lavrando a memória, cultivando a terra: o direito de dizer

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Joseline Simone Barreto Trindade Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer e Fazer a Roça no Quilombo do Curiaú - AP Tese de Doutorado Belém, PA 2015

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Page 1: Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer

Joseline Simone Barreto Trindade

Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer e Fazer a Roça no Quilombo do Curiaú - AP

Tese de Doutorado

Belém, PA

2015

Page 2: Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer

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Joseline Simone Barreto Trindade

Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer e Fazer a Roça no Quilombo do Curiaú - AP

Tese apresentada como requisito parcial para obtenção do título de Doutor em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal do Pará.

Orientador: Prof. Dr. Hilton Pereira da Silva

BELÉM-PA

2015

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Joseline Simone Barreto Trindade

Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer e Fazer a Roça no Quilombo do Curiaú - AP

Banca Examinadora:

_______________________________________________________________________ Profa. Dra. Cynthia Carvalho Martins – Universidade Estadual do Maranhão (UEMA) Examinador Externo _______________________________________________________________________

Profa. Dra. Noemi Sakiara Miyasaka Porro – Universidade Federal do Pará Examinador Externo _______________________________________________________________________ Profa. Dra. Edna Ferreira Alencar - Universidade Federal do Pará Examinador Interno _______________________________________________________________________ Prof. Dr. Flávio Bezerra Barros – Universidade Federal do Pará Examinador Interno _______________________________________________________________________ Prof. Dr. Hilton Pereira da Silva - Universidade Federal do Pará Orientador _______________________________________________________________________

Prof. Dr. Agenor Sarraf Pacheco – Universidade Federal do Pará

Examinador Suplente

Belém, PA Agosto de 2015

Page 5: Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer

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Dedico:

Aos meus pais Francisca Maria e José Trindade in memorian, meu porto seguro.

Ao Sr. Sebastião Menezes da Silva, agricultor, escritor e historiador quilombola.

Page 6: Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer

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AGRADECIMENTOS

Eu atravesso as coisas - e no meio da travessia não vejo! – só estava era entretido na ideia dos lugares de saída e de chegada. Assaz o senhor sabe: a gente quer passar um rio a nado, e passa; mas vai dar na outra banda é num ponto mais embaixo, bem diverso do que em primeiro se pensou (...) o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia.

João Guimarães Rosa (GSV, 1988)

Agô! Peço licença!

Adupé! Gratidão!

O sentido de travessia nos remete à ideia de processo e movimento em que tudo se

modifica. A paisagem e as relações se alteram, nós nos modificamos e nos reinventamos. Os

caminhos para chegar a esta tese foram inundados da arte dos encontros e dos

desencontros, dos percalços, horizontes e muitas descobertas. Agradecer às pessoas e às

instituições que me auxiliaram é uma forma de retribuir as dádivas recebidas nessa

travessia.

Agradeço primeiramente à minha ancestralidade pelo dom da vida. Sou neta de

Benedita e Carlos; Rosália e Jonas. Sou filha de José e Maria. Meus pais nasceram, se criaram

e se conheceram na bucólica ilha do Mosqueiro. Alí, casaram, depois migraram para Belém,

capital do Pará, onde construíram suas vidas com os doze filhos. Sou a caçula. Minha mãe

sempre me perguntava o que era essa Antropologia que eu tanto estudava. Infelizmente,

eles não estão mais aqui para ver essa etapa da minha vida se concretizar. Sou grata aos dois

pela dádiva da vida e por tudo que eles representam e que me faz ser a pessoa que sou. À

Francisca Maria e ao José Trindade, eu dedico este trabalho. Estendo essa gratidão aos meus

irmãos e irmãs: Rosália, Sandra, Paulo, Rosa, Naza, Rose, José, Geraldo, Claudia, Flávio e

Fábio. A nova geração dos Trindades, eu agradeço a doçura, o carinho e a rebeldia.

