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No ano passado, testamos a prática de leitura de férias e gostamos muito do resultado alcançado. Crônicas são uma maneira eficaz de aproximar o leitor da literatura e este se diverte enquanto lê, por isso estamos repetindo a experiência, agora inserida no projeto “O XIX tá Russo”. Neste ano, você, aluno do 9º, 1º e 2º ano, terá a oportunidade de aprender mais ao ler os seguintes textos: * Futebol na Raça * A Realeza de Pelé (Nélson Rodrigues) * Sem exagero (Luís Fernando Veríssimo) * Flamengo Sessentão (Nélson Rodrigues) * As expressões da bola (Ruy Carlos Ostermann) * O Juiz Ladrão (Nélson Rodrigues) * O Torcedor (Mário Filho) * Complexo de Vira-Latas (Nélson Rodrigues) * Manual de Instrução (Tostão) * Iniciada a peleja (Fernando Sabino) * Dez Motivos (José Roberto Torero) * Juiz (João Antônio Ferreira Filho) Boa leitura! Na primeira semana de agosto, teremos atividades avaliativas envolvendo estas crônicas. Retorne preparado! Leitura de Férias 2018 Crônicas sobre Futebol - 9º, 1º e 2º ano

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Page 1: Leitura de Férias 2018 Crônicas sobre Futebol - 9º, 1º e ... · Neste ano, você, aluno do 9º, 1º e 2º ano, terá a oportunidade de aprender mais ao ler os seguintes textos:

No ano passado, testamos a prática de leitura de férias e gostamos muito

do resultado alcançado. Crônicas são uma maneira eficaz de aproximar o leitor

da literatura e este se diverte enquanto lê, por isso estamos repetindo a

experiência, agora inserida no projeto “O XIX tá Russo”.

Neste ano, você, aluno do 9º, 1º e 2º ano, terá a oportunidade de aprender

mais ao ler os seguintes textos:

* Futebol na Raça

* A Realeza de Pelé (Nélson Rodrigues)

* Sem exagero (Luís Fernando Veríssimo)

* Flamengo Sessentão (Nélson Rodrigues)

* As expressões da bola (Ruy Carlos Ostermann)

* O Juiz Ladrão (Nélson Rodrigues)

* O Torcedor (Mário Filho)

* Complexo de Vira-Latas (Nélson Rodrigues)

* Manual de Instrução (Tostão)

* Iniciada a peleja (Fernando Sabino)

* Dez Motivos (José Roberto Torero)

* Juiz (João Antônio Ferreira Filho)

Boa leitura! Na primeira semana de agosto, teremos atividades avaliativas

envolvendo estas crônicas. Retorne preparado!

Leitura de Férias 2018

Crônicas sobre Futebol - 9º, 1º e 2º ano

Crônica

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Futebol na Raça (Adaptação da Revista Veja, edição 1528, 07/01/98)

Ano da copa tem fribrilação própria – a expectativa nervosa de todo um

país pendurado em chuteiras. Todos se preparam para entrar em campo junto

com a seleção. A Copa pode até não ser nossa, mas o futebol já é, sempre foi.

Criado na Inglaterra em 1863, ele desembarcou no Brasil 31 anos depois,

na forma de uma bola trazida debaixo do braço pelo estudante paulista Charles

Miller. Chegou elitista, racista e excludente. Quando se organizaram os primeiros

campeonatos, lá pelo começo do século, era esporte de branco, rico, praticado

em clubes fechados ou colégios seletos. Negros e pobres estavam simplesmente

proibidos de chegar perto dos gramados, mas, mesmo a distância, perceberam

o jogo e dele se agradaram.

Já em 1910, surgiu em São Paulo o Corinthians, o primeiro clube fora do

circuito restrito clube-fechado, colégio-seleto. Abriu caminho para o Vasco, que,

escandalizando, se apresentou para disputar o campeonato carioca de 1923 com

um time de mulatos, negros e pobres. Ganhou o campeonato e repetiu a dose

no ano seguinte com a mesma receita. Os brancos, ricos e grã-finos ainda

tentaram resistir e inventaram uma regra especial: quando um branco cometia

falta violenta num jogador negro, o juiz marcava falta e o jogo continuava.

Quando o negro cometia falta violenta num branco, o juiz apitava a falta e, antes

de ser cobrada, o branco tinha o direito de revidar a violência. Às vezes até a

torcida e a polícia entravam em campo para surrar o infrator escuro. Deu no que

deu. Para escapar das surras dos brancos, os negros preferiram evitar as

divididas. Inventou-se, assim, o drible, trazendo-se para o campo a ginga que o

negro da senzala já empregava na dança, na capoeira, em seus rituais religiosos.

Começava a surgiu um estilo brasileiro de jogar futebol, rebelde e

anárquico, inventivo e travesso, diferente dos ingleses, que inventaram um jogo

sempre em linha reta e para a frente, de preferência com bolas altas e longas.

Do ponto de vista da exigência de habilidades física e de biótipo, o futebol

é um esporte único. O basquete, o vôlei e até a natação pedem gente de bom

tamanho. Nas corridas, os velocistas são fortes e altos, enquanto os

maratonistas são miúdos e leves. As ginastas são feitas sempre em miniatura.

O futebol não aceita enquadramentos dessa natureza.

A mescla de raças dotou o brasileiro de múltiplas qualidades que fazem

dele a matéria-prima ideal para jogar futebol. Os hábitos e costumes

completaram o trabalho. A mania de chutar bola com pé descalço, fruto da

informalidade e da pobreza brasileiras, por exemplo, desenvolveu uma

intimidade entre o pé e a bola que chuteira nenhuma do mundo é capaz de

substituir. A iniciação precoce, o ambiente impregnado de futebol são outros

fatores que condicionam o brasileiro. Ganhando bola desde o primeiro Natal de

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sua vida e chutando tudo que se move à sua frente, o brasileiro começa a treinar

antes mesmo de se dar conta disso.

Melhor indicativo de como o futebol se infiltrou na vida brasileira está na

linguagem diária do povo. Expressões nativas dos gramados invadiram as

conversas em todos os setores. Qualquer trama é uma “jogada”. Fazer algo

bem-feito é “marcar um gol de placa”. Deixar de resolver um problema é “chutar

para o alto” e salvar uma situação é “colocar para escanteio”. E por aí vai. Quem

está a perigo vai para a “marca do pênalti”. Dar uma mancada é “pisar na bola”.

Quem é ríspido “entra de sola” e tudo termina no “apito final”.

A cultura brasileira retribuiu e com frequência recorre ao futebol como

fonte de inspiração ou objeto de homenagem. O cinema brasileiro realizou

setenta filmes, entre documentários e obras de ficção, sobre o futebol, a maioria

de nossos melhores compositores gastou inspiração com o jogo de bola, a

literatura inicialmente hesitou em aderir, mas também ingressaram pela grande

área do futebol muitos autores. Artistas plásticos também pintaram e bordaram

sobre os gramados.

Ao se instalar no país, o futebol se espalhou e se infiltrou em todos os

setores até criar espaço e mercado próprios. Calcula-se que o futebol empregue,

direta ou indiretamente, 300.000 pessoas no Brasil.

Uma pesquisa da UERJ constatou que cada um dos 5.507 municípios

brasileiros está provido de três instalações imprescindíveis: a igreja, a cadeia e

o campo de futebol.

De que o Brasil é o país do futebol parece não haver dúvidas, assim como

não há menor dúvida de que o futebol é o esporte mais popular do mundo

Como acontece desde 1950, o Brasil já é apontado entre os prováveis

vencedores desta próxima Copa. Será o hexacampeonato?

