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processo e direito Processo civil comparado: Ensaios Michele Taruffo Apresentação, Organização e Tradução de Daniel Mitidiero Processo civil comparado: Ensaios Michele Taruffo

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p r o c e s s o e d i r e i t o

Processo civil comparado: Ensaios

Michele Taruffo

Apresentação, Organização e Tradução

de Daniel Mitidiero

Processo civil comparado: E

nsaiosM

ichele Taruffo

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MADRI | BARCELONA | BUENOS AIRES | SãO PAULO

Marcial Pons

2013

Michele Taruffo

PrOCEssO Civil COMParaDO

ENsaiOs

apresentação, Organização e Tradução Daniel MiTiDiero

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Coleção Processo e Direito

DireçãoDaniel MitidieroJordi Nieva FenollEduardo OteizaMichele Taruffo

Processo civil comparado: ensaios Michele Taruffo

Apresentação, Organização e Tradução Daniel Mitidiero

CapaNacho Pons

Preparação e revisãoida Gouveia

Editoração eletrônicaOficina das Letras®

Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo – lei 9.610/1998.

© Michele Taruffo© Daniel Mitidiero© MarCial PONs EDiTOra DO Brasil lTDa. av. Brigadeiro Faria lima, 1461, conj. 64/5, Torre sul Jardim Paulistano CEP 01452-002 são Paulo-sP ( (11) 3192.3733 www.marcialpons.com.br

impresso no Brasil [07-2013]

Taruffo, Michele

Processo civil comparado : ensaios / Michele Taruffo ; apresentação, organização e tradução Daniel Mitidiero – são Paulo : Marcial Pons, 2013. – (Coleção processo e direito)

BibliografiaisBN 978-85-66722-00-0

1. Common law 2. Direito comparado 3. Processo civil i. Mitidiero, Daniel. ii. Título. iii. série.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil

13-02390 CDU-347.9

Índices para catálogo sistemático: 1. Direito processual civil 347.9 - 2. Processo civil comparado : Direito civil 347.9

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SUMÁRIO

apresentação – Daniel MiTiDiero .............................................................. 9

Capítulo 1

aspectos fundamentais do processo civil de civil law e de common law .. 11

Capítulo 2

verdade e processo ................................................................................... 35

Capítulo 3

Os poderes probatórios das partes e do Juiz na Europa ............................. 57

Capítulo 4

A atuação executiva dos direitos: perfis comparados ................................ 85

Capítulo 5

as funções das Cortes supremas. aspectos gerais ..................................... 117

Bibliografia ................................................................................................ 141

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APReSentAçãO

Entre os anos de 2011 e 2012, a Faculdade de Direito da Universidade Federal do rio Grande do sul recebeu em três oportunidades distintas o Professor Michele Taruffo, jurista cuja envergadura intelectual encarta-o entre os mais importantes da história da doutrina processual civil. Foi com grande alegria e entusiasmo que a comunidade acadêmica o recebeu para duas conferências no salão Nobre da nossa Faculdade e para um minicurso em nosso Pantheon acadêmico.

Em todas essas ocasiões, o Professor Michele Taruffo abordou o processo civil em uma perspectiva comparada. Nas conferências, tratou do tema da verdade no processo civil e do perfil das Cortes supremas. No mini-curso, abordou em uma perspectiva mais ampla o processo civil na dimensão do direito comparado. Tal o impacto e a importância da vinda do Professor Michele Taruffo para nossa Faculdade, que não tive dúvidas em pedir sua autorização para traduzir os ensaios que serviram de base às conferências e ao minicurso, que ora apresento reunidos sob o título Processo civil comparado – Ensaios.

Michele Taruffo é um dos processualistas mais importantes e conhe-cidos do mundo e segue hoje a vereda aberta na segunda metade do século passado por vittorio Denti e Mauro Cappelletti, desenvolvendo-a em várias perspectivas. É um jurista que se vale da filosofia e da teoria do direito para compreender os grandes problemas do processo. É um jurista que vê o processo civil a partir da história e do direito comparado com o fim de torná-lo um instrumento realmente efetivo para tutela dos direitos. seus livros tratam de problemas essenciais: Studi sulla Rilevanza della Prova (1970), La Motivazione della Sentenza Civile (1975), Il processo civile «adversary» nell’esperienza America (1979), La Giustizia Civile in Italia dal ´700 a oggi

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(1980), La prova dei fatti giuridici (1992) e La semplice verità – Il Giudice e la costruzione dei fatti (2009). suas coletâneas de ensaios atestam a latitude das suas preocupações: Il Vertice Ambiguo – Saggi sulla cassazione civile (1991) e Sui confini – Scritti sulla Giustizia Civile (2002) são livros de alta indagação que revelam um domínio temático que sem qualquer embaraço descortina horizontes muito ricos e amplos. ao lado de Geoffrey Hazard Jr., publicou ainda American civil procedure – An introduction (1993). ao lado de luigi Paolo Comoglio e Corrado Ferri, Lezioni sul Processo Civile, vols. i e ii (4. ed., 2006). ao lado de Federico Carpi, Commentario breve al Codice di Procedura Civile (7. ed., 2011). recentemente, coordenou a coletânea La prova nel processo civile (2012) e publicou no Brasil Uma simples verdade – O Juiz e a construção dos fatos (2012, tradução de vitor de Paula ramos).

a tradução dos seus textos foi motivo de enorme alegria para mim. Embora seja muito difícil «dire quasi la stessa cosa», a tarefa me permitiu reler textos de Michele Taruffo lidos há muito tempo e captá-los em novas dimensões. Meu trabalho de tradutor foi feito com maior tranquilidade porque pude contar com a revisão atenta e precisa de alguns termos e expressões por Otávio Domit (As funções das Cortes supremas e A atuação executiva dos direitos), rafael abreu (Aspectos fundamentais do processo civil de civil law e de common law) e vitor de Paula ramos (Poderes probatórios das partes e do Juiz na Europa), meus amigos e alunos do curso de Mestrado da Faculdade de Direito da Universidade Federal do rio Grande do sul, cuja colaboração ora tenho o prazer de agradecer. a propósito, agradeço igual-mente a ronaldo Kochem, acadêmico da graduação da Faculdade de Direito da Universidade Federal, que prestimosa e competentemente organizou as referências bibliográficas.