Nesta pesquisa há marcas de uma longa trajetória. Posso dizer que algumas rotas

acadêmicas traçadas em minha vida culminam aqui. O ponto de partida foi a graduação em

Ciências Sociais (UFPA), que me oportunizou a inserção, como bolsista de iniciação científica

no projeto Escravidão e Formação de uma Agricultura Camponesa na Costa Setentrional do

Pará. Esse Projeto integrou o Programa de Pesquisa Histórica e Preservação do Patrimônio

Page 7: Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer

vii

Documental da Amazônia (UFPA-CNPQ: 1991-1993), composto pelo Museu Paraense Emílio

Goeldi (MPEG), Secretaria de Estado de Cultura e o Núcleo de Altos Estudos Amazônicos

(NAEA-UFPA). Agradeço à professora Dra. Rosa Elizabeth Acevedo Marin pelo início de tudo.

Agradeço ao Centro de Estudos e Defesa do Negro do Pará (CEDENPA) nas pessoas de

duas grandes mulheres: Nilma Bentes e Zélia Amador de Deus, que me indicaram, logo

quando ingressei na universidade, os primeiros caminhos da luta contra o racismo, doença

que assola o Brasil. Tempos depois, a convite do CEDENPA, coordenei, junto com Sheila

Nogueira, em 2000, o projeto “Comunidades Negras Rurais do Pará”, que tinha como meta a

elaboração de estudos histórico-antropológicos para respaldar o pleito de demarcação e

titulação de algumas comunidades quilombolas. Iniciamos o Projeto com as comunidades de

Narcisa, em Capitão Poço, nordeste paraense; e Macapazinho, em Santa Izabel do Pará,

experiências de pesquisa que marcaram profundamente minha trajetória.

Em 2006 quando decidi migrar para cidade de Marabá, sudeste do Pará, não tinha a

dimensão do que isso iria representar. A cidade graciosa e dadivosa logo me presenteou,

colocando no meu caminho pessoas que se tornaram meus amigos, o que significou

mudanças profundas, muitas metamorfoses. Tod@s me fizeram viver e entender o

significado da palavra e filosofia africana Ubuntu: “eu sou porque nós somos”. Por isso, quero

agradecer a amizade, o nascido, o vivido e o transformado, e as pessoas que fizeram isso

acontecer: Irislane Pereira de Moraes, Eric de Belém, Rosemayre Bezerra, Kecieni Nunes,

Thiago Martins Cruz, Jane Martins, Maria de Jesus Melo, Marcelo Melo, Vanda Melo, Iansã

Bárbara (minha afilhada), Raimundo Cruz, Angélica Miranda, Tatiane Mendes, Eduardo

Fonseca e Fabiano Rodrigues. E, à Marizete Fonseca, amiga de longas datas, a quem tive o

prazer de reencontrar em Marabá, e vivenciar muitas metamorfoses.

Agradeço à Universidade Federal do Pará (UFPA), campus de Marabá, que desde

2013 tornou-se a Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (UNIFESSPA), pela

possibilidade de afastamento de minhas atividades de docência para que eu pudesse cursar

o doutorado em Belém do Pará e desenvolver a pesquisa de campo na cidade Macapá, no

Amapá.

Na universidade, em Marabá, construí grandes amizades e interlocutores: Fernando

Michelotti, Bruno Malheiro e Nilza Ribeiro são algumas dessas pessoas com as quais de 2009

a 2010 realizei frutíferos debates no Grupo de Estudos Desobediência Epistêmica e

Page 8: Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer

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Pensamento Descolonial na Amazônia (GEDEPAM). Foram leituras, estudos e reflexões que

me ajudaram a tentar construir nesta tese uma perspectiva descolonial. Grata pela amizade,

pela troca de conhecimentos e pelo “giro descolonial”.

Agradeço ao Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia (PNCSA) pelo qual tive a

oportunidade de conhecer e vivenciar, entre os anos de 2006 e 2012, uma relação de

pesquisa que me faz cotidianamente refletir sobre nossas responsabilidades sociais no fazer

antropológico.

Agradeço à Irene Margarete Hohn, que me recebeu em sua casa em Marabá para

agradáveis aulas de inglês.

Agradeço aos professores do Programa de Pós-graduação em Antropologia (PPGA)

pelos conhecimentos e debates nas disciplinas realizadas durante o doutorado. Em especial,

ao professor Hilton Pereira da Silva pela orientação e pela condução desta tese. Aos

professores Edna Ferreira Alencar e Flávio Bezerra Barros pela leitura atenta do texto de

qualificação que possibilitou novas perspectivas para este trabalho. Edna Alencar com sua

arguição sobre os trabalhos antropológicos que estudam a lógica camponesa, me

possibilitou, posteriormente, no momento da pesquisa de campo, reflexões sobre o “saber-

fazer” a roça. Grata pelo insight.

