzir o denominado princípio do legítimo interesse e o princípio da preclusão. De conformidade com o primeiro, a decretação da nulidade não poderá ser requerida pela parte que lhe dera causa, ainda quando a lei haja prescrito determinada forma sob a cominação de nulidade (art. 243 do CPC). Do princípio de preclusão decorre a exigência de que a parte alegue a nulidade na primeira oportunidade em que lhe couber falar nos autos, sob pena de ficar-lhe preclusa a possibilidade de fazê-lo tardiamente (art. 245 do CPC).

O princípio da preclusão, todavia, não alcança as nulidades absolutas das quais o juiz poderia conhecer de ofício (art. 267, § 3.°, do CPC), nada impedindo, nestes casos, que a própria parte, que deixara de alegar oportunamente a existência da nulidade, o faça tardiamente. Contudo, nesta hipótese, a intervenção da parte corresponderia mais a uma colaboração sua do que propriamente a um pedido de decretação da nulidade.

7.8.3 Atos processuais inexistentes

O conceito de inexistência do ato jurídico, em voga no direito material, tem curso também em direito processual civil, onde uma parte considerável da doutrina o inclui como uma nova categoria de ato proces-

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suai viciado. Na verdade, é muito difícil admitir, dada a função preponderantemente instrumental da teoria das nulidades, a categoria dos atos inexistentes em processo civil. A rigor, nem se poderia incluí-los dentre os atos processuais, desde que a inexistência corresponderia a um não-ato, e não a um ato processual viciado.

O Código de Processo Civil refere-se a uma hipótese de ato inexistente, no art. 37, parágrafo único, ao prescrever que os atos praticados pelos advogados sem instrumento de mandato, quando o sejam para evitar o perecimento do direito de seu cliente, deverão ser ratificados pela oportuna exibição do respectivo instrumento de mandato, sob pena de serem "havidos por inexistentes".

O exemplo, todavia, revela a fragilidade da doutrina da inexistência. Se o ato pode ser ratificado é porque, na verdade, existira. Se não for ratificado, a inexistência decorrerá, a rigor, da circunstância de não haver a parte, através de procurador, praticado qualquer ato. Tem-se, portanto, de distinguir bem a inexistência do ato processual, como ocorre quando não tenha havido, por exemplo, citação alguma (J. J. CALMON DE PASSOS, Comentários ao Código de Processo Civil, v. 3, p. 250; E. MONIZ DE ARAGÃO, Comentários, v. 2, p. 357), da inexistência que decorre de se haver citado pessoa diversa daquela demandada.

A categoria dos atos inexistentes - no sentido que ao nullun (nenhum) dava o direito romano - foi uma criação da doutrina francesa do século XÍX, para explicar o matrimónio de pessoas do mesmo sexo que o Código Civil francês não mencionara como causa de nulidade do casamento (GEORGES LUTZESCO, ob. cit., p. 166). A necessidade de uma categoria similar, como observa JACQUES GHESTTN (ob. cit., v. 2, p. 631), surgiu em virtude de prestar-se, então, indiscu-tida homenagem à regra segundo a qual, "en matière de mariage, il n'y a pas de nullité sans texte"; e, como o Côde Civil não previa, dentre os casos de nulidade, o casamento entre pessoas do mesmo sexo, considerou ZACHAR1AE esta hipótese como um caso de inexistência do matrimónio. A partir daí, o conceito generalizou-se na doutrina francesa, sendo aceito primeiro por DEMOLOMBE e depois por LAURENT.

Não se pode. contudo, deixar de observar que, para a doutrina francesa, particularmente para LAURENT, os atos tidos por nulos seriam aqueles aptos a produzir efeitos até que uma sentença judiciai os desconstituísse (Príncipes de droit civil. t. II. p. 341). numa visível assimilação ao que hoje se considera nulidade absoluta e anulabilidade, a ponto de equiparar o jurista ambos os conceitos ('Ma doctrine é b l i d f i i f e les actes nuls, c'est~à-dire annulables, et ceux qui n'ont

pas d'existence aux yeux de Ia loi")- Apenas os atos inexistentes dispensariam uma demanda de nulidade, não os nulos ("c'est-à-dire annulables").

A teoria da inexistência, mesmo em direito material, não pode conviver com as concepções e exigências da vida moderna, onde a proteção da aparência tornou-se um imperativo jurídico, decorrente, precisamente, das circunstâncias e da própria natureza das novas relações jurídicas criadas pela sociedade urbana de massa, perante a qual, como disse uma eminente personalidade contemporânea, "para nós, a aparência - aquilo que é visto e ouvido pelos outros e por nós mesmos - constitui a realidade" (HANNAH ARENDT).

Qualquer que seja a importância do elemento de que um determinado contrato se ressinta, as declarações de vontade fazem nascer uma aparência que o direito deve destruir (J. GHESTIN, ob. cit., p. 633).

No campo do direito processual civil, não são menores, evidentemente, as dificuldades com que se defrontam aqueles escritores que pretendem definir os atos processuais inexistentes e distingui-los dos casos de nulidade absoluta. Em geral, os casos apontados como correspondendo a atos processuais inexistentes têm natureza extremamente duvidosa, podendo a maioria deles ser incluída na categoria dos atos absolutamente nulos, porém existentes (FÁBIO GOMES, ob. cit., p. 222).

Nosso entendimento a respeito dos chamados "atos processuais inexistentes" recebeu este comentário de J. C. BARBOSA MOREIRA: 'Ainda na doutrina pátria contemporânea, há quem resista à admissão dos atos processuais inexistentes, assim, v. g., OVÍDIO A. BAPTISTA DA SILVA, Curso de processo civil, v. l,p. 169-170, o qual chega a asseverar que 'a teoria da inexistência, mesmo em direito material, não pode conviver com as concepções e exigências da vida moderna"' (Temas de direito processual, 5." série, p. 80, nota 4). Para o escritor, "não fica excluído que algo exista, na acepção vulgar da palavra". Entretanto, "juridicamente", segundo uma "tradição já larguíssima", fala-se desse "algo" como de um ato inexistente. Como se vê, o jurista reconhece a intrínseca ambiguidade do conceito de inexistência, quando mostra que a "tradição larguíssima" apenas "fala" desse "algo" para considerá-lo inexistente.

O lugar não é apropriado para a discussão deste tema, de que tratamos em obra recente, a que tomamos a liberdade de remeter o leitor interessado (Jurisdição e execução..., 2. ed., especialmente Cap. 11). A matriz iluministaque ainda domina o pensamento jurídico moderno, especialmente no Brasil, esclarece a divergência de pontos de vista. Proporíamos apenas a substituição do advérbio "ainda" empre gado pelo escritor, tentando situar-nos numa posição conservadora, pelo advérbio "já", posto que não somos nós o representante de uma "tradição já larguíssima", que persevera em manter-se "absolutizada e deshistorizada". supondo que o processo possa conservar-se fora da realidade, vivendo de seus próprios conceitos, no encan- lado "mundo jurídico".

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Cabe, no entanto, um esclarecimento a respeito de nosso ponto de vista. Quando negamos a categoria dos "atos processuais inexistentes", tínhamos em mente a eventualidade de virem esses atos a produzir alguma consequência, a nosso ver, juridicamente relevante, caso em que não se poderia conceituá-los como inexistentes. Pode-se, sem dúvida, imaginar que o ato tido por inexistente não haja ainda produzido qualquer efeito, como se ciaria com a sentença eventualmente redigida pelo juiz substituto e não assinada, que permanecesse nos autos, sem que nada fosse feito em virtude dela. Retornando à jurisdição o juiz titular e verificando a omissão, é possível que simplesmente destruísse o documento, prolatando outra sentença. Estaríamos aqui, sem dúvida, em presença de uma inexistência. Se for isto o que a doutrina pretende significar quando conceitua o "ato processual inexistente", nada temos a objetar à correção do conceito.

Preocupa-nos, porém, o seguinte resultado a que seremos levados inevitavelmente pela teoria da "inexistência": Joaquim obtivera, contra o proprietário António, sentença favorável na ação de usucapião que propusera, visando ao reconhecimento do domínio sobre uma determinada gleba de terra. A sentença fora regularmente registrada no álbum imobiliário, permitindo que o titular da propriedade, reconhecida pela sentença, alienasse o imóvel a João, que, por sua vez, o vendeu a Paulo, que, vindo a falecer, o transmitiu a seu filho, Carlos. Este apressou-se a dá-lo em hipoteca ao banco para garantia de um financiamento agrícola. Descobriu-se, no entanto, passados mais de dois anos do registro da sentença, que o juiz inadvertidamente não a havia assinado, omissão esta que passara despercebida tanto dos servidores forenses quanto do registro de imóveis. Tratando-se, segundo a doutrina, de "ato inexistente", o demandado António, que fora titular do domínio desfeito pela sentença de usucapião, poderia reivindicar a propriedade do imóvel, sem a menor necessidade de desconstituir toda a cadeia de negócios jurídicos posteriores - posto que eles nem mesmo seriam jurídicos, mas apenas "vulgares" -, pela singela razão de que o ato inexistente nunca poderá produzir qualquer efeito, sequer a aparência de um direito. Se todos esses fenómenos só existiram "vulgarmente", não tendo entrado, por isso, no "mundo jurídico", não poderiam criar, aí, uma aparência de direito. Só o que existe no sentido jurídico, e não "vulgar", poderia criar "algo" juridicamente relevante. O inexistente naturalmente não poderá criar uma aparência de direito, até por uma impossibilidade semântica, pois aparência outra coisa não é senão o estado daquilo que aparece. Não se haverá de pretender, para transpor a fronteira dos "dois mundos" - o mundo aqui de baixo e o mundo dos conceitos, chamado "mundo jurídico" -. que o inexistente seja capaz de "aparecer".

8

DEMANDA CIVIL

SUMÁRIO: 8.1 Noções gerais - 8.2 O pedido e suas espécies: 8.2.1 Pedido genérico; 8.2.2 Pedido alternativo; 8.2.3 Cumulação alternativa eventual; 8.2,4 Cumulação simples; 8.2.5 Cumulação sucessiva eventual; 8.2.6 Pedido cominatório - 8.3 Da petição inicial.

8.1 Noções gerais

A atividade jurisdicional contenciosa, como se sabe, para ser exercida pelo Estado, necessita que o interessado a provoque. Não existe, no direito brasileiro e de um modo geral nos sistemas jurídicos ocidentais, exercício espontâneo de jurisdição contenciosa, por parte do Estado. Os interessados é que haverão de pedi-la ao órgão estatal encarregado de prestar este tipo de atividade. E a demanda vem a ser, precisamente, este pedido que a parte formula ao Estado, por meio do juiz, para que este lhe preste tutela jurisdicional.

Se o Estado só pode prestar aquele tipo de tutela jurisdicional que lhe foi pedida, é fácil compreender a importância teórica e prática da determinação do conceito de demanda. Se a atividade jurisdicional só se desenvolve quando provocada, se nosso direito não conhece casos de proteção estatal, por meio da jurisdição, aos eventuais direitos individuais senão quando o próprio titular a requeira, a demanda passa a ser o parâmetro, ou a baliza que define e limita a controvérsia sobre a qual o juiz pode e deve pronunciar-se. Ele terá de decidir a controvérsia (lide) que lhe é apresentada, respondendo ao pedido de tutela jurisdicional contido na demanda. A tal obrigou-se o Estado a partir do momento em

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que, proibindo a realização privada do direito, avocou a si o monopólio da jurisdição.

Todavia, se ele tem o dever institucional de decidir a lide, somente poderá decidir aquela lide que lhe foi apresentada pelos litigantes, não podendo ampliá-la de modo que a sentença venha a decidir mais do que fora pedido pelas partes.

Do princípio da rigorosa correspondência entre demanda e sentença, entre pedido e resposta, conhecido como princípio de congruência, decorrem três consequências importantes: a) se ao Estado é vedado intervir espontaneamente nas controvérsias privadas, como vimos, então haveremos de conceber a atividade judicial, najurisdição contenciosa, como uma função estatal inerte que só está autorizada a desenvolver-se e cumprir o seu papel quando provocada pelos interessados. Este princípio está expresso do seguinte modo por nosso Código de Processo Civil: "Art. 2.° Nenhum juiz prestará a tutela jurisdicionaí senão quando a parte ou o interessado a requerer, nos casos e formas legais"; b) a segunda consequência, que é um simples desdobramento da primeira, está contida no art. 128, que diz: "O juiz decidirá a lide nos limites em que foi proposta, sendo-lhe defeso conhecer de questões, não suscitadas, a cujo respeito a lei exige a iniciativa da parte". O legislador introduz, neste dispositivo, o conceito de questões, sobre o qual haveremos de retornar quando tratarmos da sentença e dos limites objetivos da coisa julgada; c) finalmente, o princípio da correspondência entre demanda e sentença determina outra consequência de extraordinária importância prática, segundo a qual, se a sentença deve decidir a lide toda, tal como ela foi posta em juízo pela parte, pouco importa a efetiva discussão que os litigantes hajam sustentado no processo, a respeito das questões daquela lide. Esta será posta em julgamento na exata medida em que a demanda a definiu. Tal o princípio expresso no art. 474 do CPC: "Passada em julgado a sentença de mérito, reputar-se-ão deduzidas e repelidas todas as alegações e defesas, que a parte poderia opor assim ao acolhimento como à rejeição do pedido". A sentença que julgar a lide, portanto, decidirá todas as questões que lhe são pertinentes, quer as partes tenham controvertido sobre todas as alegações e defesas possíveis, quer não o tenham.

Imaginemos uma controvérsia existente entre um suposto locador e um igualmente suposto locatário, a respeito de um contrato que, segundo se afirma, os vincula. Referimo-nos à controvérsia, aqui, como divergência ou discórdia existente entre ambos, durante a execução do contrato.

sem qualquer referência ainda às possíveis demandas que essa suposta relação locatícia poderia suscitar num determinado processo. Suponhamos, agora, que o locador afirme que o locatário infringiu uma determinada cláusula contratual que o obrigava a proceder, dentro de um certo tempo de vigência do contrato, à construção de um muro divisório e à remodelação do sistema de instalação elétrica e de água potável para o consumo doméstico, sendo que tanto a construção do muro era urgente para a conservação do imóvel, evitando que as águas pluviais o invadissem, quanto igualmente o era, para o inquilino, a restauração dos serviços de água e luz elétrica.

Imaginemos que tal "conflito de interesses", estabelecido entre um pretenso locador e um igualmente suposto locatário, tenha vindo ao processo por meio de uma demanda declaratória, através da qual uma das partes limite-se a pedir a declaração da existência da relação locatícia; ou então que o "conflito de interesses" aporte ao processo através de uma ação em que o pretenso locador peça que o juiz declare rescindido o contrato porque o inquilino o infringira, deixando de cumprir aquelas cláusulas que o obrigavam a proceder às reformas e construção aludidas; e, no mesmo processo, peça ele o despejo do inquilino, como decorrência da procedência da rescisão judicial do contrato.

Finalmente, imaginemos que o locador, nesta ação de despejo, embora sabendo da existência de três infrações contratuais cometidas pelo inquilino, apenas fundamente (causa petendi) sua demanda na alegação de haver o réu descumprido o contrato na parte em que este o obrigava a construir o muro divisório, silenciando a respeito das demais infrações constantes da mesma cláusula contratual. E fácil constatar que cada uma dessas demandas terá as suas respectivas "questões" cujo conhecimento e decisão estarão confiadas ao julgador, quer as partes as tenham expressamente invocado e discutido nos autos, quer não as tenham. Se o locador, podendo alegar as duas infrações contratuais cometidas pelo inquilino contra uma única cláusula do contrato, apenas menciona uma delas, como fundamento para o despejo, segundo o art. 474 do CPC também o fundamento que a parte poderia alegar para o acolhimento da ação, e não alegou, ter-se-á como apreciado pela sentença.

Cada demanda, portanto, terá as suas "questões litigiosas", e o conjunto delas formará o que se denomina causa petendi. ou causa de pedir, que, juntamente com o pedido, irá defini-la.

A demanda deve ser identificada pelo respectivo pedido formulado peio autor e também pelos "fatos e fundamentos jurídicos" que qualifi-

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cam e substanciam o pedido (art. 282, III, do CPC). O conjunto dos fatos relevantes e dos fundamentos jurídicos constituem a causa de pedir (causa petendi). O autor - diz GIANC ARLO GIANNOZZI (Appunti per un corso di diritto processuale civile, p. 47) - deve precisar que coisa pretende e por que a pretende. Não seria admissível que o autor formulasse a demanda por meio de um pedido completamente indeterminado, como, por exemplo, se ele pedisse que o juiz condenasse o réu a restituir-lhe um objeto qualquer sem mencionar o fundamento jurídico para tal pedido de restituição. Todo pedido deve estar necessariamente substanciado em fatos capazes de o individualizar, indicando o fundamento legal em que o mesmo se apoia. Neste caso, o autor poderia pedir a restituição do imóvel por inúmeras razões: poderia fazê-lo alegando que o réu fora seu inquilino e o respectivo contrato locatício findara, recusando-se o inquilino a restituir-lhe o prédio; ou então demandar a restituição do imóvel porque o réu o esbulhara em sua posse; ou porque, sendo ele proprietário do prédio, o réu o possui injustamente; ou ainda porque o autor lho cedera gratuitamente em comodato, recusando-se o comodatário (réu) a restituí-lo.

Certamente não seria suficiente que o autor apenas formulasse o pedido de entrega do imóvel e que o juiz condenasse o demandado a entregá-lo, sem indicar o fundamento jurídico em que tal pretensão se apoiasse. Ela terá de ser substanciada em fatos e o autor deverá, além disso, indicar a causa legitimadora de sua pretensão. Se o pedido de entrega do imóvel se fizesse com base num contrato de locação» a demanda seria a de despejo; se, ao contrário, o autor a sustentasse na alegação de ser ele proprietário do imóvel injustamente possuído pelo réu, pretendendo obter sua restituição fundado no direito de propriedade, a ação seria a reivindicatória (art. 524 do CC, correspondente ao art. 1.228 do novo CC); finalmente, se o pedido se fundasse em recusa do comodatário em devolver o imóvel, a demanda seria outra, porque a respectiva causa petendi novamente teria mudado; e, mudando um dos elementos estruturais da demanda, ela própria se transformaria.

8.2 O pedido e suas espécies

O pedido, diz o art, 286 do CPC, deve ser certo e determinado. Não se admite, evidentemente, que o autor formule o pedido de forma dubitativa ou incerta, ou que simplesmente exponha os fatos e fundamentos jurídicos de sua ação e deixe ao juiz a tarefa de determinar ou extrair

deles o pedido que não fora formulado. Assim como o pedido sem fatos e fundamentos jurídicos que o substanciem seria inidôneo para legitimar a demanda judicial, igualmente os simples fatos e fundamentos jurídicos (causa petendi) sem pedido conduziriam a uma hipótese de petição inicial inepta. Tal seria o caso se o autor, descrevendo adequadamente os fatos e os fundamentos jurídicos de sua ação, concluísse a petição inicial pedindo que o juiz determinasse *'o que fosse de direito" ou, como em certas circunstâncias se observa, "o que fosse cabível". Naturalmente, esperar que o juiz descubra, ou formule, o pedido que ao autor competia fazer, em verdade, é nada pedir. E, como vimos, o juiz só deve prover nos estritos limites do pedido que o autor lhe fizer. Se este for obscuro e incongruente, a petição inicial deverá ser rejeitada por inepta (art. 295,1, do CPC). O que se dispensa é a indicação do artigo de lei em que o autor pretende fundamentar a demanda.

Jamais poderá haver pedido incerto. Dispondo o art. 286 que o pedido há de ser sempre certo e determinado, abre, contudo, três exce-ções a este princípio, admitindo o que se denomina pedido genérico. Este, no entanto, embora genérico, não deixa de ser certo e determinado. O que a lei permite é que o chamado pedido mediato, ou o objeto mediato do pedido (J. C. BARBOSA MOREIRA, O novo processo civil brasileiro, p. 13), seja genérico.

8.2.1 Pedido genérico

Segundo dispõe o art. 286 do CPC, admitem-se fórmulas de pedido genérico nas seguintes hipóteses: 1) quando, nas chamadas ações universais, o autor não puder individualizar na petição os bens que compõem universalidade demandada. Assim, por exemplo, poderá o autor intentar uma ação de petição de herança pedindo simplesmente que o juiz condene o réu a restituir-lhe os bens que compõem o acervo hereditário sem que, na petição inicial, seja necessária a descrição de cada um desses bens. Assim também, se a demanda versar sobre uma universalidade de fato (unive rsitas facti), como, por exemplo, um rebanho, não será necessário, nem seria exigível, que o autor descrevesse na petição inicial, um por um, todos os animais que o compõem; 2) quando ao autor seja impossível, no momento de redigir a petição inicial, determinar, de modo definitivo, as consequências do ato ou fato ilícito. Realmente, é comum que o fato atribuído ao réu, ou por cujas consequências ele seja juridicamente responsável, continue a produzir efei-

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tos lesivos aos interesses do autor, mesmo depois de ajuizada a ação. Em tais casos, o pedido diz-se genérico apenas porque ao pedido determinado que a petição inicial contiver se haverão de somar valores decorrentes das consequências posteriores do ato ou fato ilícito em que a demanda se fundar; 3) finalmente, tem-se também por genérico o pedido quando a determinação do valor da condenação depender de ato que deva ser praticado pelo réu, como acontece na ação de prestação de contas (art. 915 do CPC), por exemplo, onde o autor se limita a pedir a prestação de contas, sem determinar o conteúdo delas, uma vez que isto lhe seria impossível. A demanda, porém, terá necessariamente um pedido certo, qual seja a condenação do réu a prestar contas, e, havendo saldo credor a favor do autor, que o réu seja condenado no mesmo processo a pagar este saldo devedor. O valor do saldo eventual - que pode ser inclusive em favor do réu - é que permanece indeterminado, justificando a inclusão da espécie dentre os pedidos genéricos.

8.2.2 Pedido alternativo

A demanda poderá conter um pedido alternativo. Diz o art. 288 do CPC: "O pedido será alternativo, quando, pela natureza da obrigação, o devedor puder cumprir a prestação de mais de um modo". O pedido alternativo corresponde a uma obrigação alternativa (arts. 884-888 do CC; arts. 252-256 do novo CC). Se ao devedor couber a escolha do modo pelo qual ele cumprirá a prestação, o autor deverá, na petição inicial, conceber o pedido de modo que fique assegurado ao réu esta faculdade de escolha. E, mesmo que o autor não o faça, deverá o próprio juiz assegurar ao demandado a possibilidade de valer-se da alternativa que a relação de direito material lhe assegura.

Se existe, no caso, uma obrigação alternativa, mas a escolha pertence ao autor, não haverá então pedido alternativo, uma vez que o próprio autor, ao formular o pedido, terá optado pela alternativa desejada (MOA-CYR AMARAL SANTOS, Primeiras linhas..., v. 2, § 418).

8.2.3 Cumulação alternativa eventual

Não se deve, porém, confundir pedido alternativo, correspondente às obrigações alternativas, com pedidos alternativos cumulados: naquele, a demanda é uma só, um só o pedido; neste, estamos em presença não de uma, mas de duas ou mais demandas cumuladas. A cumulação

dos pedidos é que se reveste de um sentido de alternatividade. É o que acontece nas hipóteses previstas pelo art. 289 do CPC, que dispõe: "E lícito formular mais de um pedido em ordem sucessiva, a fim de que o juiz conheça do posterior, em não podendo acolher o anterior". Ora, se a lei declara lícita a formulação de "mais de um pedido", está a indicar que se trata de mais de uma demanda, pois, como vimos, a cada pedido há de corresponder uma lide. Nâo há, portanto, aqui, como na espécie anterior, apenas uma, mas duas demandas, sendo que a segunda é proposta para o caso de ser inviável a primeira. Neste caso, os pedidos podem, até mesmo, ser entre si incompatíveis, como quando o autor pede a anulação do contrato ou, sendo tal demanda julgada improcedente, que o juiz decrete sua rescisão ou, até mesmo, que condene o réu a satisfazer o cumprimento de alguma de suas cláusulas. Está claro que os pedidos posteriores, alternativamente cumulados, são incompatíveis com o pedido antecedente, pois tanto a rescisão quanto o cumprimento do contrato o pressupõem válido, ao passo que o pedido principal alegara sua nulidade.

Neste caso terá havido, é verdade, cumulação, mas apenas eventual, daí dizer-se que esta espécie corresponde a uma cumulação alternativa eventual.

O art. 289 alude à circunstância de não poder o juiz "acolher" o anterior, como pressuposto para que o pedido posterior, alternativamente cumulado, possa ser conhecido. Se o juiz constatar a ausência ou a insuficiência de algum pressuposto processual que diga respeito ao pedido principal, de modo que lhe seja impossível apreciar o mérito da demanda, esta circunstância ainda não autorizaria a que ele passasse a "conhecer" do pedido posterior. Todavia, qual haverá de ser a solução se o magistrado declarar a "carência" da ação principal? Neste caso, está legitimado o conhecimento da ação posterior, devendo-se entender que a decisão que declarar a ausência de uma das "condições da ação", em verdade, "desacolhe" o pedido.

8.2.4 Cumulação simples

Enquanto na chamada cumulação alternativa eventual o autor, embora cumulando os dois pedidos, apenas pretende a procedência de um deles, na cumulação simples somam-se os dois pedidos, uma vez que a pretensão do autor é obter o duplo resultado, representado pelos pedidos cumulados. Este é o tipo mais comum de cumulação e em sua estru-

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tura não há qualquer preordenação lógica entre os vários pedidos. Teremos um caso de cumulação simples quando o autor propuser uma ação de cobrança de um mútuo e, na mesma petição inicial, pedir também a condenação do réu ao pagamento, por exemplo, de um crédito proveniente de prestação de serviço de que ele seja credor junto ao réu. Neste caso, os dois pedidos estão reunidos apenas formalmente no processo, sem que exista entre eles qualquer vínculo de conexidade de modo a que a decisão sobre um deles possa influir na decisão a ser tomada sobre o outro. A procedência ou a improcedência de um deles não terá qualquer repercussão sobre a procedência ou improcedência do outro (J. J. CAL-MON DE PASSOS, Comentários..., v. 3, § 108).

8.2.5 Cumulação sucessiva eventual

Dá-se cumulação sucessiva eventual quando o pedido formulado em segundo lugar só puder ser apreciado no caso de ser procedente o primeiro. Aqui ocorre o contrário daquilo que se observa na cumulação alternativa eventual: enquanto esta supõe a rejeição do pedido principal, como requisito para que o juiz possa conhecer do pedido posterior, a cumulação sucessiva eventual exige justamente o contrário, ou seja, que o pedido anterior seja julgado procedente para que se torne possível o conhecimento do pedido subsequente. São exemplos desta espécie a ação de perdas e danos cumulada à ação de reintegração de posse, ou à ação reivindicatória, ou a uma ação de rescisão do contrato. A ação indeniza-tória, em tais casos, só poderá ser apreciada se a primeira demanda for procedente. A procedência da demanda principal, no entanto, não condiciona o êxito da demanda cumulada - ainda que a ação principal seja declarada procedente, poderá ser improcedente a demanda cumulada. Mas a improcedência da anterior acarreta a automática improcedência da demanda posterior.

A ação de petição de herança cumulada à investigação de paternidade é um exemplo clássico de cumulação sucessiva eventual. O reconhecimento da procedência da ação de investigação de paternidade é o pressuposto para que a petição de herança seja apreciada.

Uma hipótese de cumulação, em certo sentido intermediário entre essas duas espécies que acabam de ser examinadas, é aquela que se dá quando o autor pede a condenação in natura e, sendo esta impossível, por se haver perdido o objeto sobre o qual incidiria a pretensão do autor, como acontece, por exemplo,

quando o réu não mais possua a coisa reclamada na ação, de modo que se torne inviável a execução in natura, pede ele a condenação do demandado em perdas e danos. Aqui, em verdade, não há cumulação de dois pedidos, posto que o segundo é apenas a expressão monetária do primeiro, suposto procedente. Poder-se-ia dizer que existe, neste caso, uma cumulação alternativa eventual que, ao contrário da verdadeira, supõe a procedência do pedido principal que o pedido cumulado apenas substitui.

Poderá, na prática, ocorrer casos de extrema complexidade que dificultem a análise e a determinação da existência de uma verdadeira cumulação de pedidos. Por exemplo, se peço, numa ação de despejo, que o juiz decrete a rescisão do contrato de locação e, em consequência, decrete igualmente o despejo, não obstante a existência de dois pedidos, não estarei a cumular duas demandas, entendendo-se que a rescisão do contrato é apenas fundamento, ou causa petendi, para o despejo, e não um pedido formador de outra demanda cumulada. A rescisão do contrato, no caso, é apenas uma "questão" da lide proposta, que é o despejo. No entanto, não seria impossível demandar-se apenas a declaração de que o contrato de locação fora rescindido, quando tal rescisão estivesse prevista no contrato como consequência automática de seu descumprimento pelo inquilino, pois, caso não houvesse tal cláusula de "rescisão de pleno direito" do contrato, igualmente poderia o locador propor apenas uma ação de rescisão do contrato locatício, sem pedir cumulativamente o despejo. Tal ocorrência, porém, é extremamente rara e excepcional, pois seria impossível descobrir uma hipótese em que o locador tivesse interesse processual limitado à desconstituição do contrato sem que pretendesse também a recuperação da posse da coisa locada.

E uma questão tormentosa determinar se o pedido de declaração da relação jurídica dominial, formulado numa ação de reivindicação, caracteriza ou não uma cumulação de demandas; ou se, como no exemplo anterior, o pressuposto de procedência da reivindicatória, que é a condição de ser o reivindicante proprietário (a juízo declaratório), seria apenas causa petendi da ação pela qual se pede a restituição da coisa; ou, ao contrário, poderia haver, em certas circunstâncias, ações reivin-dicatórias que, mesmo quando julgadas procedentes, não produzissem coisajulgada sobre a propriedade, caso em que o pedido de declaração do domínio não mais seria "questão" da lide reivindicatória, e sim um pedido novo formador de uma ação declaratória cumulada. Em síntese, a questão resume-se em saber se poderia haver uma ação reivindicatória que, mesmo julgada procedente, não tivesse, como pressuposto lógico, a declaração - capaz de produzir coisajulgada material - de ser o reivindicante proprietário (sobre isto, PONTES DE MIRANDA, Tratado de direito privado, t. XIV, § 1.573, p. 6; e J. I. BOTELHO DE MESQUITA, A causa petendi nas ações reivindicatórias, RDPC, v. 6, p. 183).

Outra categoria importante de cumulações sucessivas eventuais é a representada pelas pretensões de restituição da posse das coisas que tenham sido objeto de alguma relação jurídica anulada, ou rescindida. Proposta a ação de nulidade

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ou de anulação, ou revogação, ou rescisão do ato ou negócio jurídico, haverá de cumular-se a tais pedidos o de imissão na posse da coisa a ser restituída ao autor vitorioso na ação constitutiva, que por si só não teria eficácia executiva capaz de operar a transferência do bem da posse do demandado para a posse do autor (cf. nossaA ação de imissão de posse..., 2. ed., p. 216, e supra, quando tratamos das ações constitutivas).

É verdade que o art. 158doCC(art. 182 do novo CC), ao tratar das ações de anulação - conceito que aí deve compreender tanto a anulação stricto sensu quanto as ações de nulidade e as de rescisão e revogação -, prescreve que as partes deverão ser restituídas ao estado "em que antes (...) se achavam" uma vez desfeito o ato ou negócio jurídico. Tal preceito poderia induzirá conclusão de que as ações constitutivas negativas, por meio das quais se obtenha a desconstituição de algum ato ou negócio jurídico, tenham eficácia executiva inclusa, capaz de dispensar a cumulação da ação por meio da qual se peça também a restituição da posse da coisa objeto do ato ou contrato desfeito.

Não cremos, todavia, que tal raciocínio seja correto. Nem sempre estas ações implicam um pedido simultâneo de restituição de posse. Pode muito bem ocorrer que o autor ajuíze a ação constitutiva negativa estando na posse da coisa objeto do ato ou negócio jurídico a ser desfeito. Isto permite afirmar que a "restituição" a que se refere o art. 158 (art. 182 do novo CC) nada tem a ver com a restituição da posse, significando retorno ao statu quo ante apenas do ponto de vista jurídico, e não necessariamente fático. PONTES DE MIRANDA não é suficientemente claro a respeito. Referindo-se à ação de nulidade do contrato de compra e venda, afirma que a sentença de procedência "somente desconstitui o contrato", sendo vedado ao juiz determinar a volta da coisa entregue "sem ter sido pedida" (Tratado de direito privado, t. IV, § 369, p. 5). É a mesma a conclusão no que respeita às ações de resolução de contratos bilaterais (ob. cit., § 424, p. 13) e às ações de anulação por fraude (§ 424, p. 14). Tratando da ação de anulação por dolo, no entanto, escreve: "A restituição pode ser determinada na sentença que decreta a anulação; e entende-se pedida, se foi referido o adimplemento como já acontecido ao tempo da petição" (ob. cit., § 455, p. 6). Nesta hipótese, segundo o jurista, a simples menção, na petição inicial, à circunstância de haver o autor adimplido a obrigação de transferir a posse significaria "pedido implícito" de restituição.

8.2.6 Pedido cominatório

Em certos casos, há necessidade de cominar-se alguma pena ou determinada consequência desfavorável ao réu, para o caso de, sendo ele condenado, mesmo assim persistir no não cumprimento da obrigação reconhecida pela sentença. O campo natural dos pedidos cominatórios é

o das obrigações de fazer infungíveis. Para estas, precisamente em virtude de sua infungibilidade, a ordem jurídica não dispõe de meios através dos quais possa dar ao credor algum substitutivo jurisdicional, capaz de vencer a resistência do réu condenado e, mesmo sem a sua colaboração, como é da essência da função jurisdicional executória, satisfazer a pretensão do demandante, reconhecida legítima pela sentença.

Sempre que o devedor for condenado a prestar alguma atividade, ou qualquer prestação infungível, que não possam ser realizadas por ou-trem, a jurisdição serve-se da técnica da cominação, colocando o condenado frente à seguinte alternativa: ou presta o fato, ou sofre a pena cominada para a desobediência. Imaginemos que a obrigação consista na elaboração de uma obra de arte. Neste caso, evidentemente, a execução jurisdicional jamais poderia conseguir o mesmo resultado previsto no contrato, se o réu, mesmo condenado, se recusasse a produzir a obra que apenas ele poderia realizar. Assim, se o obrigado, depois da sentença condenatória, negar-se a cumprir a condenação, não restará outro recurso senão impor-lhe uma pena capaz de exercer sobre sua vontade uma coerção psicológica consistente numa ameaça (comminatio), geralmente de natureza pecuniária, a que ele ficará submetido enquanto não cumprir a obrigação in natura.

Se a obrigação de fazer for fungível, ou seja, se ela puder ser executada por terceiro, então a execução in natura também será possível e poder-se-á dispensar a cominação pecuniária (art. 634 do CPC).

O art. 287 do CPC prevê a possibilidade de o autor formular o pedido cominatório: "Se o autor pedir a condenação do réu a abster-se da prática de algum ato, a tolerar alguma atividade, ou a prestar fato que não possa ser realizado por terceiro, constará da petição inicial a cominação da pena pecuniária para o caso de descumprimento da sentença" (este artigo teve sua redação modificada pela Lei 10.444, de 7 de maio de 2002).

Se a obrigação, portanto, for constituída por alguma prestação de fazer ou não fazer infungível, o autor deverá conceber o pedido sob forma cominatória. Em nosso exemplo, o autor deverá pedir que o juiz condene o réu a produzir a obra dè arte a que se obrigou (escrever um livro, ou uma partitura musical, ou qualquer outra), sob pena de pagar diariamente, ou por qualquer outra forma, mediante prestação periódica ou não. uma multa que o próprio autor indicará na petição inicial e que o juiz deverá

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fixar na sentença, no valor indicado pelo autor, ou em valor que lhe pareça mais adequado.

Há quem diga, inclusive MOACYR AMARAL SANTOS (Primeiras linhas..., § 422), autor de uma excelente monografia sobre ações cominatórias, que o Código de 1973, em seu art. 287, teria tratado das "ações cominatórias". A afirmação, porém, é incorreta. A que aí se prevê não tem nada a ver com a nossa antiga ação cominatória, ou ação de "embargos à primeira" do direito Iuso-brasileiro. Trata-se de uma ação ordinária ou especial com sentença (decisão) liminar condenatória, que a contestação fazia desaparecer, mas a procedência final da demanda a restaurava, de modo que a cominação tinha eficácia desde seu deferimento liminar. No caso do art. 287, a cominação é pedida para que conste da sentença final, a ser prolatada em procedimento ordinário ou sumário, portanto sem liminar.

8.3 Da petição inicial

No direito processual civil brasileiro, toda demanda inicia-se por meio de um requerimento escrito formulado pelo autor e dirigido à autoridade judiciária competente, denominado petição inicial. Dela trata o art. 282 do CPC, indicando os requisitos que a deverão compor. São eles:

I - o juiz ou tribunal, a que é dirigida a ação. Havendo dois ou mais juizes simultaneamente competentes para processar, ou para processar e julgar a causa, como ocorre nas comarcas que contenham diversas varas especializadas para um mesmo tipo de demanda, basta que o autor as refira genericamente (vara cível ou vara de família etc.), pois a fixação daquela que venha a ser a competente dar-se-á por distribuição (art. 251 do CPC).

II - qualificação das partes, compreendendo os nomes, prenomes, estado civil, profissão, domicílio e residência tanto do autor quanto do réu. O art. 282 não exige expressamente a indicação da nacionalidade das partes, mas este requisito é não só comum na prática forense como, em certos casos, até obrigatório e necessário.

III - o fato e os fundamentos jurídicos do pedido. Trata-se do que se denomina, tecnicamente, causa petendi da ação. Como vimos ao tratar do pedido, não basta que o autor, ao redigir sua petição inicial, peça ao magistrado a consequência jurídica pretendida. E necessário alicerçá-la em fatos e fundamentos jurídicos de que decorram as con-

sequências que o autor pretende obter. Se pretendo obter a restituição da posse de alguma coisa, devo descrever os atos e os fundamentos jurídicos que me darão direito a tal restituição, afirmando, por exemplo, que o réu a está possuindo injustamente, seja porque cometeu esbulho possessório, arrebatando-me violentamente a coisa, seja porque, tendo me vendido determinado bem, recusa-se a me transferir a respectiva posse; finalmente, porque, havendo terminado o contrato de locação, recusa-se o locatário a restituir-me o prédio locado. Serão tais fatos e os fundamentos jurídicos que deles decorrem, segundo a lei, que irão individualizar, juntamente com o pedido, a respectiva ação de direito material contida na petição inicial.

Às vezes pode acontecer que os fatos descritos autorizem mais de um pedido, como, por exemplo, acontece na hipótese de esbulho possessório. Do conjunto de fatos que o caracterizam posso extrair duas consequências jurídicas: a) o pedido de proteção da posse propriamente dito, com a restituição da coisa de que fora esbulhado ao meu poder; e b) a condenação do esbulhador a indenizar-me dos prejuízos correspondentes. Neste caso, como já vimos, terá lugar uma cumulação de ações.

IV - o pedido com suas especificações. Todo pedido contém, sob o ponto de vista técnico, o que se denomina pedido imediato, que é o tipo de provimento judicial que se pretende, e o chamado pedido mediato, que é propriamente a coisa que se procura obter com a demanda. Por exem plo, numa ação de despejo, o pedido imediato corresponde a uma senten ça executiva, por meio da qual o juiz ordene que o despejo se faça. O pedido mediato é a restituição da posse do imóvel locado. Se, por exem plo, declaro ter sofrido um dano económico, em virtude de ação culposa do réu, afirmando que isto dar-me-ia direito de pedir indenização, deve rei ainda especificar o tipo preciso de provimento judicial que pretendo obter no processo, pois tanto poderia limitar meu pedido imediato a uma sentença meramente declaratória quanto promover desde logo uma ação para obter a condenação do réu a indenizar-me.

V - o valor da causa. A lei exige que todas as ações tenham seu respectivo valor determinado na petição inicial. São inúmeras as conse quências que decorrem do valor económico de uma determinada deman da. Em certos casos, a competência do juízo pode determinar-se segundo o valor da causa; é com base nele também que se calculam as custas e a taxa judiciária devida à Fazenda Pública; pode, igualmente, o valor da

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causa determinar a forma do procedimento: as causas cujo valor não exceder sessenta vezes o salário mínimo serão processadas pelo rito do procedimento sumário; ou, na forma do art. 3.° da Lei 9.099, de 26 de setembro de 1995 (Lei dos Juizados Especiais), poderá a demanda ser proposta por esta jurisdição especial, se o valor não exceder quarenta vezes o salário mínimo.

Os critérios a serem adotados para determinação do valor da causa constam do art. 259 do CPC.

VI — as provas com que o autor pretende demonstrar a verdade dos fatos alegados. Segundo o art. 282, o autor deverá, na petição ini cial, indicar as provas com que pretende demonstrar a veracidade dos fatos alegados. Isto significa que o autor deve requerer a admissão das provas que pretenda produzir. Tratando-se de prova documental, não bastará a simples indicação: é mister que o documento acompanhe a petição inicial, salvo motivo de força maior. Tratando-se de provas técnicas, tais como exames periciais, arbitramentos e vistorias, é neces sário que o autor especifique, na petição inicial, o objeto e os motivos pelos quais pretende este tipo de prova, sob pena de o juiz não ter elementos que o capacitem a avaliar o seu cabimento ou a sua relevân cia para a causa.

VII - requerimento para citação do réu. O pedido expresso de citação do demandado para que o mesmo conteste, se quiser, a ação e a acompanhe, até a decisão final e sua eventual execução, se for o caso, é exigência legal absoluta. A petição que não contiver o requerimento de citação deverá ser suprida dessa omissão (art. 284), sob pena de ser inde ferida, como acontecerá, de resto, com os defeitos e irregularidades por ventura verificados com os demais requisitos da petição inicial.

Os requisitos da petição inicial constantes do art. 282 valem não só para o "processo de conhecimento", mas, com as necessárias adaptações, igualmente para o processo de execução do Livro II do Código e para o processo cautelar.

SUJEITOS DA RELAÇÃO PROCESSUAL - AS PARTES

SUMÁRIO: 9.1 Conceito de parte - 9.2 Capacidade processual das partes - 9.3 Capacidade postulatória.

9.1 Conceito de parte

O conceito de parte é da maior importância para a solução de inúmeros problemas de natureza processual. O Código de Processo Civil vale-se inúmeras vezes deste conceito, por exemplo, no art. 13, quando trata da incapacidade processual das partes; no art. 14, ao indicar os deveres atribuídos às partes e a seus procuradores; no art. 125,1, para dispor que o juiz assegurará às partes igualdade de tratamento; ou, ainda, quando define, no art. 104, a continência entre causas, dispondo que a identidade quanto às partes e à causa de pedir determina essa continência de causas, se o objeto de uma for mais amplo do que o da outra; ou quando declara, no art. 472, que a sentença faz coisa julgada às partes entre as quais é dada, não beneficiando nem prejudicando terceiros.

O que, todavia, deve ser logo estabelecido, quando se busca determinar o conceito de parte, é que se está a tratar de um conceito eminentemente processual. É um conceito técnico empregado pela ciência do processo para definir um fenómeno processual. Disso resulta ser impróprio tratar questões de direito material empregando-se, inadequadamente, o" conceito de parte.

Não é fácil, porém, a determinação de um conceito de parte, mesmo no campo do direito processual, com a desejável precisão e clareza. Parte, em verdade, é um conceito ambíguo, sob o ponto de vista semântico, uma vez que pode significar, ao mesmo tempo, a porção, o quinhão integrante de um todo maior, e também indicar aquele que

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parti-cipay toma parte, e que, embora não correspondendo a uma porção do todo a que assiste, nele se integra, como assistente. Ora, a doutrina e seguidamente a própria lei usam indiscriminadamente o conceito de parte nestes dois sentidos.

Se tomarmos a ideia de litígio como um conflito de interesses, tal como ele vem descrito na petição inicial de uma determinada demanda, podemos dizer que a lide terá partes para significar que, sendo tal conflito uma unidade processual, algo inteiro e completo, os sujeitos em conflito serão uma porção dele, na medida em que, pelo antagonismo em que os mesmos se encontram em relação à controvérsia, sua própria posição de contraste afinal define o conflito. Aqui temos o sentido original de parte, como a fração formadora do todo, como as porções resultantes do todo que se partira.

Todavia,.alguém que não esteja envolvido no conflito, como um elemento de sua própria existência, alguém que não esteja dentro do conflito, poderá, e seguidamente isto acontece, dele participar, tomando parte, agora já não no sentido antes indicado de ser o participante de uma fração formadora do conflito, mas simplesmente porque - podendo a solução judicial que se der ao conflito alheio indiretamente atingi-lo — terá essa pessoa, originariamente estranha ao litígio, nele se envolvido, para auxiliar uma das partes.

Muitos processualistas, como é o caso de CARNELUTTI (Sistema..., v. 1, p. 36 e ss.), empregam um conceito de parte em sentido formal, para indicar as posições dos sujeitos do processo, distinguindo-os das partes em sentido substancial, que seriam os sujeitos da lide. Esta concepção é errónea, uma vez que não pode haver, por definição, uma lide diversa daquela descrita pela parte em sua petição inicial. Como a lide será, necessariamente, o conflito narrado pelo autor em seu pedido de tutela jurídica, partes da lide serão sempre as mesmas partes do processo.

É necessário, todavia, estarmos atentos, porque o legislador brasileiro, frequentemente, seja por convicção ou por conveniência, refere-se aos terceiros que ingressam no processo, sem integrar a lide, como se eles fossçmpartes secundárias ou acessórias, ou, simplesmente, partes em sentido formal.

Na verdade, apenas as pessoas que tomam parte no processo, como elementos componentes do litígio, deverão ser designadas como par-

tes, reservando-se para os demais figurantes da relação processual, que, embora não integrando a lide, participem também do processo, a denominação de terceiros. Assim, numa ação de despejo, promovida pelo locador contra seu inquilino, ambos serão partes do litígio, uma vez que as questões litigiosas debatidas na causa e decididas pela sentença referem-se a uma relação jurídica formada por ambos, cuja disciplina legal será regulada pela sentença. Se, no entanto, algum sublocatário for admitido no processo, porque a futura sentença, que porventura rescinda o contrato de locação e decrete o despejo, extinguira também esta outra relação contratual não litigiosa de sublocação, expondo o subinquilino ao risco de ver-se obrigado a desocupar igualmente o prédio, mesmo assim ele não passará a integrar a relação litigiosa - única existente - entre locador e sublocador. Vê-se aqui, com bastante nitidez, que o sublocatário, ao ingressar no processo, toma-se dele participante, porém não participa da lide; faz parte do processo, sem fazer parte da controvérsia, pois, quanto a esta, apenas assiste, colabora, auxilia a parte com que, no plano do direito material, alega manter relação jurídica, no caso o sublocador.

É comum, na literatura processual, designarem-se partes principais às verdadeiras partes, atribuindo-se a denominação de partes secundárias, ou partes em sentido formal, aos terceiros intervenientes. Outros preferem, como já referimos, indicá-las como partes do processo, reservando às verdadeiras partes a designação de partes da lide, de tal modo que estas figurariam no processo e no litígio que o processo contém.

Tais designações podem ser usadas sem inconveniência, desde que não se extrapole para além da relação processual o conceito de parte, que é e deve ser rigorosamente processual. A pessoa que não é participante da causa nunca poderá ser considerada parte, nem do processo nem da lide, que é o conflito de interesses descrito na petição inicial e tratado pela sentença. Os fatos, as circunstâncias, os acontecimentos e as relações jurídicas que ficaram fora da demanda ficaram igualmente fora da lide e, para o processo, simplesmente não existem, porque não existem para o juiz que haverá de julgá-la, enquanto juiz.

Que uma pessoa seja parte numa lide, ou seja terceiro, como observa CHIOVENDA (Instituições..., v. 2, p. 233), é da maior importância, pois só as partes serão atingidas pela coisa julgada, nunca os terceiros, mesmo que hajam participado da relação processual, intervindo na causa. Daí porque, para estudar o alcance da coisa julgada, quanto às pessoas eventualmente atingidas pela sentença, é fundamen-

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tal que se saiba quais sejam, naquela relação processual decidida pela sentença, as verdadeiras partes e quais não o sejam, apesar de presentes na causa, como intervenientes.

Partindo da premissa de que o conceito de parte refere-se sempre a uma situação processual, CHIOVENDA a define assim: "Parte é aquele que demanda em seu próprio nome (ou em cujo nome é demandada) a atuação duma vontade da lei, e aquele em face de quem essa atuação é demandada" {Instituições..., v. 2, p. 234). Parte, portanto, segundo este conceito, será aquele que pede (autor) para si alguma providência judicial, capaz de corresponder ao que CHIOVENDA denomina um "bem da vida", e aquele contra quem se pede esta providência (réu).

ROSENBERG {Tratado..., v. 1, § 39, I, 1) define parte com um conceito semelhante: "Partes no processo civil são aquelas que solicitam e contra as quais se solicita, em nome próprio, a tutela estatal, em particular a sentença e a execução forçada". Apesar da aparente clareza do conceito, convém observar que o fato de solicitar, em nome próprio, a tutela estatal, por si só, ainda seria insuficiente para a completa determinação do conceito de parte, pois os terceiros que intervêm no processo, por serem os titulares de alguma relação jurídica apenas conexa com a relação litigiosa, também solicitam, em nome próprio, uma forma especial de tutela estatal. Estes, porém, embora peçam tutela estatal, não põem em causa seu próprio litígio e não verão jamais julgado pela sentença o seu direito.

Na ação de despejo, há pouco figurada, o inquilino terá contra si decidido o pedido de rescisão do contrato de locação e o de despejo subsequente, assim como o locador verá declarada sua pretensão improcedente, caso o juiz se convença de que a lei não o ampara. Discute-se e litiga-se sobre a relação jurídica que os liga, e as questões pertinentes a tal controvérsia constituem a lide. Já com relação ao subinquilino, o locador não só não mantém com ele qualquer relação jurídica que possa ser controvertida na causa como não faz contra o mesmo nenhum pedido. O locatário será parte na causa por sofrer o pedido formulado pelo locador. O sublocatário, ao contrário, será simples terceiro assistente, que intervém na causa para auxiliar a parte com quem mantém relação jurídica conexa com a relação litigiosa. Ele nunca será atingido pela coisa julgada, porque o juiz não julgará o contrato de sublocação, que não esteve em causa nesta ação de despejo - apenas sofrerá os efeitos que se poderiam dizer laterais ou reflexos da sentença proferida entre as partes.

A outra consequência da rigorosa processualidade do conceito de parte é que não terá a menor influência para sua determinação a circunstância de ser a pessoa que formula ao juiz o pedido de tutela jurídica - ou não ser - realmente titular da relação de direito material descrita por ele como existente. A respeito, diz J. FREDERICO MARQUES (Instituições..., v. 2, p. 165) que se "deve reconhecer a posição de parte a todo aquele que formula uma pretensão e pede a aplicação jurisdicional no Direito, independentemente da indagação sobre a existência de legitima-tio ad causam ou sobre a existência do direito material em que descansa a referida pretensão".

E isto porque, como já advertia CHIOVENDA, "a relação processual e as partes existem com a simples afirmação da ação, independentemente de sua existência efetiva, cuja averiguação constitui, exatamente, objeto da lide" {Instituições..., v. 2, p. 235).

O falso credor, ainda de má-fé, que proponha a demanda, fazendo-se passar por credor verdadeiro, é sujeito da relação processual e sujeito da lide, como o seria qualquer outro que se colocasse naquela posição de postulante em nome próprio da tutela estatal. Se definimos a lide como o conflito de interesses descrito na petição inicial - pois de outro conflito o juiz nunca poderá ter notícia, enquanto juiz -, certamente tal titularidade ativa e passiva é condição de existência de qualquer relação jurídica. Não pode haver relação jurídica sem sujeitos. A relação de crédito supõe um credor e implica, necessariamente, um devedor; a relação de vizinhança supõe vizinhos; a relação de paternidade tem de supor um pai, uma mãe e um Filho. A relação processual certamente não há de fugir à regra e há de ter os seus sujeitos. Se quisermos assegurar ao conceito de lide sua indispensável processualidade, teremos de admitir como sujeitos da lide aqueles - e somente aqueles - que na relação processual efetivamente controvertem sobre alguma relação jurídica de que se afirmem titulares. Certamente o falso credor não será sujeito da relação (eventualmente também litigiosa) entre o credor verdadeiro e o verdadeiro devedor. Pouco importa. Tal realidade é simplesmente estranha, irrelevante e inócua para o processualista e, especialmente, para o juiz. A outra lide que porventura surja entre o credor verdadeiro e seu devedor configurará um novo e completamente distinto "conflito de interesses" que. por haver ficado fora do primeiro processo, há de corresponder a uma nova lide. Mudando-se o falso credor para o credor verdadeiro, em processo distinto, não se terá mais a mesma lide, pois, como se sabe, a demanda é definida justamente por seus elementos estruturais: partes, causa de pedir t pedido. Mudando-se as partes transforma-se a lide primitiva em outra. Daí porque a questão da legitimidade para a causa (legitimatio ad causam), definida como a pertinência ao autor

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(legitimação ativa) e ao réu (legitimação passiva) real e efetiva da relação jurídica afirmada como existente, é questão de mérito, e a sentença que declarar inexistente a legitimidade do falso credor decidirá, com força de coisa julgada, sua pretensão em face do réu (sobre isto CHIOVENDA, Instituições..., v. 1, § 3.°; ROSENBERG, Tratado..., v. 1, § 45; FRIEDRICH LENT, Diritto proces-suale..., § 22; ADOLPH SCHÕNKE, Derechoprocesal civil, § 45, III, i). Dizer o juiz, em sua sentença, que o falso credor realmente o é não significa apenas afirmar que ele não é titular da relação jurídica material existente entre o verdadeiro credor e o devedor. Significa afirmar que ele - o falso credor - não tem direito, nem pretensão e menos ainda ação (de direito material), contra o réu. O falso credor realmente carece de ação, por carecer de qualquer direito! Afirmar-se que a sentença que o declara sem ação (carecedor de ação) contra o réu não julga a lide é tentar puxar para o processo dele a relação jurídica existente entre o credor verdadeiro e o réu, na suposição de que o mérito daquela outra lide pudesse ser decidido nesta causa. A sentença que declarar o falso credor parte ilegítima ad causam fará coisa julgada material contra ele e, naturalmente, a seu favor; e, também, contra a outra parte, que ficará impedida igualmente de redis-cutir a questão em processo posterior, em que ambas novamente se envolvam como partes.

Há casos, raríssimos, em que a sentença - reconhecendo a falta de legitimidade para a causa - não decide o mérito, como acontece com a demanda proposta contra o herdeiro, antes que este tenha aceito a herança, caso em que a decisão não veda a reproposição da causa contra o mesmo réu, depois da primeira ação (ROSENBERG, Tratado..., § 45,1, 2); ou quando o mérito deixa de ser apreciado em virtude de insuficiente legitimação de algum litisconsorte necessário, em relação processual não integrada por todos.

Outra observação importante, e que confirma a regra da processua-lidade do conceito de parte, é a de que a posição por ela assumida, na relação processual, nem sempre guarda equivalência com a posição pela mesma ocupada na relação de direito material. Quem se afirma devedor não haverá de ser, sempre e necessariamente, réu, assim como o credor pode assumir a condição de demandado ao ser acionado por alguém que se afirme seu devedor e que, não obstante, compareça em juízo como autor, a demandar contra aquele a quem deve. Este poderá, por exemplo, demandar seu credor em ação declaratória negativa, para que se lhe declare a nulidade ou a ineficácia da própria obrigação; ou pedir a declaração judicial sobre a verdadeira natureza ou o alcance de uma determinada cláusula contratual; igualmente poderá o devedor - afirmando-se tal no processo - acionar o credor nas ações de consignação em pagamento (arts. 890-900 do CPC). O obrigado a prestar contas, no plano do direito

material, deve contas e pode ser autor da ação correspondente (art. 914, II, do CPC) e réu o credor.

Tendo-se o conceito de parte no sentido por nós indicado, como sendo aquele que pede contra outrem uma determinada consequência legal, ou aquele contra quem esta consequência é pedida, ficará o conceito reduzido apenas ao processo contencioso, inexistindo partes verdadeiras na chamada jurisdição voluntária. Se, todavia, entendermos como partes aqueles que participam como sujeitos da relação processual, não seria impróprio dizer-se que o tutor ou o curador do incapaz foram ou são partes no pedido de venda ou arrendamento do bem do incapaz que eles representam.

9.2 Capacidade processual das partes

Ter capacidade para ser parte é ter capacidade para ser sujeito de uma dada relação jurídica processual. A capacidade de ser parte corresponde à capacidade jurídica em geral, de direito civil (H. THEODORO JÚNIOR, Curso..., v. 1, n. 70). Todavia, a capacidade processual de ser parte é mais ampla do que a capacidade jurídica de direito civil. Assim, poderão eventualmente comparecer em juízo, como autores ou como réus, certos organismos ou coletividades não personalizadas, tais como as mesas dos corpos legislativos, para as ações de mandado de segurança, o condomínio, a herança jacente, a massa falida, os "consórcios" de consumidores etc.

Distingue-se, assim, da capacidade de ser parte de uma determinada relação litigiosa (legitimatio ad causam) a capacidade para estar em juízo, ou legitimação processual {legitimatio ad processum\ que é a capacidade para a prática de atos processuais, ou para tomar ciência de atos processuais. Os menores podem ser partes numa determinada controvérsia que lhes diga respeito e, neste caso, terão legitimatio ad causam, porém somente através de seus representantes podem estar em juízo, o que significa dizer que a legitimatio adprocessum a estes corresponde, e não a seus representados. Os maiores de 16 e menores de 21 anos têm capacidade para estar em juízo apenas parcial e limitada, uma vez que haverão de ser assistidos por seus representantes legais.

Os órgãos das pessoas jurídicas - diz PONTES DE MIRANDA {Comentários..., 1973. t. l ,p. 318)-são partes de seu ser, portanto não o representam. Alei constitutiva da pessoa jurídica em causa, seja ela de direito público ou de direito

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privado, dirá quem a deve presentar, tornã-la presente (não representá-la) em juízo. O conceito de representação pressupõe a existência de duas pessoas diferentes, a representada e aquela que a representa. Isto não ocorre quando a pessoa jurídica comparece em juízo, através de seus administradores.

Em certos casos, a lei pode impor restrições à capacidade processual de determinadas pessoas, possuidoras de plena capacidade civil, como sucede com as casadas. Segundo o art. 10 do CPC, os cônjuges não podem demandar ou ser demandados acerca de direitos reais sobre imóveis sem o consentimento do outro cônjuge, o que equivale a dizer que qualquer deles necessita da presença do outro para juntos litigarem sobre tais direitos. Estes exemplos devem ser considerados não propriamente como carência da capacidade processual (legitimado adprocessam), mas como ausência de legitimação para a causa (legitimatio ad causam), a exigir a formação necessária de um litisconsórcio (LIEBMAN, Manuale..., p. 76).

Todavia, nem sempre ocorre a figura de um litisconsórcio necessário entre o cônjuge que figura como autor da demanda que verse sobre bem imóvel, ou direito a ele relativo, ou compareça em tais ações como demandado, e o outro cônjuge que lhe deva dar a outorga para litigar. Pode ocorrer apenas um fenómeno de integração de capacidade processual sem formação de litisconsórcio. Se, por exemplo, o casamento é pelo regime da separação de bens e a mulher, não sendo comunheira nos bens próprios do marido, nem, no caso, compossuidora, a outorga uxória para que este esteja em juízo nas stções imobiliárias não a transformará em parte.

Todavia, nem todas as hipóteses de outorga de poder nas ações indicadas pelo art. 10 do CPC corresponderão a uma simples modalidade de suprimento de capacidade processual, como sugere H. THEODORO JÚNIOR (Curso..., n. 71), sem que o cônjuge se transforme igualmente em litisconsorte. Aliás, o comum e frequente é que tal ocorra. A exceção é a outorga apenas integrativa da capacidade processual.

Costuma-se classificar a legitimidade de partes em legitimação ordinária e extraordinária, segundo a "situação legitimante" coincida ou não com a posição assumida pela parte no processo (cf. J. C. BARBOSA MOREIRA, Apontamentos para um estudo sistemático da legitimação extraordinária, RT 404/10). Quando a chamada "situação legitimante", ou a "relação legitimante", como a denomina LUIGI MONACCÍANI (ob. cit., p. 307), pertence a pessoa diversa daquela legitimada para a ação. diz-se que há "substituição processual", ou seja, a pessoa que figu-

ra na relação processual como parte não é a mesma pessoa titular da relação de direito material deduzida em juízo.

O denominado "substituto processual" difere, por exemplo, do representante: aquele age em nome próprio na defesa do direito de outrem, ao passo que o representante age apenas no interesse de seu representado e não em nome próprio (J. FREDERICO MARQUES, Instituições..., v. 2, p. 373).

Segundo dispõe o art. 6.° do CPC, "ninguém poderá pleitear, em nome próprio, direito alheio, salvo quando autorizado por lei". Esta disposição limita sem dúvida a legitimação ad causam para inúmeras e frequentes situações criadas pela moderna civilização de massa, naqueles casos em que não haja um direito subjetivo perfeitamente definido, ou quando o interesse de agir não coincida com a titularidade do direito subjetivo.

CHIOVENDA (Instituições..., v. 2, n. 224) considera que o autor da ação popular é "substituto processual". De um modo geral, esta opinião é seguida pela doutrina brasileira: J. FREDERICO MARQUES (Instituições..., v. 1, n. 274) afirma que ocorre aí "substituição processual", desde que o autor da ação processual age na defesa de toda a comunidade, a quem, segundo se supõe, caberia o direito defendido em juízo pelo substituto. O exemplo, no entanto, mais parece invalidar o conceito de "substituição processual" do que confirmá-lo. Um direito subjetivo de toda a comunidade - com titularidade total contra o Estado - teria mais o sentido de ficção do que de realidade. Esta mesma ambiguidade ainda se torna mais clara quando se está em presença dos chamados "interesses difusos", cuja natureza corresponde, justamente, a uma indeterminação de quem sejam os seus titulares, na medida em que a todos e ao mesmo tempo a ninguém em particular pertencem (J. C. BARBOSA MOREIRA, Temas..., 3.a série, p. 184; KAZUO WATANABE, Tutela jurisdicional dos interesses difusos: a legitimação para agir, Tutela dos interesses difusos, p. 89), dos quais se pode seguramente dizer que existem tanto a pretensão de direito material quanto a pretensão à tutela jurisdicional, sem haver um direito subjetivo correspondente.

São casos de "substituição processual" geralmente indicados pela doutrina: a) a do marido que comparece em juízo em defesa dos bens dotais da mulher (art. 289, III, do CC); b) a do gestor de negócios que atua em juízo na defesa dos interesses de terceiro de cujos bens tem a administração, embora sem mandato (WALDEMAR MAR1Z DE OLIVEIRA JR., Substituição processual, P- 125); c) a legitimação do credor, na fa-

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lência, para a ação revocatória, assim como, nos sistemas que a contemplam, a do autor da ação sub-rogatória, que age em nome próprio para a defesa do direito de seu devedor; d) a legitimação dos parentes, consanguíneos ou afins, em linha reta ou colateral até o segundo grau, para anular o casamento contraído pela menor de 16 anos, ou pelo menor de 18, conforme está previsto pelo art. 213, III, do CC (CELSO BARBI, Comentários ao Código de Processo Civil, t. I, n. 84).

9.3 Capacidade postulatóría

Além da capacidade de ser parte e da plena capacidade processual {legitimatio ad processum), nossa lei veda que os interessados realizem pessoalmente os atos processuais e requeiram em juízo sem a assistência de uma pessoa especializada e legalmente habilitada, dotada do chamado ius postulandi. As partes, desde que dotadas de capacidade processual, devem, mesmo assim, estar representadas em juízo por advogado habilitado, o que significa dizer advogado em pleno gozo de suas prerrogativas profissionais, a quem a parte haja outorgado o competente mandato para representá-lo em juízo.

O exercício da advocacia, considerado pela Constituição Federal serviço "indispensável à administração da justiça" (art. 133), está regulamentado pela Lei 8.906, de 4 de julho de 1994, cujo art. 1.° dispõe ser atividade privativa da advocacia a postulação a qualquer órgão do Poder Judiciário e aos juizados especiais, bem como as atividades de consultoria, assessoria e direção jurídicas.

O exercício dessa atividade pressupõe que o bacharel em direito esteja regularmente inscrito nos quadros da Ordem dos Advogados do Brasil, na forma prevista nessa lei. Para obter essa inscrição, deverá o bacharel atender às exigências estabelecidas pelo art. 8.° da Lei 8.906, ou seja, deve o interessado ter capacidade civil, diploma ou certidão de graduação em direito, obtido em instituição de ensino oficialmente autorizada e credenciada, título de eleitor e quitação do serviço militar, ser aprovado em Exame de Ordem, não exercer atividade incompatível com a advocacia (art. 28), oferecer prova de idoneidade moral e prestar o respectivo compromisso perante o Conselho da Ordem dos Advogados do Brasil.

O "exame de ordem", obrigatório para todos os bacharéis que deseje m.ÍRS.crever-se como advogados, é regulamentado em provimen-

to do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (§ 1.° do art. 8.° da Lei 8.906).

O art. 9.° da lei regula a inscrição dos estagiários de advocacia, prevendo que o estágio profissional, com duração de dois anos, se realize, nos últimos dois anos do curso jurídico, junto às instituições de ensino superior, ou pelos Conselhos da OAB, ou por setores, órgãos jurídicos e escritórios de advocacia credenciados pela OAB.

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10 LITISCONSÓRCIO

SUMARIO: 10.1 Introdução - 10.2 Espécies de litisconsórcio: 10.2.1 Litisconsórcio necessário; 10.2.2 Litisconsórcio facultativo- 10.3 Relação processual em litisconsórcio.

10.1 Introdução

Quando examinamos o conceito de parte, vimos que o elemento que o define é serem partes, na relação processual, as pessoas que pedem e as pessoas contra quem esses pedidos são feitos; as que formulam pedidos dizem-se autores, e réus as pessoas contra as quais tais pedidos são dirigidos. A relação processual, portanto, há de constituir-se de, no mínimo, três pessoas: o autor, que formula o pedido; o réu, contra o qual o pedido se dirige; e o juiz, a quem se faz o pedido.

Essa bilateralidade que polariza os sujeitos em lide, colocando autor e réu em posições contrapostas, não quer significar, porém, que cada um desses pólos da relação processual deva ser ocupado sempre por uma só pessoa. Seguidamente ocorre que, numa dessas posições da relação processual, em vez de apenas uma pessoa, encontram-se duas ou várias, todas elas assumindo idêntica função processual, irmanadas por um mesmo interesse, seja porque todos estejam a formular o mesmo pedido, ou pedidos semelhantes contra o réu, seja porque, em vez de uma só, várias pessoas se encontrem na posição de réus. E ainda pode suceder que, num determinado processo, à pluralidade de autores corresponda também uma pluralidade de réus, formando-se, então, uma terceira espécie de relação jurídica plural que, não obstante, ainda pode conservar aquela bipolari-dade originária, a ligar autores e réus numa perspectiva linear, onde os

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pedidos, embora formulados por vários autores, mantenham uma única direção, convergindo para o mesmo ponto.

Pode, igualmente, acontecer que uma determinada demanda seja formada inicialmente apenas por uma pessoa a demandar contra outra e, num momento sucessivo no desenvolvimento da relação processual, outras pessoas venham a ingressar no processo, como acontece na hipótese de vir a falecer o primitivo autor ou o réu originário e serem eles substituídos por seus herdeiros.

A essa reunião de duas ou mais pessoas assumindo simultaneamente a posição de autor ou de réu dá-se o nome de litisconsórcio. Este fenómeno, que é bastante comum na prática forense e se indica como sendo um processo com pluralidade de partes, pode ter origem e feições variadas.

Certas relações jurídicas, por sua própria estrutura interna, são formadas por várias pessoas, o que torna ilegítima a constituição da relação processual com a participação apenas de uma ou algumas delas, permanecendo as demais fora do processo. Imagine-se uma ação de divisão, pela qual um ou alguns dos condóminos em imóvel indiviso pretendam partilhá-lo, localizando seus quinhões e pondo termo ao condomínio. Se os^comunheiros forem vários, certamente todos hão de ser chamados ao processo, sob pena de tornar-se impossível a localização de um quinhão qualquer sem que todos os condóminos participem da relação processual, já que a divisão geodésica - promovida para localizar, na respectiva quota, a propriedade antes comum de cada condómino - irá, necessariamente, interferir com o direito dos demais que, sobre o quinhão assim formado, perderiam uma porção da antiga propriedade que antes da divisão se estendia sobre o todo. E, naturalmente, tal resultado não poderia ser alcançado senão trazendo-se para o processo todos aqueles que haveriam de ser atingidos pela sentença.

Se, nas hipóteses do art. 183 do CC (arts. 1.521 e 1.523 do novo CC), um terceiro intenta uma ação de nulidade de casamento, necessariamente haverá de propô-la contra ambos os cônjuges, pois não se compreende como se possa anular o casamento apenas em relação a uma das partes, nem que o casamento seja desfeito mesmo contra o cônjuge não citado para a causa, que, segundo os princípios gerais, não poderia ser alcançado pela coisa julgada.

Quando a pluralidade de pessoas se encontra formando o pólo ativo da relação processual, diz-se que o litisconsórcio é ativo; quando

haja um só autor e vários réus, diz-se que há litisconsórcio passivo; finalmente, havendo pluralidade de autores e réus, o litisconsórcio diz-se misto, também chamado recíproco (FREDERICO MARQUES, Instituições..., v. 2, p. 235).

Segundo a disponibilidade pelas partes, ou sua indisponibilidade, o litisconsórcio pode ser: a) necessário ou b) facultativo. Este, por sua vez, ainda pode ser subdividido em facultativo próprio e impróprio, segundo ele seja ou não irrecusável por uma das partes, quando requerido pela outra.

Diz-se que o litisconsórcio é facultativo irrecusável quando, embora não sendo obrigatória a proposição conjunta das demandas cumuladas, se os autores se coligarem em litisconsórcio, ou um segundo réu pedir o seu ingresso como demandado, ao lado do réu originário, a parte adversa não possa recusá-lo. Ao contrário, o litisconsórcio será facultativo recusável quando sua formação depender do acordo expresso ou tácito dos litigantes. À primeira espécie davam alguns o nome de litisconsórcio/acu/taíívo próprio (assim PONTES DE MIRANDA, Comentários..., 2. ed., t. XI, p. 107), enquanto outros, como MOA-CYR AMARAL SANTOS (Primeiras linhas..., v. 2, p. 15), chamavam-no impróprio, reservando a designação de litisconsórcio facultativo próprio para os casos em que houvesse propriamente facultatividade, em que o litisconsórcio fosse propriamente facultativo, como no caso de simples afinidade de questões derivadas de um ponto comum de fato ou de direito. Essa classificação estava fundada no art. 88 do Código anterior, que previa as três hipóteses: a) o litisconsórcio necessário, de formação obrigatória, por isso indispensável; b) o litisconsórcio facultativo irrecusável; ec)a terceira espécie, aquela em que a cumulação se desse em virtude da existência de afinidade de questões derivadas de um ponto comum de fato ou de direito, caso em que a formação do litisconsórcio poderia ser recusada pelos litigantes.

Quanto à divergência acima indicada, a razão estava com PONTES DE MIRANDA, pois, como mostra CALMON DE PASSOS (Do litisconsórcio no Código de Processo Civil, p. 20), o qualificativo próprio ou impróprio não diz respeito à voluntariedade na formação do litisconsórcio, mas ao elemento causal de sua formação: quando haja simples afinidade de questões, há litisconsórcio impropriamente formado. Perante o Código em vigor, que não reproduziu o dispositivo do anterior nesse ponto, indaga-se se todas as formas previstas no art. 46 do CPC seriam ou de litisconsórcio necessário ou de litisconsórcio facultativo, porém sempre irrecusável. CELSO BARBI (Comentários..., v. 1, t. I. p. 267) afirma que. apesar do silêncio da lei. deve entender-se ainda existente no direito brasileiro a espécie de litisconsórcio recusável, pelo menos nas hipóteses previstas no art. 46. IV, do CPC, quando as demandas reunidas em litisconsórcio apenas mantenham

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contato entre si por afinidade de questões derivadas de um ponto comum de fato ou de direito. PONTES DE MIRANDA {Comentários.,., t. II, p. 20) continua a falar de litisconsórcio facultativo próprio e impróprio, mas tudo indica que a asserção se deva à simples reprodução de seu ponto de vista manifestado em face do Código revogado, sem ter o jurista levado em conta a modificação operada pelas disposições do novo Código. THEODORO JÚNIOR (Comentários ao Código de Processo Civil, 1.1, p. 143) dá inteira razão a CELSO BARBI, concluindo também pela permanência da recusabilidade do litisconsórcio quando ele seja facultativo impróprio, segundo o art. 46, IV.

De qualquer forma, a facultatividade irrestrita, só dependente da vontade do litigante, como existia no direito anterior, certamente não mais existe no atual sistema. Como o reconhecem os dois processualistas, o máximo que o litigante poderá fazer agora, para evitar a formação do litisconsórcio, será formular a sua impugnação e aguardar a decisão do juiz sobre essa questão, entendendo-se que este só poderá aceitá-la se a formação do litisconsórcio impugnado puder trazer à parte que o impugna uma grave desigualdade processual, caso em que o juiz fundaria sua decisão no art. 125,1, do CPC.

E importante distinguir-se cumulação subjetiva de lides e litisconsórcio. Os conceitos, de um modo geral, vêm expostos sem distinção precisa. Pode haver, no entanto, pluralidade de partes num mesmo processo sem que as partes estejam litisconsorciadas entre si. Nos embargos de terceiro não se pode, igualmente, dizer que exeqiiente e executado se litisconsorciaram contra o embargante; não obstante, ambos podem ser réus na ação de embargos de terceiro, porém não da mesma demanda, mas em demandas diferentes, caracterizadas por controvérsias e pedidos distintos.

Sempre que houver litisconsórcio, haverá pluralidade de causas, ou poderá ocorrer que várias pessoas demandem ou sejam demandadas como litisconsortes de uma só causa? Segundo alguns (assim ROSENBERG, Tratado..., v. 2, § 94, II, 1, b, e § 95,1, 3), a pluralidade de partes carac-terizadora do litisconsórcio implica necessariamente em cumulação de lides, ou seja, a cada autor e a cada réu corresponderá uma lide; se o autor demandar contra dois réus, haverá duas lides cumuladas. Já a doutrina italiana, seguindo, em linhas gerais, a teoria de REDENTI (// giudizio civile con plurità di parti, passim), distingue as hipóteses de litisconsórcio formado por uma única demanda das outras em que haja realmente cumulação subjetiva e objetiva de causas. Parece-nos que esta última solução é mais correta, pois não julgamos apropriado dizer-se que a ação de divisão contenha tantas demandas quantos sejam os condóminos do imóvel a dividir; ou que haja duas demandas cumuladas na ação de nu-

lidade de casamento proposta pelo Ministério Público contra ambos os cônjuges. Aqui haverá litisconsórcio, portanto, pluralidade de partes, sem haver cumulação objetiva de lides. Nestes casos, como veremos, ocorrerá sempre um litisconsórcio indispensável (necessário), os litisconsortes integram uma só lide, impossível de ser formada senão em presença de todos os seus participantes no plano do direito material. Certamente haverá, também aqui, tantas relações processuais quantos sejam os litisconsortes (TONTES DE MIRANDA, Comentários..., v. 2, p. 7), o que explica o fato de o processo prosseguir contra os litisconsortes restantes, se os demais que dele regularmente participavam retirarem-se do processo.

0 Código de Processo Civil enumera, em seu art. 46, as fontes de litisconsórcio, ao dispor que "duas ou mais pessoas podem litigar, no mesmo processo, em conjunto, ativa ou passivamente, quando:

1 - entre elas houver comunhão de direitos ou de obrigações relati vamente à lide;

II - os direitos ou as obrigações derivarem do mesmo fundamento de fato ou de direito;

III - entre as causas houver conexão pelo objeto ou pela causa de pedir;

IV - ocorrer afinidade de questões por um ponto comum de fato ou de direito".

Esse dispositivo emprega a locução "podem litigar", sugerindo a ideia de. facultatividade na formação do litisconsórcio, em quaisquer das hipóteses aí enumeradas. Esta ideia é falsa: tanto pode acontecer que as fontes indicadas pelo dispositivo formem um litisconsórcio necessário, onde as partes não apenas possam mas devam litigar em conjunto, como podem dar origem efetivamente a uma modalidade de litisconsórcio apenas facultativo.

Devemos, igualmente, repelir a concepção por muitos adotada de que o Código haja, no inc. I do art. 46, indicado a comunhão de direitos ou de obrigações como fonte de litisconsórcio necessário. De modo algum. A comunhão no direito ou na obrigação tanto pode gerar uma forma de litisconsórcio necessário quanto outra de litisconsórcio simplesmente facultativo. Assim, por exemplo, os credores solidários podem acionar individualmente o devedor comum, bem como os devedores solidários podem ser, igualmente, acionados separadamente por um, vários ou todos os credores; um condómino apenas pode, sozinho, reivindicar o bem

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comum, sem necessidade de litisconsorciar-se aos demais condóminos, embora seja o condomínio, como a solidariedade, hipóteses típicas de comunhão de direitos e obrigações.

10.2 Espécies de litisconsórcio

10.2.1 Litisconsórcio necessário

A doutrina formada sob o Código de 1939, de um modo geral, indicava a "comunhão de interesses" como fonte geradora do litisconsórcio necessário. MOACYR AMARAL SANTOS (Primeiras linhas..., v. 2, p. 3) escreve: "Litisconsórcio necessário, dito também indispensável, é o que se funda na comunhão de interesses". Assim também o definem J. FREDERICO MARQUES (Instituições..., v. 2, p. 240) e ARRUDA ALVIM (Curso..., v. 1, p. 512). A confusão - como mostrou GUILHERME ESTELLITA (Do litisconsórcio no direito brasileiro, p. 131 e ss.) -provinha de uma errónea transposição do texto da lei alemã devida a JOÃO MONTEIRO, que o traduzira de modo imperfeito, passando a locução a ser repetida pelos demais e, finalmente, inserida no art. 88 do -Código de 1939, onde se prescrevia que, havendo comunhão de interesses, as partes não poderiam dispensar a formação do litisconsórcio.

O verdadeiro conceito de necessariedade do litisconsórcio, porém, liga-se outro pressuposto. Diz-se que o litisconsórcio é necessário quando, por disposição de lei, ou pela natureza da relação litigiosa, o processo só se possa formar com a presença de mais de um autor ou mais de um réu, ou seja, de todos os interessados.

GUILHERME ESTELLITA (ob. cit, p. 314) diz, com propriedade, que o litisconsórcio necessário deverá ser definido tendo-se em conta sobretudo o elemento que verdadeiramente o define, que é a obrigatoriedade de sua formação, ou a condição de ser indispensável pelas partes, seja porque a lei assim o exija, seja porque a natureza da relação litigiosa igualmente o imponha, por não ser possível a decisão da lide única sem a presença de todos os seus integrantes, tendo em vista a unitariedade da relação de direito material litigiosa.

Controverte-se sobre a condição jurídica da sentença proferida em processo com contraditório não íntegro por ausência de algum litisconsorte necessário. A doutrina italiana oscila entre duas posições clássicas: a de CHIOVENDA (Sul

litisconsórcio necessário, Saggi di diritto processuale civile, v. 2), para quem a sentença contaminada por tal vício seria nula, ou dada inutilmente (inutiliter data), e a de REDENTI (// giudizio civile..., p. 267), para o qual a sentença que contenha esses vícios é plenamente eficaz perante todos os litisconsortes mantidos como terceiros não intervenientes na causa, onde deveriam ter sido litisconsortes, até que ela venha a ser desconstituída mediante opposizione di terzo ordinária - remédio jurídico equivalente à nossa ação rescisória quando proposta por terceiro -, como lá no sistema italiano permite o art. 487, II, do Código de Processo Civil. Exposições recentes, num e noutro sentido, em PROTO PISANI (Opposizione ordinária di terzo, §§ 28-30), FABRINI (Contributo alia dottrina delVintervento adesivo, p. 203 e ss., e Opposizione ordinária dei terzo nel sistema dei mezzi di impugnazione, § 22) e em G. COSTANTINO (Contributo alto studio dei litisconsórcio necessário).

A distinção entre as duas espécies de litisconsórcio necessário, segundo ele provenha da lei ou se origine da relação litigiosa, apóia-se no texto da lei processual alemã, inspiradora de nosso Código, cujo § 62 distingue as duas formas de litisconsórcio necessário, ao dispor que, "se a relação jurídica litigiosa só uniformemente puder ser declarada em face de todos os litisconsortes, ou se o litisconsórcio for por outra razão necessário, considerar-se-ão representados pelos participantes os litisconsortes que houverem deixado de comparecer a alguma audiência ou perdido algum prazo".

Ora, se a lei fala em litisconsórcio necessário "por outra razão", é porque na hipótese anterior haveria também necessariedade na formação de litisconsórcio.

J. C. BARBOSA MOREIRA, em conhecido ensaio sobre a figura do chamado "litisconsórcio unitário", observa que a função do § 62 da ZPO alemã nada tem a ver com a indicação das fontes do litisconsórcio necessário, tendo aí o legislador tão-somente procurado disciplinar o regime do litisconsórcio, e não seus pressupostos (Litisconsórcio unitário, p. 19). Mesmo procedente a observação do ilustre processualista, não vemos como afastar a conclusão tirada pela doutrina segundo a qual o legislador tedesco teria pressuposto a necessariedade também do chamado "litisconsórcio unitário". Por outro lado, tendo-se presente o generalizado consenso doutrinário dos processualistas alemães, como reconhece BARBOSA MOREIRA, sobre a limitação da coisa julgada apenas às partes e só abrangente do efeito dedaratório da sentença, tratando o § 62 de relação jurídica que só possa ser declarada de modo uniforme para todos os litisconsortes. a necessariedade do litisconsórcio é condição lógica pressuposta pelo dispositivo.

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De qualquer forma, é um dado indiscutido pela doutrina o fato de poder o litisconsórcio necessário ser dividido em duas classes, uma onde o litisconsórcio é dito simples e a outra envolvendo o litisconsórcio unitário. A distinção entre ambas está em que, no litisconsórcio necessário simples, a formação do litisconsórcio, embora indispensável, não provoca necessariamente uma sentença uniforme para todos os litisconsortes. Estes hão de ser obrigatoriamente reunidos no mesmo processo, porém não merecerão tratamento necessariamente uniforme pela sentença.

Diz-se que o litisconsórcio é unitário quando a relação litigiosa houver de ser decidida de modo uniforme para todos os litisconsortes. PONTES DE MIRANDA (Comentários..., v. 2, p. 30) declara que o "litisconsórcio unitário é o litisconsórcio necessário, em que é exigida a unitariedade". Reforça-se, portanto, aí a ideia de que o unitário é uma subespécie do necessário. Para ser unitário, segundo essa teoria, ele haverá de ser, antes, necessário. A questão é controvertida na doutrina brasileira, especialmente a partir do excelente ensaio de BARBOSA MOREIRA, a que antes se fez referência e onde este processualista defende a possibilidade da existência de litisconsórcio unitário que, apesar dessa qualidade, seja facultativo.

O Código de Processo Civil, em vez de colaborar para uma tomada de posição adequada neste assunto, contribuiu para aumentar a controvérsia, redigindo de forma manifestamente ambígua seu art. 47, como justamente observa BARBOSA MOREIRA (Comentários ao Código de Processo Civil, p. 104), reproduzindo crítica que já fizera antes da promulgação do Código (Litisconsórcio unitário, §§ 136 a 146).

Lê-se no art. 47 do CPC: "Há litisconsórcio necessário, quando, por disposição de lei ou pela natureza da relação jurídica, o juiz tiver de decidir a lide de modo uniforme para todas as partes; caso em que a eficácia da sentença dependerá da citação de todos os litisconsortes no processo". A concepção do litisconsórcio necessário como sendo aquele que imponha a unitariedade de tratamento para todos os litisconsortes tem sido seriamente criticada por muitos processualistas, particularmente por BARBOSA MOREIRA (Estudos sobre o novo Código de Processo Civil, p. 75), que denuncia, na redação do art. 47, dois graves defeitos, um de linguagem, pois o legislador, querendo referir-se à unitariedade da decisão que, nessa espécie de litisconsórcio, haveria de ser uniforme 'para todos os litisconsortes", erroneamente acaba afirmando que, em tal

hipótese, a sentença há de ser uniforme "para todas as partes", o que, evidentemente, é pouco menos que uma impossibilidade lógica, pois uma mesma sentença não poderá decidir a lide de modo uniforme tanto para o autor quanto para os réus unidos em litisconsórcio, para que pudesse ser, ao mesmo tempo, uniforme para "todas as partes". O outro defeito, segundo o jurista, estaria em que nem todo litisconsórcio necessário - vale dizer, obrigatório, indispensável, imposto por lei - há de ser unitário, a exigir que a sentença decida de modo idêntico a lide perante todos os litisconsortes.

Na verdade, o critério para conceituar-se o litisconsórcio necessário, como já vimos na lição de GUILHERME ESTELLITA, deve levar em conta o elemento que verdadeiramente o particulariza, e que é a obrigatoriedade de sua formação, em contraposição àfacultatividade das outras espécies.