Por fim, cumpre observar que é motivo de grande felicidade que este livro seja o primeiro da coleção Processo e Direito, da prestigiosa Editora Marcial Pons, que tenho a honra de coordenar ao lado dos meus caríssimos amigos Michele Taruffo, Jordi Nieva Fenoll e Eduardo Oteiza. Este é sem dúvida um começo superlativamente alvissareiro.

Porto alegre, Primavera de 2012.

Daniel MiTiDiero

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CaPÍTUlO 1

ASPeCtOS fUnDAMentAIS DO PROCeSSO CIvIL De civil law e De common law *

SuMário. 1. introdução; 2. a crise dos modelos tradicionais; 3. a evolução dos modelos: os ordenamentos de common law; 4. Os ordenamentos de civil law; 5. Tendências de superação da distinção; 6. Em direção a novos modelos.

1. iNTrODUçãO

a análise comparada dos sistemas processuais de civil law e de common law suscita antes de mais nada alguns problemas metodológicos que convém enfrentar preliminarmente a fim de colocarem-se na perspectiva correta as considerações que serão desenvolvidas.

a primeira observação concerne em geral ao método da comparação, mas diz respeito igualmente de modo específico à comparação dos sistemas processuais. Sem entrar aqui na discussão sobre os métodos e as finalidades da comparação jurídica, que se desenvolve na itália1 e também no nível inter-nacional, pode-se sinteticamente dizer que parece já superada a ideia segundo

* Traduzido do original Il processo civile di civil law e di common law: aspetti fondamentali, publicado em Sui Confini – Scritti sulla Giustizia Civile. Bologna: il Mulino, 2002: 67-97. 1 Conforme, em especial, os ensaios recolhidos no volume L’Apporto della Comparazione alla Scienza Giuridica, Milano, 1980.

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12 processo civil comparado – ensaios

a qual confrontar ordenamentos diferentes consistiria em uma neutra (e quase «passiva») aferição de analogias e diferenças entre os sistemas normativos, com o objetivo de estabelecer afinidades e diferenças entre as normas e os institutos. ao contrário, reconhece-se hoje unanimemente que a análise comparada pode ser realizada tão-somente à base de um «projeto cultural» pressuposto e atuado por quem a efetua.2 Essa, pois, não é nunca passiva, neutra ou indiferente: é, ao invés, condicionada e orientada seja pela cultura própria do comparatista, seja pelas finalidades à vista das quais ele desenvolve o seu próprio trabalho. O projeto cultural do estudioso do direito comparado orienta não só as suas escolhas (sobre quais ordenamentos, quais institutos, quais experiências confrontar), mas também o método com o qual a compa-ração é efetuada. Assim, para exemplificar rapidamente, uma comparação baseada somente no cotejo de normas existentes em vários países em certo momento é justificável tão-somente dentro de uma cultura rigorosamente (e restritivamente) normativo-positivista e apoiada na ideia de que a cultura jurídica seja mera justaposição de informações particulares que se supõe «descritivas» dos dados normativos (no qual se dá por aceita acriticamente uma premissa assaz problemática, qual seja, que as normas possam descrevê--los). ao contrário, uma comparação orientada às reformas3 implica conside-ração do efetivo funcionamento dos sistemas e dos institutos, das escolhas de política do direito pressupostas, da orientação da praxe e dos princípios gerais que fundam a validade e a efetividade dos ordenamentos confrontados4. subs-tancialmente, permanece verdadeiro o tradicional slogan dos comparatistas pelo qual o melhor modo de conhecer o próprio ordenamento é o de conhecer outros ordenamentos – mas é preciso considerar que vários e diversos são os

2 De modelos culturais como fundamento e escopo do estudo do direito processual comparado falava já DenTi, Diritto comparato e scienza del processo, «l’apporto della Comparazione», cit., p. 212 e seguintes. sobre o assunto, vide, por último, MonaTeri, «Critica dell’ideologia e analisi antagonista: il Pensiero di Marx e le strategie della Comparazione», Rivista Critica di Diritto Privato, 2000: 710 e seguintes, o qual sublinha oportunamente o declínio da suposta neutralidade pretendida por uma parte da doutrina do direito comparado.3 sobre a relação funcional entre comparação e reformas processuais, DenTi, op. cit., p. 204 e ss.; cappelleTTi, Dimensioni della giustizia nella società contemporanea, Bologna, 1984: 25 e seguintes. a propósito pode-se observar que, se de um lado o estudo comparado pode ser utilmente orientado para preparar reformas, de outro lado é difícil pensar que boas reformas possam ser feitas sem adequado conhecimento de como outros legisladores enfrentaram e resolveram – quiçá de modo eficaz – os mesmos problemas. Essa observação seria absolu-tamente banal se não ocorresse na itália – mas coisas semelhantes acontecem provavelmente em outros lugares – que reformas importantes e necessárias sejam pensadas e atuadas na mais rigorosa e obstinada ignorância daquilo que ocorre em outros ordenamentos. O fato de reformas provincianas e autárquicas acabarem por não alcançar os seus objetivos não pode surpreender, mas esse é um discurso prevalentemente italiano e que, portanto, escapa dos limites desta exposição. 4 Cappelletti, op. cit., p. 11 e ss.