Aos meus colegas de disciplinas pelos frutíferos debates e reflexões antropológicas,

em especial, à colega Irislane Pereira de Moraes pelos incentivos e insights para futuros

projetos e redes de pesquisa Marabá-Macapá. E, principalmente, minha gratidão pela

amizade sincera.

À Cleo Ferreira e ao Antônio Carlos Valle que muito me auxiliaram em questões

administrativas.

Em Macapá, cidade das bacabeiras, durante o tempo de pesquisa de campo de

2013 a 2014, só tenho a agradecer aos amigos que a vida me presenteou através da luz de

Iris Moraes: Igor Vasconcelos, Willy Miranda, Preta Cléia, Josilana Santos, João Ataíde, Bruno

de Paula, Zeila Coutinho, Valdenia Silva, Jorge Alberto, Cirlene Maciel e o Coletivo Pretitude.

Tod@s com sua forma de ser e ver a vida reforçou em mim, o quanto é fundamental a luta e

a guerra contra a doença insana chamada racismo.

Page 9: Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer

ix

Agradeço ao Rogério Castelo, responsável pelo setor do memorial ambiental da

biblioteca da Secretaria de Meio Ambiente do Amapá (SEMA), de forma atenciosa me

auxiliou na pesquisa, disponibilizando-me um rico material sobre a questão ambiental no

Amapá, onde, inclusive teve a preocupação de digitalizar todos os números do Jornal do

Quilombo (que chegou à edição de número 100), escrito e editado por Sebastião Menezes

da Silva. Uma atitude de valorização do trabalho de um escritor quilombola.

Agradeço ao Angelino Souza e à Nayara Alves, discentes da Universidade Federal do

Amapá (UNIFAP), pela transcrição das entrevistas e audiências públicas. Agradeço à Alexsara

Maciel pela boa indicação.

À Maria de Nazaré Barreto Trindade pela leitura atenta e revisão do texto desta

tese.

Meu profundo agradecimento aos quilombolas do Curiaú que sempre me

receberam com muito carinho. Em especial ao Raimundo Souza, Roldão Amâncio, Benedito

Machado e Palmira Machado, Geraldo Ramos, Josefa Miranda, João Cruz, Orlandina Banha,

Eduardo Ramos e Nazaré Ramos. Dedicaram seu tempo ao me conceder entrevistas,

permitindo ir às suas casas, saborear um delicioso café com erva doce (que só encontrei no

Curiaú, na casa de dona Zefinha e seu João), me deleitar com um açaí maravilhoso, conhecer

suas roças e quintais e, em tempo de festa dos santos poder dançar o maravilhoso

Marabaixo e o Batuque. E, principalmente, socializaram-me suas angústias e dificuldades na

difícil labuta de resistir, plantar e cultivar nas terras férteis do Curiaú. Agradeço todas as

gentilezas e todos os conhecimentos sobre a mãe Terra.

Agradeço à Rosa Ramos, diretora da Escola José Bonifácio, escola do quilombo, pela

possibilidade de conhecer o espaço e a estrutura da escola, assim como os projetos da horta

escolar, a Orquestra do Quilombo do Curiaú e o Projeto Curiaú Mostra Tua Cara, exemplos

de trabalhos exitosos no âmbito da Lei 10.639 de 2003 e de implementação de uma

educação-escolar quilombola.

Agradeço ao Bráulio das Chagas Silva e ao Pertone das Chagas Silva pelo carinho e

atenção com que me recebiam em sua casa.

Agradeço à Lecione Silva, que cuidou de minha saúde espiritual e do corpo.

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x

Meus agradecimentos aos queridos Sebastião Menezes da Silva e Celina Chagas,

que me receberam em sua casa, sou grata por toda atenção e gentileza durante a pesquisa.

Sebastião Menezes se tornou um dos maiores incentivadores desta tese. Agradeço a este

grande homem, agricultor e escritor, todo aprendizado de vida. Sua postura ética, sua forma

de lidar com a terra, sua sabedoria e ensinamentos me deram muito mais do que os limites

de uma etapa acadêmica, foram dádivas que me enriqueceram como pessoa e ficarão para

vida toda.