Devemos, portanto, conceituar o litisconsórcio necessário como aquele obrigatoriamente formado, seja porque alguma disposição de lei assim o imponha, seja porque a natureza da relação de direito material torne impossível o tratamento da situação litigiosa sem a presença de todos os interessados no processo, formando litisconsórcio, caso em que ele se torna indispensável.

Segundo esta concepção, a indispensabilidade da formação do litisconsórcio abrangeria duas espécies: uma em que ele, além de obrigatório, seria também unitário, no sentido de ser uniforme a decisão da lide para todos os litisconsortes; outra em que, havendo embora obrigatoriedade de formação do litisconsórcio de modo a torná-lo necessário por imposição de lei, a sentença nem sempre seria uniforme para todos os litisconsortes. Diz-se que o litisconsórcio da primeira espécie será, além de necessário, também unitário, enquanto o da última categoria seria apenas necessário simples.

Antes de examinarmos o problema da existência do verdadeiro litisconsórcio "unitário facultativo", vejamos alguns exemplos de litisconsórcio necessário, tanto simples quanto unitário. São exemplos do primeiro grupo:

a) ações de demarcação e divisão, ex vi dos arts. 952 e 967 do CPC; b) na ação de remissão da hipoteca pelo segundo credor, é indispen

sável a citação do primeiro credor e do devedor, que formarão, assim, um litisconsórcio (art. 814, § Io , do CC; art. 1.478 do novo CC):

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c) na ação de usucapião, hão de ser citados todos os lindeiros, além dos órgãos competentes das pessoas jurídicas de direito público e, ainda, os possíveis interessados incertos (art. 942 do CPC);

d) as ações de inventário e partilha (art. 999 do CPC); e) ações que versarem sobre bens imóveis, ou direitos a ele relativos

(art. 10 do CPC).

Poderia haver dúvida sobre a natureza do litisconsórcio formado obrigatoriamente nas ações de usucapião, quanto à sua inclusão entre os necessários unitários ou entre os necessários simples. Em princípio, a sentença que julga a ação de usucapião tratará de modo uniforme a todos os litisconsortes, seja procedente ou improcedente a demanda. Contudo, não será impossível considerar-se, por exemplo, apenas com relação a um dos confrontantes, parcialmente procedente a ação, por haver o autor, ao descrever a área usucapienda, incluído uma porção de terra sobre a qua] não era titular de posse ad usucapionem, tendo a sentença reconhecido, quanto a esta, a posse do confrontante que contestara a ação. Nesta hipótese, ou a ação deveria ser julgada improcedente ou ter-se-ia, como parece mais razoável, de julgá-la improcedente apenas em parte com relação a um dos litisconsortes, circunstância esta que indicaria a natureza simples, e não unitária, do litisconsórcio formado na ação de usucapião.

Incluem-se na espécie de litisconsórcio necessário unitário estes exemplos:

a) a ação de nulidade de casamento, quando proposta pelo Ministé rio Público ou por qualquer outro interessado (art. 208, parágrafo único, do CC; art. 1.549 do novo CC), em que ambos os cônjuges haverão de ser citados como litisconsortes passivos;

b) a ação de simulação proposta pelos terceiros lesados pela simu lação, inclusive pelo representante do poder público (art. 105 do CC; art. 167, § 2o, do novo CC), em que os contratantes que hajam participado do negócio arguido de simulado deverão ser citados como litisconsortes passivos;

c) a ação pauliana (art. 106 do CC; art. 158 do novo CC), pela mesma razão;

d) as ações negatórias e confessarias, quando haja condomínio em algum dos imóveis sobre que verse a demanda;

e) a ação de dissolução de uma sociedade de responsabilidade ili mitada, onde a presença de todos os sócios é indispensável;

f) a ação de apuração de haveres ocorrida por ocasião da retirada de algum sócio de sociedade de responsabilidade limitada que, segundo o estatuto, deva continuar com os sócios remanescentes, em que devem figurar como litisconsortes a sociedade e os demais sócios quotistas (RJTJESP-Lex 95/291).

Segundo este critério classificatório, na primeira classe de litisconsórcio necessário, chamado simples, a obrigatoriedade de sua formação não implica unitariedade da sentença, que poderá tratar diferentemente a cada Htisconsorte, enquanto nos casos da segunda espécie o litisconsórcio, além de indispensável, e por isto dito necessário, é também unitário, no sentido de que a sentença há de ser uniforme para todos os litisconsortes, pois, neste caso, é a natureza unitária da relação jurídica a exigir a formação do litisconsórcio. Realmente, nos exemplos do segundo grupo, não seria imaginável a formação obrigatória do litisconsórcio e a prola-ção, depois, de uma sentença de conteúdo diferente para cada litisconsor-te. Na ação de nulidade de casamento, certamente a sentença haverá de dispor de modo uniforme para marido e mulher, sendo inconcebível o acolhimento da ação em relação a um deles e a rejeição simultânea dela relativamente ao outro. Tampouco se poderia imaginar, numa ação de simulação, ou de fraude contra credores, que a sentença ao mesmo tempo reconhecesse a procedência da ação em relação a um dos figurantes do negócio jurídico declarado viciado pela própria sentença, negando-a, porém, em relação ao outro, ou aos outros participantes, uma vez que não se poderia anular o negócio jurídico em relação a um deles e, ao mesmo tempo, não anulá-lo perante o outro figurante da fraude ou da simulação. Neste caso, o litisconsórcio, além de ser necessário (de formação obrigatória), é também unitário quanto ao conteúdo da sentença, que deve disciplinar de modo uniforme a relação litigiosa para todos os litisconsortes.

10.2.LI Litisconsórcio facultativo unitário

Em muitos casos, a relação jurídica é igualmente unitária, no sentido de constituir-se em verdadeira comunhão de direitos e obrigações, mas a lei admite que seus componentes possam estar em juízo como demandantes ou demandados separadamente, não tornando obrigatória a formação de litisconsórcio. Tem-se, então, casos de litisconsórcio facultativo. Entretanto, dada a natureza unitária da relação litigiosa, quando a demanda for proposta por dois ou mais autores ou contra dois

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ou mais réus, a sentença há de ser necessariamente uniforme para todos os litisconsortes (assim ROSENBERG, Tratado..., v. 2, § 95, I, 1, b). De modo que, nesses casos, haveria uma classe intermediária entre o verdadeiro litisconsórcio necessário unitário e o litisconsórcio facultativo comum, em que a sentença poderá tratar de modo diferente os diversos litisconsortes.

A doutrina espanhola costuma denominar essa figura de litisconsórcio qua-se-necessário (assim PRIETO-CASTRO, Derecho procesal civil, v. 1, p. 72; DAVILA MILLAN, Litisconsórcio necesario, p. 25; FAIRÉN GU1LLÉN, Estúdios de derecho procesal, p. 143; MONTERO AROCA, Intervención adhesiva simple, p. 19). Também REDENTI, na doutrina italiana, emprega denominação idêntica (Derecho procesal civil, v. l ,p . 314).

O que particularmente distingue esta espécie de litisconsórcio é o fato de se tratar de demandas com pluralidade de legitimados que, todavia, não estão obrigados a se unirem em litisconsórcio necessário. Se o fizerem, porém, a causa haverá de ter tratamento uniforme para todos os litisconsortes. Os exemplos são inúmeros: a) a ação pauliana proposta por dois ou mais credores; b) a demanda em que dois ou mais herdeiros instituídos se unam como autores para provar a autenticidade do testamento, ou sejam acionados pelo herdeiro legítimo na ação de nulidade do mesmo testamento; c) a ação em que dois herdeiros testamentários se coliguem para provar a veracidade da causa da deserção (art. 1.734 do CC; art. 1.953 do novo CC); d) a ação de anulação de ato jurídico quando proposta por dois ou mais legitimados; e) a ação popular com dois ou mais autores unidos em demanda conjunta; f) a ação dos credores que juntos propõem a revocatória falencial.

Segundo a doutrina professada por BARBOSA MOREIRA {Litisconsórcio unitário, passim), nessa espécie de litisconsórcio a sentença há de ser uniforme mesmo para aqueles interessados que tenham ficado alheios à demanda, em razão de ser unitária a relação litigiosa, de tal sorte que ela só poderia existir ou desaparecer para todos os sujeitos que a integram, para os que hajam participado da causa, como litisconsortes, e também para os demais que poderiam ligar-se aos primeiros em litisconsórcio e não o fizeram. Essa premissa alarga o campo de abrangência da coisa julgada material, de modo a fazê-la alcançar também os terceiros, atribuindo-se à sentença um nítido sentido ultra partes, em virtude do qual os interessados que hajam permanecido fora da

causa terão suas ações consumidas pelos litisconsortes, ou pelo litis-consorte que haja demandado.

A tese de BARBOSA MOREIRA, segundo pensamos, só poderia ser aceita no capítulo em que ele demonstra a possibilidade real de existir litisconsórcio que seja unitário, em hipótese de litisconsórcio facultativamente formado por dois ou mais autores, ou contra dois ou mais réus unidos em litisconsórcio, que poderiam, no entanto, agir ou ser demandados separadamente. Se, porém, eles se associarem na causa, a sentença que decidir sobre a existência ou não existência da relação jurídica fundamental que a todos envolve há de resolver a lide de modo uniforme para todos os litisconsortes. Neste sentido é correta a posição de ARRUDA AL-VIM {Código de Processo Civil comentado, v. 2, p. 390), ao limitar os casos de uniformidade da sentença, no litisconsórcio facultativo, às hipóteses em que os integrantes da relação de direito material ingressem realmente na causa, como litisconsortes; para os interessados que poderiam ser litisconsortes e não o foram, essa unitariedade não existe, de modo que lhes há de ficar sempre aberta a possibilidade de intentarem, no futuro, suas respectivas ações.

De um modo geral, toma-se o efeito constitutivo da sentença por coisa julgada. Se, nas ações constitutivas, a sentença for de procedência, de modo que se opere a mudança da relação litigiosa demandada pelo autor, certamente tal modificação, como efeito constitutivo (CHIOVENDA), atingirá a todos, partes e terceiros Se, todavia, a sentença for de rejeição, e por isso declaratória, não haverá nenhuma eficácia capaz de alcançar os terceiros que, nesse caso, não ficarão impedidos de proporem suas ações, nas quais a sentença poderá, como é natural, chegar a resultado diferente do anterior.

Os exemplos de que a doutrina se vale para demonstrar a existência da unitariedade em litisconsórcio facultativo ou são, invariavelmente, ações constitutivas ou, sendo de outra espécie, contêm sempre eficácia constitutiva em tal intensidade que, em virtude da sentença, se cria, modifica ou extingue a relação jurídica fundamental que envolve os litisconsortes. Em tais casos, não é o efeito condenatório ou executivo, nem mesmo o declaratório, que transborda da relação processual para alcançar os terceiros, mas propriamente o efeito constitutivo. E é por isso que a objeção seguidamente suscitada pela doutrina, de que a extensão dos limites subje-tivos da coisa julgada não poderia ficar condicionada ao eventual resultado obtido na causa (secundum eventum litis), fica superada precisamente porque a diferença entre as eficácias tem origem na diferença de natureza de tais decisões (sobre isso, LIEBMAN, Eficácia e autoridade da sentença, p. 88-100). CÂNDIDO DINAMARCO {Litisconsórcio, p. 148-152) arrola alguns casos de litisconsórcio que seriam facultativos unitários, em demandas executivas ou condenatórias. Mas os exemplos ou não são de verdadeiros litisconsórcios unitários, como é o caso da ação de vindicação da herança, ou a alusão é a uma sentença condenatória "em

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favor" de um dos credores, ou "contra um dos devedores", o que prova que nas duas alternativas postas nos exemplos se está em presença da sentença de procedência, quando é sabido que as dificuldades históricas a respeito da unitariedade enfrentam-se com aextensão da coisa julgada aos terceiros (que poderiam ser litisconsortes) da sentença de improcedência pronunciada perante apenas um dos legitimados.

Outra questão que demanda investigação diz respeito ao conceito de relação jurídica unitária, o que importa definir uma dada relação de direito material como una, embora integrada por dois ou mais sujeitos, e ao conceito empregado pelos processualistas de litisconsórcio unitário, ou sentença uniforme. Para a unitariedade de direito material, a necessidade do litisconsórcio é uma determinação lógica imperativa, sob pena de anulação do próprio conceito de relação jurídica una, pois, sendo ela una e única, e mesmo assim dando ensejo a litisconsórcio facultativo, ficaríamos contingenciados pelo único alvitre possível: o litigante teria de ser considerado representante dos demais integrantes da relação jurídica estranhos à causa, o que nos faria retornar às teorias, de origem francesa, da representação como explicação para o efeito ultra partes do que a doutrina supõe ser coisa julgada, mas que na verdade seria expansão erga omnes do efeito natural (constitutivo) da sentença.

Se "a lei cria uniformidade, no tocante aos direitos ou obrigações, ou se de relação jurídica resulta a consorciedade unitária" (PONTES DE MIRANDA, Comentários..., v. 2, p. 30), então o processo não tem outra saída senão fazer necessário o litisconsórcio.

10.2.2 Litisconsórcio facultativo

Nosso direito anterior enumerava como fontes de litisconsórcio as três hipóteses indicadas pelo art. 88 do Código de 1939: a comunhão de interesses, a conexão de causas e a existência de afinidade de questões, entre si ligadas por um ponto comum de fato ou de direito.

O Código de 1973, em seu art. 46, enumera quatro causas geradoras de litisconsórcio, como já indicamos, que são: a comunhão de direitos ou de obrigações; os casos em que os direitos ou as obrigações derivem do mesmo fundamento de fato ou de direito; quando haja conexão de causas; e, finalmente, quando ocorrer afinidade de questões por um ponto comum de fato ou de direito.

Ante um exame superficial, poderíamos ser levados a concluir que o Código tenha reunido no art. 46 apenas as fontes de litisconsórcio facultativo, já que parece ter reservado para o artigo seguinte o tratamen-

to do litisconsórcio necessário. Essa impressão poderia, ainda, ser fortalecida pela circunstância de o legislador, no art. 46, usar a locução verbal podem litigar, a sugerir a ideia de facultatividade na proposição das demandas conjuntas, como se as partes não estivessem, em nenhuma das hipóteses indicadas nesse dispositivo, obrigadas a se litisconsorciarem. Todavia, como já dissemos, tal conclusão é absolutamente falsa, pois os casos de litisconsórcio necessário unitário, determinados pela natureza da relação litigiosa, têm origem comum em casos de comunhão de direitos ou de obrigações, de que são exemplos mais notórios as ações de nulidade ou anulação de casamento. Podemos então afirmar que o Código, no art. 46, prevê casos tanto de litisconsórcio facultativo quanto certos casos de litisconsórcio necessário. Apenas se poderia, sob o ponto de vista estritamente lógico, deixar fora desse dispositivo os casos de litisconsórcio necessário simples, cuja imposição decorresse de uma pura determinação legal, sem levar em conta a unitariedade da relação litigiosa. Todavia, ainda nesta espécie, dificilmente poderia ocorrer que a lei obrigasse à formação de um litisconsórcio onde não estivesse presente, ao menos, uma comunidade de interesses, capaz de ser incluída dentre os casos arrolados pelo inc. I do art. 46.

Examinemos as hipóteses de litisconsórcio facultativo, tentando enquadrá-las nos vários incisos do art. 46, de modo a isolar os exemplos segundo o litisconsórcio se dê por comunhão de direitos ou de obrigações, ou por unidade de fundamentos de fato ou de direito, ou por conexão de causas, ou ainda por afinidade de questões. A separação de cada espécie de modo completo e sistemático, aliás, é tarefa impossível, desde que não se pode, na prática, estabelecer uma distinção clara entre causas ligadas por afinidade de questões de direito ou de fato e causas vinculadas por um mesmo fundamento de direito ou de fato, indicado no art. 46, II, como motivo para a formação de litisconsórcio.

10.2.2.1 Litisconsórcio por comunhão de direitos ou obrigações

São exemplos desta espécie de litisconsórcio facultativo: a) a ação de dois ou mais credores solidários contra o devedor co

mum; b) a ação do proprietário e locatário que se unam para demandar, em

ação possessória, contra o esbuíhador;

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c) a ação de vários condóminos contra o vizinho para obrigá-lo a concorrer com as despesas referentes à conservação do tapume divisório comum;

d) as ações que versem sobre bens móveis propostas por marido e mulher.

10.2.2.2 Litisconsórcio facultativo fundado em conexão de causas

A doutrina costuma indicar os seguintes exemplos de litisconsórcio desta espécie:

a) dois ou mais acionistas impugnam juntos a deliberação tomada em assembleia geral de sociedade anónima; ou os sócios de uma socie dade por quotas agem em condições idênticas;

b) deis ou mais locatários demandam no mesmo processo contra o locador que os notificou de aumento de aluguel previsto no contrato por todos assinados;

c) dois ou mais credores propõem juntos ação anulatória por fraude contra credores; ou a ação de simulação, fundada no art. 105 do CC (art. 167, § 2o, do novo CC).

Em todos os casos indicados como sendo hipóteses de litisconsórcio fundado em conexão de causas, o vínculo existente entre as demandas cumuladas é tão intenso que a não formação do litisconsórcio poderia determinar decisões contraditórias sobre a mesma controvérsia jurídica.

10.2.2.3 Litisconsórcio fundado em afinidade de questões

Como indica a doutrina e está no Código, o litisconsórcio pode se formar em razão de uma ligação entre as demandas de cada litisconsorte derivada de um ponto comum de fato ou de direito. Esse ponto comum dará origem a questões afins, legitimando a cumulação das causas. Vejamos alguns exemplos:

a) ação de cobrança do valor dos seguros pelo dono do prédio incen diado, contra duas ou mais companhias que o hajam segurado em datas diferentes e por apólices independentes (ESTELLITA);

b) vários empregados com serviços locados mediante contratos separados, mas iguais, agindo juntos contra o patrão, para declaração

de uma mesma cláusula, contratual, constante de todos os contratos (ESTELLITA);

c) dois locatários propõem ação de consignação em pagamento contra o locador, baseados em recusa de recebimento dos aluguéis, sob idêntica alegação;

d) ação de cobrança de encargos condominiais proposta pelo admi nistrador do condomínio contra dois ou mais condóminos;

e) ação de cobrança proposta pelo credor contra dois co-fiadores (PONTES DE MIRANDA);

f) ação de despejo contra vários inquilinos de imóveis diversos com pedido para uso próprio (se os imóveis fossem contíguos e o pedido feito pelo locador fosse para demolição de todos e reconstrução de um edifício só, teríamos mais do que simples afinidade de questões, caracterizando- se uma hipótese de causas conexas).

O exemplo da ação de despejo contra vários inquilinos de prédios distintos, com fundamento em uso próprio, é dado por CALMON DE PASSOS (Do litisconsórcio..., p. 47) como sendo caso de cumulação subjetiva fundada em afinidade de questões, ao passo que GUILHERME ESTELLITA (Do litisconsórcio..., p. 187) entende tratar-se de uma hipótese de conexão de causas, sob o argumento de que as causas não são apenas afins, mas idênticas. A respeito, aliás, da univocidade do conceito de conexão de causas, idêntico tanto para a determinação dos casos de fixação de competência ou de litisconsórcio ou para delimitar a possibilidade de reconvenção, que GUILHERME ESTELLITA negara, contra a opinião de FREDERICO MARQUES (Instituições..., v. 2, p. 238), a recente manifestação de BARBOSA MOREIRA também é no sentido de negar, perante o Código de 1973, um conceito unívoco de conexão (A conexão de causas como pressuposto da reconvenção, § 22).

10.2.2.4 Litisconsórcio por identidade de fundamento de fato ou de direito

Tentemos, agora, estabelecer um critério de distinção entre as causas que podem dar origem a um litisconsórcio previsto pelo legislador no art. 46, n, do CPC e as hipóteses de afinidade de questões.

Devemos, para isso, ter em conta que, no inc. II do art. 46, a lei se refere à identidade de fundamento, ao passo que no inc. IV trata-se de litisconsórcio baseado em simples afinidade de questões. Vejamos alguns exemplos de identidade de fundamento de fato ou de direito:

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a) no caso da ação de cobrança do valor do seguro por nós indicado como sendo um caso de litisconsórcio por afinidade de questões, se a demanda se fundar em uma única apólice emitida por duas ou mais com panhias seguradoras, ter-se-ia não afinidade, mas identidade de funda mento jurídico;

b) se, no exemplo da ação de vários empregados para a declaração de uma mesma cláusula contratual, em vez de contratos separados todos hajam sido admitidos através de um mesmo contrato coletivo;

c) se a ação do locador para uso próprio se der não contra diversos inquilinos de prédios diferentes, mas todos eles sendo locatários do mesmo prédio, teríamos não mais afinidade, porém identidade de ques tão de fato;

d) na ação de mandado de segurança proposta por dois funcionários demitidos mediante decretos distintos e promulgados em datas diferen tes, em virtude de um mesmo inquérito administrativo, teríamos litiscon sórcio por afinidade de questões; se, porém, ambos fossem demitidos pelo mesmo decreto e o fato que lhes tenha sido imputado fosse o mesmo, o litisconsórcio seria baseado em identidade de fundamento.

Como se vê, na medida em que acentuamos a afinidade entre as causas, procurando distingui-las dos casos de simples afinidade para fazê-lo baseados num mesmo fundamento de fato ou de direito, inevitavelmente as confundimos com os exemplos de litisconsórcio por conexão de causas, fato que levou CELSO BARBI {Comentários..., v. 1, p. 270) a afirmar que a especificação das hipóteses do inc. II do art. 46 é supérflua, uma vez que tais casos já estão abrangidos pela conexão de causas.

10.3 Relação processual em litisconsórcio

A relação processual formada pelo litisconsórcio apresenta inúmeras particularidades, não só no que se refere às relações entre os litiscon-sortes, como de cada um deles com relação à parte adversa.

Tratando-se de litisconsórcio necessário simples ou facultativo, o princípio geral é o de independência de cada litisconsorte em relação aos demais no que se refere à parte adversa. Segundo o princípio inscrito no art. 48 do CPC, salvo disposição em contrário, cada litisconsorte é considerado como um litigante distinto, em suas relações com a parte adversa. Os atos e as omissões de um deles não prejudicarão nem beneficiarão aos demais.

Desse princípio decorre o outro contido no art. 49, segundo o qual o litisconsorte tem o direito de promover o andamento do processo independentemente da aquiescência ou da colaboração dos demais.

A regra da independência dos litisconsortes, prevista no art. 48 do CPC, como observa ARRUDA ALVIM {Comentários..., p. 416), aplica-se, por excelência, aos casos de litisconsórcio facultativo e de litisconsórcio necessário simples. Com referência ao litisconsórcio necessário unitário vigoram outros princípios, como logo veremos.

O princípio da independência entre os litisconsortes implica o seguinte: a) deverá estabelecer-se para cada um deles separadamente a existência dos pressupostos processuais; b) se um deles não contestar a ação, será considerado revel, embora a revelia, neste caso, não acarrete o julgamento antecipado da lide, como impõe o art. 320,1, do CPC; ç) cada litisconsorte deverá produzir as provas com que conta fundar t sua ação ou a sua defesa; d) as provas produzidas por cada litisconsorte, em princípio, devem ter sua eficácia limitada à relação jurídica existente entre ele e seu adversário; e) a confissão feita por um litisconsorte não prejudicará os demais (art. 350 do CPC); f) o recurso por um interposto não se estende aos litisconsortes que não hajam recorrido; g) cada um dos litisconsortes pode desistir do recurso sem a aquiescência dos demais.

Se é certo que no litisconsórcio comum, seja ele facultativo ou necessário simples, a iniciativa probatória é ónus que grava individualmente cada litisconsorte, podendo cada um deles até mesmo confessar independentemente do consentimento dos demais e sem que a confissão prejudique aos outros, deve-se ter em conta que os fatos provados por qualquer deles, em seu interesse, hão de ser examinados em relação a todos e declarados pelo juiz como fato único que naturalmente há de ser decidido de modo uniforme para todos os litisconsortes. Se o litisconsórcio for determinado pela existência de questões afms, decorrentes de um fato comum, ou fundado em identidade de fundamento de fato (art. 46, II, do CPC), certamente o juiz não poderá considerar provado o fato em relação ao litisconsorte diligente que o produziu nos autos e considerá-lo não provado em relação aos demais (GUILHERME ESTELLITA, ob. cit., p. 485; REDENTI, Derecho procesal civil, v. 1, p. 325; SCHÓNKE, ob. cit., p. 96; CAPPELLETTI, La testimonianza..., v. 1, p. 260).

Se tais são os princípios que regulam a atividade de cada litisconsorte nesses casos, bem diverso é, no entanto, o regime do litisconsórcio unitário. Se a hipótese for de litisconsórcio necessário unitário, vigoram

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os seguintes princípios: a) a confissão só será eficaz quando feita por todos os litisconsortes; b} não haverá revelia, a não ser que todos os litisconsortes permaneçam omissos sem contestar a ação, pois, se qualquer deles o fizer, a defesa aproveita também aos litisconsortes ausentes que, como dizia o art. 90 do Código de 1939 - reproduzindo o § 62 da ZPO alemã -, consideram-se representados pelos demais; ú) a ausência de um pressuposto processual atinente a qualquer dos litisconsortes impede a apreciação do mérito da causa com relação a todos (BARBOSA MOREIRA, Litisconsórcio unitário, § 108, nota 105); d) nenhum litis-consorte pode desistir sozinho da demanda; é)) o recurso por um dos litisconsortes interposto aproveita aos demais (art. 509 do CPC).

Se o litisconsórcio unitário, pela demanda conjunta, for facultativo, como sucede com a cumulação das lides de dois ou mais sócios visando à anulação do mesmo ato votado pela assembleia geral, sob o mesmo fundamento, então seu regime jurídico não coincide com o regime do verdadeiro litisconsórcio unitário e necessário (cf. ROSENBERG, Tratado..., v. 2, § 95, III, I, b). BARBOSA MOREIRA, com argumentos diversos (Litisconsórcio unitário, § 107 e nota 105), chega a conclusões semelhantes, indicando que, nesse caso, mesmo sendo unitário o litisconsórcio, formado por demandas que ensejem tratamento processual autónomo, é possível que cada litisconsorte se desligue da relação processual sem impossibilitar a continuação das demandas dos demais. Igualmente, o caráter unitário do litisconsórcio facultativamente formado não impede que o autor desista da demanda com relação a um ou alguns dos litisconsortes sem que a desistência torne inviável a demanda contra os demais. Por outro lado, a anulação do processo quanto a qualquer dos litisconsortes, em razão de ausência de algum pressuposto processual, não tem qualquer repercussão sobre a relação jurídica processual referente aos demais litisconsortes (cf. BARBOSA MOREIRA, ob. cit, §§ 107 e 108).

A grave questão da sugerida extensão da coisa julgada ao litisconsorte que se haja retirado do processo, de tal modo a impedir que ele, em processo subsequente, reproponha a demanda de que antes desistira, não é enfrentada por BARBOSA MOREIRA (ob. cit., § 108) nem por FRIEDRICH LENT (Diritto proces-suale..., § 82, IV, 3), que, igualmente, admite a possibilidade do afastamento de um ou mais titisconsortes reunidos em litisconsórcio facultativo unitário. Não resta dúvida, contudo, de que não só a coisa julgada da sentença proferida na demanda de que-ele se afastara não o atinge, como não poderá ela alcançá-lo para impedir

a reproposição de sua demanda. Ou isso ou a própria possibilidade de afastamento do litisconsorte estaria praticamente negada.

Quando os litisconsortes tiverem diferentes procuradores, ser-lhes-ão contados em dobro os prazos para contestar e recorrer e, de um modo geral, para falar nos autos (art. 191 do CPC).

Resta saber se, havendo formação de titisconsórcio na ação de embargos do devedor, fundada em penhora sobre bem comum pertencente a dois ou mais devedores, o prazo de dez dias do art. 738 do CPC contar-se-á também em dobro quando os devedores executados tenham diferentes procuradores. Embora a ação de embargos do devedor seja uma verdadeira demanda incidental, de modo a não se poder confundi-la com uma defesa oposta pelo demandado, hipótese para a qual foi redigido o art. 191, inclinamo-nos pela solução que entende aplicável a mesma regra quanto à contagem de prazo para o oferecimento dos embargos quando haja litisconsórcio. A natureza de demanda incidental da ação de embargos autoriza a analogia. O Supremo Tribunal Federal, entretanto, nos Recursos Extraordinários 95.125-5 (JSTF-Lex 33/240) e 97.136-6 (JSTF-Lex 45/259), entendeu inaplicável aos embargos do devedor a regra do art. 191 do CPC.

B I B L I O T E C A

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11

INTERVENÇÃO DE TERCEIROS

SUMÁRIO: 11.1 Conceito - 11.2 Assistência adesiva simples -11.3 Efeitos da intervenção adesiva simples - 11.4 Intervenção adesiva litis-consorcial ou autónoma - 11.5 Efeitos da intervenção adesiva litiscon-sorcial -11.6 Oposição -11.7 Nomeação à autoria -11.8 Denunciação à lide - 11.9 Chamamento ao processo.

11.1 Conceito

Diz-se que há intervenção de terceiros no processo quando alguém dele participa sem ser parte na causa, com o fim de auxiliar ou excluir os litigantes, para defender algum direito ou interesse próprio que possa ser prejudicado pela sentença. Não obstante deva limitar-se a coisa julgada apenas às partes perante as quais a sentença é dada, seguidamente os efeitos da sentença se expandem até alcançar indire-tamente os terceiros que estejam, por uma forma ou outra, ligados às partes, produzindo influências de vários tipos sobre alguma relação jurídica de que aqueles participem.

Ocorrendo algum caso em que a sentença possa produzir efeitos indiretos, ditos reflexos, sobre alguma relação jurídica existente entre qualquer das partes e terceiro, este poderá intervir para tentar evitar que tais consequências se produzam em detrimento de seus direitos.

Conforme o terceiro ingresse no processo para defender um interesse próprio dependente da relação jurídica objeto do litígio, com o fim de auxiliar na vitória da parte a que seu direito se liga, ou, ao contrário, nele ingresse para contrapor-se a uma ou a ambas as partes, diz-se, no primei-

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ro caso, que a intervenção é ad aãiuvandum, enquanto no último será ad excludendum.

Há três posições que o terceiro interveniente pode assumir na demanda: 1 .a) a de auxiliar da parte a que adere, para sustentar as razões que a esta competem; 2.a) a de interveniente que se liga a uma das partes mas a esta se equipara na luta contra o adversário comum; 3.a) a de interveniente que ingressa no processo em posição de antagonismo contra ambas as partes, tentando a todas excluir, em defesa de algum direito inconciliável com o direito sustentado pelos litigantes.

A intervenção de terceiros pode ser espontânea ou provocada; quando seja espontânea, diz-se que há assistência. A intervenção provocada por um requerimento formulado por uma das partes pode dar origem às seguintes figuras da intervenção de terceiros: a) nomeação à autoria; b) denunciação da lide; e c) chamamento ao processo.

Como forma de intervenção espontânea de terceiro, existe ainda a figura da oposição, que, ao contrário da assistência, tem por fim excluir ambas as partes, por afirmar-se o terceiro titular de um direito exclusivo sobre o objeto da lide.

Essa classificação, porém, é imperfeita, fazendo supor que haja antagonismo entre a ideia de assistência e intervenção provocada de terceiros, quando em verdade esta última forma de participação de terceiros suscita normalmente um caso de assistência.

A intervenção de terceiros é incidente que ocorre comumente no "processo de conhecimento1', mas poderá, em certos casos, ocorrer também no "processo de execução". Outras formas de intervenção espontânea de terceiros são os chamados recurso de terceiro prejudicado (art. 499 do CPC) e os embargos de terceiro (arte. 1.046 a 1.054 do CPC), que podem incidir tanto no "processo de conhecimento" quanto no de "execução". No que respeita ao processo cautelar, sendo ele um processo de conhecimento apenas sumário e especial, em princípio, serão admissíveis todas as formas de intervenção de terceiros possíveis no "processo de conhecimento".

Alguns definem o concurso de credores como uma espécie de intervenção de terceiros (assim FREDERICO MARQUES, instituições..., v. 2, p. 250). MOA-CYR AMARAL SANTOS já não reproduz completamente, na nova edição de sua obra, ponto de vista similar, antes sustentado (Primeiras linhas..., 2. ed., v.

2, p. 25; 7. ed., p. 18). Não nos parece acertada a inclusão do concurso de credores entre as formas de intervenção de terceiros, desde que o concurso de credores, seja falencial ou civil, dá lugar ao ingresso dos credores como partes, e não como terceiros que passem a integrar processo alheio, em defesa de interesses próprios, de alguma forma ligados à demanda de outrem. É veidade que, de certa forma, o credor que intervém no concurso assume posição sinilar à do terceiro opoente; todavia, a posição deste não se confunde com a de um litiscon-sorte em relação plúrima, como sucede no caso do concurso. O direito alemão regula um caso especial de formação de concurso incluído no capítulo destinado à disciplina da intervenção de terceiros, que é o chamado litígio entre pretendentes (§ 75 da ZPO), a ter lugar quando, numa demanda comum entre credor e devedor, este denuncia o litígio a um terceiro que se afirme titular do crédito objeto da demanda. Intervindo o terceiro pretendente, o devedor se desliga do processo, depois de depositar a prestação reclamada, continuando, a partir daí, o novo litígio entre os pretendentes. A espécie, como se vê, não configura realmente um caso de intervenção de terceiro, mas, ao contrário, corresponde à instauração de uma nova demanda subsequente entre os credores pretendentes (J. GOLDSCHMIDT, Derecho procesal civil, § 70, 3, b; SCHÓNKE,ob. cit., § 29, IV, 2), à semelhança do que ocorre com nossa ação de consigiação em pagamento, na hipótese do art. 898 do CPC.

Pelo que acaba de ser visto, conclui-se que o Código, no Capítulo VI do Título II de seu Livro I, ao tratar da intervenção de terceiros, não só não esgotou as hipóteses de intervenção de terceiros como ielibera-damente deixou fora do capítulo a assistência, preferindo regulá-la junto ao Htisconsórcio. A opção tem origem doutrinária na concepção de CARNELUTTI, que define o assistente como sujeito da ação, e, pois, como parte adesiva ou acessória, embora não seja sujeito da lide (Sistema..., v. 1, p. 393). O art. 52 do CPC, ao afirmar que o assistente atuará como auxiliar da "parte principal", deixa bem visível essa tomada de posição doutrinária, no sentido de considerar o assistente "parte acessória". Não nos parece convincente a distinção entre intervir e assistir feita por PONTES DE MIRANDA (Comentários..., v. 2, p. 55) para justificar a solução legislativa.

11.2 Assistência adesiva simples

A doutrina moderna costuma distinguir duas formas de assistência, uma chamada adesiva simples e a outra adesiva litisconscrcial, ou autónoma. Dá-se intervenção adesiva simples quando o terceiro in-

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gressa no processo com a finalidade de auxiliar uma das partes em cuja vitória tenha interesse, uma vez que a sentença contrária à parte coadjuvada prejudicaria um direito seu, de alguma forma ligado ao direito do assistido.

Pense-se no seguinte exemplo. Duas pessoas controvertem sobre a validade de uma doação que contém um encargo em favor de um terceiro. Este, beneficiado com o encargo, certamente tem interesse jurídico em ingressar na causa, para assistir a parte que sustente a validade da doação. E, nesse caso, como se vê, o assistente não coloca em causa qualquer direito próprio, senão que ingressa no processo apenas para auxiliar uma das partes em cuja vitória tem interesse.

Embora o direito romano não haja tratado sistematicamente da intervenção de terceiros, de certo modo, aliás, incompatível com a estrutura do processo romano fundado na relação bilateral da litiscontestatio, mesmo assim, no período da cognitio extra ordinem, admitiu-se que terceiros pudessem intervir sempre que houvesse suspeita de conluio entre as partes de que pudesse advir ao terceiro algum prejuízo (MOACYR LOBO DA COSTA, Assistência no processo civil brasileiro, p. 2). Daí deriva o entendimento de que o terceiro, ao ingressar no processo, tem em vista apenas auxiliar na vitória do assistido, de modo a tentar prevenif os efeitos danosos que a sentença lhe possa causar, evitando preventivamente que os efeitos da sentença se produzam sobre seu direito. Segundo esta concepção, a sentença atingiria em qualquer caso o terceiro, quer ele houvesse participado do processo, como assistente, quer não. Esta parece ser a doutrina aceita por ARRUDA ALVIM {Comentários..., v. 3, p. 7-8), que é expresso em afirmar que os efeitos da sentença se produzem contra o assistente litisconsor-cial, tenha ele ingressado ou não no processo; e, depois, ao afirmar que o assistente simples é tocado pelos efeitos da sentença mesmo que não haja participado do processo (p. 30).

Parece-nos, todavia, que aí há uma confusão entre eficácia direta da sentença - efeito natural, na terminologia de LIEBMAN - e eventuais efeitos reflexos sobre a relação jurídica conexa de que faça parte o terceiro legitimado a intervir. De um modo geral, os exemplos romanos de assistência simples dizem respeito a hipóteses em que o terceiro, ingressando ou não no processo, sofreria a eficácia constitutiva da sentença, e o exemplo mais típico desta espécie é a intervenção do legatário na demanda sobre a nulidade do testamento, sustentada pelo herdeiro legítimo contra o testamentário. A intervenção do fiador na lide entre o devedor principal e o credor, ou a intervenção do beneficiado com o encargo na lide entre o doador e o donatário sobre a validade da doação, ou entre o herdeiro legítimo e o testamentário sobre a validade do testamento correspondem a hipóteses dessa espé-

cie, em que o interesse do assistente se limita a evitar, preventivamente, a formação da sentença adversa ao assistido, por ter ele interesse seja na declaração (eficácia constitutiva) da inexistência da dívida que afiançara, seja na declaração da validade da doação, ou do testamento de que decorre para o interveniente o benefício do encargo, evitando, aqui, o mesmo efeito constitutivo contrário a seu interesse.

Entretanto, ao lado desse tipo de interesse legitimador da intervenção do assistente simples, pode ocorrer que o terceiro esteja legitimado a intervir adesivamente nos casos em que a parte assistida tenha uma ação de regresso contra ele, quando ela resulte vencida na causa. A doutrina separa perfeitamente as duas espécies (assim KISCH, Elementos de derecho procesal civil, § 67, 1, e PONTES DE MIRANDA, Comentários..., t. II, p. 58, quanto ao chamado "efeito probatório", ocorrente nos casos de direito regressivo contra o assistente).

Essa distinção é sumamente relevante para a compreensão do instituto da assistência. Na hipótese de o interesse do assistente referir-se a uma eventual ação regressiva, ou quando, no caso do sublocatário, a sentença se tenha de executar contra o terceiro, não se pode dizer que seu ingresso no processo seja indiferente. Se ele permanece alheio à relação processual entre o terceiro e aquele a quem poderia assistir, a sentença não o atingirá nem poderá ser contra ele executada.

Na assistência adesiva simples, o assistente está ligado de alguma forma ao assistido, com quem mantém relação jurídica conexa ou dependente, que poderá ser afetada pela sentença proferida contra a parte assistida. O interesse que legitima a intervenção do assistente consiste, precisamente, em participar do processo auxiliando a parte em cuja vitória tenha interesse (art. 50 do CPC). Deve observar-se, porém, que o assistente, em defendendo a causa do assistido, na verdade defende basicamente um interesse próprio, pois seu objetivo é evitar a formação da sentença contrária a seu direito, invocada como pressuposto legitimador da intervenção.

Não se trata, portanto, de auxílio desinteressado que o assistente possa oferecer à parte a que preste auxílio, fundado em sentimento de solidariedade, amizade ou filantropia, ou de alguma colaboração oferecida em função de um interesse meramente económico na vitória do assistido. Há necessidade, para que a intervenção tenha lugar, que o terceiro demonstre interesse jurídico na vitória do assistido. É por isso que o credor do demandado numa ação reivindicatória não está legitimado a intervir para auxiliar o devedor, uma vez que seu interesse na causa é meramente económico ou de fato, como se costuma dizer, e não jurídico, pois a sentença proferida na ação, ainda que possa reduzir o devedor à

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insolvência, não pode nunca intervir na existência da relação obrigacio-nal que liga o demandado a seu credor. A relação de crédito permanecerá íntegra, mesmo em face da sentença adversa proferida na demanda rei-vindicatória. Em verdade, não há qualquer conexão entre a relação obri-gacional existente entre o réu e seu credor, de modo que esta permanecerá incólume qualquer que seja o resultado da demanda (CALAMAN-DREI, htituzioni..., § 11,1, 2).

ARRUDA ALVIM {Comentários..., v. 3, p. 27) afirma que os efeitos reflexos que a sentença produz contra terceiros são inexoráveis, atingindo-os irremediavelmente, quer eles tenham intervindo na causa, quer não, uma vez que o assistente litisconsorcial deve ser tratado "como se fosse litisconsorte sob regime unitário", e também o assistente simples sofre irremediavelmente os efeitos da sentença, uma vez que esse "terá sua relação jurídica afetada em sua consistência prática e económica" (p. 33-34). Tal concepção tem origem no direito português, que serviu de inspiração ao nosso, constando do art. 335, n. 2, do Código lusitano que o interesse capaz de legitimar a intervenção do terceiro deriva da circunstância de ser ele "titular de uma relação jurídica cuja consistência prática ou económica dependa da pretensão do assistido". Não nos parece, porém, apropriada essa terminologia. A referência à "consistência prática ou económica" da relação jurídica, de que faça parte o terceiro, poderá, com facilidade, ser confundida com o simples interesse de fato que, como se viu, não legitima a intervenção. Na verdade, não é a simples influência na "consistência prática ou económica" que dará ensejo à intervenção. E preciso que o terceiro, que pretenda intervir, esteja numa relação jurídica com uma das partes, de tal modo que a sentença desfavorável ao assistido influiria juridicamente - e não como simples fato ou só economicamente - em sua situação jurídica (ROSEN-BERG, Tratado..,, § 46, II, 2).

A outra condição necessária para que a assistência tenha lugar, além do interesse jurídico na intervenção, é a existência de uma demanda pendente entre o assistido e algum terceiro. Enquanto a causa pender de julgamento final, a intervenção é possível, mesmo em grau de recurso extraordinário.

É importante observar, contudo, que o assistente não se torna parte na demanda em que presta auxílio ao assistido, uma vez que não faz pedidos e nenhum pedido é feito contra si, sendo, assim, imprópria a designação, sugerida pelo Código para o assistente de parte acessória ou parte secundária (ATHOS GUSMÃO CARNEIRO. Da assistência no processo civil. Ajuris 22/239).

Ocorre assistência adesiva simples nos seguintes casos: a) ingresso do subinquilino na ação de despejo proposta pelo loca

dor contra o inquilino; b) ingresso do fiador na ação entre o credor e o devedor principal

sobre a validade do contrato de empréstimo garantido pela fiança; c) intervenção do legatário na demanda entre o herdeiro legítimo e

o testamentário sobre a validade do testamento; d) intervenção do tabelião na ação entre os figurantes numa escritu

ra pública por aquele lavrada, para a declaração de nulidade ou falsidade da escritura;

e) intervenção do segurador na causa movida pela vítima do aciden te contra o segurado causador do dano.

Segundo PONTES DE MIRANDA (Comentários..., v. 2, p. 53), o legatário ingressa na demanda como parte, e não como assistente. E tem razão, como veremos depois. Há grave discórdia quanto à natureza do interesse do tabelião capaz de legitimar sua intervenção na demanda de nulidade de escritura, uma vez que, segundo alguns, seu interesse não é jurídico, mas de fato (assim CHIO VENDA, Principii..., p. 602). ZANZUCCHI, ao contrário, entende que o interesse do tabelião é jurídico, e não de fato (Diritto processuale civile, v. 1, p, 332), e neste sentido é a lição de MOACYR LOBO DA COSTA (Assistência..., p. 117). E PONTES DE MIRANDA (ob. cit., p. 66) indica-o como exemplo de assistente litisconsorcial.

11.3 Efeitos da intervenção adesiva simples

a) O assistente adesivo simples tem uma posição processual subor dinada à da parte a que assiste, uma vez que ele não coloca em causa diretamente nenhum direito ou relação jurídica que deva ser julgada pela sentença. Dessa sua posição subalterna deriva a consequência de que o assistente não pode desistir da ação, ou reconhecer o pedido ou confes sar, bem como lhe é vedado praticar qualquer ato processual contrário à vontade do assistido. Esses atos todos serão ineficazes (ARRUDA AL VIM, Comentários..,, v. 3, p. 55);

b) o assistente recebe a causa no estado em que se encontra, confor me dispõe o art. 50, parágrafo único, do CPC, de modo que as preclusões já operadas no processo contra a parte assistick a de se estendem, im-

D I B L I O içÇA

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pedindo-o de reclamar ou rediscutir, nesse processo, o que já tenha sido abrangido pela preclusão. Isso, todavia, não o impedirá, em certos casos, de suscitar a mesma questão no eventual processo posterior que o assistido lhe mover, em razão de direito regressivo;

c) o assistente será condenado em custas, na proporção da atividade que haja desempenhado na causa, conforme prescreve o art. 32 do CPC, se o assistido resultar vencido;

d) o assistente pode desistir da intervenção, independentemente do consentimento das partes;

e) por sua vez, a intervenção do assistente não obsta a que a "parte principal" reconheça a procedência do pedido, desista da ação ou transija sobre o direito litigioso, casos em que, terminado o processo, cessa a intervenção do assistente (art. 53 do CPC);

f) todavia, sendo revel o assistido, considera-se o assistente seu "gestor de negócios" (parágrafo único do art 52 do CPC);

g) o assistente simples poderá requerer provas, formular quesitos em procedimentos de vistorias, exames periciais e avaliações, fazer ale gações orais, perguntar testemunhas, impugná-las, recorrer e contra-ar- razoar recursos. Todavia, se o assistido desistir do recurso interposto, deverá sujeitar-se aos efeitos da desistência;

h) não pode, todavia, o assistente suscitar a exceção de incompetência de foro, devendo sujeitar-se ao foro da demanda, bem como não poderá oferecer reconvenção, ou propor ação declaratória incidental, nem modificar o objeto litigioso (GOLDSCHMIDT, Derecho procesal civil, § 70, 2, c); mas, por não ser parte, pode ser ouvido como testemunha (ROSENBERG, Tratado..., § 46, IV, I, a; LENT, ob. cit., § 83, IV, 4).

A atividade do assistente adesivo simples está subordinada à atividade da parte principal a que adere, não podendo ele praticar atos que esta já tenha perdido o direito de fazê-lo, nem assumir atitude que esteja em oposição à conduta do assistido (ARRUDA ALVIM, Comentários..., p. 52). Essa limitação é geralmente aceita pela doutrina (ROSENBERG. Tratado..., § 46, IV, 1, c; SCHÕNKE, ob. cit., § 27, IV, 1, a; ZANZUCCHI, ob. cit., v. 1, p. 333; CHIO-VENDA, Principii..., p. 603).

Todavia, tal subordinação radical do assistente, pelo menos na perspectiva do direito brasileiro, que ampliou os poderes e encargos do interveniente adesivo, parece que não deve ser tão severa. Pelo menos seria necessário que se fizesse

aqui a distinção básica entre as duas espécies de assistência adesiva simples, conforme haja ou não ação regressiva do assistido contra o interveniente, pois a limitação na iniciativa do assistente, quanto à formação do convencimento do julgador, não poderá, em certos casos, impedir a efetiva e eficiente fiscalização probatória que, afinal, tenha dado causa à própria assistência. Assim sendo, e apesar da disposição do art. 53 do CPC, julgamos excessiva a conclusão de ARRUDA ALVIM (ob. cit., p. 55), que entende deva o assistente sujeitar-se ao arbítrio do assistido quando este declare não desejar produzir provas; ou o parecer de ATHOS GUSMÃO CARNEIRO (Da assistência..., Ajuris 22/241), afirmando que o assistente ficará impedido de postular a produção de provas em audiência se o assistido pedir o julgamento antecipado da lide.

Na doutrina italiana, de um modo geral, confere-se maior autonomia ao assistente adesivo, em matéria probatória (cf. ZANZUCCHI, ob. e loc. cits.). Na literatura recente, FABRINI (Contributo..., Cap. VI) procura sustentar a mesma orientação, embora com resultados modestos. A distinção, aliás, entre a assistência adesiva simples e a litisconsorcial, quanto à dimensão dos poderes de gestão processual reconhecidos a cada uma delas, tem sido hostilizada pela jurisprudência italiana, que tem admitido a rebeldia do assistente contra a negligência do assistido (ANDRIOLI, Commento ai Códice de Procedura civile, v. 1, p. 295). No sentido da ampla autonomia do assistente adesivo simples, orienta-se a conhecida posição de ANTÓNIO SEGNI (Intervento in causa. Novíssimo digesto italiano, v. 8, p. 961). De resto, não parecem inconciliáveis a submissão do assistente ao arbítrio do assistido, quando este resolva pôr fim ao processo desistindo da ação ou reconhecendo a procedência do pedido, e a faculdade que se lhe reconheça de postular meios de prova contra o desejo do assistido. A sujeição do assistente à vontade do assistido, na primeira hipótese, deve-se ao fato de desaparecer, com a desistência ou com o reconhecimento do pedido, um dos pressupostos da própria assistência, que é a pendência da lide entre o assistido e algum terceiro, o que não sucede na segunda hipótese (sobre isto, SEGNI, ob. e loc. cits.).

Além de todos esses efeitos que se podem indicar como internos à demanda, a assistência simples produz, ainda, um efeito externo, que só será eficaz na eventual demanda regressiva posterior que venha a ser proposta pelo assistido sucumbente contra o interveniente. É o chamado efeito de intervenção, previsto no art. 55 do CPC, segundo o qual, uma vez transitada em julgado a sentença, na causa em que interveio o assistente, este não poderá, em processo posterior, discutir a justiça da decisão. Isso corresponde a afirmar que a sentença proferida na causa de que o assistente participou, embora não produza efeito de coisa julgada contra ele, mesmo assim o alcança, tornando indiscutíveis os fatos e fundamentos jurídicos com base nos quais o juiz tenha decidido a demanda contra o assistido.

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O efeito de intervenção, como o nome está a indicar, é fenómeno peculiar à intervenção de terceiros em que ocorra assistência simples e não se confunde com a coisa julgada, por ser, em certos aspectos, mais extenso do que esta, e, noutros, mais restrito (MOACYR LOBO DA COSTA, Assistência..., p. 197; SCHÓNKE, ob. cit., § 27, IV, 2).

O importante para caracterizar o chamado efeito de intervenção é observar que a porção da sentença que se transfere para a segunda demanda, como coisa indiscutível, não é decisum que contém a coisa julgada, mas os fundamentos de fato e de direito que determinaram a decisão anterior (GOLDSCHMIDT, Derecho..., § 70, 2, d). Nesse sentido, o efeito de intervenção produz resultado mais amplo do que a coisa julgada, na medida em que impede que o juiz do segundo processo possa reapreciar os fundamentos jurídicos e também os fatos aceitos pelo juiz da ação em que a intervenção teve lugar. A coisa julgada, ao contrário, como o próprio Código dispõe (art. 469), jamais torna indiscutíveis os fatos e fundamentos jundicos em que se tenha fundado a sentença. Como a autoridade da coisa julgada se confere à resolução da pretensão formulada pelas partes, seus limites objetivos circunscrevem-se à conclusão do silogismo judicial, ao passo que o efeito de intervenção, tornando indiscutíveis os fatos, alcança a premissa menor do silogismo, tornando-a incontrovertível na demanda de regresso entre o assistido e o interveniente (MOACYR LOBO DA COSTA, Assistência...^. 197; ROSENBERG, Tratado..., § 46, IV, 1, e). Assim, pois, se na demanda de nulidade de contrato interveio o notário e ficou provado, para essa demanda, que houve negligência de sua parte, de que proveio o vício do instrumento, esse fato jurídico transborda da primeira demanda e torna-se indiscutível na ação regressiva porventura movida contra o tabelião pelo assistido por ele na primeira demanda.

Se, nesta perspectiva, o efeito de intervenção é mais amplo do que a coisa julgada, mostra-se, ao contrário, mais reduzido do que ela quanto à possibilidade de reexame pelo juiz do segundo processo, sempre que o assistente adesivo possa, agora como réu, suscitar a chamada exceptio mole gesti processus, o que ocorre - como está no art. 55,1 e II, do CPC - sempre que ele possa alegar que, pelo estado em que receba a causa, ou pelas declarações e atos do assistido, foi impedido de produzir provas capazes de influir no resultado da sentença, ou que desconhecia a existência de provas ou alegações, de que o assistido por dolo ou culpa não se valeu. Tais alegações certamente seriam inviáveis se o efeito da primeira sentença correspondesse à coisa julgada.

11.4 Intervenção adesiva litísconsorcial ou autónoma

Na intervenção denominada adesiva litisconsorcial, ou autónoma, o terceiro tem interesse em intervir na causa em virtude de estar ligado à parte contrária àquela a que presta auxílio, por uma relação jurídica que poderá sofrer influência em virtude da sentença desfavorável ao assistido. Enquanto na assistência adesiva simples o interveniente participa de alguma relação jurídica existente entre ele e a parte assistida, na adesiva litisconsorcial o terceiro se liga com o adversário do assistido, nos casos em que a sentença houver de influir nessa relação entre o assistente e a parte adversa do assistido. De modo que, nesta hipótese, a intervenção se dá para que o assistente ingresse no processo coadjuvando o assistido, como sempre acontece, porém aqui para evitar que a sentença produza efeito não sobre a relação jurídica de que ele e o assistido participem, mas na relação jurídica que o liga ao adversário da parte a que assiste.

A figura do interveniente adesivo litisconsorcial é completamente obscura na doutrina, que não mantém o menor acordo sobre pontos essenciais. Segundo se diz, o instituto da intervenção adesiva litisconsorcial tem procedência moderna alemã, mas origem italiana (GIARDINA, L'origine italiana deirintervento litis-consortile, RDPC, v. 1, p. 266 e ss.; PONTES DE MIRANDA, Comentários..., v. 2, p. 78; FABRINI, Contributo..., p. 35). O estudo da origem histórica dessa obscura "figura intercalar entre o litisconsorte e o assistente", como a define PONTES DE MIRANDA (p. 67), pode ser de extrema utilidade para o esclarecimento de questões doutrinárias graves e para a solução de problemas práticos de direito positivo que ainda permanecem insolúveis. A exposição sumária da teoria da intervenção adesiva litisconsorcial tocará tais problemas.

Segundo a doutrina, dá-se assistência litisconsorcial sempre que o interveniente esteja ligado à parte contrária ao assistido por uma relação jurídica que haja de sofrer influência dos efeitos da sentença. Na verdade, nem a lei nem a doutrina esclarecem com segurança qual a natureza específica dessa influência, distinguindo, com nitidez, se também na assistência litisconsorcial, como na simples, a projeção da sentença sobre a relação jurídica existente entre o interveniente e uma das partes se daria sob forma de interferência de alguma eficácia da sentença, ou se a indicada influência há de ser equivalente ao efeito próprio da coisa julgada. Na primeira hipótese, o terceiro interveniente não se transformaria em parte, desde que não teria posto em causa a sua relação jurídica, mas

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teria permanecido terceiro auxiliar da parte; na última, o assistente litis-consorcial confundir-se-ia com um litisconsorte, uma vez que, sendo atingido pela coisa julgada em processo de que participara, sua condição seria equivalente à da parte e haveria de ter-se por decidida com a sentença também a relação jurídica de que ele participasse. Os exemplos poderão auxiliar na exposição do problema. Têm-se como casos de assistência litisconsorcial os seguintes:

a) no processo de interdição, promovido por um dos legitimados, a intervenção de outro igualmente legitimado para a causa;

b) o ingresso de um segundo herdeiro na ação em que se discuta a causa da deserção, entre o herdeiro deserdado e o legítimo (ROSEN- BERG, Tratado..., § 46, IV, 2, a);

c) o ingresso de outro sócio na ação de impugnação de uma delibe ração de assembleia geral de sociedade de responsabilidade limitada (ROSENBERG, ob. e loc. cits.);

d) o ingresso de um novo acionista no litígio entre outros acionistas sobre a nulidade de uma deliberação de sociedade anónima (SCHÒNKE, ob. cit, § 27, V, 1);

e) o ingresso da mulher na demanda sustentada pelo marido sempre que a sentença possa ser executada nos bens comuns (SCHÕNKE, ob. e loc. cits.; PONTES DE MIRANDA, Comentários..., v. 2, p. 79);

f) nos casos ditos de "substituição processual" (GOLDSCHMIDT, Derecho..., § 63,6, a), como o ingresso do herdeiro na demanda intentada pela herança ou contra ela proposta e sustentada pelo inventariante (PON TES DE MIRANDA, Comentários..., v. 2, p. 67; MOACYR LOBO DA COSTA, Assistência..., p. 124);

g) o ingresso de um segundo herdeiro na demanda por dívida da herança sustentada por um co-herdeiro solidariamente responsável (MON TERO AROCA, ob. cit., p. 164);

h) na demanda fundada em obrigação solidária, o ingresso de outro devedor na posição de assistente do obrigado demandado (MONTERO AROCA, idem; J. W. TEITELBAUM, El proceso acumulativo, p. 140);

i) o ingresso do juiz, se tiver responsabilidade civil, nas ações em que se argui ter sido iiegal a autorização judicial, ou o ingresso do tabelião na ação em que se discuta a validade de escritura pública (PONTES DE MIRANDA, ob. cit., p. 66-67).

Os exemplos acima indicados como sendo casos de intervenção litisconsorcial podem ser classificados segundo a influência da sentença sobre a relação jurídica do terceiro seja equivalente à eficácia constitutiva, ou à coisa julgada, ou, finalmente, a outra eficácia natural diversa do efeito constitutivo. No exemplo e está visível o efeito executivo da sentença sobre os bens da mulher que há de sofrer o processo de execução: neste caso, evidentemente, ela não se transformará em parte se ingressar na demanda em que é réu o marido e nunca poderá ter sua relação jurídica posta em causa, simplesmente porque ela não tem qualquer relação jurídica com a parte adversa. Se o fato de sofrer ela em seus bens o efeito executivo legitimasse a inclusão do exemplo entre os casos de assistência litisconsorcial, teríamos, por analogia, de incluir também aí o exemplo da intervenção do subin-quilino na demanda em que o inquilino for réu.

Se o interveniente é alcançado pela coisa julgada, então é litisconsorte do assistido e deverá ser considerado parte, e não simples assistente da parte, como é o caso, em geral, dos co-legitimados que, ao ingressarem na demanda, o fazem como litisconsortes sujeitos à coisa julgada que se há de produzir com a sentença. Estão nesse caso os exemplos do herdeiro que intervém na demanda sustentada pelo inventariante, ou por outro herdeiro, versando relação jurídica de que o espólio seja parte, ou do herdeiro que intervém como assistente de outro herdeiro legítimo na demanda sobre a anulação do testamento. Em tais casos, diz-se que o herdeiro que intervém não se transforma em parte por não formular pedido contra o autor nem sofrer contra si algum pedido formulado pelo autor, quando ele ingresse para auxiliar o demandado. Segundo ATHOS GUSMÃO CARNEIRO (Da assistência..., Ajuris 22/242), "o assistente não é parte, mas o direito do assistente está em causa". Não aceitamos o argumento de que o interveniente, nesses casos, não seja litisconsorte por não formular pedidos ou não serem formulados pedidos contra ele. Também o litisconsorte que tenha ficado fora da causa, quando sua presença fosse obrigatória por ser necessário o litisconsórcio, quando nela ingressa espontaneamente, ou por ordem do juiz (art. 47, parágrafo único, do CPC), seja como autor, ou como réu, não tem nenhuma necessidade de formular pedido expresso nem o autor necessita modificar a petição inicial para incluir o litisconsorte que passa a integrar a lide posteriormente.

O simples ingresso do litisconsorte tem a virtude de envolvê-lo na demanda, estendendo-lhe os pedidos nela contidos. Aliás, se ainda pudessem pairar dúvidas sobre a condição de parte do assistente litisconsorcial, a comparação dos exemplos escolhidos pela doutrina com os casos de litisconsórcio facultativo, por nós já enumerados, seria o argumento decisivo para a prova da completa identidade de situações. Por outro lado, sendo condição necessária para que se configure a assistência litisconsorcial a legitimidade ad causam do interveniente para a mesma demanda, se ele se unir ao autor primitivo desde a petição inicial, certamente ambos serão litisconsortes; se a coligação se der em momento sucessivo, certamente a natureza

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da posição de ambos não poderá alterar-se, de modo que o litisconsorte que intervenha em momento sucessivo fique na condição de terceiro.

Finalmente, não podemos aceitar que alguém participe da lide e tenha seu direito em causa sem ser parte. Ter o direito em causa só pode significar que o juiz está a decidir esse direito, declarando-o existente ou inexistente, e, como resulta do de uma declaração positiva quanto à existência, constituindo ou condenando, ou executando, conforme a natureza da açao, a parte adversa. E esse resultado, certamente, transforma o interveniente litisconsorcial em parte, tornando-o sujei to à coisa julgada. \

E verdade que existem exemplos indicados pela doutrina de assistência litisconsorcial em que o assistente não tem legitimidade autónoma para a demanda, como no caso de intervenção do filho na demanda de nulidade de casamento dos pais. Mas aqui não se pode dizer que o filho tenha relação jurídica em causa no processo; certamente ele sofrerá o efeito constitutivo da sentença que declarar a nulidade do casamento, a qual produzirá influência na relação jurídica de filiação. O exemplo, porém, deve ficar incluído entre os casos de assistência adesiva simples, uma vez que o ingresso do filho na demanda de nulidade do matrimónio dos pais não tem qualquer carãter ad infringendum jura unius competitoris, que está, indeclinavelmente, na origem da intervenção litisconsorcial (cf. GIARDINA, ob. cit., p. 270). Os outros casos que se furtam à regra da co-legitimação, como o da intervenção da mulher na demanda do marido por ser a sentença executável em seus bens, são em geral afastados como exemplos de assistência litisconsorcial (PONTES DE MIRANDA, Comentários..., 1939, 2. ed., t. II, p. 135, que, todavia, não reproduz o argumento nos novos Comentários..., cf. t. II, p. 72).

O exemplo indicado da intervenção do filho na demanda sobre o matrimónio dos pais (PONTES DE MIRANDA, Comentários..., 1973, t. II, p. 78), como um caso de assistência litisconsorcial, levaria à conclusão de ter-se o assistente, nesse caso, "como se fora um litisconsorte", como querem a lei e a doutrina, cuja principal consequência, dentre outras igualmente graves, seria a de se lhe conceder autonomia para a continuação do processo, no caso de desistência da demanda por parte do assistido, o que, sem a menor dúvida, seria completamente desarrazoado. Outro exemplo comumente empregado pela doutrina para indicar um caso de assistência litisconsorcial é o da intervenção - que se haveria de supor voluntária - do usufrutuário na açao de reivindicação proposta por terceiro contra o proprietário de quem ele houve o usufruto (SÉRGIO FERRAZ, Assistência litisconsorcial no direito processual civil, p. 73). O exemplo, no entanto, como aquele outro da intervenção do legatário na ação de nulidade do testamento, é impróprio, desde que o usufrutuário não é apenas assistente, senão que deve ser litisconsorte necessário na ação reivindicatória. pois, sendo ele possuidor e. além disso, titular de direito real desmembrado do domínio, a sentença não poderia ser contra ele executada, se a demanda não fosse proposta também perante ele. O usufrutuário é réu na ação

reivindicatória e, se não for citado, poderá embargar de terceiro a execução da respectiva sentença, ou suscitar a exceptio res interaiios iudicatae (PONTES DE MIRANDA, Tratado das ações, v. 6, p. 189).

Quaisquer que sejam, todavia, as objeções que se possam levantar contra o entendimento segundo o qual o chamado assistente litisconsorcial permanece na condição de terceiro, ao ingressar na causa, a verdade é que nosso Código filiou-se a tal entendimento, que teria derivação do direito alemão (§ 69 da ZPO). Segundo o Código e o espírito que presidiu à sua elaboração, o assistente litisconsorcial do art. 54 não seria parte nem se transformaria em parte com seu ingresso na causa (LOPES DA COSTA, Direito processual civil, v. 1, § 497; ARRUDA ALVIM, Comentários..., v. 3, p. 79; CELSO BARBI, Comentários..., v. 1, p. 303; HÉLIO TORNAGHI, Comentários..., v. 1, p. 232; ATHOS GUSMÃO CARNEIRO, Intervenção de terceiros, p. 89; SÉRGIO FERRAZ, ob. cit., p. 91; CÂNDIDO DINAMARCO, Litis-consórcio..., p. 28). Segundo este entendimento, na intervenção qualificada ou litisconsorcial, o assistente, embora titular de uma relação jurídica de idêntica natureza à da relação litigiosa posta em causa pela parte principal, não assumiria, em relação à parte adversa, a posição de um interveniente principal ou opositor, como se dava na antiga "intervenção mista", do direito comum (MOACYR LOBO DA COSTA, Assistência..., p. 169), de modo que, com o seu ingresso na causa, o assistente litisconsorcial não formularia pedidos nem teria, quando assistente do réu, pedidos contra si formulados, e, assim, sua relação com a parte contrária à assistida não seria objeto de decisão, embora devesse sofrer "diretamente" os efeitos da coisa julgada. Em sentido contrário, todavia, entendendo ser o assistente litisconsorcial verdadeiro litisconsorte da parte a que assiste, manifestam-se LUIZ ANTÓNIO DE ANDRADE (Aspectos e inovações do Código de Processo Civil, p. 78), MODESTINO MARTINS NETO {Da cumulação de ações e intervenção de terceiros, p. 114), THEODORO JÚNIOR (Curso de direito processual civil - Processo de conhecimento, n. 127) e J. J. CALMON DE PASSOS (Comentários..., v. 10, t. I, n. 167).

Esta última é a doutrina verdadeira. Realmente, neste particular, de pouco vale a intenção do legislador, que será absolutamente incapaz de alterar a natureza das coisas. O assistente litisconsorcial será necessariamente atingido pela coisa julgada e istog o auanto t^tf-Fpr^; colocá-lo na posição de parte.

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PONTES DE MIRANDA é incluído por ARRUDA ALVIM (p. 7) entre os últimos, mas. apesar da ambiguidade de sua exposição, deve-se considerá-lo um seguidor da doutrina alemã, para a qual o interveniente é considerado terceiro, e não parte.

11.5 Efeitos da intervenção adesiva litisconsorcial

Segundo a doutrina seguida pelo Código, inspirada no direito alemão, o interveniente litisconsorcial assume, na causa, uma posição dupla, de vez que desfruta da posição detrm litisconsorte no plano do direito processual, embora não seja um verdadeiro litisconsorte, mas um simples terceiro auxiliar da parte "principal" a que adere (cf. ROSENBERG, Tratado..., §46, 2, b).

Em razão de sua equiparação a um litisconsorte (art. 54 do CPC), o interveniente, nessa hipótese, tem uma posição independente da parte "principal", quanto aos poderes de gestão processual, podendo requerer provas, recorrer, prosseguir no processo, ainda que a parte "principal" a isso se oponha (SCHÓNKE, ob. cit., § 27, V, 2, a).

Como não é parte, segundo esse entendimento, não poderá, portanto, o assistente litisconsorcial reconhecer o pedido, confessar, modificar o objeto da demanda, propor declaratória incidental nem reconvenção.

Tendo em vista a maior independência do assistente litisconsorcial, relativamente ao assistente simples, particularmente a faculdade que se lhe reconhece de poder impugnar a sentença mesmo que o assistido a isso se oponha, ARRUDA ALVIM (Comentários, v. 3, p. 72), com razão, entende que o art. 53 do CPC não se aplica ao assistente litisconsorcial, mas apenas ao adesivo simples, desde que, quanto ao primeiro, deve-se admitir que ele possa se opor ao pedido de desistência da ação formulado pelo autor a que preste assistência, ou à declaração de reconhecimento do pedido feito pelo réu na hipótese inversa. O regime jurídico da assistência litisconsorcial previsto no art. 54 autoriza essa conclusão, ao equiparar o assistente litisconsorcial a um litisconsorte.

Segundo a opinião geralmente aceita pela doutrina, o interveniente litisconsorcial, não sendo parte mas terceiro que apenas auxilia a parte a que adere, não será atingido pela coisa julgada da sentença proferida na causa entre o assistido e o terceiro, sendo alcançado, como o assistente simples, tão-somente pelo efeito de intervenção (SCHÕNKE, ob. cit., § 27, V, 2, c). A sentença é pronunciada somente entre as partes (LENT, ob.

cit., § 83, VI), a não ser naqueles casos em que a coisa julgada se estenda realmente a um terceiro, como ocorre com os sucessores, ou cessionários, e nos casos ditos de substituição processual, que são atingidos pela coisa julgada, como acontece na demanda sustentada pelo inventariante ou testamenteiro relativamente aos herdeiros legítimos ou testamentários (ROSENBERG, Tratado..., § 46, 2, a).

Na doutrina brasileira, MOACYR LOBO DA COSTA (Assistência..., p. 168) entende que na assistência litisconsorcial há efetivamente ampliação do objeto litigioso, porquanto, ao lado da lide entre o assistido e o terceiro, se insere a relação jurídica entre este e o interveniente que será atingido pela sentença, com autoridade de coisa julgada. Mesmo assim, segundo ele, a relação jurídica entre o interveniente e a parte contrária não será objeto de decisão, desde que a sentença "somente decidirá a lide entre as partes" (p. 170). Ao contrário, ARRUDA ALVIM (Comentários..., v. 3, p. 80) sustenta que o assistente litisconsorcial "será atingido pela coisa julgada mesmo não tendo ingressado no processo", apesar de reconhecer que o art. 54 de nosso Código - ao contrário do § 69 da ZPO alemã, de que provém - emprega o verbo influir, o que estaria a indicar que a sentença apenas exercerá influência sobre essa relação, não a julgando diretamente. Na doutrina italiana prepondera a opinião de que o interveniente litisconsorcial é parte, propondo com a intervenção uma verdadeira demanda nova (SEGNI, Intervento in causa, Novíssimo digesto italiano, v. 8, p. 952; CALAMANDREI, htituzioni..., § 111,3; ZANZUCCHI, ob. cit, v. 1, § 138; REDENTI, Derechoprocesal civil, v. 1, § 90; FABRINI, Contributo..., § 12, particularmente p. 50; SÉRGIO COSTA, Intervento in causa, § 21; PROTO PISANI, Commentario dei Códice di Procedu-raCivile,v. l,p. 1.150).

A posição da doutrina peninsular se liga à estrutura que a intervenção litisconsorcial adquiriu no direito italiano, afinal consubstanciada no art. 105 do Código de 1942, que, indiscutivelmente, aproxima a intervenção adesiva autónoma ou litisconsorcial de nossa oposição, ou da chamada intervenção principal, enquanto na adesiva litisconsorcial, no sistema italiano, o interveniente faz valer um direito, seja contra ambos (intervenção principal), seja contra o adversário do assistido (intervenção adesiva litisconsorcial). Entre nós, apesar da resistência de alguns setores da doutrina, não vemos como a conclusão possa ser diversa.

11.6 Oposição

Oposição, ensinava PAULA BAPTISTA (Compêndio de teoria e prática do processo civil, § 126), "é ação de terceiro que intervém na causa para excluir as pretensões do autor e do réu". Tal o conceito tra-

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dicional do instituto da oposição no direito luso-brasileiro (Ordenações Filipinas, L. 3.°, Tít. 20, § 31).

Em verdade, como observa PONTES DE MIRANDA (Comentários..., 1973, v. 2, p. 91), o vocábulo excluir não tem, nesse contexto, o sentido de substituição subjetiva da parte, de tal modo que as partes fossem substituídas, por exclusão, com o ingresso do opoente. Daí a correção da lição de PAULA BAPTISTA, a precisar que a exclusão não se refere às partes, mas às suas pretensões postas em causa.

A oposição de nosso direito, portanto, corresponde à interventio ad excludendum do direito medieval, a que muitos sistemas denominam modernamente intervenção principal.

Define-a o art. 56 do CPC deste modo: "Quem pretender, no todo ou em parte, a coisa ou o direito sobre que controvertem autor e réu, poderá, até ser proferida a sentença, oferecer oposição contra ambos". De um modo geral, contém a oposição uma demanda declaratória proposta contra o autor e uma de natureza condenatória contra o réu (J. FREDERICO MARQUES, Manual.., v. 1, p. 263; PONTES DE MIRANDA, Comentários..., v. 2, p. 89).

Contudo, não é raro conter a oposição uma demanda de natureza executiva (lato sensu) contra o réu, sendo, nesse ponto, de estranhar a afirmação de PONTES DE MIRANDA sobre o caráter que considera normalmente condenatório dessa ação, declarando que a executividade de tal demanda provocaria embargos de terceiro (ob. e loc. cits.). Sendo, como ele próprio assegura, executivas lato sensu tanto a reintegratória de posse quanto a ação reivindicatória, parece perfeitamente possível, como nós próprios procuramos demonstrar (A ação de imis-são de posse, 2. ed., p. 178 e ss.), que a oposição contenha uma demanda declaratória contra o autor e outra executiva lato sensu contra o demandado. A ter-se de admitir que a natureza executiva da demanda afastaria o cabimento da oposição, cedendo esta lugar aos embargos de terceiro, haveríamos de concluir pela admissibilidade deste último remédio nas ações de despejo, depósito (art. 904 do CPC), reintegração de posse e reivindicação, além de outras, todas executivas, o que não está na tradição de nosso direito.

Pode suceder que a oposição contenha duas demandas apenas de-claratórias contra o autor e réu, como no caso de litigarem estes em ação condenatória de cobrança e intervir o opoente com o fito exclusivo de que se lhe declare a titularidade de crédito, sem intentar ainda a sua demanda de cobrança (cf. HÉLIO TORNAGHI, Comentários..., v. 1, p. 240).

CELSO BARBI (Comentários..., v. 1, t. II, p. 312) entende que o Código empregou inadequadamente a expressão "direito sobre que controvertem autor e réu", uma vez que, segundo ele, não há necessidade de controvérsia efetiva para ter cabimento a intervenção. Se, numa ação de cobrança, o réu não contesta a pretensão do autor, isso não constitui óbice ao cabimento da oposição. Entendemos, porém, que a redação do Código é correta: o que o legislador pretendeu dizer é que a oposição supõe contenciosidade da demanda principal, o que não se pode confundir com controvérsia efetiva ocorrente em dado processo. A revelia e o próprio reconhecimento do pedido não retiram o caráter contencioso da demanda. Segundo a concepção do legislador, o que estaria excluído seria o cabimento da oposição como incidente dos processos especiais de jurisdição voluntária, porque nestes as partes não controvertem, no sentido técnico-processual desse conceito.

A oposição tem lugar, em nosso direito, em qualquer tipo de processo contencioso, desde que satisfeitos seus pressupostos, sendo, porém, uma providência facultativa de que a parte poderá lançar mão ou não, segundo seu livre critério (CELSO BARBI, ob. cit., p. 313), não conhecendo o direito brasileiro a oposição provocada do art. 347 do Código de Processo Civil português (H. TORNAGHI, ob. cit., p. 241) nem o litígio entre pretendentes do direito alemão (§ 75 da ZPO), que contém elementos comuns à oposição e à nossa ação de consignação em pagamento quando fundada no art. 973, IV, do CC (art. 898 do CPC).

Para ARRUDA ALVIM {Comentários..., v. 3, p. 113), não cabe oposição em procedimento sumário, tendo em vista as dificuldades procedimentais que o ingresso do terceiro opoente causaria, assim como a eventualidade de compreender a oposição uma demanda de valor excedente ao fixado para esse tipo de procedimento. De igual modo, segundo o escritor, não se pode conceber oposição em processo de execução, desde que a demanda propriamente executória não contém controvérsia, faltando, portanto, o pressuposto básico para a "intervenção principal", e a controvérsia nos embargos estaria restrita a questões subsequentes à formação da coisa julgada do primeiro processo, que dera origem ao título executivo, sendo inviável a discussão, pelo opoente, de matéria já decidida pela sentença exeqiienda.

No que diz respeito ao procedimento sumário, dificuldades procedimentais trazidas pela propositura da oposição não seriam maiores do que as encontráveis nas hipóteses de intervenção provocada de terceiros, que eram geralmente aceitas pela doutrina em procedimento sumário, antes da Lei 9.245/95, que modificou a

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redação do art. 280 do CPC. Como disse ADROALDO FABRÍCIO (Doutrina e prática do procedimento sumaríssimo, p. 65), se a oposição fosse proposta antes da audiência, tramitando em autos apensos subordinando-se ao mesmo rito, não traria dificuldades visíveis para o andamento da causa principal. A razão que parece recomendar a admissão da oposição desde logo no procedimento sumário está em que, proposta a demanda em processo paralelo, o resultado que parece inevitável será a junção das demandas por conexão de causas, o que daria no mesmo (sobre o conceito de conexão de causas consulte-se BARBOSA MOREIRA, A conexão de causas...).

É necessário distinguir entre oposição e embargos de terceiro porque ambos podem ocorrer no chamado "processo de conhecimento". O elemento diferencial está no fato de existir, sempre, nos embargos de terceiro, uma constrição judicial contra a qual se opõem os embargos. Em verdade, o vocábulo embargos já sugere a ideia de desembaraço, desembargo, contra algum ato estatal de constrição (PONTES DE MIRANDA, Comentários..., 1973, t. XV, 4). De modo que, havendo alguma forma de constrição judicial de bens de terceiro, em processo no qual outros controvertem, como penhora, arresto, sequestro, busca e apreensão, arrecadação, arrolamento (cautelar ou não), de tal modo que se configure turbação ou esbulho possessório (art. 1.046 do CPC), a intervenção do terceiro se daria pela ação de embargos de terceiro, e não pela oposição.

Tendo-se em conta esse limite conceituai entre as duas ações, a de embargos de terceiro e a oposição, devemos entender que, havendo emissão liminar de sentença nos interditos de manutenção e reintegração de posse, através do qual o juiz mantenha, ou reintegre, o autor na posse do bem litigioso, o remédio cabível para que terceiro se insurja contra a constrição judicial de sua posse há de ser os embargos de terceiro, e não a oposição.

A finalidade da oposição, instituto de rara utilização prática em nosso direito, é assegurar as vantagens da economia processual, dando oportunidade a que o opoente se valha do processo já instaurado para nele incluir a sua demanda excludente da demanda proposta pelo autor da ação principal, ou da reconvenção do réu, contra a qual também pode se opor (ROSENBERG, Tratado..., v. 2, 96,1, b).

Para que a oposição seja admissível, é necessário que a causa principal já esteja pendente e ainda não julgada em primeira instância, pois, como se vê da redação do art. 56 do CPC, ela será oportuna até ser

proferida a sentença. Não há, portanto, ensejo para o terceiro propor a oposição na fase recursal, em segundo grau de jurisdição.

Sendo a oposição uma demanda autónoma, que se transforma em incidente da demanda principal apenas com o objetivo de ensejar o julgamento simultâneo, deverá ela ser proposta por meio de petição com os requisitos dos arts. 282 e 283 do CPC, devendo ser distribuída por dependência e apensada aos autos da ação principal.

A citação dos opostos será feita na pessoa de seus respectivos advogados, para contestar o pedido no prazo de quinze dias (art. 57 do CPC).

Sendo a oposição oferecida antes da audiência, será apensada aos autos da ação principal e correrá simultaneamente com a ação, sendo ambas julgadas pela mesma sentença. Se, porém, ela for oferecida depois de iniciada a audiência, a oposição há de ser processada independentemente da ação principal, que seguirá seu curso normal, salvo ao juiz a oportunidade de sobrestar seu andamento por um prazo não excedente a noventa dias, a fim de julgá-la conjuntamente com a oposição (arts. 59 e 60 do CPC).

A lei dispõe, no art. 60, que a oposição ajuizada depois de iniciada a audiência do processo principal seguirá o procedimento ordinário. Como afirma ARRUDA ALVIM {Comentários...,^. 171), parece ter havido engano do legislador, que pretendeu referir-se a procedimento autónomo em vez de procedimento ordinário, a não ser que se tire a conclusão, indevida e sem qualquer sustentação hermenêutica, de que apenas as demandas de procedimento ordinário poderiam prestar-se para oposição.

PEDRO BAPTISTA MARTINS {Comentários ao Código de Processo Civil, v. 1, p. 361) admitia, diante do silêncio do Código de 1939, a possibilidade de dedução de uma segunda oposição para excluir a oposição anterior. A regra era expressa no art. 409 do Código de Processo Civil de Pernambuco. PONTES DE MIRANDA {Comentários..., 1973, v. 2, p. 94) aplaude a posição de MARTINS e entende perfeitamente possíveis várias demandas de oposição, sem limitação de quantidade, simultaneamente processadas com a ação principal.

11.7 Nomeação à autoria

Nomeação à autoria é o incidente por meio do qual o detentor da coisa demandada, sendo erroneamente citado para a demanda, nomeia o

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verdadeiro proprietário ou possuidor, a fim de que o autor contra este dirija a ação. O art. 62 do CPC dispõe: "Aquele ,que detiver a coisa em nome alheio, sendo-lhe demandada em nome próprio, deverá nomear à autoria o proprietário ou o possuidor". A locução "nomear à autoria" significa indicar aquele em nome de quem, como detentor, ele exerce atos possessórios (do latim, auctor, auctoris, a causa ou origem do que se faz, ou de fazer-se alguma coisa; o senhor de alguma coisa, ou aquele que tem autoridade sobre ela).

O Código atual refere-se ao detentor, ao contrário do anterior que, pretendendo dizer a mesma coisa, gerou graves controvérsias ao referir-se ao que possuísse em nome de outrem, para indicar o detentor. Em verdade, perante a concepção de posse esposada pelo sistema brasileiro, o que exerce atos possessórios em nome de outrem é detentor, e não possuidor.

O expediente da nomeação à autoria tem como fundamento a eventual dificuldade que o proprietário ou possuidor possam ter para determinar, com segurança, o verdadeiro legitimado passivo para as ações reivindicatórias ou possessórias, pois aquele que ostenta a aparência de verdadeiro possuidor pode não passar de um simples empregado, ou procurador, ou, por qualquer forma, de um servidor da posse de outrem. Para superar a dificuldade e evitar que o autor tenha sua demanda repelida pelo reconhecimento de ilegitimidade de parte, nosso sistema processual salva a ação erroneamente dirigida contra aquele que não seria o legitimado passivo e o força a indicar o verdadeiro possuidor contra quem a demanda deve ser dirigida. O instituto da nomeação à autoria corresponde, portanto, à tentativa de compensar aquela dificuldade fãctica que o demandante poderia ter, em face da dificuldade de estabelecer a natureza dos atos de posse, permitindo que uma demanda tecnicamente proposta contra a parte ilegítima possa ter seu curso reorientado e supere a decretação de carência (J. FREDERICO MARQUES, Instituições..., v. 2, p. 261).

Em alguns sistemas, como é o caso do direito alemão, o mero detentor não pode nomear à autoria o possuidor, de modo que o resultado será, inevitavelmente, a decretação de carência de ação (ARRUDA ALVIM, Comentários..., v. 3, p. 191).

Ao contrário do que ocorria no direito anterior, a nomeação à autoria agora é obrigatória, como se vê da disposição contida no art. 62 do

CPC, que emprega o verbo deverá, ao contrário do art. 99 do Código de 1939, que dispunha que o "possuidor em nome de outrem" poderia, nos cinco dias seguintes à propositura da ação, nomear à autoria o proprietário ou o possuidor indireto.

^ Cabe igualmente a nomeação em caso de ação de indenização proposta pelo proprietário ou por algum titular de um direito sobre a coisa, toda vez que o responsável pelos prejuízos alegar que praticou o ato por ordem ou em cumprimento de instruções de terceiro (art. 63 do CPC). A extensão da nomeação à autoria aos casos das ações indenizatórias provém do direito português atual, cujo Código de Processo Civil, em seu art. 324, dispõe de modo semelhante, ampliando o cabimento da nomeação à autoria aos casos de algum titular de um direito real demandar em consequência de um fato que repute ofensivo a seu direito e o demandado alegar que agiu por ordem ou em nome de terceiro.

Na hipótese do art. 62, parece que o Código limitou a possibilidade da nomeação à autoria apenas ao detentor, e não ao possuidor direto, como se supunha perante o Código anterior, que aludia à nomeação do possuidor indireto (assim FREDERICO MARQUES, Instituições..., v. 2, p. 260). Peio sistema agora vigente, o possuidor imediato não poderá afastar-se da relação processual pelo expediente da nomeação à autoria, senão que deverá denunciar a lide ao possuidor mediato ou ao proprietário, com quem formará litisconsórcio (art. 70, II, do CPC). Certo, quanto a isso, ARRUDA ALVIM {Comentários..., v. 3, p. 186). Resta saber se, nas hipóteses do art. 63, refere-se o Código apenas ao simples detentor da coisa ou envolve, em sua previsão, também o possuidor direto. MOACYR AMARAL SANTOS {Primeiras linhas..., v. 2, p. 20) exemplifica com o caso de o empregado ser demandado pelo proprietário do imóvel vizinho pelos prejuízos acarretados pelo desvio de um curso de água e alegar que assim procedeu por ordem ou em virtude de instruções do proprietário do imóvel. PONTES DE MIRANDA {Comentários..., p. 117, 105-106) julga possível a nomeação à autoria mesmo nos casos de fundar-se a ação de indenização sobre ofensa a direito de propriedade artística, literária, se o dano foi praticado contra patente de invenção ou marca de fábrica, bem como nos casos de ser a ação proposta para indenização por ofensa à honra.