A Realeza de Pelé (Nelson Rodrigues)

Depois do jogo América x Santos, seria um crime não fazer de Pelé o meu

personagem da semana. Grande figura, que o meu confrade Albert Laurence

chama de “o Domingos da Guia do ataque”. Examino a ficha de Pelé e tomo um

susto: — dezessete anos! Há certas idades que são aberrantes, inverossímeis.

Uma delas é a de Pelé. Eu, com mais de quarenta, custo a crer que alguém possa

ter dezessete anos, jamais. Pois bem: — verdadeiro garoto, o meu personagem

anda em campo com uma dessas autoridades irresistíveis e fatais. Dir-se-ia um

rei, não sei se Lear, se imperador Jones, se etíope. Racionalmente perfeito, do

seu peito parecem pender mantos invisíveis. Em suma: — Ponham-no em

qualquer rancho e sua majestade dinástica há de ofuscar toda a corte em

derredor.

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O que nós chamamos de realeza é, acima de todo, um estado de alma. E

Pelé leva sobre os demais jogadores uma vantagem considerável: — a de se

sentir rei, da cabeça aos pés. Quando ele apanha a bola e dribla um adversário,

é como quem enxota, quem escorraça um plebeu ignaro e piolhento. E o meu

personagem tem uma tal sensação de superioridade que não faz cerimônias. Já

lhe perguntaram: — “Quem é o maior meia do mundo?”. Ele respondeu, com a

ênfase das certeza eternas: — “Eu”. Insistiram: — “Qual é o maior ponta do

mundo?”. E Pelé: — “Eu”. Em outro qualquer, esse desplante faria rir ou sorrir.

Mas o fabuloso craque põe no que diz uma tal carga de convicção, que ninguém

reage e todos passam a admitir que ele seja, realmente, o maior de todas as

posições. Nas pontas, nas meias e no centro, há de ser o mesmo, isto é, o

incomparável Pelé.

Vejam o que ele fez, outro dia, no já referido América x Santos. Enfiou, e

quase sempre pelo esforço pessoal, quatro gols em Pompéia. Sozinho, liquidou

a partida, liquidou o América, monopolizou o placar. Ao meu lado, um americano

doente estrebuchava: — “Vá jogar bem assim no diabo que o carregue!”. De

certa feita, foi até desmoralizante. Ainda no primeiro tempo, ele recebe o couro

no meio do campo. Outro qualquer teria despachado. Pelé, não. Olha para frente

e o caminho até o gol está entupido de adversários. Mas o homem resolve fazer

tudo sozinho. Dribla o primeiro e o segundo. Vem-lhe ao encalço, ferozmente, o

terceiro, que Pelé corta sensacionalmente. Numa palavra: — sem passar a

ninguém e sem ajuda de ninguém, ele promoveu a destruição minuciosa e sádica

da defesa rubra. Até que chegou um momento em que não havia mais ninguém

para driblar. Não existia uma defesa. Ou por outra: — a defesa estava indefesa.

E, então, livre na área inimiga, Pelé achou que era demais driblar Pompéia e

encaçapou de maneira genial e inapelável.

Ora, para fazer um gol assim não basta apenas o simples e puro futebol.

É preciso algo mais, ou seja, essa plenitude de confiança, certeza, de otimismo,

que faz de Pelé o craque imbatível. Quero crer que a sua maior virtude é,

justamente, a imodéstia absoluta. Põe-se por cima de tudo e de todos. E acaba

intimidando a própria bola, que vem aos seus pés com uma lambida docilidade

de cadelinha. Hoje, até uma cambaxirra sabe que Pelé é imprescindível em

qualquer escrete. Na Suécia, ele não tremerá de ninguém. Há de olhar os

húngaros, os ingleses, os russos de alto a baixo. Não se inferiorizará diante de

ninguém. E é dessa atitude viril e mesmo insolente que precisamos. Sim,

amigos: — aposto minha cabeça como Pelé vai achar todos os nossos

adversários uns pernas-de-pau.

Sem exagero (Luis Fernando Veríssimo)

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Fizeram um encontro meu com o Abel Braga quando ele estava treinando

o Internacional, e descobrimos uma coincidência. O primeiro jogo que ele viu no

Maracanã, ainda garoto, ao lado do pai, foi o último que eu vi, já nada garoto,

perto de me casar. Santos e Milan, novembro de 1963.

Até então eu não perdia jogo do Botafogo, da seleção ou do Santos no

Maracanã. Morava no Leme e pegava o ônibus Leme-Triagem, atravessava a pé

a Quinta da Boa Vista e ia para a arquibancada. Sim, o Santos jogava suas

partidas decisivas no Maracanã. O Maracanã enchia para ver o Pelé. Mas no jogo

que o Abel, eu e uma multidão vimos o Pelé não jogou. O herói da noite foi o

Almir. O Pelé da noite foi o Almir.

Volta e meia, vem a discussão. Pelé era mesmo tudo que se diz dele? O

Maradona era melhor? O Messi é melhor?

Meu testemunho não interessa. Ele reinou quando já havia videotape. Seus

feitos estão bem documentados. Você não precisa recorrer à literatura para

contar às crianças como era o seu futebol — ao contrário das façanhas de gente

como Ademir e Zizinho, que ficaram na memória dos velhos e em filmes

desbotados, nenhuma das duas coisas muito confiável.

E o grande mérito de Pelé é que ele resiste ao videotape completo. Se

tivesse ficado só em filme, só os seus grandes momentos estariam registrados.

Já o videotape completo traz tudo: o passe errado, o tombo sentado, a chuteira

desamarrada. E Pelé resiste aos detalhes. Ele era bom até amarrando a chuteira.

Com o futebol aconteceu um pouco do que aconteceu com a guerra:

quanto mais realista a sua reprodução, mais difícil romanceá-la.

Quando só se viam cenas de guerra em quadros épicos em que até os

cadáveres colaboravam na composição, ela podia ser glorificada sem

contestações, salvo as estéticas. Fora as gravuras de Goya, não se conhece um

quadro sobre a guerra, antes da invenção da fotografia, que não a exaltasse.

A fotografia primitiva roubou da guerra a cor e a composição artística, o

filme e o tape dinamizaram o horror, o zoom destacou o detalhe. Ainda há quem

ame a guerra, mas nunca mais a percepção dela foi a mesma.

E o futebol também mudou, o que só aumentou a dificuldade em julgar

jogadores antigos pelas precárias imagens que ficaram deles e pelo que contam

— com o inevitável toque romântico do exagero — os que os viram jogar.

Algumas das grandes reputações do passado sobreviveriam aos cinco no meio e

à marcação no campo todo de hoje?

Pelé pegou o começo do futebol sem espaço. Não só se impôs como deixou

o exemplo de como sobreviver no sufoco. A extrema objetividade (nunca se viu

um drible do Pelé apenas pela satisfação do drible, era sempre um espaço

conquistado), a antecipação da jogada seguinte antes mesmo de a jogada

presente começar, a solidariedade, a simplicidade. Melhor do que Maradona,

melhor do que Messi, e dou fé.

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Flamengo Sessentão (Nélson Rodrigues)

Corria o ano de 1911. Vejam vocês: — 1911! O bigode do kaiser estava,

então, em plena vigência; Mata-Hari, com um seio só, ateava paixões e

suicídios; e as mulheres, aqui e alhures, usavam umas ancas imensas e

intransportáveis. Aliás, diga-se de passagem: — é impossível não ter uma funda

nostalgia dos quadris anteriores à Primeira Grande Guerra. Uma menina de

catorze anos para atravessar uma porta tinha que se pôr de perfil.

Convenhamos: — grande época! grande época!