À mãe Natureza que me deu luz e força para trilhar meu caminho, para inclusive

superar com serenidade as dores de perdas nessa etapa de minha vida. Minha gratidão a

todos e a todas que de alguma forma conspiram e inspiram a conclusão deste trabalho.

Axé!

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“Lavrando a memória, cultivando a terra: o direito de dizer e fazer a roça no Quilombo do Curiaú-AP”

RESUMO

A tese aborda a temática dos conflitos socioambientais produzidos a partir da sobreposição de unidades de conservação (UCs) com as terras tradicionalmente ocupadas no Brasil, especificamente, as UCs que incidem sobre os territórios quilombolas, tomando-se como estudo de caso o conflito no Território Quilombola do Curiaú (TQC) e a gestão da Área de Proteção Ambiental do rio Curiaú (APA), no estado do Amapá, no período de 2011 a 2014. O objetivo da tese é problematizar como os instrumentos de gestão ambiental, a exemplo do plano de manejo e das políticas de zoneamento, impactam as dinâmicas territoriais dos quilombolas. Metodologicamente foi realizada uma etnografia dos conflitos socioambientais a fim de explicitar as estratégias dos agentes sociais: agricultores quilombolas, instituições públicas e mediadores, no debate sobre as novas regras de uso do território com o advento da Unidade de Conservação de Uso Sustentável (UCUS), especificamente, para analisar de que forma a UC vem impactando o “fazer a roça” dos agricultores quilombolas do Curiaú, entendido como um “fenômeno social total”, abrangendo um complexo de relações sociais e expressão da diversidade cultural e territorial. As políticas de conservação ambiental não podem prescindir do entendimento das lógicas locais e de suas especificidades. Ao desconsiderar os aspectos dos laços sociais, da organização e dos sistemas simbólicos dos quilombolas, estes poderão ser desestruturados ou enfraquecidos. Ao criminalizar a atividade da roça, a gestão da APA poderá levar a uma desestruturação e impactar um modo de vida como um todo, pois o “fazer a roça” é um fator que agrupa diversas dimensões da vida da comunidade: religiosa, econômica, ritualística e dos vínculos sociais. O conflito entre essas duas lógicas: a da “conservação sem sujeito” e a da prática secular do “fazer a roça” precisa ser visibilizado, para evitar-se que esse sistema desmorone de forma sutil em nome de uma pretensa defesa do “ambiente sem sujeito”.

Palavras-chave: Quilombolas; Conflito socioambiental; Unidade de Conservação; Roça.

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ABSTRACT

This thesis deals with the theme of socio-environmental conflicts produced from the superposition of protected areas (PAs) with the traditionally occupied lands in Brazil, specifically, PAs that focus on quilombo territories, using as a case study, the conflict in the Quilombo Territory of Curiaú (QTC) and the management of the Environmental Protection Area of the Curiaú river (EPA), in the state of Amapá, from 2011 to 2014. The aim of the thesis is to discuss how the environmental management tools, such as management plans and zoning policies impact the territorial dynamics of the Quilombolas. Methodologically, an ethnography of socio-environmental conflicts was realized in order to explain the strategies of the social actors (such as quilombola farmers, public institutions and mediators) in the debate on the new rules of territory use with the advent of the Sustainable Use Conservation Unit (SUCU), specifically, to analyze how the SUCU impacts "doing the roça" (traditional farming) of quilombola from Curiaú, seen as a "total social phenomenon", encompassing a complex of social relationships and expression of cultural and territorial diversity. The environmental conservation policies can not prescind from the understanding of local logics and their specificities. Disregarding aspects of the quilombola social ties, organization and symbolic systems, may leave their lifeways unstructured or weakened. By criminalizing the activity of the local farming (roça activity), the management of the Environmental Protection Area (EPA) could lead to a destructuration and impact their mode opf living as a whole, because "doing the roça" is a factor that brings together various dimensions of community life: religious, economic, ritual and social ties. The conflict between these two logics: the "subject-free conservation" and the secular practice of "doing the roça" must be visualized in order to avoid that this system subtly collapse on behalf of an alleged defense of the " subject-free environment. "