Segundo dispõe o art. 64 do CPC, o réu deverá requerer a nomeação à autoria no prazo que lhe tenha sido concedido para defesa. Se o procedimento for o ordinário, nos quinze dias seguintes à citação (art. 297 do CPC); sendo sumário o procedimento, poderá o réu nomear à autoria até a data da audiência de instrução e julgamento (art. 278 do CPC). O juiz.

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deferindo o pedido, suspenderá o processo e mandará ouvir o autor no prazo de cinco dias.

Se o autor aceitar a nomeação, deverá promover a citação do nomeado; se a recusar, diz o art. 65, ficará sem efeito a nomeação, prosseguindo a demanda contra o nomeante. Aceita pelo autor a nomeação, se o nomeado reconhecer a qualidade que lhe é atribuída, contra ele correrá o processo; se a negar, diz o art. 66, o processo continuará contra o nomeante.

Cabe aqui uma observação: embora o Código faça presumir que ao terceiro nomeado será sempre livre a recusa, ficando o autor e o nomeante constrangidos a persistirem numa causa para a qual ambos resultem convencidos da completa ilegitimidade passiva do demandado originário, parece evidente que a disposição do art. 66 deverá ser entendida adequadamente, pois ninguém, no sistema processual brasileiro, poderá livrar-se da condição de réu, alegando não ser legitimado para a causa ou não desejar responder à demanda. Cremos que não haverá outra saída para a correia exegese do art. 66 senão atribuir ao juiz a faculdade de decidir sobre a legitimidade passiva do nomeado. Se o juiz relegar para a sentença final a decisão sobre essa preliminar, a causa prosseguirá contra ambos. A solução pretendida pelo Código, de evidente inspiração portuguesa, como observa CELSO BARB1 (Comentários..., p. 333), certamente não é a melhor. Ter-se, em tal caso, o nomeante por legitimado, obrigando-se o juiz a proferir sentença contra ele só porque o verdadeiro legitimado recusou-se a participar do processo, é alvitre que não sintoniza com os princípios norteadores do direito processual. A aceitar-se a disposição do Código, que impõe o prosseguimento da ação contra o nomeante, ter-se-á, no mínimo, de admitir a solução do Código português e ter-se a sentença proferida na causa movida contra o nomeante comoeficaz e com força de coisa julgada contra o nomeado, o que, em última instância, não será nada menos do que ter-se o nomeado como parte integrante da relação processual da ação e revel.

Presume-se que o nomeado aceitou a nomeação se, devidamente citado, não comparecer ou, comparecendo, nada alegar (art. 68). Igual presunção de aceitação tácita da nomeação, por parte do autor, decorre desse dispositivo, se ele nada requerer no prazo que lhe for assinado para manifestar-se.

Modificando o direito anterior, o Código vigente transformou a nomeação à autoria de facultativa em obrigatória, como se vê da redação do art. 62. Em consequência disso, será responsável por perdas e danos aquele que. devendo proceder à nomeação, deixa de fazê-lo, ou nomeia

pessoa diversa daquela em cujo nome detenha a coisa litigiosa (art. 69 do CPC). A demanda indenizatória há de ser objeto de ação autónoma posterior (em sentido contrário, CELSO BARBI, Comentários..., v. 2, p. 336, que considera aplicáveis o art. 18, § 2.°, combinado com o art. 17, ne VI, do CPC).

11.8 Denunciação à lide

Denunciação da lide é o ato pelo qual o autor ou o réu chama ajuízo um terceiro a que se liguem por alguma relação jurídica de que decorra, para este, a obrigação de ressarcir os prejuízos porventura ocasionados ao denunciante» em virtude de sentença que reconheça a algum terceiro direito sobre a coisa por aquele adquirida, ou para que este o reembolse dos prejuízos decorrentes da demanda. Sempre que uma das partes possa agir, em demanda regressiva, contra seu garante, para reaver os prejuízos decorrentes da eventual sucumbência na causa, estará autorizada a chamar para a ação esse terceiro a que a mesma se liga. Trata-se do tradicional chamamento à autoria, disciplinado, aliás, pelo Código de 1939, como simples denúncia da lide.

A verdadeira denuntiatio litis do direito romano não passava de um expediente por meio do qual o denunciante dava notícia ao denunciado da pendência da lide, de que poderia nascer, com a sucumbência do garantido (denunciante), o dever para o denunciado de indenizar-lhe os prejuízos, de modo a colocá-lo, através dessa comunicação que se fazia ao terceiro, em condições de ingressar na demanda como assistente do denunciante e preservar, com tal expediente, seu direito de propor contra o denunciado uma futura ação de regresso (CALAMANDREI, La chiamata in garanzia, Opere giuridiche, v. 5, p. 39). Este tipo de denunciação de lide, que se resume na comunicação formal feita a um terceiro da existência da controvérsia, por uma das partes, dando-lhe ciência da demanda, de modo a assegurar o direito de regresso contra o denunciado, a ser exercido em demanda subsequente, portanto sem que a denunciação implique, desde logo, na propositura da causa de garantia entre o denunciante e o denunciado, é o modelo seguido pelo moderno direito alemão (ROSENBERG, Tratado..., § 47, II, 1).

Em verdade, à medida que o direito germânico moderno se aproxima do direito romano, as legislações de tipo francês e italiano, como a nossa atual lei processual, dão ênfase, na denunciação à lide. a um elemento nascido da influência do direito germânico primitivo, que concebia a denunciação da lide como manifestação de um direito de defesa judicial que possuía o denunciante contra

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o terceiro garante, o qual, além do dever de indenizar, tinha fundamentalmente o de prestar-lhe assistência judiciária na defesa da coisa litigiosa, assumindo, pela denúncia, a posição do denunciante que se afastava da relação processual, recebendo imediatamente o valor da indenização e retomando a coisa litigiosa ao domínio do denunciado (CALAMANDREI, La chiamata..., p. 43). A partir dessa origem, o direito italiano moderno, tal como o nosso, concebe a denunciação da lide como uma verdadeira chiamata in garanzia, equivalente à propositura da ação de regresso contra o denunciado. O ato de denúncia implica a propositura de uma segunda ação, esta do denunciante contra o denunciado (SÉRGIO COSTA, Intervento in causa, p. 88).

O campo tradicional de aplicação da denunciação da lide é o da responsabilidade por evicção, ou seja, a responsabilidade que grava o alienante sempre que o adquirente venha a perder a coisa adquirida em virtude de uma sentença judicial que reconheça em favor de um terceiro algum direito sobre a mesma. Como observa justamente BOTELHO DE MESQUITA (Da ação de evicção, Ajuris 22/83), sofrer evicção é mais do que ser simplesmente vencido: é ser evencido, em razão da sentença que determine a perda da posse da coisa adquirida pelo evicto, em favor de um terceiro a quem o juiz reconheça direito sobre ela. O exemplo mais comum de responsabilidade por evicção, a dar lugar à denunciação à lide, ocorre na ação em que terceiro reivindica a coisa em face do adquirente, colocando-o em risco de perdê-la, se a demanda reivindicatória for julgada procedente. Nessa hipótese, estando o adquirente exposto a perder a propriedade, posse ou uso da coisa adquirida (art. 1.107 do CC; art 447 do novo CC), em virtude de demanda proposta por terceiro, deverá obrigatoriamente notificar o alienante da existência do litígio, de modo a assegurar o direito que da evicção lhe resulta, ou seja, o direito de ser indenizado do prejuízo decorrente da perda da coisa (arts. 1.109 e 1.116 do CC; arts. 450 e 456 do novo CC).

No sistema do Código de 1939, a denúncia se operava a fim de que o alienante ingressasse no processo assumindo a direção da causa, na posição antes ocupada pelo denunciante, se a notificação fosse feita pelo autor (art. 95, § 1.°); se promovida pelo réu, para que o chamado assumisse a posição de demandado e contra ele prosseguisse a ação, sendo defeso, em tal caso, ao autor demandar contra o denunciante (art. 97). Dava-se, no modelo do Código anterior, maior ênfase ao dever de defesa judicial que pesa sobre o alienante, sem que a demanda de garantia fosse desde logo proposta. Segundo o art. 101 do Código de 1939, a evicção

haveria de ser pedida em ação direta, ou seja, em demanda autónoma subsequente. Agora, em face do que dispõe o art. 72 do CPC, o ato da denunciação da lide importa na propositura da ação de regresso do denunciante contra o denunciado, tornando-o réu na ação de garantia (ATHOS GUSMÃO CARNEIRO, Intervenção de terceiros, p. 46) e sem que o denunciante se possa afastar da causa principal, como exigia o estatuto processual revogado e faculta o Código italiano, cujo art. 108 admite a extromissão do garantido (denunciante) quando este seja réu e o autor a tal não se oponha (FERRUCIO TOMMASEO, Uestromissione di una parte dal giudizio, p. 145 e ss.).

No sistema inaugurado pelo Código de 1973, a denunciação da lide se faz com o duplo propósito que plasmou historicamente o instituto do chamamento à autoria a partir de sua origem romana, a saber: 1.°) provocar o ingresso do alienante na causa sustentada pelo adquirente contra terceiro, a fim de que o primeiro lhe preste assistência e defenda a coisa por ele transferida ao denunciante; 2.°) para que o denunciado responda pela indenização porventura devida ao adquirente.

O denunciado, então, assumirá simultaneamente uma dupla posição processual: enquanto ingressa na causa principal em socorro do denunciante, a este se liga na condição de seu assistente adesivo simples, na luta comum contra o terceiro reivindicante; a posição de assistente, porém, pode não ser efetivamente assumida pelo denunciado, que pode mesmo confessar os fatos em benefício do terceiro (art. 75, III, do CPC). Além dessa posição pelo denunciado assumida perante a demanda principal, investe-se ele na condição de réu na ação de garantia contra o mesmo proposta pelo denunciante com o ato de seu chamamento em causa.

Tratando da denúncia promovida pelo réu, o art. 75,1, do CPC declara que, se o denunciado aceitar a denunciação e contestar o pedido da ação principal, o processo prosseguirá entre o autor, de um lado, e, de outro, como litisconsortes, o denunciante e o denunciado. A maioria da doutrina concorda com isso, afirmando que o denunciado sempre seria litisconsorte do denunciante na demanda principal. Em sentido contrário, porém, BOTELHO DE MESQUITA (Da ação de evicção, p. 99-100) declara que a posição do denunciado será a de um assis-tente-adesivo simples. Em que pesem as argutas observações de ATHOS GUSMÃO CARNEIRO (Intervenção de terceiros, p. 73), procurando demonstrar que a declaração sentenciai contida na decisão de procedência da reivindicatória de que resulta a evicção atinge o denunciado como coisa julgada, entendemos

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que, não obstante a referência contida no art. 75,1, do CPC, o denunciado permanece como terceiro interveniente na demanda principal, ficando exposto à eficácia sentenciai tradicionalmente denominada "efeito de intervenção", e não à coisa julgada (WACH, Manual..., v. 2, § 59, VI; GOLDSCHMIDT, Derecho procesal civil, § 70, 3, a; KISCH, ob, cit., § 68, 1; ROSENBERG, Tratado..., § 47, I; CALAMANDREI, La chiamata in garanzia, § 194). A impossibilidade criada ao denunciado de reivindicar a coisa, em processo futuro contra o evictor, parece devida a uma condição prévia de ilegitimidade de parte, já estabelecida no processo anterior, em que o denunciado aceitou a condição de terceiro chamado para a causa.

O grave problema de direito processual, de saber-se a posição do denunciado na demanda principal, resolve-se em determinar se o terceiro que intervém com duas demandas, uma contra o denunciante e outra contra o terceiro reivindicante -ainda que assuma a posição de demandado de ambas -, não se transforma em opositor ou em interveniente principal, como a doutrina europeia o denomina (art. 56 do CPC). No que respeita à ação de reintegração de posse, movida contra o arrendatário, a que comparece o arrendante como denunciado à lide, cumpre distinguir, segundo a natureza do pedido formulado pelo terceiro evictor: se o esbulho possessório puder ser atribuído a ambos, arrendatário e arrendante, então a demanda há de ser proposta contra os dois; se o terceiro apenas indica o possuidor imediato como o autor do esbulho, não poderá, depois, executar a sentença contra a posse do arrendante, a não ser que este intervenha na causa possessória na condição de assistente adesivo simples do arrendatário.

0 Código de Processo Civil, nas três hipóteses contidas no art. 70, teve a clara intenção de ampliar o campo da denunciação da lide, fazendo ultrapassar as fronteiras da responsabilidade pela evicção (garantia for mal) até alcançar as hipóteses em que o terceiro denunciado deva inde- nizar, em ação regressiva derivada de um vínculo obrigacional, aquilo a que for condenado o denunciante na demanda principal (garantia sim ples). Segundo tal orientação, deverá ter lugar a denunciação da lide, perante nosso Código, nos seguintes casos:

1 - ao alienante, na ação em que terceiro reivindica a coisa, cujo domínio foi transferido à parte, a fim de que esta possa exercer o direito que da evicção lhe resulta;

II - ao proprietário ou ao possuidor indireto quando, por força de obrigação ou direito, em casos como o do usufrutuário, do credor pigno-ratício, do locatário, o réu, citado em nome próprio, exerça a posse direta da coisa demandada;

III - àquele que estiver obrigado, pela lei ou pelo contrato, a inde-nizar, em ação regressiva, o prejuízo do que perder a demanda.

Em todos os casos, a denunciação da lide seria obrigatória, segundo se depreende da fórmula empregada pelo legislador no art. 70. Há duas questões graves, contudo, a resolver, uma pertinente ao campo de aplicação da denunciação da lide com sentido obrigatório, outra referente também às consequências do não chamamento do terceiro garante em casos de evicção provocada por outras demandas diversas da ação de reivindicação.

O legislador, como observa MOACYR AMARAL SANTOS (Primeiras linhas..., § 319), não foi feliz ao dispor, no inc. I do art. 70, que a denunciação seria obrigatória nos casos "em que terceiro reivindica a coisa, cujo domínio foi transferido à parte", limitando assim, drasticamente, as hipóteses de chamamento do alienante à ação reivindicatória proposta contra aquele a quem o domínio fora transferido.

Ora, segundo a lei civil, dá-se evicção sempre que, nos contratos onerosos, se transfere domínio, posse ou uso de alguma coisa (art. 1.107 do CC; art. 447 do novo CC). Não será, portanto, apenas em razão de demanda de reivindicação que a evicção pode dar-se. O próprio Código, de resto, pressupõe isso, ao prever a possibilidade de que a evicção aconteça em virtude de uma exceção exitosamente oposta pelo demandado (art. 74 do CPC), como se, em demanda de despejo, ou em outra qualquer em que se pretenda obter posse contra o réu, este suscite, com vantagem, a exceção de usucapião. Se, por exemplo, o adquirente recebeu a coisa em virtude de negócio jurídico de transmissão de posse ou de uso, na suposição, digamos, de que o imóvel estava ocupado apenas por empregados do transmitente, quando o estava por alguém com posse imediata decorrente de algum contrato, ou posse própria ad usucapionem, em qualquer desses casos ocorrerá evicção se o adquirente da posse, ou do uso, vier a perdê-la em virtude de sentença que reconheça ao réu o direito de possuir a coisa, de modo a excluir a posse do adquirente. E, nesse caso, não teria o evicto sido demandado em ação de reivindicação, mas teria sofrido evicção como autor, em face da procedência da exceção de usucapião a ele oposta pelo réu, ou em virtude de ter-se reconhecido ao demandado o direito de posse emergente de algum negócio jurídico, capaz de excluir a posse correspondente do adquirente (PONTES DE MIRANDA, Comentários..., 1973, t. II, p. 113).

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A questão hermenêutica criada em torno do art. 70 do CPC, como observa BOTELHO DE MESQUITA (Da ação de evicção, Ajuris 22/97), foi agravada em virtude da inclusão, no sistema do Código, dos casos em que a denunciação seja promovida pelo autor. O projeto do Código de Processo Civil, de origem governamental, não continha nenhum dispositivo similar ao atua! art. 74. Foi o Congresso Nacional que o introduziu. Como, porém, o legislador inseriu o novo preceito sem cuidar de adaptar os demais à nova situação, resultou que o art. 70 permaneceu redigido como estava, prevendo a denunciação promovida apenas pelos demandados, em completa desarmonia com o sistema pelo próprio Código estabelecido nos artigos subsequentes.

Daí porque, nos incs. I e II do art. 70, faz-se alusão à denunciação da lide promovida pelo réu, quando se sabe que também o autor está obrigado a promovê-la (art. 74).

A outra questão a que antes aludimos, decorrente da defeituosa redação do art. 70, diz respeito às consequências da eventual omissão da parte em promover a denunciação da lide.

Enfim, tem-se de resolver, em face da obrigatoriedade da denunciação da lide, imposta pelo art. 70, se o não cumprimento de tal ónus processual importará, sempre, para o adquirente ou garantido (garantia simples) na perda da ação regressiva contra o alienante ou o garante.

Tal questão poderia ser sintetizada no seguinte: prescrevendo o Código que a denunciação é obrigatória, apenas quando algum terceiro reivindica a coisa contra o adquirente, será obrigatória a denunciação da lide quando o risco de evicção surgir em virtude não de uma ação reivindicatória, mas de uma defesa oposta ao adquirente por algum terceiro? Ou, afinal, embora dispondo o Código, no aludido art. 70, sobre a obrigatoriedade da denunciação da lide, implicando, sempre, a propositura concomitante da ação de regresso (ex art. 76), mesmo assim ainda remanescem, no direito brasileiro, casos em que seria admissível a propositura de uma ação autónoma e subsequente de evicção, assim como ocorria no direito anterior?

A resposta afirmativa é dada com argumentos convincentes por BOTELHO DE MESQUITA (Da ação de evicção, Ajuris 22/98), que descobre três casos de sobrevivência da ação autónoma de evicção em nosso direito: a) quando a citação de quem tenha sido tempestivamente denunciado não se efetivou no prazo fatal de suspensão do processo

principal previsto pelo art. 72. Segundo tal dispositivo, proposta a denunciação da lide, o juiz ordenará a suspensão do processo pelo prazo de dez ou trinta dias, conforme o denunciado resida na mesma comarca, ou tenha domicílio em comarca diversa ou deva ser citado por edital. Segundo o art. 72, § 2.°, não se procedendo à citação nesses prazos, a ação prosseguirá unicamente perante o denunciado. Neste caso, portanto, se a citação deixou de consumar-se por fato não imputável ao denunciante, restar-lhe-á a possibilidade de promover a ação regressiva em processo posterior. Mesmo assim, deverá ele insistir na denunciação da lide, já agora intempestivamente feita, apenas para cumprimento do mandamento legal que impõe a comunicação do litígio a ser feita pelo adquirente ao alienante (art. 1.107 do CC; art. 447 do novo CC), de modo a preservar a viabilidade da ação de regresso. Haveria, aqui, verdadeiramente, uma simples denúncia do litígio (litis denunciado), sem que o denunciado fosse chamado à causa, como réu, como sucede normalmente no sistema do Código; b) a segunda hipótese descoberta por BOTELHO DE MESQUITA corresponde aos casos em que a evicção se dê em razão de ações diferentes daquelas referidas nos incs. I e II do art. 70, e a denunciação haja sido requerida e consumada fora do prazo da contestação; c) finalmente, quando, nas hipóteses em que a denunciação deva ser feita pelo autor, não a tenha ele pedido na petição inicial, somente requerendo a notificação do litígio ao alienante em momento subsequente.

Nestes três casos, o denunciado será chamado à lide na condição de assistente adesivo simples do denunciante, apenas para auxiliá-lo na defesa da coisa ou do direito, sofrendo somente o efeito de intervenção (art. 55 do CPC) e não sendo atingido pela coisa julgada, na condição de réu da ação de regresso, em tais casos não contida no ato de denunciação da lide.

Em sentido contrário, entendendo que o intérprete deve considerar a expressão "reivindica a coisa" empregada pelo legislador no inc. I do art. 70 como fórmula atécnica, compreensiva não apenas da ação reivindicatória propriamente dita mas de qualquer ação através da qual se demande a respeito do domínio, manifesta-se ARRUDA ALVIM (Comentários..., v. 3, p. 243). Segundo seu entendimento, ao contrário daquele manifestado por BOTELHO DE MESQUITA, caberia a denunciação, com a ação de garantia cumulada, portanto, sem possibilidade de pedir-se a evicção em demanda posterior, não só na ação rei-

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vindicatória, mas em qualquer outra onde se controverta a questão do domínio, com possibilidade de vir o adquirente a perder a coisa.

AROLDO PLÍNIO GONÇALVES (Da denunciação da lide, p. 192 e 240) entende que o inc. III do art. 70 é amplo, enfeixando todas as hipóteses possíveis tanto de garantia formal quanto de garantia imprópria, a ponto de dispensar, até mesmo, os demais incisos deste artigo, o que determinaria a obrigatoriedade de denunciação quando se tratasse de garantiaformal, sendo simplesmente facultativa nos casos de garantia imprópria (p. 235). J. J. CALMON DE PASSOS (Denunciação da lide, Enciclopédia..., p. 317) insere no inc. III do art. 70 todas as ações petitórias que não caibam no inc. I, apenas restrito à reivindicação.

Os que entendem sempre facultativa a denunciação da lide na hipótese do art. 70, inc. III, apoiam-se no argumento de que o Código apenas declara obrigatória a denunciação, sem todavia mencionar as consequências derivadas da falta de chamamento em causa do obrigado de regresso. E como não há regra de direito material, no sistema brasileiro, que preveja alguma consequência para tal omissão, não seria lícito ao intérprete eleger arbitrariamente uma dentre duas possíveis alternativas conhecidas: ou a perda do direito à indenização, pela impossibilidade do ajuizamento subsequente da ação de regresso, ou a possibilidade do pedir-se em ação autónoma posterior a indenização, privado, no entanto, o garantido de valer-se da sentença que, na primeira demanda, o haja condenado, ficando, portanto, exposto à ampla defesa porventura suscitada pelo garante, demandado na ação de regresso (ARRUDA ALVIM, Comentários..., v. 3, p. 249) - ou perda do direito à indenização, portanto, ou simplesmente ineficácia da sentença condenatória contra o obrigado de regresso que haja permanecido alheio à demanda principal. O Código, no entanto, não esclarece qual destas duas consequências ocorrerá se não se verificar a denúncia da lide na hipótese do art. 70, III, do CPC.

Até onde for possível ao intérprete manter-se fiel ao pensamento do legislador, a solução será claramente no sentido de considerar-se irremediavelmente perdida a ação indenizatória, se a denunciação não for tempestivamente feita. Duvidamos, contudo, que tal projeto resista à ação do tempo e à enorme diversidade dos casos de obrigação de regresso que o direito material conhece, a começar pela responsabilidade civil dos representantes de incapazes, lembrada por PONTES DE MIRANDA {Comentários..., p. 115).

Resta observar que a denunciação da lide imposta pelo inc. II do art, 70 deve limitar-se aos casos em que o possuidor imediato (com posse direta) seja demandado em nome próprio. Se, por exemplo, o arrendatário é citado para uma demanda de reivindicação, deverá promover a denunciação da lide ao proprietário ou ao locador de quem tenha havido a

posse da coisa. Sendo ele possuidor, e não simples detentor, deverá permanecer como litisconsorte do denunciado, não se confundindo este caso com as hipóteses de nomeação à autoria (art. 62 do CPC). Ao contrário, se o mesmo arrendatário for demandado na sua qualidade de possuidor direto, em virtude de ato ou fato ao mesmo atribuído, não caberá a denunciação da lide, pois aí a legitimação passiva será exclusivamente dele e não haverá nenhuma ação regressiva a ser postulada contra o locador ou, nos demais casos, contra o possuidor mediato.

Observe-se, contudo, que, nos casos em que se discuta, nas hipóteses dos incs. I e II do art. 70, através da denunciação da lide a responsabilidade pela evicção, o pressuposto geral é de que haja entre denunciante e denunciado um contrato oneroso de que resulte a obrigação de responder pelos riscos da evicção (art. 1.107 do CC; art. 447 do novo CC). Se, por exemplo, o denunciante for comodatário ou possuidor imediato em razão de outro contrato qualquer não oneroso, certamente a denunciação não terá por objetivo a preservação da ação de evicção, que, em tais casos, não haverá. É possível, mesmo assim, a denunciação da lide, inconfundível ainda neste caso com a nomeação à autoria, desde que o comodatário também é possuidor próprio, com posse imediata, e não simples detentor, como afirma ARRUDA ALVIM {Comentários..., p. 257). E, sendo possuidor legítimo - ainda que com "posse injusta" perante a demanda reivindicatória do terceiro proprietário -, há de permanecer na causa, na condição de demandado, em litiscon-sórcio passivo com o comodante. Não se pode nunca olvidar que a açào de reivindicação não é demanda simplesmente declaratória de domínio, mas essencialmente ação para recuperação da posse do bem, e tem como letigimados passivos os possuidores. Se a posse está es-calonadamente distribuída por mais de um possuidor, a todos deve envolver a causa.

Por outro lado, no caso da demanda promovida contra o comodatário, é legítima a denunciação da lide que ele faça ao comodante, desde que, embora sendo gratuito o contrato, não fica afastada a eventual pretensão de ressarcimento por perdas e danos de que pode ser titular o comodatário, e, como bem pondera PONTES DE MIRANDA {Comentários..., p. 117), pode ter lugar a denunciação da lide noutros casos de ação de garantia fundados não em evicção, mas por outras causas. Mas aqui a ação de regresso há de ser proposta em processo posterior.

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O denunciado, por sua vez, deve denunciar a lide a seu alienante, ou ao possuidor indireto, ou ao anterior responsável pela indenização, admitindo-se, assim, as denunciações sucessivas (art. 73 do CPC). ARRUDA ALVIM (Comentários..., v. 3, p. 303) entende facultativa a denunciação que o denunciado haja de fazer a seu autor (auctor), uma vez que o Código, no dispositivo em que regula as denunciações sucessivas, dispõe que o denunciado apenas intime, e não cite, o responsável anterior. Em tal hipótese, a denunciação teria lugar, como nas hipóteses há pouco indicadas, apenas para dar ciência ao obrigado de regresso perante o denunciado e possibilitar sua intervenção como assistente de seu denunciante, não para responder como demandado em ação regressiva já cumulativamente proposta (ATHOS GUSMÃO CARNEIRO, Intervenção de terceiros, p, 72).

11.9 Chamamento ao processo

Ocorre a figura do chamamento ao processo quando, sendo citados apenas um ou alguns dos devedores solidários, peçam eles a citação do outro, ou dos outros devedores, de modo a decidir-se, no mesmo processo, sobre a responsabilidade de todos. A finalidade do chamamento ao processo, portanto, é ampliar o objeto do processo, trazendo para a causa os demais obrigados solidariamente responsáveis perante o credor.

Trata-se, portanto, de formação de um litisconsórcio sucessivo facultativo. Se a relação de direito material for unitária, daquelas que imponham a presença simultânea de todos os seus integrantes na causa, a figura que se compõe com o chamamento do litisconsorte não citado será apenas a de integração do contraditório para formação de um litisconsórcio necessário, e não a do chamamento ao processo.

Segundo o art. 77 do CPC, é admissível o chamamento ao processo: I - do devedor, na ação em que o fiador for réu; II - dos outros fiadores, quando para a ação for citado apenas um deles (ou alguns deles); III - de todos os devedores solidários, quando o credor exigir de um ou de alguns deles, parcial ou totalmente, a dívida comum.

Como se vê, o chamamento ao processo é uma faculdade legal outorgada apenas aos réus, para que eles chamem à causa como seus litisconsortes passivos, na demanda comum, ou o outro, ou os outros coobrigados, perante o mesmo devedor.

Ao contrário também da denunciação da lide, o chamamento ao processo não é obrigatório, sendo simples faculdade do réu provocá-lo. O art. 77 é claro ao mencionar que o chamamento é apenas admissível, e não obrigatório, como declara o CPC, no art. 70, a respeito da denunciação da lide.

O traço distintivo essencial entre o chamamento ao processo e a denunciação da lide está em que, naquele, todos os réus são obrigados perante o credor comum, enquanto nas hipóteses de denunciação da lide há vínculo obrigacional apenas entre o denunciante e o denunciado, e nenhuma relação jurídica entre este e o adversário do denunciante. Tem em comum, no entanto, com a denunciação da lide a proposi-tura de uma ação regressiva eventual do réu contra o chamado ao processo. Se o réu primitivo for condenado - e pagar o valor da condenação -, segundo prescreve o art. 80, a mesma sentença condenatória valerá como título executivo, em favor do réu que haja pago, para que este possa reembolsar-se do que pagou, contra o devedor principal, ou para que ele receba dos demais coobrigados a respectiva quota na dívida comum. E, se a sentença afinal passa a ser título executivo em favor do réu, é porque a demanda deste contra o coobrigado está definitivamente julgada na mesma sentença.

O instituto do chamamento ao processo não existia no direito brasileiro anterior ao Código de 1973. Sua fonte está no direito português, que o tem no art. 330 do Código de Processo Civil, sob a denominação de "chamamento à demanda".

A introdução do chamamento ao processo em nosso direito, lembra o Ministro PEDRO SOARES MUNOZ (Intervenção de terceiros no novo Código de Processo Civil, Estudos sobre o novo Código de Processo Civil, p. 29), ocasionou sensível alteração na doutrina sobre solidariedade passiva, que não admitia, na conformidade, aliás, de nosso direito civil, que o devedor solidário, quando citado individualmente para a causa, pudesse exigir a presença dos demais coobrigados no processo.

O chamamento ao processo, como as demais espécies de intervenção de terceiros, é admissível no procedimento ordinário. No procedimento sumário, segupdo a norma do art. 280,1. o ingresso daquele que seria legitimado passivo para chamamento ao processo dá-se sob a forma de assistência adesiva simples. sem a simultânea proposição contra ele da ação de regresso. Nos procedimentos especiais de jurisdição contenciosa, regulados pelo Código, em princípio, poderá

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ter lugar o chamamento ao processo, uma vez satisfeitos seus pressupostos e respeitada a natureza da respectiva ação.

No que respeita à admissibilidade do uso do instituto no processo de execução, a jurisprudência se inclina pela negativa. ARRUDA ALVIM (Comentários..., p. 337) igualmente afasta a possibilidade do chamamento ao processo na demanda de execução forçada, mostrando que a hipótese prevista pelo direito português do chamamento à demanda em processo de execução está resolvida, em nosso processo, pela disposição do art. 595, parágrafo único, do CPC, que permite ao fiador executado que pagar a dívida executar o afiançado nos próprios autos do processo em que foi demandado. O argumento foi empregado pelo 1.° Tribunal de Alçada de São Paulo, na Ap. 214.156, de sua 3.a Câmara Cível (ALEXANDRE DE PAULA, O processo civil à luz da jurisprudência, v. 1, p. 541).

Esta tese, todavia, não se nos afigura convincente: uma coisa é poder o fiador valer-se apenas do mesmo processo para executar o afiançado; outra, diferente, é dar-se a faculdade de chamá-lo ao processo executório de modo a estender-lhe a eficácia da sentença da rejeição dos embargos, ficando, portanto, limitada a área da futura controvérsia.

No processo cautelar, é possível a intervenção de terceiro na condição de assistente, sendo igualmente viáveis a denunciação da lide e o próprio chamamento ao processo, nas hipóteses do art. 77 do CPC, porém em nenhum caso a intervenção provocada dos terceiros importará em chamamento à lide que implique a propositura de ações regressivas (cf. OVÍDIO A. BAPTISTA DA SILVA, Comentários..., p. 193; Do processo cautelar, p. 162).

O réu deverá, no prazo da contestação, requerer o chamamento ao processo, conforme dispõe o art. 78 do CPC. Segundo tal dispositivo, "para que o juiz declare, na mesma sentença, as responsabilidades dos obrigados" solidários chamados à causa, é mister que o demandado o requeira no prazo da contestação. O chamamento se faz por meio de citação, como também se procede para o chamamento do denunciado à lide, segundo o art. 71 do CPC. Não se trata, portanto, de simples notificação feita ao chamado ao processo, dando-lhe apenas ciência, mas de citação dele, portanto chamamento como demandado.

A sentença que julgar procedente a ação movida pelo credor declarará o direito deste contra o demandado primitivo e contra o chamado ao processo; ao mesmo tempo, declarará o direito de o obrigado, primitivamente demandado, executar o chamado, se aquele satisfizer a dívida perante o credor, assim como poderá gerar título executivo do chamado, que houver pago a dívida, contra aquele que o chamou ao

processo. O credor poderá promover a execução da sentença condena-tória tanto contra o réu primitivo quanto contra os chamados ao processo, já que todos, afinal, transformam-se em litisconsortes passivos da ação de cobrança.

Se o "chamado ao processo" contestar a existência da solidariedade ou sua legitimidade passiva na causa principal, instauram-se perante ele duas demandas: uma que o vincula como réu ao autor da ação principal; outra que o coloca na posição de demandado perante quem o chamou à causa.

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12

O MINISTÉRIO PÚBLICO NO PROCESSO CIVIL

SUMÁRIO: 12.1 Funções do Ministério Público no processo civil.

12.1 Funções do Ministério Público no processo civil

As funções desempenhadas pelo Ministério Público no processo civil foram aumentadas de forma muito acentuada, no direito contemporâneo. Sobre a posição desse órgão escrevem CINTRA-GRINOVER-DINAMARCO (Teoria geral do processo, p. 177): "O Ministério Público é, na sociedade moderna, uma instituição destinada à preservação dos valores fundamentais do Estado enquanto comunidade". E isso porque, continuam os ilustres processualistas, "o direito do século XX se caracteriza fundamentalmente pela proteção ao fraco".

Poderíamos, em verdade, afirmar que a figura do promotor de justiça, como representante do Ministério Público no processo civil, é a alternativa moderna que viabiliza a superação do princípio dispositivo, sem comprometimento da imparcialidade do juiz, condição indispensável para o exercício da função jurisdicional. A antiga ideia do direito subjetivo como uma faculdade de seu titular, de que ele poderia valer-se quando e como lhe aprouvesse, foi completamente superada pela história. A moderna "civilização de massa", pela primeira vez surgida na história da raça humana, como uma decorrência do aumento populacional e da concomitante democratização da cultura, pela crescente igualdade éfetiva na fruição das novas conquistas materiais, à medida que acentuou os conflitos sociais que costumam jazer submersos nas sociedades de maior estratificação social, com hegemonia de classes ou de castas,

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tornou evidente que a ordem jurídica estatal não é posta simplesmente como uma possível alternativa de que os indivíduos possam usufruir quando lhes parecer conveniente ou abdicar de seu uso livremente, como se ao Estado moderno fosse indiferente a realização efetiva da ordem jurídica imposta pela lei.

Em verdade, os modernos conflitos sociais e as enormes desigualdades económicas entre pessoas igualmente participantes, com plena consciência de seus direitos, obriga o Estado a organizar-se de tal modo que a ordem jurídica se torne efetiva, pela intervenção de seus agentes, não para tornar compulsivo o exercício dos direitos subjetivos, mas para preservar, no domínio do direito e, particularmente, no campo jurisdicio-nal, a livre e adequada manifestação dos fracos contra os mais poderosos. Assegura-se, assim, o efetivo equilíbrio interno dos litigantes pela preservação do princípio da igualdade de partes, assegurando, também, a realização dos fins colimados pelo ordenamento jurídico, através do abrandamento do outro princípio de índole privatística, a que antes se fez referência, o princípio de demanda pelas partes, de tal modo que o Estado, que não poderia intervir por meio do juiz, sob pena de comprometer sua imparcialidade, ingressa muitas vezes na causa em socorro dos indivíduos ou grupos considerados deficientes e até em nome destes, propondo, como parte, a demanda originariamente a eles atribuída.

Evita-se, por meio da ação do Ministério Público, que o magistrado seja empolgado pelos interesses em conflito, que lhe cabe julgar como terceiro imparcial. A posição do Ministério Público, no processo civil, evidencia a tendência contemporânea de reduzir cada vez mais a esfera de disponibilidade dos direitos subjetivos, não propriamente para torná-los equações legais de exercício obrigatório e compulsivo, o que os transformaria de direitos em obrigações, mas para assegurar-lhes a efetiva e adequada realização no plano jurísdicional, por parte daqueles que, por uma razão qualquer, se encontram numa situação de inferioridade económica ou social e que, como decorrência dessa circunstância, possam privar-se involuntariamente de seus direitos e prerrogativas processuais.

Tudo isso seria, por exemplo, estranho a uma sociedade de tipo patriarcal e aristocrático, onde a igualdade processual das partes decorreria como natural consequência da própria nivelação social dos litigantes, em cujo contexto a disponibilidade dos direitos corresponderia, realmente, a um ato de liberalidade ou de renúncia, sem a menor ofensa ao princípio da igualdade das partes.

De um modo geral, costumam os doutrinadores separar as funções desempenhadas pelo Ministério Público, no processo civil, em dois grupos, conforme ele exerça uma função de simples fiscal da lei (custos legis) ou desempenhe a posição de parte, seja como "substituto" processual, seja como órgão de certos interesses estatais, às vezes desempenhando as funções de advogado de certas pessoas jurídicas de direito público (FREDERICO MARQUES, Manual.., v. 1, p. 287).

GUILHERME ESTELLITA, como refere BENEDICTO CAMPOS (O Ministério Público e o novo Código de Processo Civil, p. 54), classifica em "cinco formas típicas" a atuação do Ministério Público no processo civil, que são as seguintes:

Primeira: os casos em que o Ministério Público, agindo em razão da função, propõe, como parte, determinadas ações, tais como a ação de nulidade de casamento, a ação de interdição de incapazes e toxicómanos, a ação de dissolução de sociedades civis que promovam atividade imoral ou ilícita ou a ação de nulidade de patente de invenção ou registro de marca de indústria ou comércio; ou promove inúmeros atos pertencentes à "jurisdição voluntária", tais como a arrecadação de bens do defunto, a remoção de inventariante, a nomeação e destituição de tutores e curadores, a extinção de fundações, a declaração de ausência e a respectiva sucessão provisória do ausente. Agora cabe-lhe mais a titularidade da ação civil pública criada pela Lei 7.347/85, instituída para tutela do meio ambiente e dos chamados "interesses difusos".

Segunda: o Ministério Público atua como procurador judicial do litigante, como acontece nas ações de acidente do trabalho, em que o órgão funciona como assistente judiciário do trabalhador, e na ação de execução civil da sentença condenatória penal, em que ele pode representar a vítima na demanda de ressarcimento de dano.

Terceira: quando ele é chamado ao processo como defensor dos interesses de determinadas pessoas, tal como ocorre na curadoria à lide, nas causas em que estejam em jogo interesses de incapazes, nas quais, ainda que o incapaz esteja convenientemente representado no feito, o Ministério Público tem participação obrigatória.

Quarta: esta forma de intervenção do Ministério Público é indicada por ESTELLITA como sendo aquela em que o órgão funciona como curador do vínculo na ação de nulidade de matrimónio (art. 222 do CC).

Quinta: finalmente, poderia o Ministério Público desempenhar a função mais ampla e genérica de que o órgão é encarregado, a de fiscal

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da lei, ou custos legis, como refere o art. 82 do CPC, nas hipóteses em que sua função fosse a de mero fiscal da fiel execução da lei.

Em verdade, como se vê desse elenco, parece que se podem reunir todas essas funções naqueles dois grupos maiores, segundo o órgão do Ministério Público funcione como parte ou atue como fiscal da lei.

De acordo com o mencionado art. 82 do CPC, é obrigatória a intervenção do Ministério Público nas seguintes hipóteses:

I - nas causas em que haja interesse de incapazes; II - nas concernentes ao estado das pessoas, pátrio poder, tutela,

curatela, interdição, casamento, declaração de ausência e disposição de última vontade;

III - nas ações que envolvam litígios coletivos pela posse da terra rural e nas demais causas em que há interesse público evidenciado pela natureza da lide ou qualidade da parte.

Segundo o art. 84 do CPC, a parte deverá promover a intimação do Ministério Público sempre que a lei considere obrigatória sua intervenção, sob pena de nulidade do processo. Esse dever incumbe também ao juiz, se ele julgar que, em determinado processo, ocorra o interesse público capaz de tornar necessária a intervenção do órgão.

As questões que surgem na interpretação do art. 82, III, do Código são principalmente duas: a) o Ministério Público é soberano para avaliar a existência de interesse público numa dada causa, de modo a legitimar sua intervenção, ou o juiz poderá indeferir seu pedido de ingresso, ou o requerimento da parte formulado com tal objetivo, por considerar o magistrado inocorrente, na espécie, o alegado interesse público, capaz de autorizar o ingresso do Ministério Público? b) a existência do interesse público, nas hipóteses incluídas no inc. III do art. 82, torna obrigatória a intervenção do Ministério Público, de tal forma que a não convocação do órgão para a causa acarrete a nulidade do processo, ou a existência de tal interesse dará ensejo à intervenção facultativa do Ministério Público, não importando nulidade a ausência de sua participação efetiva, quando não convocado?

CELSO BARBI (Comentários..., v. I, t. II, p. 380) entende que o Código apenas faculta o ingresso do Ministério Público como custos legis nos raríssimos casos em que ainda pode ocorrer interesse público, além das hipóteses já enumeradas nos incisos anteriores e daquelas constantes de leis especiais que disponham sobre o ingresso do Ministério Público sob forma obrigatória. Segundo o jurista, aos juizes evidentemente caberá, como sempre cabe, como expressão de sua própria função jurisdicional, decidir se ocorre ou não o alegado interesse público.

cabendo-lhe indeferir ou admitir a intervenção do Ministério Público segundo inexista, ou, ao contrário, se evidencie na causa o invocado interesse público.

Nessa mesma linha de raciocínio, por não considerar obrigatória a intervenção do Ministério Público na hipótese do inc. III do art. 82, sua não convocação para a causa não provocaria a nulidade do processo, desde que a regra do art. 84 só abrange os casos de intervenção obrigatória do órgão.

Para FREDERICO MARQUES {Manual.., v. 1, p. 289), ao contrário, é obrigatória a intervenção do Ministério Público nos casos abrangidos pelo inc. III do art. 82 do CPC, acarretando nulidade do processo a não convocação do órgão para a causa. Em sentido similar, J. J. CAL-MON DE PASSOS (Intervenção do Ministério Público nas causas a que se refere o art. 82, III, do Código de Processo Civil, separata da Revista da Procuradoria-Geral do Estado de São Paulo, n. 12, p. 99) entende obrigatória a intervenção do Ministério Público nessa hipótese, cabendo ao juiz a decisão sobre a existência do interesse público, evidentemente com recurso apropriado ao tribunal superior, mas a nulidade decorrente da não convocação do órgão não será automática, ficando, ao contrário, sua decretação sujeita aos princípios que regem as nulidades processuais. O Ministério Público poderá provar a existência do interesse público capaz de acarretar a nulidade do processo mesmo depois de encerrada a causa e transita em julgado a respectiva sentença, promovendo a competente ação rescisória com fundamento no art. 485, III, do CPC (p. 96).

O direito italiano contém regra similar ao nosso, porém lá o Código é expresso ao conferir ao Ministério Público a faculdade de reconhecer ou não a existência do interesse público capaz de legitimar sua intervenção. Disso decorre ter-se a intervenção por facultativa, desde que nem o juiz nem a parte poderiam constrangê-lo a considerar existente um tal interesse, que há de ser livremente avaliado pelo próprio Ministério Público (MÁRIO VELLANI, Commentario dei Códice di Procedura Civi-le, v. 1, t. II, p. 813; D'ONOFRIO, Commentario ai Códice di Procedura Civile, v. 1, p. 139; ANDRIOLI, Commento ai Códice di Procedura Civile, v. 5, p. 201). Leve-se, porém, em conta que a organização institucional do Ministério Público na Itália é diferente da nossa.

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13 A RESPOSTA DO RÉU

SUMÁRIO: 13.1 Bilateralidade da audiência - 13.2 Contestação: 13.2.1 Defesa processual; 13.2.2 Exceções processuais; 13.2.3 Exceções substanciais - 13.3 Reconvenção - 13.4 Açâo declaratória incidental - 13.5 Revelia e reconhecimento do pedido: 13.5.1 Revelia; 13.5.2 Efeitos da revelia; 13.5.3 Reconhecimento do pedido.

13.1 Bilateralidade da audiência

O processo civil, comojá se observou, é dominado pelo princípio da bilateralidade da audiência, o que quer dizer que ele é um instrumento de disciplina de conflitos sociais regido pelo princípio dialético-do contraditório entre duas partes. Mesmo na jurisdição voluntária, que é igualmente jurisdicional, vige idêntico princípio, embora atenuado.

Apresentada a demanda pelo autor, o juiz, ao recebê-la, deverá ordenar a citação do demandado, dando-lhe ciência da ação e chamando-o ao processo para que o mesmo se defenda, opondo ao pedido que o autor faz contra si as razões que tiver. O chamamento do demandado a juízo, contido na citação, corresponde à oportunidade que a lei lhe dá de defender-se.

O réu poderá adotar inúmeras formas de comportamento perante a demanda que o autor lhe dirige. O mais comum é que ele responda positivamente ao autor, comparecendo ao processo para defender-se. Todavia, a lei não lhe impõe nenhuma obrigação de que ele se defenda. Se o réu não o fizer, permanecendo omisso, sua conduta será perfeitamente legítima.

O processo moderno não impõe a obrigatoriedade da presença do réu como condição essencial para que a relação processual se desenvol-

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va e atinja normalmente o momento final da jurisdição. O que é indispensável é que se coloque o réu na condição de poder defender-se. A isto se reduz o princípio da bilateralidade da audiência {audiatur et altera pars).

Fundamentalmente, três formas de comportamento podem ser ado-tadas pelo réu: ele comparece para responder positivamente ao autor, insurgindo-se contra o pedido que este dirige contra si; ou ele comparece formalmente ao processo, porém não para se opor, e sim para aceitar, como procedente, o pedido feito pelo autor; ou ele se mantém omisso, não participando do processo.

Se o réu comparece apenas para defender_-.sev«ua reação poderá dirigir-se contra algum vício da relação processual, hipótese em que sua defesa diz-se indireta ou de rito, ou orientar-se contra a ação propriamente deduzida em juízo, procurando negar a legitimidade da pretensão que o autor procura fazer valer no processo, caso em que a defesa seria de mérito. A tal tipo de defesa dá-se o nome de contestação.

Todavia, se o réu não se limita a se defender, reagindo contra a ação do autor, mas se vale da oportunidade para cõntra-atacá-Joí por sua vez, com uma ação inversa, seu comportamento processual leva então o nome de reconvenção, ou ainda de ação declaratória incidental.

Se o réu não se defende, diz-se que ocorre revelia. E finalmente, se ele comparece ao processo para admitir a procedência da ação do autor, em vez de defender-se, ocorre o que se denomina reconhecimento do pedido.

Como se disse, o réu não tem, no sentido próprio do conceito, qualquer obrigação de defender-se, nem essa omissão caracteriza um ato ilícito. Pesa, todavia, sobre ele o ónus de defesa, no sentido de que, mesmo permanecendo alheio ao processo, quando regularmente citado para a causa, ele ficará submetido aos efeitos da sentença, como se tivesse comparecido e contestado a ação.

Segundo esse princípio, tem-se que a ação proposta pelo autor não sofrerá influência, em sua natureza e extensão, em virtude da defesa oposta pelo demandado. Se o réu permanece revel. o âmbito da sentença será exatamente o mesmo que a sentença teria se ele comparecesse e oferecesse contestação ampla e exaustiva. Esse resultado se obtém a partir do princípio de que todas as questões que façam parte de uma determinada lide, como pontos virtualmente controversos.

serão decididas pela sentença quer o demandado as impugne quer não (art. 474 do CPC). "Haja ou não contestação, o tema da decisão de mérito é sempre a lide proposta pelo autor", diz ALFREDO BUZAID (Agravo de petição no sistema do Código de Processo Civil, p. 107), de tal modo que, contestando ou não o demandado a ação, a sentença de mérito será a resposta do juiz à pretensão do autor, ou, mais propriamente, "o julgamento da lide formulada na petição inicial", independentemente da controvérsia concreta e efetiva que haja porventura ocorrido nos autos.

13.2 Contestação

A contestação é a modalidade de resposta do réu consistente na negação da procedência da ação. A contestação, salvo o caso previsto no art. 287 do CPC, deve ser oferecida sob forma escrita, no prazo de quinze dias, ao juiz da causa, contendo a exposição dos motivos de fato e de direito em que o réu se baseia para sustentar a improcedência da ação. Cabe-lhe o ónus de impugnar precisamente cada fato articulado pelo autor, em sustentação de sua demanda, sob pena de terem-se por verdadeiros os fatos não impugnados (art. 302 do CPC).

13.2.1 Defesa processual

A instauração do processo faz surgir, como objeto da atividade ju-risdicional, a existência de duas relações jurídicas: uma que é a lide propriamente dita, ou a res deducta, aquilo que constituirá o objeto do processo; a outra é a relação jurídica que se forma, num momento inicial, entre o autor e o Estado, e que depois se completa pela angularização, até envolver o demandado pela citação.

Certamente tanto a relação de direito material pode ser atacada pelo réu quanto poderá sê-lo também a relação jurídica processual, quando esta apresente algum vício, irregularidade ou omissão que a torne defeituosa ou ilegítima.

Cabe, pois, ao réu, antes de discutir o mérito da causa, alegar como preliminar da contestação todas as arguições que tiver e que digam respeito aos vícios e omissões da relação processual. Essas defesas processuais dizem-se peremptórias, quando, uma vez acolhidas, põem fim ao processo, e dilatórias, quando apenas suspendem ou dilatam o curso do processo, porém não o extinguem, de modo que, sanea-

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do o vício ou satisfeito o requisito que faltava, a relação processual seguirá seu curso normal.

São casos de exceções dilatórias os previstos no art. 301, incs. n, Vil, VIU e XI, do CPC.

Certas preliminares processuais, como é o caso daquelas previstas no art. 267, inc. IV, podem configurar uma exceção peremptória, ou simplesmente dilatória, conforme a natureza e gravidade do vício que contamina a relação processual. Se a nulidade alegada pelo réu for sana-vel, o juiz mandará supri-la, fixando à parte um prazo para saneamento dessa irregularidade (art. 327 do CPC).

13,2,2 Exceções processuais

Dentre as defesas dirigidas contra a relação processual, algumas, por sua importância ou complexidade, exigem tratamento particular e um procedimento próprio, processado como incidente da causa (art. 299 do CPC).

Segundo dispõe o art. 304 do CPC, as partes podem arguir por meio de exceção a incompetência relativa do juízo, seu impedimento ou sus-peição.

Estas três defesas processuais devem ser articuladas em petição separada da contestação e, uma vez recebida a exceção, o processo ficará suspenso até seu julgamento (art. 306).

Este procedimento incidental da exceção admite a produção de prova em audiência, cabendo ao juiz designá-la quando houver necessidade de sua realização (arts. 309 e 313 do CPC).

Cabe observar que as exceções de impedimento e suspeição podem ser arguidas pelo autor, pois poderá ele encontrar-se na contingência de ter de ajuizar a causa perante algum juiz que ele considere impedido ou suspeito. Nessa hipótese, deverá apresentar ao juiz simultaneamente as duas petições, a inicial da ação e a referente à exceção.

J3.2.3 Exceções substanciais

A contestação, como se disse, é defesa que tem por fim negar a existência da ação, por não ter ela fundamento na lei. A sentença que

acolhe como procedente a contestação rejeita a demanda, declarando que o autor não tem direito ao que pretende.

Pode, no entanto, acontecer que o direito e a ação existam, mas alguma circunstância exterior faça com que a ação tenha sua eficácia suspensa, e até mesmo modificada ou extinta. Pense-se no que acontece quando ocorre a prescrição da ação. O direito que teve prescrita a respectiva ação não desaparece - continua a existir apenas destituído de aciona-bilidade. O credor de uma dívida prescrita continua credor, de tal modo que, se o devedor lhe pagar, o pagamento é válido e não pode ser repetido. Da mesma maneira, embora não sendo acionável o crédito, justamente por ter havido prescrição da ação, o credor poderá opô-lo como defesa para compensá-lo com o eventual crédito contrário que seu devedor tiver contra si. Essas duas manifestações da existência do direito que teve prescrita a ação demonstram que a prescritibilidade é algo exterior ao direito e à própria ação, no sentido de que pressupõem a permanência do direito, e o ter existido integra a ação. Ação que prescreveu foi ação que existiu regularmente formada por todos os seus elementos.

Comparemos, agora, a natureza da defesa oposta pelo réu numa ação de usucapião. Suponhamos que se trate de um caso de usucapião ordinária. Sabe-se que para ser procedente esta ação é necessário que exista: 1) uma posse por um determinado lapso de tempo; 2) que essa posse seja exercida com ânimo de dono (animus domini); 3) que seja de boa-fé; 4) que também seja contínua, o que quer dizer que não haja sofrido interrupção; 5) que, além disso, seja pública, no sentido de ser aparente e, como tal, aceita e respeitada pelos demais; 6) que, ainda, seja exclusiva, pois o estado de composse torna equívoca e imprecisa a posse; 7) finalmente, é necessário que a coisa usucapienda seja hábil para gerar a usucapião.

Assim, pois, se o réu atacar com sua defesa algum desses elementos logrando demonstrar sua inexistência, é porque a ação de usucapião (ação de direito material, naturalmente), por ser carente de algum requisito, ainda não nasceu, ou nunca poderia existir. Nega-se, portanto, a existência da ação por lhe faltarem condições intrínsecas para sua formação. Esta será uma forma de contestação simples.

As duas hipóteses servem para diferenciar bem a contestação simples da contestação que envolva arguição de uma exceção de direito material.

A defesa de mérito pode, portanto, ter por fim demonstrar a inexistência do direito do autor ou, ainda na hipótese em que o direito

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exista, pode o réu atacá-lo demonstrando que a ação é improcedente por haver algum fato impeditivo, modificativo ou extintivo de sua eficácia (art. 326 do CPC).

Essas circunstâncias, que tornam inviáveis uma ação já existente, denominam-se exceções substanciais^-

O Código de Processo Civil não emprega o termo exceção para indicar este tipo de defesa de mérito, seguindo, no particular, a tradição que nos vem do direito francês (CHIOVENDA, Instituições..., v. 1, p. 334). O direito alemão, porém, vale-se do termo exceção para referir-se a esta espécie de defesa de mérito.

Essa distinção conceituai é relevante por dois motivos: sem arguição expressa do réu, o juiz não poderá julgar improcedente a ação, com fundamento em alguma exceção substancial, o que significa que as exceções não podem ser conhecidas de ofício pelo juiz; sob o ponto de vista probatório, também se destaca a diferença entre a contestação simples e a oposição, por parte do réu, de alguma exceção substancial; se ele arguir exceção, cabe, naturalmente, o ónus de prová-la, ao passo que simplesmente contestando a ação pela simples negativa dos fatos ou do fundamento jurídico da ação, nenhum ónus probatório lhe cabe.

A regra de que as exceções substanciais só podem ser conhecidas pelo juiz quando o réu as argúa sofreu, no Código de Processo Civil, uma restrição contida no art. 219, §5.°.

São exemplos de exceções substanciais: a) a de retenção; b) a de prescrição; c) a de contrato não cumprido {exceptio non adimpleti con-tractus); d) ou de contrato mal cumprido (exceptio non rite adimpleti contractus); e) a de compensação.

A chamada exceção de pagamento, em verdade, não é uma autêntica exceção substancial, mas defesa direta de mérito - quem a suscita em defesa produz contestação e o juiz deve conhecê-la de ofício.

Deve-se, igualmente, distinguir entre as verdadeiras exceções substanciais e as denominadas objeções (ROSENBERG, Tratado..., § 103, II, I; ARRUDA ALVIM, Direito processual civil - Teoria geral de processo de conhecimento, v. 2, p. 5). Incluem-se nessa categoria a chamada exceção de coisa julgada (exceptio rei iudicatae), a exceção de litispendência e a arguição de existência de compromisso arbitrai (art. 30 K V, VI e IX. do CPC). Estas, como

as exceções, impedem o prosseguimento da ação, mas podem e devem ser conhecidas de ofício pelo juiz.

13.3 Reconvenção

A exceção substancial, como vimos, é apenas um meio com que o réu pretende neutralizar a ação do autor, justificando o pedido de rejeição da demanda que este propõe contra si. Conservam, porém, as partes a sua posição originária: o autor age, enquanto o réu simplesmente reage, defendendo-se da ação do autor. Como ensina CHIOVENDA, "conquanto o réu se valha de diversas exceções, seu pedido tende sempre à rejeição da demanda do autor" (Instituições..., v. 1, p. 347). Ele nada pede para si, senão a improcedência da ação.

O réu, todavia, pode sair de sua condição de defesa e passar ao ataque, propondo contra o autor uma demanda inversa. A esta ação do réu proposta dentro do processo originário, contra o autor, dá-se o nome de reconvenção.

A insuficiência da doutrina de CHIOVENDA sobre o denominado "direito de ação" torna-se visível quando o mestre italiano afirma que o réu, ao defender-se, exerce igualmente uma ação, que, para ele (Instituições..., v. 1, p. 332), seria o direito a demandar uma sentença, depois reduzido por LIEBMAN ao direito a obter uma sentença de mérito sobre a ação do autor (veja-se MONACCIANI, Azione e legitimazione, p. 361 e ss.), direito esse certamente comum tanto ao autor quanto ao réu.

MÁRIO DINI (La domanda riconvenzionale nel diritto processuale civile, p. 82), na mesma ordem de raciocínio, afirma que a pretensão do réu perante o órgão jurisdicional é idêntica à pretensão do autor. Sem dúvida que é idêntica, e isso já deveria ser suficiente para que os tratadistas do polémico assunto, a que equivoca-damente se dá o nome de "direito de ação", passassem a desconfiar das próprias teorias que, afinal, levadas às últimas e naturais consequências, resultavam na completa identificação entre as posições antitéticas de autor e réu.

Sem dúvida que a pretensão - enquanto pretensão de tutela jurídica processual - do réu é idêntica à do autor. Ambos têm pretensão, porque podem exigir que o Estado lhes preste jurisdição. O autor, todavia, por definição, é aquele que age. pedindo contra o réu o reconhecimento de algo a que CHIOVENDA chamou um "bem da vida", enquanto o réu apenas se defende contra esta pretensão do autor, contestando a "ação" processual, para afirmar a improcedência da ação (de direito

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É curioso como a doutrina italiana repudia o conceito de pretensão para depois, sub-repticiamente, usá-lo sem o menor cuidado semântico.

A diferença fundamental entre a posição do réu que suscita uma exceçâo substancial e a daquele que propõe uma demanda reconvencional está em que o primeiro simplesmente se defende, ao passo que o reconvinte age contra o autor. O "objeto do processo", que se mantém inalterado na primeira hipótese, alarga-se e se duplica com a propositura de demanda reconvencional (MÁRIO DINI, ob. cit., p. 87).

Sendo a demanda reconvencional uma verdadeira ação do réu contra o autor, ela deverá ser proposta com observância de todos os requisitos que a lei exige para a propositura de uma ação autónoma. Deve, pois, o réu-reconvinte demonstrar a existência dos chamados pressupostos processuais, formulando a reconvenção através de uma petição semelhante à que ele faria se desejasse propor o pedido reconvencional separadamente, sob forma de ação autónoma, dando, portanto, os fundamentos de fato e de direito de sua demanda e formulando o pedido correspondente (J. FREDERICO MARQUES, Manual.., v. 2, p. 94; MOACYR AMARAL SANTOS, Primeiras linhas..., v. 2, p. 225).

Segundo dispõe o art. 315 do CPC, a reconvenção só será possível se a demanda nela contida for conexa com a ação principal ou com o fundamento da defesa.

Na verdade, como muito bem mostra J. C. BARBOSA MOREIRA (A conexão de causas..., p. 130), o conceito de conexão previsto no art. 315 do CPC é mais amplo do que o empregado no art. 103. Para efeito de ensejar o pedido reconvencional, a conexão que se exige diz respeito mais diretamente à comunidade do material probatório entre a demanda dita principal e a ação reconvencional (ob. cit., p. 155 e 164), pois, como poderemos constatar pelos exemplos que logo daremos, na maioria dos casos em que se admite a reconvenção não estão presentes os pressupostos da conexidade entre as causas, tal como esta vem definida no indicado art. 103 do CPC.

Não se admite reconvenção, "como ação de amplo espectro", no procedimento sumário (NELSON NERY JÚNIOR, Código de Processo Civil comentado, p. 564). O que a lei permite é a formulação pelo réu de pedido em seu favor, "na contestação", desde que fundado nos mesmos fatos referidos na petição inicial. É claro que esse pedido contraposto à pretensão do autor tem sentido reconvencional. mas não

corresponde a uma autêntica reconvenção, a ser como tal recebida e processada.

Se o réu pretender formular uma verdadeira ação reconvencional, terá de promovê-la sob forma de demanda autónoma. Nos casos em que houver conexão, no sentido do art. 315, impor-se-á, como providência de alta conveniência, que o juiz determine a reunião das causas propostas separadamente, a fim de julgá-las numa única sentença (art. 105 do CPC). No fundo, o resultado prático seria o mesmo que se poderia obter permitindo-se a reconvenção ampla no sumário.

Julgar-se-ão na mesma sentença a ação e a reconvenção, segundo dispõe o art. 318 do CPC. Pelo que se depreende do dispositivo, ainda que o juiz pudesse julgar a reconvenção sob forma de "julgamento antecipado da lide" (art. 330 do CPC), desde que, quanto a ela, fosse desnecessária a produção de provas em audiência, não poderá fazê-lo, devendo reservar-se para julgar a ação e a reconvenção na mesma sentença.

Outro pressuposto para a admissibilidade da ação reconvencional é que haja identidade de forma procedimental, ou seja, o pedido reconvencional será inviável se a pretensão que o demandado pretende com ele veicular tiver rito especial, a não ser que o réu renuncie à especialidade ritual, para sujeitar-se ao procedimento ordinário.

O que acaba de ser dito, no entanto, não significa afirmar que a possibilidade de reconvenção esteja afastada nos procedimentos especiais de jurisdição contenciosa. Se estes procedimentos, como geralmente acontece, se transformarem em ordinários depois da contestação, admite-se a demanda reconvencional (ADROALDO FABRÍCIO, Comentários..., p. 139, 244, 343 e 412; MOACYR AMARAL SANTOS, Primeiras linhas..., v. 2, p. 227).

O reconvindo, autor da ação principal, não será citado para a demanda reconvencional, bastando que seu advogado seja intimado para contestá-la no prazo de quinze dias.

Contestando a reconvenção, poderá o autor-reconvindo, por sua vez, reconvir contra o réu. Embora o Código mantenha silêncio a este respeito, a doutrina admite a reconventio reconventionis (J. FREDERICO MARQUES, Manual..., v. 2, p. 95; PONTES DE MIRANDA, Comentários..., 1993, t. IV, p. 167; CALMON DE PASSOS, Comentários..., p. 315).

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Segundo tem admitido a jurisprudência, pode ser proposta a reconvenção na mesma petição em que se faz a contestação, desde que a demanda reconvencional venha bem individualizada e convenientemente separada da defesa.

Observe-se, contudo, que o réu poderá confessar os fatos que fundamentam a ação ou reconhecer o pedido contra si formulado na demanda principal (art. 269, II, do CPC) e mesmo assim reconvir ao autor (CLITO FORNACIARI JÚNIOR, Da reconvenção no direito processual civil brasileiro, p. 158).

Outro pressuposto para a admissibilidade da reconvenção é que o juiz competente para a ação o seja também para a demanda reconvencional. A impossibilidade da reconvenção decorre da incompetência absoluta do juízo porque, se o caso for de simples incompetência relativa, a reconvenção é possível (MOACYR AMARAL SANTOS, Primeiras li-nhas..., v. 2, p. 227).

São hipóteses em que se admite a reconvenção: a) o construtor demanda o dono da obra exigindo deste o pagamento do preço da empreitada; o réu reconvém pedindo indenização devida por defeito existente na construção da obra por culpa do construtor; b) o devedor de alimentos propõe ação para que o juiz o exonere do encargo; o réu, credor de alimentos, reconvém para pedir sua majoração (acórdão da 5.a Câmara Cível do Tribunal de Justiça de São Paulo, Jurisprudência do CPC, ARRUDA ALVIM-FORNACIARI-ZILSCH, v. lf p. 612); c) na ação de majoração de alimentos, o réu reconvém para pedir sua exoneração (acórdão da 6.a Câmara Cível do Tribunal de Justiça de São Paulo, em 24.09.1948, ALEXANDRE DE PAULA, O processo civil à luz da jurisprudência, v. 3, p. 1.422); d) um dos cônjuges propõe ação de separação judicial alegando abandono do lar por parte do outro; o réu reconvém para pedir, por sua vez, a procedência da separação, fundada, todavia, em adultério cometido pelo autor; e) o autor propõe ação rescisória alegando um dos fundamentos constantes do art. 485 do CPC; o réu, sustentando-se num dos outros fundamentos aí previstos, pede, em reconvenção, igualmente a rescisão da sentença (acórdão do Tribunal de Apelação da Paraíba, em 11.08.1943, ALEXANDRE DE PAULA, ob. cit., p. 1.418; acórdão unânime da 2.a Câmara do Tribunal de Justiça de São Paulo, em 08.07.1958, autor e ob. cits., v. 23, p. 655); 0 o autor propõe ação de rescisão de contrato de promessa de compra e venda; o réu, compromissário-comprador, reconvém para

pedir a condenação do promitente-vendedor a outorgar-lhe a escritura definitiva de compra e venda (adjudicação compulsória, art. 641 do CPC), sob a alegação de haver cumprido rigorosamente o contrato; neste caso, sendo sumária a ação de adjudicação compulsória, a reconvenção só será possível se o réu-reconvinte optar pelo rito ordinário; g) o autor propõe ação de separação judicial; o réu reconvém pedindo alimentos; h) o autor pede a execução do contrato; o réu contesta a demanda alegando nulidade do negócio jurídico cujo cumprimento pretende o autor e, em conexão com este fundamento da defesa, reconvém pedindo perdas e danos (J. C. BARBOSA MOREIRA, A conexão de causas..., p. 166).

Se o autor propõe ação de indenização para haver o valor do prejuízo que lhe hajam causado os animais do vizinho, ao invadirem seu imóvel, a reconvenção para pedir que o autor seja condenado a levantar a cerca divisória, cuja obrigação lhe caiba, ou apenas para que ele seja declarado obrigado a construí-la (ação meramente declaratória), que PONTES DE MIRANDA dá como exemplo de ação reconvencional admissível (Comentários..., 1973, t. IV, p. 164), não pode ser aceita. O jurista, inadvertidamente, transpôs o exemplo que dera na vigência do Código de 1939 (Comentários..., 2. ed., t. III, p. 178) sem notar que a ação de ressarcimento de danos causados em prédios rústicos é de rito sumário (art. 275, II, c), o que tornava inviável a reconvenção.

O mesmo equívoco cometeu WELLINGTON MOREIRA PIMENTEL (Comentários ao Código de Processo Civil, v. 3, p. 309) ao dar como hipótese admissível de pedido reconvencional a do transportador acionado pelas vítimas do acidente de transporte. O rito sumário da ação principal impedia a reconvenção.

Resta saber se o denunciado à lide pode reconvir contra o denunciante. A doutrina brasileira não tem tratado da questão perante o Código de 1973. Como o sistema vigente considera parte o denunciado, uma vez que a demanda de regresso é desde logo proposta contra ele e decidida pela mesma sentença que julgar a causa principal, parece perfeitamente possível a propositura de reconvenção pelo denunciado contra o denunciante. Tal é a orientação da doutrina italiana (CALAMANDREI, La chiamataingaranzia, Opere..., §§ 107 e 125; e MÁRIO DINl,Ladoman-da riconvenzionale..., § 57).

Cabe, porém, um reparo no que respeita à doutrina professada pelos juristas italianos. Segundo eles, o denunciado poderia propor reconvenção tanto contra o denunciante quanto contra o terceiro moles-tante. Se a reconvenção só é admissível quando seja intentada pela

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parte, e nunca por terceiros intervenientes, entendemos que o denunciado - não sendo parte em relação ao terceiro, autor da moléstia - só poderá propor reconvenção contra o denunciante, perante o qual ele é demandado na ação de regresso. Certo, todavia, WELLINGTON MOREIRA PIMENTEL (ob. cit., p. 310), quanto à viabilidade da reconvenção no "chamamento ao processo" do art. 77 contra o autor da ação principal. E, embora o terceiro "chamado ao processo" deva assumir a posição de réu perante o autor da ação principal, e, ocasionalmente, contestada por ele a legitimidade do chamamento, tornar-se igualmente demandado perante quem o chamou, pensamos que não lhe seja possível reconvir contra este último.

13.4 Ação declaratória incidental

A ação declaratória incidental, introduzida em nosso direito pelo Código de 1973, tem fundamento em dois princípios retores do processo civil, ambos aceitos pela lei processual: o princípio da estabilidade da instância, segundo o qual são proibidas quaisquer modificações do pedido ou da causa de pedir a partir da citação do réu (art. 264), assim como não será lícito ao autor formular novos pedidos que poderiam ter sido cumulados na petição inicial e não o foram (art. 294); e o princípio da limitação da coisa julgada apenas à parte dispositiva da sentença (art. 469 do CPC).

Dispondo a lei que o juiz não poderá prestar jurisdição senão quando a parte a requerer (art. 2.°) e que sua sentença não poderá decidir nenhuma questão estranha à lide que lhe fora submetida a julgamento (art. 128), se - dizem os arts. 5.° e 325 do Código -, no curso do processo, se tornar litigiosa alguma relação jurídica de cuja existência ou inexistência depender o julgamento da lide, tanto o autor quanto o réu poderão pedir que essa relação jurídica controvertida seja declarada por sentença, o que significa dizer que tanto o autor quanto o réu podem pedir que o juiz, ao julgar a lide originária, também decida, com força de coisa julgada, a respeito da existência ou inexistência dessa relação condicionante da primitiva relação litigiosa (art. 470 do CPC).

Vê-se, portanto, que a ação declaratória incidente pode apresentar-se como uma forma especial de pedido de índole reconvencional, quando intentada pelo réu (art. 325); todavia, ela não é uma ação que apenas o demandado possa promover - como indica o art. 5.° do CPC, também o

autor, quando o réu controverta a relação jurídica que se denomina, tecnicamente, relação jurídica prejudicial, poderá cumular à sua demanda originária uma demanda ulterior declaratória, caso em que a demanda incidental representaria a adição de outra ação àquela primitivamente proposta pelo autor.

Discute-se se a declaração incidental, quando proposta pelo réu, equivale a uma reconvenção perante nosso direito, ou se, mesmo nesta hipótese, deve ter-se a declaratória como forma de contra-ataque do demandado diversa da reconvenção.

No sentido da equivalência entre reconvenção e ação declaratória incidente proposta pelo réu, manifestou-se J. C. BARBOSA MOREIRA (Estudos sobre o novo Código de Processo Civil, p. 154, e O novo processo civil brasileiro, §11, II), sob o argumento de que, no direito alemão, a declaração incidental, quando proposta pelo réu, tem natureza reconvencional, a ponto de ser denominada "reconvenção incidental", concepção esta que poderia ser transposta para o direito brasileiro. Em sentido contrário, tentando demonstrar a distinção entre a reconvenção e a ação declaratória incidente, manifestou-se GALENO LACERDA, em conferência pronunciada perante a Seccional da Ordem dos Advogados do Brasil do Estado de Santa Catarina (Das defesas de direito material que o réu pode oferecer contra a ação que lhe for movida, Ciclo de palestras sobre o novo Código de Processo Civil, p. 173-174).

A questão não é académica, pois, como lembra o ilustre processua-lista gaúcho, o Código brasileiro, ao contrário dos modelos europeus, deu tratamento diferenciado à reconvenção e à declaratória incidente, de modo que muitos problemas práticos podem surgir, conforme se considere a última uma simples forma de reconvenção especial ou se negue esta equiparação.

A vedação da propositura de reconvenção no procedimento sumário, constante da antiga redação do art. 315, § 2.°, do CPC, não mais existe. Entretanto, o atual art. 278, § 1.°, torna desnecessário o ajuizamento formal de uma demanda reconvencional, uma vez que o réu poderá formular um verdadeiro pedido reconvencional inserido na contestação.

ADROALDO F. FABRÍCIO (Ação declaratória incidental, p. 141), sob o fundamento de que a declaratória incidente do réu é uma reconvenção, e também

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por ser o sumário um processo concentrado, a exigir solução célere da lide, afirmara ser vedada a propositura da ação declaratória incidental nesta espécie de procedimento. CELSO BARBI {Ação declaratória principal e incidente, p. 214) manifestou-se pelo cabimento da ação declaratória incidente no procedimento sumário, sob o fundamento, que nos parece procedente, de que o simples pedido de sentença sobre uma questão prejudicial já controvertida nos autos, e que haverá, de qualquer modo, de ser apreciada pelo juiz, quer ela se transforme em demanda incidental, quer não, não imporia em ampliação da atividade probatória, assim como não chega a "dessumarizar" o rito, mais do que ele já o seria com a arguição de uma simples exceção substancial (art. 326 do CPC), cuja admissibilidade no sumário não se discute. A controvérsia hoje está superada em face da nova redação dada ao art. 280 do CPC pela Lei 9.245, de 26 de dezembro de 1995, que vedou a propositura de ação declaratória incidental no procedimento sumário. A Lei 10.444/ 2002 deu nova redação a este artigo, vedando a intervenção de terceiros, a não ser sob a forma de assistência, bem como o recurso de terceiro prejudicado e a intervenção fundada em contrato de seguro.

^ A declaração incidental é uma demanda que tem por fim a obtenção de uma sentença sobre a chamada questão prejudicial, de que depende a existência da pretensão contida na demanda prejudicada. Vejamos alguns exemplos. Numa ação de cobrança de juros, o devedor oferece uma contestação alegando que não os deve porque o contrato que os prevê é nulo. Ora, segundo o disposto no art. 469 do CPC, a nulidade do contrato é uma questão que está fora da lide de cobrança de juros. A existência ou inexistência do contrato funciona, nesta demanda, apenas como seu fundamento, de modo que a sentença que julgar procedente a cobrança dos juros, ou a julgar improcedente por entender o magistrado que os juros não são devidos por ser nulo o contrato, não terá decidido esta questão, com força de coisa julgada. Apenas servir-se-ã da questão da nulidade como fundamento para a improcedência da ação de cobrança. Assim, se o devedor alegar, em contestação, que os juros são indevidos em razão da nulidade do contrato e perder, poderá, na demanda subsequente em que porventura novos juros sejam cobrados, ressuscitar a controvérsia e conseguir do segundo juiz a declaração de nulidade do contrato que o primeiro lhe negara. Da mesma forma, se o autor de uma ação de alimentos os pedir baseado numa relação de parentesco e o réu alegar que tal relação inexiste, a sentença na ação alimentaria que julgar existente ou inexistente o parentesco não fará coisa julgada quanto ao reconhecimento da existência ou inexistência desta relação jurídica para as futuras demandas, inclusive para as de alimentos, que venham a ser discutidas entre as partes.

A existência do contrato de que decorre a pretensão a receber juros assim como a existência de parentesco no exemplo da ação de alimentos são uma questão prévia, denominada relação jurídica prejudicial, pois de sua inexistência decorreria a inexistência da pretensão contida na demanda prejudicada.

A existência do contrato ou do parentesco, em nossos exemplos, será objeto de apreciação judicial, não porém como matéria da lide, e sim como simples fundamento, ou questão prejudicial. Se a parte pretender que sobre ela se forme a coisa julgada, deverá propor a ação declaratória incidental, conforme recomenda o art. 470 do CPC.

Podemos, portanto, relacionar os seguintes princípios atinentes à ação de declaração incidental:

1.°) para que ela seja cabível, é necessária a existência de duas relações jurídicas: uma subordinada, que já é objeto da lide principal; outra condicionante, ou prejudicial, que está fora da causa, mas lhe serve de fundamento (BARBOSA MOREIRA, Estudos..., p. 150); y 2.°) a ação pode ser proposta pelo réu juntamente com a contestação e, pelo autor, nos dez dias seguintes à intimação que se lhe fizer da contestação oposta pelo demandado, sempre que, bem entendido, as partes controvertam sobre questão jurídica prejudicial;

V3.°) enquanto podem ser totalmente procedentes a ação e a recon-venção, em muitos casos a ponto de ser possível o pedido reconvencio-nal mesmo que o réu reconheça a procedência do pedido formulado contra si pelo autor, ou permaneça revel, já a declaratória negativa proposta pelo réu visa elidir o pedido feito pelo autor da ação principal, de modo que a procedência da demanda incidente implica, necessariamente, a improcedência da demanda principal. A improcedência da declaratória positiva proposta pelo autor implica igualmente a improcedência de sua ação principal;

4.°) sendo a declaratória incidental uma demanda como qualquer outra, deve seu autor demonstrar, quanto a ela, os mesmos pressupostos cuja existência seria exigida para procedência de uma demanda declaratória autónoma;

No que respeita ao interesse na declaração, a doutrina, seguindo uma observação de CARNELUTTI. exige que o autor da declaratória incidental demonstre um concreto interesse na declaração, capaz de repercutir em alguma situação li ti-

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giosa posterior, pois, alega-se, se a parte evidenciar a utilidade da sentença incidental para uma demanda subsequente, de nada lhe valerá a obtenção da coisa julgada sobre a questão prejudicial que, mesmo sem a propositura declaratória incidente, será apreciada- embora não decidida - na sentença proferida na demanda principal, influindo na procedência ou improcedência da causa.

Figuremos, para esclarecer esta questão, a seguinte hipótese: alguém exerce /ação para cobrança de uma das muitas parcelas em que se desdobra o preço ajustado pela compra de um determinado objeto; se o comprador pretender demonstrar a nulidade do contrato, seu interesse na demanda declaratória incidental está em que, obtida a sentença sobre a nulidade do contrato, evitar-se-ão no futuro as outras ações similares de cobrança ou quaisquer outras derivadas do mesmo negócio jurídico declarado nulo por sentença. Porém, se, em vez de fracionado em prestações periódicas, o preço for devido de uma só vez, a declaratória seria incabível por falta de interesse, uma vez que a sentença, apreciando a questão prejudicial como questão, e não como causa prejudicial, mesmo assim julgaria improcedente a ação principal, dando ganho de causa ao demandado, sob o fundamento (art. 469 do CPC) de nulidade do contrato; e, segundo este ponto de vista, como nenhuma outra ação poderia ser proposta no futuro, uma vez que o preço fora todo exigido, as partes não teriam interesse capaz de legitimar declaração incidental. Esta também é a lição de ROSENBERG (Tratado..., v. 2, § 92, III, I).

5.°) ao contrário do que ocorre com a reconvenção, a demanda declaratória incidental poderá ser decidida antes da demanda principal, por meio de uma sentença incidente (art. 325 do CPC), como mostra BARBOSA MOREIRA (O novo processo civil brasileiro, p. 146);

6.°) a declaratória incidental está subordinada, como a reconvenção, à regra de competência do juízo, de modo que o juiz da causa principal, absolutamente incompetente para o julgamento da ação declaratória incidental, deverá rejeitá-la liminarmente (ADROALDO FABRÍCIO, Ação declaratória incidental, p. 154);

7.°) a ação declaratória incidental deve ser proposta em petição escrita, com os mesmos requisitos exigidos pelo Código para uma demanda declaratória autónoma. Não se recomenda a prática, que às vezes se admite com relação à reconvenção, de formular-se o pedido de declaração incidente em capítulo especial da contestação, uma vez que, sendo possível a ocorrência de incidentes procedimentais a serem tratados separadamente, tanto em relação à demanda principal quanto à declaratória, é aconselhável que esta se faça com a estrita observância dessa regra formal.

13.5 Revelia e reconhecimento do pedido

13.5.1 Revelia

Ocorre revelia quando o réu, regularmente citado, deixa de contestar a ação. Embora, no sentido moderno, tal seja o conceito corrente de revelia, identificada como a omissão do demandado em defender-se, em sua origem a ideia de contumácia ou rebeldia estava intimamente ligada à estrutura primitiva e rudimentar do processo civil, conhecido como uma relação contratual sui generis, a que deveria aderir o demandado. Em Roma, como se sabe, a relação processual só se tornava viável se a ela aderisse espontaneamente o réu, através da solenidade conhecida como litis contestatio, de tal modo que o direito romano não conheceu o processo contumacial. Somente no direito medieval passou-se a conceber a formação regular da relação processual ainda que o demandado não comparecesse para defender-se.

Na doutrina alemã ainda se observa o conceito de revelia como o não comparecimento do demandado à audiência ou a sua não intervenção efetiva no debate da causa (ROSENBERG, Tratado..., § 76, I, 1; GOLDSCHMIDT, Derecho procesal civil, § 58, 2; KISCH, Elementos..., §54).

Embora CALMON DE PASSOS se incline por considerar sinónimos os termos revelia e contumácia (Comentários..., § 190), cremos ser aconselhável reservar a palavra contumácia para indicar a omissão de qualquer das partes, tanto do autor quanto do réu, em praticar algum ato processual ou valer-se de certa faculdade, considerando-se revelia a contumácia total do réu, representada por sua completa omissão em defender-se (cf. ROSENBERG, Tratado..., § 105, I, 1).

No direito alemão, a contumácia do autor, ou seja, o seu não comparecimento à audiência, pode acarretar-lhe, se o requerer o demandado, a extinção do processo, mediante uma sentença contumacial, julgando a demanda infundada (§ 330 da ZPO); ou, em vez de uma sentença contumacial, poderá o demandado solicitar que se decida a causa "segundo o estado dos autos" {§ 330, a). Em nosso direito anterior, o não comparecimento à audiência do procurador do autor provocava a extinção do processo por "absolvição de instância", que corresponderia hoje a uma forma de extinção do processo sem julgamento do mérito da causa (art. 266, I, do Código de 1939).

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No sistema do Código de 1973, o nao comparecimento do advogado de uma das partes autoriza o juiz a dispensar a produção das provas por ela requerida (art. 453, § 2.°).

13.5.2 Efeitos da revelia

Nosso Código de Processo Civil mudou o tratamento dado tradicionalmente à revelia pelo direito luso-brasileiro. No regime anterior, a omissão do réu em contestar a ação não lhe acarretava as severas consequências agora impostas pelos arts. 319 e 330 do atual estatuto processual.

O Código de 1939, como o direito brasileiro anterior, mantiveram-se fiéis ao princípio de que a revelia não eximia o autor de demonstrar a procedência da demanda, não dispensando, em princípio, a realização da audiência de instrução e julgamento, quando, pela natureza das alegações do autor, se houvesse de produzir prova oral, não obstante existir o preceito do art. 209 daquele Código, a dispor que o fato alegado por uma das partes e não contestado pela outra seria admitido como verídico -presunção esta, todavia, que o juiz levaria em conta somente no caso em que a admissibilidade do fato não contestado se harmonizasse com o conjunto da prova.

Em razão de tais princípios, a revelia não autorizava o julgamento antecipado da lide, a não ser em casos especiais, previstos para determinados procedimentos.

A consequência mais marcante da revelia, no regime anterior, era a determinação da fluência dos prazos contra o revel independentemente de intimação (art. 34 do CPC de 1939), de modo que, ao contrário do que agora sucede, mesmo na hipótese de revelia, preservava-se o princípio da livre apreciação da prova, assegurando-se ao revel a produção de provas capazes de contrastarem com a presunção de veracidade decorrente da revelia, elidindo-se, assim, os seus efeitos (PONTES DE MIRANDA, Comentários..., 1939, t. III, p. 293; MOACYR AMARAL SANTOS, Prova judiciária no cível e comercial, v. 1, p. 136; SILVA MELERO, La prueba procesal, v. 1, p. 159).

Como agora a revelia acarreta a presunção de serem verdadeiros os fatos afirmados pelo autor (art. 319 do CPC), pela mesma razão toma-se supérflua a audiência de instrução e julgamento, pois os fatos que aí se

provariam passam a ser admitidos como verdadeiros, ficando o juiz autorizado a julgar antecipadamente a lide (art. 330).

Além desse, a revelia tem outro efeito, que é o de dispensar-se a intimação do revel, contra o qual fluem os prazos processuais, segundo dispõe o art. 322 do CPC, independentemente de intimação.

Este princípio sofre, no entanto, algumas restrições: a) segundo mostra CALMON DE PASSOS {Comentários..., § 207),

embora corram contra o revel todos os prazos processuais, deverá ser ele intimado da sentença final que decidir a demanda, para que comece a fluir o prazo para recurso;

b) se o revel comparece tardiamente ao processo, representado por advogado por ele constituído, não se aplica o disposto no art. 322, deven do seu procurador ser pessoalmente intimado dos atos processuais sub sequentes a seu ingresso na causa (autor e ob. cits., § 205);

c) se o revel demonstrar a ocorrência de força maior determinante da revelia, aplica-se a disposição do art. 183 do CPC, que permite à parte impedida de praticar o ato processual, por motivo de força maior, realizá- lo no prazo que o juiz fixar. Sendo assim, demonstrada a "justa causa" para a omissão do demandado, a decretação da revelia deverá ser levan tada e restituído ao réu o prazo para a contestação, mesmo que já tenha sido proferida sentença contumacial;

d) finalmente, deve observar-se que os efeitos da revelia só ocorrem se a demanda versar sobre direitos disponíveis (art. 320, II, do CPC); em sendo estes indisponíveis, a revelia ocorrerá pela falta de contestação, mas não produzirá seus efeitos legais. Também não ocorrerão os efeitos da revelia (art. 319) se, havendo mais de um réu, algum deles contestar a ação (art. 320,1). A terceira hipótese contemplada neste dispositivo diz respeito a uma condição de procedibilidade, pois a ação é que seria inviá vel neste caso (art. 320, III);

e) os efeitos da revelia também não se produzem se o réu for citado com hora certa ou por edital, pois, em tais casos, impõe a lei a obrigação de dar-lhe o juiz curador especial (art. 9.°, II, do CPC), o qual, naturalmente, deverá contestar a ação em nome do revel.