Pois bem. Foi em 1911, tempo dos cabelos compridos e dos espartilhos,

das valsas em primeira audição e do busto unilateral de Mata-Hari, que nasceu

o Flamengo. Em tempo retifico: — nasceu a seção terrestre do Flamengo. De

fato, o clube de regatas já existia, já começava a tecer a sua camoniana tradição

náutica. Em 1911, aconteceu uma briga no Fluminense. Discute daqui, dali, e é

possível que tenha havido tapa, nome feio, o diabo. Conclusão: — cindiu-se o

Fluminense e a dissidência, ainda esbravejante, ainda ululante, foi fundar, no

Flamengo de regatas, o Flamengo de futebol.

Naquele tempo tudo era diferente. Por exemplo: — a torcida tinha uma

ênfase, uma grandiloquência de ópera. E acontecia esta coisa sublime: —

quando havia um gol, as mulheres rolavam em ataques. Eis o que empobrece

liricamente o futebol atual: — a inexistência do histerismo feminino. Difícil, muito

difícil, achar-se uma torcedora histérica. Por sua vez, os homens torciam como

espanhóis de anedota. E os jogadores? Ah, os jogadores! A bola tinha uma

importância relativa ou nula. Quantas vezes o craque esquecia a pelota e saía

em frente, ceifando, dizimando, assassinando canelas, rins, tórax e baços

adversários? Hoje, o homem está muito desvirilizado e já não aceita a ferocidade

dos velhos tempos. Mas raciocinemos: — em 1911, ninguém bebia um copo

d’água sem paixão.

Passou-se. E o Flamengo joga, hoje, com a mesma alma de 1911. Admite,

é claro, as convenções disciplinares que o futebol moderno exige. Mas o

comportamento interior, a gana, a garra, o élan são perfeitamente inatuais. Essa

fixação no tempo explica a tremenda força rubro-negra. Note-se: — não se trata

de um fenômeno apenas do jogador. Mas do torcedor também. Aliás, time e

torcida completam-se numa integração definitiva. O adepto de qualquer outro

clube recebe um gol, uma derrota, com uma tristeza maior ou menor, que não

afeta as raízes do ser. O torcedor rubronegro, não. Se entra um gol adversário,

ele se crispa, ele arqueja, ele vidra os olhos, ele agoniza, ele sangra como um

césar apunhalado.

Também é de 1911, da mentalidade anterior à Primeira Grande Guerra, o

amor às cores do clube. Para qualquer um, a camisa vale tanto quanto uma

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gravata. Não para o Flamengo. Para o Flamengo, a camisa é tudo. Já tem

acontecido várias vezes o seguinte: — quando o time não dá nada, a camisa é

içada, desfraldada, por invisíveis mãos. Adversários, juizes, bandeirinhas

tremem então, intimidados, acovardados, batidos. Há de chegar talvez o dia em

que o Flamengo não precisará de jogadores, nem de técnicos, nem de nada.

Bastará a camisa, aberta no arco. E, diante do furor impotente do adversário, a

camisa rubro-negra será uma bastilha inexpugnável.

As Expressões da Bola (Ruy Carlos Ostermann)

O poeta Paulo Mendes Campos, se bem me lembro, certa feita se deu o

trabalho de ter todos os jornais e ouvir as transmissões de rádio, não sei bem

se durante uma semana ou mais, com a intenção de observar quantas vezes a

palavra bola era citada.

Surpreendeu-se: ela quase não aparecia, mas, em seu lugar, surgiam as

mais variadas expressões. O poeta achou graça. Mas a verdade é que este objeto

de mediação entre 22 jogadores e o público, força e graça do futebol, só poderia

mesmo ser tratada assim. Quem sabe seja um esforço coletivo de melhor

assegurá-la, de tomar intimidades, um desejo de posse quase incontrolável.

A pedido, fiz um pequeno inventário. Não me vali de anotações, nem fiz

consultas. Fui puxando pela lembrança mais próxima. E, então, a partir de seu

nome próprio, que é bola, e que me parece merecer o direito de verbete num

dicionário sobre gíria futebolística (que ainda não foi escrito), encontrei, por

aproximação – bolão (Foi um bolão! – quer dizer uma bola superior, e por

extensão, uma jogada magnífica ou uma partida excelente), - bolinha (Vamos

bater uma bolinha? - ou seja, trocar uns passes, dar uns chutes, brincar), -

balão de couro (expressão genuína dos narradores de rádio, de circulação

restrita), - couro (uma forma contracta daquela), - número 5 (referência do

tamanho da bola e o critério numérico adotado pelos fabricantes – por sinal, a

número 4 é recomendável para as mesmas 30 peladas de fim de semana...), -

pelota (expressão já em desuso, mas corrente na década passada: - Pelota com

Didi! Lá vai Garrincha! Atenção...), - redonda (Mata a redonda no peito, põe o

pé em cima...), - Leonor (uma das tantas expressões carinhosas, mas com o

sentido comum que à bola se dá nestas circunstâncias – a Leonor está no fundo

das redes! – de perda, traição, desdita), - criança (É preciso botar a criança no

chão – o que significa simplesmente jogar com a bola na grama, sem pressa,

carinhosamente outra vez), - esférico (preciosismo transcrito da expressão usual

que se dá à bola, na Rádio Nacional de Lisboa), - ela (Ela é minha, cai fora! –

substitutivo dos mais comuns, especialmente entre jogadores que lhe dão força

de entidade pessoal), - menina (O time pegou a menina, e ninguém mais jogou

– outra vez o tratamento afetivo), - francesa (expressão surgida por causa das

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bolas francesas, utilizadas na Copa do Mundo, no México, e que, segundo os

entendidos, sob todos os aspectos, são perfeitas), - guria (Ele sabe o que faz

com a guria, é um elogio ao bom jogador, que joga bem e, por consequência,

trata com afeto a bola).

Há mais expressões, inúmeras, incontáveis. Mas para uma amostragem,

e atendendo à sugestão de leitores, aí está uma contribuição.

O Juiz Ladrão (Nélson Rodrigues)

De vez em quando, eu esbarro num saudosista. É um sujeito esplêndido,

que vive enfiado no passado. Direi mais: — vive feliz e realizado no passado

como um peixinho num aquário de sala de visitas. E convenhamos que isto é

bonito, é lindo. Outro dia, um deles atracou-se comigo no meio da rua; arrastou-

me para o fundo de um café, e, lá, com o olho rútilo e o lábio trêmulo, pôs-se a

falar de Marcos de Mendonça, o “Fitinha Roxa”; da “espanhola”; do assassinato

de Pinheiro Machado e do campeonato que o Botafogo tirou em 1910. Mas, nos

vinte minutos da conversa retrospectiva, já lhe pendia do beiço uma grossa,

uma espuma bovina, uma baba elástica. De mim para mim, compreendi essa

nostalgia, louvei essa fidelidade ao passado. Amigos, eis uma verdade eterna:

— o passado sempre tem razão.

Por exemplo: — o futebol antigo. Era, a meu ver, um fenômeno vital muito

mais rico, complexo e intrincado. Hoje, os jogadores, os juizes e os bandeirinhas

se parecem entre si como soldadinhos de chumbo. Não encontramos, em

ninguém, uma dessemelhança forte, crespa e taxativa. Não há um craque, um

árbitro ou um bandeirinha que se imponha como um símbolo humano definitivo.

Outrora havia o “juiz ladrão”. E hoje? Hoje, os juizes são de uma chata,

monótona e alvar honestidade. Abrahão Lincoln não seria mais íntegro do que

Mário Vianna. E vamos e venhamos: — a virtude pode ser muito bonita, mas

exala um tédio homicida e, além disso, causa as úlceras imortais. Não acredito

em honestidade sem acidez, sem dieta e sem úlcera.