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13aspectos fundamentais do processo civil

modos pelos quais se podem conhecer os outros ordenamentos (além de – naturalmente – para conhecer o próprio).

Uma segunda ordem de observações preliminares diz respeito àquilo que se assume como «objeto» da comparação. O jurista normativista tradicional tende a entender, como já acenado, que se trata de confrontar «normas». Em geral ele está disposto a reconhecer que se deve ter notícia também daquilo que é indispensável para compreender ao menos superficialmente o signifi-cado das normas, isto é, a jurisprudência e a doutrina. No entanto, porque conhecer adequadamente a jurisprudência e a doutrina de outro ordenamento (pior ainda quando se trata de vários outros ordenamentos, quiçá culturalmente distantes do próprio) é assaz difícil, ou até mesmo impossível, é certo que o jurista normativista não irá muito além da leitura (quiçá delegada a um jovem colaborador que conhece a língua) de qualquer sintético e resumido comen-tário. se, ainda, se trata de um processualista típico,5 orientado a entender que o direito processual civil se exaure em um conjunto de normas técnicas particulares, muito específico e analítico, é certo que ele tenderá a pensar que a comparação concerne a microproblemas, passando então a comparar normas técnicas bastante específicas (norme tecniche di dettaglio), e que o êxito de semelhante trabalho não pode ser outra coisa senão o registro de «variações sobre o tema», isto é, das diferentes regras específicas que os vários orde-namentos adotam para regular os mesmos aspectos específicos do processo. Desse modo, a comparação processual permanece em um nível «micro» e torna-se não só terrivelmente aborrecedora, mas também substancialmente inútil.

As coisas podem ser configuradas de modo diverso, e a comparação pode tornar-se mais interessante e frutífera, se se tomam em consideração não só normas específicas (ou normas específicas tomadas «por si só»), mas modelos processuais. Não é o caso de aprofundar aqui a discussão metodológica a respeito da noção de «modelo»:6 penso que basta observar, de um lado, que a construção de «tipos ideais» dos diversos ordenamentos pode estabelecer um nível de análise sobre o qual o cotejo é possível e produtivo, evitando perder--se na massa infinita dos detalhes; de outro, que é possível construir modelos de diferentes amplitudes e dimensões e com diversidade de conteúdo. Pode-se pensar, por exemplo, em modelos de processo de cognição ou de processo

5 Sobre as principais características dessa figura, conforme Taruffo, «l’insegnamento accademico del Diritto Processuale Civile», Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile, 1996: 553 e ss. 6 Conforme, sobre o assunto, as observações de chiarloni, Nuovi Modelli Processuali, in Chiarloni, Formalismi e Garanzie. Studi sul Processo Civile, Torino, 1995: 3 e ss. Estranhamente, nenhuma discussão de método sobre a ideia de modelo aparece, ao invés, na obra mais recente sobre o tema, isto é, GranDe, Imitazione e Diritto: Ipotesi sulla Circolazione dei Modelli, Torino, 2000, dado que a autora se limita a usar alguns modelos sem explicar os respectivos fundamentos.

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14 processo civil comparado – ensaios

cautelar, em modelos probatórios, em modelos de organização judiciária, assim como em modelos de conteúdo mais amplo e assaz mais restrito.

a propósito, vale a pena observar que a construção dos modelos (uso propositalmente esse termo para sublinhar que o modelo não existe em reali-dade, mas vem – justamente – construído) não pode ser arbitrária, se pretende representar tendencialmente objetos efetivamente existentes, mas é de qual-quer forma obra daquele que estuda e analisa um ou mais ordenamentos e do conhecimento desses retira os «tipos ideais» que parecem idôneos para representar os traços essenciais desses ordenamentos. Naturalmente, quanto mais um modelo é aproximado à realidade que pretende retratar tanto maior será a sua capacidade heurística e a sua utilidade como instrumento de análise. Pode-se falar assim em modelos «bons» ou «maus», dotados de maior ou menor capacidade representativa segundo a sua proximidade àquilo que é tipicizado. Em qualquer caso, todavia, a construção dos modelos é obra do intérprete, o qual o constrói justamente com o escopo de tornar possível e racional a análise de diversos ordenamentos (ou de institutos pertencentes a ordenamentos diversos). É exatamente aqui que emerge a importância funda-mental do «projeto cultural« daquele que desempenha esse trabalho, porque é em função desse projeto que se confrontam alguns ordenamentos e não outros, estudam-se alguns institutos e não outros e escolhem-se os traços daqueles ordenamentos e daqueles institutos que se entendem mais importantes e, portanto, merecedores de ser inseridos no «modelo ideal» ao qual se faz refe-rência. substancialmente, pode fazer parte de um determinado projeto cultural não muito entusiasmante, mas talvez útil, a análise dos métodos de comuni-cação dos atos nos sistemas do sudeste asiático ou o estudo dos prazos proces-suais nos antigos países comunistas, enquanto se liga a um projeto cultural bem diverso, talvez não menos útil, mas culturalmente mais interessante, a análise dos instrumentos processuais de tutela do consumidor ou dos métodos para verificação dos fatos em juízo nos sistemas ocidentais evoluídos.