Key words: Quilombolas (Maroon); Socio-environmental conflict; Conservation Unit; Roça

(local farming)

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Então, gente, eu pergunto a vocês que são professores, educadores,

quem foi que já teve a ideia e, pensou: vamos tombar o nome Roça como

patrimônio internacional da humanidade? Porque desde o princípio da vida

humana, a roça existiu, seja de feijão, de arroz, de farinha de mandioca. A roça é

a vida, tira da terra para dar o sustento para as pessoas, mas ninguém valoriza,

só dá prestígio e valor à roça quem faz parte da vida da gente, de quem estar no

campo. Aqueles guardiões alí, que nasceram dentro dela, viveram dentro dela e já

estão morrendo vivendo da roça, e estão até se aposentando porque trabalharam

na roça, para eles e até para mim, a roça faz parte da vida, porque é um

relacionamento que a gente tinha, de roça com as pessoas, que era muito mais

fácil a pessoa sair todo dia para o caminho da roça, e ir visitá-la todo domingo, do

que ele sair para visitar seu filho ou compadre ou irmão. Vinha na roça, às vezes

só para visitar a roça, e quem trabalhou em extensão rural como aquele cidadão,

ele sabe, porque estava no sangue.

Será que a Fortaleza de São Jose de Macapá é mais velho que a roça?

Não. Mas, já foi tombado. O acarajé lá da Bahia é mais velho do que a roça? E, o

produto que já sai de lá, já para fazer o acarajé, já foi tombado. Porque não

batalhamos por isso? Pelo menos para valorizar os negros.

Sr. Sebastião Menezes da Silva

Page 14: Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer

xiv

LISTA DE SIGLAS

ABA Associação Brasileira de Antropologia

ACRIAÚ Associação de Criadores e Agricultores do Curiaú

ADAP Agência de Desenvolvimento do Amapá

ADCT Ato das Disposições Constitucionais Transitórias

AMQC Associação de Moradores do Quilombo do Curiaú

AMQCMV Associação de Mulheres do Quilombo do Curiaú Mãe Venina

AMQRQC Associação de Moradores Remanescentes do Quilombo do Cunani

APA Área de Proteção Ambiental

ARIE Área de Relevante Interesse Ecológico

ARIEC Área de Relevante Interesse Ecológico e Cultural

BA Batalhão Ambiental

CCR Câmara de Coordenação e Revisão

CDB Convenção sobre Diversidade Biológica

CEDENPA Centro de Estudo e Defesa do Negro do Pará

CEMA Coordenação de Meio Ambiente

CNPCT Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais

COEMA Conselho Estadual do Meio Ambiente

CONGAR Conselho Gestor da APA do Rio Curiaú

CONAQ Coordenação Nacional de Comunidades Quilombolas

CONAMA Conselho Nacional de Meio Ambiente

COEMA Conselho Estadual do Meio Ambiente

CPT Comissão Pastoral da Terra

CVRD Companhia Vale do Rio Doce

CPI Comissão Pró-índio de São Paulo

CCAF Câmara de Conciliação e Arbitragem da Administração Federal

CNUC Cadastro Nacional de Unidades de Conservação

DHESCA Plataforma de Direitos Humanos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais

EIA Estudo de Impacto Ambiental

ESEC Estação Ecológica

FLONA Floresta Nacional

FCP Fundação Cultural Palmares

Page 15: Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer

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IMENA Instituto de Mulheres Negras do Amapá