A necessidade de intimar-se o revel da sentença ftnal que julgue a causa, em geral, não é reconhecida pela doutrina brasileira (assim H. THEODORO

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JÚNIOR, Curso..., v. 1, p. 460). Entretanto, nos demais sistemas jurídicos semelhantes ao nosso no tratamento da revelia, assim como na doutrina estrangeira, é amplamente aceita a necessidade de intimação pessoal do revel, ao menos para que ocorra o trânsito em julgado da sentença e possa ela ser regularmente executada. Esta é, aliás, a posição de J. J. CALMON DE PASSOS (Comentários..., n. 207).

13.5.3 Reconhecimento do pedido

Ocorre reconhecimento do pedido, ou "reconhecimento da procedência do pedido", como diz o art. 269, II, do CPC, quando o réu não se opõe à pretensão manifestada contra si pelo autor. Ao contrário da confissão, que é o reconhecimento da existência de alguns ou de todos os fatos que sirvam de fundamento à demanda, o reconhecimento do pedido não importa em qualquer admissão da veracidade dos fatos e pode até mesmo conter a expressa inconformidade do réu quanto à existência de tais fatos. Quem reconhece o pedido manifesta simplesmente a vontade de submeter-se ao pedido contra si formulado pelo autor, não contendo, portanto, tal ato processual a menor dose de manifestação de conhecimento, limitando-se, ao contrário, a uma pura manifestação de vontade (JOSÉ A. ARLAS, El allanamiento en el proceso civil, Problemática actual dei derecho procesal, p. 176).

O reconhecimento do pedido, ao contrário da confissão, importa na extinção do processo, pois, se o demandado não se opõe à pretensão do autor, nada mais cabe ao juiz do que homologar a manifestação de vontade e decretar a extinção processo, decidindo o mérito da causa, segundo dispõe o art. 269 do CPC. Em verdade, estabelece este dispositivo que, havendo reconhecimento do pedido, o processo será extinto com julgamento de mérito. O que se quer significar com isto é que o conflito de interesses terá sido extinto pelo reconhecimento, de modo a impedir que ele se renove numa futura demanda. Segundo um conhecido estudo de CARNELUTTI, referido por E. MONIZ DE ARAGÃO [Comentários..., p. 533), o reconhecimento do pedido teria por fim afastar o julgamento da lide, uma vez que o reconhecimento da procedência da ação tornaria desnecessário seu julgamento. O Código, porém, segundo pensa E. MONIZ DE ARAGÃO, teria se inclinado para a concepção de CHIOVENDA. para quem, ainda no caso de reconhecer o réu a procedência do pedido, haveria necessidade de uma sentença que declarasse fundada ou infundada a ação (Institui ções..., v. 2, p. 355).

Não nos parece aplicável ao sistema do nosso Código a lição de CHIOVENDA, uma vez que, no direito brasileiro atual, o reconhecimento do pedido conduz necessariamente à procedência da ação e à extinção da relação processual.

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14 DIREITO PROBATÓRIO

SUMÁRIO: 14.1 Introdução: 14.1.1 Conceito de prova em direito judiciário; 14.1.2 Classificação das provas; 14.1.3 Objeto da prova; 14.1.4 Princípios fundamentais de direito probatório; 14.1.5 Sistemas de avaliação da prova - 14.2 Meios de prova: 14.2.1 Conceito; 14.2.2 Provas ilícitas; 14.2.3 Prova emprestada-14.3 Das provas em espécie: 14.3.1 Depoimento pessoal e confissão; 14.3.2 Confissão; 14.3.3 Prova testemunhal; 14.3.4 Prova documental; 14.3.5 Prova pericial; 14.3.6 Inspe-ção judicial.

14.1 Introdução

14.1.1 Conceito de prova em direito judiciário

A palavra prova tem inúmeros significados, tanto na linguagem vulgar quanto no uso que os cientistas e particularmente os juristas fazem do vocábulo.

As ciências experimentais geralmente valem-se da expressão para significar o ensaio, a verificação ou a confirmação pela experiência de um dado fenómeno, objeto de investigação científica.

No domínio do processo civil, onde o sentido da palavra prova não difere substancialmente do sentido comum, ela pode significar tanto a atividade que os sujeitos do processo realizam para demonstrar a existência dos fatos formadores de seus direitos, que haverão de basear a convicção do julgador, quanto o instrumento por meio do qual essa verificação se faz. No primeiro sentido, diz-se que a parte produziu a prova, para significar que ela, através da exibição de algum elemento indicador da existência do fato que se pretende provar, fez chegar ao

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juiz certa circunstância capaz de convencê-lo da veracidade da sua afirmação. No segundo sentido, a palavra prava é empregada para sig-nificar não mais a ação de provar, mas o próprio instrumento utilizado, ou o meio com que a prova se faz.

Podemos, portanto, dizer do procedimento de uma parte que traz um documento ao processo que ela fez ou produziu a prova documental; e, referindo-nos ao documento em si, podemos dizer que ele constitui a prova do fato nele representado.

Pode-se empregar o mesmo vocábulo prova para significar o convencimento que se adquire a respeito da existência de um determinado fato. Valendo-nos de nosso exemplo, podemos afirmar que o autor ou o réu, embora hajam trazido ao processo um determinado documento, ou outro instrumento de prova diferente, em verdade não produziram a prova, ou seja, o procedimento probatório não foi capaz de convencer o julgador da existência do fato probando, de modo que o juiz permaneça em dúvida sobre sua existência. Pode-se, neste último caso, dizer que o fato não foi provado, à medida que o juiz não resulte convencido de sua veracidade, ou da veracidade de sua existência. Temos aqui o terceiro significado do vocábulo prova em direito judiciário.

E necessário extremo cuidado quando, ao tratar de uma questão probatória no domínio da ciência jurídica, alude-se ao conceito de verdade, imaginando-se que a prova de um fato equivalha à demonstração da veracidade de sua existência. No direito moderno, a partir de JEREMY BENTHAM, eminente jurista e filósofo inglês do século XVIII (nascido em 1748), e por influência do utilitarismo que tem marcado de forma tão profunda toda a filosofia contemporânea, verifica-se uma crescente tendência a considerar a prova judiciária como a demonstração da veros-similhança da existência de uma determinada realidade, restaurando-se, neste sentido, a doutrina aristotélica da retórica, como "ciência do provável", a que se chega através de um juízo de probabilidade (quanto a isto, ALESSANDRO GIU-LIANI, // conceito di prova - Contributo alia lógica giuridica, Cap. II, § 3.°, e Apêndice, p. 231 e ss.; e SALVATORE PATTI, Libero convincimento..., RDP, especialmente p. 498 e 503).

Como mostra acertadamente GIOVANNI VERDE (L onere delia prova nel processo civiíe, n. 48 e 53), a complexidade da moderna civilização de massa, com a intensificação generalizada de contatos sociais de natureza "terciária" e portanto superficiais, vem determinando a utilização cada vez mais acentuada de

critérios puramente formais de verdade, baseados na simples aparência, de que são exemplos os incontáveis negócios jurídicos abstratos, como é o caso dos títulos executivos extrajudiciais, especialmente os cambiários, que têm vida jurí-dica independentemente de sua causa.

De resto, como disse um outro filósofo moderno, mesmo no campo das ciên-cias ditas da natureza, "o conhecimento científico é sempre a reforma de uma ilusão" (GASTON BACHELARD, A epistemologia, p. 17), de modo que seria uma pura e pretensiosa ingenuidade imaginar que o processo civil seja instrumento ca-paz de permitir a determinação da verdade absoluta a respeito dos fatos. Aliás, BENTHAM abre seu célebre tratado de direito probatório afirmando que se deve entender por prova o estabelecimento de "um fato supostamente verdadeiro" (Tra-tado de Ias pruebas judiciales, v. 1, p. 19).

Ao contrário do que sucede com a investigação científica, a verdade com base na qual se exige que o juiz pronuncie a procedência ou a improcedência da demanda jamais se apresenta como o resultado de um encadeamento de fatos e circunstâncias, dispostos em conexão lógica determinante de uma única conse-quência possível. Quem participa da experiência forense sabe que, na grande maioria dos casos, especialmente naqueles onde o conflito seja mais profundo e de maior relevância, a prova colhida nos autos oferece duas versões antagónicas, de que se pode perfeitamente retirar tanto a procedência quanto a improcedência da causa. Daí afirmar LUÍS RECASÉNS SICHES que os conceitos de "verdade" e "falsidade" são estranhos ao domínio do direito, onde deve ter lugar o que ele denomina "lógica do razoável", diversa da lógica das ciências naturais {Nueva filosofia de Ia interpretación, p. 277).

O Código de Processo Civil, em seu art. 332, emprega o vocábulo prova para significar meios de prova, tais como testemunhas, documen-tos, exames periciais ou quaisquer outros meios possíveis de prova, mesmo não especificados em lei. Quando, ao contrário, se diz que o sistema brasileiro filia-se ao princípio de direito probatório denominado princí-pio da persuasão racional, já não mais se emprega a palavra prova naquele primeiro sentido por nós indicado, senão que se passa a usá-lo neste último significado.

Se todo direito, como fenómeno social, existe nos fatos sobre os quais eventualmente se controverte, compreende-se a importância para o processualista do domínio seguro dos princípios e dos segredos do direito probatório. Dizia a respeito BENTHAM: "A arte do processo não é essencialmente outra coisa senão a arte de administrar as provas" {Trata-do...^. l , p . 10).

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14.1.2 Classificação das provas

Empregando-se o vocábulo prova para significar os meios de prova, portanto no sentido há pouco indicado, é possível classificá-las segundo inúmeros critérios. Veremos brevemente os mais comumente seguidos pelos doutrinadores.

a) O célebre jurista italiano MALATESTA, em seu clássico tratado de direito probatório, classifica-as, segundo seu objeto, em diretas e in-diretas; quanto ao sujeito de que provêm, ou conforme outros preferem, quanto às fontes de que promanam, tmpessoais e reais; finalmente quanto à forma, em prova testemunhal, prova documental e prova material (Ló-gica de Ias pruebas en matéria criminal, p. 98-99).

MOACYR AMARAL SANTOS (Prova judiciária..., v. 1, n. 28) dá os seguintes exemplos de provas diretas e indiretas da classificação de MALATESTA: "Se uma testemunha vem ajuízo e depõe que viu o automóvel de Tício dobrar a esquina na contramão e chocar-se com a carroça de Caio, ou se a corrida daquele automóvel estava sendo cine-matografada e o aparelho cinematográfico o colheu dobrando a esquina na contramão, verificam-se provas tipicamente diretas. Mas se uma testemunha vem a juízo e narra apenas a posição e o estado em que ficaram o automóvel e a carroça após o acidente, por ela visto, ou se é exibida fotografia referente à posição e ao estado desses veículos de-pois do choque, tais provas são indiretas, porque não se referem direta-mente ao fato probando, isto é, como se deu o acidente". O exemplo clássico de prova indireta são os indícios, que muitos juristas não consideram um meio de prova, capaz de ser comparado, por exemplo, aos documentos.

Quanto ao sujeito de que a prova emana, dizem-se pessoais aquelas que consistem na revelação consciente de um fato por uma pessoa, tal como a prova testemunhal, e reais as provas que são produzidas pelas coisas ou pelas pessoas inconsciente ou involuntariamente, como as modificações corpóreas e psíquicas causadas na testemunha por ocasião de prestar o depoimento, e que servirão de subsídios para demonstrar a probabilidade da existência de algum fato ou indicar determinado estado de espírito (MALATESTA, ob. cit., p. 241).

Finalmente, quanto à forma, as provas, segundo MALATESTA, podem ser testemunhais, documentais e materiais. Classificam-se como

prova testemunhal, além da prova feita por meio de testemunhas, a confissão e, nos sistemas que o admitem, também o juramento; docu-mental é a prova consistente numa declaração consciente feita por uma pessoa sob forma escrita e irreproduzível oralmente (MALATESTA, ob. cit, p. 465); finalmente, provas materiais seriam para o jurista as mesmas provas reais, quando consideradas do ponto de vista da forma (p. 502).

b) CARNELUTTI (Sistema..., v. 1, § 283), considerando a relação entre o sujeito e o objeto da prova, mostra que essa relação pode ser imediata ou mediata, segundo o próprio fato a provar incida diretamente sobre os sentidos do observador ou somente o atinja indiretamente atra vés de um fato intermediário. Segundo este critério, as provas são ditas diretas e indiretas.

Igualmente para CARNELUTTI, as provas podem ser pessoais e reaisi segundo provenham de um homem ou de coisas. E podem divi-dir-se em provas históricas e críticas. A prova testemunhal, enquanto a testemunha reproduz perante o juiz o fato probando, é uma forma de prova histórica', o indício, na medida em que não reproduz o fato que se pretende provar diretamente ao destinatário da prova, mas apenas per-mite que, pelo raciocínio, se chegue à conclusão de sua veracidade, é uma prova crítica.

c) Para BENTHAM (Tratado..., p. 30), as provas podem ser divi didas em pessoais ou reais, segundo provenham de uma pessoa ou de uma coisa. Conforme um outro critério, podem ser diretas ou indiretas. Classifica BENTHAM as provas também em casuais e preconstituí- das, segundo o meio de prova seja utilizado ocasionalmente, sem ter havido intenção de utilizá-lo como prova em sua formação, ou, ao con trário, se tenha formado a prova com o propósito de empregá-la num processo futuro.

14.1.3 Objeto da prova

Segundo um princípio elementar de direito probatório, apenas os fatos devem ser objeto de prova, desde que a regra de direito presume-se conhecida do juiz. O próprio art. 332 do CPC confirma esta regra, ao dispor que a atividade probatória das partes dirige-se a estabelecer a veracidade dos fatos em que se funda a ação ou a defesa.

B I 8 L 1 O T E C A

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A regra, porém, admite uma exceção, conforme dispõe o art. 337 do CPC. Sempre que a parte alegar direito municipal, estadual, estrangeiro ou consuetudinário, cabe-lhe o ónus de provar tais regras de direito, a não ser que o juiz, por conhecê-las, a dispense da prova.

Da própria regra estabelecida no art. 332 do CPC pode-se extrair o seguinte corolário: hão de ser objeto de prova apenas os fatos em que se funda a ação ou a defesa, o que significa dizer que apenas os fatos rele-vantes para a decisão da controvérsia devem ser provados.

E mais: sempre que das afirmações das partes se verifique que cer-tos fatos por qualquer delas alegados são reconhecidos como verdadeiros pela parte contrária, toma-se desnecessária a sua demonstração. Os fatos afirmados por uma das partes e não negados pelo adversário, ou seja, os fatos não controvertidos na causa, não necessitam ser provados (MOA-CYR AMARAL SANTOS, Prova judiciária..., v. 1, p. 208).

A regra de que apenas os fatos duvidosos ou controvertidos devem ser objeto de prova está consubstanciada no art. 302 do CPC, segundo o qual o juiz há de ter por verdadeiros os fatos narrados pelo autor, na petição inicial, quando não impugnados pelo réu, salvo, diz a lei, se a existência do fato particular não impugnado expressamente pelo réu es-tiver, genericamente, em contradição com a defesa, considerada como um todo.

A mesma regra vem confirmada pelo art. 334, que declara não de-penderem de prova: I - os fatos notórios; II - os fatos afirmados por uma parte e confessados pela parte contrária; III - os fatos admitidos no pro-cesso como incontroversos; e IV - os fatos em cujo favor milita presun-ção legal de existência ou de veracidade.

DEVIS ECHANDIA (Teoria general de Ia prueba judicial, v. 1, § 3) adverte sobre a confusão geralmente feita pela doutrina entre objeto da prova e necessidade de prova. Na verdade, os fatos notórios e os que venham a ser admitidos como verdadeiros apenas dispensam o proce-dimento probatório precisamente por serem notórios ou não controver-tidos. De modo que, quando MOACYR AMARAL SANTOS {Prova judiciária..., v. 1, p. 208) afirma que "são objeto de prova os fatos controvertidos"; ou quando CHIOVENDA (PrincipiL., § 59) escreve que "oggetto delia prova sono i fatti non ammessi e non notorii"; ou ainda quando MICHELI (La carga de Ia prueba, § 16) declara ser "ensenanza comun que el objeto de Ia prueba está constituído por los hechos controvertidos", o que se quer indicar é que só necessitam de

prova os fatos que nao sejam notórios e que, além disso, sejam contro-vertidos na causa. Os notórios e não controversos têm-se por verdadei-ros, por já se considerarem provados. Como qualquer outro fato, po-rém, os notórios e os não controversos são idóneos e portanto capazes de constituir objeto de prova (LESSONA, Teoria general de Ia prueba en derecho civil, v. 1, p. 168).

SENTIS MELENDO (La prueba, los grandes temas de derecho probatório, p. 12) afirma: "Os fatos não se provam; os fatos existem. O que se prova são as afirmações que poderão referir-se a fatos". CARNE-LUTTI dissera antes: "Cio che si prova è una affermazione; quando si parla di provare un fatto, questo avviene per il solito scambio tra afferma-zione e il fatto affermato" [Sistema..., v. 1, p. 674).

Esta é também a lição de JOÃO DE CASTRO MENDES (Do conceito de prova em processo civil, n. 120), que mostra como seria impróprio dizer que ficou provado o fato de alguém não estar em certo lugar, ou a prova de que determinado evento não ocorreu. Na hipótese de a finalidade da prova ser a demonstração de um "fatto negativo", percebe-se facilmente que o objeto da prova não é o fato, mas, como afirma CASTRO MENDES, as alegações ou afirmações sobre o fato. Esta é igualmente a doutrina defendida por ROSENBERG (Trata-do..., § 112,11).

Rejeitam, no entanto, esta doutrina tanto MICHELI (La carga...) quanto DEVIS ECHANDIA (ob. cit., § 36), como de resto a recusa a maioria da doutrina (SILVA MELERO, La prueba..., v. 1, p. 50).

Como quer que seja, o argumento de que se vale SENTIS MELEN-DO para afirmar que o objeto da prova não são os fatos e sim as afirma-ções que se fazem sobre os fatos é a circunstância de considerar-se a inspeção judicial como um verdadeiro e autónomo meio de prova. Ora, segundo o jurista, através da inspeção judicial nenhum fato novo vem ao processo, mas apenas se cuida de verificar a veracidade de uma afirma-ção da parte a respeito de um fato (ob. cit., p. 403).

14.1.4 Princípios fundamentais de direito probatório

' O direito probatório constitui sem dúvida um capítulo especial do processo civil, regido por princípios e regras particulares que lhe dão o caráter de um verdadeiro sistema.

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Estes princípios que presidem o direito probatório, como sucede com os demais princípios que regem os outros domínios da ciência do direito, não podem ser confundidos, no entanto, com os princípios que presidem as chamadas ciências da natureza. Um princípio físico, por exemplo, o da gravitação universal, ou qualquer outro, constitui uma regra inexorável a que os fenómenos da natureza se submetem neces-sariamente. Quando se fala, no domínio do direito, em princípios fun-damentais, faz-se alusão a princípios norteadores da compreensão do fenómeno jurídico, como simples instrumentos de referência para a solução de um problema jurídico qualquer. Os princípios fundamentais a que faremos agora breve referência denomina-os DEVIS ECHAN-DIA (ob. cit., p. 114) de princípios retores, para a construção de uma teoria geral da prova.

14.1.4.1 Ónus da prova

Embora a questão sobre quem deva provar não integre o capítulo dos chamados princípios fundamentais, parece lícito incluí-la ao lado destes, para simplificar a exposição, mesmo porque, se o estudo do ónus da prova não revela, à primeira vista, uma implicação imediata com qualquer dos princípios de direito probatório, pode-se dizer, sem medo de errar, que as questões a ele pertinentes decorrem da adoção, por parte do respectivo sistema processual, de certos institutos e princípios forma-dores das estruturas elementares de qualquer ordenamento processual.

Como todo direito se sustenta em fatos, aquele que alega possuir um direito deve, antes de mais nada, demonstrar a existência dos fatos em que tal direito se alicerça. Pode-se, portanto, estabelecer, como regra geral dominante de nosso sistema probatório, o princípio segundo o qual à parte que alega a existência de determinado fato para dele derivar a existência de algum direito incumbe o ónus de demonstrar sua existên-cia. Em resumo, cabe-lhe o ónus de produzir a prova dos fatos por si mesmo alegados como existentes.

E necessário distinguir ónus de obrigação. A parte gravada com o ónus não está obrigada a desincumbir-se do encargo, como se o adversá-rio tivesse sobre isso um direito correspectivo, pois não faz sentido dizer que alguém tenha direito a que outrem faça prova no seu próprio interesse (DEVIS ECHANDIA, ob. cit., p. 425).

Como mostra ROSENBERG (La carga..., § 1.°), a necessidade que o sistema processual tem de regular minuciosamente o ónus da prova decorre de um princípio geral vigente no direito moderno, segundo o qual ao juiz, mesmo em caso de dúvida invencível, decorrente de contra-dição ou insuficiência das provas existentes nos autos, não é lícito exi-mir-se do dever de decidir a causa. Se ele julgar igualmente sobre a existência de fatos a respeito dos quais não haja formado convicção se-gura, é necessário que a lei prescreva qual das partes haverá de sofrer as consequências de tal insuficiência probatória.

Nosso Código de Processo Civil (art. 333) mantém-se fiel ao prin-cípio segundo o qual o ónus da prova incumbe: I - ao autor, quanto ao fato constitutivo do seu direito; II - ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor. O ónus da prova é uma consequência do ónus de afirmar (MOACYR AMARAL SANTOS, Comentários ao Código de Processo Civil, § 18). O autor só poderá dar consistência objetiva à sua pretensão em juízo fazendo afir-mações sobre a existência ou inexistência de fatos e a pertinência deles como elementos constitutivos do direito, cujo reconhecimento o mes-mo pretenda. De igual modo o réu, se ao defender-se tiver necessidade de fazer afirmações em sentido contrário. Em determinadas circunstân-cias, poderá o réu limitar-se a negar os fatos afirmados contra si pelo autor e esperar que este tente demonstrar sua veracidade. Se o réu limi-tar-se a simples negativa, sem afirmar, por sua vez, a existência de outros fatos que possam elidir as consequências pretendidas pelo autor, nenhum ónus de prova lhe caberá; se, no entanto, também ele afirmar fatos tendentes a invalidar os fatos alegados por seu adversário, então incumbir-lhe-á o ónus de prová-los.

O rígido princípio romano sobre ónus da prova, segundo o qual a prova incumbe invariavelmente a quem alega e nunca a quem nega (ac-tore non probante réus absolvitur), sem levar em consideração a maior ou menor verossimilhança dos fatos alegados, sem que ao juiz se permita decidir baseado na normalidade do que acontece, segundo a experiência comum, como procuramos mostrar noutra oportunidade (Ajuris, v. 51), mantém um grave e profundo compromisso com a estrutura e os princí-pios formadores do procedimento ordinário, derivado do procedimento da actio do direito privado romano. Ao contrário do direito inglês, que dá notável relevo às provas prima facie, liberando o autor do ónus probandi, quando ele tiver provado a mera verossimilhança dos fatos fundadores de

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sua pretensão, os sistemas processuais que descendem do direito roma-no-canônico impõem ao julgador o dever de somente decidir através de critérios objetivos de veracidade, e não de verossimilhança (MICHELI, La carga..., p. 19, 203 e 488), o que o impede de emitir uma decisão provisória, que é uma categoria ignorada pela nossa doutrina, para a qual somente haverá decisão jurisdicional quando o provimento for final e determinante do encerramento do litígio (vide sobre isto o que escreve-mos no capítulo sobre o "princípio da verossimilhança").

14.1.4.2 Princípio da necessidade da prova

Segundo este princípio, que de certo modo é um reflexo das regras sobre o ónus da prova, os fatos afirmados pelas partes hão de ser suficien-temente provados no processo, não sendo legítimo que o juiz se valha de seu conhecimento privado para dispensar a produção de prova de algum fato de cuja existência ou veracidade esteja ele ciente por alguma razão particular.

O princípio segundo o qual o juiz não pode valer-se de fatos de seu conhecimento privado foi defendido calorosamente por BENTHAM (ob. cit., Cap. XVm). Segundo o célebre jurista e filósofo inglês, o juiz não pode pronunciar uma decisão sobre uma determinada questão de fato que não esteja estabelecida por escrito ou provada por testemunhas, assegurado o princípio do contraditório. Há dois aforismos latinos que sustentam a regra da necessidade da prova: um deles afirma que o juiz só deve decidir com base nos fatos alegados e provados pelas partes {iudex secundwn allegata et probata a partibus iudicare debet); o outro declara que o que não está no processo não está no mundo (quod non est in actis non est in hoc mundo).

O princípio que veda a utilização do conhecimento privado do juiz sofre, no direito moderno, grandes restrições, particularmente depois da obra fundamental de FRIEDRICH STEIN (El conocimiento privado deljuez). Segundo nosso Códi-go, o juiz poderá aplicar as denominadas regras de experiência comum, subminis-tradas pela observação do que ordinariamente acontece (art. 335). Certamente está facultado ao juiz valer-se dessas regras da experiência comum e mesmo, em mui-tos casos, como diz este dispositivo legal, poderá prescindir até da prova de certas regras técnicas, ressalvada a necessidade da prova pericial.

De qualquer modo, segundo o princípio que MOACYR AMARAL SANTOS denomina sociabilidade da convicção judicial (Prova judiciária..., v. 1, n. 248),

peculiar ao sistema conhecido como de persuasão racional da prova, deverá o juiz, ainda quando se valha de tais regras de experiência, expor adequadamente os mo-tivos que lhe formaram a convicção.

14.1.4.3 Princípio da contradição da prova

O princípio do contraditório, ou da contrariedade em matéria de prova, deriva do princípio mais amplo por nós já indicado quando aludi-mos ao princípio fundamental que preside o processo civil, conhecido como princípio da bilateralidade da audiência, segundo o qual ninguém poderá ser condenado sem antes ser ouvido e sem que se lhe assegure a possibilidade de defesa adequada. Também no domínio do direito proba-tório, a parte contra quem se produza prova tem direito de conhecê-la antes que o juiz a utilize como elemento de convicção em sua sentença, e deve ter igualmente o direito de impugnã-la e produzir contraprova, se puder, por este meio, invalidá-la.

Segundo este princípio, carece de legitimidade a prova secreta pro-duzida sem o prévio conhecimento da outra parte e sem o indispensável contraditório processual (DEVIS ECHANDIA, ob. cit., p. 123; SILVA MELERO, ob. cit., p. 26).

14.1.5 Sistemas de avaliação da prova

Costumam os escritores dividir o procedimento probatório em três momentos fundamentais: aquele em que a prova é proposta, ou seja, postulada pela parte, ou pelo terceiro interveniente que igualmente possa requerê-la; o momento de sua admissão pelo juiz, em que este a defere; e finalmente o de sua produção (MOACYR AMARAL SANTOS, Prova judiciária..., v. 1, Cap. XIII).

Se considerarmos, neste particular, o conceito de prova como o procedimento ou a atividade da parte tendente a produzi-la na causa, fornecendo ao juiz os elementos formadores de sua convicção, podere-mos considerar encerrado o ciclo probatório a partir do momento em que a mesma for produzida, vale dizer, incorporada ao processo, seja no caso da prova documental, pela juntada aos autos do respectivo documento, ou pela inclusão do laudo pericial, ou pela tomada do depoimento da testemunha, se tais forem as espécies de prova que se pretenda produzir. No entanto, considerando-se o conceito de prova no outro sentido por nós

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indicado, segundo o qual considera-se a prova não como atividade, ou procedimento visando a produzi-la, mas sob o ângulo do resultado de toda essa atividade probatória, na medida em que sua realização haja produzido no julgador a convicção da veracidade do fato probando, então teremos de admitir que o ciclo probatório carece ainda de um momento subsequente ao de sua produção, que é justamente o momento de avalia-ção da prova pelo juiz.

Existem três grandes sistemas no que respeita aos critérios de ava-liação da prova: o sistema da prova legal, o sistema da livre apreciação da prova e o denominado sistema da persuasão racional da prova.

14.1.5.1 Sistema da prova legal

O sistema da prova legal está, se não abandonado, pelo menos sensivelmente reduzido de importância no direito moderno. Segundo este sistema, cada prova tem um valor inalterável e constante, previa-mente estabelecido pela lei, não sendo lícito ao juiz valorar cada prova segundo critérios pessoais e subjetivos de convencimento, de modo diverso daquele que lhe tenha sido determinado pela lei. Assim, por exemplo, no direito medieval, onde vicejou em toda sua plenitude este sistema, o valor da prova testemunhal era rigorosamente quanti-ficado pela lei e estabelecidas regras legais quanto à credibilidade do depoimento, de modo que o juiz ficava adstrito a essa valoração ob-jetiva da prova.

O depoimento de um servo jamais poderia ter o mesmo valor do testemunho de um nobre, mas o depoimento de dez servos equivalia ao de um nobre ou senhor feudal, embora intimamente o juiz tivesse sobra-das razões para crer que o nobre mentira e o servo dissera a verdade.

Além disso, havia uma quantidade enorme de regras legais declarando inidôneo o depoimento prestado por certas pessoas, mesmo que o juiz, em razão de circunstâncias especiais do caso concreto e da forma como a testemunha depusera, estivesse plenamente convencido da veracidade do depoimento. Era considerado também insuficiente o depoimento de uma só testemunha, segundo o brocardo latino testis unus testes nullus, erroneamente atribuído pelos juristas medievais ao processo romano clássico (LESSONA, Teoria general..,, v. 4, § 382), não podendo o juiz fundamentar a sentença exclusivamente no depoi-mento de uma só testemunha, embora estivesse intimamente conven-

cido de sua idoneidade e da veracidade do fato por ela descrito em seu depoimento.

No sistema de nosso Código de Processo Civil, há importantes sequelas do sistema da prova legal. Todas as restrições opostas pelo Código quanto ao depoi-mento de menores, ou de pessoas que a lei considera suspeitas ou impedidas de depor, têm origem no princípio medieval da prova tarifada (vide art. 405 do CPC). A limitação mais severa, contudo, ao princípio do livre conhecimento judicial, em matéria probatória, afigura-se-nos, sem dúvida, a disposição conti-da no art. 319 do CPC, segundo a qual a revelia importa em terem-se por verda-deiros os fatos afirmados pelo autor (MOACYR AMARAL DOS SANTOS, Prova judiciária..., v. 1, § 240; PONTES DE MIRANDA, Comentários..., 1973, t. IV, p. 181).

Pelo sistema da prova legal, ou tarifada, como diz MOACYR AM A-RAL SANTOS (ob. cit., p. 329), o juiz torna-se um órgão passivo, cuja única função em matéria probatória resume-se em constatar a ocorrên-cia da prova e reconhecê-la como produzida, sem que lhe seja possível avaliá-la segundo critérios racionais capazes de formarem seu próprio convencimento. O juiz, segundo este sistema, deverá decidir rigorosa-mente com base no que foi alegado e provado pelas partes (secundum allegata etprobata iudicare debei), embora sua convicção pessoal so-bre aquilo que fora provado nos autos lhe indique que a prova produzi-da não retrata a verdade.

14.1.5.2 Sistema do livre convencimento

O sistema da livre apreciação da prova, também chamado princípio de livre convencimento, é justamente o oposto ao sistema anterior. De acordo com ele, o juiz é soberano e livre para formar a sua convicção a respeito dos fatos da causa. Segundo este princípio, o juiz poderá formar o seu convencimento não apenas baseado naquilo que a testemunha afir-mou, mas igualmente basear-se em suas impressões pessoais, colhidas tanto no comportamento da própria testemunha quanto nas atividades e comportamento processual das partes (a respeito do comportamento das partes como prova há uma extensa literatura, sendo útil consultarem-se as seguintes obras: GINO GORLA, Comportamento processuale delle parti e convincimento dei giudice, RDPC, v. 2, p. 24; CARLO FURNO, Teoria de Ia prueba legai, Cap. II; CAPPELLETTI, La testimonianza...,

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v. 1, p. 91 e ss.; NEY DA GAMA AHRENDS, Comportamento proces-sual da parte como prova, Ajuris 611 A).

Segundo este princípio, não deverá haver qualquer limitação quan-to aos meios de prova de que o juiz se possa valer, nem restrições espe-ciais quanto à origem ou qualidade de certas provas. O que define o sistema, contudo, é sua oposição ao sistema da prova legal, na medida em que libera o juiz de qualquer obediência a regras legais prévias atinentes ao valor e à credibilidade dos meios de prova.

14.1.5.3 Sistema de persuasão racional

Os sistemas probatórios modernos não seguem, como princípio prevalente, nenhum dos sistemas anteriormente descritos, nem o sistema da prova legal nem o seu oposto, o sistema do livre convencimento, e sim, como diz FURNO (ob. cit., p. 160), um sistema misto, que aproveita ao mesmo tempo elementos dos outros dois. A este sistema intermediário dá-se o nome de sistema de persuasão racional.

O sistema da persuasão racional da prova, embora aceite em geral a tese do livre convencimento, impõe certas restrições à legitimidade da formação do convencimento judicial. Fundamentalmente, impõe ao juiz a observância de regras lógicas e das máximas de experiência comum, considerando ilegítima, por exemplo, uma convicção que o juiz haja formado exclusivamente com base numa intuição pessoal, incapaz de ser justificada segundo regras lógicas e de senso comum.

A distinção fundamental entre este sistema e o denominado sistema de livre convencimento está em que, naquele, o juiz tem o dever de fun-damentar sua decisão, indicando os motivos e as circunstâncias que o levaram a admitir a veracidade dos fatos em que o mesmo baseara a decisão. Cumpre-lhe indicar, na sentença, os elementos de prova com que formou sua convicção, de tal modo que a conclusão sentenciai guar-de coerência lógica com a prova constante dos autos. Esta exigência naturalmente limita a completa liberdade que o sistema de livre conven-cimento lhe daria.

Em verdade, segundo o sistema de persuasão racional, o juiz deve julgar - como no sistema da prova legal - secundum allegata etprobata, porém sem as peias que poderiam ser-lhe impostas pela exigência de tarifamento legal da prova, permitindo-se que o julgador, embora preso

à prova constante dos autos, possa apreciá-la livremente segundo seu íntimo convencimento (LESSONA, ob. cit., p. 344).

Uma decorrência do sistema de persuasão racional é a faculdade de iniciativa probatória que se reconhece, com bastante largueza, ao julgador em sistemas modernos. Se o juiz deve formar sua convicção livremente, cabendo-lhe porém motivar, segundo critérios lógicos adequados, o resultado a que chegou através da análise da prova constante dos autos, é natural que se lhe dêem condições de trazer para o processo os elementos de prova de que ele necessite, mesmo que as partes não os tenham proposto. Nosso Código contém inúmeros dispositivos facultando ao juiz a determinação ex officio de meios de prova. Assim, o art. 342 prevê a possibilidade de determinar ele o comparecimento pessoal das partes, para interrogá-las sobre os fatos da causa; e o art. 343 permite que o juiz de ofício ordene a prestação de depoimento pessoal; pelo art. 355, pode o juiz igualmente determi-nar de ofício a exibição de documento ou coisa que se ache em poder da parte (MOACYR AMARAL SANTOS, Comentários..., v. 4, p. 141); pelo art. 418, o juiz pode ordenar, também de ofício, o depoimento de testemunhas referidas, ou acareação entre duas ou mais testemunhas, ou de alguma delas com a parte.

Para avaliar qual seja o melhor sistema, se o á& prova legal ou o sistema da persuasão racional, diz LESSONA (ob. cit., §331), devemos considerar o proble-ma sob o ponto de vista lógico e também sob o ponto de vista político. Politica-mente falando, diz o eminente tratadista italiano, o sistema da persuasão racional pressupõe no juiz condições pessoais de independência e maior capacidade e tiro-cínio intelectual e cultural do que aquelas que se exigiriam de um juiz sujeito ao sistema da avaliação legal da prova. Por outro lado, o dever de fundamentar a sentença, indicando os elementos de prova de que se valeu para formar seu conven-cimento, é uma garantia contra o arbítrio que o sistema do livre convencimento poderia gerar.

A respeito deste mesmo componente político, determinador da opção que o legislador possa fazer entre quaisquer sistemas de avaliação da prova, são elucidativas as seguintes palavras de CAPPELLETTI, a respeito do sistema da prova legal e sua prática no direito medieval: "Mas a mesma desconfiança dominava também a valoração das provas. Procurava-se evitar todo subjetivismo, qualquer 'arbitrarie-dade', e, em consequência, toda possibilidade de o juiz valorar livremente, de 'pesar', em suma. as provas. Elaborou-se, portanto, um sistema no qual as provas nem tanto deveriam ser pesadas, mas propriamente contadas pelo juiz: um sistema de 'valoração numérica' ou 'aritmética1 e, portanto, absolutamente mecânica das

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provas" (O processo civil no direito comparado, trad. argentina do ensaio Principii fondamentale e tendenze evolutive dei processo civile nel diritto comparato, publi-cado in Giurisprudenza italiana, 1968, § 21).

Como se vê, a inclinação do legislador por um ou outro sistema está mais ou menos ligada à maior ou menor confiança que a sociedade tenha em seus juizes, assim como na credibilidade da instituição do Poder Judiciário, no preparo cultural dos magistrados e no maior ou menor rigor de sua formação profissional O sistema de persuasão ra-cional, por certo o que mais condiz com os princípios da cultura oci-dental moderna, exige magistrados altamente capazes e moralmente qualificados, enquanto o velho princípio da dosimetria legal das provas pode funcionar razoavelmente bem ainda que seus juizes se ressintam de maiores deficiências culturais.

14.2 Meios de prova

14.2.1 Conceito

O conceito de meios de prova pode ser entendido de dois modos. Pode significar a atividade desenvolvida para produzir a prova. Neste caso, dir-se-ia que a declaração prestada pela testemunha, ou o laudo fornecido pelo perito, ou a percepção do juiz que realiza a inspeção judicial, são meios de prova, no sentido de fontes de onde se extraem os motivos de convencimento (DEVIS ECHANDIA, ob. cit., n. 139). Diz a respeito ROSENBERG {Tratado..., II, § 11, II, I, a): "Meios de prova são as coisas corpóreas que devem proporcionar ao juiz uma percepção sensível, os portadores da intuição ou da transmissão: o objeto da ins-peção ocular, os documentos, as testemunhas, os peritos, as partes". WILHELM KISCH (Elementos..., § 42) adota conceito semelhante: "Meio de prova é o objeto corpóreo por meio do qual se obtém a prova: por conseguinte, o que o juiz inspeciona, a testemunha que declara, o documento que é examinado". Neste mesmo sentido, definindo fonte de prova como o fato do qual o juiz se serve para formar o seu conhe-cimento e meio de prova como a atividade por ele desenvolvida para encontrar a verdade do fato a provar, é a lição de CARNELUTTI {La prueba civil, n. 16, 17 e 47). SENTIS MELENDO(ob. cit., p. I4less.) considera relevante a distinção entre fontes e meios de prova, conside-rando as primeiras como um conceito metajurídico, na medida em que

as fontes de prova existirão independentemente de sua eventual utiliza-ção em um dado processo, ao passo que seu emprego no processo trans-formará as fontes em meios de prova.

Num segundo sentido, podem considerar-se meios de prova não a atividade, mas os instrumentos de que as partes e o juiz se valem para obter o conhecimento dos fatos a provar; ou tanto a atividade quanto os instrumentos. Diz J. FREDERICO MARQUES: "Meios de prova, como o nome o indica, são as fontes em que o juiz colhe a verdade dos fatos, e os instrumentos de que as partes se servem para demonstrar os fatos, que aduziram" (Manual,., v. 2, n. 451).

Iremos considerar os meios de prova como os instrumentos utiliza-dos pelas partes e pelo juiz para o estabelecimento dos fatos a serem provados.

Diz a respeito o art. 131 do CPC: "O juiz apreciará livremente a prova, atendendo aos fatos e circunstâncias constantes dos autos, ainda que não alegados pelas partes; mas deverá indicar, na sentença, os moti-vos que formaram o convencimento".

Considerando-se este critério de avaliação da prova, aceito por nos-so Código, seria natural conceder ao julgador a faculdade de valer-se de todos os meios de prova que se mostrassem idóneos a formar seu conven-cimento, sem as limitações próprias do sistema de prova legal. Em prin-cípio, na verdade, é assim. Como veremos, no entanto, inúmeras são as limitações impostas à investigação judicial dos fatos, decorrentes da pró-pria natureza da prova judiciária. Sobre esta questão prescreve o art. 332 do CPC: "Todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, ainda que não especificados neste Código, são hábeis para provar a ver-dade dos fatos em que se funda a ação ou a defesa".

Segundo este preceito, poderíamos dividir as provas admissíveis no direito brasileiro em provas legais e provas atípicas ou inespecíficas. Surge, no entanto, o problema de saber, quanto às últimas, qual o sentido e o verdadeiro alcance da locução contida no art. 332, quando o legislador se refere às provas não especificadas que sejam "moral-mente legítimas".

A própria divisão dos meios de prova em legais e atípicas ou inominadas é controvertida em doutrina, havendo juristas que entendem que a enumeração constante da lei é exaustiva, por não ser possível nem necessária a utilização de outros meios de prova porventura imagináveis. H. DEVIS ECHANDIA (ob. cit.,

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v. 1, n. 142), valendo-se de um ensinamento de GUASP, afirma que a enumera-ção legal dos meios de prova admissíveis em processo civil pode fazer supor que haja outros meios de prova teoricamente concebíveis que não estejam autoriza-dos e cuja admissibilidade seja capaz de servir de instrumento probatório em processo civil. A lição de GUASP mencionada por DEVIS ECHANDIA é esta: "Tanto o Código de Processo Civil (Ley de Enjuciamento Civil) como o Código Civil enunciam os meios de prova admissíveis em juízo, ou que nele se podem utilizar, parecendo dar a entender que haja outras provas teoricamente concebí-veis que não estejam, no entanto, autorizadas pela lei. Esta interpretação literal, porém, não é exata, porque em realidade a dupla enumeração legal esgota todas as espécies imagináveis de meios de prova, desde que, não obstante a sua obs-cura e arcaica terminologia, não existe nenhuma categoria lógica de instrumen-tos probatórios que não possa ser enquadrada em alguma das figuras menciona-das" (Derecho procesal civil, 1.1, p. 341). SCHÕNKE (ob. cit., § 56, IV) parece adotar o mesmo ponto de vista.

Na doutrina brasileira, J. FREDERICO MARQUES, escrevendo sob o Có-digo de 1939, que não continha a ressalva quanto às provas inespecificas agora incluída no art. 332 do Código de 1973, apoiando-se em lição de CARNELUTTI (Sistema..., n. 306), que aludia a prove innominate, para qualificar a prova fonográfica e a fotografia, afirmava que a enumeração do art. 208 do Código então vigente não era taxativa (Instituições..., v. 3, n. 761). Na verdade, tanto a fotografia quanto a prova fonográfica, por meio de discos ou fitas gravadas, são rigorosamente provas documentais, como igualmente o serão a cinematográfica e outras similares (PAOLO GUIDI, Teoria giuridica dei documento, p. 57; H. DEVIS ECHANDIA, ob. cit., v. 1, n. 142), e a prova dactiloscópica é indiscuti-velmente prova pericial, de sorte que não se poderia, quanto à sua natureza, tê-las como provas inominadas ou atípicas.

É preciso, portanto, superar a ambiguidade existente no conceito de prova atípica. Não se trata, aqui, de verdadeiras provas inominadas, mas de formas ou fontes atípicas de convencimento judicial (cf. MICHELE TARUFFO, Prove atipiche e convincimento dei giudice, RDP, p. 395). O que se qualifica como atípico é o modo pelo qual o juiz se serve do material probatório. Neste sentido, a prova emprestada, não obstante venha para os autos sob a forma de prova documental, portanto como uma prova típica, deve ser considerada prova inominada.

Poder-se-ia indicar, em defesa da posição de nosso Código, relativamente à previsão das provas "moralmente legítimas1', porém não especificadas em lei, os indícios e presunções, que o legislador de 1973 não incluiu dentre os meios de prova por ele disciplinados no Código. Esta sugestão ainda não seria aceita sem reservas. É que as presunções são arroladas pelo art. 136 do CC dentre os meios de prova, de

modo que seriam elas igualmente "meios legais" de prova, ainda que o Código de Processo Civil não as tenha mencionado.

Quanto aos indícios, muitos são os autores que se recusam a considerá-los como meios de prova. Dentre estes podem ser lembrados SCHÕNKE (ob. cit., § 57, 2), que considera os indícios objeto, e não meio de prova. Também ROSENBERG (Tratado..., § 111,1, a) trata os indícios como objeto, e não como meio de prova, a partir da distinção que ele faz entre argumento e meios de prova.

Para ROSENBERG, nem mesmo a confissão - que torna supérflua a prova sobre o fato confessado - pode ser considerada um meio de prova. MICHELI (Cur-so..., n. 115) igualmente não crê que se devam incluir as presunções dentre os meios de prova, porque, segundo ele, não se podem confundir os meios de prova com os "procedimentos lógicos" através dos quais o juiz forma o seu convencimento. Os indícios e presunções seriam instrumentos de controle para valorar a prova, e não instrumentos ou meios de prova. WILHELM KISCH (ob. cit, § 43,1), ao contrário, considera a prova, indiciaria como um importante meio de prova, não mencionado expressamente pela lei alemã.

A dificuldade quanto à classificação da prova indiciaria, como afirma DEVIS ECHANDIA (ob. cit., v. 2, n. 370), está em que, nas denominadas provas históricas, tal como a prova testemunhal, existe uma nítida distinção entre o fato probando e o instrumento de sua demonstração, enquanto na prova por indícios a fonte se confunde com o meio de prova.

14.2.2 Provas ilícitas

A doutrina moderna, tanto no campo do processo penal quanto no domínio do processo civil, tem dedicado atenção especial ao problema das provas ilegítimas ou provas obtidas por meios ilegítimos. Este assun-to tem apresentado, no direito contemporâneo, problemas da maior sig-nificação e complexidade, envolvendo questões diretamente ligadas à teoria geral do processo e pondo em causa alguns princípios fundamen-tais orientadores de toda a ciência processual. Como observa DEVIS ECHANDIA (ob. cit., v. 1, p. 539), o processo civil não é um campo de batalha no qual fosse permitido a cada contendor o emprego de todos os meios úteis e capazes de conduzir ao triunfo sobre o "inimigo"; ao con-trário, o processo civil é instrumento destinado a tornar efetiva a obser-vância e aplicação da lei e, em certos casos, é organizado para a solução de conflitos legais, de tal modo que seu emprego deve ser feito segundo padrões juridicamente válidos e legítimos, não sendo admissível que o magistrado - tanto no processo penal quanto no de qualquer outra natu-reza - se valha de expedientes e métodos ilegais, ou moralmente repro-

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vãveis, para assegurar o império da lei e do direito, movido pelo falso e universalmente recusado princípio de que "o fim justifica todos os meios". Esta proposição, que poderia constituir um princípio geral de direito probatório, cujos princípios e fundamentos não podem ser comparados com os procedimentos probatórios peculiares à investigação científica, tem sido, não obstante, questionada pela doutrina contemporânea, que busca estabelecer-lhe certos limites de modo a permitir, ou tolerar, a utilização de provas obtidas por meios ilegítimos ou ilícitos.

Este problema cresce de importância, tornando-se mesmo decisivo, frente à possibilidade, sempre crescente, do emprego de toda sorte de tecnologias eletrônicas capazes de serem empregadas para a obtenção de provas, sem o conhecimento ou a permissão daquele contra quem a pro-va, obtida clandestinamente, será depois produzida, muitas vezes com grave violação de sua intimidade e até mesmo, nos casos mais sérios, contra a declarada oposição da pessoa submetida, por exemplo, a méto-dos violentos e brutais, como a tortura física ou mental e a administração de drogas que debilitam ou inibem o poder da vontade.

O legislador brasileiro não enfrentou diretamente o problema da utilização, no processo civil, das provas obtidas por meios ilegítimos, limitando-se a indicar, de passagem, no art. 332 do CPC, que somente as provas "moralmente legítimas" seriam admissíveis no direito brasileiro.

Atendendo à literalidade deste preceito, devemos considerar como "moralmente legítimos" todos os meios de prova que a lei expressa-mente preveja e regule, uma vez que o art. 332 dispõe que "todos os meios legais" são hábeis para provar os fatos da causa, assim como os ''moralmente legítimos". Fez-se, portanto, uma distinção pouco preci-sa entre o direito e a moral, como se os dois campos em verdade não se tocassem. De qualquer modo, e quaisquer que sejam nossas concep-ções morais, teremos de considerar como "moralmente ilegítimos" to-dos os meios de prova que não sejam legítimos sob o ponto de vista jurídico.

Tanto na Alemanha quanto no direito norte-americano, a rejeição das provas obtidas por meios ilegítimos fundamenta-se diretamente em princípios constitucionais, particularmente nos que visam à tutela da intimidade, ou da livre manifestação e desenvolvimento da personalida-de humana (N. TROCKER, Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile, 1970. p. 240; ADA PELLEGRINI GRINOVER, Liberdades pú-blicas e processo penal, v. 3; SILVA MELERO, ob. cit., v. 1, p. 69;

COMOGLIO, La garanzia costituzionale delVazione e ilprocesso civile, p. 295).

A partir deste pressuposto, os tribunais têm rejeitado, por exemplo, a prova obtida por meio de fitas magnéticas introduzidas clandestina-mente no domicílio da pessoa contra a qual se pretende obter elementps de prova, ou a utilização de diário íntimo, contra a vontade ou sem auto-rização de seu autor (N. TROCKER, Processo civile e costituzione, p. 580, 581 e 583), assim como a prova obtida mediante chantagem (CA-PPELLETTI, La oralidad y Ias pruebas en el proceso civil, p. 137).

Reputa-se equivalente à prova obtida através de registros magnéti-cos ignorados pelo paciente, e como tal também proibida, a prova produ-zida por meio da introdução clandestina de pessoas estranhas em &£U domicílio com o fim de espionagem, assim como ocorre, em geral, com a prova obtida por detetives particulares (TROCKER, Processo civile;.., p. 583-584).

Discute-se igualmente a legitimidade da utilização, em processo civil, da prova produzida por documento furtado (CAPPELLETTI, {M oralidad..., p. 137) ou através do que se denomina "agente provocador" (TROCKER, Processo civile..., p. 584).

Outro género de prova considerada ilícita é a conseguida por meio de interceptações clandestinas de conversas telefónicas, através de regis-tros em fitas magnéticas.

A recusa das provas obtidas por meios ilegítimos, em processo civil, no entanto, não se dá de modo absoluto para todas as hipóteses. Em determinadas circunstâncias, tem-se admitido o uso de provas conseguidas por meios ilegítimos. E a doutrina conhecida como a (3o "interesse preponderante" (ADALBERTO JOSÉ DE CAMARGO ARANHA, A prova proibida no âmbito penal, RJTJSP 75/22) ou 4o "bilanciamento degli interessi" (TROCKER, Processo civile..., p. 59©, amplamente empregada pelos tribunais alemães, segundo a qual, çm certas hipóteses, particularmente quando a prova ilegítima seja a úniica existente, deve admitir-se o seu emprego, tal como ocorre com mjris frequência em processo penal, onde muitas vezes a prova formada clandestinamente é até mesmo autorizada pelo juiz, como ocorre cc?m as interceptações telefónicas ou quando a gravação seja feita, por exemplo, pela vítima da chantagem, como prova da extorsão a que esteja submetida (ADA PELLEGRINI GRINOVER, Liberdades públi-cas..., p. 112), caso em que o emprego de um meio não permitido píjra

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obtenção da prova teria o sentido de legítima defesa contra uma agressão anterior igualmente ilegítima.

A corrente que defende em qualquer caso a possibilidade do emprego de provas obtidas por meios ilegítimos afirma que a solução contra a ilicitude prati-cada pela parte não deve ser a proibição de que ela faça uso da prova assim obtida, mas sua sujeição ao correspondente processo criminal para punição pela prática do ilícito cometido na obtenção da prova (cf. HERMENEGILDO DE SOUZA REGO, Natureza das normas sobre prova, p. 115). Assim, diz este autor, se um marido penetra clandestinamente na residência de alguém para documentar foto-graficamente, ou por qualquer outro meio mecânico ou eletromagnético, a prática de adultério de sua mulher, deverá responder pelo crime de invasão de domicílio, porém jamais ser impedido de comprovar em juízo o adultério, através de prova por tal forma obtida. Nem teria sentido, afirma, pretender-se que o juiz, depois de induvidosamente convencido da existência do adultério, demonstrado por meio dessa prova criminosamente obtida, devesse julgá-lo não provado e improcedente a ação de separação nele fundada.

O Supremo Tribunal Federal, no entanto, já declarou que uma gravação mag-nética, feita clandestinamente pelo marido para comprovar ligações amorosas da esposa, é prova inadmissível em nosso direito, por não ser um meio de prova mo-ralmente legítimo, segundo o disposto no art. 332 do CPC (RTJ84/609, RE 85.439, rei. Ministro Xavier de Albuquerque).

Como afirma ADA PELLEGRINI GRINOVER (Liberdades pú-blicas..., p. 103), é mister conseguir-se um equilíbrio adequado entre a liberdade para o exercício do direito à prova e a legalidade, ou legitimi-dade dos meios empregados para obtê-la, pois a busca da verdade em processo civil não pode ser erigida em princípio absoluto, a ponto de anular os outros princípios constitucionais básicos, tal como o de tutela da privacidade, que assegura a toda pessoa humana o direito à intimi-dade, não só contra governos, mas igualmente contra os particulares. Como diz muito bem TROCKER (Processo civile..., p. 589-590), as normas e princípios constitucionais não se inserem no ordenamento jurídico como uma simples lex specialis destinada a limitar o poder do Estado, em suas relações com os particulares, com a finalidade apenas de proteger-lhes a liberdade, contra os abusos do poder, sem preocupar-se com o fato de que esses mesmos princípios também sejam observa-dos e protegidos nas relações jurídicas privadas. Neste sentido, enten-dendo que a proteção aos princípios constitucionais que tutelam o di-reito à privacidade deve ser outorgada pelos tribunais apenas contra os atos dos agentes estatais, e não contra a atividade igualmente abusiva

dos particulares - que, no caso, não devem ser privados da prova, mas simplesmente responder criminalmente pelo delito praticado na sua obtenção -, VICENZO VIGORITTI (Prove illecite e costituzione, RDP, v. 67), com alusão ao célebre caso Mapp x Ohio, decidido em 1961 pela Suprema Corte dos Estados Unidos. Esta doutrina, no entanto, de visí-vel inspiração liberal, que reserva à Constituição uma função apenas limitadora da ação do Estado, como se os princípios fundamentais que ela consagra não devessem ser protegidos igualmente, e realizados, em todos os domínios da convivência social, tem cedido espaço a uma concepção mais moderna, segundo a qual os princípios constitucionais devem ter vigência efetiva, como normas orgânicas de convivência política e social, não só nas relações entre o Estado e seus súditos, mas igualmente haverão de ser observados e protegidos mesmo nas relações privadas entre particulares. Qual o sentido - indaga TROCKER (Pro-cesso civile..., p. 591-592) - de repelir-se o emprego, num dado proces-so, de provas ilegalmente obtidas por agentes do governo e tolerar-se, contra o mesmo princípio constitucional que protege o direito à priva-cidade, que os particulares sejam vítimas, por exemplo, de espionagem telefónica exercida por particulares, ou que determinada empresa sofra espionagem industrial praticada por outra?

Mesmo assim, a Constituição Federal, sem levar em conta as con-trovérsias e recomendações da doutrina a respeito da utilização de provas obtidas por meios ilícitos, editou regra geral declarando inadmissíveis as provas obtidas por meios ilícitos (art. 5.°, LVI).

14.2.3 Prova emprestada

Diz-se prova emprestada aquela que, tendo sido já utilizada como prova em um processo, é transposta, sob forma de prova documental, para um outro processo, de idêntica ou diversa natureza (MOACYR AMARAL SANTOS, Prova judiciária..., v. 1, p. 293). A eficácia da prova emprestada, em geral admitida em processo civil, fica sujeita, no entanto, a certas limitações.

A primeira diz respeito à circunstância de ter sido ela produzida no processo anterior perante as mesmas partes integrantes da causa, onde a prova deva agora ser introduzida sob a forma de prova empres-tada, ou, ao contrário, não haver figurado no processo anterior a parte contra quem se pretende produzir novamente a prova. O outro princípio

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a ser observado, na avaliação da eficácia da prova emprestada, é o que diz respeito à natureza do processo primitivo de onde a prova é retirada para o processo posterior. É a prova que BENTHAM referia como sendo alio inforo {Tratado..., v. 2, p. 6) e que pode ter seu valor dimi-nuído se menores tenham sido as garantias, existentes no processo pri-mitivo, tomadas para assegurar a fidelidade da prova à verdade dos fatos a provar. Estão neste caso, por exemplo, as provas produzidas em procedimento de jurisdição voluntária, cujo valor em princípio não pode ser igual ao de uma prova oriunda de um processo contencioso, produzida sob rigoroso contraditório das partes.

Consideram-se emprestadas apenas as provas casuais, e não as pre-constituidas porventura já utilizadas em processo anterior. Quanto a es-tas últimas, seu valor probatório será sempre o mesmo, qualquer que seja a natureza do processo em que elas se produzam, independentemente do número de vezes em que isto aconteça. Uma escritura pública, ou mesmo um documento particular, ainda que já empregada como prova em pro-cesso anterior, não será considerada prova emprestada quando novamen-te for produzida em processo subsequente - apenas aquelas provas for-madas no curso do processo anterior serão assim consideradas, quando utilizadas novamente num segundo processo (MOACYR AMARAL SANTOS, Prova judiciaria..., p. 295).

Determina igualmente o valor probatório da prova emprestada a circunstância de ter sido ela formada em processo anterior entre as mesmas partes, ou entre uma delas e terceiro, ou até mesmo entre terceiros, sem a participação de qualquer delas. Em geral, a doutrina apenas admite a utilização da prova emprestada, outorgando-lhe o mesmo valor original, quando ela seja produzida perante as mesmas partes, com as mesmas garantias de contraditório, atribuindo-se à prova formada em processo de que apenas uma das partes haja participado o valor de simples presunção (LESSONA, ob. cit., v. 1, p. 15; RICCI, Delle prove, n. 16; MOACYR AMARAL SANTOS, Prova judiciária..., v. 1, n. 215).

Uma modalidade frequente de prova emprestada, que se traslada de um para outro processo com o mesmo valor original, é a prova produzida em proces-sos acumulados, seja por conexão, dependência ou acessoriedade (DEVIS ECHANDIA, ob. cit., v. 1, n. 110); ou a prova produzida por um litisconsorte, em processo cumulado, cujo valor probatório deve ser considerado o mesmo perante os demais litisconsortes, em virtude do princípio da unidade de conven-

cimento judicial. Todavia, é fundamental ter em conta que o valor da prova emprestada, seja com relação às mesmas partes do processo anterior, seja perante algum litisconsorte, quando haja unidade do fato probando, pressupõe que a prova haja sido colhida com observância das formalidades e garantias que lhe possam conferir credibilidade (LESSONA, ob. cit., v. 1, n. 13; RICCI, ob. cit., n. 16; MOACYR AMARAL SANTOS, Prova judiciária..., v. 1, p. 215) e que, no casodo litisconsorte, se lhe tenha assegurado o direito ao contraditório na for-mação da prova.

14.3 Das provas em espécie

]4J.1 Depoimento pessoal e confissão

Depoimento pessoal é o testemunho prestado em juízo por quem é parte na própria causa. É um meio de prova como os demais e pertence ao mesmo género da prova testemunhal (DEVIS ECHANDIA, ob. citi v. 1, n. 146), da qual se distingue, no entanto, em pontos essenciais, como veremos.

Em nosso direito, há três oportunidades processuais para o com-parecimento pessoal da parte em juízo. A primeira ocorre quando haja sido convocada pelo juiz apenas para participar da tentativa de conci-liação, obrigatória, segundo o disposto no art. 331 do CPC, sempre que 0 litígio verse sobre direitos patrimoniais de caráter privado. Neste ca$o, o comparecimento da parte não tem por fim tomar-lhe qualquer depoimento, mas apenas colocá-la em contato pessoal com a parte ad-versa, na presença do magistrado, e tentar pôr fim ao litígio através de composição negociada da lide.

Pode haver ainda comparecimento pessoal da parte em juízo quando ela for convocada pelo magistrado para prestar esclarecimentos "sobre fatos da causa", conforme prevê o art. 342 do CPC. Nesta hipótese, como observa MOACYR AMARAL SANTOS, o juiz não visa, através de um depoimento formal da parte, obter a confissão, mas simplesmente, como nesse preceito se diz, interrogá-la "sobre fatos da causa", de modo a melhor esclarecê-los, quando não estejam eles suficientemente claros nos autos {Comentários..,, p. 83). É o denomi-nado interrogatório livre ou informal (interrogatio ad clarificandum), por meio do qual se permite que o magistrado tenha acesso direto aos fatos da causa, sem a intermediação dos procuradores das partes, possibilitando-lhe, assim, o conhecimento da controvérsia em toda a

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sua pureza originária, sem os retoques dialéticos preparados pelos advogados. As velhas Ordenações Filipinas já previam esta forma de interrogatório das partes, ao prescrever: 'Tanto que o réu for citado, e vier a Juízo, o juiz fará assim ao autor como ao réu, de seu ofício, ou a petição da parte, as perguntas, que lhe bem parecer, assim para a ordem do processo, como para a decisão da causa" (Liv. III, Tít. XX, § 4 o).

MAURO CAPPELLETT1 considera tão importante este tipo de interrogató-rio não formal que o eleva a pressuposto fundamental do princípio da oralidade processual, em seu sentido moderno (La testimonianza..., passim, mais particular-mente §§ 10 e 22), uma vez que, segundo ele, não se pode conceber a oralidade sem a efetiva imediatidade do juiz com as fontes das provas, o que somente será possível através do interrogatório não formal, ou ad clarificandum. Afirma CA-PPELLETTI que o meio para superar a falsa oralidade, que ele denomina "orali-dade protocolar" (ob. cit., §§ 10 e 22), praticada pelos sistemas que conservam a figura do juiz instrutor, como ocorre no direito italiano, será permitir este contato pessoal do juiz com as partes sem a intermediação de terceiros.

A concepção segundo a qual o interrogatório não formal não se destinaria diretamente à produção de prova, através de confissão, tem sido questionada, especialmente em razão da adoção do sistema de livre convencimento judicial, ou mesmo quando se adote sua variante moderna - o chamado sistema de persuasão racional, como sucede entre nós -, uma vez que, como observa com razão EDOARDO GRASSO (Comentário dei Códice di Procedura Civile, v. 1, p. 1.325), não se poderá jamais evitar que o juiz se utilize, na formação do próprio conven-cimento, daquilo que lhe foi transmitido pela parte, por ocasião do interrogatório, mesmo informal.

Entre nós, apesar de não existirem juízos colegiados de primeira instância, o que preserva, em todas as suas possibilidades, o princípio da imediatidade entre o julgador e as provas, não temos, como praxe consagrada no foro, o costume de convocar as partes para o interrogatório a que se refere o art. 342 do CPC. Nossos juizes, em geral assoberbados com o volume sempre crescente de trabalho forense, reduzem ao mínimo as entrevistas pessoais com os litigantes, a ponto de transformá-las em apressados contatos protocolares e superficiais, de duvidosa utilidade, como exercício efetivo do princípio da imediatidade, neste ponto, que poderia realmente ser uma fonte relevante para o esclarecimento do litígio.

Finalmente, a terceira hipótese de comparecimento pessoal da parte em juízo ocorre quando seja ela convocada para prestar depoimento pes-soal, A finalidade deste meio de prova é obter do depoente a confissão, ou seja, fazer com que a parte convocada para prestar depoimento confir-

me a veracidade dos fatos articulados por seu adversário e que lhe sejam desfavoráveis. O depoimento, assim, não seria em si mesmo uma pro\a, como observaMOACYR AMARAL SANTOS (Provajudiciária..., v.l, n. 92), sendo mais próprio considerá-lo como um simples instrumenlo, ou procedimento probatório para obter-se a confissão, esta sim a prova resultante de depoimento pessoal.

O depoimento pessoal é meio de prova, como se disse, no sentido de instrumento para obtenção da confissão, e como tal pode ser proposto tanto pela parte que tiver interesse na produção dessa prova - não ficaria melhor falar-se em parte contrária? - quanto pelo juiz, mesmo de ofício, como o permite o art. 343 do CPC.

O sujeito do depoimento pessoal, como vimos, é a parte, tanto autora quanto ré. Como partes devem ser considerados, para fins de depoimento pessoal, não só os litisconsortes (inclusive os assistentes litisconsorciais do art. 54 do CPC) como igualmente o opoente, quanto à ação proposta com a oposição (art. 56), o denunciado, na denúncia k lide - relativamente aos fatos pertinentes à causa instaurada entre este e seu denunciante (art. 70) -, bem como o nomeado à autoria (art. 62}, que é o verdadeiro demandado, e aqueles que venham a ser réus em virtude de chamamento ao processo (art. 77). E, naturalmente, poden-do todos estes ser chamados a prestar depoimento pessoal, também lhes é facultado pedir o depoimento pessoal da parte contra quem liti-gam no processo.

O assistente simples do art. 50, todavia, por não ser parte, mas simplesmente auxiliar da parte, não pode prestar depoimento pessoal

O depoimento pessoal é ato personalíssimo da parte, impossível de ser prestado por terceiros, uma vez que somente ela poderá validamente confessar (MOACYR AMARAL SANTOS, Prova judiciária..., n. 101). Sendo assim, não prestam verdadeiros depoimentos pessoais, não obs-tante possam ser ouvidos como informantes, o representante legal do incapaz e os administradores em geral.

DEVIS ECHANDIA (ob. cit., v. 1, n. 152), com base no direito colombiaro, cujo Código de Procedimento Civil, em seu art. 198, admite o depoimento dos representantes legais, inclusive de gerentes e administradores, defende o mesno ponto de vista, considerando admissível a confissão prestada por representante, ou procurador judicial, quando este haja recebido poderes especiais para confessar.O Código de Processo Civil de 1939 - à semelhança do que dispõe o art. 349, para-

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grafo único, do atual - declarava válida a confissão prestada por mandatário com poderes especiais. É necessário, porém, entender-se adequadamente o que sejam "poderes especiais" para que a declaração sobre fatos da causa feita pelo advogado tenha o valor de confissão. Não bastará, por exemplo, que o instrumento deman-dato contenha, além dos poderes gerais para o foro, previstos no art. 38 do CPC, mais os poderes genéricos para confessar, sem especificação precisa dos fatos ou questões sobre as quais esteja o cliente a conferir esses poderes especiais. Sobre isto dizia o eminente JOÃO MONTEIRO, reproduzindo lição de LESSONA: "Dizemos poderes declaradamente especiais para a questão porque não devem bastar os que forem dados vagamente para fazer confissões - ou, como dizem os clássicos, ad confitendum: é preciso poderes para tal ou tal confissão. E a razão está na regra ou princípio geral de direito - que o procurador só pode prejudicar in omittendo, nunca in comittendo - const. 1, 3, de errore advocatorum (II, 10)" (Teoria geral do processo, v. 1, § 145, nota 5; igualmente MOACYR AMARAL SANTOS (Comentários..., p. 120).

A jurisprudência de nossos tribunais orientou-se sempre neste sentido, res-tringindo a validade da confissão feita pelo procurador judicial na causa apenas aos fatos sobre os quais versassem os poderes especiais conferidos pelo cliente (ALE-XANDRE DE PAULA, O processo civil à luz da jurisprudência, v. 4, verbetes 5.806 e 5.807).

Esta há de ser a lição a ser seguida ainda hoje, como adiante veremos, não obstante a aparente equivalência sugerida pelo art. 334 do CPC entre as consequên-cias probatórias dos fatos admitidos pela parte contrária e dos fatos que tenham sido objeto de confissão. É certo, como observa JOÃO CARLOS PESTANA DE AGUIAR (Comentários ao Código de Processo Civil, p. 116) - lembrando lição de MOA-CYR AMARAL SANTOS -, que, se as declarações prestadas pelo advogado na causa não devem ter a força legal de uma confissão, a ponto de vincular o magistra-do à declaração da parte, certamente haverão de ser consideradas pelo julgador, para formação de seu convencimento, mesmo porque a própria configuração da lide e a exposição dos fatos que a compõem, bem como aqueles porventura articulados pelo réu em sua defesa, somente poderão ser determinados a partir das alegações que sobre eles façam os advogados. E só com base em tais descrições poderá o julgador decidir a causa.

14.3.2 Confissão

Confessar é admitir como verdadeiro um fato ou um conjunto de fatos desfavoráveis à posição processual do confitente e favoráveis à pretensão do adversário (art. 348 do CPC). Todavia, nem toda aceitação de veracidade de algum fato que a parte porventura faça deve ser considerada como uma verdadeira confissão. Outros requi-

sitos são indispensáveis para que a confissão se configure. Quais são eles? Em primeiro lugar, como já vimos, a confissão é ato personalíssimo da parte, que apenas ela ou, em circunstâncias espe-ciais, algum representante ou procurador seu pode praticar; é igual-mente necessário que o fato objeto da confissão seja de algum modo favorável à pretensão processual da outra parte, no momento em que o confitente o admite como verdadeiro e desfavorável a si próprio, relativamente ao mesmo litígio. Como toda confissão importa na perda de algum direito para o confitente, é requisito para a validade da confissão que aquele que a faz tenha plena capacidade civil para obrigar-se. E o fato objeto da confissão deve ser relevante para o litígio de que se trata e dizer respeito a um acontecimento ou circunstância pessoal relativa ao confitente (MOACYR AMARAL SANTOS, Prova judiciária..., v. 2, n. 30).

Certos autores discutem se haverá confissão quando a parte admite a vera-cidade de algum fato praticado por outrem, de que o confitente tenha ciência (assim DEVIS ECHANDIA, ob. cit., v. 1, p. 587). A dúvida não tem procedência. O que se exige para que se configure a confissão é que o fato diga respeito ao confitente e lhe seja desfavorável, em relação à pretensão do adversário.

A partir desta asserção, resolve-se a outra questão posta por DEVIS ECHANDIA (ob. cit., p. 585), ao afirmar que nem sempre haverá necessidade de que o fato confessado seja desfavorável ao confitente. Este ponto igualmente merece reparo. Na verdade, a confissão importa na aceitação da veracidade de algum fato, ou de alguma circunstância, desfavorável ao confitente, relativamen-te à demanda de que se trata. Isto não impede certamente que o confitente possa retirar também alguma vantagem processual a partir do fato por ele admitido como verdadeiro. Isto ocorre, por exemplo, quando o réu - confessando o fato em que se funda a demanda do autor - com base nele propõe ação reconvencional. A circunstância de servir-se o confitente do mesmo fato para fundamentar a reconvenção não significa que, em relação à pretensão contra si formulada pelo autor, o fato não lhe seja desfavorável. E somente quando o for estar-se-á em presença de uma autêntica confissão.

A exigência de que o fato confessado seja desfavorável ao confitente consta expressamente do art. 348 do CPC.

. A confissão só pode ter por objeto os fatos: a existência de um direito ou de uma relação jurídica não pode ser objeto de confissão. Quando, por exemplo, a parte aceita como verdadeira a existência de uma dada relação jurídica, como no caso de alegar o adversário a exis-

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tência de uma compra e venda ou de um arrendamento, ou de qualquer outro ato ou negócio jurídico, o que se configura não é uma confissão, e sim o que a doutrina denomina reconhecimento ou admissão. O juiz, no entanto, não se vincula ao reconhecimento que a parte faça da exis-tência de uma determinada relação jurídica, porventura afirmada na demanda por seu adversário. Ainda que ambos os litigantes aceitem como verdadeira a existência, por exemplo, de um contrato de compra e venda, somente o juiz poderá qualificá-lo juridicamente como com-pra e venda, e nada o impedirá de rejeitar a qualificação jurídica dada por ambas as partes ao negócio litigioso. Esta não vinculação do julga-dor, por conseguinte, relativamente à existência de uma dada relação jurídica posta como fundamento para o pedido ou para a defesa é um elemento significativo, como logo veremos, para distinguir-se a admis-são da confissão.

Imaginemos que o réu, ante a afirmação do autor - posta como fundamento da demanda - de ser ele locador do demandado, aceite como verdadeira a existência do contrato de locação que os vincula. Neste caso, a figura que se compõe não é a da confissão, e sim o que se deno-mina admissão pelo réu da veracidade do fundamento da demanda (JOÃO DE CASTRO MENDES, Do conceito de prova..., n. 136; DEVIS ECHANDIA, ob. cit., v. 1, n. 136).

Se, por exemplo, o demandado, em vez de admitir a existência da relação jurídica de locação, aceita a procedência não mais do fundamen-to (causa petendi), mas do próprio pedido contra si formulado, confor-mando-se com a procedência do despejo, o que se dá é a figura do reco-nhecimento do pedido, de que trata o art. 269, II, do CPC.

Todas estas distinções são fundamentais em direito probatório, e nosso Código as consagra com muita clareza, atribuindo a cada uma destas categorias processuais consequências próprias e distintas. Como vimos, o reconhecimento do pedido importa na extinção do processo, e o art. 334 distingue perfeitamente os fatos "afirmados por uma parte e confessados pela parte contrária" dos fatos que sejam "admitidos, no processo, como incontroversos".

Para começar, a admissão é um fenómeno exclusivamente proces-sual, à medida que pressupõe que tenha havido, antes, no processo uma afirmação da outra parte a respeito da existência do fato admitido pelo adversário, como se verifica da redação do próprio art. 334 do CPC, ao passo que a confissão tanto pode ser judicial quanto extrajudicial (art.

348). Outra consequência decorrente desta distinção é o fato de ser não apenas possível mas natural e frequente que os fatos alegados por um dos litigantes sejam admitidos como verdadeiros pelo advogado da parte contrária, ainda que este não disponha de poderes para confessá-los, como se depreende do preceito contido no art. 302 do CPC, que faz decorrer a presunção de veracidade dos fatos alegados na petição inicial da circunstância de não os haver o réu impugnado expressamente na contestação. Sabendo-se que este tipo de defesa é uma peça técnica ela-borada necessariamente por advogado, conclui-se que a admissão, mes-mo tácita, dos fatos alegados pelo autor dar-se-á por obra exclusiva do procurador judicial do réu, mesmo que este não tenha recebido a outorga de poderes para confessar.

A natureza jurídica da confissão é extremamente controvertida em doutrina. Pelo menos duas correntes se contrapõem a respeito desta questão: para muitos, a confissão tem a natureza de um negócio jurídi-co de disposição, não podendo ser considerada rigorosamente um meio de prova, mas uma circunstância determinante da dispensa da prova sobre o fato confessado (MOACYR AMARAL SANTOS, Prova judi-ciária..., v. 2, n. 17), de modo que o julgador teria de aceitá-lo como verdadeiro não obstante o considerasse, intimamente, não demonstra-do; para outros, a confissão é um autêntico meio de prova, sujeita, como os demais, a ser avaliada pelo juiz, que não ficaria jungido irre-mediavelmente a admitir como verdadeiro o fato confessado por uma das partes, de modo que, também quanto à confissão, vigoraria o prin-cípio da livre apreciação da prova, ou do livre convencimento judicial. ROSENBERG (Tratado..., v. 2, § 113, I, 1, d) escreve: "O efeito da confissão consiste em que o fato admitido não necessita prova e deve ser tido pelo magistrado na sentença como verdadeiro, ainda que ele não esteja convencido de sua veracidade". Para ROSENBERG, esta sujeição do julgador aos fatos alegados por uma das partes e pela outra confessados somente deixará de existir quando o juiz os tenha por im-possíveis, por se mostrarem contrários a toda experiência conhecida, ou quando a veracidade da situação oposta resulte evidente.

J. FREDERICO MARQUES (Manual..., v. 2, n. 467) aceita a mes-ma (Joutrina: "A confissão faz prova contra o confitente (art. 350). Aliás, de outra forma não poderia dispor o Código, diante de seu sistema, quanto ao valor probatório da revelia e da não-impugnação específica dos fatos. Há, neste passo, prova legal a que o juiz se acha vinculado, tanto

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como nos casos do art. 319". No mesmo sentido MOACYR AMARAL SANTOS (Comentários..., p. 120).

Em sentido contrário, afirmando ser a confissão um simples meio de prova, embora qualificado, e como tal destituído de eficácia de prova legal, manifestam-se LUIZ EULÁLIO DE BUENO VIDIGAL {Co-mentários ao Código de Processo Civil, p. 146) e EGAS MONIZ DE ARAGÃO (Exegese do Código de Processo Civil, p. 172).

Segundo LUIZ EULÁLIO DE BUENO VIDIGAL, a doutrina que susten-tasse, perante o direito brasileiro, a tese de ser a confissão uma espécie de prova legal a que o juiz estaria inexoravelmente submetido colocar-se-ia "ao arrepio de todos os princípios da oralidade em que procurou inspirar-se o Código"; ao passo que, para EGAS MONIZ DE ARAGÃO, o que estaria a impedir a aceita- ' ção da tese de ser a confissão um negócio jurídico de disposição, através do qual o confitente, por ato de vontade, e não como manifestação de ciência sobre a veracidade do fato cuja existência se confessa, é a circunstância de haver o legislador brasileiro consagrado o princípio da livre apreciação da prova ou do livre convencimento judicial.

Não cremos, todavia, que tais argumentos sejam decisivos. Em primeiro lu-gar, a alegação de que a tese que empresta à confissão o valor de prova legal estaria a contrariar os princípios da oralidade, em que o Código simplesmente "procurou inspirar-se", não parece acertada. Está claro que a oralidade, dentre outros objetivos mais evidentes, busca sem dúvida propiciar ao magistrado, em contato com a prova, a obtenção da verdade material a respeito dos fatos da causa, o que seria incompa-tível com as restrições e obstáculos determinados pela adoção do sistema de prova legal. Contudo, como sabemos, o legislador brasileiro frequentemente abandona o princípio do convencimento racional, decidindo-se pela adoção de um conceito de verdade apenas formal. E o exemplo mais notório e radical desta Unha doutrinária é a forma como nosso Código trata a revelia.

O outro argumento empregado por LUIZ EULÁLIO DE BUENO VIDIGAL prova contra sua própria conclusão. Para defender a tese de que a confissão deve ser considerada como um meio de prova, como as demais, afirma ele que a primei-ra parte do art. 485, VIII, de nosso Código de Processo Civil torna-se ociosa, a sugerir que o legislador não considerou a confissão como simples declaração de ciência, a respeito de fatos admitidos como verdadeiros, uma vez que, diz o escri-tor, **as provas não são válidas ou nulas. São aptas, ou não, para convencer o juiz (p. 145). Somente o negócio jurídico e as demais declarações de vontade pode-riam ser invalidadas.

Ora, se o legislador admitiu a possibilidade de invalidar a confissão - pon-do-a ao lado da desistência e da transação -, parece intuitivo supor que a consi-

derou, como a estas duas outras categorias, um ato de vontade, e não de simples conhecimento.

EGAS MONIZ ARAGÃO (p. 166) extrai do art. 334 do CPC um argumento de grande peso para sustentar a tese de que, no direito brasileiro, tanto a admissão quanto a confissão teriam a mesma eficácia probatória, apenas com a diferença de ser esta última sempre expressa, devendo considerar-se, ao contrário, admissão a confissão tácita.

Realmente, segundo dispõe o art. 334, "não dependem de prova" tanto os fatos admitidos no processo como incontroversos quanto aqueles que sejam confes-sados pela outra parte. Não cremos, porém, que se deva retirar desta premissa a conclusão de que esta categoria processual, a que a doutrina e a própria lei denomi-nam admissão ou reconhecimento dos fatos alegados por uma das partes, tenha o valor de uma confissão tácita, ou a esta se equivalha conceitualmente.

Se a admissão tivesse a mesma eficácia de uma confissão, não haveria expli-cação para o fato de somente ser admissível a confissão feita por procurador judicial munido de poderes especiais e expressos para confessar, quando se sabe que a admissão dos fatos constantes da petição inicial é feita sempre pelo advogado da parte, ainda quando não disponha de poderes para confessar. E, como adverte DEVIS ECHANDIA (ob. cit., I, n. 156), se toda admissão fosse considerada uma confissão tácita, deveria conservar esta mesma eficácia em processo futuro, onde as mesmas partes porventura litigassem.

Há um outro argumento decisivo para distinguir a eficácia dos fatos "admiti-dos como incontroversos" e os fatos que hajam sido confessados pela outra parte. Segundo dispõe o art. 302 do CPC, os "fatos não impugnados" - vale dizer, admi-tidos como incontroversos na concepção do art. 334, III - somente vinculam o juiz "se não estiverem em contradição com a defesa, considerada em seu conjunto". Quanto à confissão, diferentemente, o Código inseriu o princípio constante do art. 350, segundo o qual a confissão faz prova contra o confitente, sem considerar um possível antagonismo com as demais posições adotadas pela defesa.

O art. 354 doCPC consagra o velho princípio da indivisibilidade da confissão, dispondo ser ela, em regra, indivisível, no sentido de não po-der a parte, que a quiser invocar como prova, aceitá-la no tópico que a beneficiar e rejeitá-la no que lhe for desfavorável. Este princípio, não obstante consagrado secularmente pela doutrina universal, apresenta-se mal formulado. Não se trata propriamente de indivisibilidade da confis-são, mas do depoimento ou declaração prestada pela parte que contenha uma confissão. As declarações desfavoráveis ao adversário do confiten-te, por definição, não podem ser consideradas confissões. Trata-se das espécies a que a doutrina denomina confissões complexas ou qualifica-das, em que apenas algumas, dentre as várias declarações prestadas pelo

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litigante, são realmente confessórias (JOÃO BONUMÁ, Direito proces-sual civil, v. 1, n. 247).

A confissão será sempre expressa, ou haverá casos de confissão tácita, ou ficta? Sem dúvida pode haver, e há, importantes e conhecidas hipóteses de confissão ficta, ou presumida. Assim, por exemplo, quando o réu simplesmente deixa de contestar a ação, tornando-se revel, "reputar-se-ão verdadeiros" os fatos afirmados pelo autor (art. 319), caso em que o juiz nada mais pode fazer senão decidir desde logo a causa, dispensando-se da obtenção de quaisquer outras provas (art. 330, II). Igualmente, quando a parte tenha sido regularmente intimada para prestar depoimento pessoal e deixe de comparecer à audiência ou, comparecendo, se recuse a depor, o juiz lhe aplicará a "pena de, confissão" (art. 343, § 2.°, do CPC).

Escrevendo sob o Código de 1939, que continha este mesmo princípio, dizia o professor JOÃO BONUMÁ: "Não conhecemos nada mais desarmonioso e mais discordante das ideias modernas em que se inspirou ou declarou inspirar-se o legislador de 1939 do que essa inútil e absurda velharia medieval áapoena confes-si e sua consequente ficta confessio. Que um processo bárbaro de Idade Média, temperado pela doutrina dos práticos e dos glosadores, recorresse a uma pena processual aplicável ao litigante que se recusava a falar às positiones de seu con-trário, e que daí se chegasse à concepção de uma confissão presumida, é muito explicável e natural. Mas hoje, quando a doutrina processual desconhece a exis-tência de um dever de provar e de um dever de responder aos termos de uma ação proposta, a poena confessi nada mais é do que uma anacrónica sobrevivência do passado" (ob. cit., v. 2, n. 248, b).

Se a "pena de confissão", mantida pelo art. 343, § 2.°, do Código de 1973, poderia representar um atávico regresso à idade medieval, que dizer-se de uma pena semelhante agora estabelecida para a revelia do demandado (art. 319 do CPC)? Não há dúvida de que todas estas prescrições contrariam o proclamado princípio da "persuasão racional", adotado por nosso legislador, sendo manifestações claras do princípio da prova legal (SILVA MELERO, ob. cit., v. 1, p. 159).

14.3.3 Prova testemunhal

14.3.3.1 Conceito

Prova testemunhal é a que se obtém através da declaração prestada em juízo por pessoa estranha ao litígio, a respeito de fatos percebidos pelos sentidos. MOACYR AMARAL SANTOS (Prova judiciária..., v.

3, n. 23) prefere esta antiga definição dada por JOÃO MONTEIRO: "Testemunha é a pessoa capaz e estranha ao feito, chamada para depor o que sabe sobre o fato litigioso".

DEVIS ECHANDIA (ob. cit., v. 2, n. 192) define deste modo o testemunho: "Testemunho é um meio de prova que consiste na declara-ção representativa que uma pessoa, que não é parte no processo a que comparece, faz ao juiz, com finalidade processual, sobre o que sabe a respeito de um fato de qualquer natureza".

A definição de JOÃO MONTEIRO é demasiadamente restritiva, limitando o conceito de testemunho apenas às declarações prestadas por pessoas civilmente capazes, quando se sabe que, no direito contemporâ-neo, mesmo quando se façam restrições à admissibilidade do depoimento de pessoas incapazes em virtude da idade, é possível produzir-se prova testemunhal por meio destas. Por outro lado, como se observa da defini-ção dada por DEVIS ECHANDIA, nem sempre a declaração prestada pela testemunha diz respeito ao fato litigioso, como afirma a definição proferida por MOACYR AMARAL SANTOS.