2. a CrisE DOs MODElOs TraDiCiONais

Prosseguindo o discurso no plano da comparação de modelos e aproxi-mando-se da relação entre ordenamentos processuais de civil law e de common law, parece oportuno limpar o campo de algumas contraposições tradicionais, que foram muito utilizadas para exprimir diferenças tidas por fundamentais entre os dois tipos de ordenamentos, mas que parecem há muito superadas e incapazes de fornecer informações confiáveis. Em realidade, não se trata de descrições completamente falsas em um sentido descritivo, mas de imagens que talvez tenham tido algum significado no passado e talvez tenham alguma eficácia ilustrativa ainda hoje, mas que foram indevidamente consideradas como essenciais para traçar a distinção entre os dois tipos de ordenamentos processuais. independentemente da respectiva veracidade representativa,

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15aspectos fundamentais do processo civil

semelhantes modelos foram construídos à base de projetos culturais precisos, vale dizer, com o escopo de colocar em particular evidência – para exaltar o seu valor ou criticar a sua presença – alguns aspectos dos vários sistemas processuais confrontados. a crítica que se pode fazer ao emprego desses modelos hoje não está tanto em que esses fornecem falsas representações da realidade (mesmo que isso ocorra de fato frequentemente, se não por outra coisa pela ignorância ou falta de atualização das informações) quanto em que esses foram talvez coerentes com escolhas valorativas ou sistemáticas diri-gidas a privilegiar problemas e soluções que ora parecem como de bem menor interesse.

Dois exemplos permitirão tornar o discurso menos abstrato e verificar a confiabilidade da abordagem crítica que aqui se propõe. O primeiro exemplo concerne à contraposição entre oralidade e escritura,7 segundo a qual o processo de common law seria um processo essencialmente oral, enquanto o processo de civil law seria um processo essencialmente escrito. sem entrar aqui no tema geral da contraposição principiológica entre oralidade e escritura, observo que a distinção entre processo oral e processo escrito nunca representou, e não representa hoje, a distinção entre processo de common law e processo de civil law.

Por um lado, de fato, é fácil observar que: a) o processo de common law inclui numerosos atos escritos (provavelmente não menos numerosos do que aqueles com que se desenvolve o processo de civil law),8 sendo que essa tendência vem se reforçando na sua evolução mais recente; b) o processo de equity, que por séculos representou um setor importantíssimo do processo inglês – e também do processo estadunidense até a fusão com o processo at law, que, no entanto, conservou inúmeros aspectos do processo in equity – era um processo escrito.9 O emprego de provas escritas, ademais, não é menos frequente em common law do que em civil law, malgrado as profundas dife-renças que dizem respeito a outros aspectos do direito probatório.

De outro, pode-se observar que em vários ordenamentos de civil law existem importantíssimos elementos de oralidade que podem ser encontrados, por exemplo, nas várias formas de discussão oral, preliminar ou final, da causa,

7 Para um panorama comparado sobre o assunto, conforme cappelleTTi, Procédure Orale et Procédure Écrite, Milano-New York, 1971. 8 O processo de common law conhece numerosos atos escritos com vários nomes (pleadings, writs, briefs, motions e outros ainda): são efetivamente escritos não só os atos introdutórios da demanda, mas também a maior parte dos atos com que se desenvolve a fase de pre-trial: sobre esses atos, conforme hazarD e Taruffo, La Giustizia Civile negli Stati Uniti, Bologna, 1993: 125 e ss.; Taruffo, Diritto Processuale Civile dei Paesi Anglosassoni, verbete do Digesto Dis. Privata, Sezione Civile, vi, Torino, 1990: 347 e ss. 9 Conforme Subrin, «How Equity Conquered Common law: The Federal rules of Civil Procedure in Historical Perspective», University of Pennsylvania Law Review¸ 135, 1987: 926 e ss.; cappelleTTi, Op. ult. cit., p. 68 e ss.

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16 processo civil comparado – ensaios

na produção de provas orais na audiência e na previsão de decisões orais prevista em vários casos. Naturalmente que não se pretende sustentar aqui que procedimentos de common law e procedimentos de civil law não apresentam qualquer diferença do ponto de vista da alternativa oralidade-escritura. Pelo contrário, na extrema variedade da disciplina de muitos aspectos do processo essas diferenças existem e em determinados casos são muito relevantes. O que se quer dizer é que resulta substancialmente inconfiável a equivalência «common law = oralidade», assim como não é confiável a equivalência «civil law = escritura», tendo em conta a ampla presença da escritura nos processos de common law e o amplo espaço que à oralidade é reservado em vários processos de civil law.

Um segundo exemplo sobre o qual vale a pena chamar a atenção é o da contraposição entre processo adversarial, que se entende ser típico dos orde-namentos de common law, e processo inquisitorial, que se entende ser típico dos sistemas de civil law.10 sobre esses temas acumulou-se com o tempo, na cultura jurídica de vários países, uma literatura muito ampla que não pode ser analisada aqui de modo exauriente.11 Permito-me, porém, uma observação não respeitosa: muitas daquelas páginas constituem pura propaganda ideológica a favor de um ou outro sistema e são completamente inconfiáveis do ponto de vista científico. Nunca como com esses temas, de fato, transpareceram – ainda que nem sempre de modo consciente – os projetos culturais (ou, menos nobre-mente, os prejuízos ideológicos) dos juristas de várias culturas que deles se ocuparam. Uma observação mais fria, e menos condicionada ideologicamente, desses temas poderia, de fato, levar a resultados muito diferentes, partindo da constatação – formulada por um dos maiores comparatistas que hoje trabalha na área do direito processual – que a contraposição adversarial-inquisitorial, se algum dia teve realmente um sentido (do que é lícito duvidar), hoje está seguramente superada e é substancialmente inútil como instrumento de análise.12

De um lado, de fato, pode-se observar que os processos de common law foram frequentemente inquisitorial, ou de qualquer modo non adversary; ainda que sem se referir ao caso clássico da Star Chamber inglesa, basta recordar por uma vez mais o processo in equity.13 Hoje, por outro lado, são numerosos os