INCRA Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária

IPHAN Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional

ICMBIO Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade

ITERPA Instituto de Terras do Pará

IBDF Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal

IBAMA Instituto Brasileiro de Meio Ambiente

IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

IMAP Instituto de Meio Ambiente e Ordenamento Territorial do Amapá

ISA Instituto Socioambiental

IMPROIR Instituto Municipal de Políticas de Promoção da Igualdade

NAEA Núcleo de Altos Estudos Amazônicos

MINC Ministério da Cultura

MDA Ministério do Desenvolvimento Agrário

MPE Ministério Público Estadual

MPF Ministério Público Federal

MPBA Mineradora Pedra Branca do Amapari

MPEG Museu Paraense Emílio Goeldi

OIT Organização Internacional do Trabalho

PACS Programa de Agentes Comunitários de Saúde

PCT Povos e Comunidades Tradicionais

PARNA Parque Nacional

PNCO Parque Nacional do Cabo Orange

PCT Povos e Comunidades Tradicionais

PPGA Programa de Pós-graduação em Antropologia

PNCSA Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia

PM Plano de Manejo

PMBP Projeto Mina de Bauxita de Paragominas

PMBA Projeto Mina de Bauxita da Amazônia

PNAP Plano nacional de Áreas protegidas

PNPCT Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais

PRODEMAC Promotoria de Justiça de Meio Ambiente, Conflitos agrários, Habitação e Urbanismo de Macapá

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PTDRS Plano Territorial de Desenvolvimento Rural Sustentável

PROTAF Programa Territorial da Agricultura Familiar e Florestal

RIMA Relatório de Impacto Ambiental

RDS Reserva de Desenvolvimento Sustentável

RESEX Reserva Extrativista

REBIO Reserva Biológica

SAT Sistema Tradicional Agrícola

SECTAM Secretaria de Ciência e Tecnologia e Meio ambiente

SNUC Sistema Nacional de Unidade de Conservação

SEMA Secretaria Estadual do Meio ambiente

SEMAM Secretaria Municipal de Meio Ambiente

SDR Secretaria de Desenvolvimento Rural

SEAFRO Secretaria Extraordinária de Políticas para o Afrodescendente

SEED Secretaria Estadual de Educaçao

SEPPIR Secretaria de Políticas de Políticas de Promoção de Igualdade Racial

TAC Termo de Ajustamento de Conduta

TI Terras Indígenas

TQ Terras Quilombolas

TTO Terras Tradicionalmente Ocupadas

TQC Território Quilombola do Curiaú

UEAP Universidade Estadual do Amapá

UFPA Universidade Federal do Pará

UNIFAP Universidade Federal do Amapá

UNIFESSPA Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará

UFSC Universidade Federal de Santa Catarina

UC Unidade de Conservação

UCUS Unidade de Conservação de Uso Sustentável

UCPI Unidade de Conservação de Proteção Integral

UNA União dos Negros do Amapá

ZEE Zoneamento Ecológico e Econômico

Page 17: Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1- Debate na UNIFAP. 2011. Foto: autor desconhecido 21

Figura 2- Rodovia AP-70 – Entrada do Curiaú 24

Figura 3- Lago Curiaú. Foto Willy Miranda. Agosto de 2013 26

Figura 4- Sr. Israel da S. Ramos, debulhando açaí à beira do Lago Curiaú/Maio de 2014 27

Figura 5- Barracão da festa em louvor a São Sebastião. Janeiro/2014 28

Figura 6 - Distribuição do “caldo” no Batuque a São Sebastião. Nazaré Ramos. 2014 28

Figura 7- Tocadores no batuque para São Sebastião. Curiaú de Dentro 2014 29

Figura 8 - Tocadores de macaco durante o batuque. D. Josefa Miranda ao centro/2014 30

Figura 9 - Dançadeira cantando na festa em louvor a São Sebastião. Curiaú de Dentro 2014 30

Figura 10- Sebastião Menezes trabalhando na roça. Fev/2014 35

Figura 11- Mostrando e explicando sobre uma planta. Curiaú. Fev/2014 35

Figura 12- Oficina de cartografia social. Curiaú.Fev.2014 37

Figura 13 - Oficina de cartografia social. Curiaú. Fev. 2014 37

Figura 14- Audiência Pública no Curiaú de Fora 20/02/ 2014 39

Figura 15 - Reunião do CONGAR, 25/02/2014-Macapá 41

Figura 16 - Reunião do CONGAR com a empresa Idealiza, Curralinho/ 29/03/2014 42

Figura 17- Croquis das comunidades quilombolas de Macapá 51

Figura 18 - Mapa da divisão politica do Amapá. Fonte: Amapá, 2008 53

Figura 19- Mapa de terras de quilombos delimitadas no Amapá, em 2013 61

Figura 20 - Mapa de conflitos socioambientais no Amapá. Fonte: IMENA, 2008 70

Figura 21- Mapa de áreas protegidas no Amapá. Fonte: CIB, 2007 76

Figura 22- Mapa de delimitação da APA do Rio Curiaú e Terras Quilombolas/ 2014 79