Mas ponha-se um árbitro insubornável diante de um vigarista. E

verificaremos isto: — falta ao virtuoso a feérica, a irisada, a multicolorida

variedade do vigarista. O profissionalismo torna inexequível o juiz ladrão. E é

pena. Porque seu desaparecimento é um desfalque lírico, um desfalque

dramático para os jogos modernos.

Vejam vocês que coisa melancólica e deprimente: — um jogo de futebol

tem 22 homens. Com o juiz e os bandeirinhas, 25. Acrescentem-se os gandulas

e já teremos um total de 29. Vinte e nove homens e nem um único e escasso

canalha, nem um único e escasso vigarista! Eis a verdade, que levaria um Balzac

ao desespero e à úlcera: — as condições do futebol contemporâneo tornam

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impraticável a existência do canalha. Ou por outra: — o canalha pode existir,

mas contido, frustrado, inédito, sem função e sem destino.

Mas em 1918, 17 ou 16, os gatunos constituíam uma briosa fauna, uma

luxuriante flora. Evidentemente, havia as exceções. Mas os salafrários podiam

apitar as partidas e com que glorioso, com que genial descaro! Certa vez, foi até

interessante: — existia um juiz que era um canalha em estado de pureza, de

graça, de autenticidade. Um domingo, ele vai apitar um jogo decisivo. Que fazem

os adversários? Tentam suborná-lo. Ora, o canalha é sempre um cordial, um

ameno, um amorável. E o homem optou pela solução mais equânime: — levou

bola dos dois lados. Justiça se lhe faça: — roubou da maneira mais desenfreada

e imparcial os dois quadros. Ao soar o apito final, os 22 jogadores partiram para

cima do ladrão. Mas o gângster já se antecipara, já estava pulando muros e

galinheiros. Era uma figurinha elástica, acrobática e alada. Isto foi em 1917. O

juiz gatuno está correndo até hoje.

O Torcedor (Mário Filho)

Um torcedor que assina “o torcedor do espelho” pergunta-me, por carta,

com ar quase de zanga, porque eu, quando citei o caso do torcedor do bodoque,

atrás do gol da piscina, lá em Campos Salles, não citei o caso dele: o caso do

“torcedor do espelho”. Ele tinha tanto direito quanto o outro. E talvez mais. A

pedrinha atirada pelo bodoque poderia “até” machucar. O espelho, não. E, além

disso, o espelho era uma arma muito mais perfeita do que o bodoque. O bodoque

acertaria ou não acertaria. Em São Januário, por exemplo, o bodoque não

adiantaria de nada. E o espelho foi aplicado, com absoluto êxito, de “qualquer

ponto” de São Januário. Amado ia defender uma bola e o reflexo do sol batendo

sobre o espelho — um espelho de bolso, pequeno, leve, cômodo — cegou

Amado. Gol do Vasco. “O senhor não se lembra? Pois o torcedor do espelho era

eu.”

Naturalmente que eu me lembro do torcedor do espelho. Durante um certo

tempo os torcedores do espelho se multiplicavam como vaga-lumes. A gente

olhava para as arquibancadas e via tudo faiscando. De repente, o goleiro

passava a mão pelos olhos. Qualquer pessoa, porém, podia levar um espelho

para o campo. E a arma passou a não valer de nada. Se um torcedor do Vasco

botava o reflexo do espelho em cima da cara do goleiro do Flamengo, o torcedor

do Flamengo esperava o primeiro ataque contra o gol do Vasco e toca a cegar o

goleiro do Vasco, o beque do Vasco, qualquer coisa do Vasco. E um dia um

chofer, em São Januário, arrumou os faróis de um carro em direção ao arco do

Flamengo. A polícia prendeu o chofer. O carro. Os faróis.

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O que me impressionou mais na carta do torcedor do espelho foi o

anonimato. Ele protestou porque eu não tinha citado o nome dele. Qual é o nome

dele? Torcedor do espelho não se parece com nome de ninguém. E, no entanto,

eu sei que basta. O “torcedor do espelho” agora mesmo está sorrindo.

Encantado. Como se bastasse isso — a citação de um torcedor, que aliás não

era um, era uma multidão — para identificá-lo. Ele pode pegar o pedaço de

jornal e mostrá-lo a todo mundo. Hoje é dia de festa na casa do “torcedor do

espelho”. “Você já leu a Primeira Fila?” — ele indagará de companheiros de

repartição, de amigos, de vizinhos. — “Pois não perca a de hoje. Está boa. Cita-

me”.

Eu um dia estava sentado diante de uma mesa redonda, escrevendo,

escrevendo. Aí, apareceu um homenzinho, com um embrulho debaixo do braço.

Dentro do embrulho estava um pacote de cinco contos de réis. O homenzinho

encontrara o embrulho não sei onde e se apressara em vir entregá-lo. “Eu sou

pobre, mas honesto” — declarou ele, com convicção. Com uma satisfação íntima,

profunda, tomaram nota. Nome. Endereço. Tudo. Levaram o pacote para dentro.

E o homenzinho começou a ficar nervoso. Ele vestira o terno dos domingos e

feriados, mandara engraxar os sapatos, cortar os cabelos e nenhuma fotografia?

Eu o vi querer dizer uma coisa. Não disse. Ou, por outra, só disse quando abriu

a porta para sair: “Assim, sem fotografia nem nada, nem vale a pena ser

honesto. Até desanima a gente”. E bateu a porta com violência. Em sinal de

protesto.

O nome em jornal há de ter o seu encanto. Há de ter. Mesmo quando é

uma indicação: “Leônidas fazia-se acompanhar por um amigo”. Quantos

apontam a linha em corpo sete para dizer: “o amigo era eu”? Assim, não é difícil

compreender o caso do “torcedor do espelho”. Eu, inclusive, devia a ele uma

crônica. Quem me forneceu o motivo foi ele. Realmente, há uma porção de

torcedores que intervêm em uma jogada, em um match, que decidem uma

partida. Uns violentos. Os que levam tijolos para o campo. Os que bebem soda

só para ficar com a garrafa na mão para o que “der e vier”. E outros maliciosos.

Levando um espelho. Um bodoque. Um apito.

Antigamente, no mais aceso de um ataque, se ouvia o trilar de um apito,

estridente. E uma parte da torcida gritava: “offside! pênalti!” O jogo parava. E

o juiz tinha de dar bola ao alto. Com o tempo o apito — o “cesar” tudo, de um

trocadilhista que queria ser agradável ao César Ladeira — perdeu o prestígio. E,

às vezes, o juiz apitava, apitava, e não adiantava. Os jogadores continuavam

jogando até que a bola entrasse, que a bola saísse. Ninguém “caía” mais no

conto do apito. A não ser um de fora.

Carreiro costumava fazer isso. Ele, de boca fechada, dando um jeito

qualquer na língua, produzia um som absolutamente igual ao de um apito. Uma

vez ele marcou um gol porque, na hora que o beque ia rebater, ele “apitou”. O

beque desistiu da rebatida. Carreiro invadiu a área, pegou a bola e colocou-a no

cantinho. Por isso, se fala tanto hoje em gol anulado, apesar de o juiz ter apitado

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antes. Ninguém obedece, que não é besta. Quem sabe se o apito não foi o apito

de torcedor?

Há torcedores, aliás, com força moral sobre o juiz. Com uma voz poderosa

de comando. Uma voz assim de Victor McLaglen. Grossa. Estentórea. Hipnótica.

O juiz não quer apitar e apita a ordem de offside! hands! foul! corner! Contra

isso o juiz não pode lutar. Trata-se de alguma coisa mais forte do que ele.