10 Conforme, por exemplo, referindo-se prevalentemente ao processo penal, GranDe, Op. cit., p. 47 e ss. 11 Para análise comparada da contraposição ora analisada, conforme, por todos, DaMaška, I Volti della Giustizia e del Potere – Analisi Comparatistica del Processo, trad. it., Bologna, 1991: 30 e ss., e Evidence Law Adrift, New Haven-london, 1997: 74 e ss. sobre o assunto vide, ainda, Taruffo, Il Processo Civile «Adversary» nell’Esperienza Americana, Padova, 1979; Idem, Diritto Processuale Civile, cit., p. 339 e ss. 12 Conforme DaMaška, I Volti della Giustizia, cit., p. 34. 13 vide referências supra, na nota n. 9, as quais se agrega Taruffo, Diritto Processuale Civile, cit., p. 327; cavanna, Storia del Diritto Moderno in Europa. I. Le Fonti e il Pensiero Giuridico,

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17aspectos fundamentais do processo civil

tipos de procedimento que não se desenvolvem mesmo segundo o tradicional modelo adversarial e são, pelo contrário, caracterizados pela presença ativa do juiz. ainda, como se verá também mais além, o processo angloestaduni-dense ordinário é hoje caracterizado pela presença de acentuados poderes do juiz, principalmente sobre o plano da gestão do procedimento.

Por outro lado, pode-se observar que (à parte o caso específico da Santa inquisição e sem se ocupar aqui do processo penal) os processos civis de civil law foram ou são tudo menos que inquisitorial no senso estrito do termo. Basta considerar que atualmente, também por força da atuação das garantias constitucionais e dos princípios fundamentais, o contraditório entre as partes é geralmente assegurado em medida mais do que satisfatória. se «inquisi-tório» significa, segundo a acepção historicamente fundada, que as partes não podem defender-se, então não existem na civil law processos que podem ser propriamente qualificados como inquisitorial. se, ao invés, com esse termo se pretende aludir a modelos de processo em que o juiz desenvolve um papel ativo na direção e na gestão do procedimento e tem poderes autônomos de iniciativa probatória, então a contraposição em análise muda de sentido, mas permanece em larga medida igualmente infundada. Basta pensar na amplíssima, longa e importante experiência do processo liberal clássico,14 fundado na atuação intensa e generalizada do princípio dispositivo, para dar-se conta que nada foi mais estranho à história do processo civil de civil law do que um modelo real-mente inquisitório de processo civil. Quanto aos poderes instrutórios do juiz, é sabido que ainda hoje os vários sistemas de civil law adotam orientações muito diferentes, também em função da diversidade dos procedimentos referentes a matérias específicas (como no processo do trabalho na Itália), de modo que a afirmação segundo a qual o modelo de civil law seria caracterizado por fortes poderes instrutórios oficiosos resulta inconfiável – e por si só esconde em si uma generalização indevida de problemas muito complexos, que encontram soluções muito diferentes nos vários ordenamentos.

3. a EvOlUçãO DOs MODElOs: Os OrDENaMENTOs DE COMMON LAw

O fato é que, a respeito das situações sobre as quais foram elaborados os esquemas fundados sobre a contraposição oralidade-escritura e adversarial--inquisitorial¸ muitas mudanças ocorreram em diversos ordenamentos. isso não implica qualquer convalidação histórica ex post dessas contraposições, na medida em que não demonstra que fossem verdadeiras e ideologicamente

Milano, reimpressão, 1982, p. 532 e ss.14 Para observações mais amplas a respeito do assunto, com referência ao Codice di Procedura Civile italiano de 1865, conforme Taruffo, La Giustizia Civile in Italia dal ´700 a Oggi, Bologna, 1980: 142 e ss.

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18 processo civil comparado – ensaios

neutras quando elaboradas, mas implica, contudo, que essas categorias estejam atualmente envelhecidas e não sirvam para assinalar os aspectos mais relevantes dos sistemas processuais atuais. isso determinou igualmente uma transformação dos paradigmas que parecem mais úteis para interpretar esses sistemas: o projeto cultural consistente em tentar estabelecer – a fim de prever suas oportunidades e vantagens – quais os sistemas marcados pela oralidade, essencialmente com o fim de depreciar aqueles que parecessem ainda ligados ao método da escritura,15 parece ter encontrado o seu tempo. inovações ligadas à escritura (como no caso das attestations francesas16 ou da eliminação da udienza di discussione na itália17) foram introduzidas sem excessivo escân-dalo: evidentemente a sensibilidade para esse tipo de problema foi muito atenuada. Também o projeto cultural baseado na exaltação do modelo adver-sarial e na denúncia dos aspectos inquisitórios do processo civil parece ter encontrado seu tempo tanto na doutrina estadunidense como na dos países de civil law. Talvez essas tenham se dado conta do fato de que já passou o tempo de rígidas contraposições dogmáticas e de contrastes de princípios, e que já passou o tempo de insistir sobre aquelas contraposições e contrastes, porque outros problemas bem diferentes apareceram no campo da justiça civil, e muitos legisladores assumiram orientações reformadoras mais pragmáticas e menos ideologicamente orientadas. Em qualquer caso, se não se pretende a qualquer custo deixar a realidade de fora da ciência jurídica, importa levar em consideração as várias e importantes transformações que ocorreram – e que ainda estão ocorrendo – em muitos ordenamentos processuais de common law e de civil law. E é levando em consideração os resultados dessas transfor-mações, de fato, que será possível construir novos modelos úteis para análise comparada dos sistemas processuais.

variações importantes apareceram nos últimos anos nos principais sistemas processuais de common law e são tamanhas que chegam a sinalizar significativas transformações desses ordenamentos (e a crise, sobre a qual já se acenou, dos respectivos modelos tradicionais). Naturalmente não é possível dar conta neste momento de todas essas transformações, que demandariam extensas análises ad hoc. Algumas breves referências, porém, podem ser sufi-

15 Esse projeto constituía o pressuposto, por exemplo, da obra fundamental de cappelleTTi, La Testimonianza della Parte nel Sistema dell’Oralità, Milano, 1962, mas pode ser encontrado igualmente à base das referências de direito comparado que Chiovenda fazia para sustentar sua obra de propaganda a favor do princípio da oralidade (vide, de fato, Lo Stato Attuale del Processo Civile in Italia e il Progetto Orlando di Riforme Processuali, ora em Saggi di Diritto Processuale Civile (1894-1937), i, Milano, 1993: 395 e ss.). 16 Conforme os arts. 200 e seguintes do Code de Procédure Civile. 17 Conforme os atuais arts. 275 e 281 quinquies Code di Procedura Civile (enquanto parece destinado a permanecer não aplicado o art. 281 sexies, que prevê a possibilidade de trattazione oral com consequente prolação oral da sentença motivada em audiência). Não por acaso, ao justificar a eliminação substancial da udienza di discussione, proTo piSani, La Nuova Disciplina del Processo Civile, Napoli, 1991, define-a como uma «farsa inútil».