Finalmente, a respeito propriamente do objeto da prova testemu-nhal, cremos que as duas definições acima indicadas são insatisfatórias, por ser a primeira delas excessivamente restritiva e a segunda, demasia-damente ampla, sem que indique, qualquer delas, um elemento que é fundamental para qualificar o testemunho, qual seja a exigência de que o fato ou a circunstância a respeito do qual a testemunha depõe seja perce-bido através dos sentidos. Esta circunstância distingue, por exemplo, o testemunho das eventuais declarações prestadas em juízo por peritos e arbitradores, e, além disso, demonstra ser a prova testemunhal uma prova indireta e representativa de algum fato passado (DELLEPIANE, Nova teoria da prova, p. 139-141; COUTURE, Estúdios de derecho procesal civil, v. 2, p. 188; CARNELUTTI, La prueba civil, n. 26).

Ao contrário dos peritos e demais auxiliares técnicos do juízo, aos quais se encomenda previamente o exame dos fatos que serão depois objeto de sua análise, as testemunhas depõem sobre fatos de que tiveram ciência ocasionalmente.

Além disso, os fatos a respeito dos quais a testemunha haverá de depor devem ser fatos da experiência comum, que possam ser percebidos independentemente de qualquer habilitação técnica ou científica espe-cial (CHIOVENDA, Instituições..., v. 3, n. 333). Como observa DELLE-PIANE (ob. cit., p. 159), a testemunha deve depor a respeito dos fatos por

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ela percebidos através dos sentidos, daí dizer-se ser ela os olhos e os ouvidos da justiça, o que evidentemente não exclui que as percepções, além de visuais e auditivas, possam ser igualmente olfativas, gustativas ou táteis.

Neste particular, todavia, uma observação ainda se faz necessária. A natureza da prova testemunhal não impede que o depoimento envolva, além da descrição pura e simples do fato percebido pelos sentidos, as conclusões lógicas imediatas que a testemunha retire de tais fatos. Diz a respeito MOACYR AMARAL SANTOS (Prova judiciá-ria..., v. 3, p. 50): "A narração da testemunha pode compreender não só o efeito imediato que o fato exerceu sobre os seus sentidos, como também as conclusões lógicas que deduziu daquela impressão, vale dizer, pode compreender os fatos do seu conhecimento imediato que exerceram efeito direto nos seus sentidos, como os fatos que haja deduzido".

Não obstante se diga que a prova testemunhal deve limitar-se aos fatos da experiência comum, capazes de serem percebidos pelos sentidos, não se pode excluir desta espécie de prova o denominado testemunho técnico, que é prestado por pessoas dotadas de alguma capacitação profissional especial, a respeito das conclusões técnicas ou científicas extraídas de suas percepções.

LESSONA (ob. cit., v. 4, n. 187), depois de escrever que a prova testemunhal, como toda prova simples, deve guardar estreita dependência dos fatos, "não podendo a testemunha ser chamada senão para depor sobre a sua existência", não sendo, portanto, admissível a prova testemunhal "para determinar a natureza jurídica de um contrato" - nem para obter apreciações que exijam conhecimentos científicos ou técnicos, próprios da prova pericial -, afirma: "Não deverá, todavia, proibir-se a prova testemunhal que além dos fatos tenha também por objeto apreciações cientí-ficas ou técnicas da testemunha e naturalmente a exposição em juízo de tais apre-ciações" (n. 188).

DEVIS ECHANDIA (ob. cit., v. 2, n. 206) faz as seguintes observações para distinguir o testemunho técnico áaprova pericial. "Um arquiteto pode dar um bom depoimento a respeito do fato de que um determinado edifício, numa certa data, apresentava detalhes que implicavam ameaça de instabilidade ou de desmorona-mento, por tê-los observado corretamente graças a seus conhecimentos técnicos especiais sobre a matéria; mas se, além disso, expõe no depoimento o seu entendi-mento a respeito das causas que não pôde observar de tais efeitos de construção, estaria dando uma apreciação subjetiva que escapa ao objeto da prova testemunhal e que corresponde à prova pericial; um médico pode ser uma testemunha fidedigna de que uma pessoa em determinado dia apresentava sintomas, por ele observados.

de certa enfermidade, mas sobre as causas que a produziram, e que o mesmo não percebeu, somente o perito poderá opinar".

143.3.2 Sujeito da prova testemunhal

Ficou dito que a prova testemunhal consiste em declarações presta-das em juízo por uma pessoa estranha ao litígio a respeito de fatos por ela percebidos pelos sentidos. Evidentemente apenas as pessoas físicas po-dem prestar depoimento, pois, como observa MOACYR AMARAL SANTOS (Prova judiciária...^ v. 3, n. 48), sendo o testemunho a narração de um fato percebido através dos sentidos e reproduzido depois perante o juiz, somente um ser capaz de percepção e dotado de memória poderá desempenhar a função que se exige da testemunha.

A doutrina, de um modo geral, acentua a oposição entre o sujeito da prova testemunhal e a condição de parte, para determinar que somente os terceiros que não sejam parte no litígio poderão ser testemunha (ROSENBERG, Tratado..., v. 2, Tít 119, II, I; DEVIS ECHANDIA, ob. cit., v. 2, n. 193). JOÃO BONUMÁ (ob. cit., v. 2, n. 251) definia assim a prova testemunhal: "Da definição de testemunho, que é uma declaração de ciência ou de verdade sobre fatos ou circunstâncias da demanda feita por pessoa alheia ao pleito, decorre naturalmente o conceito de testemunha, que é sempre uma pessoa humana não interessada na causa. Um terceiro, portanto".

A condição de interessado na causa e mesmo a situação processual de alguém a quem se atribua a qualidade de terceiro merecem alguma consideração. Não podem prestar depoimento, na condição de testemunha, os litisconsortes e os assistentes litisconsorciais do art. 54 do CPC, que são igualmente litisconsortes. Todavia, nos litisconsórcios facultativos comuns, determinados por simples afi-nidade de questões de fato ou de direito (art. 46, IV), é admissível que cada litisconsorte deponha como testemunha, a respeito de questões litigiosas que somente à demanda do outro, ou dos outros litisconsortes, digam respeito. Figu-remos um exemplo: três ou mais pessoas afirmam-se vítimas de danos em razão de um acidente de veículo provocado, segundo elas, por culpa do motorista do veículo x. A vítima a, um pedestre, afirma haver sido colhida quando se encontra-va sobre a calçada. A se litisconsorcia com bec, respectivamente um ciclista e o proprietário do prédio danificado pelo veículo. Neste caso, não obstante a iden-tidade das causae petendi passivas - a culpa do motorista, de que decorreria o deve* de indenizar -. é evidente que cada um dos litisconsortes se sustenta em diferentes e autónomas causae petendi ativas, que guardam entre si absoluta in-dependência, relativamente às demandas dos demais litisconsortes (sobre o con-ceito de causae petendi ativas e passivas, GIANCARLO GIANNOZZI. La

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modificazione delia domando, nel processo civile, p. 54 e ss.)- Neste caso, o pe-destre que alega ter sido colhido sobre a calçada poderá ser desmentido pelo testemunho do proprietário do prédio danificado, que presenciara o acidente, bem como a afirmação do ciclista de que fora colhido quando trafegava pela via reser-vada a este tipo de veículo poderá ser infirmada tanto pelo pedestre quanto pelo dono do prédio, seus litisconsortes. A improcedência das ações de cada uma das vítimas do acidente não determina, por si só e necessariamente, a improcedência das demandas dos outros. As declarações prestadas por qualquer deles, em depoi-mentos pessoais ordenados ex officio ou a pedido do adversário, no que diga respeito a fatos ou circunstâncias indiferentes à pretensão processual do depoen-te, haverão de ser recebidas como prova testemunhal perfeitamente admissível e válida, a ser avaliada livremente pelo julgador.

14.3.3.3 Admissibilidade da prova testemunhal

0 sistema jurídico brasileiro, não obstante proclamar sua adesão ao sistema da apreciação racional da prova, mantém inúmeras restrições à admissibilidade da prova testemunhal, que podem ser indicadas como vestígios ainda existentes do antigo sistema de prova legal. Assim é que nosso Código de Processo Civil, em seu art. 405, declara não poderem depor como testemunha os incapazes, as pessoas impedidas e as consi deradas suspeitas, e em seus respectivos parágrafos relaciona tais pes soas. Dentre os incapazes de servir como testemunha estão, segundo o art. 405, § 1.°:

1 - o interdito por demência; II - o que, acometido por enfermidade, ou debilidade mental, ao

tempo em que ocorreram os fatos, não podia discerni-los; ou, ao tempo em que deve depor, não está habilitado a transmitir as percepções;

III - o menor de dezesseis anos; IV - o cego e o surdo, quando a ciência do fato depender dos

sentidos que lhes faltam.

A vedação absoluta constante da lei de que os menores de dezesseis anos possam depor como testemunhas já era criticada ao tempo do Código de 1939, uma vez que, ao contrário dos demais incapazes relacionados neste dispositivo, os menores, especialmente depois de uma certa idade, têm condições psíquicas de testemunhar, e seu depoimento frequentemente é indispensável nos litígios deriva-dos do direito de família. Alega-se, porém, que em tais demandas a lei deve renun-ciar a uma investigação mais profunda dos fatos a fim de preservar a harmonia

familiar e o respeito que deve existir nas relações entre parentes em geral e espe-cialmente entre pais e filhos.

São impedidos de depor como testemunhas (art. 405, § 2.°): I - o cônjuge, bem como o ascendente e o descendente em qualquer

grau, ou colateral, até o terceiro grau, de alguma das partes por consan guinidade ou afinidade, salvo se o exigir o interesse público, ou, tratan do-se de causa relativa ao estado da pessoa, não se puder obter de outro modo a prova, que o juiz repute necessária ao julgamento do mérito;

II - o que é parte na causa; III - o que intervém em nome de uma parte, como o tutor na causa

do menor, o representante legal da pessoa jurídica, o juiz, o advogado e outros, que assistam ou tenham assistido as partes.

Finalmente, considera a lei suspeitos para depor como testemunhas (art. 405, § 3 o):

I - o condenado por crime de falso testemunho, havendo transitado em julgado a sentença;

II - o que, por seus costumes, não for digno de fé; m - o inimigo capital da parte, ou seu amigo íntimo; IV - o que tiver interesse no litígio. As testemunhas consideradas impedidas ou suspeitas poderão ser

ouvidas sempre que o juiz considere estritamente necessários seus depoi-mentos, as quais, no entanto, deporão como simples informantes, sem prestar o compromisso a que alude o art. 415 do CPC.

Além das restrições de ordem subjetiva acima indicadas, também não se admitirá a prova testemunhal (art. 400) quando a inquirição disser respeito a fatos já provados por documentos ou confissão da parte ou sobre fatos que só por documento ou por exame pericial puderem ser provados.

14.3.3.4 Produção da prova testemunhal

Como as demais provas, também a testemunhal deve ser requerida, salvas exceções raras, na petição inicial, quando for o autor a pretender produzi-la, e na contestação, quando for o réu quem a pretenda (arts. 282, VI, e 300 do CPC).

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Não obstante a exigência que estes dois dispositivos legais impõem quanto ao requerimento das provas com que cada litigante pretenda demonstrar os fatos em que fundam a ação ou a defesa, abre o Código uma nova oportunidade ao autor, permitindo-lhe - quando não ocorra o "efeito da revelia", embora não tenha o réu contestado a ação - que aquele "especifique" as provas que pretenda produzir (art. 324).

Em boa técnica, não deveria aguardar-se o momento previsto pelo art. 324 para só então indicar o autor as suas provas. É de supor que o legislador tenha levado em conta um grave inconveniente, constantemente criticado pelos processualistas brasileiros, que, não obstante, ainda persiste na prática forense, qual seja o vezo de limitarem-se os advogados, ao elaborarem a petição inicial e a contestação, a vagos e inócuos "protestos" pela produção de todo género de provas em direito permitidas. Este mero protesto de nada vale e não significa de modo algum o requerimento de provas imposto por lei tanto ao autor (art. 282, VI) quanto ao réu (art. 300).

Sucede que os juizes, ante a estereotipada reiteração de tais protestos, como não querem punir o erro técnico e desde logo julgar a demanda antecipadamente, em face da ausência de postulação efetiva e adequada de provas, além da eventual prova documental trazida com a petição inicial ou com a contestação, costumam - na fase destinada às "providências preliminares e ao saneamento do processo" (arts. 323-328 e 331) - intimar os litigantes a fim de que os mesmos "especifiquem" as provas que desejam produzir, abrindo-se, assim, ensejo a protelações desnecessárias.

Como as demais provas, também a testemunhal tem nitidamente diferencia-dos os seus três conhecidos momentos: o de sua proposição, o de sua admissão e propriamente o da produção ou execução da prova (MOACYR AMARAL SAN-TOS, Prova judiciária..., v. 1, n. 15), de modo que, em regra, as partes que preten-dessem produzi-la deveriam respeitar as determinações dos artigos antes citados.

Somente em um caso seria legítimo o pedido tardio de produção de prova testemunhal: quando esta se tomasse necessária como "contraprova", em virtude da natureza das questões eventualmente suscitadas pelo réu na contestação e de cuja controvérsia não tinha ciência o autor.

Proposta a produção de prova testemunhal na petição inicial ou na contestação, ou eventualmente em momento subsequente, as partes de-positarão em cartório, no prazo que o juiz fixar ou, na falta dele, até 10 (dez) dias antes da audiência, o rol de testemunhas, indicando-lhes o nome, profissão, residência e local de trabalho (art. 407 do CPC).

Pode haver, no entanto, outros princípios que disponham sobre o momento da produção da prova testemunhal, como ocorre no pro-

cedimento sumário, cujo art. 276 impõe que o autor arrole as testemu-nhas desde logo, na petição inicial.

Proposta e admitida a prova testemunhal - e depositado em cartório o res-pectivo rol das testemunhas indicadas pelas partes -, não mais lhes será lícito substituir qualquer testemunha ou dela desistir, a não ser nos casos previstos no art. 408 do CPC. As provas, uma vez requeridas e admitidas pelo juiz, deixam de pertencer à parte que as propôs, para constituir elemento comum ao processo, de que somente por acordo das partes se pode desistir, ressalvada ainda a hipótese de insistir o próprio magistrado na inquirição da testemunha, o que ele sempre poderá fazer de seu próprio ofício.

Em regra, as testemunhas serão ouvidas na audiência de instrução e julgamento, exceto aquelas que hajam prestado depoimento antecipa-damente, as que devam ser inquiridas por carta, em local diferente daquele da comarca onde a causa se processa ou as que, por doença, ou por outro motivo relevante, estejam impossibilitadas de comparecer em juízo (arts. 410 e 336, parágrafo único, do CPC).

Também as pessoas indicadas pelo art. 411 do CPC serão inquiridas em sua residência, em vez de comparecerem, como as demais testemu-nhas, ao recinto do fórum para prestar depoimento.

Antes de depor, a testemunha será qualificada, declarando seu nome, profissão, residência e estado civil, bem como se tem relações de parentesco com a parte ou interesse no objeto do processo (art. 414). Nesta oportunidade é que a parte contrária poderá arguir a incapacida-de, impedimento ou suspeição da testemunha. Proposta a contradita, o juiz ouvirá sobre ela a testemunha. Se esta negar os fatos que lhe são imputados, como causa que a inabilite a prestar depoimento, o juiz facultará à parte que a tenha contraditado a produção de prova docu-mental e a inquirição de testemunhas sobre as razões da contradita, as quais deverão ser apresentadas no próprio ato e inquiridas em separado (art. 414, § 1.°, do CPC).

14.3.4 Prova documental

143.4.1 Conceito de documento e sua natureza jurídica

Sempre que se faz alusão a documento ou, em direito processual, a prova documental, em geral se imagina que estas categorias de direito

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probatório equivalham ao conceito de prova literal, elaborada e produ-zida por meio da escrita (littera, a letra, aquilo que está escrito). O conceito de documento, todavia, é bem mais amplo, abrangendo ou-tras formas de representação além das formas gráficas ou simples-mente literais.

MOACYR AMARAL SANTOS (Prova judiciária..., v. 4, n. 18), seguindo a orientação de C ARNELUTTI e de outros juristas, especial-mente italianos, define documento como sendo "uma coisa que doce, isto é, que tem em si a virtude de fazer conhecer" (verbo docere, em latim, ensinar, de onde temos o vocábulo docente). CARNELUTTI (Sistema..., v. 1, n. 289) considera documento "una cosa in quanto serve a rappresentare un'altra". Em sentido amplo, o conceito de do-cumento deve abranger todas as coisas capazes de, por si mesmas, representarem algum fato. É comum ouvir-se a alusão a documentos históricos quando se está a referir os sinais e monumentos por meio dos quais podemos conhecer alguma circunstância ou episódio da história humana.

PAOLO GUIDI, um eminente especialista nesta questão, conceitua deste modo o documento: "O documento é um objeto corporal, produto da atividade humana de que conserva os vestígios, que, através de per-cepção de sinais gráficos sobre ele impressos, ou por meio da luz ou do som que possa produzir, é capaz de representar, de modo permanente, a quem o observe, um fato existente fora de seu conteúdo" (Teoria giuri-dica dei documento, p. 46).

O conceito dado por LIEBMAN é semelhante: "Documento, in generale, è una cosa ene rappresenta o raffigura un fato, in modo da dare a chi 1'osserva una certa conoscenza di esso" (Manuale...y v. 2, n. 190).

Há uma distinção, no entanto, entre as definições de documento dadas por GUIDI e por CARNELUTTI e LIEBMAN, que deve ser des-tacada. Segundo os últimos, documento seria qualquer coisa capaz de representar uma outra coisa, enquanto para o primeiro apenas os objetos corporais produzidos pela atividade humana poderiam ser considerados documentos. Esta limitação conceituai parece-nos essencial para o esta-belecimento de um conceito apropriado do que seja verdadeiramente um documento.

Aliás, CARNELUTTI {La prueba civil, n. 34), mesmo mostrando que a diferença básica entre o testemunho e o documento está em que o primeiro é um ato e o último uma coisa, observa que a atividade humana

é a fonte comum das duas formas de representação, que entre si se distin-guem por consistir o testemunho num ato humano que representa um fato anterior, enquanto o documento é uma coisa igualmente representativa de um ato que o precede.

LIEBMAN é menos preciso: "Em particular, os documentos inte-ressam sob o ponto de vista jurídico, enquanto representam fatos jurí-dicos relevantes" (Manuale,.., n. 190). Ora, a avulsão é um fato juridi-camente relevante e que poderá facilmente estar representada pela por-ção do prédio deslocado pela força súbita das correntes de água (art. 19 do Código de Águas, Decreto 24.643, de 10.07.1934). Tal repre-sentação, no entanto, não poderá ser definida como documento - o fato que ela representa não teve a menor interferência do homem em sua produção.

Confirmando este entendimento, DE VIS ECHANDIA (ob. cit, v. 2, p. 323) escreve: "O documento é o resultado de um ato humano, mas em si mesmo é uma coisa ou um objeto; não é um ato represen-tativo, como o testemunho e a confissão, e sim uma coisa ou um objeto que serve para representar um fato qualquer".

Há necessidade ainda de um novo esclarecimento. Ao se afirmar que o do-cumento é o resultado de uma atividade humana, não se pretende significar que todo documento represente ato humano simultâneo ou anterior à sua formação. O documento pode representar um fato de qualquer natureza. A avulsão pode ser documentada através de muitas formas, como, por exemplo, por meio da fotogra-fia, de registros sonoros ou até mesmo através de uma película cinematográfica. Não há documento, todavia, sem que haja uma atividade humana no ato de sua formação (CARNELUTTI, Sistema..., v. 1, n. 289).

Distingue-se ainda o documento dos simples indícios: o primeiro tem valor de prova em si mesmo, ao passo que o indício nos serve como uma ponte para que possamos atingir, por meio dele, o fato a provar. Quando examinamos, por exemplo, uma carta ou um recibo de quitação, damo-lhe o valor de um documento e tratamo-lo como prova enquanto tal; um revólver que alguém porte na cintura pode ser indício de ter sido tal pessoa, por exemplo, o autor do ferimento causado em outrem. ou ser indício de que o portador da arma pretende agredir alguém ou, quando soma-do a outros indícios, indicar simplesmente o temperamento violento e rixoso de quem o porta; uma jóia de grande valor pode ser indício de riqueza da pessoa que a exibe como adereço. Nem o revólver nem a jóia, no entanto, poderão ser conside-rados documentos. A diferença é precisamente esta: o documento é uma prova reai. à medida que é em si mesmo uma prova. O juiz não investiga através dele o ato humano que o criou, mas a coisa criada, ao passo que no indício busca-se a coisa

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cuja existência é sugerida pelo fato indiciado (DEVIS ECHANDIA, ob. cit, p. 323; CARNELUTTI, Laprueba civil, n. 34).

Por sua vez, é a partir da concepção do documento como prova real que se pode distingui-lo do negócio jurídico, mesmo nos casos em que se esteja em presença de um documento declarativo. É que o documento é uma coisa que contém uma declaração, mas não se confunde com a declaração de vontade que define o negócio jurídico e pode ser conteúdo do documento (CARNELUTTI, Documento e negozio giuridico, RDPC, v. 1, p. 182).

A indicação mais evidente da necessidade de fazer-se distinção entre o docu-mento e seu conteúdo, que pode caracterizar um negócio jurídico, é a circunstância de ser documento a fotocópia do próprio documento original, que, por sua vez, poderá ser invalidada como prova. Neste caso, o documento não é declarativo, como o são alguns outros (recibo de quitação), mas serve para representar outro documento (CARNELUTTI, Sistema..., v. 1, n. 289,/).

14.3.4.2 Classificação geral dos documentos

Considerando o que ficou dito a respeito do conceito de documento, podemos agora classificá-los segundo diferentes critérios.

Quanto à sua origem, os documentos podem ser públicos ou priva-dos, conforme sejam produzidos por servidores públicos ou elaborados por particulares. No género documento público estão compreendidos os instrumentos públicos, as escrituras públicas e os documentos públicos em sentido estrito.

O instrumento público é uma espécie do género documento públi-co. Segundo MOACYR AMARAL SANTOS {Prova judiciária..., v. 4, n. 32), o Código Civil brasileiro estabelece a distinção entre o instru-mento público, que é o necessário à validade de determinados atos ou negócios jurídicos, segundo prescrevem seus arts. 133 e 134, e os sim-ples documentos públicos, que não constituem prova preconstituída do ato documentado, mas que podem ser ocasionalmente utilizados para prová-lo.

Quando o instrumento público é elaborado por um notário ou algum funcionário no desempenho de funções, o instrumento denomina-se es-critura pública. Tanto o contrato de compra e venda de imóveis, que, segundo o art. 134 do CC, deve ser feito por instrumento público, quanto o assento de nascimento, que se lavra perante o respectivo cartório de registro, são instrumentos públicos - o primeiro é uma escritura pública, o outro não.

Também os documentos particulares ou privados, à semelhança dos documentos públicos, subdividem-se em instrumentos particula-res e simples documentos, conforme sejam criados com a finalidade de servir de prova da constituição, modificação ou extinção de algum ato ou negócio jurídico ou, ao contrário, sejam formados ocasionalmente, sem qualquer finalidade probatória. Escreve MOACYR AMARAL SANTOS (Prova judiciária..., v. 4, n. 93): "Mas a verdade é que há documentos particulares formados propositalmente para criar, extin-guir, modificar ou mesmo provar um ato jurídico; e há documentos particulares feitos sem qualquer finalidade de provar o fato controver-tido, mas por motivos diversos e até relativos a assunto alheio às partes naquele fato. Os primeiros são prova preconstituída, os segundos prova meramente casual". Os primeiros são instrumentos particulares e sim-ples documentos os últimos.

Quanto ao material ou à maneira como eles são feitos, os documen-tos podem classificar-se em escritos, gráficos, plásticos e estampados. Escritos e gráficos são os que representam literalmente a coisa, tais como as escrituras e os meios gráficos de expressão, como a pintura e os dese-nhos; plásticos são aqueles em que a coisa é representada por meio de modelos de madeira, metal, gesso ou qualquer outro material capaz de ser moldado pelo homem; estampados são aqueles documentos obtidos por meio de gravações mecânicas ou elétricas sobre materiais especiais, tais como a fotografia, a cinematografia etc. (MOACYR AMARAL SANTOS, Prova judiciária..., p. 50).

Finalmente, quanto a seu conteúdo, os documentos podem ser cons-titutivos, quando sejam elaborados por um ato de vontade a fim de pro-duzir determinada consequência jurídica, de que são exemplos típicos as escrituras públicas; simplesmente declarativos, quando contenham uma declaração de ciência ou verdade, através da qual seu autor simplesmente narra determinado fato, podendo ter sentido confessório ou meramente testemunhal, conforme ele seja desfavorável ou não a seu autor (DEVIS ECHANDIA, ob. cit., p. 514); e não-declarativos, como os desenhos, fotografias ou pinturas.

14.3.43 Valor probatório dos documentos

O documento público tem a seu favor a presunção de autentici-dade. Diz o art. 364 do CPC: "O documento público faz prova não só

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da sua formação, mas também dos fatos que o escrivão, o tabelião ou o funcionário declarar que ocorreram em sua presença". Esta presunção de veracidade que envolve os documentos públicos, como se vê deste preceito legal limita-se àquilo que o servidor público que o elaborou declarar em seu contexto haver ocorrido em sua presença, tais como as circunstâncias relativas à sua própria formação, como a data, o local em que o documento foi elaborado, a qualificação dos declarantes e das testemunhas, assim como suas presenças ao ato, bem como tudo aquilo que lhe tenha sido declarado pelos interessados. A veracidade do conteúdo do documento, ou seja, a veracidade das próprias decla-rações, no entanto, não gozam da mesma presunção de veracidade. Assim, por exemplo, quando o oficial público, através de uma certidão por ele firmada, certifica que alguém, comparecendo em sua presença, em tal data e na presença de certas testemunhas, haja declarado o nascimento de uma criança que o mesmo afirma ser seu filho, ficam protegidos pela fé pública do funcionário todos os fatos e circunstâncias externas à própria declaração, não a veracidade do fato declarado, no caso em que o nascido seja realmente filho do declarante ou mesmo que haja ocorrido o próprio nascimento.

No sistema jurídico brasileiro - ao contrário do que sucede nos sistemas europeus de ascendência francesa-, os documentos públicos não têm eficácia de "prova plena", capaz de vincular incondicionalmente o julgador à sua força probante. Tanto o anteprojeto BUZA1D (art. 396) quanto o projeto definitivo governamental (art. 368) continham no texto do dispositivo correspondente ao atual art. 364 do CPC a declaração de que o documento público faria "prova plena" não só de sua formação, mas igualmente dos fatos que o escrivão, o tabelião ou outro qualquer funcionário que o tivesse elaborado declarasse haver ocorrido em sua presença. O Congresso Nacional, porém, durante a votação do projeto, suprimiu a locução "prova plena", o que, segundo se entende fEGAS MONIZDE ARAGÃO, Exegese..., v. 4-1, p. 217; JOÃO CARLOS PESTANA DE AGUIAR, Comentários..., p. 159), teria permitido aos juizes brasileiros, independentemente de arguição de falsidade do documento a ser suscitada pelo litigante interessado em impugnar sua veracidade, avaliar livremente, segundo o critério indicado pelo art. 131 do CPC, a força probante do docu-mento público (em sentido contrário, porém, H. THEOD0R0 JÚNIOR, Cur-so..., v. 1, p. 456).

Fazem a mesma prova que os originais (art. 365 do CPC):

I - as certidões textuais de qualquer peça dos autos, do protocolo das audiências, ou de outro livro a cargo do escrivão, sendo extraídas por ele ou sob sua vigilância e por ele subscritas;

II - os traslados e as certidões extraídas por oficial público, de instrumentos ou documentos lançados em suas notas;

III - as reproduções dos documentos públicos, desde que autentica das por oficial público ou conferidas em cartório, com os respectivos originais.

O direito moderno, tendo em vista os progressos e a vulgarização dos sistemas de reprodução mecânica de documentos e o uso cada vez mais intenso que se faz, especialmente no foro, de cópias fotostáticas de documentos, tem se preocupado em disciplinar, ao lado das certidões e traslados, o valor probante das reproduções mecânicas.

Dentre tais processos de reprodução de documentos merece espe-cial referência o sistema de microfilmagem (art. 1.215, § 1.°, do CPC).

Relativamente aos documentos particulares, presumem-se verda-deiras, em relação aos signatários, as declarações deles constantes, quan-do por eles escrito e assinado ou somente assinado o documento (art. 368). Tal presunção, todavia, não é absoluta, cabendo ao julgador avaliar livremente a eficácia probatória do documento particular.

O Código de Processo Civil introduziu em nosso direito um institu-to similar à denominada "verificação de documento" existente no direito europeu, como nota EGAS MONIZ DE ARAGÃO {Exegese..., p. 240 e 295), ao estabelecer, em seu art. 372, competir à parte, contra quem foi produzido o documento particular, alegar, na contestação ou no prazo de dez dias, contados da respectiva intimação de sua juntada aos autos (art. 390), se lhe admite ou não a autenticidade da assinatura e a veracidade de seu contexto. Seu silêncio faz presumir que o tem por verdadeiro, só podendo impugná-lo depois se o documento tiver sido obtido por erro, dolo ou coação (art. 372, parágrafo único).

14.3.4.4 Produção da prova documental

Toda prova a ser produzida em juízo percorre, de forma mais ou menos demarcada e visível, três estágios distintos, indicados pela doutri-na como momentos da prova, que são: o de sua proposição, o de sua admissão e finalmente o de sua produção.

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Estes momentos são bem nítidos, por exemplo, nos procedimentos relativos à prova testemunhal e à pericial. A parte que desejar produzi-las deverá, num primeiro momento, propô-las ao juiz, mediante um requeri-mento em geral escrito; num segundo momento, o juiz pronunciar-se-á admitindo ou não a prova requerida; se a deferir, então no terceiro mo-mento ela será finalmente produzida.

Com relação à prova documental acontece, via de regra, uma simul-taneidade desses momentos, ou pelo menos uma fusão entre o momento de sua proposição e o de sua produção nos autos. Em geral, a parte que pretender fazer prova documental haverá de trazer aos autos, com a pe-tição inicial ou com a resposta, o respectivo documento, segundo pres-creve o art. 396 do CPC.

Esta simultaneidade dos dois momentos deixa de verificar-se quando o documento a ser produzido no processo se encontre em poder de terceiro ou da parte contrária, casos em que o interessado na prova terá de requerer a sua exibição em juízo, segundo as disposições contidas nos arts. 355-363 do CPC. Nestes casos, haverá nítida separação dos três momentos.

É oportuno lembrar que a prova documental, antes mesmo de ser admi-tida ou apenas proposta em juízo, poderá ser objeto de exibição cautelar, se-gundo prevê o art. 844 do CPC. Neste caso, a exibição cautelar da prova ainda não a produz, apenas a assegura para futura produção, no processo a que ela se destine.

Em regra, como vimos, a prova documental deve ser desde logo oferecida pelas partes com a petição inicial, se o autor a requerer, ou com a contestação, caso seja o demandado a propô-la. Mesmo assim, admite-se sempre a juntada de documentos novos destinados a fazer prova de fatos ocorridos depois dos momentos processuais acima indi-cados, ou como contraprova (art. 397 do CPC), bem como provando a parte, que pretende a juntada tardia de algum documento, que ignorava sua existência ou, por motivo de força maior, fora impossível sua pro-dução tempestiva. Mesmo depois de proferida sentença, por ocasião da interposição do recurso de apelação, é admissível a juntada de novos documentos, sempre que a parte pretenda suscitar alguma questão de fato não discutida na instância inferior, por motivo de força maior (art. 517 do CPC).

14.3.5 Prova pericial

143.5A Conceito de perícia

Perícia - ensina J. FREDERICO MARQUES {Manual.., v. 2, § 71) - "é a prova destinada a levar ao juiz elementos instrutórios sobre algum fato que dependa de conhecimentos especiais de ordem técnica".

A função de toda atividade probatória é fornecer ao julgador os elementos por meio dos quais ele há de formar o seu convencimento a respeito dos fatos controvertidos no processo. Este contato do juiz com os fatos da causa pode dar-se através das provas orais produzidas em audiência, quando o juiz ouve as partes ou inquire as testemunhas, ou mediante o exame dos documentos constantes dos autos, ou, ainda, quan-do se traz ao processo não o documento, e sim as pessoas ou coisas de que se pretenda extrair elementos de prova.

Outras vezes, porém, não é possível a remoção de coisas e sua juntada ao processo. Assim, por exemplo, se for necessário examinar um imóvel, a respeito do qual se controverte na causa, o juiz não terá outro caminho senão deslocar-se pessoalmente até o lugar onde se situa o imó-vel litigioso ou encomendar o seu exame a terceiros.

Sempre, no entanto, que esta investigação sobre pessoas ou coi-sas, inclusive documentos, exigir conhecimentos técnicos especiais da pessoa encarregada de fazê-la, estaremos frente à necessidade de prova pericial

"Em suma, porque o juiz não seja suficientemente apto para proce-der direta e pessoalmente à verificação e mesmo à apreciação de certos fatos, suas causas e consequências, o trabalho visando a tal objetivo se fará por pessoas entendidas na matéria, quer dizer, a verificação e a apre-ciação se operarão por meio de perícia" (MOACYR AMARAL SAN-TOS, Primeiras linhas..., v. 2, n. 671).

O Código de Processo Civil, em ser art. 420, define a prova pericial como aquela consistente em exames, vistorias e avaliações.

O Código refere-se, nesse artigo, a exames, ao lado das vistorias e arbitramentos, como sendo cada um deles uma modalidade especial de prova pericial. Já no art. 846 contrapõe "exames periciais" à prova teste-munhal e ao interrogatório da parte, a sugerir que o exame não seria mais

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espécie, e sim o próprio género "prova pericial". Este, aliás, era o concei-to que o Código de 1939 dava à locução "exames especiais", com que denominava o capítulo que tratava de toda a prova pericial (Cap. VII do Tít. VIII do Livro II).

Em doutrina e na legislação de outros povos, encontram-se dois sentidos para a locução exame judicial Um deles quer significar a verificação direta e pessoal feita pelo juiz sobre pessoas ou coisas, a fim de esclarecer fatos que tenham interesse para a causa. Neste sentido, o exame judicial corresponderia à espécie de prova que o Código denomina inspeção judicial (art. 440), de que trataremos logo a seguir. Neste caso, porém, não estaríamos em presença de uma verdadeira prova pericial, uma vez que esta pressupõe a existência de um perito através do qual o juiz atinge o fato probando, o que, ao contrário da inspeção judicial, torna a perícia uma prova indireta (MOACYR AMARAL SANTOS, Prova judiciária..., v. 5, n. 1).

Aliás - como observa EGAS MONIZ DE ARAGÃO {Exegese..., v. 4-2, p. 127) -, no antigo direito luso-brasileiro a inspeção ocular feita pelo juiz é que se denominava vistoria, contraposta, neste sentido, a arbitramento, onde o juiz nada inspecionava.

Entende-se também por exame, ou exame judicial, a inspeção feita por perito sobre pessoas e coisas móveis e semoventes, inclusive docu-mentos e escritas comerciais, reservando-se à vistoria o sentido de veri-ficação que o perito faz sobre imóveis.

Este deve ser o entendimento a ser dado ao conceito de exame a que se refere o art. 420 do CPC, sem excluir, naturalmente, o fato de que toda prova pericial importa num exame, como advertia LOPES DA COSTA {Direito processual civil, v. 3, n. 137).

O Código, no art. 420, alude a avaliações como a uma espécie de prova pericial. Deixa de referir-se, todavia, aos arbitramentos, que po-dem ser considerados uma espécie diferente de prova técnica, como os considera MOACYR AMARAL SANTOS {Comentários..., n. 247). Com efeito, distinguem-se, na linguagem forense, os arbitramentos, que se encomendam aos peritos sempre que se tenha de reduzir a valor monetá-rio aígum direito ou obrigação, das avaliações judiciais, que se proce-dem, por exemplo, nos inventários e no processo de execução, que não são tratadas como arbitramento nem obedecem às regras dispostas para a prova pericial.

É pouco frequente o uso do termo avaliação para indicar uma espécie par-ticular de prova pericial, reservando-se seu emprego em geral para designar as operações encomendadas ao avaliador judicial, quase sempre um funcionário do juízo ou um perito oficial, como prevê o art. 680 do CPC. Entretanto, o Código às vezes - como o faz por exemplo ao disciplinar o procedimento de especialização da hipoteca legal (art. 1.206) - vale-se das duas modalidades de prova técnica indicadas como arbitramentos e avaliações, declarando que o valor da responsa-bilidade deve ser arbitrado e os bens que lhe servirão de garantia hão de ser avaliados.

Os bens, como coisas corpóreas existentes, serão avaliados; a responsabilida-de, como valor monetário de uma determinada obrigação, a ser coberta por tais bens, será objeto de arbitramento.

14.3.5.2 Admissibilidade da prova pericial

A prova pericial só terá lugar quando o fato probando exigir conhe-cimentos especiais de natureza técnica ou científica, sendo imprópria para a demonstração da existência dos fatos capazes de serem conheci-dos e descritos pelas pessoas comuns através de sua experiência social ordinária. Daí porque deverá o juiz indeferir o requerimento de prova pericial (art. 420, parágrafo único, do CPC) sempre que: I - a prova do fato não depender do conhecimento especial de técnico; II - for desne-cessária em vista de outras provas produzidas; ou III - a verificação for impraticável.

14.3.5.3 Agentes da prova pericial

A prova pericial, como se viu, é aquela realizada por peritos, sem-pre que o fato depender de conhecimentos técnicos ou científicos (art. 145 do CPC).

O juiz decidirá sobre a realização da perícia ao proferir o despacho saneador, por ocasião da audiência preliminar (art. 331, § 2.°), oportuni-dade em que nomeará o perito de sua escolha, facultando às partes a indicação dos respectivos assistentes técnicos.

Segundo dispõe o art. 421 do CPC, nomeado o perito oficial e de tal nomeação intimadas as partes, poderão estas, no prazo de cinco dias, indicar assistentes técnicos e formular quesitos a serem respondi-dos pelo perito.

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De conformidade com o § l.°doart. 145, acrescentado ao Código Lei 7.270, de 10 de dezembro de 1984, a função de perito somente rá ser desempenhada por profissionais de nível universitário, devi-;nte inscritos no órgão de classe competente, a não ser nas localida->nde não houver profissional qualificado, caso em que caberá ao juiz *e escolha do perito (§ 3.°). Até a Lei 8.455, de 24 de agosto de 1992, vigorava em nosso na o critério adotado pelo Código de Processo Civil de 1939, no se refere às funções do perito, voltando o Código agora a adotar tério do perito oficial, designado pelo juiz, facultando-se às partes licação de assistente técnico, cuja função terá caráter fiscalizador ■abalho do perito oficial.

Tivemos, nesse interregno, entre o sistema originário adotado pelo Código 39, agora restaurado, e o vigente uma concepção legal diferente a respeito da i pericial. O art. 129 do Código revogado, a partir do Decreto-lei 8.570, de 8 íeiro de 1946, estabelecia que os exames periciais poderiam ser feitos por um jvado, concordando as partes. O juiz nomearia perito oficial se as partes não srdassem na indicação de um perito único de sua escolha. Neste caso, o perito il teria a função de proferir laudo desempatador entre os laudos divergentes jeritos indicados pelas partes, quando não se decidisse pela adoção de um s laudos. Como diz EGAS MONIZ DE ARAGÃO (p. 138), esta concepção, ite em nosso direito a partir de 1946, transformaria a perícia de "assunto do em "assunto das partes".

Ao restaurar o sistema primitivo que vigorava até 1946, no en-3, o Código vigente adotara uma solução ambígua, no que se ria aos assistentes técnicos^ atribuindo-lhes a função de conse-ros das partes e, ao mesmo tempo, sujeitando-os aos mesmos sdimentos relativos aos peritos, além de exigir-lhes a prestação ompromisso. A partir da vigência da mencionada Lei 8.455/92, porém, os assis-

;s técnicos não mais prestarão compromisso nem estarão sujeitos a m recusados, em virtude de impedimentos ou suspeições.

14.3.5.4 Produção da prova pericial

Requerida e admitida pelo juiz a prova pericial, ou por este ordena-e ofício, a sua produção desenvolve-se num verdadeiro procedimen-

to, que vai desde a nomeação do perito até o oferecimento do laudo; e, se as partes assim o requererem, até o comparecimento do perito ou do assistente técnico à audiência de instrução e julgamento para que estes prestem esclarecimento a respeito das conclusões constantes do laudo pericial (art. 435).

Nomeado o perito, fixará o juiz, por despacho nos autos, a data e o local em que a diligência deverá ter início e o prazo concedido ao expert para a entrega do respectivo laudo pericial.

Se a prova pericial tiver de ser feita em comarca diversa do foro da causa, ordenará o magistrado a expedição de carta, delegando ao juízo em que a diligência houver de realizar-se a nomeação de perito e facul-tando às partes, também aí, naturalmente, a indicação de assistentes téc-nicos (art. 428 do CPC).

Podem o perito e os assistentes técnicos, para realização da prova pericial, utilizar-se de todos os meios idóneos à verificação dos fatos e circunstâncias necessárias à formação de seu convencimento, podendo ouvir testemunhas, solicitar documentos que se encontrem em poder das partes ou em repartições públicas, obter informações tanto das partes quanto de terceiros, inclusive, neste caso, de natureza técnica ou cientí-fica (MOACYR AMARAL SANTOS, Prova judiciária..., v. 5, n. 54), podendo instruir o laudo com plantas, desenhos, fotografias ou represen-tações de qualquer outra espécie, tais como maquetes produzidas em gesso, argila ou qualquer outro material (art. 429 do CPC).

Se o documento ou a coisa a ser examinada pelo perito e assistentes técni-cos encontra-se em poder de uma das partes ou em repartição pública, o perito poderá solicitar-lhes a exibição ou a entrega para exame, como dispõe o art. 429 acima indicado; estando, porém, o documento ou a coisa em poder de terceiros, deverá o perito solicitar ao juiz que ordene o terceiro a fornecê-la, segundo as prescrições relativas à exibição de documento ou coisa em poder de terceiro (arts. 360-363 do CPC).

Não obstante o elevado grau de confiabilidade que o laudo pericial possa oferecer e a extrema especialização técnica ou científica de que ele às vezes se reveste, suas conclusões não são vinculativas para o juiz, que não estará obrigado a aceitá-las, podendo formar seu convencimento com outros elementos de prova existentes nos autos (art. 436), caso em que, naturalmente, deverá fundamentar a rejeição das conclusões do lau-do pericial.

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O magistrado poderá igualmente, se entender não esclarecida su-ficientemente alguma conclusão do laudo, ordenar a realização de nova perícia, que deverá recair sobre os mesmos fatos objeto da perícia an- _ terior (arts. 437-438 do CPC). A segunda perícia não substitui ou in-valida a primeira, cabendo ao juiz apreciá-las livremente (art. 439, parágrafo único), em harmonia com o conjunto probatório constante dos autos.

14.3.6 Inspeção judicial

14.3.6.1 Conceito de inspeção judicial

AFFONSO FRAGA (Instituições do processo civil do Brasil, v. 2, p. 568) conceituava assim a vistoria: "A vistoria, que em matéria pro-cessual é uma modalidade do arbitramento, revestida de todos os seus caracteres, é o ato de inspeção ocular pelo qual o juiz se certifica do objeto sobre que se agita a questão pendente do seu julgamento". Esta definição, como facilmente se vê, assimila vistoria à inspeção judicial, que hoje, no direito brasileiro, tem conceituação precisa e distinta. A vistoria é sem dúvida um visum, como a própria palavra denuncia; todavia, nela o juiz vê por intermédio dos peritos, e não pessoalmente, como na inspeção judicial.

Nem sempre foi assim no direito brasileiro, como já tivemos en-sejo de referir. Ao tempo das Ordenações Filipinas, a vistoria era a prova consistente na inspeção ocular feita pelo juiz. O processualista português do século XIX, J. J. C. PEREIRA E SOUZA (Primeiras linhas sobre o processo civil, 1.1, § 282), definia assim o que ele deno-minava vistoria: "É a prova consistente na ocular inspeção do Juiz, para por si conhecer a causa, ou fato, de que se trata; com o auxílio de arbitramento ou sem ele".

E nosso SOUZA PINTO (Primeiras linhas sobre o processo civil brasileiro, t. III, § 1.398) repetia: "Vistoria é o ato judicial, pelo qual o juiz se certifica do fato, que em juízo se controverte, por meio da inspe-ção ocular".

A distinção entre a vistoria e a inspeção judicial, como observa EGAS MONIZ DE ARAGÃO (Exegese..., v. 4-2, p. 211), fez-se lenta-mente, no sentido da configuração da vistoria como a verificação judi-cial de pessoas, lugares ou coisas, inclusive móveis e semoventes, por

meio de peritos, enquanto reservou-se o conceito de inspeção judicial ao exame que o juiz faz pessoalmente sobre os fatos controvertidos na causa.

A inspeção judicial é indiscutivelmente a mais importante, segura e esclarecedora fonte de prova com que o julgador pode contar, e é de lamentar que nossos juizes não a utilizem com maior frequência, pre-ferindo assumir, ante a prova, uma atitude burocrática de servidor pú-blico, limitando-se a ordenar que terceiros a realizem e a tragam pronta a seu gabinete.

Se os juizes tivessem consciência do tempo que economizam quan-do perdem uma manhã, ou todo um dia, para inspecionar, por exemplo, um imóvel litigioso, por certo se valeriam com maior frequência deste instrumento probatório.

Além disso, os princípios de oralidade e imediatidade, a que as-piram os ordenamentos modernos, teriam, na inspeção judicial, sua expressão mais autêntica e efetiva, fazendo com que se evitasse ajusta observação crítica de CAPPELLETTI, de que a oralidade que se prati-ca no direito contemporâneo, de um modo geral, é simples oralidade protocolar, e não a verdadeira oralidade (La testimonianza..., v. 1, p. 144 e ss.).

14.3.6.2 Objeto da inspeção judicial

Segundo dispõe o art. 440 do CPC, o juiz pode inspecionar, de ofício ou a requerimento da parte, em qualquer fase do processo, pessoas ou coisas, a fim de se esclarecer sobre fato que interesse à decisão da causa.

Tanto podem ser objeto de inspeção os imóveis quanto os móveis e semoventes. Quanto às pessoas, podem ser objeto de inspeção judicial as partes e eventualmente terceiros. No que diz respeito às partes, sua sub-missão à inspeção judicial é considerada dever que lhes cabe, segundo prescreve o art. 340, II, do CPC.

Quanto aos terceiros, o dever que os onera de submeterem-se à inspeção judicial decorre do dever de colaboração que alcança a todos, conforme o art. 339 do CPC (MOACYR AMARAL SANTOS, Primei ras linhas..., v. 2, n. 686). B I B L I O.T EJL

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14.3.6.3 Procedimento da inspeção judicial

Sendo a inspeção judicial o exame direto e pessoal que o juiz faz em pessoas ou em coisas de que pretenda extrair elementos de prova, proce-de-se a este expediente probatório deslocando-se o magistrado até o lu-gar onde as pessoas ou coisas se encontrem ou, sempre que possível, trazendo-as à sede do juízo a fim de serem examinadas por ele. Os imó-veis naturalmente serão inspecionados em sua situação; também as pes-soas enfermas e aquelas que estejam por qualquer motivo impossibilita-das de se locomoverem serão examinadas no local em que se encontrem. Quando for determinada a reconstituição dos fatos, igualmente irá o juiz ao local onde tal prova deva ser realizada, a fim de acompanhá-la (art. 442 do CPC).

Não obstante ser a inspeção judicial ato pessoal do juiz, segundo dispõe o art. 441 do CPC poderá ele ser assistido de um ou mais peritos, sempre que os fatos a serem observados exijam conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos de que o magistrado não disponha. Os peritos a que alude o art. 441 estão sujeitos às disposições prescritas para os peri-tos em geral, no que se refere a impedimentos e suspeição (MOACYR AMARAL SANTOS, Primeiras linhas..., v. 2, n. 687; EGAS MONIZ DE ARAGÃO, Exegese..., p. 219).

As partes têm o direito de assistir à inspeção, prestando esclareci-mentos e fazendo observações que reputem de interesse para a causa (art. 442, parágrafo único, do CPC).

Concluída a diligência, o juiz mandará lavrar auto circunstanciado, em que deve ficar registrado tudo quanto for útil ao julgamento da causa, podendo ele ser instruído, como o laudo pericial, com desenhos, gráficos ou fotografias (art. 443). Este auto conterá naturalmente o registro daqui-lo que o juiz tenha observado (DEVIS ECHANDIA, ob. cit, v. 2, n. 306, p. 458), mas a valoração dos elementos de prova que ele haja feito não deve constar do auto, uma vez que somente na sentença final deverá o julgador emitir o seu juízo sobre a prova (JOÃO CARLOS PESTANA DE AGUIAR, ob. cit., p. 391).

É importante observar que a inspeção judicial não se restringe às percepções visuais apenas, podendo igualmente ter por objeto todas as impressões sensoriais, tais como as percepções táteis, auditivas, olfativas e inclusive as impressões cau-sadas no sentido gustativo (ROSENBERG, Tratado..., v. 2, § 117).

15

AUDIÊNCIA DE INSTRUÇÃO E JULGAMENTO

SUMÁRIO: 15.1 Audiência: 15.1.1 Conceito; 15.1.2 Designação; 15.1.3 Objeto - 15.2 Julgamento.

15.1 Audiência

15.1.1 Conceito

Audiência - ensinava J. M. FREDERICO DE SOUZA PINTO (Primeiras linhas..., v. 1, § 237) - significa a sessão em que o juiz pessoalmente ouve as partes, por si ou por seus advogados e procurado-res, defere seus requerimentos, profere sua decisão sobre as questões de fácil e pronta solução e publica suas sentenças, assim interlocutórias como definitivas.

Modernamente, o conceito e a função das audiências, em direito processual civil, transformaram-se, particularmente nos sistemas, como o nosso, que se orientam pelo princípio da oralidade. Segundo a con-cepção moderna, a audiência é a fase mais importante de todo o procedi-mento civil, destinada não só a possibilitar o contato direto do juiz com as partes e seus procuradores - e por meio deles o contato pessoal e imediato com as raízes sociais do conflito -, mas fundamentalmente para nela produzirem-se as provas orais, como o interrogatório e os depoi-mentos pessoais das partes, a inquirição das testemunhas e os esclareci-mentos dos peritos. Daí dizer-se, quando se quer aludir à audiência onde deve ter lugar a decisão da causa, "audiência de instrução e julgamento". Nem sempre, porém, a decisão da causa é proferida pelo juiz desde logo

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na própria audiência, embora este seja o procedimento recomendável. Em geral, os juizes, ou por excesso de serviço que os impede de examinar previamente com a necessária atenção o processo, ou porque as questões debatidas nas causas sejam extremamente complexas, acabam encerran-do a instrução e os debates orais e ordenando que os autos lhes venham conclusos para sentença que, em certos casos, só muito tempo depois será publicada.

Esta locução "audiência de instrução e julgamento" pode levar igualmente à falsa suposição de que tanto a instrução da causa seja toda ela realizada em audiência como o julgamento todo apenas se forme, no entendimento do magistrado, por ocasião da audiência. O que acontece, ao contrário disso, é que o julgamento, em seu verdadeiro sentido de íntimo convencimento que o julgador adquire sobre o litígio, começa a formar-se, em seu espírito, desde que ele recebe a petição inicial para exame.

A adoção do princípio da oralidade, na concepção do Código de 1973, po-rém, não vai ao extremo de transformar a audiência em formalidade necessária e imprescindível, em todos os casos, como ocorria na vigência do Código de Proces-so Civil anterior, onde o procedimento ordinário não poderia prescindir da reali-zação da audiência, dita de "instrução e julgamento" (art. 296, I), mesmo que nenhuma prova tivesse de ser nela produzida. Na verdade, não eram raros os casos em que a audiência era marcada, no procedimento ordinário, apenas para que as partes debatessem oralmente a causa, desde que inexistisse prova oral a ser feita em tal momento.

Nestes casos, a audiência era não só inútil, como um puro desperdício de tempo. Estas audiências ficaram conhecidas no foro como as "audiências de reportagem", porque os advogados, que em geral já haviam debatido ampla-mente a causa e exposto exaustivamente os seus argumentos, limitavam-se, uma vez aberta a audiência, a reportarem-se ao que já constava dos autos, após o que o juiz costumava encerrar a audiência, determinando que os autos lhe viessem conclusos para sentença. O que, no final das contas, fazia com que a audiência de "instrução e julgamento" não fosse nem de instrução nem de jul-gamento. Pura inutilidade a encher as pautas judiciais, servindo muitas vezes até mesmo de motivo para os juizes desculparem-se de não sentenciar com a presteza desejável.

O Código de 1973, ao introduzir a figura do julgamento antecipado da lide (art. 330). através do qual deverá o juiz conhecer desde logo do pedido, proferindo sentença, sem audiência, sempre que não houver necessidade de produção de prova oral. acabou com essa formalidade inútil.

No sistema vigente, não obstante a significativa relevância da audiência, como momento supremo da oralidade processual, ela somente terá lugar quando tiver efetivamente uma função processual a desempenhar.

Escapa a esta regra apenas o procedimento sumário, que não admite julga-mento antecipado da lide, justamente porque a resposta do demandado apenas na audiência será produzida, o que impõe a sua realização, mesmo que, em determi-nados casos, a controvérsia toda a respeito da qual as partes litiguem resuma-se numa "questão de direito" ou esteja toda ela contida em prova documental. Parece exigir igualmente a realização da audiência, não obstante a incidência subsidiária das regras do "processo de conhecimento" para a disciplina do processo de exe-cução, a ação de embargos do devedor, ainda nos casos em que não se faça necessária a produção de prova oral, em virtude de prescrever o art. 740 do CPC que o juiz, recebendo os embargos, deverá designar em seguida audiência de instrução e julgamento, sem qualquer ressalva indicativa da possibilidade do julgamento antecipado, como foi previsto, por exemplo, para o processo cautelar (art. 803 do CPC).

15.1.2 Designação

A audiência de instrução e julgamento deve ser designada na opor-tunidade em que o juiz proferir a decisão julgando saneado o processo, decisão esta que a praxe continua a designar como "despacho sanea-dor" (art. 331 do CPC), mas que, em verdade, não é despacho nem saneador, uma vez que ele somente é proferido depois que os verdadei-ros despachos e decisões de saneamento do processo tenham sido intei-ramente cumpridos, de modo que o juiz, pela decisão a que se refere o art. 331, possa declarar o feito saneado, e não por meio dela ordenar o saneamento, como acontecia com o despacho saneador do art. 294 do Código anterior. A Lei 10.444/2002 deu nova redação ao art. 331, dis-pondo que, no caso de versar a causa sobre direitos que admitam tran-sação, o juiz designará audiência preliminar, com a intimação das par-tes, podendo estas se fazer representar por procurador ou preposto, com poderes para transigir.

A audiência de instrução e julgamento realiza-se segundo a ordem estabelecida nos arts. 450-457 do CPC, devendo nela ter lugar a fase de conciliação (arts. 447 e 448 do CPC) sempre que o litígio versar sobre direitos patrimoniais de natureza privada, a respeito dos quais possam as partes transigir. Para esta obrigatória tentativa de conciliação, deverá o juiz, ao designar a audiência, ordenar o comparecimento pessoal das partes, a fim de ouvi-las e procurar conciliá-las, pondo fim ao litígio.

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Se o compromisso das partes for determinado apenas para a tentativa de conciliação, não estarão elas obrigadas a comparecer, entendendo-se que sua ausência signifique desinteresse em conciliar-se, caso em que a audiência terá curso normal, assim como podem as partes deixar de comparecer à audiência de conciliação se outorgarem a seus advogados mandato com poderes especiais para transacionar em juízo e aceitar conciliações judiciais.

Embora o Código estimulasse o princípio da conciliação, como forma de composição da lide, privavam-se dessa possibilidade as demandas que tivessem julgamento antecipado, nos casos do art. 330,1. Com a nova redação dada ao art. 331 pela Lei 10.444/2002, onde a conciliação poderá ter lugar, foi sanado o prin-cipal defeito de que se acusava o Código, ao estabelecer no art. 447 o momento para a tentativa de conciliação, apenas ao iniciar-se a audiência de conciliação e julgamento. A antecipação desse momento, agora, para a audiência preliminar do art. 331 pode ser um fator importante para o aumento do índice de solução dos conflitos judiciais através de conciliação. Porém, as causas que devam ter julga-mento antecipado, na hipótese do art. 330,1, continuam excluídas da possibilidade de conciliação.

Segundo dispõe o art. 450 do CPC, no dias e hora designados para a audiência, o juiz deverá declará-la aberta, mandando apregoar as partes e respectivos advogados. É o ato processual denominado pregão, comu-nicação verbal feita em voz alta pelo oficial de justiça ou porteiro anun-ciando o início da audiência e convocando as pessoas que dela devam participar.

15.1.3 Objeto

Ao iniciar a audiência, deverá o juiz fixar os pontos controvertidos da causa, a respeito dos quais admitir-se-á a produção de prova na audiência.

A determinação do art. 451 do CPC, de extrema importância para que a audiência cumpra sua verdadeira função, com racionalidade e economia de tempo, em geral não é observada pelos juizes que, literalmente submersos numa avalan-che de processos à espera de julgamento, que se contam em muitas comarcas do País aos milhares, vêm para a audiência sem haver examinado com a indispensável atenção as peculiaridades da causa, sendo-lhes assim impossível limitar a produ-ção da prova apenas aos pontos efetivamente controvertidos e relevantes para a

decisão. Neste caso, é comum perder-se tempo precioso a produzir prova supérflua ou impertinente, por não ter o magistrado que preside a audiência a necessária segurança para indeferir as provas desnecessárias.

Deve-se, porém, observar que a instituição da denominada audiência pre-liminar, introduzida em nosso direito pela Lei 8.952, de 13 de dezembro de 1994, poderá contribuir decisivamente para reduzir os inconvenientes atuais de nosso sistema, uma vez que obrigará o julgador a examinar detidamente a causa antes da realização da audiência preliminar, de modo a poder, nesse momento processual, tomar as decisões que a lei lhe atribui. Sendo assim, não apenas haverá maior racionalidade e economia na condução da prova, como o julgador estará amplamente capacitado a conduzir a audiência de instrução e julgamento com maior segurança.

A seguir, será ouvido o perito para que ele responda aos quesitos de esclarecimentos porventura formulados no prazo e pela forma indi-cados no art. 435. Ultrapassada esta fase, ou não sendo necessário o comparecimento do perito à audiência, o juiz tomará o depoimento pessoal das partes, primeiro do autor, depois do réu, caso esta prova haja sido requerida ou determinada de ofício pelo magistrado. Final-mente, serão inquiridas as testemunhas, primeiro as arroladas pelo autor, depois as do réu (art. 452).

A audiência deve ser una e contínua. Não sendo possível concluir num só dia a instrução, o debate e o julgamento, o juiz deverá suspender a audiência, marcando seu prosseguimento para uma data próxima (art. 455).

A audiência é ato público que deve realizar-se a portas abertas, a não ser nos casos em que a lei determine sua realização a portas fecha-das, conforme prescreve o art. 444 do CPC, nos casos indicados pelo art. 155.

O art. 454 estabelece que, finda a instrução, o juiz dará a palavra ao advogado do autor e a seguir ao do réu, bem como ao órgão do Ministério Público, sucessivamente, para que eles, no prazo de vinte minutos para cada um, produzam sustentação oral, examinando os principais elementos da prova existentes nos autos e fundamentando seus respectivos pontos de vista. Havendo litisconsortes ou terceiros intervenientes, o prazo de vinte minutos, somados aos dez minutos da prorrogação, dividir-se-á entre os de um mesmo grupo, procedendo-se do mesmo modo se houver igualmente assistentes ou litisconsortes no outro pólo da relação processual. Havendo oposição, o oponente sustentará suas razões em primeiro lugar, assim como o juiz, se tiver

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de julgar simultaneamente a ação e a oposição, desta conhecerá em primeiro lugar (art 61).

Os debates orais, que deveriam desempenhar uma importante função nos procedimentos orientados pelo sistema da oralidade, nunca tiveram em nossa prática judiciária o desempenho que seria desejável. Seja porque se encontrem sempre assoberbados pelo acúmulo extraordinário do serviço forense, seja, quem sabe, por não darem aos debates orais a devida importância, o certo é que, no mais das vezes, este episódio processual reduz-se ao ditado feito pelos advoga-dos e registrado pelo escrivão, na ata da audiência, das respectivas alegações, sem que o magistrado sequer as ouça; ou, frequentemente, ao dar-se a palavra aos advogados para a produção das alegações finais, limitam-se eles a reporta-rem-se ao que já consta dos autos, pedindo seja a procedência seja a improcedên-cia da ação.

Este é um fenómeno curioso de psicologia judiciária porque, se os debates orais costumam ser deturpados em primeira instância, mostram-se, ao contrário, rigorosamente fiéis à sua função quando produzidos nos tribunais superiores, nos casos em que a lei os permite (art. 554 do CPC). O art. 554 não fala em memoriais.

15.2 Julgamento

A prolação da sentença, segundo prevê o art. 456 do CPC, deverá ter lugar na própria audiência de instrução ou, se não o for, nos dez dias subsequentes à sua realização. O ideal, nos processos de tipo oral, onde a imediatidade e a concentração devem ser observadas, é que o magistra-do profira a sentença na própria audiência. Em geral, porém, em nosso foro os juizes abstêm-se de sentenciar desde logo na audiência, muitas vezes porque a causa oferece questões de fato ou de direito complexas a exigir meditação e pesquisa mais demorada, noutros casos porque não lhes tenha sobrado tempo para o prévio e adequado exame dos autos, ou a ocorrência de várias audiências no mesmo dia os deixem até mesmo sem o tempo necessário à prolação da sentença desde logo, sendo eles forçados, por tais circunstâncias, a determinar que os autos lhes sejam conclusos para sentença.

16

SENTENÇA

SUMARIO: 16.1 Conceito e natureza da sentença-16.2 Estrutura lógica da sentença - 16.3 Classificação das sentenças de procedência.

16.1 Conceito e natureza da sentença

Quando estudamos os atos jurídicos, tivemos oportunidade de ver qual a definição de sentença dada por nosso Código de Processo Civil. Abandonando as determinações doutrinárias, para fixar em critério ex-clusivamente prático, o legislador preferiu considerar como sentença todo ato jurisdicional que ponha termo ao processo, decidindo ou não o mérito da causa (art. 162, § 1.°).

No sentido legal, portanto, se o juiz, ao despachar a petição inicial da ação, recebê-la para ordenar seu registro e distribuição e a subsequen-te citação do réu, estará a proferir um mero despacho; se, todavia, inde-feri-la, nos casos previstos em lei (art. 295), tal ato não será mais despa-cho simples ou uma decisão interlocutória, e sim uma sentença.

Esta nomenclatura, como se sabe, teve em mira facilitar a determi-nação adequada dos recursos cabíveis contra cada classe de atos judi-ciais, superando, na intenção do legislador, as controvérsias históricas que marcaram a vigência do Código de 1939, no que dizia respeito à escolha dos recursos nele previstos para cada espécie de decisão judi-cial. O objeto de nosso exame, agora, não serão as sentenças tais como as define o art. 162, § 1.°, do CPC, e sim as verdadeiras sentenças de mérito, que - ao contrário daquelas com que o juiz, por exemplo, inde-fere a petição inicial, ou ordena o arquivamento do processo (art. 267. II e HL e § 1.°) - devem conter os seus elementos estruturais básicos.

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indicados pelo art. 458 do CPC, ou seja, o relatório, a fundamentação e o dispositivo.

A sentença - proferida no "processo de conhecimento" - é o ato que encerra o processo e põe termo à relação processual. Diz MOACYR AMARAL SANTOS (Primeiras linhas..., v. 3, n. 699): "A sentença é o ato culminante do processo. Proferindo-a, o juiz dá cumprimento à obri-gação jurisdicional do Estado. Por ela se esgota a função do juiz". E o mesmo princípio que está contido nos arts. 2.°, 128 e 463 do CPC.

A ideia de que a sentença seja o ato de encerramento da relação processual é universalmente aceita no direito moderno, por razões que já foram sumariamente por nós indicadas, tendo sido proclamada por CHIOVENDA (Instituições..., v. 1, n. 36), CARNELUTT1 (IstituzionL., v. 2, n. 480), LIEBMAN (Embargos do executado, n. 70, Processo de execução, n. 18 e Manuale..., v. 1, n. 106) e ROSENBERG (Tratado..., v. 2, § 129), para citar apenas os processualistas de maior renome.

LIEBMAN, quando trata da sentença, que ele considera o ato jurisdicional por excelência, além de afirmar que, sendo ela definitiva, conclui e exaure o processo (Manuale..., p. 217), declara que a função jurisdicional consta funda-mentalmente de duas espécies de atividades: uma destinada a descobrir e formu-lar a regra jurídica concreta que deve regular o caso; outra consistente em ope-rações práticas necessárias a tornar efetivo o conteúdo daquela regra que o juiz estabelecera como diseiplinadora do caso concreto. Por meio dessas operações práticas, o ato jurisdicional interfere e modifica os fatos da realidade, enquanto "na cognição a atividade do juiz é prevalentemente de caráter lógico" {Processo de execução, p. 79-80).

A sentença, no "processo de conhecimento", limita-se, segundo LIEBMAN {Embargos do executado, p. 131), a "aplicar a sanção", encerrando o respectivo processo e transferindo para uma segunda relação processual (executória) o de-senvolvimento das atividades tendentes a "produzir no mundo da realidade a modificação do estado de fato necessária para fazê-lo coincidir com a vontade da lei (execução), função esta que é logicamente subsequente à 'aplicação da san-ção'" (Embargos do executado, loc. cit.), que LIEBMAN considera a essência da condenação.

Daí a correção da assertiva de que o "processo de conhecimento" encerra-se com a sentença, que é o ato que exaure este tipo de aúvidade jurisdicional.

Não será, portanto, apropriado que tratemos aqui das sentenças que, além de "descobrir e formular" a regra legal aplicável ao caso concreto, desde logo a impo-nha, na mesma relação processual, de modo a "tornar efetivo o conteúdo daquela

regra que o juiz estabelecera como disciplinadora do caso concreto", tal como acontece, por exemplo, com a ação de mandado de segurança, com a ação de des-pejo, ou de depósito (art. 904 do CPC), com a ação de reivindicação, com as ações possessórias, com as ações de demarcação e divisão e tantas outras, cujas sentenças definitivas de mérito não extinguem a relação processual nem exaurem o ofício jurisdicional. Mesmo nas demandas do tipo das ações de petição de herança e sonegados, onde a atividade necessária a "tornar efetivo o conteúdo da regra estabelecida pelo juiz como disciplinadora do caso concreto" não corresponde a uma atividade prática transformadora da realidade, não se pode deixar de reco-nhecer que uma atividade jurisdicional subsequente à sentença existe, na mesma relação processual, de modo que a "pronúncia" do juiz não a encerra.

É verdade que a estrutura formal de uma sentença mandamental ou executiva em nada difere daquela das sentenças com que se encerra o "processo de conhecimento", assim como nem toda sentença que o en-cerra depois de ultimada a instrução da causa será necessariamente de mérito, podendo ocorrer que o juiz a pronuncie para reconhecer a ausên-cia de um pressuposto processual, só então verificado (J. C. BARBOSA MOREIRA, O novo processo civil brasileiro, § 10,1, 1).

Mesmo assim, as observações precedentes foram necessárias na medida em que utilizamos o conceito de sentença como ato final por meio do qual o juiz encerra o processo, circunstância que, como se viu e melhor se verá ao examinarmos as ações executivas e mandamentais, nem sempre acontece.

Costuma-se classificar as sentenças em definitivas e terminativas, segundo definam o juízo (J. FREDERICO MARQUES, Manual.., v. 3, n. 525), "concluindo-o e exaurindo na instância ou grau de jurisdição em que foi proferida", ou encerrem o processo sem decidir o meritum causae, nas hipóteses do art. 267 do CPC, caso em que a sentença seria terminativa sem ser definitiva.

Como se vê, o conceito dado pela doutrina para a sentença definitiva empre-ga o vocábulo definir como declarar de modo irrevogável e definitivo o direito aplicável ao caso litigioso, à medida que seriam definitivas somente as sentenças de mérito. Todavia, é necessário não esquecer que este vocábulo, em sua origem semântica, tanto podia significar definir quanto pôr fim a um determinado litígio, ou estabelecer os limites^ísicos ou geográficos da coisa litigiosa, tal como na ação de demarcação, denominada finium regundorum. A palavra finiens, finientis, em latim, significa aquilo que acaba, ou que limita; e o verbo finio.fmire, corresponde

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tanto ao conceito de terminar, acabar de fazer, como demarcar, limitar, pôr limites. Daí o verbo definire, significando tanto explicar quanto pôr termo, terminar (sobre esta ambiguidade essencial, OVÍDIO A. BAPTISTA DA SILVA, A ação cautelar inominada no direito brasileiro, p. 207).

Por considerarem muitos processualistas, especialmente aqueles mais direta-mente ligados ao pensamento de CARNELUTTI, que o processo cautelar, por não compor definitivamente a lide, não comporta sentença de mérito, acabam denun-ciando a identificação entre sentença definitiva de mérito e coisa julgada, que os mesmos em geral se recusam a admitir.

16.2 Estrutura lógica da sentença

Toda sentença judicial encerra o que se chama urn juízo de concre-ção ou um juízo de subsunção da norma legal ao caso concreto. O juiz, ao contrário do administrador, tem por função específica realizar o enlace entre a norma jurídica abstrata e o caso concreto que lhe é sub-metido a julgamento. Esta operação lógica deve necessariamente ocor-rer tanto no "processo de conhecimento" quanto nos demais, particu-larmente no processo cautelar, que é processo de sentença também. Qualquer que seja a natureza do processo - até mesmo no processo de execução por créditos (Livro II do CPC) e nos procedimentos de juris-dição voluntária -, o mesmo fenómeno de aplicação da lei (concreção) por um terceiro imparcial dar-se-á de igual modo, apenas variando em intensidade o elemento lógico, que poderá tornar-se rarefeito, como acontece no processo cautelar, na medida em que se intensifica ofator volitivo do ato jurisdicional correspondente.

Tendo-se em conta esta operação lógica de concreção da norma para determinar sua aplicação ao caso concreto, costuma-se dizer que toda sentença corresponde a um silogismo, do qual a premissa maior seria a lei, os fatos e circunstâncias do caso concreto a premissa menor, sendo a conclusão do silogismo representada pelo denominado disposi-tivo da sentença, que é realmente a parte decisória do julgado.

A ideia de que a sentença seja o resultado de um silogismo corresponde a uma simplificação exagerada e pouco fiel daquilo que verdadeiramente acontece com a formação do convencimento do juiz. Poder-se-ia mesmo dizer que a figura lógica de um silogismo jamais terá lugar no período de formação mental da sentença, ou, se realmente houver um silogismo, antes de ser ele a formar a sentença, será esta - depois de formada no espírito do julgador- que dará ensejo

a um silogismo, montado apenas com o fim de justificar e fundamentar a concre-ção da norma legal.

Só depois da sentença formada, como ato intelectivo complexo, ou, como diz LUÍS RECASÉNS SICHES (Introducción ai estúdio dei derecho, p. 203), como estrutura unitária de sentido, é que o julgador tratará de dar-lhe a forma de um silogismo.

Mesmo assim, e apesar de tudo, a ideia da sentença como um silogismo auxilia-nos a compreender, senão o ato de julgar, ao menos o resultado daquela operação lógica a que se denomina juízo de concreção.

Expliquemos, com exemplos, o que se pretende mostrar quando se afirma que toda sentença é formada por um silogismo. Tomemos um preceito legal qual-quer, digamos o art. 1.122 do CC, que regula o contrato de compra e venda. Segundo este preceito, dá-se a compra e venda quando um dos contratantes se obriga a transferir o domínio de certa coisa e o outro a pagar-lhe certo preço em dinheiro. Certamente todos os negócios jurídicos desta natureza estão sujeitos a tal disciplina. Todavia, a determinação de que o contrato existente, por exemplo, entre Pedro e António é uma compra e venda e a constatação de que Pedro, que figura no negócio jurídico como comprador, pagara o preço e reclama legitima-mente a entrega da coisa comprada é tarefa específica do juiz, e não do legislador, que nunca poderá descer às particularidades do caso concreto. O juiz é que deve concretizar o abstrato da norma jurídica disciplinadora do caso. Dirá ele, então, na sentença: (premissa maior) segundo dispõe o art. 1.122 do CC (art. 481 do novo CC), dá-se um contrato de compra e venda quando um dos contratantes se obriga a transferir o domínio e o outro a pagar-lhe o preço em dinheiro; (premissa menor) como está demonstrado nos autos, António prometeu transferir o domínio da coisa litigiosa a Pedro, tendo este pago inteiramente o preço; (conclusão) cabe, portanto, a António o dever de entregar a coisa vendida a Pedro (declaração sen-tenciai ou eficácia declaratória da sentença), motivo pelo qual condeno-o (eficá-cia condenatória) a que a entregue ao autor

É, em última análise, esta estrutura silogística, prescrita pelo art. 458 do CPC, que todas as sentenças conterão, ou seja, todas elas, inde-pendentemente do modo pelo qual o julgador haja formado seu conven-cimento, deverão expressar-se através dos seguintes elementos estrutu-rais: a) o relatório; b) os fundamentos; c) o dispositivo ou decisão.

A sentença a que falte qualquer destes elementos será nula. Mesmo o relatório, onde o juiz faz a simples descrição resumida das principais ocorrências verificadas no curso df processo, indicando o pedido formu-lado pelo autor e seus fundamentos, bem como as defesas opostas pelo réu, tem importância decisiva como porção do ato sentenciai. Através

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dele é que as partes podem aferir se o julgador examinou com a devida atenção todas as peculiaridades da prova existente nos autos e a funda-mentação jurídica com que cada litigante pretende demonstrar a proce-dência de suas alegações.

Concluído o relatório, passará o juiz ao segundo elemento da sen-tença, que é a exposição de seus fundamentos, em que o julgador não se limitará a expor - como fizera no relatório - as alegações dos litigantes, senão que as analisará, para rejeitá-las ou aceitá-las, como fundamentos de sua decisão.

Finalmente, depois de haver exposto os fundamentos com base nos quais ele dará pela procedência ou improcedência da pretensão formulada pelas partes, passará o juiz ao derradeiro estágio da sentença, que é verdadeiramente a decisão, ou o que o art. 458, III, do CPC denomina dispositivo da sentença. É sobre esta porção do ato jurisdi-cional que se formará, nos processos contenciosos, a coisa julgada material, segundo dispõem os arts. 467 e 468 do CPC, conforme veremos a seguir.

E importante observar que o legislador, ao conceber o dispositivo da senten-ça, limitou-se a indicar, como seu conteúdo, o ato através do qual o juiz resolve as questões litigiosas que as partes submetem a seu julgamento. Tratando-se de "pro-cesso de conhecimento", em que apenas terão lugar sentenças de natureza decla-ratória, constitutiva e condenatóna, é pertinente conceber-se a sentença como ato de simples resolução de questões. Na verdade, nestas espécies de sentença o ele-mento imperativo próprio do ato jurisdicional, expresso na ordem, ou no decreto judicial, tem uma significação praticamente irrelevante. Mesmo assim, em inúme-ras sentenças de natureza (preponderantemente) constitutiva ou (preponderante-mente) condenatória, surgem eficácias internas (diretas) executivas ou manda-mentais, contidas em decreto judicial. A sentença que julga procedente a ação de separação judicial determina (eficácia mandamental) sua respectiva averbação no registro civil de casamento, efeito este que, de certo modo, ultrapassa a simples resolução de questões que deveria sempre ficar, como verdadeiramente fica, no plano lógico das normas, tal como se verifica no ato de subsunção (concreção) realizado pelo julgador nas sentenças declaratórias, constitutivas e condenatórias, se as demais eficácias próprias das sentenças não surgirem.

16.3 Classificação das sentenças de procedência

Apenas por razões metódicas e para evitarem-se incompreensões, não trataremos do tema relativo à classificação das sentenças. Não que

ele não seja, provavelmente, o tema mais importante de toda a moderna ciência processual civil. É que, ao contrário do que muitos supõem, a única classificação que os processualistas adotam como legítima, assim como as demais, cataloga as sentenças de procedência segundo a nature-za da pretensão de direito material contida na demanda, vale dizer, clas-sificam-se as sentenças segundo a natureza da ação de direito material posta pelo autor em sua demanda, de modo que tanto faz classificarem-se as sentenças (de procedência) quanto classificarem-se as ações de direito material. Como esta tarefa já foi cumprida por nós, quando trata-mos das ações no processo de conhecimento, nada mais poderíamos neste momento fazer senão repetir o que antes dissemos, reafirmando que as sentenças (de procedência) serão, conforme a espécie de preten-são posta em causa pelo autor, declaratórias, constitutivas; condenató-rias, executivas ou mandamentais.

Os elementos e indicadores que nos permitirem proceder a este tipo de classificação das sentenças são os mesmos de que nos valemos para classificar as ações de direito material. Nem poderia ser diferente, tendo em vista a natureza da atividade jurisdicional e a correspondência neces-sária - pressuposta em todo sistema de processo civil de tipo dispositivo como o nosso - entre pedido e sentença, a exigir que a sentença de pro-cedência corresponda à pretensão formulada pelo autor e seja de idêntica natureza. Se o autor pediu apenas declaração, a sentença não poderá produzir condenação ou constituição; se o pedido foi de constituição, o juiz não poderá sentenciar condenando o réu. Esta incongruência entre ação (de direito material) e a respectiva sentença de procedência ofende-ria os arts. 4.° e 128 do CPC (PEDRO ARAGONESES, Sentencias con-gruentes, passim, especialmente p. 6 a 22).

O que realmente poderia interessar, nesta instância, seria a análise das eficácias contidas em cada sentença e a forma como elas se produzem (efeitos) relativamente às partes e aos terceiros estranhos ao processo. É o que faremos, oportunamente, ao tratarmos da coisa julgada.

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17 RECURSOS

SUMÁRIO: 17.1 Conceito e espécies de recursos: 17.1.1 Conceito; 17.1.2 Espécies - 17.2 Efeitos dos recursos: 17.2.1 Efeito devolutivo; 17.2.2 Efeito suspensivo; 17.2.3 Efeito de retratação - 17.3 Juízo de admissibilidade ejuízo de mérito: 17.3.1 Juízo de admissibilidade; 17.3.2 Requisitos de admissibilidade; 17.3.3 Exame de mérito; 17.3.4 Pressupostos de admissibilidade - 17.4 Recursos em espécie: 17.4.1 Apelação; 17.4.2 Agravos; 17.4.3 Embargos; 17.4.4 Recurso extraordinário; 17.4.5 Recurso especial; 17.4.6 Recurso adesivo; 17.4.7 Embargos de divergência; 17.4.8 Interposição simultânea de recurso extraordinário e especial.

17.1 Conceito e espécies de recursos

17.1 A Conceito

Recurso, em direito processual, é o procedimento através do qual a parte, ou quem esteja legitimado a intervir na causa, provoca o reexa-me das decisões judiciais, a fim de que elas sejam invalidadas ou reformadas pelo próprio magistrado que as proferiu ou por algum órgão de jurisdição superior. Daí, desta ideia de reexame, é que se explica o vocábulo recurso, originário do verbo recursarey que em latim significa correr para trás ou correr para o lugar de onde se veio (re + cursus). Sendo o processo um progredir ordenado no sentido de obter-se com a sentença a prestação da tutela jurisdicional que se busca, o recurso corresponderá sempre a um retorno (um recursus) no sentido de refluxo sobre o próprio percurso do processo, a partir daquilo que se decidiu para trás, a fim de que se reexamine a legitimidade e os próprios fundamentos da decisão impugnada.

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J. C. BARBOSA MOREIRA (Comentários..., p. 229) dá a seguinte definição de recurso, que nos parece a melhor e a mais abrangente, tendo em vista o direito brasileiro: "Recurso é o remédio voluntário idóneo a ensejar, dentro do mesmo processo, a reforma, a invalidação, o esclare-cimento ou a integração de decisão judicial que se impugna".

Esta definição tem a vantagem de ressaltar dois elementos impor-tantes que integram o conceito de recurso no direito brasileiro: a) sua condição de remédio voluntário, posto à disposição dos litigantes ou eventualmente do representante do Ministério Público ou de terceiros juridicamente interessados, para que os mesmos livremente provoquem o reexame da decisão judicial impugnada, o que exclui do campo dos recursos determinadas formas de revisão de sentenças judiciais que não sejam voluntariamente exigidas pelas partes, como oportunamente vere-mos; b) a circunstância de corresponder o recurso a um expediente téc-nico a ter lugar na mesma relação processual, ou seja, todo recurso pres-supõe e prolonga a pendência da causa, ficando, a partir deste elemento conceituai, fora do campo dos recursos em sentido estrito as formas de impugnação a decisões judiciais provenientes de outra relação proces-sual simultânea ou posterior, tal como ocorre, por exemplo, em nosso direito, com a ação de embargos de terceiro (art. 1.046 do CPC) ou com a ação rescisória (art. 485 do CPC).

A definição dada pelo Prof. ALCIDES DE MENDONÇA LIMA {Introdução aos recursos cíveis, n. 115) apresenta sobre a definição an-terior a vantagem de incluir no conceito de recurso a ideia de sucumbên-cia, ao relacionar o recurso a um expediente de que se vale o vencido para provocar o reexame da decisão. Eis a sua definição: "Recurso é o meio, dentro da mesma relação processual, de que se pode servir a parte venci-da em sua pretensão ou quem se julgue prejudicado, para obter a anula-ção ou a reforma, parcial ou total, de uma decisão".

Isto, todavia, que à primeira vista poderia aparecer como uma van-tagem, pois a ideia de recurso importa sem dúvida a de inconformidade com a decisão de que se recorre,' o que, por sua vez, sugere-nos a existên-cia de algum prejuízo causado ao recorrente, poderia excluir, ou deixar sem explicação, os recursos interpostos pelo órgão do Ministério Público que, nos casos em que intervém na causa, como simples custos legisy não poderá ser tido como sucumbente.

Daí nossa preferência pela definição anterior, por excluir do conceito de recurso este elemento, embora se deva reconhecer que a sucumbên-

cia é, sem dúvida, como logo veremos, um de seus mais importantes pressupostos.

Por outro lado, restringindo-se o objeto dos recursos à anulação ou reforma da decisão impugnada pelo recorrente, tal como o mestre gaúcho os define, ficariam fora do conceito os embargos de declaração (art. 535 do CPC), que ele próprio considera verdadeiros recursos (ob. cit., n. 153), desde que este expediente técnico não tem por fim nem a anulação nem a reforma da decisão recorrida, nem mesmo pressupõe a sucumbência do embargante.

Tem-se dito que o instituto dos recursos, em direito processual, responde a uma exigência psicológica do ser humano, refletida em sua natural e compreensí-vel inconformidade com as decisões judiciais que lhes sejam desfavoráveis. Não resta dúvida de que este sentimento é decisivo para explicar a criação e a perma-nência, historicamente universal, dos institutos dos recursos. Mas não se pode esquecer que sua disciplina sistemática, num dado ordenamento jurídico, a ponto de considerar-se o recurso como uma prerrogativa processual, ou mesmo um direi-to do recorrente, ou até, como certos processualistas o consideram, uma ação, pressupõe a existência de uma certa organização hierárquica e burocrática do poder estatal incumbido de prestar jurisdição.

Daí a ideia, de certo modo implícita no conceito de recurso, de uma autorida-de hierarquicamente superior ao magistrado que haja proferido a decisão de que se recorre, ou seja, da existência do duplo grau de jurisdição.

17.1.2 Espécies

Os recursos podem ser subdivididos em ordinários e extraordiná-rios. Esta é uma classificação frequente tanto na doutrina brasileira quanto na lição dos processualistas europeus. Os critérios seguidos pelos sis-temas jurídicos europeus, no entanto, não correspondem, quanto a esta questão, aos aceitos pelo direito brasileiro. Para determinados sistemas europeus - como é o caso do direito italiano e português -, são ordinários todos os recursos que correspondam a meios de impugnação formulados na mesma relação processual, capazes de prolongar a pendência da causa evitando a formação da coisa julgada; enquanto consideram-se extraor-dinários os recursos interpostos contra uma sentença já transita em jul-gado, como ocorre, por exemplo, no direito potíuguês, com o recurso de revisão (art. 771) e a oposição de terceiros (art. 778); ou com a denomi-nada oposizione di terzo do direito italiano (art. 404).

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Tendo em vista o conceito de recurso que acaba de ser exposto, consagrado pelo direito brasileiro, seríamos forçados a admitir que, para nós, todos os recursos seriam ordinários, no sentido em que os definem os sistemas jurídicos europeus, uma vez que não considera-mos como recursos todos os meios autónomos de impugnação, como a ação rescisória e os embargos de terceiro, que poderiam ser assimila-dos a essas formas de ataque às sentenças existentes naqueles sistemas processuais. Daí a sugestão do Prof. J. C. BARBOSA MOREIRA de arquivar-se definitivamente a classificação dos recursos em ordinários e extraordinários, dada sua total irrelevância para o direito brasileiro (Comentários..., p. 249).

Há, todavia, um outro critério, este sim de grande importância para a classificação dos recursos, que leva em conta não a circunstância de ter ou não ocorrido a coisa julgada, e sim a natureza ou os pressupostos que se exijam para sua fundamentação.