Felizmente, são raros os torcedores privilegiados com uma voz de comando. E,

além disso, os que têm a voz de comando, não a gastam assim, sem mais nem

menos. Guardando-a para ocasiões solenes. Quase cívicas.

Os torcedores do bodoque, do espelho, do farol de carro, do tijolo, do

desaforo, da garrafa de soda ou de cerveja, do apito, são os torcedores por conta

própria, que não se integram na multidão, que não se perdem no meio da

multidão, que se destacam, conservando a personalidade. A maioria é parte de

um todo, sentindo emoções em conjunto, não se dando ao luxo de vibrar só,

como indivíduo. Depois da exibição de um escrete austríaco em Londres, cinco

mil torcedores ingleses, sem aviso prévio, um não conhecendo o outro, não se

cumprimentando sequer, atravessaram a Mancha para ir ver o Wonderful Team

jogar em Bruxelas. Eu não conheço exemplo mais maravilhoso do homem

massa, do homem multidão.

Pode-se dizer que há uma enorme diferença entre o torcedor inglês e o

torcedor brasileiro. Um, torcedor de futebol, apenas. E o outro, torcedor de

clube. De camisa. O torcedor inglês não intervém no match. Manifesta agrado

ou desagrado com sobriedade. Valorizando a palma. Em um match Itália x

Tchecoslováquia, porém, quando Plánička ia fazer uma defesa no canto, recebeu

uma pedra atirada por um bodoque de torcedor, bem na nuca. Ele, no ar, em

pleno salto, teve que coçar o pescoço. A bola entrou. Os tchecos, porém, se

recusaram a continuar o jogo. A polícia andou prendendo tudo o que era torcedor

mal-encarado. Com jeito de fazer uma coisa daquelas.

Em alguns momentos, quando as coisas estão pretas, a torcida resolve dar

uma mão ao time. Quando os brasileiros foram disputar com os argentinos, no

campo do Barracas, em Buenos Aires, o último jogo do Sul-Americano de 25,

Friedenreich marcou um, dois gols, e, quase na hora de marcar o terceiro,

recebeu um pontapé pelas costas. Era o sinal. Senão combinado, pelo menos

entendido. O torcedor entrou em campo e tocou o braço nos brasileiros.

Amansando-os. Deixando bem claro que não se podia fazer, impunemente, uma

porção de gols em cima dos argentinos. Os brasileiros não caíram na tolice de

marcar mais gols. E os argentinos empataram o jogo. Que diabo: eles eram os

donos da casa, não eram?

Eu ia me esquecendo do torcedor fotógrafo que leva magnésio para o

campo e resolve bater uma chapa de uma defesa sensacional do goleiro

“contrário”. Do “outro” não interessa. Uma vez o Vasco jogava não sei com

quem. Talvez com o Flamengo, porque quase todos os fotógrafos torcem pelo

Flamengo. O caso é que Rey ia segurar a bola quando se ouviu uma explosão

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medonha. Parecia de bomba. Rey tremeu, largou a bola, julgou que tinha sido

alvejado por um bacamarte. E eu só vi vascaíno pulando para a pista e o

fotógrafo correndo, gritando que tinha sido sem querer. Hoje, é proibido levar

magnésio para o campo. Quem quiser bater fotografia de jogo noturno, têm de

comprar lâmpada. Por quatro ou cinco mil réis. Mais barato do que um tiro de

magnésio.

Complexo De Vira-Latas (Nélson Rodrigues)

Hoje vou fazer do escrete o meu numeroso personagem da semana. Os

jogadores já partiram e o Brasil vacila entre o pessimismo mais obtuso e a

esperança mais frenética. Nas esquinas, nos botecos, por toda parte, há quem

esbraveje: “O Brasil não vai nem se classificar!”. E, aqui, eu pergunto:

— Não será esta atitude negativa o disfarce de um otimismo inconfesso e

envergonhado?

Eis a verdade, amigos: — desde 50 que o nosso futebol tem pudor de

acreditar em si mesmo. A derrota frente aos uruguaios, na última batalha, ainda

faz sofrer, na cara e na alma, qualquer brasileiro. Foi uma humilhação nacional

que nada, absolutamente nada, pode curar. Dizem que tudo passa, mas eu vos

digo: menos a dor-de-cotovelo que nos ficou dos 2 x 1. E custa crer que um

escore tão pequeno possa causar uma dor tão grande. O tempo passou em vão

sobre a derrota. Dir-se-ia que foi ontem, e não há oito anos, que, aos berros,

Obdulio arrancou, de nós, o título. Eu disse “arrancou” como poderia dizer: —

“extraiu” de nós o título como se fosse um dente.

E, hoje, se negamos o escrete de 58, não tenhamos dúvida: — é ainda a

frustração de 50 que funciona. Gostaríamos talvez de acreditar na seleção. Mas

o que nos trava é o seguinte: — o pânico de uma nova e irremediável desilusão.

E guardamos, para nós mesmos, qualquer esperança. Só imagino uma coisa: —

se o Brasil vence na Suécia, se volta campeão do mundo! Ah, a fé que

escondemos, a fé que negamos, rebentaria todas as comportas e 60 milhões de

brasileiros iam acabar no hospício.

Mas vejamos: — o escrete brasileiro tem, realmente, possibilidades

concretas? Eu poderia responder, simplesmente, “não”. Mas eis a verdade: —

eu acredito no brasileiro, e pior do que isso: — sou de um patriotismo inatual e

agressivo, digno de um granadeiro bigodudo. Tenho visto jogadores de outros

países, inclusive os exfabulosos húngaros, que apanharam, aqui, do aspirante-

enxertado do Flamengo. Pois bem: — não vi ninguém que se comparasse aos

nossos. Fala-se num Puskas. Eu contra-argumento com um Ademir, um Didi,

um Leônidas, um Jair, um Zizinho.

A pura, a santa verdade é a seguinte: — qualquer jogador brasileiro,

quando se desamarra de suas inibições e se põe em estado de graça, é algo de

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único em matéria de fantasia, de improvisação, de invenção. Em suma: — temos

dons em excesso. E só uma coisa nos atrapalha e, por vezes, invalida as nossas

qualidades. Quero aludir ao que eu poderia chamar de “complexo de vira-latas”.

Estou a imaginar o espanto do leitor: — “O que vem a ser isso?”. Eu explico.

Por “complexo de vira-latas” entendo eu a inferioridade em que o brasileiro

se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo. Isto em todos os setores

e, sobretudo, no futebol. Dizer que nós nos julgamos “os maiores” é uma cínica

inverdade. Em Wembley, por que perdemos? Porque, diante do quadro inglês,

louro e sardento, a equipe brasileira ganiu de humildade. Jamais foi tão evidente

e, eu diria mesmo, espetacular o nosso vira-latismo. Na já citada vergonha de

50, éramos superiores aos adversários. Além disso, levávamos a vantagem do

empate. Pois bem: — e perdemos da maneira mais abjeta. Por um motivo muito

simples: — porque Obdulio nos tratou a pontapés, como se vira-latas fôssemos.

Eu vos digo: — o problema do escrete não é mais de futebol, nem de

técnica, nem de tática. Absolutamente. É um problema de fé em si mesmo. O

brasileiro precisa se convencer de que não é um vira-latas e que tem futebol

para dar e vender, lá na Suécia. Uma vez que ele se convença disso, ponham-

no para correr em campo e ele precisará de dez para segurar, como o chinês da

anedota. Insisto: — para o escrete, ser ou não ser vira-latas, eis a questão.