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19aspectos fundamentais do processo civil

cientes para mostrar como o modelo de common law perdeu ou está perdendo algumas de suas conotações tradicionais e está adquirindo novas. Faço aqui referência a três aspectos muito importantes: a) o papel do juiz; b) a natureza e a função da fase de pre-trial; c) o papel do júri.

a) No modelo adversarial tradicional de processo a figura do juiz é a de um «árbitro passivo», de um umpire desinformado e desinteressado, além do que neutro, que tem a única e exclusiva função de assistir ao livre embate das partes garantindo a correção e sancionando os comportamentos unfair ou ilícitos.18 Essa imagem mítica foi superada de modo quase completo e foi substituída por uma imagem muito diversa de juiz. Na inglaterra essa trans-formação foi promovida pelas Civil Procedure Rules de 1998, que entraram em vigor em 26 de abril de 1999. Trata-se de um verdadeiro e próprio código de processo civil19 (outra inovação relevantíssima a respeito da imagem tradicional do direito processual civil inglês como direito não escrito, que, aliás, já há tempo tinha se tornado inconfiável), no qual ao juiz são conferidos numerosos e incisivos poderes de governo e direção do procedimento, como o que atine à determinação do track que a causa deverá seguir (isto é, o tipo de procedimento aplicável conforme a natureza da causa), à fixação das audiên-cias e à produção das provas.20

Nos Estados Unidos uma transformação análoga ocorreu, a partir dos anos setenta, com o aparecimento da figura do managerial judge, que toma o lugar da imagem tradicional do juiz como passive umpire. Trata-se de uma transformação longa e complexa, que não tem um ponto de referência temporal preciso como as Rules inglesas, que é a consequência de vários fatores como a contínua reforma das Federal Rules of Civil Procedure, as reformas descentralizadas e pontuais abertas pelo Civil Justice Reform Act de 1990 e as respostas que a praxe judiciária deu aos crescentes problemas de gestão e controle da justiça civil, com especial referência à fase preliminar do processo (sobre o qual infra, sub «b»). Em todo caso, quando Judith resnick, em um ensaio justamente famoso de 1982,21 fotografa o managerial judge e analisa a sua origem e as suas características principais, essa transformação

18 Conforme, também para referências, DaMaška, I Volti della Giustizia, cit., p. 231 e ss;. Idem, Evidence Law Adrift, cit., p. 76 e ss.; Taruffo, Diritto Processuale Civile, cit., p. 341; Idem, Il Processo Civile «Adversary», cit., p. 117 e ss. 19 Conforme CPr, rule 1.1, em que as próprias Rules são expressamente definidas como «a new procedural code». 20 Na literatura italiana sobre o assunto, conforme, também para amplas referências biblio-gráficas, paSSananTe, «la riforma del Processo Civile inglese: Principi Generali e Fase introduttiva», Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile, 2000: 1.363 e ss., 1.378 e ss. 21 Conforme reSnick, «Managerial Judge», Harvard Law Review, 96, 1982: 376 e ss. sobre a mudança da função do juiz provocada pela difusão do public law litigation, recorde-se também o clássico ensaio de chayeS, «The role of the Judge in Public law litigation», Harvard Law Review, 89, 1976: 1.284 e ss.

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já tinha sido substancialmente realizada: toca ao juiz não mais um papel de árbitro passivo que se limita a «apitar as faltas» cometidas pelas partes, mas sim um papel de organização e gestão ativa, e não só de controle, do desen-volvimento do processo.22

se logo em seguida se passa a analisar em especial os poderes de inicia-tiva instrutória do juiz, percebe-se que, sem ofensas à imagem do juiz anglo-estadunidense completamente privado de semelhantes poderes, em ambos os ordenamentos o juiz pode desempenhar também um poder marcadamente ativo no plano das iniciativas probatórias. De fato, relevantes poderes do juiz em matéria de prova estão previstos nas novas Rules inglesas23 e significa-tivos poderes instrutórios já estavam previstos nas Federal Rules of Evidence estadunidenses promulgadas em 1975 e emendadas em 1994, particularmente com referência à prova testemunhal e à expert evidence.24

b) a imagem historicamente remontada e difundida do processo anglo-estadunidense é a de um procedimento centrado sobre uma audiência de tipo dialogal na qual se produzem as provas testemunhais, os advogados debatem oralmente a causa e imediatamente é prolatada a sentença.25 Todavia, por várias razões ligadas à funcionalidade do trial, desde o início do século XX configuraram-se, tanto na Inglaterra como nos Estados Unidos, fases prelimi-nares (pre-trial) com a função de permitir às partes prepararem-se adequa-damente para o debate, essencialmente em relação à discovery das provas em posse do adversário ou de um terceiro.26 Daí a imagem consolidada do processo de common law como um procedimento dividido em duas fases: uma fase de pre-trial com função essencialmente preparatória e uma fase de trial para produção das provas orais em audiência através da técnica da direct e da cross examination. Esse modelo segue ainda como representação aproxi-mada do processo angloestadunidense, mas é necessário observar que hoje ela apresenta o risco de produzir mal-entendidos e erros se compreendida como uma fiel descrição daquilo que normalmente acontece nas cortes inglesas ou estadunidenses. Para além do modelo teórico bifásico, de fato, a realidade