Segundo este critério, os recursos dizem-se de fundamentação li-vre, ou ilimitada, e de fundamentação vinculada, ou limitada (J. C BARBOSA MOREIRA, Comentários..., p. 247; ALCIDES DE MEN-DONÇA LIMA, introdução..., n. 132), ou, como prefere chamá-los J. FREDERICO MARQUES, recursos normais e recursos especiais, se-gundo pressuponham apenas a sucumbência ou exijam, além dela, outros pressupostos {Instituições..., v. 4, n. 872).

De acordo com este critério, temos, no direito brasileiro, na apela-ção o exemplo típico de recurso de fundamentação livre, à medida que ela pressupõe apenas a sucumbência do recorrente, ao passo que os em-bargos infringentes (art. 530 do CPC), o recurso especial (art. 105, III, da CF) e o recurso extraordinário (art. 102, III, da CF) serão recursos de fundamentação vinculada, ou especial, uma vez que cada um deles, além da sucumbência, pressupõe outros requisitos de admissibilidade.

17.2 Efeitos dos recursos

O primeiro efeito decorrente da interposição do recurso, como já vimos, é o de prolongar a pendência da causa, evitando a formação da coisa julgada (J. FREDERICO MARQUES, Instituições..., n. 144). Além dessa consequência natural e comum a todos os recursos, a doutrina costuma identificar outros efeitos provocados pelos recursos. São eles, generica-mente considerados, o denominado efeito devolutivo e o efeito suspensivo.

17.2.1 Efeito devolutivo

Chama-se efeito devolutivo a transferência a um órgão de jurisdição superior do conhecimento da matéria decidida pelo magistrado de grau inferior (J. C. BARBOSA MOREIRA, Comentários..., n. 144), o que importa necessariamente em confiar a um órgão ou tribunal diferente daquele que proferiu a decisão impugnada a competência para o reexame da causa (ALCIDES DE MENDONÇA LIMA, Introdução..., n. 186).

O Prof. FREDERICO MARQUES {Instituições..., v. 4, n. 908) considera que todos os recursos têm efeito devolutivo, mesmo quando a decisão impugnada é entregue ao mesmo juiz que a proferiu, a fim de que ele próprio a reexamine. Assim, haveria devolução quando houvesse pedido de reexame, não importando a quem a lei atribuísse a competência para o julgamento da controvérsia suscitada no recurso. Nesse sentido, naturalmente, todos os recursos terão efeito devolutivo.

Nossa doutrina, no entanto, desde os velhos processualistas do século XIX, entende por efeito devolutivo a circunstância de confiar-se o reexame da decisão recorrida a um órgão de hierarquia superior, razão pela qual não haveria efeito devolutivo sempre que o exame da controvérsia contida no recurso fosse entregue ao próprio magistrado prolator da decisão impugnada. PAULA BAPTISTA, refe-rindo-se à apelação, dizia: "Pelo efeito devolutivo a causa como que renasce na 2.a

instância" (ob. cit., § 231, nota 2). Igualmente, ODILON DE ANDRADE, ao tratar do recurso de apelação, em comentários ao Código de 1939, dizia que este recurso "devolve sempre ao juiz superior o conhecimento integral das questões suscitadas e discutidas na primeira instância" {Comentários ao Código de Processo Civil, v. 9, p. 169). No mesmo sentido era a lição de PEDRO BAPTISTA MARTINS {Recur-sos e processos da competência originária dos tribunais, n. 159).

Na doutrina estrangeira, é corrente o entendimento de que o efeito devolutivo só se verifica quando o reexame é atribuído a um órgão ou tribunal superior (ROSENBERG, Tratado..., § 132,1,2, b; SCHÕNKE, ob. cit., § 84; PROVINCIALI, Delle impugnazione in generale, p. 41).

Deve-se, todavia, observar que a Ordenança Processual Civil alemã limita o conceito de recurso aos meios de impugnação das decisões judiciais a fim de se obter seu reexame por um tribunal superior, ficando portanto fora deste conceito as demais espécies (FRIEDRICH LENT. ob. cit., § 72).

17.2.2 Efeito suspensivo

Diz-se que determinado recurso possui efeito suspensivo quando sua interposição impede que os efeitos da sentença impugnada se produ-

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_D—«w, assim, o estado de ineficácia peculiar à sentença sujeita a recurso. Como observa i. C. BARBOSA MOREIRA (Comentários..., n. J44), a denominação mesma de efeito suspensivo, para caracterizar o fenómeno que estamos examinando, é equívoca, pois a interposição do recurso rigorosamente não suspende, senão que prolon-ga apenas o estado de ineficácia a que a sentença sujeita a recurso já estava submetida antes que eJe fosse interposto.

Para entender-se o sentido do efeito suspensivo outorgado aos re-cursos, é necessário ter em conta duas situações criadas pelas decisões

judiciais passíveis de reexame por aJgum órgão de jurisdição superior. A primeira consequência é a própria existência da sentença que, como os demais atos estatais, deveria ser capaz de produzir seus efeitos naturais a partir do momento em que passasse a ter existência legal. Impedir que eles se produzam desde logo, em virtude da interposição do recurso, poderia resultar num penoso e injustificado retardamento na realização

do direito que a sentença reconhecesse ao vencedor, sempre que o tribu-nal superior a confirmasse. Todavia, a segunda consequência, tão impor-tante e grave quanto a primeira, surgiria no caso de - outorgando-se ao vencido o direito de provocar o reexame da sentença que lhe fora desfa-vorável - permitir-se que a mesma, ainda sujeita ao reexame pelo tribunal superior, fosse imediatamente observada e cumprida, como se fosse uma decisão definitiva e irrevogável. Neste caso, quando o tribunal superior [ad quem), ao apreciar o recurso, o julgasse procedente e modificasse iquilo que a sentença recorrida dispusera, poderia suceder que a decisão uperior encontrasse já um fato consumado decorrente do cumprimento titegral da sentença precedente, sempre que seus efeitos produzissem

ma situação de fato irreversível. Tendo em vista.essas contingências é que se procura alcançar um

)nto de equilíbrio ideal entre a efetiva e pronta realização do direito conhecido na sentença, permitindo-se que ela, não obstante sujeita a curso, produza desde Jogo seus efeitos, caso em que a impugnação osta não teria efeito suspensivo, e a necessidade de preservar o direi- do vencido, consistente em obter não só o reexame da decisão im- gnada, mas fundamentalmente em torná-lo praticamente eficaz, sem empecilhos porventura criados pelos efeitos já produzidos pela sen- ça recorrida, o que somente poderá ser obtido dando-se ao recurso reito de suspender os efeitos da sentença, até que o tribunal adquem ?recie e decida.

Como observa o Prof. ALCIDES DE MENDONÇA LIMA {Introdução..., n, 178, p. 293), a tendência das modernas legislações de processo civil é ampliar o campo de permissão da execução provisória das sentenças de primeiro grau, redu-zindo-se, portanto, as hipóteses em que se dê efeito suspensivo aos recursos. Em verdade, como mostramos amplamente {Comentários..., p. 27-68), ao contrário do que ocorre no Brasil, onde a supressão do efeito suspensivo da apelação se restringe às minguadas hipóteses do art. 520, nos sistemas jurídicos europeus a tendência é limitar sempre mais os casos de outorga de efeito suspensivo aos recursos, a ponto de torná-lo uma consequência excepcional e rara. A respeito do que ele entende por "glorificação dos recursos", em detrimento do julgamento de primeiro grau e, naturalmente, com maior ou menor ofensa ao princípio da oralidade, são conhecidos os trabalhos de MAURO CAPPELLETTI (além de sua obra funda-mental - La testimonianza delia parte nel sistema delVoralità ~, vide a série de ensaios reunidos na tradução argentina denominada Proceso, ideologia, socie-dad), em que ele defende um programa de redução da importância dos recursos em favor do julgamento feito pelo magistrado que haja, efetivamente, presidido a instrução da causa e tenha estado em contato direto com a prova.

17.2.3 Efeito de retratação

Conceituando-se, como acabamos de fazer, o efeito devolutivo como a transferência a um órgão de jurisdição superior da competência de reexaminar e novamente julgar a matéria discutida no recurso, surge a necessidade de se definir um outro efeito especial que determinados re-cursos podem ter no direito brasileiro. Referimo-nos aos casos em que a devolução do conhecimento da matéria impugnada no recurso se faça ao próprio juiz prolator da decisão recorrida, ou seja, quando na verdade não haja um verdadeiro efeito devolutivo, tal como o entendemos.

Quando o recurso é interposto a fim de que o próprio juiz prolator da decisão recorrida reexamine o que fora por ele próprio decidido, diz-se que o recurso provoca um juízo de retratação, desde que, neste caso, ao contrário daquele em que ocorra apenas o efeito devolutivo em toda sua pureza, dá-se ao julgador que tivera sua decisão impugnada a possi-bilidade de revê-la e modíficá-la.

Em certos casos, pode suceder que, ao lado do efeito de retratação de um determinado recurso, possua ele igualmente o efeito devolutivo, que ficará protraído para um momento subsequente do procedimento recursal. Diz-se, nesta hipótese, que o efeito devolutivo é diferido. Era o que acontecia nos agravos antes da reforma introduzida pela í J»Í

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9.139/95, que continham, num primeiro momento decisório, um juízo de retratação e, eventualmente, um juízo posterior de devolução a um tribunal de grau superior.

17.3 Juízo de admissibilidade e juízo de mérito

17.3.1 Juízo de admissibilidade

Todo provimento jurisdicional, desde o mais simples e singelo, importa invariavelmente numa dupla investigação de sua pertinência e legitimidade, o que é facilmente compreensível tendo-se em conta que a atividade jurisdicional produz uma nova relação jurídica entre os litigan-tes e o próprio Estado, além da relação jurídica de direito material que constitui propriamente o objeto do processo, ou a lide, que é a res in judicio deducta.

Importa, portanto, investigar, num primeiro momento, se a decisão a ser proferida atende e conforma-se com as exigências impostas pelo próprio processo. Somente depois deste exame é que o magistrado estará apto a apreciar a procedência ou improcedência das alegações formula-das pelas partes, deferindo ou indeferindo seus pedidos.

Também nos recursos haverá sempre a necessidade de uma inves-tigação prévia, destinada a averiguar se o recurso é possível, numa dada hipótese, e se aquele que o interpôs cumpriu todos os requisitos exigi-dos por lei para que tal inconformidade merecesse o reexame pelo ór-gão encarregado de julgá-lo. Este exame preliminar sobre o cabimento do recurso denomina-se juízo de admissibilidade, transposto o qual, em sentido favorável ao recorrente, passará o órgão recursal ao juízo de mérito do recurso.

Não se deve, porém, supor que todas as questões processuais sejam sempre matéria pertinente ao juízo de admissibilidade do recurso. Muitas vezes o seu mérito é uma simples questão processual, como, por exem-plo, quando o juiz indeferiu a produção de uma prova, por considerá-la imprópria, supérflua ou dispensável, ou por tê-la como proposta intem-pestivamente - se a parte que se julga prejudicada com tal indeferimento recorrer, o mérito de seu recurso será indiscutivelmente uma mera ques-tão processual, pertinente à admissibilidade da prova. E o que acontece também quando o recorrente vir seu recurso liminarmente indeferido pelo magistrado que o deveria encaminhar ao juízo recursal e tenha de

interpor um segundo recurso contra o indeferimento, a fim de que o recurso originário suba afinal à consideração do juízo ad quem - o mérito deste segundo recurso será naturalmente uma questão processual, corres-pondente ao reexame que se pede ao órgão recursal do cabimento do recurso originário, cuja admissibilidade fora negada pelo juízo a quo. Isto, como veremos, pode acontecer, e com alguma frequência acontece, no procedimento do recurso de apelação.

17.3.2 Requisitos de admissibilidade

Os requisitos de admissibilidade dos recursos podem ser classi-ficados em pressupostos intrínsecos e pressupostos extrínsecos. Entre os primeiros estão: 1) o cabimento do recurso, ou seja, a existência, num dado sistema jurídico, de um provimento judicial capaz de ser atacado por meio de recurso; 2) a legitimação do recorrente para interpô-lo; 3) o interesse no recurso; 4) a inexistência de algum fato impeditivo ou extintivo do direito de recorrer. São requisitos extrínsecos: 1) a tempestividade; 2) a regularidade formal; e 3) o preparo (J. C. BARBOSA MOREIRA, O novo processo civil brasileiro, § 16, II, 1).

Tais requisitos dizem-se pressupostos genéricos, pois são exigidos para to-dos os recursos, cada um dos quais, por sua vez, ficará ainda submetido a outras exigências especiais de admissibilidade que apenas a ele digam respeito. Deve-se igualmente observar que mesmo os requisitos genéricos às vezes não são exigidos como condição de admissibilidade para certos recursos. Assim, por exemplo, nin-guém negaria que o preparo seja um pressuposto genérico de admissibilidade para os recursos, e, no entanto, não se exige preparo no agravo retido (art. 522, pará-grafo único, do CPC) e nos embargos de declaração (art. 536).

Os pressupostos genéricos podem ser classificados também em objetivos e subjetivos (J. FREDERICO MARQUES, Instituições..., v. 4, n. 888; CARLOS SILVEIRA NORONHA, Do agravo de instrumento, n. 34). No primeiro grupo situam-se: 1) a existência do recurso; 2) a adequação; 3) a tempestividade; 4) a regularidade formal; e 5) o preparo. Como pressupostos subjetivos genéricos te-mos: 1) a capacidade processual do recorrente; 2) a legitimação, formada por dois elementos: a sucumbência e o interesse; 3) a ausência de pressupostos subjetivos negativos, tais como a desistência, a renúncia ao recurso, ou a aceitação tácita da decisão recorrida por aquele que pretenda impugná-la através do recurso (NORONHA, Do agravo...., n. 34).

O exame da capacidade processual do recorrente, ou de sua legitimado ad processum, que o Prof. CARLOS SILVEIRA NORONHA arrola como pressu-

B I B L 1 Q T E C

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posto subjetivo genérico, é requisito só raramente presente ao juízo de admissibilidade dos recursos. Parece-nos, no entanto, perfeitamente legítimo que ela seja inserida na classificação. Com efeito, tratando-se de recurso interposto por terceiro prejudicado (art. 499 do CPC), cuja participação no processo apenas nesse momento se tenha dado, haverá sem dúvida necessidade de averiguar a existência de capacidade processual para estar em juízo e a própria capacidade postulatória do recorrente (ob. cit, n. 42).

17.3.3 Exame de mérito

Decidindo favoravelmente ao recorrente quanto à admissibilidade, o tribunal irá tão-somente declará-lo cabível, passando, a partir de então, a examinar-lhe o mérito, para julgá-lo procedente ou improcedente, dan-do-lhe ou não provimento. Quando o juízo de admissibilidade concluir pelo não cabimento do recurso, por faltar-lhe algum pressuposto, diz-se que o recurso não foi conhecido; se, ao contrário, o juízo ad quem dele conhecer, isto significa que o juízo de admissibilidade foi afirmativo e, a partir daí, o recurso será julgado no mérito, podendo o tribunal declará-lo procedente ou improcedente.

Na generalidade dos recursos, no direito brasileiro, o juízo de ad-missibilidade tem lugar nos dois graus de jurisdição - naquele no qual se recorre (juízo a quo) e no juízo recursal {ad quem). Sempre que isto aconteça, a admissibilidade do recurso pelo órgão jurisdicional inferior não passa de um simples juízo de encaminhamento, portanto provisório, que não vincula o tribunal superior.

A distinção entre as duas fases do procedimento recursal tem con-sequências práticas: 1) havendo recurso adesivo (art. 500 do CPC), o não conhecimento do recurso principal faz com que aquele se torne também incabível; 2) se o recurso era inadmissível por ter sido proposto fora de prazo, ou porque o recorrente não fizera o preparo correspondente, ou por qualquer outra razão, o trânsito em julgado da sentença por ele ata-cada se deu com o transcurso do prazo para a interposição do recurso cabível. Se, porém, ele foi declarado inadmissível por não existir, naquela hipótese, nenhum recurso capaz de impugnar a sentença recorrida, o trânsito em julgado terá lugar a partir da publicação da sentença.

17.3.4 Pressupostos de admissibilidade

Vejamos resumidamente cada um dos pressupostos de admissibili-dade, genericamente considerados para os recursos.

173.4.1 Decisão recorrível

A existência de uma decisão passível de recurso, ou seja, a existên-cia do recurso no ordenamento jurídico, previsto como forma de im-pugnação à decisão de que se trata, é o primeiro requisito para sua admis-sibilidade. Em geral, os recursos têm por fim atacar as sentenças de mérito, ou as sentenças que, mesmo não sendo de mérito, sejam termina-tivas do processo. No vigente sistema recursal brasileiro, no entanto, são recorríveis todas as decisões proferidas no processo, com exclusão ape-nas dos despachos de mero expediente, sem qualquer conteúdo decisório (art. 504 do CPC). Sendo assim, sempre que o provimento judicial haja causado gravame ao recorrente, haverá possibilidade de interposição de algum recurso, dentre aqueles previstos em lei.

O requisito da existência do recurso, como pressuposto de admissibilidade, todavia, não fica superado ante a constatação apenas da existência de uma decisão recorrível. E ainda necessário que o recurso de que o recorrente se valeu seja o indicado para aquela hipótese. Assim, por exemplo, se o recurso interposto contra uma sentença que haja posto fim à relação processual (arts. 162 e 513 do CPC) foi o de agravo de instrumento, ou se uma decisão interlocutória (art. 162) foi impugnada através de um recurso de apelação, e não de agravo de instrumento (art. 522), o juízo de admissibilidade será negativo e o recurso não será conhecido.

A exata correspondência entre a decisão recorrida e o recurso que a impug-na, dito requisito da adequação do recurso, tem sofrido constante abrandamento na prática judiciária brasileira, que vem tolerando, cada vez com maior frequência, o emprego equivocado de um recurso por outro, sempre que os pressupostos de admissibilidade do recurso cabível estejam satisfeitos, de modo que se pode afir-mar, sem exagero, que o sistema brasileiro consagra - não obstante a ausência de qualquer previsão legal - o chamado princípio da fungibilidade dos recursos.

17.3.4.2 Legitimação

Segundo o art. 499 do CPC, o recurso pode ser interposto pela parte vencida, pelo terceiro prejudicado e pelo Ministério Público. Temos aí indicados aqueles que poderão estar legitimados para a interposição dos recursos.

O legitimado natural para o recurso é, sem dúvida, a parte que haja sofrido um gravame decorrente da decisão que pretende impugnar.

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Inclui-se, aqui, no conceito de parte, além dos litisconsortes, os terceiros intervenientes. Estes, ao intervirem, ou assumem a condição de litisconsorte de uma das partes, ou passam a ser assistentes simples de uma delas (art. 50 do CPC), ou colocam-se na condição de parte autónoma e distinta das partes originárias, como sucede na oposição (art. 56). O terceiro prejudicado a que se refere o art. 499 é exclusivamente o terceiro estranho ao processo que nele ingresse pela primeira vez para interpor o recurso. Será o terceiro que, podendo intervir na condição de assistente simples ou como litisconsorte, não o tenha feito em algum estágio anterior do procedimento, ficando, no entanto, apesar de estranho à relação processual, sujeito a sofrer algum efeito reflexo do julgado.

Referimo-nos à admissibilidade da intervenção tardia, somente na fase re-cursal, na condição de terceiro prejudicado, tanto dos assistentes simples quanto dos litisconsortes. É bom esclarecer, porém, que nesta última categoria queremos aludir à posição de interveniente, para recorrer, dos colegitimados para a causa que se hajam mantido como estranhos à relação processual, a que a doutrina cos-tuma denominar assistentes litisconsorciais e que se incluem na previsão do art. 54 do CPC, por nós equiparados aos litisconsortes.

O recurso do terceiro prejudicado, quando se trate de alguém sujei-to a ser alcançado por algum efeito reflexo de sentença, que, portanto, poderia intervir como assistente simples, tem sentido nitidamente pre-ventivo, eis que visa evitar ou prevenir que o terceiro seja afinal moles-tado na fase de execução da sentença. Se ele, no entanto, preferir não interpor o recurso, desde que permaneça na condição de terceiro a quem não se tenha dado ciência da demanda, ficar-lhe-á assegurada a possibi-lidade de, oportunamente, propor contra a sentença tanto a ação rescisó-ria (art. 487) quanto a ação de embargos de terceiro (art. 1.046).

O recurso do órgão do Ministério Público, a que se refere o art. 499 do CPC, é aquele admissível nos casos em que este órgão não seja parte na causa - se ele o for, seu recurso terá naturalmente o sentido de inconformidade oposta pela "parte vencida" a que alude este dispositivo. Quando, porém, o Ministério Público houver participado da causa na condição de custos legis, sem ser portanto "parte vencida", mesmo assim poderá recorrer, como aliás está dito no § 2.° do art. 499.

Considera-se "parte vencida", e como tal legitimada para recorrer, o litigante que haja sofrido algum gravame imposto pela decisão judicial da qual ele recor-

re. Costuma-se indicar este prejuízo decorrente da sentença como sucumbência, de tal modo que o pressuposto para o recurso seja a existência de uma sucumbên-cia, para significar que o vencedor, como tal, não terá legitimidade para recorrer, nem teria, no caso, legítimo interesse no recurso.

É necessário, porém, observar que neste contexto o conceito de sucumbência não coincide rigorosamente com o de perda ou derrota na causa. Também o vence-dor poderá excepcionalmente estar legitimado para o recurso. Não só para os em-bargos de declaração poderá o vencedor estar legitimado, quando, dando-lhe inteira razão a sentença, contiver ela, por exemplo, alguma "inexatidão material" ou simples "erro de cálculo", capaz de ser remediado por meio deste recurso (art. 463), como igualmente para outros recursos, inclusive apelação. Figuremos a hipótese de alguém que haja participado da causa como réu e tenha suscitado na contestação, segundo o princípio da eventualidade (art. 300 do CPC), defesas processuais e diversas defesas de mérito. Se a sentença julgou extinto o processo sem apreciar o meritum causae, este demandado vitorioso estaria legitimado para a apelação, por lhe ser vantajoso o recurso (legítimo interesse), enquanto haverá possibilidade de ampliar sua própria vitória em razão da impugnação (ROSENBERG, Tratado..., § 84, III, 1, c), fazendo com que o tribunal reconheça o fundamento por ele alegado para a improcedência da ação.

Daí a observação de J. C. BARBOSA MOREIRA (O novo processo..., § 16, II, 1, c) de que o conceito de sucumbência, aqui, deve abranger qualquer hipótese em que a decisão atacada pelo recurso possa ser modificada para proporcionar ao recorrente, sob o ponto de vista prático, alguma vantagem que lhe fora lícito esperar de sua posição processual e que a sentença recorrida lhe tenha negado.

Há uma outra hipótese especial em que o vencedor poderá estar legitimado para recorrer: é o caso do recurso extraordinário adesivo, como veremos ao tratar deste recurso, onde pode haver uma mera sucumbência teórica, ou hipotética, ca-paz de autorizar a interposição do recurso pelo vencedor.

17.3.4.3 Tempestividade

Qualquer recurso deve ser interposto dentro de um prazo deter-minado, expressamente fixado em lei. O recurso interposto fora desse prazo será intempestivo e como tal rejeitado como inadmissível. Como os demais prazos processuais, também este deve ser contado segundo as regras gerais de contagem de prazo constantes do art. 178 e ss. do CPC, podendo, como os outros, ser suspenso ou interrompido. Em todos os recursos, salvo o de agravo de instrumento e o de embargos de declaração, o prazo para interpor e responder à impugnação será de quinze dias, segundo o art. 508 do CPC. Este prazo naturalmente será

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ampliado para o dobro, segundo o art. 188, quando se tratar de recurso a ser interposto pela Fazenda Pública ou pelo Ministério Público.

O Código teve o propósito de uniformizar os prazos para interposição e resposta aos recursos, para superar os inconvenientes dos prazos diferenciados para cada forma recursal, que existia no regime do Código anterior. Este objetivo, porém, apenas parcialmente foi alcançado, não só porque o próprio art. 508 abre exceção para o agravo de instrumento e para os embargos de declaração, como outros casos existem no Código capazes de gerar alguma dúvida.

17.3.4.4 Regularidade formal

Os recursos em geral estão sujeitos, quanto à forma para sua inter-posição, à disciplina legal prescrita para os demais atos processuais. O recurso, salvo raras exceções que serão oportunamente indicadas, deve ser interposto mediante petição escrita, dirigida à autoridade judiciária prolatora da decisão recorrida, devidamente fundamentada com as ra-zões de fato e de direito em que o recorrente se baseia para pedir a modificação do julgado.

Preparo. A Lei 8.950, de 13.12.1994, alterou o regime adotado pelo Código referente ao preparo. Pela atual redação do art. 511 do CPC, o recorrente deverá comprovar, "no ato da interposição do recurso", o respectivo preparo, inclusive, se for o caso, comprovando igualmente o pagamento do "porte de retorno" dos autos. A Lei 9.756, de 17.12.1998, acrescentou o atual § 2.° ao art. 511, dispondo que a deserção só será decretada, no caso de insuficiência do valor do preparo, se o recorrente, intimado, não o completar no prazo de cinco dias.

Uma segunda dificuldade gerada pela nova disciplina atribuída ao regime de preparo dos recursos decorre da circunstância de não coincidir, em geral, o horário de encerramento do expediente forense com o horário de expediente do estabele-cimento bancário, onde o recorrente deverá pagar o preparo e obter a guia corres-pondente com que provará em juízo o respectivo pagamento.

Afigura-se-nos, no entanto, manifesto que a menor duração do expediente bancário, relativamente à duração do expediente forense, não poderá encurtar o prazo recursal, caso o recorrente interponha o recurso no último dia do prazo res-pectivo. Nessa hipótese, vendo-se o recorrente impossibilitado de pagar o preparo por encontrar-se já encerrado o expediente bancário, não há outra alternativa senão admitir o juiz que o recorrente o faça no dia útil imediatamente seguinte ao término do prazo para a interposição do recurso.

O § 1.° do art. 511 dispensa de preparo os recursos interpostos pelo Ministério Público, pela União, pelos Estados e Municípios e res-pectivas autarquias, suprimindo a alusão a recursos interpostos pela Fazenda Federal, Estadual e Municipal, regra esta que ensejava inter-pretações divergentes, quanto à inclusão ou não das empresas públicas e demais entidades da chamada administração indireta, agora excluí-das do benefício legal.

17.4 Recursos em espécie

17.4.1 Apelação

17.4.1.1 Conceito

No sistema do Código de Processo Civil, denomina-se apelação o recurso cabível contra as sentenças, assim considerado o provimento judicial através do qual o juiz põe termo ao processo, decidindo ou não o mérito da causa (art. 162, § 1.°). Se o provimento do juiz tiver posto fim à relação processual, ainda que seu fundamento tenha sido, por exemplo, a inépcia da petição inicial, ou o desinteresse das partes em dar andamento adequado ao processo, de modo que o mérito da causa não seja sequer tocado, pouco importa - o recurso cabível contra um tal provimento judicial será sempre o de apelação (art. 513).

Nem sempre foi assim em nosso direito. No velho direito português, tempo houve em que todas as decisões de primeira instância eram apeláveis. Depois, para evitarem-se os abusos e procrastinações dos feitos, vedou-se a apelação contra as decisões interlocutórias, o que deu origem ao surgimento do recurso de agravo. Quando, no entanto, as interlocutórias causassem dano irreparável ou tivessem força de sentença definitiva, admitia-se contra elas o recurso de apelação.

O Regulamento 737, de 25 de novembro de 1850, que disciplinou, no Bra-sil, o processo civil e comercial até a promulgação, pelos Estados, de seus códigos de processo, estabelecidos pela Constituição republicana de 1891, concedia ape-lação contra as sentenças que fossem definitivas ou tivessem/orça de definitivas (art. 646).

No regime do Código de Processo Civil de 1939, a apelação passou a ser recurso cabível apenas contra as sentenças definitivas (art. 820), sendo impugnáveis por agravo de petição todas as decisões que implicassem a terminação do processo sem resolver o mérito da causa (art. 846).

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Se a sentença for proferida em causa em que sejam partes um Esta-do estrangeiro ou organismo internacional, de um lado, e, de outro, Município ou pessoa residente ou domiciliada no País, os recursos, tanto de apelação quanto de agravo, que eram dirigidos ao Supremo Tribunal Federal pelo art. 540 do CPC hoje serão julgados pelo Superior Tribunal de Justiça (art. 105, H, da CF).

A apelação é, sem dúvida, o recurso por excelência, não só por ser o mais antigo, já existente no direito romano, como por sua universalidade, comum a todos os ordenamentos modernos que descendam do direito romano-canônico, e também por ser o recurso de efeito devolutivo mais amplo, ensejando ao juízo ad quem, quando ele seja interposto contra uma sentença de mérito, o reexame integral das questões suscitadas no primeiro grau de jurisdição, com exceção daquelas sobre as quais se tenha verificado preclusão, como veremos a seguir.

A Lei 6.825, de 22 de setembro de 1980, suprimira o recurso de apelação nas causas processadas perante a Justiça Federal, cujo valor fosse igual ou inferior a 50 Obrigações do Tesouro Nacional, substituindo-o pelo recurso de embargos infringentes deduzidos perante o mesmo juízo que houvesse proferido a sentença. Essa lei foi depois revogada pela Lei 8.197, de 27 de junho de 1991.

Uma idêntica supressão do recurso de apelação ainda se dá na Lei 6.830, de 22 de setembro de 1980 (art. 34), que dispõe sobre a cobrança da Dívida Ativa da Fazenda Pública.

17.4.1.2 Juízo de admissibilidade e efeitos da apelação

A apelação será interposta, diz o art. 514 do CPC, através de petição escrita dirigida ao juiz da causa, contendo o nome e a qualificação das partes, os fundamentos de fato e de direito que justifiquem a inconformidade do apelante e o pedido de nova decisão.

No direito brasileiro anterior ao Código de Processo Civil de 1939, a apela-ção era interposta por termo nos autos, devendo o apelante formular as razões do recurso em peça separada. O art. 821 desse Código suprimiu a exigência do termo, dispondo que a apelação fosse interposta por meio de uma única petição contendo as razões do recurso, prescrição agora reproduzida pelo indicado art. 514 do Có-digo em vigor. Muitos advogados, seguindo uma antiga praxe, observada no direito brasileiro anterior, ainda costumam formular o recurso de apelação, como os demais, em duas petições separadas, oferecidas simultaneamente a despacho do

magistrado, uma contendo propriamente a interposição do recurso e outra as ra-zões da inconformidade, ou seja, os fundamentos de fato e de direito para o pedido de nova decisão. Esta é uma exigência que a lei não contempla, e sua observância não passa de simples irregularidade, sem nenhuma consequência relevante para o procedimento recursal, sendo uma prática tolerada até pela doutrina (assim J. C. BARBOSA MOREIRA, Comentários..., n. 237).

O juízo de admissibilidade na apelação tem lugar originariamente no juízo recorrido, ou seja, perante o juiz prolator da sentença de primei-ro grau. Incumbe, portanto, ao magistrado que tiver proferido a sentença apelada averiguar se o recurso atende aos requisitos de admissibilidade, quer quanto à pessoa do recorrente {pressupostos subjetivos), quer no que se refere aos pressupostos objetivos para o cabimento da apelação. Se o magistrado entender que o recurso foi, por exemplo, interposto fora de prazo, ou o provimento não seria apelável, ou o recorrente não teria interesse legítimo para apelar ou, enfim, que lhe falta qualquer pressu-posto de admissibilidade, deverá indeferi-lo por incabível.

O juízo de admissibilidade, neste caso, como em todas as outras hipóteses em que se permita ao juízo a quo o controle do cabimento do recurso, será invariavelmente provisório e nunca poderá impedir que o recurso suba à consideração do juízo ad quem, que deverá decidir defini-tivamente a respeito do cabimento ou não do recurso.

Da decisão que rejeita o recurso de apelação caberá, portanto, o recurso de agravo de instrumento, através do qual o recorrente fará com que o órgão recursal reveja a decisão inferior e, se entender cabível a apelação, dê provimento ao agravo, ordenando o processamento da apelação.

Assim como a decisão proferida pelo juiz de primeiro grau que rejeita a apelação não impede que o recurso seja apreciado pelo tribunal, também a decisão do juízo a quo que o admite não vincula o órgão recursal, que poderá julgá-lo incabível, dele não conhecendo e, portanto, não o apreciando no mérito.

O recurso de apelação, ressalvadas as hipóteses contempladas pelo art. 520 do CPC e aquelas constantes de leis especiais, terá sempre efeito suspensivo, o que significa que sua interposição impede não só a execu-0 ção provisória da sentença apelada como prolonga a sua ineficácia, até que ela seja confirmada em grau superior. No caso do art. 520, é possível o efeito suspensivo (art. 558, parágrafo único).

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Interposta a apelação, se o juiz considerá-la admissível deverá de-clarar, na decisão de recebimento, os efeitos em que a recebe, mandando dar vista ao apelado para responder, e logo a seguir determinará a remes-sa dos autos ao tribunal do recurso.

Se ocorrer uma das hipóteses do art. 520 do CPC, a apelação será recebida apenas no efetivo devolutivo, sendo possível ao autor vitorio-so promover a execução provisória da sentença ainda pendente de re-curso, se ela não for daquelas que inadmitem execução (declaratórias e constitutivas).

Se o juiz declarar erroneamente os efeitos em que a recebe, dando duplo efeito à apelação que não o tenha, ou apenas o efeito devolutivo quando deverá recebê-la também no efeito suspensivo, poderá a parte agravar de tal decisão, a fim de que o próprio juiz retifique sua decisão ou o tribunal o faça.

Ao contrário do brasileiro, a evolução dos sistemas europeus modernos faz-se no sentido de dar maior valor aos julgamentos de primeira instância, procurando reduzir a importância relativa dos julgamentos dos tribunais supe-riores, em parte tendo-se em conta a crescente exigência de celeridade na pres-tação jurisdicional e em parte também por fidelidade ao princípio da oralidade, uma vez que o juízo recursal, feito pelos tribunais superiores, opera com base num processo rigorosamente escrito, sem o menor contato entre o julgador e as provas orais. A consequência desta tendência é a ampliação das hipóteses em que a lei admite a execução provisória da sentença e a outorga ao magistrado de primeiro grau de poderes para conferir à própria sentença a "cláusula de execu-ção provisória" fora dos casos previstos em lei (sobre isto, OVÍDIO A. BAPTIS-TA DA SILVA, Comentários..., p. 37-65).

Além das hipóteses contidas no art. 520 do CPC, tem-se indicado como um caso de apelação a ser recebida somente no efeito devolutivo aquela interposta contra a sentença que haja decretado a interdição. Segundo o art. 1.184 do CPC, "a sentença de interdição produz efeito desde logo, embora sujeita à apelação". ALCIDES DE MENDONÇA LIMA (Comentários..., v. 12, p. 72) considera esta hipótese como similar às demais incluídas no art. 520 e sustenta a tese de que a apelação interposta contra qualquer sentença proferida em procedimento de ju-risdição voluntária deverá ser recebida também apenas no efeito devolutivo, de modo a permitir que o juiz de primeiro grau promova a execução provisória do julgado, pendente o recurso (idem, p. 75 e ss., e Efeito da apelação na jurisdição voluntária, Ajuris 29/178), conclusão esta que é rejeitada por J. C. BARBOSA MOREIRA (Comentários..., n. 261).

A respeito da sentença de interdição, deve-se observar-se que não é a sua eficácia principal, constitutiva, que o art. 1.184 considera capaz de produzir efeitos imediatos, o que seria de fato impossível, mas simplesmente é a mandamentalidade inerente a esta sentença que se torna desde logo eficaz, permitindo que se proceda à sua inscrição no registro de pessoas naturais e seja a interdição, apenas decretada por sentença ainda sujeita a recurso, publicada pela imprensa para conhecimento de terceiros. Não há dúvida de que esta hipótese poderia ter sido incluída pelo legisla-dor ao lado das demais contidas no art. 520, porque dentre estas existem sentenças igualmente constitutivas, como a que homologa a liquidação de sentença.

Não se deve, porém, supor que seja o efeito constitutivo da sentença de inter-dição que se adianta, como afirma J. C. BARBOSA MOREIRA (Comentários..., n. 266), ou que haja a criação provisória do estado de interdição, como prefere PON-TES DE MIRANDA (Comentários..., 1973, v. 16, p. 391). Trata-se o interditado, enquanto pende o julgamento da apelação - quanto aos efeitos da sentença, no que se refere à publicidade e à administração de seus bens -, como se ele fosse interdito. A confirmação da sentença pelo juízo da apelação, com o subsequente trânsito em julgado, é que irá criar o estado de interdição, alcançando o passado, desde a sen-tença. Não pode haver interdição provisória, assim como não faria sentido a decla-ração provisória de autenticidade ou de falsidade documental, porventura constan-te de sentença prolatada em ação declaratória, ainda sujeita a recurso. Nada pode ser provisoriamente autêntico ou provisoriamente falso (OVÍDIO A. BAPTISTA DA SILVA, Comentários..., p. 122-127). Como ninguém poderia ser declarado "provi-soriamente enfermo1' - não obstante seja possível tratá-lo como tal -, assim tam-bém não haverá interdição provisória, embora se possa tratar o interditando como se ele já fosse interdito, tanto no que diz respeito à administração de seus bens quanto em suas relações com terceiros, que são eficácias que se produzem no plano da realidade social e, como tal, podem ser antecipadas pelo juiz. Não há, todavia, produção de efeito constitutivo pro tempore.

A enfermidade capaz de levar à interdição é sempre temporária, sem dúvida, mas o incapaz - enquanto incapaz - não o é provisoriamente (OVÍDiO A. BAPTISTA DA SILVA, Comentários..., p. 68 e ss.). Apenas os efeitos que a sentença possa produzir no plano da realidade social (fenomênica) podem ser antecipados e se realizar provisoriamente, não as eficácias declaratórias e constitutivas, que operam no plano lógico das normas jurídicas. A própria eficácia condenatória não produz provisoriamente efeito de condenação, e sim o efeito executivo, que se antecipa para dar ensejo à execução provisória.

,.O sistema brasileiro, quanto ao efeito devolutivo na apelação, segue o princípio segundo o qual tantum devolutum quantum appellatumy de modo a impedir o que se denomina reformatio in peius. A este respeito, dois princípios se formaram ao longo da história dos recursos e parti-

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cularmente do recurso de apelação: o princípio do "benefício comum" do recurso (communio appellationis), segundo o qual a apelação permitia ao tribunal superior um novo julgamento amplo da causa, de que poderia resultar uma decisão de segundo grau contra o próprio apelante, ou seja, o resultado de seu recurso poderia causar um agravamento em sua su-cumbência, em benefício do apelado; e o princípio inverso, conhecido como princípio da personalidade ou pessoalidade do recurso, de que resultava ser o mesmo interposto exclusivamente em benefício do ape-lante, não podendo o tribunal superior, em qualquer hipótese, beneficiar o apelado, causando maior agravo ao apelante. O silêncio do apelado que não interpusera também o seu recurso, tentando obter aquilo que agora o tribunal pretende dar-lhe, importava no trânsito em julgado da sentença nos capítulos que o poderiam beneficiar e dos quais o mesmo não recor-rera (LIEBMAN, Arbitrarie limitazione ali' impugnazione incidentale tardiva, RDP, p. 576; HUGO ALSINA, Tratado teórico y práctico de derecho procesal civil y comercial, v. 4, p. 231; CARLOS SILVEIRA NORONHA, Do recurso adesivo, n. 15).

O princípio da comunidade da apelação, ou princípio da realidade, foi tra-dicionalmente adotado pelo direito luso-brasileiro. PEREIRA E SOUZA, o emi-nente jurista português do início do século XIX, dizia: "A appellação é comum a ambas as partes" {Primeiras linhas..., v. 2, § 333). Com efeito, a possibilidade de modificar-se a sentença apelada contra o recorrente, em benefício do apelado, fora princípio assente em todas as ordenações do Reino, desde a primeira delas, onde se lê: "Muito ameude acontece que aquelle, que apella da Sentença, que contra elle he dada, he achado pelos Juizes da Alçada, que não he aggravado por essa Sentença, e acham elles Juizes, que he feito aggravo pela Sentença ao appe-llado: e dizem alguns, que pois elle da dita Sentença non appellou nom lhe pode ser corregido tal aggravo, que por esse processo acharem ser feito ao appellante, mais se acharem que o appellante nom he aggravado, ainda podem, e devem cor-reger qualquer aggravo, que por o processo acharem ser feito ao appellado, que da Sentença nom appellou, posto que per elle, ou seu Procurador nom seja esse aggra-vo alegado" (Ordenações Afonsinas, Livro III, Título LXXV).

Este princípio foi conservado pelas ordenações posteriores (Ordenação Manuelina, Livro III, Tít. 57; Ordenações Filipinas, Livro III, Tít. 72, pr.) e vigorou no Brasil ainda durante a vigência do Código de 1939 (PONTES DE MIRANDA, Comentários..., t. XI, p. 155).

A adoção de um ou outro desses princípios tem importância decisiva para a fundamentação teórica do recurso adesivo, como oportunamente veremos. Se o sistema recursal adotado consagrar o princípio da comunidade do recurso, não terá qualquer sentido a instituição do recurso adesivo: o recorrido, mesmo sem interpor

recurso algum, poderá beneficiar-se daquele interposto por seu adversário, toman-do, assim, desnecessário um recurso adesivo paralelo.

Mas os limites do efeito devolutivo na apelação ainda podem ser reduzidos pelo próprio apelante nos casos em que ele, podendo pedir a reforma integral da sentença, em toda a extensão da sucumbência, decida recorrer apenas de uma porção dela, conformando-se quanto ao mais com sua derrota. Teremos, neste caso, um recurso parcial, em que a matéria impugnada pelo recorrente não alcança todos os capítulos da sentença. E, naturalmente, segundo o princípio tantum devolutum quan-tum appellatum, aquilo que o recurso devolve à instância superior será apenas o conhecimento da matéria impugnada pelo recorrente. A este respeito, diz o art. 515 do CPC: "A apelação devolverá ao tribunal o conhecimento da matéria impugnada".

A Lei 10.352, de 26 de dezembro de 2001, introduziu modificação no art. 515 do Código para ampliar os limites do efeito devolutivo do recurso de apelação. A introdução do § 3.°, que não existia no texto originário, outorga ao tribunal competência para, no caso de extinção do processo sem julgamento de mérito, conforme a previsão do art. 267, julgar desde logo a lide, se a causa versar questões exclusivamente de direito, e estiver em condição de imediato julgamento.

Como se deve determinar, no entanto, o que se entende por "matéria impugnada"? Imaginemos um exemplo. O autor propusera contra o réu uma ação de indenização, alegando que este fora culpado pelo acidente de trânsito de que resultaram danos pessoais e materiais ao autor, em virtude de estar o demandado dirigindo com velocidade excessiva e embriagado, além de não possuir freios o veículo. Teremos, aí, um pedi-do apenas com três fundamentos. Imaginemos que o réu, ao contestar a ação, haja alegado: a) prescrição da pretensão a exigir ressarcimento de danos; b) que a culpa pelo acidente fora exclusivamente do autor; c) que o acidente fora causado em virtude de culpa do autor e de terceiro sem qualquer vínculo com o réu; d) que não houve danos, quer materiais quer pessoais; e) que o autor antes renunciara à pretensão indenizatória. Ima-ginemos que o magistrado, ao julgar a causa, haja dado pela procedência parcial da ação, reconhecendo o dever do réu de indenizar, porém apenas os danos materiais, que a sentença admite terem sido causados por culpa do réu, que dirigia embriagado por ocasião do acidente, recusando-se, no entanto, a admitir que haja ficado provado o excesso de velocidade ou

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que o acidente haja decorrido da alegada deficiência no sistema de freios do veículo. Em consequência da procedência da ação, foi o réu condena-do a pagar as custas do processo e os honorários do advogado do autor, fixados em quinze por cento sobre o valor da condenação, a ser apurada em liquidação de sentença.

De tal sentença apela apenas o autor, pedindo que o tribunal reco-nheça igualmente seu direito de ser indenizado dos danos pessoais que a sentença rejeitara. Qual, neste caso, a extensão do efeito devolutivo, ou quais os verdadeiros limites da "matéria impugnada", segundo o art. 515 do CPC?

Para respondermos a esta indagação, teremos de examinar os de-mais preceitos contidos no art. 515 e no art. 516 do CPC. Segundo estes, a extensão e profundidade do efeito devolutivo na apelação regulam-se deste modo: "Art. 515, § 1.° Serão, porém, objeto de apreciação e julga-mento pelo tribunal todas as questões suscitadas e discutidas no proces-so, ainda que a sentença não as tenha julgado por inteiro. § 2.° Quando o pedido ou a defesa tiver mais de um fundamento e o juiz acolher apenas um deles, a apelação devolverá ao tribunal o conhecimento dos demais. Art. 516. Ficam também submetidas ao tribunal as questões anteriores à sentença, ainda não decididas".

Vejamos, então, segundo estes critérios, qual a matéria impugnada. Não há dúvida de que a inconformidade do autor limitou-se ao pedido de condenação referente aos danos pessoais que a sentença não acolhera. A primeira limitação, portanto, decorre disso. O tribunal, neste caso, nada poderá fazer no que diz respeito à disciplina dos encargos da sucumbên-cia, nem para aumentar os honorários devidos ao advogado do autor, porque este nada pediu a respeito, nem para reduzi-los, ou para determi-nar que cada litigante suporte o pagamento dos honorários de seus patro-nos, sob o fundamento de ter sido a ação julgada apenas parcialmente procedente, ordenando igualmente que as custas sejam rateadas. A redu-ção percentual de honorários e a nova disciplina que fosse dada à conde-nação nas custas importariam em prover-se a apelação contra o apelante (reformado in peius), assim como nada poderia fazer o tribunal se enten-desse que os honorários mereciam ser fixados em valor superior. Esta matéria não constituíra objeto da impugnação. Poderia, no entanto, o tribunal entender que não ficara provada a embriaguez do réu, tal como a sentença o admitira, e mesmo assim manter a sentença de procedência, sob o fundamento de que o acidente fora causado por excesso de veloci-

dade, ou porque o veículo deixara de ser freado por deficiência mecâni-ca? Certamente sim. Diz o art. 515, § 2.°: "Quando o pedido ou a defesa tiver mais de um fundamento e o juiz acolher apenas um deles, a apelação devolverá ao tribunal o conhecimento dos demais". Todos os fundamen-tos, portanto, para a procedência do pedido podem ser reapreciados pelo tribunal de apelação, e a ação poderá ser agora julgada procedente por outro fundamento que não aquele aceito pelo julgamento de primeira instância. Imaginemos que o tribunal se convença de que a ação realmente estava prescrita, como alegara o demandado em sua defesa, ou que efetivamente houvera renúncia à pretensão indenizatória. Poderiam tais alegações ser aceitas pela segunda instância, para declarar a demanda improcedente? Naturalmente não. O réu não apelara e o recurso interposto pelo autor jamais poderia beneficiá-lo.

Quais "as questões suscitadas e discutidas no processo" que poderiam ser apreciadas pelo tribunal, quando a sentença não as tenha julgado por inteiro (art. 515, § 1.°)? Em nosso exemplo, ainda que o juiz haja silenciado quanto aos demais fundamentos postos pelo autor em sua petição inicial para a procedência da ação, a apelação devolverá ao tribunal o inteiro conhecimento deles. Com relação às "questões anteriores à sentença", diz o art. 516 que somente aquelas "ainda não decididas" ficarão abrangidas pelo efeito devolutivo da apelação. Quanto às controvertidas nos autos, já apreciadas em decisão interlocutória, o efeito devolutivo da apelação não as alcan-çará, porque elas ficaram preclusas ou por não as terem impugnado as partes através do recurso de agravo ou em virtude do eventual julgamento do agravo pela instância superior, caso em que a decisão do tribunal terá de ser aceita pelo julgador por ocasião da prolação da sentença.

O tribunal, no caso, teria de contar com as provas existentes nos autos, se quisesse prover a apelação do autor e reconhecer-lhe o direito a ser indenizado dos danos pessoais também, não lhe sendo lícito transformar o julgamento em diligên-cia, ordenando a baixa dos autos à primeira instância para que a perícia indeferida fosse feita. A insuficiência dessa prova acarretaria a improcedência do recurso, uma vez que sua produção era ónus que gravara o autor, e sua conformidade com o indeferimento da perícia determinara agora a impossibilidade de um julgamento de procedência da ação com relação a este ponto.

Se, no entanto, o tribunal da ape lação convencer-se de que o autor ou o réu não eram os legitimados para a causa, ou que ao autor falta legítimo interesse para

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postular a tutela processual, questões estas que não foram suscitadas ou discutidas na ação, poderá apreciá-las para julgar a ação improcedente (ou, se quisermos, o autor carente de ação), ainda que o réu não haja apelado? Havendo recurso de ambas as partes, tem-se entendido possível a decretação de carência da ação, ainda que o réu omita este tipo de defesa por considerar que tais pressupostos são de ordem pública e sobre eles não ocorre preclusão contra o tribunal. Se, todavia, apenas o autor houver recorrido, parece que não seria possível julgar procedente o recurso contra ele, para reconhecer-se a carência de ação, postulada apenas nas contra-razões pelo réu apelado.

Observamos, então, que os limites do efeito devolutivo na apelação esten-dem-se por todas as questões e fundamentos com que o apelante haja sustentado quer a ação, quer a defesa. Não abrangerá, no entanto, os pedidos sobre os quais o recurso não se estenda. E se, por exemplo, em vez da ação de indenização, tivesse o autor proposto, digamos, uma ação reivindicatória cumulada com perdas e danos e a sentença apenas reconhecesse a procedência da reivindicatória, rejei-tando o pedido de indenização? No caso, se a procedência da ação reivindicatória apenas abrangesse um dos três imóveis, cuja restituição se pedira na demanda, a apelação do autor, interposta para que o tribunal reconhecesse a procedência da ação também quanto aos demais imóveis, não estenderia seu efeito devolutivo de modo a envolver o pedido de indenização sobre o qual silenciara o recurso. É correto o entendimento de H. THEODORO JÚNIOR, segundo o qual, havendo pedidos cumulados, em cumulação sucessiva, se a sentença deixar de apreciar o posterior por haver rejeitado o pedido principal, de cuja procedência o outro dependia, o provimento da apelação, porventura interposta pelo autor, dará ensejo a que o tribunal aprecie o pedido, ou pedidos cumulados em ordem sucessiva (Curso..., p. 614). Em nosso exemplo, porém, não se aplicaria esta regra, e o conhecimento da ação indenizatória em apelação só seria possível se o apelante a incluísse em seu recurso. Aqui, teria havido procedência, embora parcial, da ação principal, ao contrário da hipótese figurada pelo jurista, e o recurso fora limitado ao provimento da reivindicatória relativa aos demais imóveis excluídos pela sentença, sem referir-se à ação cumulada.

O mesmo ocorreria se, em vez do autor, em nosso exemplo, a apelação fosse interposta pelo réu. Tendo a sentença reconhecido a procedência parcial da reivindicatória, para ordenar a restituição apenas de um dentre os vários imóveis reivindicados, o recurso do réu jamais poderia aumentara sua sucumbência e dar pela procedência da indenizatória rejeitada pela sentença, não impugnada pelo autor.

O efeito devolutivo na apelação, segundo dispõe o indicado art. 515, § 2°. do CPC, permite ao tribunal conhecer dos demais fundamentos de uma mesma ação, para aceitá-los quando o juiz os haja rejeitado, ou quando, por considerar suficiente o primeiro deles, houver silenciado sobre os demais. Este princípio, todavia, não

permitirá que o tribunal aprecie outra ação porventura cumulada pelo autor quando a sentença a tenha rejeitado.

Esta é uma questão extremamente polémica, de que voltaremos a tratar quando examinarmos os limites objetivos da coisa julgada. Vejamos desde logo, através de alguns exemplos, a natureza das dificuldades com que a doutrina e a jurisprudência se debatem quando têm de determinar a extensão do efeito devolutivo em certas apelações.

A Lei 4.886, de 9 de dezembro de 1965, que regula as atividades dos repre-sentantes comerciais autónomos, prevê, em seu art. 34, a denúncia imotivada do contrato de representação, ajustado por tempo indeterminado; se o contrato tivesse vigorado por mais de seis meses, ficava o denunciante obrigado a dar pré-aviso da denúncia ou indenizar a outra parte em quantia equivalente a um terço do valor das comissões auferidas pelo representante nos três meses anteriores. Essa lei foi alterada pela Lei 8.420, de 8 de maio de 1992, mas seu art. 34 foi mantido, de modo que será possível imaginar, mesmo perante a regime em vigor, que o repre-sentante comercial, que tivera seu contrato rescindido pelo representado, sem justa causa, ingresse com uma ação pedindo a condenação do réu a pagar-lhe a indenização prevista nesse dispositivo e mais a condenação do demandado a indenizar-lhe por descumprimento de contrato, conforme o disposto no art. 27 da aludida lei. Havendo a sentença reconhecido a procedência apenas de uma das ações cumuladas, o recurso do réu que pedisse a improcedência daquela que fora admitida pela sentença não devolveria ao tribunal da apelação o conhecimento da outra. Neste caso, não seria aplicável a regra do art. 515, § 2.°, do CPC, que apenas se refere a uma ação com dois ou mais fundamentos, enquanto no exemplo verifica-se a hipótese de duas ações cumuladas, onde não só a causa petendi, mas os pedidos são distintos e perfeitamente identificáveis: no caso de procedência de ambas, o autor receberia uma quantia superior à que a sentença lhe daria pela procedência apenas de uma delas. L. MACHADO GUIMARÃES {Limites obje-tivos do recurso de apelação, p. 88) refere-se a "interesse prático", como critério para o cabimento da apelação, e a pedidos diferentes, que caracterizem preten-sões autónomas, deixando obscura a diferença entre causa petendi e simples fundamentos de uma mesma ação.

A situação, no entanto, se complica quando, não obstante haver uma cumu-lação de duas ou mais ações, o resultado prático pretendido pelo autor seja idêntico, em caso de procedência de todas ou de apenas uma delas. Imaginemos que o autor haja cumulado, num único processo, uma ação de rescisão de contrato, fundada em vício redibitório (art. 1.105 do CC). a outra ação também de rescisão do mesmo contrato, sob a alegação de ter o demandado descumprido uma das obrigações constantes de cláusula expressa do ajuste. Se a sentença der pela procedência da ação fundada em vício redibitório e decretar a rescisão do contrato, terá o autor alcançado seu objetivo. e não se poderia considerá-lo sucumbente e como tal legi-

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timado a recorrer. Se, todavia, apelar o réu da sentença, poderá o tribunal reconhe-cer a procedência dos fundamentos do recurso, para julgar não configurado o vício redibitório que a sentença reconhecera, e, mesmo assim, improver a apelação por julgar procedente a ação de rescisão do contrato, fundada em descumprimento de uma de suas cláusulas? Tal solução não implicaria reformatio in peiusl ERNANE FIDÉLIS DOS SANTOS {Manual de direito processual civil, p. 239) afirma que o efeito devolutivo, em tais casos, estender-se-á ao "outro fundamento", como se o exemplo dissesse respeito a uma única ação, com dois fundamentos. Este foi o erro de L. MACHADO GUIMARÃES, há pouco lembrado.

Esta solução, todavia, não nos parece tranquila, embora se deva admitir ser ela predominante na jurisprudência brasileira. Se a ação de despejo tiver como fundamento a falta de pagamento dos alugueres e a infração contratual consistente em sublocação não consentida, sua procedência com base em falta de pagamento -limitando-se o juiz a considerar prejudicado o "outro fundamento" - permitiria que o tribunal, em apelação interposta pelo inquilino, rejeitasse a falta de pagamento como causa para o despejo e mesmo assim negasse provimento à apelação, manten-do o despejo com base em sublocação não consentida? A ter-se como possível este resultado, teríamos de admitir que duas ou mais ações, quando cumuladas num só processo, fundir-se-iam numa única ação, transformando-se suas respectivas causae petendi em simples fundamentos da ação resultante.

Se, ao contrário, quiséssemos preservar a identidade das ações cumuladas -considerando que o despejo por falta de pagamento é uma ação perfeitamente dis-tinta da ação de despejo fundada em sublocação não consentida -, teríamos de modificar nosso conceito de sucumbência, para admitir que o locador que tivera o despejo decretado por falta de pagamento, ainda que fosse sucumbente e, como tal, pudesse apelar, para que o tribunal igualmente reconhecesse a procedência do des-pejo fundado em sublocação não consentida. Tratando-se de ações distintas, o re-curso do réu não poderia resultar no reconhecimento de que ele nada devia ao locador a título de aluguel e, mesmo assim, na manutenção do despejo com base na ação fundada em sublocação não consentida. Neste caso, a rejeição da apelação do réu implicaria reformatio inpeius. O art. 515, § 2.°, do CPC apenas permite que o juízo da apelação modifique o fundamento de uma mesma ação ou da defesa.

O problema da extensão do efeito devolutivo na apelação ainda comporta uma observação, relativa à diversidade de situações que se criam a tal respeito, conforme a natureza da sentença de que se recorra ou dos próprios fundamentos em que o apelante baseie sua inconformi-dade. Segundo um princípio comum ao conceito de apelação no direito moderno, tanto os erros de natureza processual {errores in procedendo) quanto os de julgamento (errores in iudicando) devem ser atacados pelo recurso. Havendo nulidade da sentença, por vício de natureza

processual, ou, ao contrário, tendo o magistrado julgado erroneamente a causa, não obstante a correção formal do procedimento, em qualquer destas hipóteses o recurso cabível - se o provimento judicial houver posto fim à relação processual - será o de apelação. Com uma diferen-ça, no entanto, fundamental: no caso de reconhecer a nulidade da sen-tença, o tribunal do recurso não poderá apreciar o meritwn causae des-de logo, incumbindo-lhe, uma vez julgada procedente a apelação, de-terminar o retorno do processo à primeira instância, a fim de que o vício que determinara a nulidade seja corrigido e outra sentença prolatada. Nesta hipótese, como se vê, os limites do efeito devolutivo reduzem-se severamente, a ponto de impedir o exame pelo tribunal da apelação de qualquer questão de mérito, de modo que se evite, em caso de julga-mento imediato pela instância recursal da procedência ou improcedên-cia da demanda, a supressão do julgamento de primeira instância, que é o pressuposto fundamental do próprio recurso. Não pode haver recur-so sem decisão anterior de que se recorra.

Uma redução similar na extensão do efeito devolutivo da ape-lação acontece quando o recurso seja interposto não contra uma sentença de mérito, e sim contra sentenças terminativas. Neste caso, igualmente a apelação não devolverá ao tribunal o conhecimento do mérito da causa, porque, em verdade, nem mesmo houve uma sentença anterior que o tenha decidido, de modo que o tribunal do recurso pudesse revê-la. Sabendo-se que, segundo nosso direito, de todas as sentenças terminativas o recurso cabível é o da apelação, facilmente se compreende que, se o juiz houver posto fim ao processo, se decidir o mérito da causa, numa das hipóteses do art. 267 do CPC, o provimento da apelação implicará o retorno do processo à sua origem em primeira instância, a fim de que o magistrado que o havia declarado extinto retome o curso do procedimento e venha a proferir no momento adequado uma decisão de mérito. Neste caso, como se vê, poderá haver tantas apelações sucessivas originadas de uma mesma relação processual quantas sejam as eventuais sentenças proferidas em primeira instância. Mas somente na apelação interposta contra a sentença de mérito devolver-se-á ao tribunal de segundo grau o conhecimento integral das questões suscitadas e discutidas na causa, segundo dispõe o art. 515 do CPC.

Há casos, no entanto, em que estas regras devem ser abrandadas, de modo que não se as apliquem com rigor absoluto. Se, por exemplo, o juiz tiver reconhe-

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eido a prescrição ou a decadência, para decretar a improcedência da ação, a ape-lação que o autor interpuser de tal sentença atacará sem dúvida uma sentença de mérito (art. 269, IV, do CPC), e nem sempre será possível reconhecer a ocorrência de uma devolução integral ao juízo de segundo grau. Bastará para tanto que a sentença que haja decretado a decadência ou prescrição tenha sido proferida sem que a instrução probatória se tivesse completado, o que em certos casos poderá acontecer. Verificando-se uma tal hipótese, não nos parece que haja outra alterna-tiva senão determinar o retorno do processo à instância de origem, a fim de que, ultimada a instrução, outra sentença seja prolatada.

Esta solução impõe-se com toda evidência quando, em vez de reconhecer a prescrição a meio caminho da instrução probatória, com alguma audiência já realizada, de modo que os fundamentos para o reconhecimento da prescrição ou da decadência decorram destas provas, tiver o magistrado decretado a prescrição por ocasião do despacho saneador (art. 331 do CPC) ou ao despachar a petição inicial (art. 295, IV).

Outra questão assaz delicada, referente à extensão e profundidade do efeito devolutivo, diz respeito às hipóteses em que a sentença tenha declarado nulo o processo, ordenando que todos os atos contaminados com a nulidade se repitam. Se o autor apelar desta sentença, poderá o tribunal aceitar os fundamentos indicados pelo apelante, para declarar que o processo não contém qualquer vício que o inquine de nulidade e, apesar disso, julgar improcedente a ação por reconhecer a existência de coisa julgada? J. C. BARBOSA MOREIRA {Comentários..., n. 241) entende que isto seria impossível, por implicar em reformatio in peius, uma vez que o apelante, que tivera apenas uma sentença anulando o processo, agora, com seu recurso, ficaria na impossibilidade de renovar a mesma ação, o que a sentença apelada não só não impedira como até mesmo determinara.

Embora reconhecendo a correção lógica do argumento exposto pelo emi-nente jurista, ousamos divergir de sua conclusão. A objeção de coisa julgada é uma daquelas matérias cujo conhecimento deve dar-se ex oficio pelo tribunal, e sobre estas questões de uma mesma lide, a profundidade do efeito devolutivo as envolve, como ensina o mesmo jurista (Comentários..., n. 246). Não resta dúvida de que terá havido, em tal caso, uma piora do ponto de vista prático, na situação do apelante, mas não vemos, por outro lado, qualquer vantagem em dar provimento a seu apelo, para mandar que o processo se refaça e venha afinal a ser reconhe-cida, na apelação subsequente, porventura interposta pelo réu, da nova sentença, precisamente a coisa julgada de cuja existência o tribunal já se convencera na primeira apelação.

No exemplo de que ora se trata, temos que a piora contra o recorrente, motivada pelo reconhecimento da existência de coisa julgada, estaria legitimada por se tratar de matéria arguível pelo recorrido e, portanto, incluída no campo de devolução provocado pelo recurso da parte adversa (cf. J. C. BARBOSA

MOREIRA, Comentários..., n. 243, p. 424; ODILON DE ANDRADE, Comentá-rios..., v. 9, n. 142).

Uma observação final torna-se necessária ainda a respeito do efeito devolutivo na apelação. Trata-se da regra contida no art. 517 do CPC, segundo a qual "as questões de fato, não propostas no juízo inferior, poderão ser suscitadas na apelação, se a parte provar que deixou de fazê-lo por motivo de força maior".

Este motivo coloca a questão de saber se o juízo de apelação deve reapreciar a causa, de modo a reconstruir o seu julgamento com o mesmo material já utilizado pelo magistrado de grau inferior, como diz J. C. BARBOSA MOREIRA, valendo-se de uma imagem de CARNELUTTI (Comentários..., n. 249), ou poderia utilizar todos os materiais disponí-veis, mesmo os não empregados pelo magistrado prolator da sentença apelada. Como se vê do dispositivo há pouco transcrito, o direito bra-sileiro só excepcionalmente admite o exame ex novo de questões de fato não propostas no juízo de primeiro grau. A regra é a de que as partes devem expor todas as suas razões, combatendo com todas as armas de que possam dispor, sem ocultar determinadas defesas, reser-vando-as para surpreender o adversário com fundamentos novos não empregados na instância inferior.

A regra, no entanto, sofre limitações, ficando fora de sua abrangên-cia: a) as questões de direito, particularmente as que digam respeito à qualificação jurídica da relação litigiosa. Imagine-se que o locador pro-pusera ação de despejo, denunciando o contrato de locação por necessitar do prédio para uso próprio. O réu defendera-se em primeira instância alegando a insinceridade do pedido, por residir o locador em prédio pró-prio e não necessitar do imóvel locado para o uso indicado no pedido. A sentença julgou procedente a ação. Em apelação, poderá o inquilino sus-tentar a improcedência da ação de despejo por estar o contrato amparado pela lei de luvas (Decreto 24.150, 20.04.1934). Não houve absolutamen-te nenhuma questão de fato nova proposta perante o juízo da apelação, apenas mudou-se o ponto de vista jurídico, a respeito do mesmo contrato. Coisa diversa ocorreria, no entanto, se o demandado, apenas em apela-ção, viesse a alegar que a ação deveria ser rejeitada por haverem as partes assinado, antes do ajuizamento da causa, um novo contrato de locação cuja existência fora omitida em primeiro grau (J. ALBERTO DOS REIS, Código de Processo Civil anotado, v. 5, p. 447-448); b) as questões de

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fato capazes de serem conhecidas e apreciadas ex officio pelo julgador. Entram aqui, por exemplo, as questões sobre nulidades processuais por-ventura não suscitadas em primeira instância, assim como as ligadas à legitimatio ad processum, sobre as quais o tribunal poderia conhecer de ofício; c) há ainda, como lembra J. C. BARBOSA MOREIRA (Comen-tários..., n. 250), as que venham a ser suscitadas pelo apelante terceiro prejudicado que, por não ter até esse instante participado do processo, poderá sem dúvida suscitar em sua apelação questões novas, não aprecia-das pela sentença.

E naturalmente, além destas, ficam permitidas as novas questões de fato sempre que a parte demonstre que lhe foi impossível suscitá-las na primeira instância, seja porque o fato ocorrera depois de encerrada a instrução probatória, quando o processo se encontrava concluso para sentença, seja porque, tendo o fato se verificado antes, a parte ignorava sua ocorrência.

Em qualquer desses casos, todavia, deve ser observada a regra do art. 462 do CPC que, como observam WELLINGTON MOREIRA PIMENTEL (Comentários..., p. 523) e J. C. BARBOSA MOREIRA (Comentários..., p. 441), há de aplicar-se também para as instâncias superiores. Figuremos a hipótese de uma ação de adjudicação compul-sória, proposta pelo promissário-comprador, na qual a defesa tenha arguido a falta de inscrição da promessa no respectivo registro imobi-liário, condição necessária para que o contrato adquira eficácia real, capaz de legitimar a ação executiva (art. 641 do CPC). Se o magistrado, aceitando a defesa, extingue o processo, poderá o autor - que somente conseguira obter a inscrição do contrato de promessa de compra e venda no curso da ação - juntar a prova correspondente por ocasião da apelação que interpuser (Súmula 168 do STF).

Não vemos razão para admitir-se o suprimento da inscrição da promessa de compra e venda, no curso da ação, como refere a Súmula 168 da Corte Suprema, somente quando ela se dê antes da sentença, como afirma H. THEODORO JÚ-NIOR (Comentários..., v. 4, p. 328). A expressão empregada pelo Supremo Tribu-nal, nesta súmula, permite a incidência do art. 462 do CPC, para legitimar a pro-cedência da apelação, ainda que o fato constitutivo da ação, qual seja a inscrição do contrato de promessa de compra e venda, se verifique depois de proferida a sentença. Não faria sentido que o tribunal negasse provimento à apelação, obri-gando a que o autor propusesse outra ação a fim de que, só então, o julgamento favorável tivesse lugar.

17.4.1.3 Procedimento na instância recursal

Além das prescrições que constem dos respectivos regimentos in-ternos de cada tribunal que houver de julgar a apelação, o procedimento deste recurso em segunda instância deve observar as disposições do art. 547 e ss. do CPC. Tanto que recebidos os autos pelo serviço de proto-colo do tribunal, serão eles registrados de modo que possam desde logo ser distribuídos a um dos órgãos fracionários do tribunal competente para julgamento. Determinada, pelo sistema de distribuição, a câmara ou turma a que caberá o julgamento, far-se-á dentre os magistrados que a integram o sorteio do relator do recurso, que é o magistrado a quem se conferem as funções de instrutor da causa em segunda instância. Tratando-se de apelação, assim como nos embargos infringentes e na ação rescisória, o recurso terá, além do relator, também um revisor, que deve ser um outro magistrado integrante da mesma turma ou câmara julgadora, a quem cabe examinar o processo depois que o relator o tenha feito (art. 551).

Aposto pelo revisor o seu visto nos autos, cabe-lhe pedir a designa-ção de dia para julgamento. Designada a data para o julgamento, o pre-sidente mandará publicar a pauta dos feitos que haverão de ser decididos, no órgão oficial encarregado de publicar o expediente forense, com uma antecedência mínima de quarenta e oito horas (art. 552).

Na sessão de julgamento, tanto o apelante quanto o apelado pode-rão produzir sustentação oral pelo prazo improrrogável de quinze mi-nutos, a ser feita depois que o relator proferir o seu relatório e antes de iniciar-se a votação.

17.4.2 Agravos

17.4.2.1 Conceito e espécies de agravo

Os agravos são recursos de ascendência exclusivamente lusitana, que não encontram similar em outros sistemas contemporâneos. Eles tiveram origem no direito medieval português, como um instrumento formado pela prática judiciária para contrabalançar a determinação então vigente que vedava o recurso de apelação das decisões interlocutórias.

A proibição de apelar das sentenças interlocutórias foi determinada em Portugal por D. AFONSO IV, cujo reinado ocorreu entre os anos de 1325 a 1357,

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e teve como objetivo pôr fim à etemização dos feitos que se dava no regime vigente na época, segundo o qual todas as sentenças, tanto as definitivas quanto as interlocutórias, eram apeláveis (MOACYR LOBO DA COSTA, O agravo no di-reito lusitano, p. 20-26).

O direito português chegou a contar com cinco espécies de agravo: o agra-vo ordinário, muito semelhante à apelação, de que divergia em pequenos deta-lhes; o agravo de ordenação não guardada, com função de reparar os danos causados à parte pela decretação de nulidade do processo (CARLOS SILVEIRA NORONHA, Do agravo de instrumento, n. 6); o agravo no auto do processo; o agravo de petição; e, finalmente, o agravo de instrumento. Os três últimos ainda existiam no Código de 1939.

O agravo de petição, no sistema de Código revogado, cabia contra as senten-ças terminativas, que hoje são igualmente apeláveis, como as sentenças de mérito; e o agravo no auto de processo, como logo veremos, guarda grande semelhança com o agravo retido, que é uma criação do legislador de 1973 (art. 522 do CPC).

O propósito original do legislador de 1973 - decidido a simplifi-car o sistema recursal brasileiro, com severa redução do número dos recursos existentes na legislação anterior - foi suprimir o agravo no auto do processo e o agravo de petição, conservando apenas o agravo de instrumento. Seu objetivo, no entanto, apenas em parte foi consegui-do. O sistema de recursos ainda existente em nosso direito conserva-se em geral complexo.

Os recursos, que figuravam como inominados, dos arts. 557, § 1.°, e 532, que a recente reforma passou a considerar como agravos, mesmo consistindo em re-cursos contra decisões interlocutórias, a rigor - se quiséssemos classificá-los de acordo com o sistema seguido pelo Código -, teríamos de considerá-los apelação, uma vez que a decisão recorrida é terminativa do feito, e, como vimos, segundo o art. 162 do CPC, considera-se sentença, portanto impugnável através de apelação, todo ato judicial por meio do qual o magistrado ponha fim ao processo. Esta ambiguidade conceituai obrigou o legislador a declarar que o recurso cabível con-tra a decisão (ou sentençai) que negar seguimento ao recurso extraordinário e ao recurso especial é o de agravo de instrumento (art. 544).

17.4.2.2 Procedimento recursal do agravo de instrumento

Segundo dispõe o art. 522 do CPC, agravo é o recurso cabível contra todas as decisões proferidas no processo, o que significa dizer que somente não serão agraváveis os despachos de mero expediente.

que, por sua natureza, não podem causar gravame aos litigantes (art. 504), e as sentenças, que, como já vimos, são impugnáveis por apelação. Não são agraváveis de instrumento igualmente as decisões proferidas pelos tribunais superiores, com exceção apenas da hipótese do recurso cabível contra o indeferimento liminar, na instância recor-rida, do recurso extraordinário e do recurso especial (art. 544 do CPC). Das demais decisões interlocutórias ou terminativas sem julgamento de mérito, proferidas monocraticamente nos tribunais superiores, caberá agravo de que não se forma instrumento.

Esta limitação conceituai é facilmente explicável, tendo em vista as razões históricas que determinaram o surgimento do agravo de instrumento, no direito medieval português. Como o próprio nome sugere, este recurso era cabível contra as decisões proferidas por algum magistrado com jurisdição em sede geográfica diversa daquela onde se situava o órgão superior que haveria de julgar o recurso (ALFREDO BUZAID, Agravo de petição, p. 41-42), admitindo-se que o recurso de agravo subisse nos próprios autos -perpetiçam, daí a origem da denominação do recurso depois conhecido como agravo de petição -, sem a formação do instru-mento, quando a distância entre a sede do juízo inferior, agravado, e a do tribunal superior não fosse além de cinco léguas. O instrumento era e é uma forma de evitar que todo o processo fosse enviado ao tribunal superior, dificultando o prossegui-mento da causa na instância recorrida. Daí a formação do instrumento de agravo que deveria ser enviado ao juízo ad quem.

Tratando-se, pois, de agravo interposto contra decisão de algum tribunal su-perior, a ser por ele próprio apreciada em grau de recurso, não faria sentido a formação do instrumento de agravo.

Outra observação pertinente é a que diz respeito a uma imprecisão terminológica do próprio Código de Processo Civil, que às vezes denomina despa-chos provimentos judiciais que são verdadeiras decisões, que, não obstante a im-propriedade do nome, na generalidade dos casos são agraváveis. Uma imprecisão similar encontra-se na ambígua distinção encontrável no Código entre despachos de mero expediente (art. 504) e os despachos definidos pelo art. 162, § 3.°, a sugerir que estes - não sendo embora decisões - estariam excluídos da regra do art. 504.

A Lei 9.139, de 1.M2.1995, que introduziu profunda modificação no procedimento dos agravos, determina que o agravo de instrumento seja .proposto diretamente no tribunal competente para o julgamento, através de petição em que o recorrente exporá o fato e o direito, bem como as razões do pedido de reforma da decisão agravada. Deverá igual-mente essa petição indicar o nome e o endereço completo dos advogados

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constantes do processo. A contrário do regime anterior, em que o recor-rente limitava-se a indicar as peças dos autos que deveriam ser traslada-das para o instrumento do agravo, agora caberá ao próprio agravante formar o respectivo instrumento de agravo, instruindo-o com c*s docu-mentos indicados no art. 525 do CPC.

A petição de agravo de instrumento deverá, no prazo de faz dias (art, 522 do CPC), ser protocolada no tribunal competente para o julga-mento do recurso ou postada no correio sob registro com aviso 4e rece-bimento, prevendo ainda o art. 525 a interposição por outra form#» even-tualmente estabelecida através de lei estadual.

Não esclarece esse dispositivo se a interposição por via pc?stal so-mente estaria autorizada no caso de o recorrente residir em comarca diversa daquela em que tenha sede o tribunal ou se o agravante, mesmo que resida na comarca em que o tribunal esteja situado, também poderia valer-se dessa forma de interposição. Este assunto tem interesse pois, na generalidade dos casos, o expediente do estabelecimento postal stfrá mais dilatado do que o expediente forense, de modo que o recorrente que perdesse o prazo para protocolar o recurso até o final do expediente do tribunal ainda poderia, no mesmo dia, ajuizá-lo mediante o registro numa repartição do correio.

Embora a interposição do recurso se dê diretamente perante a ins-tância superior, a lei conserva o juízo de retratação, inerente aos agravos, admitindo que o juiz, prolator da decisão agravada, a reforme. Para tanto, determina o art. 526 do CPC que o agravante, no prazo de três dias, a contar do ajuizamento do agravo, junte aos autos da causa cópia d% peti-ção do recurso e do comprovante de sua interposição, além da relação dos documentos com que o instruíra.

Ao contrário do regime anterior, agora o preparo do agravo de ins-trumento é condição de sua admissibilidade, devendo o respectivo com-provante de pagamento acompanhar a petição recursal (art. 525)-

O relator do agravo determinará a intimação do agravado p^ra que ele responda o recurso em dez dias, devendo a intimação ser feita na pessoa de seu procurador, através do órgão que publicar o expediente forense, caso o recorrido já esteja representado por advogado no£ autos. Se ainda não o estiver, a intimação deverá lhe ser feita pessoalmente.

O relator do recurso poderá requisitar informações ao juiz da causa, que as prestará no prazo de dez dias (art. 527, I), bem como, indepen-

dentemente dessas informações, poderá atribuir efeito suspensivo ao agravo. É igualmente atribuição do relator negar seguimento ao agravo quando o mesmo lhe parecer "manifestamente" inadmissível, improce-dente, prejudicado ou contrário a súmula do respectivo tribunal ou de algum tribunal superior (art. 557). Obtidas pelo relator as informações que eventualmente forem solicitadas ao juiz da causa e transcorrido o prazo para a resposta do agravado - e, quando for o caso, a audiência do Ministério Público -, solicitará ele data para julgamento.

Da decisão do relator que indeferir o agravo caberá o recurso pre-visto pelo art. 557, § 1.°, do CPC.

17.4.2.3 Efeitos do agravo de instrumento

Como já vimos, o agravo de instrumento permite o reexame da matéria impugnada pelo juiz prolator da decisão recorrida. É o chamado "juízo de retratação", próprio dos agravos. Além dele, como é natural, existe igualmente o efeito devolutivo, que se manifestará se a decisão agravada for mantida pelo juiz que a tiver proferido.

A devolução, segundo o princípio geral, fica limitada exclusiva-mente à matéria impugnada no recurso, e, ao contrário da apelação, não devolve ao tribunal superior o conhecimento de outras questões anterio-res à decisão agravada. Apenas o conhecimento da matéria impugnada, constante da decisão agravada, será devolvido à instância superior, não obstante a ausência de recurso adesivo, neste caso, sugerir o benefício comum do recurso de agravo.

No que diz respeito ao efeito suspensivo, a regra é não o terem os agravos, segundo o disposto no art. 497 do CPC, ressalvadas quanto ao agravo de instrumento, as hipóteses indicadas no arts. 558 e 527, II, em que o relator do recurso poderá outorgar-lhe efeito suspensivo.

A locução constante do art. 497, declarando que a interposição do agravo de instrumento não impede o "andamento do feito", deve ser entendida, como observa J. C. BARBOSA MOREIRA (O novo processo civil brasileiro, § 20, II, 2), como não impedimento a que a decisão agravada produza seus efeitos naturais: se a decisão ordenara a realização da perícia, o agravo de instrumento não a suspenderá; se, no entanto, a decisão agravada negara a realização dessa prova, a interposição do agravo não determinará que ela seja feita; se, por exemplo, o juiz determinar a suspensão do processo e sua decisão for agravada, nem por isso haverá "andamento do processo", como poderia

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sugerir a redação do art. 497, segunda parte. Os tribunais, no entanto, têm entendido que o relator, com base no art. 527, II, além de poder atribuir efeito suspensivo ao recurso, poderá conceder liminarmente a providência denegada pela decisão agravada.

A não suspensividade do agravo de instrumento harmoniza-se com os pres-supostos históricos que determinaram a criação deste recurso, no direito lusita-no. A própria formação do instrumento para possibilitar que os autos da causa permaneçam no juízo inferior está a indicar que a interposição do recurso não deveria produzir efeito suspensivo, impedindo que a decisão agravada fosse cumprida.

Esta fundamentação, baseada na índole do agravo de instrumento, no entan-to, não era suficiente para legitimar a opção do legislador, ao limitar a poucas hipóteses a concessão do efeito suspensivo a este recurso. E a razão das críticas frequentemente feitas ao Código, neste particular, era perfeitamente compreensí-vel. Suprimindo-se, como efetivamente foram suprimidas, as outras formas de agravo e negando-se o recurso de apelação que o antigo direito luso-brasileiro outorgava contra as decisões interlocutórias que pudessem causar dano irreparável, tornava-se uma contingência inelutável a necessidade de conceder-se, em várias circunstâncias, efeito suspensivo ao agravo de instrumento (GALENO LACERDA, Apelação no processo penal brasileiro das interlocutórias que causam dano irreparável, RJTJRGS, v. 9), situação agora superada pela nova concepção do agravo de instrumento, dada pela Lei 9.139/95.

17.4.2.4Agravo retido

Segundo dispõem os arts. 522 e 523, na petição de recurso o agra-vante poderá requerer que o agravo fique retido nos autos, a fim de que dele conheça o tribunal, como preliminar, por ocasião do julgamento da apelação. Tal é o recurso introduzido no direito brasileiro pelo legislador de 1973, que passou a denominar-se agravo retido

A Lei 9.139/95 eliminou as duas espécies de agravo, o de instru-mento e o retido, para tratar o recurso simplesmente como agravo. A forma de interposição e processamento do agravo é que pode assumir a estrutura de um agravo de instrumento ou de um agravo retido.

O agravo retido não fora concebido pelos autores do projeto do Código de Processo Civil, vindo a ser adotado, por ocasião de sua discus-são no Congresso Nacional, aceitando-se, no que diz respeito a esta for-ma especial de agravo, uma sugestão formulada pelo Prof. EGAS MO-

NIZ DE ARAGAO, em trabalho publicado poucos anos antes (Dos re-cursos cíveis - Esboço legislativo, p. 14).

As controvérsias que existiam no que respeita ao agravo retido fo-ram, em sua maioria, eliminadas pela reforma, dentre estas a dúvida existente sobre a necessidade de permitir-se a impugnação do agravado, assim como a possibilidade de interpor-se oralmente o agravo. A nova lei assegurou a audiência do agravado também no agravo retido, assim como o juízo de retratação, de que já falamos, bem como dispôs a respeito da faculdade de interpor o recorrente o agravo retido sob a forma oral, con-tra as decisões proferidas em audiência (art. 523, § 3.°, do CPC).

No direito português contemporâneo, que conhece tanto os agravos de subida imediata, com instrumento, quanto os agravos de subida dife-rida, que ficam retidos nos autos, ao agravado se dá sempre oportunidade para impugnar o recurso, assim como ao juiz o dever de pronunciar-se sobre a "reparação, ou não, do agravo" (FERNANDO LUSO SOARES, O agravo e seu regime de subida, p. 378).

Igualmente, a antiga discussão a respeito da opção entre a subida imediata do agravo, com a formação do instrumento, ou sua retenção nos autos, que muitos entendiam ser exclusivamente do agravante, enquanto outros julgavam que o juiz poderia transformá-la em agravo de instru-mento, ou até mesmo o agravado poderia opor-se a que o recurso tomasse aformade agravo retido, transformando-o, contra o desejo do agravante, em agravo de instrumento, em parte está superada pela nova lei, que estabelece as hipóteses em que o recurso haverá de adotar necessaria-mente a forma de agravo retido, salvo nas hipóteses em que o juiz, acei-tando a alegação do agravante da existência de risco de dano de difícil ou incerta reparação, determine, mesmo nestes casos, que o agravo se pro-cesse por instrumento (art. 523, § 4.°, do CPC). A Lei 10.552, de 26.12.2001, deu nova redação ao art. 523, dispondo que será retido o agravo das decisões proferidas na audiência de instrução e julgamento e das posteriores à sentença, salvo nos casos de dano de difícil e de incerta reparação, bem como das decisões que inadmitam o recurso de apelação e as que digam respeito aos efeitos em que esse recurso seja recebido.

O agravo retido somente será conhecido pelo tribunal se o agravante o confirmar por ocasião de formular as razões da apelação ou, sendo recorrido, quando oferecer resposta a este recurso, oportunidade em que deverá requerer expressamente a apreciação do recurso. Não o fazendo, ter-se-ã a omissão como desistência do recurso.

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17.4.3 Embargos

17.4.3.1 Introdução

O vocábulo embargo é usado no direito brasileiro em diversas acep-ções. No plural, pode significar tanto recurso em sentido estrito, a ser oposto a algum provimento judicial, quanto uma ação especial. Neste último sentido, temos as ações de embargos que competem ao devedor executado (art. 736 do CPC) e os embargos de terceiro (art 1.046 do CPC). Empregada no singular - embargo -, a palavra significava, no direito antigo luso-brasileiro, a medida cautelar a que se passou a chamar arresto, a partir do século XIX. E, como recurso, é remédio exclusiva-mente encontrável nos sistemas jurídicos português e brasileiro, tal como os agravos, sem similar em outros sistemas jurídicos (EGAS MONIZ DE ARAGÃO, Embargos infringentes, n. 85).

O atual sistema recursal brasileiro conhece, com a denominação de embargos, além dos embargos de declaração, cuja natureza recursal nem sempre é reconhecida pela doutrina, os embargos infringentes (art. 530 do CPC), e, no Supremo Tribunal Federal e no Superior Tribunal de Justiça, os embargos de divergência (art. 546, parágrafo único, do CPC).

Além das acepções acima indicadas, emprega-se a mesma palavra embargo, novamente no singular, para designar a fase inicial e cautelar da ação de nunciação de obra nova, em cujo momento o nunciante pede o embargo da obra, a fim de que a mesma fique suspensa, durante a tramitação da causa, e seja afinal reconstruída, modificada ou demolida, conforme a natureza do pedido (art. 936,1, do CPC).

17.4.3.2 Embargos de declaração

E o instrumento de que a parte se vale para pedir ao magistrado prolator de uma dada sentença que a esclareça, em seus pontos obscuros, ou a complete, quando omissa, ou, finalmente, que lhe repare ou elimine eventuais contradições que porventura contenha. Os embargos de decla-ração oferecem o exemplo mais rigoroso e completo de recurso apenas com efeito de retratação, sem qualquer devolução a algum órgão jurisdi-cional superior. Ele é interposto sempre perante o magistrado prolator da decisão impugnada, para ser por ele próprio julgado.