Manual de Instrução (Tostão)

Numa de suas deliciosas crônicas, Luis Fernando Veríssimo conta que

um pai deu uma bola de presente ao filho. O menino perguntou: "Onde é que

liga?". O pai explicou-lhe o que era uma bola e para que servia. O garoto, mais

curioso, indagou: "Tem manual de instrução? É em inglês?".

Na Inglaterra, os torcedores agora terão de assinar um código de

comportamento no momento em que comprarem ingressos para uma partida.

Aproveito a crônica do Veríssimo e a resolução da Federação Inglesa para

sugerir um manual de instrução para as pessoas que trabalham no futebol.

O jogador será obrigado a tratar a bola com carinho. Quase como se ela

fosse a mulher amada. Chute de bico e de canela só para fazer gol, como faz o

Romário e o Dadá Maravilha. "Não existe gol feio. Feio é não fazer gol." (Dadá)

Os jogadores estarão livres para imaginar, criar, arriscar e não apenas

para seguir as ordens do "professor".

O atleta, principalmente o de meio-de-campo, terá de atuar com a cabeça

em pé, sem olhar para a bola. Assim como o goleiro, o armador não poderá

demorar mais do que seis segundos para dominar a bola, girar o corpo, pensar

e dar o passe.

Como diz a regra, na cobrança do pênalti, o goleiro só poderá dar um

passo para frente quando o cobrador tocar a bola.

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A malandragem do goleiro, ao se mexer, é interessante e criativa. Fazer

isso em todas as cobranças é trapaça.

Será proibido dar carrinhos pela frente, por trás, de lado, na canela, nos

testículos, pênis e em qualquer outra parte do corpo.

O zagueiro que der carrinho sem necessidade terá pena de suspensão

dobrada, por violência e burrice.

O lateral não será obrigado a fazer sempre a mesma coisa: correr e jogar

a bola na área. Sem ver. Ele também poderá driblar, passar e tabelar, além de

cobrir os zagueiros.

Os volantes treinarão como passar a bola com mais de dez metros de

distância, duas horas por dia, inclusive aos domingos e feriados. E ficará

estabelecido: se não aprenderem em um ano, serão transferidos para uma

equipe da Série B.

O jogador rápido, habilidoso, driblador, que cruza bem, magrinho, de

canela fina e com menos de 50 kg, terá o direito de jogar na ponta. Não poderá

ser transformado em atacante ou armador.

Os treinadores serão multados se mandarem parar as jogadas de qualquer

maneira. O jogador poderá entender que vale tudo. Até morder. Literalmente.

Como diz a regra, os treinadores não poderão permanecer na linha lateral

de campo. Darão as instruções e retornarão ao túnel. Lá, prestarão atenção no

jogo, em vez de xingar árbitros e auxiliares.

Os técnicos só poderão dar show diante das câmeras de TV cinco minutos

antes e após o jogo. No lugar de fazer cara feia nas entrevistas, terão de explicar

suas condutas e analisar a partida. Os torcedores têm o direito de saber.

Os árbitros não poderão ter dois pesos e duas medidas. Terão de ser

profissionais.

Os auxiliares treinarão a marcação de impedimento durante duas horas,

todos os dias. Até conseguirem aprender.

Estarão abolidas as relações espúrias e fisiologismos entre Confederação

Brasileira de Futebol, federações e clubes.

O calendário será cumprido, mesmo que uma equipe como a do Flamengo,

clube de maior torcida do Brasil, tenha de ser rebaixada.

Dirigentes e empresários que fizerem vendas "por debaixo do pano", falsificarem

passaportes, explorarem menores, contratarem jogadores para beneficiar

intermediários e muitas outras coisas que as CPIs estão investigando serão

processados e expulsos do futebol.

Os comentaristas esportivos não poderão ser bairristas nem parciais.

Torcer somente com o microfone desligado. Não será permitido, durante um

jogo ou programa esportivo, ser jornalista e garoto-propaganda ao mesmo

tempo.

Os torcedores poderão gritar, pular, cantar, vaiar, xingar até a mãe, soltar

flatos e outras diversões. Somente é proibido brigar e incitar a violência.

Será criado um conselho para elaborar um manual, não de notáveis, mas de

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esportistas anônimos e independentes. Seus nomes não serão revelados.

Poderá também ser criado um megapsicodrama, como promove a atual

Prefeitura de São Paulo, com intenção de discutir a ética. É uma idéia criativa e

eficiente.

O megapsicodrama aconteceria sempre uma hora antes das partidas de

futebol, na porta dos estádios.

Com um megafone, todos os presentes discutiriam e reclamariam de tudo

e de todos. Seriam convidados dirigentes de clubes e federações, torcedores,

redes de televisão, empresários, jornalistas, Ricardo Teixeira, Pelé, Sócrates,

Eurico Miranda...

Se der certo, o projeto seria estendido para todos os setores da sociedade,

inclusive Brasília, com a presença de deputados, senadores, FHC, ACM, Jader

Barbalho...

Seria uma catarse coletiva nacional, para salvar e criar uma nova ética no

futebol e no país.

Estou delirando!

Iniciada a Peleja (Fernando Sabino)

Justamente na hora do primeiro jogo de nosso selecionado na Europa

(referência ao jogo amistoso preparatório à Copa de 58 realizado em Florença,

Itália, em 29/05/1958, contra o A.C. Fiorentina), realizava-se uma reunião da

diretoria do banco, a que ele não poderia deixar de comparecer. Não teve

dúvidas: arranjou emprestado um radiozinho transistor, com dispositivo de se

adaptar ao ouvido para audições individuais, meteu-o no bolso e bateu-se para

a reunião.

– Que é isto? – estranhou um dos diretores. – Você ficou surdo?

Acomodou-se junto à mesa: a reunião já havia começado e o jogo

também. Didi passa para Mazzola, este para Pepe, Pepe novamente para

Mazzola. Proposição de um dos diretores sobre o incremento do crédito agrícola.

Escapada de Garrincha pela direita. Estamos certos de que nossos colegas

aprovarão as medidas que permitam a imediata normalização das operações.

– Aprovado.

– Aprovado.

– Impedimento!

– Como?

– Nada não. Aprovado.

A pelota é devolvida à circulação: os produtores não poderão obter senão

um empréstimo equivalente ao valor de sua remissão que será adicionado ao

montante da dívida. Falta perigosa a ser cobrada nos limites da grande área. O

débito remanescente e oriundo do financiamento previsto na lei representa um

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perigo para a cidadela brasileira, defendida por Gilmar. A dívida será computada

no ano imediatamente posterior à safra liberada. Cobrada a falta. Defesa es-pe-

ta-cu-lar de Gilmar!

– A menos que a garantia oferecida, nos termos da Portaria número

quatro...

– Centra logo, homem de Deus!

Didi recebe de Bellini e organiza novo ataque. Os lavradores beneficiados,

quaisquer que sejam os termos da dívida assumida...

– É agora! Vai chutar.

– Perdão?

– Não entendi o seu aparte.

– Ah, desculpe...Pode prosseguir: foi fora. Os termos da dívida assumida...

– O senhor está me ouvindo bem aí?

– Perfeitamente. Por quê?

– Esse seu aparelhinho no ouvido... Muito bem: prossigamos.

A reunião prosseguiu sem novidades até que Garrincha se apoderasse

novamente da bola. Mazzola prepara-se para chutar...Pânico na defesa italiana.

– Gol do Brasil! – berrou ele, incontido.

Os outros diretores se voltaram, estupefatos. Tornou a desculpar-se como

pôde, acomodou-se novamente na poltrona e continuou a participar da reunião,

que prosseguia agora sob estranheza geral: os lavradores, em face dos

dispositivos que regulam o débito consignado no exercício anterior...Ele foi-se

erguendo lentamente da poltrona, braço estendido, fisionomia aparvalhada.