22 Na literatura recente, a propósito do assunto, conforme, por exemplo, SchwarTzer, «Case Management in the Federal Courts», Civil Justice Quaterly, 1996: 141 e ss., e em especial, Just, Speedy and Inexpensive? An Evaluation of Judicial Case Management under the Civil Justice Reform Act, santa Monica, California, 1996. 23 Conforme CPR, rule 32.1. (1)(a)(b)(c) e 32.1.2.24 Conforme a Rule 614(a), que prevê o poder de o juiz determinar de ofício provas testemunhais não requeridas pelas partes, a Rule 614(b), segundo a qual o juiz pode interrogar as testemunhas requeridas pelas partes, e a Rule 706, relativa ao poder do juiz de nomear consulentes técnicos de ofício. 25 Conforme Taruffo, Diritto processuale civile, cit., p. 347 e ss., 367 e ss.; hazarD e Taruffo, op. cit., p. 151 e ss.; Jacob, La Giustizia Civile in Inghilterra, trad. it., Bologna, 1995: 147 e ss.26 Conforme Taruffo, op. cit., p. 348, 353 e ss., 360 e ss.

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evoluiu de maneira sensivelmente diferente. Não se trata de fenômenos novos, todavia, vale a pena recordar.

Na inglaterra há décadas apenas um percentual baixíssimo de controvér-sias civis (da ordem de 2 a 3 por cento das causas iniciadas) sobrevive à fase preliminar e chega ao trial para posteriormente terminar com uma sentença. Esse fenômeno ocorre por várias razões que não podem ser aqui analisadas: assinale-se, todavia, o fato de o legislador inglês ter de vários modos enco-rajado essa tendência, pressionando decididamente no sentido de favorecer a resolução precoce da lide na fase de pre-trial. Diversas técnicas, que incluem tentativas de conciliação, decisões in default, juízos sumários e payments into court, são operadas para realização desse escopo.27 Nos Estados Unidos a situação normativa e as técnicas utilizadas são em parte diferentes, mas não é substancialmente diverso o resultado: um percentual elevadíssimo de causas civis não supera, de fato, a fase de pre-trial e não chega ao debate, na maior parte dos casos porque as partes concordam com um settlement ou porque o juiz determinou uma tentativa de conciliação presidida por um terceiro ou uma arbitragem (esperimento arbitrale), ou porque teve êxito qualquer outro mecanismo de solução precoce da controvérsia.28

Esses fenômenos são importantíssimos sob muitas perspectivas que aqui não podem ser analisadas de modo adequado, mas produzem ao menos duas consequências «de sistema» que devem ser colocadas em evidência. a primeira consequência é que nos processos assim estruturados, nos quais a sorte da enorme maioria das causas é definida na fase preliminar, a contrapo-sição adversarial-inquisitorial torna-se completamente sem sentido. O que ocorre, de fato, é que no âmbito do pre-trial tem lugar uma dialética ferrenha entre os defensores, e entre os defensores e o juiz, que não é suscetível de adequada análise no âmbito dessa contraposição. a segunda consequência é que o modelo do processo de common law não pode mais ser definido segundo o esquema bifásico de pre-trial e trial, salvo com o custo de provocar graves mal entendidos, pela simples razão que em uma frequência da ordem de 90 a 98 por cento dos casos o trial não tem lugar. Torna-se até mesmo impróprio incluir no modelo a prolação da sentença em seguida à produção das provas, dado que raramente – isto é, somente quando o trial é realizado – o processo é concluído com a sentença. Em essência e em síntese: paradoxalmente, a fase de pre-trial, nascida com função preparatória, isto é, para permitir às partes chegarem ao trial com condições de jogar suas melhores cartas, serve efeti-vamente para preparar o debate somente quando funciona mal – vale dizer, somente nos raros casos em que falham todos os mecanismos pré-dispostos para fazer com que o processo se encerre o mais rápido possível. O pre-

27 Conforme, em especial, Jacob, op. cit., p. 77 e ss. 28 Conforme hazarD e Taruffo, op. cit., p. 130 e ss.

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-trial, portanto, configura-se essencialmente como uma fase de «resolução da controvérsia sem decisão» e somente excepcionalmente desenvolve realmente uma função preparatória.29

se se tem em conta tudo isso, é fácil concluir que o modelo típico do processo de common law ora se consubstancia essencialmente em uma fase na qual ambas as partes, sob a ativa direção do juiz, clarificam os termos da controvérsia, adquirem mediante a discovery informações sobre as respectivas defesas e sobre as provas que poderiam ser empregadas, valoram a oportuni-dade de um acordo ou de uma desistência da ação e transigem ou se servem de um dos outros meios para rápida resolução da controvérsia. É de observar-se que essa fase do procedimento é essencialmente escrita e é dirigida por um juiz que dispõe de amplos poderes e – diferentemente da imagem tradicional do trial – não é nem mesmo concentrada, haja vista que se desenvolve em passa-gens que também podem ser numerosas e complicadas e podem consumir – ao menos nos casos mais complexos – lapsos temporais assaz longos. Como já se disse, somente nos raros casos em que esse procedimento, que acabou se tornando o verdadeiro processo, não põe fim à controvérsia é que terá lugar o debate para produção das provas e será pronunciada uma sentença.

c) Um terceiro fator que tradicionalmente é considerado como carac-terístico do processo de common law é a presença do júri nas controvérsias civis. Todavia, também a esse propósito verificaram-se mudanças de grande importância.