Os embargos de declaração não estão sujeitos a preparo nem se admite, neles, resposta da parte contrária, limitando-se o respectivo

procedimento recursal à petição fundamentada por meio da qual o embargante interpõe o recurso, às providências cartorárias tendentes a levar os autos conclusos ao magistrado prolator da decisão embargada (ou, nas instâncias colegiadas, ao relator do acórdão) e à nova decisão proferida nos embargos de declaração.

Embora às vezes se procure negar o caráter recursal aos embargos de decla-ração, parece indiscutível sua natureza de recurso não só porque poderá existir alguma sucumbência causada ao embargante pela porção da sentença ou do acór-dão obscura, contraditória ou omissa (cf. J. FREDERICO MARQUES, Manual..., v. 3, n. 632), mas especialmente porque são frequentes os embargos de declaração cujo provimento importa modificação do julgado, mostrando-se os embargos de declaração com sentido visivelmente infringente. Imagine-se o caso de haver a decisão embargada julgado procedente a ação, silenciando, porém, a respeito da exceção de prescrição suscitada pelo demandado. Neste caso, o provimento dos embargos de declaração poderá determinar a total modificação do julgado, vindo o magistrado ou o órgão colegiado, prolator da decisão embargada, a reconhecer a ocorrência de prescrição, para julgar improcedente a ação antes acolhida.

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem preconizado o emprego dos embargos de declaração para suprir omissão porventura existente não pro-priamente no dispositivo do acórdão atacado por recurso extraordinário, mas em seus fundamentos, quando, havendo uma "questão federal" suscitada na causa, sobre ela haja silenciado o Tribunal, de modo a inviabilizar, com tal silêncio, o cabimento do recurso.

Mas nem só as sentenças e acórdãos podem conter omissões, obscuridades ou contradições que exijam a providência saneadora dos embargos de declaração. Também as decisões interlocutórias poderão conter vícios dessa natureza, como no caso de haver o magistrado, em despacho saneador, omitido pronunciamento sobre uma questão preliminar de mérito que o demandado haja suscitado, capaz de ser decidida independentemente da futura instrução probatória em audiência, ou se fora alegada pelo réu a falta de legitimatio ad processum, ou qualquer outro vício formal, desses que podem acarretar a extinção do processo sem julgamento de mérito. A solução, nestes casos, será a interposição dos embargos de declaração, se a parte não confiar em simples pedido de reconsideração ou esclarecimento que, desacolhido pelo magistrado, depois de exaurido o prazo recursal, importaria em preclusão quanto à futura sanação do defeito ou reapreciação da questão já decidi-da, salvas naturalmente as questões que o magistrado poderia apreciar de ofício.

Não cabem, todavia, embargos de declaração contra acórdão que se limite a confirmar, por seus próprios fundamentos, decisão inferior que contenha alguma omissão, obscuridade ou contradição (J. FREDERICO MARQUES, Instituições..., v. 4, n. 1.010). O recurso, aqui, haveria de ter sido oposto à decisão inferior porta-

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dora do vício, e não ao acórdão que a tenha confirmado. Em sentido contrário, porém, preconizando o uso dos embargos de declaração, mesmo que a omissão tenha ocorrido no julgamento de grau inferior e o acórdão apenas o confirme, PON-TES DE MIRANDA (Comentários..., v. 7, p. 387) e BARBOSA MOREIRA (Comentários..., p. 503).

A recente Lei 8.950, de 13 de dezembro de 1994, que introduziu reformas no Código de Processo Civil, alterou o regime dos embargos de declaração, suprimindo a previsão do recurso contra as sentenças sepa-radamente do recurso cabível contra os acórdãos, para reunir as duas hipóteses num único dispositivo. Assim, a sede dos embargos contra as sentenças passou do art. 464 para o art. 535 do CPC, que concede embar-gos de declaração quando houver na sentença ou no acórdão obscuridade ou contradição, ou quando for omitido ponto sobre o qual devia pronun-ciar-se o juiz ou tribunal.

Foi igualmente retirada do texto primitivo a referência a "ponto duvidoso" como fundamento para os embargos de declaração, por con-siderar-se que a dúvida é uma condição subjetiva da parte, que não pode estar objetivamente na decisão. Na verdade, a dúvida pode ser uma con-sequência motivada pela obscuridade ou contradição existente no julga-do (J. C. BARBOSA MOREIRA, Comentários..., p. 500).

Modificado, também, o art. 536 que passou a ter a seguinte redação: "Os embargos serão opostos, no prazo de 5 (cinco) dias, em petição dirigida ao juiz ou relator, com indicação do ponto obscuro, contraditório ou omisso, não estando sujeito a preparo".

17.4.3.3 Embargos infringentes

Em sua redação primitiva, o art. 530 do CPC autorizava a interpo-sição de embargos infringentes contra os acórdãos não unânimes profe-ridos em apelação e em ação rescisória. Era a forma tradicional dos embargos infringentes. A Lei 10.352, de 26 de dezembro de 2001, po-rém, somente concede esse recurso quando, o acórdão não unânime hou-ver reformado em grau de apelação a sentença de mérito; ou houver julgado procedente a ação rescisória. Contra o acórdão, embora não unâ-nime, que confirmar a sentença de mérito ou julgar improcedente a ação rescisória não cabem mais embargos infringentes.

Trata-se, portanto, de recurso da competência exclusiva dos tribunais, que pressupõe a existência de uma decisão proferida por

algum órgão jurisdicional colegiado, coisa inexistente nos juízos de primeira instância no direito brasileiro.

Tínhamos, é verdade, no regime do Código anterior os embargos infrin-gentes nas chamadas causas de alçada, conforme dispunha o art. 839 desse es-tatuto, quando seu valor fosse igual ou inferior a dois salários mínimos. Neste tipo de demanda, não cabia apelação, e o único recurso possível contra a sentença eram os embargos infringentes, que haveriam de ser decididos pelo próprio juiz, em instância única.

No direito vigente, a reintrodução dos embargos infringentes em causas de alçada, com supressão do segundo grau de jurisdição, fez-se de maneira mais severa e grave, com a promulgação da Lei 6.825, de 22 de setembro de 1980, revogada pela Lei 8.197, de 27 de junho de 1991, que somente admitia embargos infringentes contra as sentenças proferidas em processos da competência da jus-tiça federal, interpostos para o juiz prolator da sentença, nas causas cujo valor não excedesse a cinquenta vezes o valor de uma Obrigação Reajustável do Tesouro Nacional (ORTN).

Esta rtiesma supressão do segundo grau de jurisdição, criticada por setores consideráveis da doutrina brasileira, ocorre também nas ações de cobrança da dívi-da ativa da Fazenda Pública (Lei 6.825, de 22 de setembro de 1980), na mesma data da lei editada para assegurar "maior celeridade" aos feitos da competência da jus-tiça federal. ANTÓNIO CARLOS COSTA E SILVA {Teoria e prática do processo executivo fiscal, p. 631) critica esta orientação do legislador brasileiro e J. J. CALMON DE PASSOS (O devido processo e o duplo grau de jurisdição, RF 2111 6) considera a preservação do duplo grau de jurisdição um princípio constitucional que a lei ordinária não poderia infringir.

Os embargos infringentes - que compreendem hoje tanto os antigos infringentes quanto os embargos de nulidade do julgado - contêm efeito suspensivo e efeito devolutivo, sendo, todavia, de observar-se o seguinte: a interposição do recurso suspende apenas o capítulo, ou capítulos, do acórdão sobre os quais se tenha verificado a quebra da unanimidade, pois somente quanto a esta caberão os embargos infringentes, operando-se desde logo a coisa julgada a respeito da matéria sobre a qual não tenha havido divergência; relativamente ao efeito devolutivo, é possível ocorrer que ele se mescle com o juízo de retratação, sempre que na composição do órgão jurisdicional superior que os deva julgar figurem alguns ou todos os magistrados componentes do órgão prolator da decisão embar-gada, juntamente com juizes estranhos ao primeiro julgamento. Segundo dispõe o art. 533, parágrafo único, do CPC, o próprio relator poderá ser

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sorteado dentre os magistrados que hajam participado do julgamento embargado, caso esta solução não possa ser evitada, tendo em vista a composição do respectivo tribunal.

Se o acórdão contiver inúmeros capítulos, manifestando-se a que-bra da unanimidade apenas em relação a um ou a alguns deles, somente quanto a estes poderão os vencidos, em votação majoritária, opor em-bargos infringentes, propondo, se assim o desejarem, simultaneamente com os embargos, o recurso extraordinário ou recurso especial (art. 498 do CPC), se os pressupostos de admissibilidade destes recursos estiverem configurados no processo. No caso de interposição simultâ-nea de embargos infringentes e recurso extraordinário, ou especial, suspender-se-á o processamento dos últimos enquanto o tribunal infe-rior não julgar os embargos, dando-se curso ao extraordinário ou ao especial assim que aqueles sejam decididos na instância local, não sen-do de afastar-se a eventualidade de haver também na decisão a respeito da qual houvera a divergência no julgamento da apelação ou da açao rescisória outra "questão federal", a ensejar um segundo recurso ex-traordinário, ou um segundo recurso especial, a ser agora interposto contra a decisão que, nos embargos infringentes, houver confirmado o acórdão recorrido (J. C. BARBOSA MOREIRA, Comentários,.., n. 161, nota 402).

O juízo de admissibilidade nos embargos infringentes opera-se em dois estágios, sendo facultado ao relator do acórdão embargado - aberta vista ao recorrido para contra-razões - indeferi-los de plano se não for o caso de embargos infringentes, cabendo desta decisão agravo para o órgão colegiado competente para o julgamento dos embargos (art. 532 do CPC).

Ao aludir o Código à recorribilidade de um simples despacho que, pelo sistema adotado, seria irrecorrível, constata-se uma dupla impropriedade de lin-guagem, a contrariar as intenções de purismo conceituai manifestadas pelo legis-lador: o "despacho" através do qual o relator indefere liminarmente os embargos infringentes, a preservar-se os conceitos acolhidos pelo Código, teria de ser con-siderado sentença, eis que extintivo da relação processual; em sendo sentença, o recurso cabível seria a apelação, e não o agravo indicado no art. 532.

A extensão do efeito devolutivo abrange apenas a porção do acórdão a respeito da qual tenha havido a divergência, limitando-se portanto às dimensões do voto vencido. Se, por exemplo, pediu ao autor, em seu

recurso de apelação, que a sentença fosse reformada para que o tribunal reconhecesse a procedência de todos os pedidos formulados na petição inicial, e o acórdão proferido em tal recurso deu provimento à apelação para julgar procedente apenas a ação reinvidicatória, e não a demanda cumulada por perdas e danos, a respeito da qual a decisão não tenha sido unânime, somente com relação à ação indenizatória teria o autor possi-bilidade de formular embargos infringentes. Se, em vez de dar procedên-cia ao recurso de apelação, o tribunal tivesse confirmado a sentença por unanimidade quanto à rejeição da ação reinvidicatória e por maioria igual-mente rejeitasse a ação por perdas e danos, apenas quanto a esta-última demanda seriam admissíveis os embargos. Se, noutro exemplo, a diver-gência estiver limitada ao valor arbitrado para os honorários de sucum-bência, tendo sido unânime o acórdão quanto ao resto, apenas sobre honorários, e nos limites da divergência, caberiam os embargos. Assim, se a maioria dos juizes da apelação atribuir ao vencido o encargo de pagar 12% e o prolator do voto vencido der provimento à apelação do autor para condenar o demandado a pagar 20% de honorários, apenas na faixa limitada por estes dois valores poderia operar o efeito devolutivo dos embargos, porventura opostos pelo litigante que tivera a seu favor o voto vencido. O tribunal não poderia rebaixar para aquém dos 12% os hono-rários a serem indenizados pelo vencido, em razão da sucumbência, por-que, no exemplo, até o limite de 12% de honorários houvera unanimida-de no acórdão embargado, manifestando-se a divergência a partir de tal valor, de modo que tudo que o juízo ad quem reduzisse para aquém desse limite ofenderia o art. 530 do CPC.

Estando o pedido de reforma do acórdão embargado rigorosamente limitado à diferença entre a decisão "majoritária e aquilo que o voto vencido haja concedido ao embargante, não podendo a extensão do efeito devolutivo ser maior do que a vantagem outorgada ao recorrente pelo voto vencido, quanto à profundidade, no entanto, permitem os embargos infringentes a confirmação do acórdão embargado e, pois, a rejeição do recurso por outro fundamento que não aquele aceito pelo prolator do voto vencido. Assim, tendo o voto vencido negado pro-cedência a um dos pedidos formulados na ação, por considerá-la prescrita, poderá o juízo dos embargos infringentes negar procedência ao recurso, mesmo aceitando os argumentos expostos pelo embargante de que a ação realmente não estava prescrita, considerando-a, porém, improcedente por outro fundamento.

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Uma das questões de extrema delicadeza que pode ocorrer em qualquer julgamento colegiado, mas que é mais frequente nos embargos infringentes, é o problema da dispersão de votos.

Ocorrendo este fenómeno, deverá o presidente do órgão colegiado a quem couber a proclamação do resultado da votação procurar estabelecer o voto médio produzido pelos julgamentos diferentes constantes de cada voto individual. Diga-mos que o objeto da devolução nos embargos infringentes - naquele exemplo em que a matéria impugnada no recurso foi o quantum dos honorários da sucumbência -oscilasse entre os 12% e os 20%, correspondente à diferença entre a decisão majo-ritária e o respectivo voto vencido, e que, no julgamento dos embargos, os votos se dispersassem do seguinte modo: um dos julgadores, negando inteiramente proce-dência ao recurso, manteve os 12% arbitrados na apelação; o segundo juiz deu provimento ao recurso para conceder não os 20%, mas apenas 15% de honorários; o terceiro magistrado lhe deu igualmente provimento, atribuindo 17%, e não os 20% reclamados; finalmente, os dois outros julgadores concederam os 20% postu-lados nos embargos. Neste caso, a determinação do voto médio não ofereceria maiores dificuldades, uma vez que bastaria fossem computados os votos de tal modo que se alcançasse a maioria relativa dos votos concordantes. No caso, três julgadores conferiram ao embargante 17% de honorários (o juiz que concedeu os 17% e os dois que proveram integralmente o recurso), ficando, portanto, vencidos nos embargos os dois juizes que concederam quantias inferiores.

Nem sempre, todavia, é possível a determinação do voto médio. Às vezes a dispersão é de tal natureza e a diversidade dos votos tão profunda que se torna inviável a obtenção desse resultado. EGAS MONIZ DE ARAGÃO {Embargos infringentes, p. 140) vale-se do seguinte exemplo dado por CARNELUTTI: "Ima-gine-se que, para a decisão da lide entre Caio, que pede o pagamento do preço de uma compra e venda, e Tício, que lhe opõe, em exceção, a nulidade do contrato ou, em segundo plano, o inadimplemento, um dos três juizes do tribunal opine no sentido de acolher a exceção de nulidade, o outro de rejeitá-la, acolhendo, porém, a exceção de inadimplemento, e o terceiro, enfim, de rejeitar ambas as exceções e, por isso, acolher o pedido". Qual, neste caso, haveria de ser o resultado do julga-mento, a ser proclamado pelo presidente? EGAS MONIZ DE ARAGÃO, contra-riando o entendimento de CARNELUTTI, considera que o resultado da votação teria acusado a rejeição das duas exceçòes, devendo o julgamento prosseguir para apurar-se a procedência ou improcedência do recurso. O raciocínio empregado é o seguinte: a alegação de nulidade aceita apenas por um dos julgadores fora repelida por dois votos, o mesmo acontecendo com a outra defesa oposta pelo demandado. Apenas um dos três julgadores teria aceito a exceção de inadimplemento, de tal modo que a votação majoritária seria no sentido da rejeição deste fundamento. Como ambas as preliminares opostas pelo demandado apenas tiveram um voto. devemos concluir que a decisão do órgão colegiado estabeleceu-se no sentido de rejeitá-las a ambas, devendo, em tal caso, prosseguir-se no julgamento.

Deve-se observar-se ainda que, assim como pode ocorrer nos de-mais recursos, também os embargos infringentes podem ter o sentido de recurso parcial, ou seja, o embargante pode preferir limitar sua inconfor-midade apenas a uma porção daquilo que lhe seria lícito impugnar. Ima-ginemos que, havendo o autor postulado, na ação de reivindicação, a restituição do imóvel de sua propriedade (art. 524 do CC) e mais a inde-nização devida pela utilização ilegítima desse bem, haja obtido em ape-lação decisão adversa quanto a ambas as ações, verificando-se, porém, tanto na ação reivindicatória quanto na ação de indenização, um voto vencido que dava procedência a ambas as demandas. Neste caso, os embargos infringentes, se propostos em toda a extensão permitida pelo aludido voto vencido, teriam devolvido ao órgão superior o conhecimen-to integral da lide, uma vez que, contrapondo-se aos dois votos vencedo-res, o voto vencido reconhecia a procedência integral das ações cumula-das, fazendo com que a divergência verificada na votação - que há de ser a medida do efeito devolutivo nos embargos infringentes - abrangesse toda a controvérsia existente na causa. Poderá, no entanto, o embargante preferir, neste caso, excluir do recurso a ação indenizatóría. Se isto ocor-rer, é evidente que a devolução nos embargos infringentes estender-se-á apenas à ação de reivindicação, sendo impossível ao juízo ad quem apre-ciar o julgamento verificado na apelação quanto à ação indenizatória.

17.4.4 Recurso extraordinário «

17.4.4.1 Fundamentos

Para compreendermos o sentido e a função do recurso extraordi-nário no direito brasileiro, devemos ter em mente o princípio de que a lei, qualquer que seja o seu sentido e alcance, deve incidir e ser aplicada de modo uniforme para todos aqueles que fiquem sujeitos à sua disci-plina. Todo ordenamento jurídico deve respeitar o princípio de que a lei há de ser igual para todos e empenhar-se no sentido de reduzir, tanto quanto possível, as divergências e antagonismos porventura verifica-dos entre as decisões proferidas pelos tribunais, no que diga respeito à aplicação de uma mesma lei.

Em nosso sistema processual, a preservação do princípio da unidade do ordenamento jurídico conta com dois instrumentos: o expediente técnico denominado uniformização de jurisprudência (art.

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476 do CPC), quando a divergência na aplicação da mesma lei se der entre órgãos fracionários do mesmo tribunal; e o recurso extraordinário e o especial, quando tal divergência ocorrer entre tribunais diferentes.

Nos Estados unitários, particularmente europeus, esta função atribuída entre nós ao recurso extraordinário e ao recurso especial é desempenhada pelo denomi-nado recurso de cassação. É o que ocorre na França e na Itália. Nos Estados federais, como é o Brasil, além da preservação específica do princípio da unidade do ordenamento jurídico, eventualmente quebrada em virtude de julgamentos di-vergentes sobre um mesmo preceito legal, pode haver uma quebra semelhante da unidade provocada pela colisão entre uma lei federal, editada pela União, e algu-ma lei promulgada pelos Estados-membros ou pelos Municípios.

Esta segunda função, qual seja a de preservar a supremacia da lei federal sobre as leis de hierarquia inferior, é desempenhada igualmente entre nós pelo recurso extraordinário, quando se tratar de ofensa à ordem constitucional, e pelo recurso especial, quando se alegue violação de norma federal infraconstitucional.

Tendo em vista a natureza e função do recurso extraordinário, com-preende-se facilmente que somente o tribunal de mais alta hierarquia, dentro da organização judiciária, seja competente para julgá-lo. Daí ca-ber por disposição constitucional ao Supremo Tribunal Federal a compe-tência para o julgamento do recurso extraordinário.

Com a proclamação da república, tornou-se necessária a instituição de um recurso capaz de assegurar a unidade e a supremacia das leis federais, cuja aplica-ção era confiada, como é natural num Estado federativo, a tribunais pertencentes aos Estados-membros. No lugar do antigo recurso de revista, existente ao tempo do Império com função semelhante, introduziram os legisladores republicanos, através do Decreto 510, de 22 de junho de 1890, portanto antes de ser promulgada a primeira Constituição republicana, um recurso inominado, sob certos aspectos semelhante à antiga revista, mas inspirado diretamente no recurso existente do direito norte-americano, denominado writ of error, cabível, como passou a ser o nosso recurso extraordinário, sempre que a decisão impugnada houvesse decidi-do uma questão sobre validade de tratado firmado pela União Federal ou relativa a uma lei federal, bem como nos casos em que a decisão recorrida houvesse dado validade a uma determinada lei local, impugnada como contrária à Constituição ou a alguma lei federal (JOSÉ AFONSO DA SILVA, Do recurso extraordinário no direito processual brasileiro, p. 30).

A Constituição Federal de 1891 consagrou tal recurso ao estabelecê-lo em seu art. 59, § 1 °, sem todavia denominá-lo recurso extraordinário, não obstante haver antes dela o Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, editado a 26 de

fevereiro de 1891, adotado tal denominação, que, todavia, só teve acolhida em texto constitucional pela Constituição Federal de 1934.

Como se vê, os recursos de natureza extraordinária, aí compreen-didos o recurso especial e o extraordinário propriamente dito, ao contrá-rio dos demais recursos ordinários, não têm por fim o exclusivo interesse do recorrente em obter a reforma da decisão impugnada em seu benefício pessoal, mas, ao lado desse interesse privado, serve-se o ordenamento jurídico da iniciativa do recorrente para manter e preservar os princípios superiores de unidade e inteireza do sistema jurídico em vigor, evitando que interpretações divergentes e contraditórias sobre um mesmo preceito de lei federal acabem gerando a insegurança e a incerteza quanto à exis-tência dos direitos consagrados e protegidos pela lei.

17.4.4.2 Hipóteses de cabimento do recurso extraordinário

As hipóteses de cabimento do recurso extraordinário vêm tradicio-nalmente indicadas nos textos de nossas Constituições Federais. Como já vimos, tratando da nossa organização judiciária, a Constituição Federal de 1988, ao criar o Superior Tribunal de Justiça, no lugar do antigo Tri-bunal Federal de Recursos, transferiu a ele competência para o julgamento das causas em que se alegue haver a decisão de única ou última instância proferida pelos tribunais regionais federais ou pelos tribunais dos Estados, do Distrito Federal e Territórios contrariado tratado ou lei fede-ral ou lhes negado vigência; ou quando se alegue que o julgamento recor-rido haja considerado válida uma lei ou ato de governo local contestado em face de lei federal; ou, finalmente, quando se alegue que a decisão recorrida deu interpretação divergente a lei federal da que lhe haja dado outro tribunal (art. 105, III, da CF).

Com tal repartição de competência para o julgamento dos "recur-sos extraordinários" - assim considerados, por sua natureza, tanto o próprio recurso extraordinário quanto o recurso especial -, ao Supremo Tribunal Federal reservou-se apenas competência para julgar, median-te recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última ins-tância, quando o recorrente alegar que a decisão recorrida: a) haja con-trariado dispositivo da Constituição; ou b) haja declarado a inconstitu-cionalidade de tratado ou lei federal; ou c) tiver considerado válida lei ou ato de governo local contestado, no processo, em face da Constitui-ção (art. 102, III, da CF). Quer dizer, ao Supremo Tribunal Federal cabe

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agora, em face da nova Constituição Federal, o julgamento apenas das "questões constitucionais", ficando reservado à competência do Supe-rior Tribunal de Justiça o julgamento dos recursos em que se controverta "questões federais" infraconstitucionais.

Essa distribuição de competência, entre o Supremo Tribunal Fede-ral e o Superior Tribunal de Justiça, para o julgamento das hipóteses em que, no regime anterior, cabia recurso extraordinário, sempre para o Supremo, teve por finalidade aliviar a carga excessiva de processos que anualmente lhe eram submetidos a julgamento.

Sua transformação em corte exclusivamente constitucional trans-feriu para o Superior Tribunal de Justiça - que é uma corte composta por um número bem maior de magistrados - as hipóteses de cabimento de ocorrência incomparavelmente mais frequente, pois, como sempre se disse, a denominada "crise" do Supremo Tribunal Federal decorria diretamente da inclusão, dentre as hipóteses de cabimento do extraor-dinário, das causas em que se alegasse negativa de vigência às leis ordinárias (infraconstitucionais). Toda esta carga passou agora para o Superior Tribunal de Justiça que, tendo em vista sua constituição numericamente mais ampla, provavelmente poderá vencê-la, prestando uma jurisdição mais efetiva.

Não se pode, todavia, esquecer que o sistema jurídico brasileiro, com a predominância absoluta do direito federal sobre os direitos locais - ao contrário, por exemplo, do que acontece nos Estados Unidos da América, onde a produção do direito tanto processual como material não é federal, embora haja tendência para o crescimento desta fonte legislativa -, representará, entre nós, uma causa perene para o permanente aumento da demanda junto ao tribunal incumbido de velar pela unidade do direito federal infraconstitucional, no caso, perante o Superior Tribu-nal de Justiça.

Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, desaparece-ram as regras contidas no Regimento Interno do Supremo Tribunal Fede-ral, em que a própria Corte Suprema, valendo-se da autorização que lhe concedia a Constituição anterior, dispunha sobre os casos em que o re-curso extraordinário não cabia, ainda que a parte pudesse alegar violação da lei federal, ordinária, não havendo mais necessidade de invocar-se a "relevância" da questão federal para que, tanto o recurso extraordinário, perante o Supremo, quanto o especial, da competência do Superior Tri-bunal de Justiça, sejam cabíveis.

17.4.4.3 Juízo de admissibilidade no recurso extraordinário

Devemos, antes de mais nada, estabelecer uma condição genérica fundamental para o cabimento do recurso extraordinário, que é a exis-tência na causa de controvérsia a respeito de uma "questão federal". Trata-se, portanto, de recurso de fundamentação vinculada, ao contrá-rio, por exemplo, da apelação, para a qual basta a sucumbência sofrida pelo recorrente independentemente de outro requisito (J. C. BARBO-SA MOREIRA, Comentários..., n. 143). Na apelação, a fundamenta-ção é livre, enquanto nos embargos infringentes, tal como no recurso extraordinário, exige-se fundamentação específica. Nos embargos in-fringentes, é necessário que a sucumbência se dê por maioria de votos, ou seja, é necessário que a parte, além de sofrer o gravame que generi-camente lhe daria legitimidade e interesse para recorrer, obtenha, em seu favor, ao menos um voto, a não ser, naturalmente, no caso excepcio-nal de caberem embargos infringentes, em primeira instância, para o próprio juiz prolator da sentença, caso em que desaparece o pressuposto da quebra de unanimidade para o cabimento desse recurso. Também no recurso extraordinário não basta o fato puro e simples da sucum-bência, sendo necessário que a parte sofra gravame em virtude de uma decisão que lhe seja adversa a respeito de uma "questão federal" sus-citada e controvertida na causa. E que esta seja o fundamento exclu-sivo do acórdão.

É necessário, portanto, para que a parte possa utilmente intentar o recurso extraordinário, que haja controvérsia nos autos a respeito da aplicabilidade ao caso litigioso de algum tratado ou lei federal, sobre cuja validade ou sentido se questione em face da Constituição Federal. A prática judiciária consagrou esta exigência com o requisito do preques-tionamento da "questão federal", sem o qual nenhum recurso extraordi-nário será admitido.

A "questão federal", seja infraconstitucional, no caso de recurso especial, seja constitucional, para ensejar recurso extraordinário, deve não só estar preques-tionada na causa como igualmente sobre ela é necessário ter havido julgamento expresso por ocasião da decisão recorrida. E o que dispõe a Súmula 282 do STF: "É inadmissível o recurso extraordinário, quando não ventilada, na decisão recor-rida, a questão federal suscitada".

Imagine-se que haja controvérsia nos autos a respeito de algum dispositivo da Constituição Federal a que a sentença de primeira instância explicitamente

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fizera alusão, para declará-lo inaplicável ao caso dos autos ou para dar-lhe inter-pretação errónea ou divergente de outra interpretação dada ao mesmo dispositivo por outro tribunal. A parte sucumbente, ao apelar, insistiu na "questão federal" erroneamente decidida em primeira instância, mas o tribunal da apelação omitiu qualquer pronunciamento a respeito dela. Se a parte não interpuser embargos declaratórios, para forçar o tribunal a manifestar-se sobre a questão federal prequestionada, o recurso extraordinário não será possível. Para esta conclusão concorrem a Súmula 282, há pouco transcrita, e mais a Súmula 356, cujo enuncia-do é o seguinte: "O ponto omisso da decisão, sobre o qual não foram opostos embargos declaratórios, não pode ser objeto de recurso extraordinário, por faltar o requisito do prequestionamento".

É de observar que os embargos declaratórios interpostos contra a decisão recorrível extraordinariamente não serão nunca veículo adequado para suscitar-se uma dada "questão federal" legitimadora de recurso extraordinário. Se a questão não fora antes prequestionada nos autos, seu aporte apenas no derradeiro momento dos embargos declaratórios não terá a virtude de tornar admissível o recurso ex-traordinário até então inviável.

O controle da admissibilidade do recurso extraordinário, como na apelação e nos embargos infringentes opostos a acórdãos, faz-se tanto na instância recorrida quanto, depois, no juízo ad quem, quando o pro-cesso lhe for enviado para julgamento. O juízo de admissibilidade do recurso extraordinário processa-se, na instância ordinária, prolatora do acórdão recorrido, segundo o disposto nos arts. 542-544 do CPC. For-mulado o recurso por meio de petição elaborada com os requisitos exigidos pelo art. 541 do CPC, será ela apresentada à secretaria do tribunal e aí protocolada, devendo intimar-se o recorrido, abrindo-se-lhe vista para contra-razões.

Apresentadas ou não as contra-razões, no prazo do art. 508, os autos serão conclusos ao magistrado, a quem cabe apreciar o cabimento do recurso, segundo o regimento interno do tribunal, a fim de que este, no prazo de quinze dias, decida, em decisão fundamentada, a respeito de seu cabimento.

Admitido o recurso, os autos serão remetidos ao Supremo Tribunal Federal. Caso a decisão seja denegatória do seguimento do recurso, ca-berá agravo de instrumento, no prazo de dez dias, para o Supremo Tribu-nal Federal, instruído, segundo dispõe o § 1.° do art. 544, obrigatoria-mente, com cópia do acórdão recorrido, da petição de interposição do recurso denegado, das contra-razões, da decisão agravada, da certidão da respectiva intimação e das procurações outorgadas aos advogados do

agravante e do agravado, além de outras peças que o recorrente entenda juntar à petição do agravo.

Como ocorre nos demais agravos de instrumento, não haverá aqui juízo de admissibilidade na instância recorrida. Distribuído e processado o recurso, perante o Supremo Tribunal Federal, o relator proferirá deci-são, provendo ou não o agravo. Se, no entanto, os recursos extraordinário ou especial forem interpostos contra decisão interlocutória, ficarão "re-tidos nos autos", e somente serão processados se o recorrente os reiterar, no prazo para a interposição de tais recursos contra a decisão final, ou para as contra-razões (art. 542, § 3.°, do CPC).

Caso não o proveja, da decisão denegatória cabe agravo para o órgão julgador, no prazo de cinco dias (art. 545 do CPC).

Na hipótese de provimento do agravo, prescreve o § 3.° do art. 544 do CPC que, se o instrumento contiver os elementos necessários ao jul-gamento do mérito do recurso extraordinário, o relator determinará a conversão do agravo, observando-se, a partir de então, o procedimento relativo ao recurso especial, na mesma causa, que deverá ser julgado em primeiro lugar.

Havendo interposição de recurso extraordinário e especial contra o acórdão, sendo ambos admitidos, os autos deverão ser encaminhados ao Superior Tribunal de Justiça, para que esta corte aprecie o recurso espe-cial. Concluído o julgamento do recurso especial, serão os autos remeti-dos ao Supremo Tribunal Federal, para apreciação do recurso extraordi-nário, caso este não fique prejudicado pelo julgamento do recurso espe-cial (art. 543, § 1.°, do CPC).

17.4.4.4 Efeitos do recurso extraordinário

O recurso extraordinário não possui efeito suspensivo, devendo ser recebido apenas no efeito devolutivo (art. 542, § 2.°, do CPC), de modo que, na dependência dele, é sempre possível a execução provisó-ria da decisão recorrida.

Relativamente a seu efeito devolutivo, dá-se uma particularidade que p faz diferente dos embargos infringentes. Neste recurso, a extensão do efeito devolutivo tem seus limites rigorosamente traçados pela exten-são da divergência havida entre a decisão majoritária e o respectivo voto vencido. No recurso extraordinário, que, como os embargos infringen-

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tes, exige fundamentação vinculada ou específica, neste caso decorrente de uma controvérsia a respeito da aplicação de alguma norma de direito federal, uma vez admitido o recurso, transfere-se ao Supremo Tribunal Federal o conhecimento integral da causa.

Deve registrar-se, no entanto, que somente as questões de direito (quaestiones iuris) poderão ser examinadas em nível de recurso extraordinário. As questões de fato, ligadas a problemas probatórios, não terão jamais acesso ao Supremo Tribunal Federal, pela via do recurso extraordinário.

A extensão do efeito devolutivo, todavia, dependerá ainda de outras circuns-tâncias. Imagine-se que haja controvérsia na causa a respeito de duas questões federais, uma ligada à aplicação de algum preceito contido no art. 178 do CC (art. 206 do novo CC), referente à prescrição, e outra sobre a qualificação do contrato litigioso, que o recorrente afirma ser um contrato de promessa de compra e venda, tendo o tribunal local se recusado a aplicar os dispositivos pertinentes a tal negócio jurídico. Se o recorrente - não obstante o prequestionamento das duas questões -houver interposto o recurso fundado apenas em errónea aplicação da lei federal sobre contratos preliminares, o Supremo Tribunal Federal não poderá apreciar a outra questão federal referente à prescrição. Neste caso, ter-se-ia verificado uma hipótese de recurso parcial, fenómeno que sempre ocorre quando a parte, podendo ampliar o recurso de modo a abranger toda a sucumbência, nos limites máximos de sua extensão, limita a inconformidade apenas a uma porção dela.

Esta limitação do efeito devolutivo, no recurso extraordinário, como vere-mos ao tratar do recurso adesivo, pode revestir-se de significativo interesse prá-tico, na hipótese em que o recorrido, havendo suscitado uma controvérsia a res-peito de alguma norma de direito federal, resulte vitorioso em última instância na justiça local, por outro fundamento, não obstante a decisão adversa a respeito da "questão federal" suscitada. No recurso extraordinário, porventura interposto por seu adversário - que na hipótese fora o sucumbente -, não poderá o Supremo Tribunal Federal reexaminar a "questão federal" suscitada pelo recorrido, que não fora objeto de recurso específico. Isto significa dizer que, no que diz respeito ao recurso extraordinário, o efeito devolutivo não tem a extensão que o art. 515 do CPC lhe confere na apelação.

Dissemos que o recurso extraordinário, à semelhança do juízo de cassação, não admite que o tribunal incumbido de julgá-lo desça até o exame das questões de fato suscitadas na causa, e que tenham sido utili-zadas pela decisão recorrida em seus fundamentos. Somente as questões

de direito, ligadas à aplicação de uma norma constitucional, podem ser objeto de apreciação em sede de recurso extraordinário.

A discriminação, no entanto, do que seja uma "questão de fato" e o que se possa definir como uma quaestio iuris, capaz de alimentar o recurso extraordinário, nem sempre é fácil, ou possível, na prática. Casos há em que o Supremo Tribunal Federal, para apreciar uma "ques-tão federal" {quaestio iuris), terá, inevitavelmente, de pesquisar a pro-va dos autos. Isto ocorre sempre que se trate dos chamados "conceitos indeterminados", como o são os de falta grave, injúria, bons costumes etc. Figure-se a hipótese de controverter-se na causa a aplicação de uma lei federal que proteja as obras de arte, alegando um dos litigantes que tal norma tutelar não se aplica ao caso litigioso porque a obra em ques-tão não poderia ser qualificada como obra de arte, no sentido legal. Se a parte sucumbente levar esta questão ao exame do Supremo Tribunal Federal, em recurso extraordinário, a corte não terá outra alternativa senão avaliar novamente a prova, analisando, com muita probidade, as provas técnicas e periciais constantes dos autos, para determinar se a obra em questão é realmente uma obra de arte ou não. É que o conceito "obra de arte" é um conceito indeterminado (HORST-EBERHARD HENKE, La cuestión de hecho - El concepto indeterminado en el de-recho civil y su casacionabilidad, p. 270).

Trata-se, em todas estas hipóteses, de exame da prova com a finalidade de qualificar corretamente os fatos discutidos na causa (JUAN CARLO HITTERS, Técnica de los recursos extraordinários y de casación, n. 102), que a doutrina moderna considera erro de direito, e não uma mera quaestio facti, impossível de ser apreciada em grau de recurso extraordinário.

Para indicar que o recurso extraordinário não permite o exame das questões de fato convertidas na causa e decididas pelas instâncias ordinárias, é frequente dizer-se que, em tal instância, é vedado o reexame da prova. Neste sentido, aliás, existe até a Súmula 279 do STF, com o seguinte enunciado: "Para simples reexame de prova não cabe recurso extraordinário". Nos Embargos em Recurso Extraordi-nário 58.714 (ROBERTO ROSAS, Direito sumular, p. 111), de que foi relator o Min. MOACYR AMARAL SANTOS, decidiu o STF que "não cabe recurso ex-traordinário quando o acórdão recorrido deu determinada qualificação jurídica a fatos delituosos e se pretende atribuir aos mesmos fatos outra configuração, quando essa pretensão exige reexame de prova" (RTJ 46/82 Do I R L I O T E 1

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O Supremo Tribunal Federal, em inúmeras decisões posteriores, no entan-to, parece ter superado definitivamente esta limitação absoluta referente à vedação que se lhe pretende impor quanto ao "reexame da prova" em recurso extraordiná-rio, distinguindo entre as situações em que uma operação deste género corresponderia realmente a uma decisão sobre "questão probatória" e os casos em que um tal "reexame" teria por fim avaliar simplesmente a prova, para a correta determinação do direito aplicável ao caso. Esta orientação é, aliás, antiga no seio de nossa Suprema Corte, tendo já se manifestado no voto proferido pelo Min. VILAS BOAS, no Recurso Extraordinário 57.420, onde este procurou, com per-feita correção e acuidade, distinguir entre apreciação da prova, vedada em recurso extraordinário, e valorização da prova, possível sempre, nesta instância, quando uma operação deste género seja necessária para a adequada decisão a respeito da questão referente à aplicação do direito federal (JOÃO CARLOS PESTANA DE AGUIAR, Comentários,.., v. 4, p. 36).

No Recurso Extraordinário 65.721 (RTJ 59/439), apreciando uma ação de separação judicial em que se discutia a existência de injúria grave, capaz de dar lugar à separação, declarou o STF: "... o [que o] verbete 279 da Súmula proíbe é o conhecimento do recurso extraordinário para simples reexame da prova, mas o faz, como de logo se conclui, sem vedar cabimento do recurso para o efeito de o STF avaliar a prova dos fatos que entram na composição do direito, formando uns e outros acabada complexidade". Neste mesmo sentido, veja-se o importante clarividente voto do Min. ALIOMAR BALEEIRO proferido no ERE 77.539 (RTJ 74/144), onde se faz a distinção entre "nova qualificação jurídica do ato" arespei-to do qual se controverte.

Buscando um critério que permite uma solução adequada para a distinção entre uma "questão de fato", cujo exame seja vedado ao juízo da cassação ou, em nosso caso, em sede de recurso extraordinário, e uma "questão de direito", que envolva valoração da prova e, como tal, admissível nestas instâncias, GUIDO CALOGERO (La lógica dei giudice e il suo controllo in cassazione, n. 52) mostra que o julgador, ao tratar de estabelecer a existência dos fatos no processo, age como o historiador que estivesse a investigar as fontes históricas para descrever os fatos que sua pesquisa irá indicar como tendo ocorrido. Depois disso - uma vez determi-nada a existência dos fatos -, caberá ao julgador interpretá-los, numa "fase termi-nal" da análise da prova, agora não mais para determinar a pura existência, mas para qualificar os fatos cuja existência ele dera como certa e enquadrá-los no esquema legal. Esta última operação não corresponde mais a uma simples "questão probatória", mas equivale, ao contrário, a uma quaestio iuris capaz de ser apreciada e decidida em recurso extraordinário.

Tome-se, por exemplo, o conceito de insubordinação, empregado pelo di-reito do trabalho para caracterizar uma/a/to grave capaz de legitimar a rescisão do contrato laborai. Certamente a insubordinação não se encontra na natureza

como fato, sendo antes uma elaboração categorial, produto da razão humana, a respeito de fatos. O processo, onde se investigue a ocorrência de uma falta grave deste tipo, irá reunir uma série de fatos, indicativos de um comportamento do empregado, com base nos quais elaborará o julgador o conceito de insubordina-ção. Ao juízo do recurso extraordinário será vedado reapreciar a prova da exis-tência dos fatos, com base nos quais as instâncias ordinárias decidiram pela ocor-rência de uma falta grave, sendo-lhe vedado, por exemplo, afirmar que o empre-gado não agrediu o patrão ou que não está provado nos autos haver o mesmo se recusado a executar as tarefas que lhe foram atribuídas pelo empregador. Isto seria apreciação de uma "questão probatória", ou de fato, somente admissível nas instâncias ordinárias. O Supremo Tribunal Federal poderá, no entanto, a partir dos fatos cuja existência seja incontroversa nos autos, qualificá-los corretamente para negar que os mesmos configurem uma insubordinação e, pois, para recusar a existência de falta grave.

Na doutrina estrangeira, a exposição crítica deste tormentoso problema pode ser vista praticamente em todas as obras dedicadas aos "recursos extraordinários", tais como, além daquelas já mencionadas no texto, CALAMANDREI (Casación civil, v. 2, n. 197; La génese lógica delia sentenza civile, Opere giuridiche, v. 1), ANTÓNIO PALERMO (IIprocesso diformazione delia sentenza civile, p. 48-49), FfúEDRlCHSTElN&onocimiento privado deijuez,p. 178),GARSONNET(rraifó' theórique et pratique deprocédure civil e commerciale, v. 6, p. 654), FRANCESCO CARNELUTTI (Istituzioni dei processo civile italiano, v. 2, n. 577), LEONARDO PRIETO-CASTRO (Estúdios y comentários para Ia teoria y Ia práctica procesal civil, v. 1, p. 251), ADOLF WACH (Conferencias..., p. 313), EMÍLIO BETTI, Interpretazione delia legge e degli atti guiridici, p. 99-102), A. CASTANHEIRA NEVES (Questão de fato - Questão de direito, passim), HUMBERTO CUENCA (Curso de casación civil, n. 103) e NESTOR PEDRO SAGUÉS (Recurso extraor-dinário, v. 2, n. 248-253), ou mesmo em obras de hermenêutica dos contratos, como E. DANZ (La interpretación de los negócios jurídicos, p. 90).

17.4.5 Recurso especial

Como há pouco dissemos, a Constituição Federal de 1988 distri-buiu a matéria originariamente relativa ao recurso extraordinário entre o Supremo Tribunal Federai e o Superior Tribunal de Justiça, sendo este uma corte, como o Supremo, incumbida de julgar, extraordinaria-mente, as causas em que se alegue ofensa ao direito federal (infracons-tituçional). O chamado recurso especial, de que trata o art. 105, III, da CF, não deixa de ser, quanto à sua natureza, um recurso extraordinário, com os mesmos pressupostos e as mesmas limitações, próprias de re-curso extraordinário.

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O recurso especial, assim como o recurso extraordinário, é um re-curso de fundamentação vinculada, para cujo cabimento não basta que o recorrente invoque a própria sucumbência, tornando-se necessária a in-vocação de uma "questão federal" debatida ("prequestionada") na causa, de que o recorrente tire a conclusão de ter havido violação do direito federal de natureza infraconstitucional (se a alegada violação do direito federal for de natureza constitucional, nas hipóteses previstas pelo art. 102 da CF, então cabível será o extraordinário, perante o Supremo).

As regras procedimentais aplicáveis ao recurso especial são idênti-cas àquelas correspondentes ao recurso extraordinário que já foram obje-to de análise. Havendo alegação de que o acórdão recorrido violara tanto a Constituição Federal, de modo que caiba recurso extraordinário, como igualmente algum texto de lei ordinária, a legitimar o recurso especial, então a parte sucumbente deverá interpor ambos os recursos simultanea-mente, em petições distintas, devendo ser apreciado em primeiro lugar o recurso especial. Somente depois de concluído o julgamento deste é que os autos serão remetidos ao Supremo Tribunal Federal para o julgamento do extraordinário, salvo se o relator do recurso especial considerar, em decisão irrecorrível, que o extraordinário é prejudicial ao recurso espe-cial, caso em que, sobrestando o julgamento deste recurso, remeterá os autos ao Supremo Tribunal Federal, para julgamento do recurso extraor-dinário (art. 543 do CPC).

17.4.6 Recurso adesivo

17.4.6.1 Conceito

Segundo dispõe o art. 500 do CPC, "cada parte interporá o recurso, independentemente, no prazo e observadas as exigências legais", ou seja, nesta hipótese, cada recorrente proporá autonomamente o seu recurso, sem qualquer dependência do eventual recurso de seu adversário. E con-tinua o referido artigo: "Sendo, porém, vencidos autor e réu, ao recurso interposto por qualquer deles poderá aderir a outra parte".

Temos aí introduzida, pela primeira vez no direito brasileiro, a figu-ra do chamado recurso adesivo, praticado desde muito por outros siste-mas jurídicos, como o italiano, francês, alemão, português e espanhol.

O pressuposto básico para a admissibilidade do recurso adesivo é a existência de sucumbência parcial e reciproca, ou. como diz o

art. 500 do CPC, sendo, na decisão de que se pretenda recorrer, vencidos ao mesmo tempo autor e réu. O sentido da adesão não corresponde, portanto, como o vocábulo poderia sugerir, a que um dos recorrentes se solidarize com o adversário, aderindo a seu recurso, associando-se ao pedido pelo outro formulado. Ao contrário, a adesão, aqui, quer significar apenas que o litigante que haja sofrido sucumbência parcial, em virtude da parcial vitória de seu adversário, poderá aproveitar o recurso interposto por este para formular o seu recurso, que, em tal caso, ficará subordinado à sorte do recurso dito principal.

A doutrina italiana, como se vê em ZANZUCCHI {Diritto processuale civi-le, v. 2, n. 28), distingue entre impugnazione incidentale e impugnazione adesiva ou entre a chamada impugnazione incidentale adesiva e a impugnazione inciden-tale ricovenzionale (C. SILVEIRA NORONHA, Do recurso adesivo, n. 17), não obstante haja o vigente Código de Processo Civil italiano suprimido a distinção entre estas duas figuras, tratadas separadamente pelo estatuto processual de 1865 (VIRGÍLIO ANDRIOLI, Corrimento..., v. 2, n. 333; EDOARDO GRASSO, Vimpugnazione incidentale, n. 4).

A distinção, todavia, ainda é válida e pode revestir-se de interesse prático. A locução recurso adesivo é utilizada com mais frequência, ou com mais proprie-dade, para significar a impugnação de sentido paralelo, que vise reforçar ou solidarizar-se como recurso anterior proposto com finalidade semelhante. É o caso do recurso proposto pelo segundo litisconsorte, depois de haver um deles formulado seu próprio recurso, procurando ambos obter a reforma da sentença, com a sucumbência do adversário comum. Neste caso, o recurso posterior tem efetivamente o sentido de uma adesão solidária e não, como acontece em nosso recurso adesivo, um sentido reconvencional, em relação ao recurso principal (C. SILVEIRA NORONHA, Do recurso adesivo, p. 45). No primeiro caso, diz-se que há sucumbência paralela, em vez de sucumbência recíproca (JOSÉ AFONSO DA SILVA, Do recurso adesivo no processo civil brasileiro, p. 53; PAULO CEZAR ARAGÃO, Recurso adesivo, n. 18).

O recurso adesivo pressupõe que o litigante que haja sofrido su-cumbência parcial esteja inclinado a conformar-se com ela, caso seu adversário - também parcialmente sucumbente - aceite a sentença e dela iguabnente não recorra.

É necessário um esclarecimento a respeito do que se entende por sucumbên-cia parcial. No sentido comum, existe esta forma de sucumbência quando o liti-

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gante, havendo pedido 100, obtém apenas 80, de tal modo que ele perde 20, de modo que a contestação é, nesse limite, procedente, reduzindo a vitória do adver-sário. Pode haver, no entanto, sucumbência parcial quando - tendo o autor cumu-lado num único processo duas ações independentes - perde inteiramente uma e obtém ganho de causa integral quanto à outra. Embora não tenha havido procedên-cia apenas parcial de cada uma das ações em sentido global, a vitória do autor, como no caso anterior, foi parcial, como igualmente parcial teria sido a sucumbên-cia do adversário. Também se reconhece como sendo parcial, por exemplo, a sucumbência causada pela sentença que rejeite a ação totalmente e a reconvenção interposta pelo réu.

No regime do Código anterior, inexistente o recurso adesivo, ocor-ria que o litigante que sofresse sucumbência parcial de significação prá-tica pouco relevante, e estivesse inclinado a não recorrer, poderia ver seu adversário ampliar a própria vitória, sem que o tribunal - na ausência de recurso por ele interposto - pudesse reduzir a sua sucumbência, em vir-tude do princípio que impede a reformatio in peius. Nesta eventualidade, era frequente que um ou ambos os litigantes acabassem interpondo recur-sos não desejados, para evitar o risco de ter cada um deles de responder ao recurso do outro, sem ter igualmente recorrido.

Era comum ocorrer que ambos redigissem seus recursos e aguar-dassem, até o último minuto do prazo recursal, a manifestação do adversário, vigiando no cartório, a fim de saber se este recorrera, para então apresentar o seu recurso. A instituição do recurso adesivo obvia este inconveniente, dando tranquilidade ao litigante que esteja disposto a conformar-se com a sentença que lhe haja imposto alguma sucumbência parcial considerada tolerável, evitando um grande número de recursos apenas interpostos pelo temor da interposição do recurso da outra parte.

Existe, no ânimo daquele que sofrera sucumbência parcial, e que depois venha a interpor o recurso adesivo, uma "aquiescência tácita" condicionada (EDOARDO GRASSO, Vimpugnazione incidentale; J. C. BARBOSA MO-REIRA, Comentários..., n. 170) à circunstância de que também seu adversário se conforme com o gravame parcial imposto pela sentença. Imagine-se que o autor haja pedido 100, tendo o réu contestado a ação, para negar totalmente a existência do débito. Se o juiz reconhecer a existência de apenas 80, poderá o autor - ante o risco de vir a perder tudo em apelação, em virtude de recurso de seu adversário - preferir conformar-se com a sucumbência de 20; igualmente o réu, raciocinando de modo semelhante, poderá aceitar a sentença, sob a condi-ção de que também seu adversário a aceite.

Em razão de tais particularidades, muitos juristas não reconhecem, no re-curso adesivo, uma espécie nova e independente de recurso, mas simplesmente uma técnica, ou uma forma procedimental especial, do correspondente recurso principal, a apelação, que é um único recurso, mas poderá assumir & forma de recursos independentes ou adesivos (subordinados). Este é o entendimento de JOSÉ AFONSO DA SILVA {Do recurso adesivo..., p. 117), de GALENO LACERDA {O novo direito processual civil e os feitos pendentes, p. 84), SÉR-GIO BERMUDES {Comentários ao Código de Processo Civil, p. 65) e PAULO CEZAR ARAGÃO (ob. cit, n. 46, nota 50).

C. SILVEIRA NORONHA {Do recurso adesivo, p. 61-62), embora conside-re o adesivo, tal como ele foi concebido pelo legislador brasileiro, um ens per se stante, "ontológica e estruturalmente", afirma não se distinguir ele do recurso au-tónomo que lhe empresta o nome.

17.4.6.2 Cabimento do recurso adesivo

Segundo dispõe o art. 500, II, do CPC, é admissível o recurso adesivo na apelação, nos embargos infringentes, no recurso especial e no recurso extraordinário. Ficam, portanto, excluídos desta possibili-dade os agravos, os embargos de divergência, cabíveis, no Supremo Tribunal Federal e no Superior Tribunal de Justiça, quando houver di-vergência entre a decisão proferida por uma turma e uma anterior deci-são de outra turma ou do plenário destas cortes (art. 546, CPC), além dos embargos de declaração.

Quando haverá sucumbência parcial, capaz de legitimar o recurso adesivo! A primeira condição será naturalmente a de que a decisão recor-rível comporte um dos três recursos indicados pelo art. 500, II, do CPC. O outro pressuposto é que a sucumbência, além de parcial, seja recípro-ca, e não paralela, uma vez que o art. 500 alude à hipótese de serem simultaneamente vencidos autor e réu.

17.4.6.3 Admissibilidade do recurso adesivo

Além dos pressupostos genéricos exigidos de todos os recursos, o adesivo deverá satisfazer mais os seguintes: no que diz respeito aos pressupostos subjetivos, apenas as partes estão legitimadas para recor-rer adesivamente, uma vez que o art. 500 do CPC alude a autor e réu. Ficam, pois, excluídos os assistentes simples, o Ministério Público, quando não seja parte, e o terceiro interveniente, se o fizer na condição

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de assistente simples. O assistente litisconsorcial do art. 54 do CPC -por ser litisconsorte, como já mostramos - poderá recorrer adesivamente. PAULO CEZAR ARAGÃO (Recurso adesivo, n. 60) reconhece legi-timidade ao assistente simples para recorrer adesivamente.

Uma observação, no entanto, se faz necessária, no que se refere à legitima-ção dos litisconsortes para o recurso adesivo. É necessário que o recurso princi-pal tenha no pólo passivo da respectiva impugnação aquele que deseja recorrer adesivamente. Imaginemos que, tendo o credor promovido ação contra o fiador, de quem pretende haver o pagamento de 100, importância a quanto monta a dívida afiançada, e contra o devedor principal, para haver dele o pagamento de mais 40 não cobertos pela fiança, obtenha ele sentença de procedência parcial, vindo o magistrado a condenar o fiador a pagar apenas 80 e o afiançado a somente pagar 20 dos 40 reclamados. No caso, houve sucumbência parcial. Se, nesta hipótese, vier o credor a apelar apenas contra o capítulo da sentença que decidiu a controvérsia entre ele e o fiador, conformando-se com a perda dos 20 que a sentença não lhe reconheceu contra o devedor principal, este não poderá aderir ao recurso interposto por seu adversário, precisamente porque faltaria, neste caso, o pressuposto da reciprocidade na sucumbência. Apenas o fiador - contra quem a apelação do credor fora proposta - poderia apelar adesivamente. Se o devedor principal quisesse livrar-se dos 20 a que fora condenado - na ausência de recurso de seu adversário -, teria de fazê-lo interpondo recurso independente e autónomo, no prazo do art. 508 do CPC.

Esta solução pode parecer insatisfatória, tendo em vista os princípios que norteiam o recurso adesivo, mas não parece possível transpor-se a limitação imposta pelo art. 500 do CPC, quando este dispositivo exige que o destinatário contra quem se dirija o adesivo seja o autor do recurso principal, como justamente observa PAULO CEZAR ARAGÃO (Recurso adesivo, n. 67).

A questão pode em certos casos complicar-se, como mostra este autor. Ima-gine-se a hipótese de uma sentença que haja, numa execução concursal, classifica-do os créditos pertencentes aos credores A, B, C e D como quirografários. Recor-rendo D, que pretende ser credor privilegiado, poderá haver interesse dos demais credores na rejeição do recurso, tendo em vista a possível insuficiência dos bens ou a necessária redução do valor do rateio decorrente da admissão do crédito privile-giado. Se, por exemplo, nesta mesma hipótese, o credor B quiser impugnar o crédito de C, que ele afirma nulo ou ineficaz contra si, terá de fazê-lo em recurso indepen-dente, embora o resultado tanto no recurso interposto por D quanto no de B pudesse determinar uma sucumbência parcial aos demais.

O mesmo aconteceria quando, sendo vários os devedores solidários deman-dados pelo credor, apenas um deles recorresse da sentença que a todos condenara, a fim de que.o tribunal da apelação o excluísse da condenação. Também aqui o

provimento do recurso agravaria a situação dos demais devedores, aumentando-lhes a quota-parte na dívida comum. E, sendo opostos os seus interesses, ficaria afastada a incidência do princípio da comunidade do recurso entre os Litisconsortes, a que se refere o art. 509, parágrafo único, do CPC.

Estas duas hipóteses configuram casos de sucumbência parcial apenas hipo-tética, tal como pode ocorrer nos casos de recurso extraordinário adesivo ou espe-cial adesivo.

Existe, ainda, no campo dos pressupostos subjetivos para o recurso adesivo, uma observação a ser feita com relação à sucumbência. Trata-se, como há pouco dissemos, do caso especial do recurso extraordinário. Como se sabe, este é um recurso de fundamentação vinculada, onde o efeito devolutivo, para a admissibilidade do recurso, é rigorosamente limitado à "questão federal" controvertida na causa, não sendo dado ao juízo ad quem conhecer de outras questões não incluídas na impugnação. Pode suceder que se formem, nos autos, duas "questões federais", suscitadas pelos liti-gantes: uma a respeito da aplicação de um preceito contido no art. 178 do CC, sobre prescrição, que o demandado alega ter incidido, fazendo com que a ação proposta contra si pelo autor esteja prescrita; e, além disso, a demanda propiciara, digamos, outra controvérsia sobre aplicação do direito federal, como, por exemplo, a incidência do dispositivo constante do Estatuto da Terra, que assegura ao arrendatário o direito de preferência para a aquisição do imóvel rural, quando seu proprietário queira aliená-lo a terceiro, insistindo o réu, na ação de preferência, que tal preceito não se aplica à espécie dos autos, por se tratar de contrato parciário que, segundo ele, não seria alcançado pela norma invocada.

Teríamos, em tal caso, duas "questões federais" distintas, cada uma delas capaz de legitimar o recurso especial, pela letra a ou, eventualmen-te, também pela letra c do permissivo constitucional. Suponha-se que, em apelação, a demanda tenha sido rejeitada no mérito, com vitória total do demandado, terceiro adquirente do imóvel, declarando a decisão de última instância ordinária que o Estatuto da Terra não confere aos parcei-ros rurais a preferência, outorgada apenas aos arrendatários pelo art. 92, § 3.°, da Lei 4.504, de 30 de novembro de 1964.

O colono certamente estaria legitimado para recorrer extraordina-riamente, com fundamento no art. 105, III, a, da CF, sob a alegação de que o tribunal local dera ao mencionado art. 92, § 3.°, do Estatuto da Terra uma interpretação restritiva ilegítima, negando-lhe, portanto, vigência para abranger também parcerias rurais. E o réu -

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apelação -, que suscitara a preliminar de prescrição, rejeitada em última instância ordinária, poderia ou não formular recurso especial adesivo? Se lhe fosse permitido fazê-lo, teríamos um caso de recurso sem sucum-bência, interposto pelo litigante vitorioso; se, em razão da inexistência de sucumbência e, pois, de legítimo interesse em recorrer, se lhe negasse a admissibilidade para recorrer adesivamente, poderia ocorrer que o recur-so extraordinário de seu adversário fosse provido, reconhecendo a Corte Suprema aplicável aos parceiros rurais o privilégio outorgado aos arren-datários, sem poder apreciar a "questão federal" correspondente à aplica-ção da norma legal sobre prescrição, oportunamente prequestionada pelo terceiro adquirente, vitorioso em apelação.

Para superar um impasse dessa natureza, não há outro caminho senão admitir-se o recurso adesivo condicionado, a que estaria legitimado excep-cionalmente o litigante inteiramente vitorioso que alegasse apenas o risco de uma sucumbência futura, capaz de causar-lhe o provimento do recurso de seu adversário (cf. PAULO CEZAR ARAGÃO, Recurso adesivo, n. 75; para o direito italiano, EDOARDO GRASSO, Uimpugnazione incidenta-li, p. 54). Neste caso, ter-se-ia, como mostra J. C. BARBOSA MOREIRA (Comentários..., n. 181), no recurso extraordinário ou especial condicio-nado, a mesma estrutura lógica de um cúmulo eventual de demandas, que nosso direito francamente admite, segundo o art. 289 do CPC.

Finalmente, quanto aos pressupostos objetivos de admissibilidade do recurso adesivo, em geral coincidem eles com os requisitos comuns a todos os recursos, com uma distinção, todavia, fundamental: sendo um recurso subordinado, a admissibilidade do adesivo pressupõe que o re-curso principal seja conhecido pelo juízo ad quem. Não havendo o prin-cipal, não se pode verificar o fenómeno da adesão. Se o litigante que houver recorrido autonomamente desistir do recurso, ou se este for de-clarado intempestivo ou deserto, ou por outro motivo inadmitido, o re-curso adesivo não poderá ser conhecido pelo tribunal, por se ter tornado também inadmissível (art. 500, m, do CPC).

No que diz respeito ao momento de sua interposição, diz a lei que o recurso adesivo será interposto perante a autoridade competente para admitir o recurso principal no prazo de que a parte dispõe para respondê-lo (art. 500,1, do CPC).

Tanto a doutrina quanto a jurisprudência são vacilantes no admitir a interposição do recurso adesivo por quem tenha, antes, interposto recurso autónomo fora de prazo. PAULO CEZAR ARAGÃO

(ob. cit, n. 81) e ATHOS GUSMÃO CARNEIRO (Observações sobre o recurso adesivo, Ajuris 19/67) entendem impossível, neste caso, a proposição do adesivo.

SÉRGIO BERMUDES (Comentários..., p. 71) considera possível ao autor do recurso principal, depois, aderir ao recurso igualmente autónomo proposto por seu adversário, de modo a ampliar os limites da inconformidade originária. A hipótese seria esta: tendo o autor pedido a entrega do imóvel, mais os móveis e os semoventes, reconhecera-lhe a sentença direito apenas ao imóvel, tendo ele recor-rido para obter também os móveis, conformando-se com a perda dos semoventes. Se o réu propuser recurso independente, poderá, segundo o jurista, a ele aderir o autor que já recorrera autonomamente (em sentido contrário, ao que nos parece com razão, no entanto, C. SILVEIRA NORONHA, Do recurso adesivo, n. 34, e ATHOS GUSMÃO CARNEIRO, Observações..., Ajuris 19/69).

Impende indagar se haveria de ser recebido como recurso adesivo aquele que fosse interposto no prazo do recurso principal, com a expressa declaração do recor-rente de que o formulava como adesivo; ou, ao contrário, teríamos de conceber como adesivos somente os recursos tardiamente interpostos, no prazo do art. 500, I, do CPC, ou seja, o elemento temporal seria o único critério distintivo entre um recurso principal e outro adesivo (sobre isto, C. SILVEIRA NORONHA, Do recurso adesivo, p. 90). Afirmativamente responde PAULO CEZAR ARAGÃO (ob. cit., n. 41), o qual, valendo-se de ensinamento de CARNELUTTI, admite que a parte possa interpor, no prazo correspondente ao recurso principal, adesão antecipada, para o caso de vir o adversário a interpor recurso principal. Tal é o entendimento também de SÉRGIO BERMUDES (ob. cit., p. 70).

O recurso adesivo deve ser interposto por petição, como qualquer outro recurso, não sendo admissível inseri-lo como um simples capítulo das contra-razões com que o recorrido responda ao recurso principal.

Na instância recursal, o adesivo deverá ser apreciado depois de ter o tribuna] admitido o recurso principal, uma vez que a admissão deste é pressuposto para a admissibilidade do recurso adesivo.

Versando o recurso adesivo uma questão preliminar, como no caso há pouco indicado de recurso extraordinário adesivo condicionado, que suscite uma questão prévia em relação ao recurso principal, surge uma curiosa dificuldade procedimen-tal, a obrigar que o conhecimento do recurso adesivo se anteponha ao juízo de admissibilidade do recurso principal (PAULO CEZAR ARAGÃO, ob. cit., n. 77; também quanto à apelação, C. SILVEIRA NORONHA, Do recurso adesivo, n. 43).

Ao recurso adesivo, dispõe o parágrafo único do art. 500 do CPC, aplicam-se as mesmas regras do recurso independente, quanto às condi-

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ções de admissibilidade, preparo e julgamento no tribunal, devendo ser proposto no prazo concedido à parte para responder o recurso indepen-dente interposto pela parte adversa.

17.4.7 Embargos de divergência

Os embargos de divergência, introduzidos no Código de Processo Civil pela Lei 8.950, de 13.12.1994, cabíveis no Supremo Tribunal Federal e no Superior Tribunal de Justiça, têm uma nítida função uniformizadora da jurisprudência interna dessas cortes, desempenhan-do o papel que o antigo recurso de revista desempenhava no regime do Código de 1939 (art. 853), apenas com a diferença de que os embargos de divergência, pela própria natureza de ambos em tribunais superiores, somente são cabíveis quando o dissídio jurisprudencial envolver uma questão de direito federal, ao passo que a antiga revista podia abranger qualquer divergência a respeito do "direito em tese", não necessariamente federal (PONTES DE MIRANDA, Comentá-rios.,., 1939, t XII, p. 42).

A Lei Complementar 35, de 14 de julho de 1979, estendeu o recurso de embargos de divergência aos tribunais ordinários (art. 101 da Lei Orgânica da Magistratura). Em São Paulo, o cabimento deste recurso está previsto e discipli-nado em assento regimental. Entendem JOAQUIM DE A. BAPTISTA e SÔNIA MÁRCIA DE A. BAPTISTA (Embargos de divergência nas instâncias ordinárias, RePro 26/83), a nosso ver com razão, que a falta de previsão regimental não será obstáculo à existência do recurso perante os tribunais ordinários.

17.4.8 Interposição simultânea de recurso extraordinário e especial

A criação do Superior Tribunal de Justiça e a distribuição da matéria abrangida pelo recurso extraordinário perante a Constituição anterior agora entre o Supremo Tribunal Federal, quando a matéria for de nature-za constitucional, e o Superior Tribunal de Justiça, quando se tratar de litígio sobre direito federal infraconstitucional, criaram mais uma hipó-tese, em nosso direito, de eventual interposição simultânea de dois recur-sos, um extraordinário e outro especial, bastando para tanto que haja, nos autos, prequestionamento de matéria constitucional e de direito infra-constitucional. Neste caso, ambos os recursos serão simultaneamente interpostos, em petições independentes.

No caso de interposição simultânea de ambos os recursos, quatro hipóteses podem ocorrer: a) ambos os recursos são admitidos, caso em que o recurso especial será remetido ao Superior Tribunal de Justiça, somente ascendendo ao Supremo Tribunal Federal, depois de concluí-do o julgamento naquela corte, se o recurso extraordinário não tiver ficado prejudicado por esse julgamento; b) ambos os recursos são inad-mitidos no juízo a quo. (Hoje, a matéria relativa ao procedimento dos recursos extraordinário e especial, constante da Lei 8.038, está regula-da pela Lei 8.950, de 13.12.1994, que restaurou a vigência dos arts. 541 a 546, além de introduzir outras modificações no texto do Código.) Caberá, portanto, agravo de instrumento contra as respectivas decisões que negarem seguimento aos recursos, devendo ser processado e julga-do em primeiro lugar o agravo referente ao recurso especial, julgando-se o agravo para o Supremo Tribunal Federal caso aquele não seja provido; c) apenas o recurso especial é admitido no juízo recorrido. Neste caso, havendo interposição de agravo contra o indeferimento do extraordinário, os autos deste agravo irão ao Superior Tribunal de Jus-tiça apensados aos autos principais contendo o recurso especial, de modo que, depois de julgado este recurso, seja o agravo remetido ao Supremo Tribunal Federal para julgamento; d) apenas o recurso ex-traordinário é admitido, negando-se seguimento ao especial. Nesta hi-pótese, a solução será a remessa dos autos diretamente ao Supremo Tribunal Federal, com certidão de que fora interposto agravo para o Superior Tribunal de Justiça, circunstância esta que será igualmente certificada no agravo encaminhado ao Superior Tribunal de Justiça, noticiando a remessa dos autos ao Supremo Tribunal Federal, em vista da admissão do recurso na instância inferior. O elenco destas hipóteses, assim como as respectivas soluções, são oferecidos por ATHOS GUS-MÃO CARNEIRO, em estudo sobre o recurso especial (Recursos no Superior Tribunal de Justiça, coord. SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEI-XEIRA, p. 122).

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FORMAS NÃO RECURSAIS DE IMPUGNAÇÃO À SENTENÇA E ACÓRDÃOS

SUMÁRIO: 18.1 Ações autónomas e outros instrumentos de impugnação dos atos jurisdicionais: 18.1.1 Ação rescisória; 18.1.2 Uniformização de jurisprudência; 18.1.3 Apelação exofficio (reexame necessário); 18.1.4 Correição parcial; 18.1.5 Avocação de causas; 18.1.6 Reclamação; 18.1.7 Mandado de segurança; 18.1.8 Embargos de terceiro; 18.1.9 Ação cautelar inominada; 18.1.10 Habeas corpus.

18.1 AçÕes autónomas e outros instrumentos de impugnação dos atos jurisdicionais

Ao iniciarmos o estudo de recursos, fizemos notar que o direito pode valer-se de outros instrumentos, diversos da forma recursal de impugnação, para atacar os atos jurisdicionais, sejam eles simples decisões interlocutórias, sentenças ou acórdãos. Veremos agora sumariamente em que consistem estes meios.

Para estabelecermos uma distinção correta entre tais formas não recursais de impugnação e os recursos, é necessário recordar o que ficou dito a respeito do que se deve entender por recurso no direito brasileiro. Há dois elementos decisivos para a caracterização de um recurso: a) que ele seja uma forma de ataque ao ato jurisdicional integrante da mesma relação processual em que o ato impugnado se tenha verificado; b) que ele seja um remédio voluntário, a ser utilizado pelas partes ou, eventualmente, pelo Ministério Público ou por terceiros juridicamente interessados (art. 499 do CPC).

Não são, portanto, recursos as formas de impugnação que se relacionam a seguir

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18.1.1 Ação rescisória

A ação rescisória não é recurso porque, não obstante satisfaça ela o requisito indicado na letra b, trata-se de uma ação autónoma, que não só tem lugar noutra relação processual, subsequente àquela onde fora proferida a sentença a ser atacada, como pressupõe o encerramento de-finitivo dessa relação processual. A ação rescisória (art. 485 do CPC), em verdade, é uma forma de ataque a uma sentença já transita em julgado, daí a razão fundamental de não se poder considerá-la um recurso. Como toda ação, a rescisória forma uma nova relação processual diversa daquela onde fora prolatada a sentença ou o acórdão que se busca rescindir.

18.1.2 Uniformização de jurisprudência

O incidente de uniformização de jurisprudência (art. 476 do CPC) também não chega a ser um recurso, não obstante satisfaça o requisito da letra a, ou seja, apesar de ocorrer na mesma relação processual onde ocorrera a eventual divergência que se busca superar com este incidente. Satisfazendo o pressuposto indicado em a, não satisfaz, no entanto, o incidente de uniformização de jurisprudência o requisito da volunta-riedade, uma vez que ele não é outorgado às partes como um direito, ou como uma forma de impugnação imperativa e vinculativa para os jui-zes. Em primeiro lugar, como se vê da própria redação do art. 476 do CPC, nem é a parte que o pode suscitar, e sim o próprio juiz, o que, por si só, já seria suficiente para afastar a índole recursal desta técnica de revisão do ato jurisdicional. Em segundo lugar, quando a lei autoriza a parte a requerer que o julgamento obedeça ao procedimento indicado pelo art. 476, deixa claro que o expediente de uniformização de juris-prudência é uma forma procedimental do recurso originalmente inter-posto, e não um recurso autónomo. Por outro lado, permitindo a lei que a parte requeira, como diz o parágrafo único do art. 476, que o julga-mento do recurso "obedeça ao disposto neste artigo", o deferimento de tal pedido fica sempre condicionado a um juízo de conveniência do tribunal sobre a oportunidade de proceder-se ou não à uniformização dos pronunciamentos divergentes porventura existentes no seio do res-pectivo tribunal.

Também o antigo prejulgado - tratado pelo Código de 1939 junta-mente com o recurso de revista - que corresponde hoje à uniformização de jurisprudência, quando esta seja suscitada pelos próprios magistrados.

não era considerado recurso, não obstante esteja lá, diversamente do que agora ocorre, incluído entre os recursos (art. 861 do CPC de 1939). Como dizia PONTES DE MIRANDA {Comentários..., t. XII, p. 84), não havia "pretensão das partes e mais interessados ao prejulgado".

Relativamente ao incidente de uniformização de jurisprudência, há ainda outra razão para que se negue a ele a natureza de um recurso. E que, mesmo nos casos em que a parte o requeira, em petição independente e posterior àquela que contenha a interposição do recurso, o "pronuncia-mento do tribunal" limita-se a apreciar apenas uma questão prévia, sem julgamento, ainda, do recurso (J. C. BARBOSA MOREIRA, Comentá-rios..., v. 5, p. 11; SYDNEY SANCHES, Uniformização da jurisprudên-cia, p. 18). Como diz JOSÉ ALBUQUERQUE ROCHA {O procedimen-to de uniformização da jurisprudência, p. 100), o incidente de uniformi-zação de jurisprudência não visa diretamente à reforma da decisão ataca-da pelo recurso, mas apenas estabelecer o entendimento do tribunal a respeito da interpretação do direito aplicável à espécie litigiosa.

18.1.3 Apelação ex officio (reexame necessário)

Também a figura a que se dava o nome de apelação ex officio, na vigência do Código de 1939, hoje prevista no art. 475 do Código vigente, sob a forma de reexame necessário da sentença pelo segundo grau de jurisdição, não é instrumento de controle recursal das sentenças proferidas pelo juiz de grau inferior. A simples leitura deste dispositivo convence-nos de que o reexame necessário, imposto para todas as sentenças que hajam julgado as ações anulatórias de casamento, ou sejam proferidas contra a União, os Estados e Municípios, ou que tenham julgado improcedentes as ações de execução da dívida ativa da Fazenda Pública, não se confunde com os recursos.

Esta técnica de controle das decisões judiciais, segundo a lição de ALFRE-DO BUZAID {Da apelação ex officio, n. 24), teria surgido, pela primeira vez, no processo civil brasileiro através de uma lei de 4 de outubro de 1831, cujo art. 90 impunha ao juiz que houvesse proferido sentença contra a Fazenda Nacional o dever de recorrer dela para a instância superior.

A partir daí. a exigência de controle das sentenças proferidas contra a Fazen-da Pública persistiu no direito brasileiro e ampliou-se para outras hipóteses.

Aliás, é necessário advertir que o chamado "recurso ex officio" existiu no direito português desde antes das ordenações, aparecendo nas Afonsinas em seu

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Livro V, cujo Título 58 previa os casos em que o juiz deveria prender o malfeitor e pôr contra ele feito em justiça e "appelar para El Rei", limitado sempre ao processo penal.

A lei de 12 março de 1355, a que se refere o Prof. ALFREDO BUZAID (Da apelação..., n. 15), indicada antes por JOÃO MENDES JÚNIOR (Processo crimi-nal brasileiro, v. 1, p. 83), segundo se verifica de seu texto, limitava-se a consagrar um princípio já observado pelo direito lusitano anterior. Com efeito, ao dispor sobre as sentenças proferidas em processos por crime de injúria, determinava que o juiz concedesse apelação "aos que apelarem", ou "apelem eles por a justiça", como até aqui costumou "e se fazer deue em outros fectos adiant escritos" (Livro das leis e posturas, Lisboa, 1971, p. 480).

O caráter não recursal do reexame necessário é evidente. Basta observar que o pretenso recorrente é o próprio prolator da sentença queJ, como tal, jamais poderia ser considerado sucumbente nem poderia ima-ginar que o próprio juiz, ao submeter sua sentença ao crivo da instância superior, tivesse interesse em vê-la reformada, como todo recorrente deve ter. Como observa ALFREDO BUZAID (Da apelação..., n. 32), o juiz "apelava" sem ser parte, sem ter sido vencido e sem ter interesse na reforma de sua sentença. É o que acontece, no regime vigente, com o reexame necessário do art. 475 do CPC, que configura uma forma, senão de impugnação das sentenças, ao menos de controle de sua legi-timidade.

18.1.4 Correição parcial

Também a chamada correição parcial, de longa data praticada no foro brasileiro, como expediente destinado a preservar a ordem e o desenvolvimento normal do processo, sempre que este se veja amea-çado por alguma providência judicial manifestamente ilegal, que lhe possa causar desordem ou tumulto processual, ou mesmo como remédio contra a omissão dos juizes que, porventura, descurem de seus deveres funcionais, deixando o feito ao abandono por tempo desme-dido, é uma forma de ataque ao ato jurisdicional de que não caiba outro meio de impugnação, sem ser ela própria um recurso.

O Prof. EGAS MONIZ DE ARAGÃO, em importante estudo sobre a correi-ção parcial, atribui-lhe a natureza de um recurso - recurso clandestino, como ele diz, mas recurso (A correição parcial, p. 54).

Embora contenha ela praticamente todos os pressupostos exigidos dos recur-sos, não cremos que seja apropriado incluir a correição parcial dentre os recursos em sentido estrito. Em primeiro lugar, porque a ela não se refere o Código ao enumerar os recursos, e não seria possível à doutrina ou à praxe dos tribunais conceberem outros recursos além daqueles previstos pelo legislador federal; além disso, cabendo a correição parcial, quando não houver nenhum recurso para reme-diar a situação de anormalidade processual, mesmo para forçar o juiz a decidir ou forçá-lo a dar andamento adequado ao processo, não vemos como aceitar o ponto de vista do ilustre catedrático de Curitiba, para considerar um verdadeiro recurso a correição parcial.

É verdade que o sentido recursal deste expediente se vem acentuando com o passar dos anos. Originariamente, prevalecia o entendimento de que as correições parciais deveriam ser apreciadas pelos Conselhos Superiores de Magistratura, ou órgãos disciplinares equivalentes, por se revestirem elas de caráter mais adminis-trativo do que jurisdicional. Hoje, no entanto, já se verifica uma tendência dos tribunais a atribuir competência às suas câmaras e demais órgãos fracionários para a apreciação das correições parciais, como sucede, por exemplo, no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (sobre o sentido desta evolução, ALCIDES DE MENDONÇA LIMA, introdução aos recursos cíveis, n. 162-164).

18.1.5 Avocação de causas

Outra figura similar à anterior e igualmente não recursal é a avoca-ção de causas, de que trata o art. 252 do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, através da qual poderá o Procurador-Geral da Repúbli-ca requerer a avocação da causa, para que lhe suspendam os efeitos, devolvendo-se o conhecimento integral do litígio ao Supremo Tribunal Federal, quando da decisão proferida por qualquer juízo ou tribunal de-correr imediato perigo de grave lesão à ordem, à saúde, à segurança ou às finanças públicas. A avocação, porém, não está prevista pelo art. 102,1, da CF entre as atribuições do Supremo Tribunal Federal.

18.1.6 Reclamação

Também não é recursal a reclamação prevista no art. 156 do Regi-mento Interno do Supremo Tribunal Federal, predisposta como instru-mento destinado a preservar a competência da Suprema Corte ou garantir a autoridade de suas decisões, sempre que haja indevida usurpação por parte de outros órgãos de sua competência constitucional.

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Como observa EGAS MONIZ DE ARAGÃO (A correição parcial, p. 101), a reclamação perante o Supremo Tribunal Federal de certo modo abrange a avocação, podendo ser praticada tanto nos casos de usurpação de suas atribuições constitucionais como nos casos em que o recurso para ele interposto permaneça indefinidamente nas instâncias inferiores, sem serem os autos enviados à Corte Suprema.

Já houve caso em que o Supremo Tribunal Federal determinou a remessa dos autos para sua apreciação em causa decidida contra a União, sem que o magistrado houvesse determinado a subida do processo em reexame necessário.

18.1.7 Mandado de segurança

A ação de mandado segurança tem sido amplamente utilizada em nosso foro como meio de impugnação a decisões judiciais, tendo hoje se tornado pacífico o entendimento de que este remédio cabe não só nos casos em que da respectiva decisão não caiba recurso (art. 5.°, II, da Lei 1.533, de 31 de dezembro de 1951), mas igualmente quando, havendo recurso, não tenha ele efeito suspensivo, capaz de evitar a ocorrência de um dano grave e de difícil reparação ao direito do impetrante. Entretanto, com a nova disciplina do agravo de instrumento, dada pela Lei 9.139/94, a utilização do mandado de segurança com o exclusivo propósito de atribuir efeito suspensivo a esse recurso tornou-se desnecessária, uma vez que o relator poderá conceder o efeito antes somente obtido pela via do mandado de segurança.

18.1.8 Embargos de terceiro

A ação de embargos de terceiro (art. 1.046 do CPC) é outra forma típica de ataque ao ato jurisdicional que não se confunde com os recursos. Os embargos de terceiro são uma ação como qualquer outra, com nítido sentido de tutela possessória interditai, apenas com a diferença de que a turbação ou o esbulho que o torna legítimos decorre de algum ato de apreensão judicial de bens de que o autor da ação seja proprietário ou possuidor.

Por falta de uma compreensão adequada da índole e função dos embargos de terceiro, em muitas circunstâncias tem-se deixado de usá-los para, em seu lugar, empregar-se o mandado de segurança, com notória impropriedade técnica.

18.1.9 Ação cautelar inominada

Também a chamada "ação cautelar inominada", prevista nos arts. 798-799 do CPC, tem sido empregada para impugnar atos ou providên-cias judiciais, e até mesmo sentenças, a fim de suspender, em geral por meio de liminares concedidas na ação cautelar, os efeitos do ato jurisdi-cional impugnado.

O emprego deste meio de impugnação é de certo modo autorizado pela própria concepção que se dá, no direito brasileiro, à tutela cautelar, definida como instrumento de proteção da relação processual, como afir-ma a maioria dos processualistas brasileiros, seguindo a doutrina de CA-LAMANDREI (ver, por todos, H. THEODORO JÚNIOR, Processo cau-telar, n. 23, 27 e 50), sempre que, havendo fundado receio de que uma parte possa causar ao direito da outra lesão grave e de difícil reparação, deva o juiz determinar a adoção de alguma medida provisória capaz de conjurar este risco.

Ora, em muitos casos, o risco de dano irreparável, indicado por essa doutrina como periculum in mora, pode decorrer da execução do ato jurisdicional, servindo então a medida cautelar de instrumento de proteção do eventual direito da parte contra os danos que o desenvol-vimento da própria relação processual lhe possa causar.

O emprego das medidas cautelares contra o ato jurisdicional, como temos mostrado (cf. Comentários..., especialmente a Introdução), é uma das provas mais notórias da ambiguidade conceituai de que padece a doutrina dominante sobre tutela cautelar.

18.1.10 Habeas corpus

Finalmente, também o habeas corpus, nos raros casos em que a lei admite a prisão civil, pode servir como instrumento de impugnação não-recursal contra decisões e sentenças pronunciadas em demandas civis, havendo PONTES DE MIRANDA (História e prática do habeas corpus, § 146), mencionado o caso decidido a 6 de maio de 1947, pela 1." Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, em que se concedeu a ordem de habeas corpus para liberar o paciente que a família internara em casa de tratamento, sob alegação de tratar-se de doença mental. Não são raros igualmente o conhecimento e a concessão de ordens de habeas corpus pelos órgãos fracionários de jurisdição civil dos tribunais, nos casos de prisão decretada em ações de alimentos com base no art. 733, § 1.°, do CPC.

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19 COISA JULGADA

SUMÁRIO: 19.1 Conceito- 19.2 Conteúdo da sentença e coisa julgada -19.3 Coisa julgada e declaração -19.4 Coisa julgada e eficácia da sentença - 19.5 Teoria processual e teoria material sobre a coisa julgada - 19.6 Eficácia da sentença perante terceiros: 19.6.1 Terceiros juridicamente indiferentes; 19.6.2 Terceiros juridicamente interessados e efeitos reflexos da sentença; 19.6.3 Eficácia reflexa e "efeito de intervenção"-19.7 Efeitos anexos da sentença - 19.8 Efeitos de fato da sentença-19.9 Limites obje-tivos da coisa julgada.

19.1 Conceito

O conceito de coisa julgada continua a ser indiscutivelmente um dos temas mais polémicos e, sem dúvida, um dos mais importantes para a ciência do processo civil.

Podemos desde logo afirmar um princípio sobre o qual não existe controvérsia: a coisa julgada, no sentido em que dela trataremos a seguir, é um fenómeno peculiar e exclusivo de um tipo especial de atividade jurisdicional. Se nem todo ato, ou processo jurisdicional, produz coisa julgada, é certo que não a produzem os atos dos demais poderes do Estado (Executivo e Legislativo). No sistema jurídico brasileiro, pode-se afirmar que este princípio decorre do preceito constitucional que permite, em qualquer caso, a revisão, pelos órgãos do Poder Judiciário, de qualquer ofensa aos direitos individuais (art. 5.° da CF).

A alusão, no texto constitucional, a direitos individuais é o testemunho vivo, ainda hoje presente, em todos os campos do direito., çlasifilospfías liJberajs

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que tiveram seu apogeu, a partir da doutrina de HOBBES, no século XIX, que concebiam o direito como garantia dos indivíduos (isolados) contra o Estado. Uma perspectiva de análise extremamente sugestiva e fecunda a respeito da génese do conceito de direito como "direito individual", desde suas raízes me-dievais, com GUILHERME DE OCCAM, é exposta por MICHEL VILLEY (Leçons d'histoire de Ia philosophie du droit, Cap. XI; e Seize essais dephilo-sophie du droit, Caps. X e XI).