– Que está acontecendo, afinal?

– Esperem, esperem – pediu, olhos esbugalhados, imóvel como um

perdigueiro ao amarrar a caça, e contendo com sua postura de estátua a

curiosidade dos demais: Pepe continua avançando, dribla os dois zagueiros,

invade a área, tira o goleiro da jogada...

– Mais um! – saltou ele na cadeira. – Agora não tem mais perigo: podemos

prosseguir.

Os comentários corriam em torno à mesa: que diabo de rádio é esse?

Deixa ver, que coisa interessante...Tão pequenino. Eles já não sabem mais o

que inventar. Liga aí para a gente ver. Quanto está? Gol de quem?

– De Pepe. Espetacular.

– Mais para cá, que eu também quero ouvir.

– Põe no meio da mesa logo de uma vez.

Pôs o radiozinho no meio da mesa, e a diretoria, por decisão unânime, em

face de tão grave conjuntura para os destinos de nossa nacionalidade, concedeu-

lhe primazia entre os assuntos em pauta. Mazzola era um gigante dentro de

campo. Didi, um verdadeiro assombro.

– Olha só esse passe.

– O homem está em todas.

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Ao fim, os diretores, esquecidos do que dispõe a Lei nº 2697, sobre a

concessão de crédito agrícola em face da safra liberada no ano anterior,

congratulavam-se, entusiasmados: havíamos vencido por quatro a zero.

– Eu sempre disse que o problema de Feola estaria no ataque.

– Gilmar foi o maior, senhores.

– Você viu aquela defesa?

– A leitura do relatório, em face das circunstâncias, a meu ver deverá ficar

para a próxima reunião.

Aprovada a proposição, deram por encerradas as atividades daquele dia e

foram, incorporados, tomar um uísque para celebrar.

Dez motivos (José Roberto Torero)

Leitor (e falo no singular porque sei que só você me lê), tudo na vida

precisa de motivos. Nossas decisões devem ser fruto de uma reflexão prévia,

fundamentada em vários exemplos que nos permitam distinguir a verdade do

erro.

Quantas decisões infelizes não teriam sido evitadas se as pessoas se

dessem ao trabalho de levantar os prós e os contras de uma questão,

esquadrinhando cada aspecto de um problema antes de saírem à luta. E isso

aflige principalmente os jovens, que, impetuosos, normalmente têm hormônios

demais e neurônios de menos.

Dirijo esta crônica ao jovem, sobretudo àquele que sonha em seguir uma

carreira no futebol e ainda não decidiu em que posição jogar.

Leia, compare e depois veja se as vantagens de cada posição coincidem

com o que você espera da vida.

Dez motivos para ser goleiro:

1) o uniforme é diferente;

2) as luvas são charmosas;

3) pode fazer pose para fotos;

4) chama a atenção das mulheres;

5) corre menos;

6) pode tomar um café de vez em quando (vide Marcos);

7) não há responsabilidade na hora do pênalti;

8) pode passar um jogo inteiro sem trabalhar;

9) no fim do jogo, já sabe com quem trocar de camisa;

10) sempre pode dizer que o gol tomado se originou de uma falha dos zagueiros.

Dez motivos para ser zagueiro:

1) destruir é mais fácil do que construir;

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2) é permitido e, às vezes, até aconselhável o chutão de bico;

3) dá muitas cotoveladas;

4) dá muitos pontapés;

5) dá muitos carrinhos;

6) toma muitos amarelos. Com isso, pode passar os domingos com a família e

os amigos;

7) faz um gol, e ele é muito festejado;

8) geralmente, ele se torna o capitão do time, ou seja, tem a liberdade para

gritar com todos;

9) tem fama de machão;

10) sempre pode dizer que o gol tomado se originou do mau posicionamento

do meio-campo.

Dez motivos para ser meia:

1) recebe muitas bolas;

2) aparece muito no jogo;

3) aparece muito na televisão. E em closes;

4) tem fama de craque;

5) pode fazer uma firula de vez em quando;

6) não é preciso jogar de costas para o gol;

7) pode indicar o posicionamento dos companheiros.

8) geralmente bate as faltas;

9) não tem a obrigação de marcar, só de cercar;

10) ganha mais que os zagueiros.

Dez motivos para ser atacante:

1) faz mais gols;

2) fica na lembrança durante anos;

3) é reconhecido nas ruas;

4) dá mais autógrafos;

5) tem o nome gritado pelos torcedores;

6) torna-se mais lembrado pelas torcedoras;

7) bate os pênaltis;

8) ganha mais que os meias;

9) aparece em revistas;

10) sempre é lembrado para a seleção.

Dez motivos para ser dirigente:

1) não sua a camisa;

2) pode despedir o técnico;

3) pode ganhar comissão na venda dos jogadores;

4) ganha mais que os atacantes;

5) põe a família para dentro do campo;

6) dá muita entrevista;

7) pode pôr a culpa da derrota no goleiro, no resto do time ou no técnico;

8) vê o jogo sempre do melhor lugar;

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9) sabe tudo o que realmente acontece no Clube dos 13;

10) pode conseguir uma cadeira no Congresso.

Dez motivos para ser cronista:

1) não sofre gols;

2) não é expulso;

3) não sofre contusões;

4) não leva pontapés;

5) não perde gols;

6) não é vaiado;

7) não sofre cobranças;

8) não precisa dar explicações após as derrotas;

9) dá palpite no trabalho dos outros;

10) ganha-se a vida fazendo crônicas tolas como esta.

Juiz (João Antônio Ferreira Filho)

— Cachorro!

A multidão ferve e grita. E xinga de vagabundo a homossexual, ladrão e

negro. Passando, naturalmente, por bunda-mole, imbecil, safado, arrombado,

tratante, comprado a vendido.

Debaixo de um mormaço sem brisa, sem árvores e sem refresco, o herói

entra em campo. Antes de qualquer gesto seu, é vaiado por todas as bocas, por

todos os olhos, em saraivada, os punhos da galera socando o ar. O menor dos

palavrões, um xingo grosso mandado, com raiva, pra cima dele:

— Sua mãe está fazendo a vida na casa de Zulmira, vagabundo! Lazarento!

Metido no uniforme preto, certinho, brilhante, mangas compridas, o poeta

do momento sua no pescoço, nuca, carapinha, sovaco, nas partes, nos nove

buracos do corpo e nos quatro cantos do corpo. Procura que procura sem coçar

a carapinha, manter as coisas, sustentar uma categoria e uma limpeza de

caráter que não são suas e lhe estão longe.

Jacarandá sopra o apito, os jogadores se colocam e o jogo começa. Cinco

minutos, não mais, o público do Vitorino dá trégua ao herói, se voltando contra

um bandeirinha a quem atribui novas qualidades infamantes. Sexuais, na

maioria.

No sexto minuto, a peça fraqueja, a primeira vez, deixa de apitar uma

falta do meia-armador visitante. O estágio lhe cai de pau:

— Negro sem vergonha! Ladrão do meu dinheiro!

Suando e correndo, o pinta está a medo e a perigo. O povo engrossa

xingos zangados, primeiros sacos plásticos ameaçam, voando da galera para a

grama, nas laterais.

Parada. Era uma parada. O gajo planejara — seria rápido, mutável,

aparentando firmeza e decisão. Dissimularia. Escalado para apitar aquele jogo,

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conhecendo na pele a rixa Londrina-Curitiba, Jacarandá acreditava – a princípio

– na sua picardia e capacidade de manobra, teria um comportamento pendular,

trocaria de política conforme as crises e as mudanças do vento. Acontece que

em Londrina até os ventos são quentes.