Na inglaterra o júri civil desapareceu há décadas, de modo que seria errado imaginar o processo civil inglês como centrado em um debate diante do júri. Também nos pouquíssimos casos em que o processo chega ao debate, esse se desenvolve diante de um juiz togado (monocrático), sem qualquer júri.30 Nos Estados Unidos verificou-se um fenômeno substancialmente análogo,31 ainda que em termos menos absolutos: efetivamente, o júri civil ainda está presente em um percentual de casos não desconsiderável, ainda que nitidamente minoritário.32 as principais razões dessa sobrevivência são substancialmente duas: o fato de o trial by jury ser previsto como garantia pela vii Emenda à Constituição estadunidense é uma delas,33 mas sobreleva

29 Conforme, em especial, GroSS e kenT, «Don’t Try: Civil Jury verdicts in a system Geared to settlement», UCLA Law Review, 44, 1996: 1 e ss. 30 Conforme Jacob, op. cit., p. 154 e ss. 31 sobre o declínio do trial by jury na inglaterra e nos Estados Unidos, conforme, em especial, Damaška, Evidence Law Adrift, cit., p. 126 e ss. 32 No percentual muito reduzido de casos que seguem para o trial para serem resolvidos por sentença, o júri está presente com um frequência próxima a 80 por cento nas causas concer-nentes à reparação de danos, conforme kirkpaTrick, «Evidence law in the Next Millennium», Hastings Law Journal, 49, 1998: 365 e ss. 33 a concepção do júri como garantia explica a extensão do jury trial, ocorrida em 1991, aos casos de discriminação em matéria de trabalho (42 U.s.C. par. 1981 a(c)(1981)).

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sobretudo o fato de os júris populares serem famosos pela generosidade com que estimam ressarcimentos e punitive damages que volta e meia chegam a somas elevadíssimas, de modo que o autor de uma ação que visa à respon-sabilização por danos pode ser induzido a enfrentar os custos elevados, e igualmente os riscos, do jury trial, na esperança de receber muito dinheiro na loteria judiciária. se, no entanto, não se supervalorizam fenômenos desse gênero, que pertencem quase que mais ao folclore judiciário (ainda que volta e meia milionário) do que à prática prevalente, pode-se concluir que também no sistema estadunidense seria impróprio considerar o júri como elemento fundamental do modelo de processo civil.

4. Os OrDENaMENTOs DE CIVIL LAw

se agora se olha o mundo dos ordenamentos de civil law, o problema dos modelos processuais apresenta-se ainda mais complexo, a um ponto tal que parece realmente impossível discutir sensatamente a respeito da existência de um modelo de civil law. reduzindo a poucas linhas um discurso que reclamaria uma aprofundada análise comparada, podem-se sublinhar dois aspectos parti-cularmente importantes: a) em realidade nunca existiu um modelo homogêneo e unitário de processo civil de civil law; b) nas últimas décadas ocorreram tantas e tamanhas transformações em vários ordenamentos processuais da área civilista que provavelmente se perdeu qualquer possibilidade de fazer-se referência de modo sintético e unitário aos modelos tradicionais.

a) Historicamente, se se pensa nos séculos do direito comum, na Europa continental nunca existiu um modelo homogêneo de processo civil. a disci-plina do processo era, ao contrário, extremamente fragmentada em função da diversidade das jurisdições e da pluralidade de fontes reguladoras do processo, de modo que não existia muito em comum entre, por exemplo, os processos disciplinados pelo Code Louis,34 pelos estatutos italianos,35 pela praxe judiciária da Rota romana e dos outros Grandi Tribunali36 ou do Kammergerichtsordnungen germânico.37 a costumeira referência ao processo

34 Conforme Code Louis. T. I. Ordonnance Civile (1667), ristampa. Milano, 1996, sobre o qual conforme picarDi, «il Giudice e la legge nel “Code louis”», Rivista di Diritto Processuale, 1995: 33 e ss. 35 Conforme Sella, Il Procedimento Civile nella Legislazione Statutaria Italiana, Milano, 1927, e acenos em Taruffo, La Giustizia Civile, cit., p. 8 e ss. 36 Conforme Gorla, «i Tribunali supremi degli stati italiani, fra i secoli Xvi e XiX, quali Fattori della Unificazione del Diritto nello Stato e della sua Uniformazione fra Stati (Disegno storico-Comparativo)», La Formazione Storica del Diritto Moderno in Europa, i, Firenze, 1977: 447 e ss.; Idem, «i “Grandi Tribunali” italiani fra i secoli Xvi e XiX: un Capitolo incompiuto nella storia Politico-Giudiziaria d´italia», Quaderni del Foro Italiano, 1969: 629 e ss. 37 a referência é aos atos fundamentais de instituição (1495) e de reforma (1555) do Reichskammergericht. sobre o processo seguido diante desse órgão é fundamental a pesquisa

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Michele Taruffo é Catedrático de Direito Pro-cessual Civil na Universidade de Pavía, Itália. Foi professor visitante nas universidades estaduni-denses de Cornell, Pennsylvania e Califórnia, além de responsável, ao lado de Geoffrey Hazard, pelo projeto do American Law Institute e UNIDROIT Principles and Rules for Transnational Civil Proce-dure. Entre suas obras mais destacadas, figuram Studi sulla rilevanza della prova (1970); La mo-tivazione della sentenza civile (1975); Il proces-so civile «adversary» nell’esperienza americana (1979); La giustizia civile in Italia dal ‘700 ad oggi (1980); Il vertice ambiguo. Saggi sulla Cassazione civile (1991); La prova dei fatti giuridici. Nozioni generali (1992); Sui confini. Scritti sulla giustizia civile (2002); Cinco lecciones mexicanas (2002); American Civil Procedure. An Introduction (com G. C. Hazard, 1993) e Lezioni sul processo civile (com L. P. Comoglio e C. Ferri, 4.ª ed., 2006).

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