Dá-se nas sociedades contemporâneas, pós-industriais, a tendência inversa, por meio da qual se busca legitimar determinadas situações jurídicas, como as denomina PAUL ROUBIER {Droits subjectifs et situationsjuridiques), supra-indi-viduais, como interesses sociais de grupos, tutelados como simples interesses, ou como direitos "não-subjetivados", a que a lei reconhece status jurídico similar ao dos direitos individuais. A proteção aos chamados "interesses difusos" é um exem-plo marcante desta tendência, que se poderia indicar como "socialização" do direito subjetivo. Daí a referência, no dispositivo constitucional, a "direitos coletivos", ao lado de "direitos individuais".

Somente a sentença - e nem todas elas - poderá oferecer este tipo de estabilidade protetora daquilo que o juiz haja declarado como sendo a "lei do caso concreto", de tal modo que isto se torne um preceito imo-dificável para as futuras relações jurídicas que se estabelecerem entre as partes perante as quais a sentença tenha sido proferida.

Como se poderá então conceituar o que seja realmente a coisa jul-gada? Dissemos que se pode defini-la como a virtude própria de certas sentenças judiciais, que as faz imunes às futuras controvérsias, impedin-do que se modifique, ou discuta, num processo subsequente, aquilo que o juiz tiver declarado como sendo "a lei do caso concreto".

Que significa e como se consegue uma estabilidade desta espécie? Em primeiro lugar, temos de fazer uma distinção prévia. Pode haver um certo grau de estabilidade de que as partes podem desfrutar, quando, num dado processo, se tenham esgotado todos os recursos admissíveis, por meio dos quais se poderia impugnar a sentença nele proferida, sem con-tudo evitarem-se impugnações e controvérsias subsequentes, quando postas como objeto de processos diferentes. A esta estabilidade relativa, através da qual, uma vez proferida a sentença e exauridos os possíveis recursos contra ela admissíveis, não mais se poderá modificá-la na mes-ma relação processual, dá-se o nome de coisa julgada formal, por muitos definida como preclusão máxima, à medida que encerra o respectivo processo e as possibilidades que as partes tenam, a partir daí, de reabri-

lo para novas discussões, ou para os pedidos de modificação daquilo que fora decidido. É o que se denomina princípio da inalterabilidade do julgamento (J. FREDERICO MARQUES, Manual.., v. 3, n. 683), co-mum a todas as sentenças, mesmo as proferidas em procedimento de jurisdição voluntária.

Não será este, todavia, o tipo de estabilidade que ora nos interessa examinar. Pretendemos investigar a possível estabilidade do julgado re-lativamente às futuras relações jurídicas entre as partes e, eventualmente, suas repercussões contra os terceiros alheios ao processo, onde o mesmo haja sido proferido.

Esta constância do resultado, a estabilidade que torna a sentença indiscutível entre as partes, impedindo que os juizes dos processos futu-ros novamente se pronunciem sobre aquilo que fora decidido, é o que se denomina coisa julgada material.

O art. 467 do CPC define a coisa julgada material como "a eficácia, que torna imutável e indiscutível a sentença, não mais sujeita a recurso ordinário ou extraordinário". Com tal definição, de certo modo ambígua, pretendeu o legislador indicar que a imutabilidade que protege a sentença, tornando-a indiscutível nos processos futuros, somente poderá ter lugar depois de formar-se sobre ela a coisa julgada formal, ou seja, a coisa julgada material pressupõe a coisa julgada formal. Por outras palavras, para que haja imutabilidade da sentença no futuro, primeiro é necessário conseguir-se sua indiscutibilidade na própria relação jurídica de onde ela provém. Não há coisa julgada material sem a prévia formação da coisa julgada formal, de modo que somente as sentenças contra as quais não caibam mais recursos poderão produzir coisa julgada material.

Outra ordem de considerações críticas que se levanta contra a concepção da coisa julgada material contida no art. 467 do CPC é a de que, pretendendo o legislador afeiçoar-se à doutrina de LIEBMAN sobre a coisa julgada, tê-la-ia erroneamente definido como uma eficácia da sentença, quando o mestre italiano se propunha, precisamente, a demonstrar que a coisa julgada não era um efeito da sentença, mas uma qualidade inerente a todos os efeitos dela, e que aos efeitos se incorpora, a partir de um dado momento (cf. LIEBMAN, Eficácia e autoridade da sentença, p. 40).

Depois de dizer que a coisa julgada material é a eficácia que torna imutável e indiscutível a sentença, o Código completa esta noção no

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artigo seguinte: "Art. 468. A sentença, que julgar total ou parcialmente a lide, tem força de lei nos limites da lide e das questões decididas". Esta força de lei é que realmente define o que seja a coisa julgada material.

19.2 Conteúdo da sentença e coisa julgada

LIEBMAN efetivamente tem razão ao afirmar que a coisa julgada material não pode ser equiparada a um efeito da sentença, semelhante aos efeitos declaratório, constitutivo, executório, condenatório ou manda-mental. Estes cinco são os únicos efeitos que a sentença pode produzir. A coisa julgada deve ser entendida como uma maneira, ou uma qualida-de, pela qual o efeito se manifesta, qual seja a sua imutabilidade e indis-cutibilidade, como afirma LIEBMAN, ou simplesmente sua indiscutibi-lidade, como julgamos preferível dizer.

Tomemos alguns exemplos, na tentativa de tornar mais claras e compreensivas estas noções e mais fácil de perceber as divergências que sobre elas se formaram entre os processualistas. Examinemos primeiro a sentença de procedência proferida numa ação de indenização, digamos, para a reparação de danos causados pelo réu em virtude de um acidente de veículo. Trata-se de um caso típico de sentença condenatória que, como as demais desta espécie, possui alguma eficácia executiva, mas não executa no mesmo processo. Qual haverá de ser, neste caso, o percurso lógico desenvolvido pelo juiz para a produção da sentença? Evidente-mente, para que ele chegue até o ponto de considerar condenado o réu, terá que ultrapassar uma premissa lógica anterior, através da qual dirá ele que o réu é responsável pelo dever de indenizar. Somente em razão disto, e depois de considerá-lo responsável pela indenização, poderá o juiz condená-lo a indenizar. Vê-se, portanto, com suficiente nitidez, que exis-tirão nessa sentença - como em todas as sentenças condenatórias -, ao lado da eficácia da condenação, uma eficácia prévia declaratória, expres-sa no julgado por meio do verbo ser (é responsável) ou expressão equi-valente. Sabemos também que toda sentença condenatória, ou pelo me-nos a generalidade delas - com raríssimas exceções, como seria, por exemplo, o caso da condenação contra a Fazenda Pública, incapaz de ser executada pelo processo de execução comum -, é dotada de eficácia executiva. Temos, portanto, numa sentença condenatória no mínimo três eficácias perfeitamente visíveis e aparentes: a declaratória, a condenató-ria e a executiva. Falamos de eficácia, não ainda de efeitos.

Qual seria o campo, numa sentença deste tipo, coberto pela coisa julgada material? Para aproximarmo-nos um pouco mais de uma solução para este intrincado problema, devemos considerar a existência de três conceitos de que os processualistas constantemente se valem, quando tratam de definir a coisa julgada. São eles a noção de conteúdo da senten-ça, o de seus efeitos e ainda o conceito de eficácia da sentença. Qual seria o conteúdo de uma sentença qualquer e, particularmente, de uma senten-ça condenatória?

O entendimento de que operação fundamental a ser realizada pelo juiz, ao proferir a sentença, seja a individualização da lei, aplicando-a ao caso concreto (concreção da norma), é uma ideia em geral aceita por todos os doutrinadores. O próprio LIEBMAN, que, como logo vere-mos, opõe-se à doutrina tradicional sobre a natureza da coisa julgada, admite que a sentença seja antes de tudo a "lei do caso concreto". Ora, em nosso exemplo, é fácil determinar a estrutura lógica da sentença, segundo aquela ideia que identifica o julgamento ou, quem sabe, me-lhor dizendo, identifica a aplicação da lei ao caso concreto (subsunção ou concreção da norma), a um silogismo. Imaginemos que a ação de indenização posta no exemplo esteja fundada no art. 159 do CC (arts. 186 e 927 do novo CC), segundo o qual "aquele que, por ação ou omis são voluntária, negligência, ou imprudência, violar direito, ou causar prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar o dano" (no novo Código Civil, o conteúdo deste art. 159 encontra-se desdobrado nos arts. 186, 187 e 927). Tal é a norma, abstrata, como toda norma, e indefinida quanto aos sujeitos concretos alcançados por seu campo de incidência. Sabemos, pela simples leitura do preceito, que "todos aqueles" que, por sua ação ou omissão, causarem danos ou violarem direitos de outrem devem indenizar. Todavia, na situação processual em que um preceito de tal natureza venha a ser controvertido, será realmente o réu um "daqueles" alcançados pelo preceito? A tarefa preliminar do juiz, ao emitir uma sentença, seja ela da espécie que for, será esta operação de particularização do geral, de individualização da norma abstrata. Dirá ele, então, na hipótese figurada no exemplo: (premissa maior) todo aquele que, por imprudência, causar dano a outrem tem o dever de indenizar; (premissa menor) o réu causou dano ao autor por imprudên cia; (conclusão) considero-o, portanto, responsável pela indenização (efeito declaratório) e condeno-o a indenizar (efeito condenatório).

Segundo uma concepção mais ou menos pressuposta por todos os processualistas, o conteúdo da sentença corresponderia à declaração

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pronunciada pelo juiz, enquanto seus efeitos seriam externos e somente surgiriam em momento subsequente ao julgado. ANTÓNIO SEGNI escreve: "L'accertamento dei diritto costituisce il contenuto delia sentenza" (Scrini giuridici, v. 1, p. 627); G. GIANNOZZI, aludindo a esta concepção generalizada, afirma: "Quando si parla di 'contenuto decisório* ci si riferisce appunto a questo integrale accertamento nel mento destinato a creare tra le parti um effetto imperativo (perche realizzato attraverso il comando dei giudice) e immutabile perche protetto delia cosa giudicata, Ia quale raggiunge cosi Io scopo di applicare Ia norma di diritto oggettivo alia situazione controversa, si da regolarla in via definitiva, eliminando ogni incerteza" (Appunti..., p. 225-226). FAZZALARI é ainda mais incisivo, ao falar de comando e efeitos da sentença (Cosa giudicata e convalida di sfratto, Scritti giuridici in memória di Piero Calamandrei, v. 3, p. 1.304-1.315).

Talvez a redação do art. 2.909 do Código Civil italiano esteja a contribuir para a crença de que a declaração (accertamento) seja o conteúdo exclusivo da sentença, ao preceituar este artigo que "1' accertamento contenuto nella sentenza" é que faz coisa julgada para todos os efeitos (fa stató), entre as partes e seus herdeiros. E como, para a doutrina clássica, especialmente de inspiração alemã, a que se filiaram inúmeros juristas italianos, a coisa julgada nada mais era do que o efeito declaratório da sentença, não será difícil confundir conteúdo da sentença com o exclusivo efeito de declaração, ou com a declaração, que não seria efeito, mas conteúdo da sentença (neste sentido PUGLIESE, Giudicato civile, Enciclo-pédia dei diritto, v. 18, p. 811).

Não se deve igualmente olvidar que, para muitos outros juristas, como foi o caso de ALFREDO ROCCO, a função de todas as sentenças seria a de eliminar a incerteza sobre uma dada relação concreta litigiosa {La sentenza civile, p. 65), não sendo próprio sequer falar-se de sentenças constitutivas (p. 128). Logo, o conteúdo de todas as sentenças seria sempre e somente declaratório.

A distinção entre conteúdo e efeitos, não só dos fatos ou fenómenos naturais, como dos atos jurídicos, é perfeitamente clara e intuitiva. Os efeitos hão de ser, por definição, exteriores ao ato que os produz, à me-dida que, até mesmo, o pressupõem existente e capaz de produzi-los, vale dizer, eficaz. Assim, por exemplo, sob o ponto de vista lógico e ontoló-gico, seria um disparate supor que o efeito do medicamento estivesse no frasco que o contém, ou que fizesse parte de seu conteúdo; nem a arma ou a substância venenosa poderão ter, em seus respectivos conteúdos, os efeitos que lhes são próprios.

Esta simplificação conceituai, no entanto, poderá ser fatal quando se pretenda determinar o conteúdo e os efeitos de uma sentença: em primeiro lugar, porque a sentença é um ato jurídico de extrema comple-xidade, onde poderiam coexistir, sem qualquer ofensa aos princípios da lógica, o conteúdo do ato jurisdicional e alguns de seus efeitos; em se-gundo lugar, porque a sentença, não obstante ser um ato jurídico, em sentido lato, é também, e essencialmente, o último elo de uma cadeia de atos que a antecedem, e cuja causa está na demanda formulada pelo autor. Valendo-nos da comparação entre os fenómenos jurídicos e os fatos na-turais, poderíamos ilustrar a situação da sentença de procedência, que produz efeitos além da declaração, relativamente à ação para a qual ela seja dada, como a relação que se estabeleceria entre o iluminar-se de uma lâmpada elétrica e o prévio acionar do interruptor da corrente, que impe-dia tal efeito de manifestar-se.

A lâmpada elétrica ilumina ou ilumina-se? Certamente a luz produ-zida pela lâmpada não é a lâmpada^ à medida que o efeito, que é a luminosidade por ela produzida, só é possível se houver antes dele pre-cisamente a lâmpada; e, não obstante, é possível afirmar que a luz não está fora da lâmpada, ainda que seja seu efeito principal.

Voltando-nos para os fenómenos jurídicos, o que poderíamos dizer, por exemplo, a respeito do conteúdo de uma escritura pública de quitação ou do ato de reconhecimento voluntário de paternidade? A quitação é conteúdo ou é efeito da declaração do credor, assim como o vínculo de paternidade seria conteúdo ou efeito do ato jurídico de reconhecimento? Não cremos que se possa negar que a quitação é um efeito da declaração manifestada pelo credor, assim como o vínculo jurídico que estabelece a filiação é também o efeito mais direto e evidente do ato de reconhecimen-to. Não nos parece, todavia, próprio dizer que a quitação está fora da escritura, assim como a relação de parentesco não estaria no conteúdo do ato de reconhecimento, mas ser-lhe-ia externa.

Eis a razão pela qual entendemos que o conteúdo da sentença seja formado não só pela declaração, ou por esta e pela modificação do mun-do jurídico causada pela sentença constitutiva, mas, em certos casos, também por determinados efeitos que não sejam apenas o declaratório e o constitutivo.

Voltando a nosso exemplo da ação de indenização, como podería-mos determinar o conteúdo da respectiva sentença de procedência? Pare-

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ce indiscutível que uma sentença condenatória não poderia ter um mes-mo e idêntico conteúdo de uma sentença que apenas declarasse (art. 4.° do CPC) a existência do dano e do dever de indenizar, segundo o art. 159 do CC. Que uma sentença condenatória, vista em sua essência, sem qual-quer preocupação com seus possíveis efeitos, não poderia ter conteúdo idêntico ao de uma sentença declaratória é conclusão que decorre logica-mente do fato de admitirmos a própria existência delas, pois, se as mes-mas não se distinguissem em sua essência e conteúdo, não seriam duas sentenças diferentes. Sendo assim, em que ponto, ou através de que fenó-meno, diferenciam-se uma da outra a sentença declaratória e uma conde-natória que tenham por objeto a mesma relação jurídica fundamental, sobre a qual, num processo, pede-se declaração e noutro pede-se, além da declaração, que o demandado seja também condenado?

Para que se possa distinguir, segundo suas respectivas espécies, as diversas sentenças, não há outro remédio senão utilizarmo-nos do con-ceito de eficácia sentenciai.

Também aqui, ao buscarmos uma definição para eficácia da senten-ça, encontraremos dificuldades semelhantes. Segundo a linguagem jurí-dica corrente, diz-se que um ato é eficaz quando ele produz efeitos, rela-tivamente a todos ou a determinados sujeitos. Pode acontecer que o ato não produza efeitos por conter uma nulidade absoluta, caso em que a incapacidade resultaria de sua invalidade; como pode também ocorrer que uma tal inaptidão para produzir efeitos seja devida não à nulidade, mas à ineficácia do ato. Neste caso, o ato é válido mas não é eficaz. O ato praticado em fraude à execução (art. 593 do CPC) é ineficaz contra os credores que estejam na situação de sofrer prejuízos dele decorrentes, sem ser nulo ou sequer anulável.

Quando tratamos das eficácias das sentenças, a noção que lhes damos é outra. Aqui, o emprego do vocábulo eficácia nada tem a ver com a validade da sentença, ou com a possível vinculação a ela das partes ou terceiros, porventura alcançados por seus efeitos. Quando dizemos que uma determinada sentença tem eficácia declaratória ou constitutiva, não queremos dizer que ela seja eficaz relativamente a este ou a aquele sujeito, como se diria da qualidade do ato ou negócio jurí-dico que seja eficaz ou ineficaz. O conceito de eficácia da sentença, mais do que a validade, ou a pura aptidão para ser eficaz, perante seus destinatários, indica a qualidade do "ser eficaz", porque não se diz

simplesmente que tal sentença tem eficácia, e sim que tem esta ou aquela eficácia, que ela é declaratória, constitutiva etc.

Quando se tem uma ação constitutiva (de direito material), sabe-se de antemão que a respectiva sentença de procedência irá ter uma eficácia constitutiva de igual natureza e intensidade. Se a ação for de anulação de um contrato, saberemos antecipadamente que a sentença, pela qual o juiz reconheça sua procedência, será também constitutiva negativa, tal como a pretensão posta em causa pelo autor. Do mesmo modo, quando temos diante de nós duas ou mais sentenças, podemos classificá-las segundo a qualidade de suas forças respectivas ou conforme os efeitos que elas produzam sejam declaratórios, condenatórios ou constitutivos; ou ain-da, fora do "processo de conhecimento", que tais efeitos sejam denomi-nados executivos ou mandamentais:

A diferença entre eficácias e efeitos da sentença, todavia, é deci-siva. Quando dizemos que uma dada sentença é, por exemplo, consti-tutiva, estamos ainda a tratar da entidade "sentença constitutiva" en-quanto tal e na medida em que ela, em sua substância, seja diferente de uma sentença condenatória ou puramente declaratória. A eficácia faz parte do ser da sentença e, pois, não se confunde com os efeitos que ela seja capaz de produzir.

Voltemos ainda uma vez ao exemplo da ação de indenização. Em que ponto a sentença de procedência desta ação se diferencia de uma sentença declaratória? Indiscutivelmente elas são diferentes pelos ver-bos que cada uma contém. Se a sentença fosse apenas declaratória, em seu conteúdo não poderia estar o verbo condenar (condeno). Se retirás-semos dela o verbo condenar, a sentença continuaria condenatória, ou, tendo ficado reduzida à declaração de que o réu era responsável por indenização, deixaria de ser condenatória para ser simplesmente declara-tória (art. 4.° do CPC)? Certamente, a perda do verbo condenar signifi-caria redução de seu conteúdo ou de sua eficácia.

Isso é suficiente para mostrar que a sentença é condenatória por conter (estar no conteúdo dela) o verbo condenar, de tal modo que sua eficácia preponderante seja a força, a virtude de ser condenatória.

, É fácil, portanto, perceber que toda sentença condenatória apre-sentará dois fenómenos distintos: o condenar, que é o agir do magistra-do em substituição ao agir privado do titular do direito, a tanto impedi-do pelo ordenamento jurídico, e a condenação, que é o estado resultan-

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te do ato de condenar. Se examinarmos a sentença, diremos que houve condenação; se dirigirmos nossa análise para o réu, veremos um "réu condenado". O ato de condenar e a condenação estão na sentença. Haverá desde logo um réu condenado. Não se pode, todavia, confundir o estar condenado com o efeito executivo da sentença condenatória. O réu que teve contra si pronunciada a sentença condenatória está (status) desde logo condenado, o que significa dizer que o efeito condenatório o atin-giu. E, não obstante, poderá ele jamais ser atingido pelo efeito execu-tivo, se o demandante vitorioso, por exemplo, desistir de acioná-lo executivamente.

Temos, assim, que as eficácias de uma dada sentença fazem parte de seu conteúdo. Através delas é que uma sentença declaratória ou constitu-tiva, ou condenatória, ou executiva, ou mandamental, é diferente das demais.

Imaginemos agora, apenas para servimo-nos de um elemento de comparação, a estrutura eficacial de uma sentença que julgue proce-dente a ação de mandado de segurança. Quais verbos ela deverá conter para ser realmente uma sentença desta espécie? No mínimo dois: o juiz deverá considerar que o autor tem direito ao que pede porque determi-nado preceito legal incidiu e ele o está a aplicar (efeito declaratório); e, em virtude disso, haverá de ordenar alguma coisa (eficácia mandamen-tal). O componente declaratório, comum a todas as sentenças, necessa-riamente se manifesta e desde logo produz seu efeito peculiar. Com o trânsito em julgado da sentença, haverá o verbo ordeno, ou outro seme-lhante, que corresponde à eficácia mandamental já produzida pela sen-tença proferida em ação de mandado de segurança. Se quisermos saber se o verbo ordenar (ordeno) integra o conteúdo da sentença mandamen-tal, é simples; basta retirá-lo e verificar se a sentença em si mesma permaneceu imodificada. E óbvio que ela só é mandamental por conter a ordem em seu conteúdo.

O efeito que daí resulta, no entanto, poderá jamais ocorrer. Basta que o mandado nunca seja expedido e, como consequência, seu des-tinatário jamais o receba. O efeito mandamental está fora do conteú-do da sentença. Ela vive íntegra mesmo no caso deste efeito jamais produzir-se.

Não se dá o mesmo, todavia, com o efeito constitutivo. Tal como na sentença condenatória, também a constitutiva apresentará o ato de modi-

ficar, a modificação e o estado subsequente de estar modificado. Se, digamos, que a sentença for de procedência de uma separação judicial, que é constitutiva negativa, o juiz terá decretado a separação (ato de separar) e, em consequência, terá havido a separação, que é o estado resultante do agir do magistrado, e, sob o ponto de vista dos sujeitos da relação processual (partes), estarão eles no estado de separados. Quando o juiz decreta a separação judicial do casal (ato de separar), ele corta o vínculo jurídico matrimonial, daí dizer-se que a sentença é constitutiva negativa porque não há a criação de uma nova relação jurídica, mas a extinção de uma relação anteriormente existente. A eficácia da sentença constitutiva é representada pelo verbo decretar (decreto), ou outro de sentido semelhante, e, como todas as eficácias, faz parte do conteúdo da sentença, de tal modo que, se o suprimirmos, a sentença perderá um componente eficacial, deixando de ser constitutiva para transformar-se noutra coisa. E a modificação, como efeito, estaria no conteúdo da sen-tença? Pelo que sabemos da análise precedente, nenhum efeito, enquanto tal, poderá fazer parte do conteúdo, ou da essência, ou ser elemento integrante do ser que o produziu. E, não obstante, a modificação operada pela sentença constitutiva nela vive, à medida que ela a produz, e não seria possível conceber o ato de modificar sem a modificação, assim como podemos perfeitamente conceber a ordem (eficácia fundamental) sem o cumprimento da ordem (efeito mandamental).

Certamente haverá, sob o ponto de vista das partes perante as quais a sentença de separação é proferida, uma segunda consequência da sentença constitutiva: o estado de separados que elas gozarão a partir do trânsito em julgado da sentença. Uma coisa, porém, é a extin-ção do casamento (corte da relação jurídica preexistente), outra a cria-ção do novo estado jurídico dos cônjuges. A modificação nunca é ato, mas a consequência, ou o estado, resultante do ato modificativo. E, não obstante, apesar de ser efeito jurídico causado pelo ato de modificar, está no conteúdo da sentença, porque não se pode, diga-se mais uma vez, conceber sentença constitutiva sem este resultado. Se ela não criar, modificar ou extinguir uma relação jurídica, como resposta a um direito formativo de idêntico conteúdo (gerador, modificativo ou extintivo), deixará de ser constitutiva, do mesmo modo que deixará de ser conde-natória a sentença que não contiver o verbo condenar (condeno). Se a modificação, enquanto estado decorrente do ato de modificar, está na sentença, como consequência dos verbos "decretar", "homologar", res-

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cindir", ou qualquer outro expressivo de uma operação similar, certa-mente teremos de admitir que os verbos "condenar", na sentença con-denatória, e ''ordenar", nas mandamentais, situam-se igualmente no conteúdo das respectivas sentenças.

O raciocínio, por conseguinte, para não violentar um princípio de lógica elementar, deverá ser conduzido para a conclusão de que se deve fazer uma distinção básica, entre conteúdo constitutivo e conteúdo da sentença constitutiva, quando quisermos inserir nela o efeito produzido por uma sentença desta espécie. O "ser constitutivo'* não pode, em sua ontologia, conter o efeito, mas a sentença constitutiva terá em seu con-teúdo o ato de modificar e a modificação, como seu efeito, assim como a sentença condenatória terá o ato de condenar e a condenação igualmen-te como conteúdo dela.

19.3 Coisa julgada e declaração

Para LÍEBMAN (Eficácia e autoridade da sentença, p. 46), "a au-toridade da coisa julgada não é um efeito da sentença, como postula a doutrina unânime, mas, sim, modo de manifestar-se e produzir-se dos efeitos da própria sentença, algo que a esses se ajunta para qualificá-los e reforçá-los em sentido bem determinado". A coisa julgada material seria, para ele, uma qualidade especial que aos efeitos vem ajuntar-se, a partir de um dado momento, de modo a torná-los indiscutíveis num futu-ro processo, pois "somente uma razão de utilidade política e social" (p. 53) seria capaz de evitar as futuras discussões sobre aquilo que o juiz houvesse julgado no primeiro processo, impondo que o comando jurídi-co expresso na sentença se torne imutável. "Nisto consiste, pois, a auto-ridade da coisa julgada, que se pode definir, com precisão, como a imu-tabilidade do comando emergente de uma sentença. Não se identifica ela simplesmente com a definitividade e intangibilidade do ato que pronun-cia o comando: é, pelo contrário, uma qualidade, mais intensa e mais profunda, que reveste o ato também em seu conteúdo e torna assim imu-táveis, além do ato em sua existência formal, os efeitos, quaisquer que sejam, do próprio ato" (p. 54).

Separa-se, portanto, LIEBMAN, segundo ele próprio diz, da una-nimidade da doutrina anterior, ao afirmar, com razão, que a coisa julga-da não é um efeito da sentença, e sim uma qualidade que ao efeito, ou, segundo ele, a todos os efeitos, se adiciona para torná-los imutáveis.

Ficariam, então, imutáveis o conteúdo e todos os efeitos da sentença (ob. cit., p. 21).

Esta última afirmação, todavia, se não é incorreta, está pelo menos mal formulada. Os efeitos que a sentença produz são perfeitamente modificáveis pela vontade das partes, como justamente afirma J. C. BARBOSA MOREIRA {Ainda e sempre a coisa julgada, p. 139).

Com efeito, o que poderá impedir, por exemplo, que locador e locatário, depois do trânsito em julgado da sentença que houver acolhi-do a ação renovatória de locação e fixado determinado aluguel, de co-mum acordo, o modifiquem e passem a praticar um aluguel diferente? Se eles o fizerem, nem por isso o aluguel diverso daquele que fora fixado pela sentença será ilegítimo, de modo a impedir que o locador venha a cobrá-lo judicialmente. Certamente, o segundo juiz não poderá repelir uma tal pretensão sob o fundamento de que a coisa julgada da ação renovatória - cobrindo com o selo da imutabilidade o comando da sentença, como diz LIEBMAN, e todos os seus efeitos - o impediria.

Todavia, seria impossível, por vulnerar a coisa julgada da sentença renovatória, qualquer tentativa, seja do locador, seja do locatário - eis que a coisa julgada opera tanto com relação ao vencido como igualmente contra o vencedor -, de vir novamente ajuízo pedindo que o juiz declare, em sentido contrário à primeira declaração, que o locatário não tinha, então, direito à renovação do contrato de locação. E se as partes, naquele acordo mencionado, de alteração do aluguel, tivessem incluído uma cláu-sula pela qual o locatário declarasse que concordava em pagar mais por-que reconhecia não ter direito à renovação, o acordo assim concebido somente seria válido quanto à disposição sobre o aluguel ajustado, mas seria uma completa inutilidade como possível fundamento para uma ação de despejo a que se aventurasse o locador, alegando término da relação locatícia. A coisa julgada que se formara na ação renovatória, declarando o direito à prorrogação do contrato, o impediria.

Assim também os cônjuges judicialmente separados, em processo litigioso, ou os confinantes dos terrenos, cuja linha demarcatória haja sido fixada em ação de demarcação, poderão dispor diferentemente da-quilp que as respectivas sentenças hajam decidido: os cônjuges restabe-lecendo a sociedade conjugal desfeita pela sentença; os confinantes alte-rando a linha divisória entre os prédios judicialmente demarcados (vide J. C. BARBOSA MOREIRA, ob. e loc. cite.).

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Tanto no exemplo do restabelecimento da relação matrimonial des-feita pela sentença quanto no da modificação do valor do aluguel fixado em sentença renovatória, não obstante a indiscutibilidade da declaração, de que os demandantes vitoriosos tinham direito a tal consequência jurí-dica, o que ocorre é nada mais nada menos do que a modificação do efeito constitutivo de uma sentença preponderantemente constitutiva.

Assim como os verbos "homologar", "decretar", "condenar", "anular", e todos os demais que expressem as eficácias internas do ato sentenciai, também o verbo "arbitrar", na locução "arbitro o aluguel", integra o conteúdo da sentença, à medida que tanto o verbo quanto o novo aluguel - tanto o ato de modificar quanto a modificação - nela se encontram.

Se o devedor condenado paga a soma de vida, o que desaparece é a possibi-lidade de promover o credor que haja recebido o pagamento a subsequente ação de execução, vale dizer, o efeito executivo da sentença condenatória não se realizará. Todavia, não se poderá dizer, como o faz LIEBMAN {Eficácia e autoridade das sentença, p. 25), que o fato do pagamento retira da condenação todo o seu valor. Na verdade, não se poderá dizer que o retire todo, pois, se assim fosse, poderia o devedor, depois de pagar, pedir de volta seu dinheiro, alegando que "perdera a condenação todo valor". E, porventura, este obstáculo óbvio será decorrente da circunstância de haver a condenação — resultante do verbo "condenar" - ter-se também tornado imutável e indiscutível? Absolutamente não. Assim como o paga-mento impede a realização do efeito executivo, o perdão concedido pelo credor, legitimamente, libera o devedor do efeito condenatono; e se, depois dele, tentar o credor, por exemplo, compensar o crédito que a sentença lhe reconhecera, certa-mente o devedor poderá evitá-lo opondo-lhe o perdão anteriormente concedido.

Pelas considerações precedentes, cremos que se pode concluir, com LIEBMAN, que a coisa julgada não é um efeito, mas uma qualidade que se ajunta não, como ele afirma, ao conteúdo e a todos os efeitos da sen-tença, tornando-a imutável, e sim apenas ao efeito declaratório, tornan-do-o indiscutível (que é o meio de a declaração tornar-se imutável!) nos futuros julgamentos.

Este entendimento, que absolutamente não se identifica com a doutrina clás-sica, que assimila coisa julgada à declaração contida na sentença ou, como diz LIEBMAN (Eficácia..., p, 18), com a "eficácia de declaração", constante em todas as sentenças, permite afirmar que, efetivamente, todas elas, inclusive as proferidas nos procedimentos de jurisdição voluntária, contêm eficácia declaratória, mas

nem todas produzem coisa julgada material, assim como não se poderá dizer que a sentença que julga procedente a ação cautelar seja completamente destituída de "eficácia de declaração", e também ela, apesar disso, não produz coisa julgada, porque, em qualquer destes casos, existe rarefação do elemento declaratório da sentença, que perde peso em favor da constitutividade ou mandamentalidade, exis-tentes em maior grau nestas sentenças.

19.4 Coisa julgada e eficácia da sentença

Temos, pois, como instrumentos para nossa análise subsequente, estes dois elementos obtidos a partir das observações anteriores: I) as sentenças podem ter, e normalmente têm, mais de uma eficácia, havendo alguns casos em que o respectivo espectro eficacial apresenta três ou quatro ou, talvez mesmo, as cinco eficácias capazes de serem produzidas pelas sentenças; II) a coisa julgada material é a qualidade que se adiciona, em dadas circunstâncias, ao efeito declaratório da sentença, tornando-a indiscutível.

Demos exemplo da sentença "meramente" declaratória com eficácia inclusa constitutiva em oportunidades anteriores, quando igualmente mostramos a multi-plicidade das eficácias, por exemplo, da sentença "declaratória" de falência, que é preponderantemente constitutiva (do estado falencial), contendo eficácias, vá-rias, constitutivas, executivas e mandamentais (cf. OVÍDIO A. BAPTISTA DA SILVA, Sentença e coisa julgada, p. 93 e ss., e Ajuris 33/52).

Resta agora indagar como operam a coisa julgada e os efeitos da sentença relativamente às partes e aos terceiros.

Tendo a coisa julgada como a qualidade do efeito declaratório da sentença, tal como acabamos de defini-la, torna-se fácil concluir que ela jamais poderá atingir aos terceiros, como declaração indiscutível, pela singela razão de que jamais o juiz, ao julgar a lide entre A e B, terá oportunidade de pronunciar declaração capaz de tornar-se imutável a respeito de outra relação jurídica integrada, por exemplo, por A e C, ou BeC, muito menos ainda sobre relações jurídicas de que façam parte C e D ou X e Y. A sentença que decreta o despejo somente conterá eficácia declaratória sobre a relação de locação e o direito que o locador tiver de retomar o prédio locado. Mesmo assim, não se poderá negar que a sen-tença de procedência na ação de despejo atingirá o subinquilino, pois os efeitos da sentença - ditos por LIEBMAN eficácias naturais - operam

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erga omnes {Eficácia..., p. 20), mas nunca de modo inexorável, a ponto de impedir que os terceiros alheios ao processo lhe discutam a legitimi-dade e a justiça, vale dizer, contra os terceiros operam os efeitos da sentença, não porém como coisa julgada, como logo veremos.

Antes, contudo, são necessárias ainda duas palavras sobre o modo como a coisa julgada opera relativamente às partes.

Como vimos, a coisa julgada não torna imutáveis os efeitos da sen-tença, sejam eles inclusos no próprio ato sentenciai, sejam efeitos diferi-dos, como se dá com o efeito executivo, existente na sentença condena-tória, ou sejam tais efeitos destinados a modificar a realidade concreta, para além do campo relacional da juridicidade enquanto proposições normativas, como sucede, por exemplo, com o imitir-se na posse o autor da ação reivindicatória, ou o despejar do inquilino que haja sucumbido na ação de despejo, ou a expedição da ordem emitida na ação de mandado de segurança. Segundo nosso entendimento, o que transita em julgado é apenas a declaração que o magistrado faz na sentença de que tal ou qual preceito de lei incidiu, transformando-se na "lei do caso concreto". Na ação de separação judicial, não é a modificação (corte do casamento) nem a criação do estado de separados que se tornarão imutáveis, mas a declaração de que o autor ou a autora da ação tinham direito de obter a separação, porque uma norma legal lhes reconhecia este direito.

Se, porventura, qualquer das partes pretende valer-se de um novo processo para discutir outra vez aquilo que já fora declarado pela primei-ra sentença, o outro litigante poderá, se antes o próprio juiz já não o tiver feito, arguir a exceptio rei iudicatae, cuja função é impedir o novo julga-mento sobre aquilo já decidido e coberto pela coisa julgada. A esta virtu-de puramente impeditiva de outro julgamento diferente, ou mesmo de sentido idêntico ao primeiro, denomina-se efeito negativo da coisa julga-da. Pode suceder, porém, que o litigante perante o qual a coisa julgada se formara pretenda usá-la para com ela substanciar uma nova pretensão sua. Imagine-se que o autor pedira, num primeiro processo, que o juiz declarasse o réu responsável por indenização, e que, num processo pos-terior, volte a juízo para pedir que o mesmo seja condenado a indenizá-lo; ou que, no primeiro processo, havendo controvérsia sobre a natureza de um determinado contrato, propusera uma ação declaratória, cujo re-sultado fora o reconhecimento judicial de que a relação jurídica litigiosa era efetivamente um contrato de locação, com base no qual retorna aque-le que a primeira sentença reconhecera como locador a pedir agora o

pagamento do aluguel. Nestas hipóteses, o réu evidentemente não pode-ria defender-se com a exceptio rei iudicataey porque seria justamente a coisa julgada um dos pressupostos de procedência da demanda. Nestes exemplos ocorrerá o que se denomina efeito positivo da coisa julgada. Enquanto o efeito negativo corresponde à consumação da ação, traduzida no princípio ne bis in idem, à medida que impede o novo julgamento, o chamado efeito positivo da coisa julgada vincula o juiz do segundo pro-cesso, obrigando-o a levar em conta a sentença como coisa julgada, para servir-se da primeira declaração, no processo que lhe é posto sob julga-mento, conformando-se a ela (GIOVANNI PUGLIESE, Giudicato civi-le, Enciclopédia..., v. 18, p. 788; consultem-se, igualmente, SAVIGNY, Sistema de derecko romano actual v. 5, §§ 282 e 283, e WINDSCHEID, Diritto delle pandete, § 130, nota 23).

Há outros exemplos bem significativos da ocorrência do chamado efeito positivo da coisa julgada. Um destes exemplos clássicos é indicado por HEINITZ (/ limiti oggettivi delia cosa giudicata, p. 89), que o retira de. KELLER: alguém, depois de haver obtido uma sentença favorável numa ação de reivindicação, é demandado pelo réu, que agora se transforma em autor da segunda demanda, onde pretende justamente reivindicar o mesmo bem cujo domínio fora reconhecido a seu adversário. Aqui, o vitorioso no primeiro processo não se servirá da coisa julgada, para impedir o novo julgamento, senão que dela se valerá para impor o seu conteúdo.

Este problema é de extrema delicadeza, pois, como já advertia SAVIGNY, nem sempre, particularmente nas ações reais, a rejeição da demanda implicará na declaração de ser o demandado o titular do direito litigioso. Assim, por exemplo, se o autor da reivindicatória vê sua ação repelida por improcedente, nem por isso terá a sentença, necessariamente, força de coisa julgada para declarar que o pro-prietário da coisa litigiosa seja o demandado. Também napetitio hereditatis am-bos os litigantes podem, como igualmente sucede na reivindicatória, dizer-se titu-lares do direito à sucessão, e nem sempre a declaração de que o autor não tem direito à herança importará em reconhecê-lo ao réu, que por sua vez poderá não sê-lo (SAVIGNY, Sistema..., § 288).

Tira-se daí, como mostra o romanista, uma consequência da maior impor-tância para a teoria da coisa julgada, que é a consideração de que ela opera tam-bém contra o vencedor. Esta situação fica bem clara quando, passando-se das ações reais para as pessoais, examinamos o exemplo do autor que haja pedido o reconhecimento de um crédito correspondente a 100: se o juiz considerar provado

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o crédito apenas no valor de 60, deverá reconhecê-lo, julgando a ação parcialmen-te procedente. Isto - diz SAVIGNY - significa afirmar que toda demanda contém em si todos os pedidos menores que sejam possíveis, assim como igualmente aquele que reivindica o imóvel todo reivindica implicitamente suas partes, de tal modo que o juiz, se não puder dar-lhe o todo, haverá de conceder-lhe a parte.

Do mesmo modo, se o autor, que poderia pedir os 100, limita-se a pedir 80, não poderá, numa segunda demanda, voltar a juízo para pedir os 20 restantes, mes-mo que a primeira ação haja sido procedente, e justamente por isso. Este é realmente o núcleo fundamental para a teoria, frequentemente combatida, do chamado "julgamento implícito", que aparece refletida no art. 474 do CPC.

O efeito negativo da coisa julgada opera sempre como exceptio rei iudicatae, ou seja, como defesa, para impedir o novo julgamento daquilo que já fora decidido na demanda anterior. O efeito positivo, ao contrário, corresponde à utilização da coisa julgada propriamente em seu conteúdo, tornando-o imperativo para o segundo julgamento. Enquanto a exceptio rei iudicatae é forma de defesa, a ser empregada pelo demandado, o efeito positivo da coisa julgada pode ser fundamento de uma segunda demanda. Imagine-se que as partes em um dado processo - digamos, numa ação confessória de servidão - hajam controvertido tanto a condi-ção de proprietário dos prédios litigiosos quanto a existência propria-mente do alegado direito real. Se a sentença reconhecer a procedência da ação, condenando o réu a tolerar o exercício do direito à servidão, não poderá o autor, por exemplo, numa demanda posterior que o réu primiti-vo lhe mova para exigir-lhe a construção de obras necessárias ao exercí-cio da servidão, afirmar que ela não existe, quando sua existência fora determinada pela sentença anterior.

Esta problemática, mais que ao conceito propriamente de coisa julgada, pertence ao campo de seus limites objetivos, questão a ser abordada logo adiante.

Deve-se, todavia, antecipar que tudo aquilo que acaba de ser dito sobre o alcance da coisa julgada, em seu efeito positivo, capaz de vincular o juiz de uma demanda diversa, onde a res iudicata seja empregada como pressuposto ou como fundamento, mal se acomoda à doutrina restritiva adotada pelo Código a respeito de coisa julgada, segundo a qual esta apenas tornaria indiscutível o decisum da senten-ça, nunca os seus fundamentos, conforme prescreve o art. 469.

LUIZ MACHADO GUIMARÃES (Preclusão, coisa julgada e efeito preclusivo. Estudos de direito processual civil, p. 16, nota 29) distingue a coisa julgada do que ele denomina "eficácia preclusiva da coisa julgada substancial", a que corresponderia o efeito produzido pela sentença quando utilizada no proces-

so subsequente "como uma questão prejudicial". J. C. BARBOSA MOREIRA (A eficácia preclusiva da coisa julgada material no sistema do processo civil brasilei-ro, Temas de direito processual, p. 97 e ss.) adere inteiramente às conclusões de LUIZ MACHADO GUIMARÃES, reafirmando que esta eficácia nada tem a ver com os limites objetivos da coisa julgada. Em sentido contrário, todavia, JOÃO DE CASTRO MENDES (Limites objetivos do caso julgado em processo civil, especialmente n. 23 e ss.)

19.5 Teoria processual e teoria material sobre a coisa julgada

Embora a questão não tenha a importância que muitos lhe atribuí-ram, cabe uma breve referência ao problema que ocupou vivamente a doutrina processual, na primeira metade deste século, relativa à natureza da coisa julgada, para determinar se ela seria apenas um fenómeno pro-cessual ou se teria efeitos de direito material.

Segundo a teoria processual da coisa julgada, sua eficácia declara-tória teria operacionalidade apenas para os processos futuros, não modi-ficando de modo algum nem criando qualquer vínculo de direito mate-rial. O juiz do segundo processo é que ficaria vinculado ao primeiro julgamento, em virtude apenas de um preceito de direito processual, e não porque o direito, porventura inexistente, tivesse passado a existir em razão da sentença (HEINITZ, / limiti..., p. 60).

Ao contrário, para os defensores da teoria substancial, dentre os quais se destaca ALLORIO {La cosa giudicata rispetto ai terzi, p. 13), a coisa julgada é fator constitutivo de um novo vínculo de direito material. Procurando mostrar que a fórmula segundo a qual "a sentença declara, não cria direito" seria insuficiente por não explicar o fenómeno da sentença injusta, ALLORIO conclui que toda sentença, seja confirmadora de um direito preexistente ou, ao contrário, pronúncia contra o direito, e, portanto, injusta, produz uma nova relação jurídica de direito material.

LIEBMAN (Eficácia..., p. 42) faz oposição radical ao entendimento de que a coisa julgada se resuma apenas num vínculo para os juizes futuros, afirmando que ela deve operar, e realmente opera, "nas mil outras contingências da vida", sempre que seja necessário saber como uma determinada relação jurídica é regu-lada pela lei, o que importa dizer, neste caso, que a coisa julgada deve ser consi-derada em seus efeitos erga omnes, tanto em relação as partes quanto relativamente aos terceiros. PONTES DE MIRANDA escreve: "A força da coisa julgada

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ceiros, as sentenças que hajam decretado a separação judicial ou o des-pejo, ou qualquer outra, segundo as suas eficácias.

Nem todos os terceiros, no entanto, sofrem com igual intensidade os efeitos da sentença. Da observação deste fenómeno e do modo como os terceiros poderão reagir eventualmente contra uma determinada sen-tença surgiu a necessidade de dividirem-se os terceiros em duas grandes classes: os denominados terceiros indiferentes e os terceiros juridica-mente interessados, os quais, por sua vez, ainda se subdividem em duas subclasses (LIEBMAN, Eficácia..., p. 92).

19.6.1 Terceiros juridicamente indiferentes

Os terceiros juridicamente indiferentes, sujeitos de alguma relação jurídica compatível com a sentença, recebem sem dúvida os seus efeitos, mas eles se mostram irrelevantes para atingir a relação jurídica de que o terceiro seja titular. Este será o caso, por exemplo, do inquilino cujo locador acaba de separar-se judicialmente de sua mulher É óbvio que o contrato de locação poderá conviver perfeitamente com a sentença que houver decretado a separação judicial, assim como a relação de crédito que vincula credor e devedor nada sofrerá com a sentença que houver reconhecido a procedência de uma ação de nulidade de testamento ou de uma ação de reivindicação propostas contra o devedor e das quais haja decorrido sua situação de insolvência. Ainda que insolvente, permanece o devedor obrigado perante seu credor e intocada a respectiva relação jurídica de crédito.

Imaginemos, porém, que o inquilino do exemplo anterior venha a ser demandado por um dos cônjuges a quem o imóvel locado coubera na partilha subsequente à separação judicial, o qual em razão da nova con-dição jurídica criada com a dissolução do casamento, passara a ter neces-sidade do prédio para seu uso pessoal. O inquilino, nesta hipótese, não terá outra alternativa senão restituir o imóvel, não lhe sendo lícito sequer ingressar na ação de separação como assistente de um dos cônjuges. Terá ele sofrido a eficácia direta constitutiva da sentença que, como todas as demais eficácias, é inexorável para os terceiros (PONTES DE MIRAN-DA, Tratado das ações, v. 1, p. 214).

Perante o terceiro, a sentença opera, nestes casos, mais como fato do que propriamente em sua função específica de ato jurisdicional.

Desta mesma forma, o efeito declaratório atinge os terceiros em geral, de tal modo que, se ele tiver intensidade capaz de produzir coisa julga-da, os terceiros deverão considerar, em suas eventuais relações jurídi-cas com as partes, a existência da coisa julgada. Se, por exemplo, o promitente-comprador, antes de assinar o contrato, souber que a pro-priedade do objeto prometido à venda é questionada por algum terceiro que se afirma seu proprietário, a sentença proferida em ação declarató-ria proposta pelo promitente-vendedor contra esse terceiro, que der pela procedência da ação e reconhecer a propriedade do autor, certa-mente o atingirá, ao promitente-vendedor, não como coisa julgada, mas como eficácia declaratória relevante. A sentença que rejeitar a deman-da do promitente-vendedor e reconhecer a propriedade do terceiro so-bre a coisa objeto do contrato de promessa igualmente atingirá o pro-mitente-comprador, inexoravelmente, todavia, como na hipótese ante-rior, não como coisa julgada.

O tçrceiro nada terá a ver com a sentença que convertera em divór-cio a separação judicial de um certo casal - o efeito constitutivo de uma tal sentença certamente o atinge, no entanto, a ponto de permitir-lhe contrair matrimonio com o cônjuge divorciado. Esta é sem dúvida uma forma de manifestação da eficácia da sentença fora de um eventual pro-cesso futuro, mas aí ela não opera como coisa julgada, e sim através de algum de seus efeitos. E não se pode esquecer que a coisa julgada é apenas e simplesmente uma qualidade dos efeitos da sentença.

19.6.2 Terceiros juridicamente interessados e efeitos reflexos da sentença

No grupo dos terceiros ditos juridicamente interessados, temos a classe dos que são atingidos pela coisa julgada e dos que recebem apenas os efeitos diretos como reflexos sobre uma relação jurídica de que esses terceiros façam parte.

Na classe dos terceiros que ficam subordinados à coisa julgada, temos os sucessores das partes, os que lhes tenham sucedido, no proces-so, como cessionários do direito litigioso e o substituído na ação promo-vida pelo substituto processual. Tais figuras de terceiros, na verdade, não se podem dizer realmente estranhas à relação litigiosa, à medida que seus direitos não são propriamente derivados, mas um simples prolongamen-to do direito controvertido na causa. É natural, portanto, que eles fiquem expostos à coisa julgada.

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19.6,3 Eficácia reflexa e "efeito de intervenção"

Finalmente aparecem os terceiros juridicamente interessados em virtude de integrarem uma relação jurídica autónoma, mas ligada por um vínculo de conexidade com a relação htigiosa. A estes a coisa julgada não atinge, mas as eficácias diretas da sentença refletem-se sobre a relação jurídica conexa, modificando-a ou mesmo fazendo-a desaparecer.

O exemplo mais corriqueiro deste tipo de influência, a que se dá o nome de eficácia reflexa da sentença, é o efeito produzido pela sentença que decreta o despejo, na ação sustentada pelo locador contra seu inqui-lino, perante o subinquilino do prédio. A relação jurídica que o liga ao sublocador certamente não constituiu objeto do processo nem foi de qualquer modo decidida pela sentença, como matéria integrante do deci-sum, e, não obstante, a extinção do contrato de locação fará com que desapareça, automaticamente, a sublocação (art. 1.203 do CC).

Além da eficácia reflexa constitutiva, sofrerá o subinquilino, tam-bém, a eficácia executiva decorrente do cumprimento do mandado de despejo.

Um outro exemplo de eficácia reflexa da sentença é o que atingirá eventualmente o legatário quando a sentença proferida no processo sus-tentado pelo herdeiro legítimo contra o herdeiro testamentário declare nulo o testamento. Também neste caso, a relação jurídica de que faz parte o terceiro é dependente da relação jurídica litigiosa.

Os terceiros sujeitos aos efeitos reflexos da sentença são aqueles legitimados a intervir como assistentes simples (art. 50 do CPC), e, ao fazê-lo, sofrem o que se denomina "efeito de intervenção" (art. 55), como ficou indicado na oportunidade em que se examinou o ponto relativo à intervenção de terceiros.

Se os terceiros desta categoria não forem intimados regularmente da existência do litígio, ou não ingressarem nele espontaneamente, a sentença não lhes poderá ser oposta, podendo eles se valer contra a mes-ma da ação de embargos de terceiro (art. 1.046 do CPC) ou promover ação rescisória.

19.7 Efeitos anexos da sentença

Além das eficácias internas (diretas) que as sentenças possam pro-duzir, pode ocorrer que a lei justaponha a uma determinada classe de

sentenças outros feitos que não lhe pertençam por natureza e que, apesar de serem estranhos a seu conteúdo, decorrem da sentença como um im-perativo legal. São os chamados efeitos anexos da sentença, cujo exem-plo mais comum é a hipoteca judiciária decorrente de todas as sentenças que condenam a uma prestação consistente em dinheiro ou em coisa (art. 466 do CPC). Há outros exemplos conhecidos: segundo o art. 442 do CC, cessa a tutela com a sentença que julga procedente a ação de investigação de paternidade, assim como a comunhão de bens entre os cônjuges extin-gue-se com a sentença que decreta a separação judicial (cf. OVÍDIO A. BAPTISTA DA SILVA, Ajuris 33/53).

A característica dos chamados efeitos anexos da sentença é serem eles externos, não tendo a menor correspondência com seu respectivo conteúdo, de tal modo que, se o legislador os omitir, ou os suprimir, a sentença permanecerá íntegra em todos os seus elementos eficaciais. Não fazendo parte da demanda nem da sentença, o efeito anexo não será objeto de pedido do autor nem de decisão por parte do juiz. Ele decorre da sentença, mas não é tratado por ela como matéria que lhe seja per-tinente.

19.8 Efeitos de fato da sentença

A sentença pode ainda operar como elemento integrante do suporte fáctico (fattispecie) de outra sentença. Trata-se do que se costuma indicar como efeito de fato da sentença. Tal é o que ocorre, por exemplo, com a eficácia civil de certas sentenças penais (GIU-SEPPE DE LUCCA, / limiti soggettivi delia cosa giudicata penaley p. 192). Uma consequência semelhante ocorreria, segundo WACH {Manual.., p. 627, nota 37), no caso de estipularem as partes, num contrato de seguro, que a indenização correspondente seria devida se o segurado fosse condenado por sentença com eficácia executiva. Também neste caso, a sentença passaria a integrar o suporte fáctico da pretensão indenizatória fundada no contrato de seguro. Neste caso, ter-se-ia efeito de natureza negociai (PONTES DE MIRANDA, Tratado das açÕes, v. 1, p. 214).

Confundem-se frequentemente os efeitos próprios, diretos e internos da sentença com seus eventuais efeitos anexos ou com os efeitos da sentença como fato. É o caso de LIEBMAN, que considera a penhora do património do falido

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produzida pela sentença declaratória da falência como efeito anexo, que ele chama "efeito secundário", semelhante à hipoteca judiciária (Eficácia..., p. 76). Ora, o processo falimentar é nitidamente uma execução concursal, e não se compreenderia execução por quantia certa sem penhora, de tal modo que o corte de uma tal eficácia na sentença certamente a mutilaria de seu principal efeito. ENZO ENRIQUES (La sentenza come fatio giuridico, p. 153) sugere que a lei, ao conferir executoriedade à sentença condenatória, estaria a anexar-lhe um efeito externo, similar à hipoteca judiciária, o que sem a menor dúvida é erróneo. O efeito executivo diferido é elemento próprio da sentença condenatória, portanto efeito decorrente e peculiar de uma eficácia interna ao julgado. A eficácia executiva, de que decorre a formação do título executivo, não é um efeito justa-posto, externo e acrescentado pelo legislador, a uma sentença que já fosse efica-cialmente completa, como condenatória, antes dele. Por isso não se trata de efeito anexo.

Basta compararem-se, por exemplo, o resultado que seu corte provocaria na sentença condenatória, com a consequência, para a sentença que haja decretado a separação judicial dos cônjuges, do verdadeiro efeito anexo que corresponde de produzir uma tal sentença a extinção da comunhão dos bens do casal, de que há pouco falamos. Se a lei deliberasse modificar o inc. III do art. 267 do CC, a sentença de separação judicial nada perderia, produzindo suas eficácias naturais como se nada lhe tivesse sido retirado. Como mostra PONTES DE MIRANDA (Tratado das ações, v. 1, p. 216), o casamento pode ser válido e procedente a ação de separação e declarado judicialmente nulo o pacto de comunhão dos bens, o que demonstra que a dissolução do regime matrimonial não está na sentença de separação, como uma eficácia que lhe seja própria. No exemplo da eficácia executiva contida na sentença condenatória, sua retirada mutilaria a sentença, ao contrário do que sucederia se de um verdadeiro efeito anexo se tratasse.

19.9 Limites objetivos da coisa julgada

Finalmente, cabe-nos examinar o que se denomina em doutrina limites objetivos da coisa julgada. Quando aludimos aos vínculos even-tuais que a sentença pode estabelecer relativamente aos terceiros, fala-mos em eficácia da sentença ou eficácia reflexa da sentença; agora, quando desejamos investigar seus limites objetivos, referimo-nos não a limites da sentença, e sim a limites da coisa julgada. A razão de uma tal distinção é simples: a sentença, enquanto coisa julgada, jamais poderá atingir os terceiros, que somente poderão se expor a suas eficácias naturais; logo, seria impróprio aludir à "eficácia da coisa julgada pe-rante os terceiros", uma vez que esta proposição não teria conteúdo

real. O que alcança os terceiros não é a coisa julgada, mas a sentença, enquanto produtora de efeitos declaratórios, constitutivos - especial-mente constitutivos, quase sempre confundidos com produção de coisa julgada contra terceiros, como eficácia erga omnes -, condenatórios, mandamentais ou executivos.

Qual o sentido da proposição "limites objetivos da coisa julgada"? Estabelecido, como ficou, ser a coisa julgada a qualidade adquirida pelo efeito declaratório da sentença, que se torna indiscutível, e, portanto, imodificável aquilo que o juiz haja declarado como a "lei do caso concre-to", pesquisar a extensão de seus limites objetivos será determinar o alcance que a declaração contida numa dada sentença pode efetivamente possuir. Noutras palavras, a investigação terá por fim determinar sobre que pontos ou questões litigiosas operou-se a coisa julgada.

O primeiro princípio, elementar, que desponta quando se cuida de estabelecer os limites objetivos da coisa julgada é o de que - sendo a sentença de procedência a resposta jurisdicional à demanda posta pelo autor - apenas o decisum adquire a condição de coisa julgada, nunca os motivos e os fundamentos da sentença que, como elementos lógicos ne-cessários ao julgador, para que ele alcance o decisum, devem desaparecer ou tornar-se indiferentes ao alcance da coisa julgada, não obstante con-tinuem a ter utilidade como elementos capazes de esclarecerem o sentido do julgado. Tal era a doutrina de CHIOVENDA, seguida em geral pela processualística moderna e acolhida por nosso Código de Processo Civil. São palavras deste eminente jurista: "O que, portanto, determina os limi-tes objetivos da coisa julgada é a demanda de mérito da parte autora. Essa é a principal consequência prática de se considerar, no estudo da coisa julgada, antes a afirmação da vontade que encerra o processo do que o raciocínio lógico que a precede.

"Semelhante exclusão dos motivos da sentença da coisa julgada não há que entender-se no sentido formalístico, de que só passe em julgado o que está escrito no dispositivo da sentença; porque, ao contrário, para determinar o alcance da coisa julgada é, pelo geral, necessário remontar aos motivos para poder identificar a ação com a indagação da causa petendi" (Instituições..., v. 1, p. 410).

Temos, portanto, um novo elemento a ser definido para que se possa determinar os limites objetivos da coisa julgada - a causa petendi -, e, particularmente, em que se distinguem entre si a causa petendi e os fundamentos da sentença.

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Esta indagação é tão fundamental quanto problemática e difícil de estabelecer, nas inúmeras hipóteses concretas trazidas pela experiência forense. Sua essencialidade resulta de uma circunstância óbvia: os fun-damentos não transitam em julgado; a causa petendi, sim, como parte integrante da demanda, como refere CHIOVENDA.

Segundo dispõe o art. 469 do CPC, não fazem coisa julgada: I - os motivos, ainda que importantes para determinar o alcance da parte dis-positiva da sentença; II - a verdade dos fatos, estabelecida como funda-mento da sentença; III - a apreciação da questão prejudicial, decidida incidentemente no processo. De modo que a coisa julgada formar-se-á apenas sobre o dispositivo (decisum) através do qual a sentença julgar a lide (art. 468).

Vejamos, por meio de exemplos, o verdadeiro sentido de toda esta problemática: numa ação de despejo, fundada em violação do contrato de locação, o juiz, que dera pela procedência da demanda, afirmara na sen-tença ter ficado demonstrado que o inquilino realmente descumprira o contrato por não ter construído um tapume divisório, cuja responsabili-dade havia assumido em cláusula expressa do ajuste, e igualmente por tê-lo danificado seriamente, infringindo assim o disposto no art. 1.192,1, do CC (art. 569 do novo CC). O inquilino, em contestação, negara que tais cláusulas do contrato fossem válidas, sustentando a improcedência da ação sob o fundamento de nulidade parcial do contrato. A sentença, ao reconhecer a procedência da ação e conceder o despejo por infração contratual, terá repelido a alegação de nulidade das cláusulas impugna-das pelo inquilino, considerando, portanto, válidas e eficazes as disposi-ções nelas contidas. Neste caso, quais teriam sido os limites objetivos da coisa julgada? Quais as questões que se teriam tornado indiscutíveis entre as partes num processo subsequente? Segundo o regime legal, vi-gente no direito brasileiro, todas as declarações sobre fatos que o juiz fizer na sentença não se tornam indiscutíveis, de modo que os juizes de outros processos fiquem sujeitos a ter os fatos declarados existentes pela primeira sentença como verdadeiros. Por sua vez, a questão prejudicial controvertida na causa, consistente na alegada nulidade parcial do con-trato, embora enfrentada pelo juiz, também não faz coisa julgada, poden-do livremente ser apreciada em processo subsequente, onde sua invalida-de poderá ser reconhecida e declarada.

Coloquemos, para uma melhor compreensão da disciplina legal, a respeito de limites objetivos da coisa julgada, estabelecida pelo art.

469 do CPC, os dois exemplos seguintes: a) o inquilino, contra quem o despejo fora decretado, ingressa agora em juízo como autor de uma demanda de indenização, ou de repetição do indébito, alegando que pagara indevidamente os aluguéis, pois o contrato de locação era nulo de pleno direito; e, além disso, se o juiz não o reconhecer como invá-lido, então, em demanda alternativamente cumulada (art. 289 do CPC), que reconheça não ser ele um contrato de locação e, com base neste fundamento, lhe conceda igualmente a indenização pretendida; b) o inquilino, contra quem o despejo fora decretado, volta ajuízo alegando a mesma tese que antes formulara, de nulidade parcial do contrato, para pedir que o juiz reconheça a inexistência de infração contratual e que, em virtude disso, lhe conceda a restituição do imóvel e restabeleça o contrato de locação rompido pela primeira sentença.

Tanto os fatos tidos como existentes no primeiro processo quanto à questão prejudicial, relativa à validade do contrato, poderão ter tratamento diferente nas duas hipóteses indicadas. Na ação de indenização, poderá o juiz livremente apreciá-las e decidir em sentido contrário ao primeiro julgamento, declarando, por exemplo, nulo o contrato e, pois, sem causa legítima o pagamento de aluguéis; ao passo que, no segundo exemplo, o magistrado não poderá reapreciar a questão prejudicial ou os fatos com base nos quais a primeira sentença decretar o despejo, porque, aqui, o pedido que o inquilino formula, se atendido, anularia o resultado do primeiro processo. Na linguagem chiovendiana, o "bem da vida" concedido pela sentença ao locador agora lhe seria inteiramente retirado pelo magistrado do processo posterior. E isto ofenderia a coisa julgada. Escreveu CHIO-VENDA: "A coisa julgada é a eficácia própria da sentença que acolhe ou rejeita a demanda, e consiste em que, pela suprema exigência da ordem e da segurança da vida social, a situação das partes fixada pelo juiz com respeito ao bem da vida (res), que foi objeto de contestação, não mais se pode, daí por diante, contestar; o autor que venceu não pode mais ver-se perturbado no gozo daquele bem; o autor que perdeu não lhe pode mais reclamar ulteriormente o gozo. A eficácia ou a autoridade da coisa julgada é, portanto, por definição, destinada a agir no futuro, com relação aos processos futuros" (Instituições..., v. 1, n. 117), Ora, o "bem da vida" reclamado pelo autor da ação de despejo fora substancialmente o reconhecimento judicial de extinção de contrato e a consequente restituição do prédio à sua posse plena. Este resultado jamais poderá ser destruído por uma sentença contrária. Já

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na ação de indenização, ou em outra qualquer fundada em nulidade daquele contrato (causa petendi), que não tenha como pedido a revitalização do contrato desfeito ou a retomada do prédio locado com fundamento neste negócio jurídico, a sentença que lhe reconhecer a procedência estabelecerá, sem dúvida, um conflito em relação ao primeiro julgamento. Todavia, este conflito dar-se-á apenas no plano lógico, não no plano jurídico, porque, como diria o mesmo CHIO-VENDA (Instituições..., v. 1, p. 410), a divergência entre os dois julgamentos estaria limitada ao "raciocínio lógico" com base no qual o juiz do primeiro processo decretou o despejo e o do segundo concedeu indenização, consequências estas que poderão perfeitamente conviver do ponto de vista prático, o que não aconteceria com o exemplo da ação na qual o inquilino despejado, alegando que não infringira o contrato, porque a cláusula dada como violada era nula, pretendesse voltar ao prédio locado. Neste caso, o juiz teria não só de desfazer o que o outro fizera ao executar o despejo, mas de declarar em sentido contrário à declaração do primeiro julgamento, ou seja, declarar, agora, que o inquilino tinha então o direito a permanecer no prédio como inquilino e que ele não infringira o contrato.

Dada a extrema delicadeza destes problemas, tentemos mais uma vez es-clarecer o pensamento de CHIOVENDA a respeito de coisa julgada, pois a con-cepção do legislador de certo modo tem suas raízes teóricas na doutrina deste ilustre processualista italiano. Noutra passagem das Instituições diz ele (p. 371): "O raciocínio sobre os fatos é obra da inteligência do juiz, necessária como meio de preparar a formulação da vontade da lei. Por vezes, como verificamos (nas provas legais), o juiz não pode sequer raciocinar sobre os fatos. O juiz, porém, não é somente um lógico, é um magistrado. Atingindo o objetivo de dar formu-lação à vontade da lei, o elemento lógico perde, no processo, toda a importância. Os fatos permanecem o que eram, nem pretende o ordenamento jurídico que sejam considerados como verdadeiros aqueles que o juiz considera como base de sua decisão; antes, nem se preocupa em saber como se passaram as coisas, e se desinteressa completamente dos possíveis erros lógicos do juiz; mas limita-se a afirmar que a vontade da lei no caso concreto é aquilo que o juiz afirma ser a vontade da lei. O juiz, portanto, enquanto razoa, não representa o Estado; representa-o enquanto afirma a vontade".

O fato inexistente efetivamente não se toma existente porque o juiz o tenha posto como fundamento de sua sentença, nem o ocorrido de certo modo se transforma, quando o juiz dele se valha transformado,

contrariamente ao que em verdade ele fora. Não tem o juiz, na verdade, aquele poder que a doutrina medieval lhe atribuía, como virtude da sentença, segundo a qual a coisa julgada transformava o branco em negro e fazia do quadrado redondo (res indicata facit de alho nigrum, originem creat, aequat quadrata rotundis, naturalia sanguinis vincula et falsum verum mutai).

Nem, como afirmava POTHIER (Traité des obligations, n. 886), corresponde a coisa julgada a uma presunção iure et de iure de verdade, a ser incluída, como depois generalizou-se na doutrina francesa e nos sistemas jurídicos que lhe sofreram a influência, dentre os meios de pro-va (assim, por exemplo, EDOUARD BONNIER, Traité théorique et pratique des preuves en droit civil et en droit criminei, p- 701 e ss.; FRANCESCO RICCI, Delle prove, n. 343 e ss.).

Todavia, mesmo não sendo a sentença uma presunção de verdade, a tornar, por isso, verdadeiro aquilo que o juiz haja declarado, nem tor-nando verdadeiros os fatos em que a sentença se tenha apoiado, quais haverão de ser, na realidade, o valor e a importância deles relativamente à coisa julgada eao tratamento que outros juizes deverão dar-lhes nas demandas posteriores? Como já vimos, em determinados casos o reexa-me dos fundamentos tornar-se-ia inviável, ao passo que noutros proces-sos não. Para estabelecer esta distinção, e justificá-la adequadamente, teremos de fixarmo-nos na distinção entre fundamento e causa petendi, tarefa esta extremamente árdua e nem sempre possível. De qualquer modo, vejamos como a doutrina procura resolver o problema.

Se observarmos os exemplos anteriores, veremos que a significa-ção do problema "nulidade do contrato" tem peso diferente, segundo se esteja a tratá-lo numa ação de despejo por falta de pagamento e numa ação, por exemplo, em que se peça indenização fundada em tal nulida-de. Na ação de despejo, pode-se facilmente indicar o petitum e a causa petendi da ação, como sendo respectivamente a decretação da extinção do contrato (eficácia constitutiva), por haver o inquilino deixado de cumprir com uma de suas obrigações contratuais, e o subsequente des-pejo. O pedido nesta ação envolveria certamente o efeito executivo consubstanciado no decreto de despejo e poderia envolver também o efeito rescindente do contrato que o inquilino violara. A causa petendi, todavia, nada teria a ver com a nulidade ou a validade do contrato - para a procedência da ação de despejo, a causa petendi seria o não pagamen-to moroso do aluguel: a validade do contrato seria apenas uma relação

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jurídica prejudicial, sobre a qual o art. 469, III, do CPC impede que se forme a coisa julgada, a não ser quando sobre esta relação jurídica condicionante uma das partes pedir, através da ação declaratória inci-dental (arts. 5.° e 325 do CPC), que o juiz a declare nula ou válida (art. 470), caso em que a coisa julgada transbordaria do decisum próprio da demanda originária, para envolver o que fora simples fundamento dela e que, em virtude da cumulação sucessiva de uma nova demanda, passa a ser, para esta, sua causa petendi.

A mesma coisa aconteceria com a questão prejudicial da nulidade do contrato se a ação - em vez de ser de despejo por falta de pagamento - fosse uma demanda de cobrança de aluguéis. Aqui, tanto a rejeição da defesa fundada em nulidade do contrato quanto a improcedência da ação por ter o magistrado considerado nulo o negócio jurídico não terão a virtude de produzir coisa julgada sobre a relação prejudicial, não implicada na causa petendi da ação de cobrança ou da ação de despejo.

A doutrina oferece duas explicações para este fenómeno. Segundo alguns, sempre que a coisa julgada do primeiro processo venha a ser empregada como causa petendi ou como fundamento para uma segunda demanda, que tenha por fim invalidar o primeiro julgamento, retirando-lhe os efeitos e vantagens práti-cas obtidas pelo vencedor, a decisão discrepante tornar-se-á impossível porque, não obstante a diversidade existente entre as duas ações, a coisa julgada deve operar sobre a segunda, como pressuposto obrigatório para o juiz, impedindo que este anule ou simplesmente reduza o "bem da vida" conseguido no primeiro processo. Assim, por exemplo, se o autor vencer a ação reivindicatória, não poderá o segundo juiz negar-lhe a indenização que ele pedir em demanda poste-rior, proposta contra o mesmo demandado, sob o fundamento de não ser o autor proprietário do imóvel que a primeira sentença lhe restituiu e de não ter sido o réu um possuidor injusto de tal bem - as pretensões secundárias devem ficar igualmente protegidas pela coisa julgada (JOÃO DE CASTRO MENDES, Limi-tes..., p. 147).

Situação semelhante ocorreria se o vendedor intentasse com êxito uma ação contra o comprador, para obrigar-lhe a pagar o preço ajustado pela compra da coisa que aquele lhe vendera, vindo o juiz de um processo posterior, onde o comprador que fora condenado a pagar o preço exigisse a entrega da coisa comprada, a declarar inexistente a compra e venda, de modo a provocar o que CASTRO MENDES denomina "dirupção de um contrato oneroso" (ob. cit., p. 89). Uma solução de tal natureza causaria um intolerável desequilíbrio das prestações, ao obrigar um dos contratantes a cumprir a obrigação ao mesmo tempo em que liberaria o outro da prestação correspectiva.

Vê-se, pois, como aquilo que funcionara como fundamento para a sentença poderá tornar-se preceito obrigatório para o juiz que tiver de apreciar uma deman-da diferente, sempre que, através desta, se ponha em risco o resultado conseguido pela coisa julgada formada no processo antecedente (CASTRO MENDES, ob. cit, p. 151).

A 8 .* Câmara Civil do Tribunal de Justiça de São Paulo apreciou uma hipótese típica, onde o reexame da relação jurídica que se poderia supor condicionante da primeira sentença não fica vedado ao juiz do processo subsequente. Alguém, na condição de adquirente de um imóvel, propusera ação a fim de obter a declaração judicial de que o imóvel adquirido estava livre de hipoteca. Tendo perdido a primeira demanda, voltou ajuízo com outra ação, pedindo a anulação da compra e venda, alegando que fora induzido em erro. É claro, como observou o tribunal, que na primeira demanda sustentou o autor que a compra e venda era válida e eficaz e na segunda propõe demonstrar sua invalidade. Isto, porém, era perfeitamente admissível, porque a validade da compra e venda não era questão integrante da causa petendi da ação declaratória anterior (RJTJSP-Lex 99/52).

Há divergência a respeito do sentido a ser dado a este impedimento oposto a outro juiz de utilizar-se das questões que sustentaram o primeiro julgamento, como suas premissas lógicas, a fim de anular ou reduzir a coisa julgada. J. C. BARBOSA MOREIRA, escrevendo ainda sob a vi-gência do Código de 1939, concluiu que o juiz do segundo processo haveria de acatar a coisa julgada do primeiro, mesmo que as duas deman-das fossem diferentes, quando a mesma questão decidida surgisse, no processo subsequente, como uma "questão prejudicial" (Questõespreju-diciais e coisa julgada, n. 42-44).

Pode acontecer que uma tal influência sobre o processo posterior seja exercida por uma questão de fato que fora uma das premissas lógicas do primeiro julgamento, ou que, mesmo não sendo controvertida no pro-cesso onde se deu a coisa julgada, fosse a questão uma das tantas que os litigantes poderiam legitimamente controverter. Imaginemos que o cre-dor obtivera, contra seu devedor, uma sentença favorável, condenando-o ao pagamento da obrigação, tendo o réu limitado a sua defesa à alegação de que a ação de cobrança estava prescrita. Tendo o juiz repelido esta defesa e condenado o devedor ao pagamento, transitada em julgado a sentença, descobre o condenado o recibo por meio do qual há muito pagara o débito e cuja existência esquecera totalmente. Vindo ele a juízo para pedir repetição do que pagara em virtude da sentença, não poderá o juiz deste processo - sem ofensa à coisa julgada - obrigar o credor a

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devolver-lhe o que antes recebera fundado na sentença (G. PUGLIESE, Giudicato civile, Enciclopédia..., v. 18, p. 866; BARBOSA MOREIRA, A eficácia preclusiva da coisa julgada material no sistema do processo civil brasileiro, Temas..., p. 98).

Teria havido, neste caso, uma evidente injustiça, pois o devedor acabara obrigado a pagar duas vezes o mesmo débito. Mas a estabilida-de do resultado do primeiro processo, como uma exigência de certeza e segurança nas relações jurídicas, atendida justamente pela coisa jul-gada, impõe que o direito se desinteresse da sorte do litigante que, por negligência, podendo suscitar outras defesas, se tenha limitado a alegar apenas uma ou algumas delas. A coisa julgada deve, portanto, cobrir tanto as questões controvertidas no processo quanto as demais a respei-to das quais os litigantes hajam guardado silêncio, não obstante pudes-sem ser objeto de controvérsia, por serem questões pertencentes àquela lide. Tal a regra constante do art. 474 do CPC: "Passada em julgado a sentença de mérito, reputar-se-ão deduzidas e repelidas todas as alega-ções e defesas, que a parte poderia opor assim ao acolhimento como à rejeição do pedido".

Assim, pois, sempre que se pretenda invalidar ou reduzir o resultado do primeiro processo, protegido pela coisa julgada material, procurando obter-se de outro juiz uma declaração discrepante, mediante a utilização de alguma questão não controvertida na primeira causa, mas que lhe fosse pertinente, a própria motivação da sentença se tornará imutável, como elemento protetor da coisa julgada, apenas como elemento protetor, e não, ele próprio, como coisa julgada (J. L BOTELHO DE MESQUITA, A autoridade da coisa julgada e a imutabilidade da motivação da sentença, p. 59 e ss.).

J. C. BARBOSA MOREIRA (A eficácia preclusiva..., p. 101) julga preferí-vel, em vez de indicar-se o fenómeno como "imutabilidade da motivação" da sentença, chamá-lo, como o fez LUIZ MACHADO GUIMARÃES (Preclusão, coisa julgada e efeito preclusivo, Estudos..., p. 21), "eficácia preclusiva" da coisa julgada material.

Tanto BOTELHO DE MESQUITA quanto BARBOSA MOREIRA conside-ram que este fenómeno, por meio do qual os fundamentos da sentença - sem se transformarem em coisa julgada - se tornam indiscutíveis nos processos subse-quentes, nada tem a ver com os limites objetivos da coisa julgada, porque estes somente poderão operar quando, no processo subsequente, for posta em causa no-vamente a "mesma lide" (BOTELHO DE MESQUITA, A autoridade..., p. 62; BARBOSA MOREIRA, A eficácia preclusiva.... n. 99-106).

O pensamento de LUIZ MACHADO GUIMARÃES, que foi o jurista a quem se deve a cunhagem da expressão "eficácia preclusiva" da coisa julgada, no direito brasileiro, parece, no entanto, um pouco diverso daquele esposado pelos dois outros processualistas. Enquanto para estes a "eficácia preclusiva" não teria qualquer va-lor quando o segundo processo veiculasse uma lide diversa da primeira, LUIZ MACHADO GUIMARÃES atribui a este efeito de preclusão sobre a motivação da sentença uma eficácia "panprocessual" (Preclusão, p. 25). Por sua vez, BARBOSA MOREIRA reconhece que a "eficácia preclusiva" abrange não apenas as questões de fato, mas igualmente as questões de direito que, porventura, hajam servido como suporte lógico à primeira sentença (A eficácia preclusiva..., p. 104-105), enquanto LUIZ MACHADO GUIMARÃES inclina-se por admitir que apenas as quaestiones facti sejam abrangidas pela "eficácia preclusiva" da coisa julgada material.

A este fenómeno a doutrina tem denominado também "coisa julgada implíci-ta", ou simplesmente "julgamento implícito" (assim ALLORIO, Critica delia teoria dei giudicato implícito, RTDPC, v. 2, p. 247; HEINITZ, / limiti oggettivi..., p. 202; G. PUGLIESE, Giudicato civile, Enciclopédia..., p. 866; HENRI MOTULSKY, Eludes et notes de procédure civile, p. 220; ALFREDO BUZAID, Agravo de peti-ção, p. 113; J. FREDERICO MARQUES, Instituições..., v. 5, p. 59).

Seria realmente muito difícil estabelecer uma distinção clara entre estas posi-ções doutrinárias, praticamente adotadas por todos os processualistas modernos (as-sim também SCHÕNKE, Derechoprocesal civil, p. 269), sem lembrarmos a célebre teoria de SAVIGNY sobre a extensão da coisa julgada ao que ele denominava "mo-tivos objetivos" da sentença (Sistema..., v. 5, § 291). Certamente não poderá afirmar que a coisa julgada se forme também sobre os motivos ou fundamentos da sentença, já que isto conteria até mesmo um vício lógico, como demonstrou PONTES DE MIRANDA, pois, enquanto motivos ou fundamentos, nada poderão dispor (Comen-tários..., v. 4, p. 98). Mas ninguém demonstrou ainda que o resultado pretendido por SAVIGNY, por ele denominado "coisa julgada dos motivos" da sentença, não correspondesse rigorosamente àquilo que hoje se denomina "eficácia preclusiva" dos motivos, ou "julgamento implícito", ou "imutabilidade da motivação" da sentença, cuja exclusiva finalidade, na doutrina sustentada pelo grande romanista, era também assegurar a incolumidade da coisa julgada obtida no primeiro processo.

Se as questões, tanto de direito quanto de fato, alegáveis no proces-so ter-se-ão como alegadas e repelidas pela sentença, será necessário estabelecer quais seriam, em cada lide particular, as questões tidas como pertinentes e, pois, deduziveis pelas partes de tal modo que os juizes dos futuros processos, com base nelas, não pudessem infirmar a coisa julgada em seus resultados práticos. Esta questão, que a primeira vista poderia parecer simples, oferece extrema dificuldade, a ponto de mostrar-se, em certos casos, insolúvel.

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A principal dificuldade encontrada quando se busca determinar os limites objetivos da coisa julgada está em que a determinação deste resul-tado importa em delimitar-se, com rigor, os contornos da própria lide, de modo a distingui-la de outras. Esta conclusão, como facilmente se perce-be, ultrapassa a própria problemática da coisa julgada, para penetrar numa outra questão igualmente complexa, que é a referente à identidade das ações e, a partir daí, os problemas pertinentes à litispendência e cumulação de demandas. Em última análise, procurando-se estabelecer os limites objetivos da coisa julgada, não poderemos evitar as questões referentes ao que a doutrina moderna denomina "objeto litigioso" ou "pretensão processual".

Vejamos alguns exemplos. Numa ação de investigação de paterni-dade, fundada em concubinato, a sentença julgou improcedente o pedi-do, por não ter ficado demonstrada a existência da relação concubinária alegada pelo investigante. Tendo, todavia, ficado evidenciado que o in-vestigado mantivera, ao tempo da concepção, relações sexuais com a mãe do autor, poderia o magistrado, em tal caso, julgar procedente a ação com fundamento neste último dispositivo, mesmo não provado o alegado concubinato? Se a resposta for afirmativa, pergunta-se: as "relações se-xuais mantidas entre a mãe do investigante e o investigado" são uma "questão da lide" fundada em concubinato, de modo que o juiz, ao fundar nela a sentença de procedência, não teria julgada ultra petita^ com ofensa ao art. 128 do CPC? E, sendo isto verdadeiro, quando o autor indicasse, na petição inicial, tanto o concubinato quanto a existência de simples relações sexuais, teria cumulado duas ações ou haveria uma ação com dois fundamentos? A resposta, neste caso, parece apontar decididamente no sentido da existência de uma ação apenas, com dois fundamentos, e não existência de duas causae petendi.

Esta conclusão permite-nos constatar que a circunstância de esta-rem os fundamentos de uma mesma demanda distribuídos por dois ou mais dispositivos legais não implicará que existam necessariamente tan-tas ações quantos sejam os preceitos legais em causa.

Outra conclusão possível a ser extraída desta mesma premissa: o autor que houver sucumbido na ação de investigação de paternidade fun-dada em concubinato não poderá, em virtude de "eficácia preclusiva" da coisa julgada material, voltar ajuízo pedindo o reconhecimento da pater-nidade natural, sob o fundamento de existência de relações sexuais coin-cidentes com a concepção.

Todavia, poderia fazê-lo, alegando, por exemplo, a existência de rapto da mãe pelo suposto pai, coincidente com o período da concepção? O rapto seria alegação pertinente na ação investigatória fundada em con-cubinato?

Pior ainda: julgada improcedente a ação fundada em concubinato, ou em rapto, estaria preclusa a possibilidade de uma nova ação de inves-tigação de paternidade fundada na existência de escrito daquele a quem se atribui a paternidade, reconhecendo a filiação (art. 363, m, do CPC)?

Muito bem. Parecem, ao menos nesta última hipótese, demasiada-mente amplos os limites objetivos que deveriam ser atribuídos à ação investigatória fundada, por exemplo, em concubinato, a ponto de fazê-la compreender, quando repelida, também a rejeição da demanda fun-dada em escrito firmado pelo investigante. Todavia, reunidos na mesma petição inicial isto que seriam causae petendi de duas demandas dife-rentes - o concubinato e o escrito firmado pelo pretenso pai -, vindo o juiz a reconhecer apenas o concubinato, julgando, por exemplo, apócri-fa a assinatura do escrito, teria havido sucumbência parcial do investi-gante, de modo a possibilitar o seu recurso contra a sentença que, não obstante a recusa de um dos "fundamentos" (ou causa petendi), lhe dera integral ganho de causa? Teria havido sucumbência, mesmo rejei-tada o que se supunha ser uma ação distinta, fundada em escrito do pai, quando o resultado fosse o reconhecimento da paternidade?

Qual, pois, a causa petendi na ação investigatória de paternidade e o que seriam os simples fundamentos de cada uma delas, se admitísse-mos, no art. 363, mais de uma ação? Rejeitada a mesma ação porque o juiz declarara falsa a assinatura do pai, no escrito em que se baseara a petição inicial, poderia o autor voltar a juízo com outra ação de investi-gação de paternidade, fundada também na existência de escrito firmado pelo pai, não mais o anteriormente declarado falso, e sim o escrito reco-nhecendo a paternidade constante do testamento deixado por ele?

Se o locador ingressa com uma ação de despejo alegando "uso in-devido" do imóvel locado, por ter o inquilino, ao contrário do que previa o contrato, instalado no local um estabelecimento comercial, quando somente era facultada a utilização do prédio locado para residência, ou, tendo sido locado para determinado tipo de comércio, nele instalara o inquilino um dancing, que o contrato não permitia - quais, nestes casos, as questões alcançadas pela "eficácia preclusiva" da coisa julgada, a que alude o art. 474 do CPC?

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Se a ação se fundar em uso indevido consistente na utilização do prédio para comércio, o uso indevido consistente em danificação do imóvel ficaria precluso para outra ação de despejo?

Teríamos, então, segundo a denominada "teoria da substanciação", os fatos, ou o conjunto de fatos, como integrantes da causa petendi, de modo que sua substituição por outro conjunto de fatos transformaria a ação primitiva em outra.

A causa petendi, nessa ação de despejo, seria então o "uso indevido do prédio por ter o inquilino o danificado". Seria a causa petendi ou teríamos ainda de adicionar-lhe mais fatos, de modo a precisar seus ver-dadeiros limites? Imaginemos que o autor, em sua petição inicial, tivesse afirmado que o uso indevido que causara a alegada danificação do imóvel fora decorrente do abandono negligente pelo inquilino, que o deixara entregue, por longo período, ao uso indiscriminado de estranhos. Se ele viesse a perder a ação porque o juiz não considerara provados estes fatos, poderia o locador propor nova ação de despejo, fundado no uso indevido do imóvel, porque o locatário o utilizava para abrigo de seus animais domésticos, de que provieram os danos alegados na primeira ação?

Estes exemplos poderiam ser multiplicados ao infinito, como facil-mente se percebe, mas sempre haveria uma zona imprecisa na determi-nação do que sejam a causa petendi e os fundamentos.

Segundo a teoria da individualização, de que são partidários CHIO-VENDA, CARNELUTTI e muitos outros processualistas, os fatos não teriam, para a determinação da causa petendi, a importância decisiva que a teoria da substanciação lhes dá, sendo possível mudarem-se os fatos sem que isso acarrete necessariamente a mudança da causa peten-di e, consequentemente, sem que a demanda se transforme (a respeito disto, consultar OVÍDIO A. BAPTISTA DA SILVA, Sentença e coisa julgada, p. 159 e ss.).