Inda mais, o povo-povo não lhe perdoava a cor. Mulato, o poeta tinha pela

frente noventa minutos de taxações violentas. Inda mais. Era encontro do

Londrina contra a equipe forte da capital e o herói tentava compor com os dois

lados, politicamente. Uma vela para Deus, uma vela para o capeta; uma vela

para Deus, uma vela para o capeta.

Destrambelhou-se no sexto minuto e a partir daí meteu o olho arisco em

cima do meia-armador do clube visitante. Na primeira oportunidade meteu-lhe

um cartão amarelo e, manhoso, tratou de expor quase metade do cartão

vermelho no bolso da camisa preta, como lembrança ameaçadora. (Para os

jogadores do clube da capital, é claro).

Vista grossa para os locais, olho vivo e punitivo pregado nos visitantes.

Mas os de fora deram pra jogar melhor, investindo sempre e, num lance na

pequena área, em que estava enfiado o meia-armador, houve porrada feia e

Jacarandá não apitou um pênalti contra o Londrina. O clube visitante chiou, o

capitão da equipe, físico taludo, foi às falas com o poeta. Dissimulado, mãos

para trás, feito um colegial, o capitão sapecou-lhe um esporro. Uma esparrela

redonda, arretada, exemplar, inteiriça:

– Cachorro, filho-da-mãe, morfético! Você apita essa porcaria direito ou

vou lhe espetar lá fora. Acabo com sua raça, seu negro!

O meia-armador aproveitou o embalo, serviu-se. Foi-se chegando para a

peça, mãos jogadas para trás:

– Você está na caixinha, safado, negro salafrário! Mas não perde por

esperar.

Jacarandá passou a correr atrás de uma ordem que ele mesmo bagunçou,

no começo. Tropeçando, desnorteando-se em erradas, ia precariamente,

desmoralizado. Dando azar, picotando a partida com interrupções fora de hora,

repetidas, que irritavam. O jogo caiu para o marasmo. Na marca dos trinta

minutos, os jogadores não queriam nada com a bola, o povo vaiava tudo,

incomodado peo calorão do estádio sem árvores e sem brisa. O sol batia de

chapa, castigava as caras aporrinhadas, azedas.

O meia-armador tesourou o centroavante londrinense e Jacarandá vacilou,

deixou correr frouxo. Vacilou, dançou. O povo da galera explodiu:

– Expulsa, ladrão! Bota pra fora! Vagabundo, sua mãe está se virando na

casa de Laura! Lazarento!

O gajo ensaia nova composição. Nuca falta dos visitantes, expulsa um

lateral-esquerdo, até ali o jogador melhor comportado dos vinte e dois. Engole

novo esporro do capitão da equipe que ameaça com um bolo de jogadores.

Forma-se a roda, a casa de caboclo, Jacarandá no centro. Disfarçadamente

alguém lhe chuta o cotovelo e o herói não esconde uma careta.

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O tenderepá se dissolve, ele antecipa o final do primeiro tempo, rouba três

minutos, é o primeiro a sair de campo, orelhas ardendo, passo meio corrido.

Nem os bandeirinhas estão falando com Jacarandá e a peça tem quinze minutos

para ouvir, em solidão e medo, no vestiário dos árbitros, os comentários das

rádios, que o taxam de incompetente, pulso frouxo e figura lamentável. A

linguagem esportiva expunha, com gozo, momentos de seu gritado brilhareco

tradicional, empostado, gula para efeitos frenéticos:

– Sua Excelência, Jacarandá Bandeira, é o responsável por uma partida de

futebol que descambará fatalmente ou para o marasmo ou para a violência. Esta

contenda poderá tomar rumos imprevisíveis.

O herói ouvia encolhido, imaginando composições novas com as duas

equipes. Que alguma o salvasse. Voltou a campo e teve, em quarenta e cinco

minutos, que ouvir cerca de duzentas vezes o mesmo xingo. O negro gritado

com nojo e escárnio, acompanhado de vários complementos – safado, ladrão,

cascateiro.

Não se distrair, evitar uma visão e um pensamento que o apavoravam. O

gajo teimava em não olhar para a galera, fixar e dançar os olhos só no jogo.

Mas houve um momento. Deu, sem querer, de olhos para o povo e o pensamento

ruço lhe correu, dando frio no espinhaço. Aquela gente furiosa não iria esfolá-lo

vivo?

A multidão lhe atirava coisas, além de nomes. Perdido o rebolado,

Jacarandá deu para interromper suas corridas, coçar a carapinha já não

disfarçando que tudo estava por um fio. Correu para a marca do escanteio e lhe

acertaram, em cheio, um saco plástico de água que estalou como um soco.

Vinte minutos, nova discussão – expulsou o centroavante dos visitantes. Levou

xingamentos reforçados e ameaças de uma boa surra. Daí para frente, o ritmo

se precipitou. Cartões amarelos, fuás, polícia interferindo, jornalistas botando

mais lenha no fogo com suas máquinas e fios. Jacarandá Bandeira levou dois

trompaços do capitão visitante na marca dos quarenta e cinco minutos finais.

Teria sido surrado não saísse pulando, bufando, suando, escafedendo-se,

enfiando-se no vestiário dos juízes. Ali, escondido, medroso, apequenado,

deixou o tempo correr, banho mais longo de sua vida.

Uns pensamentos lhe batiam, atravessados. Onde, em que teria errado?

Nas composições, nas manobras, na parcialidade – ou não fora nada disso, a

bronca do povo não estaria mais voltada para a cor de sua pele e o errado não

teria sido ele, ao se meter no mundo das arbitragens, jogadas afinal do domínio

dos brancos naquele futebol em que o negro entrava como jogador e força de

trabalho? Isso, talvez isso, certamente assim, nada mais. Onde errara, não havia

feito o joguinho e as vontades da equipe local, não fizera o joguinho que lhe

pediram, as coisas não haviam pendido sempre para o clube da terra? Onde

estava o erro? Mas esses pensamentos não tinham linha reta na cabeça de

Jacarandá, embaralhavam-se repetidamente na carapinha molhada. O herói

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talvez desconfiasse, em confusão, que havia feito, de uma maneira ou outra,

bobagem grossa ao se meter em jogadas de brancos.

Contava e já não contava com a proteção policial. A bem dizer, até a temia

– afinal, o jogo não dera um ganhador – e a polícia era local.

Esfriou mais. Um dos bandeirinhas lhe boquejou, baixo, sinistramente.

Provável, na saída do Vitorino. Encontraria um dirigente do clube visitante para

um acerto de contas. Na base do conversar e discutir. Só que o cartola, violento

dono de rinhas, fazia fama pelas soluções lançando mão de um trinta e oito de

cabo de madrepérola. O herói tremia debaixo do chuveiro. Arrepiado,

arrepiadinho.

Jacarandá Bandeira está só. E bem. Dá um tempo. Dá mais um tempo.

Depois mais um.

De tempo em tempo, duas horas, e já com a lua no céu, o gajo enfrentou

a saída do estádio. Lá fora, na noite quente, deu sinal com o braço, o táxi ia

parando.

Aí, saídos Jacarandá não viu de onde, o pegaram.

— Negro safado!

Foi batido até o desmaio e recordado à ponta de cigarro. Descobriram,

furiosos, que só desmaiara e a tunda dobrou, rápida, maciça, antes da chegada

dos cassetetes da polícia.

Então, os surradores deram no pé, em várias direções e um deles ainda

escarneceu numa ponta de rua mal iluminada. O xingo ficou, indo e voltando,

na caixa de pensamento de Jacarandá Bandeira. Doendo.

– Negro!