Figura 23- Mapa da APA do Rio Curiaú. Fonte: Amapá /Atlas de UC (2008) 82

Figura 24- Capa da edição especial do Jornal do Quilombo. Maio/2014 86

Figura 25- Mesa dos Guardiões - Curiaú de Dentro, 16/05/2014 87

Figura 26- Sebastião Menezes da Silva. Curiaú de Dentro 16/05/2014 88

Figura 27- Benedito Machado, mostrando o viveiro de peixes, 2014 96

Figura 28- Palmira Machado e Benedito Machado. Curiaú, maio de 2014 98

Figura 29- Nazaré Ramos descascando a mandioca. Curiaú.2014 104

Figura 30 - Israel da Silva Ramos moendo a mandioca. Curiaú.2014 104

Figura 31- Torrando a farinha. Curiaú, 2014 105

Figura 32- Palmira Machado dos Santos, contando suas histórias de “fazer a roça”.Curiaú 106

Figura 33 - Maxixe da roça de Sebastião Menezes. Curiaú. 2014 113

Figura 34 - Plano de Manejo da APA do rio Curiaú 134

Figura 35 - Mapa Zoneamento da APA do Rio Curiaú. Fonte: Amapá (2010) 140

Page 18: Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer

xviii

Figura 36- Oficina de cartografia. Curiaú, Fev de 2014 144

Figura 37 - Apresentação do croquis durante a oficina de cartografia. Curiaú. 2014 145

Figura 38 - Croquis do território do Curiaú, Fev. de 2014 147

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xix

LISTA DE QUADROS

Quadro 1 - Comunidades Quilombolas no Amapá Certificadas pela FCP (até out. 2013) 58

Quadro 2 - Comunidades Tituladas no Amapá até 2013. Fonte: SR INCRA 59

Quadro 3 - Unidades de Conservação do Estado do Amapá em ordem cronológica

de Criação (em 2008). Fonte: Amapá (2008) 75

Quadro 4 - Cultivares da agrobiodiversidade citados pelos Agricultores quilombolas 102

Quadro 5 - Zonas de uso da APA do Rio Curiaú. Fonte: Plano de Manejo (2010) 139

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 1

CAPÍTULO 1

O PERCURSO ETNOGRÁFICO 17

1.1 O encontro etnográfico: primeiros passos 17

1.2 Curiaú: no meio do mundo 23

1.3 A imersão em campo 31

1.3.1 Entrevistas: memória biocultural 33

1.3.2 Etnografia nômade: audiências públicas e reuniões 37

1.3.3 A construção das Leis do Curiaú 39

1.4 Reflexividade e a relação de pesquisa 43

CAPÍTULO 2

DINÂMICAS TERRITORIAIS DO ESTADO DO AMAPÁ 48

2.1 Os Quilombos nas “Terras do Cabo Norte” 48

2.2 A criação do Território Federal do Amapá 51

2.3 Terras de quilombo no Amapá 53

2.3.1 Ações de regularização fundiária: mapeamento, certificação e titulação 56

2.4 Cenários de conflitos em territórios quilombolas 62

2.4.1 Conflitos socioambientais no Estado do Amapá 68

2.5 A Política Ambiental no Amapá: a criação das Unidades de Conservação 72

2.5.1 A Área de Proteção Ambiental do Rio Curiaú 77

2.5.2 Estrutura da APA do rio Curiaú 80

CAPÍTULO 3

LAVRANDO A MEMÓRIA, CULTIVANDO A TERRA 83

3.1 Curiaú: tempos de chegada e a ocupação do território 83

3.2 O saber “fazer a roça” no território quilombola do Curiaú 85

3.2.1 “A Roça patrimônio da humanidade” 93

3.2.2 O caráter relacional do fazer a roça: alimento e cultivo das plantas que curam 98

3.2.3 O cultivo da terra: saberes-fazeres agroecológicos no Curiaú 101

3.2.4 O “fazer a roça” e as rotas de Cura 109

Page 21: Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer

xxi

CAPÍTULO 4

O DIREITO DE DIZER ONDE E COMO FAZER A ROÇA 114

4.1 Agentes e a dinâmica social do conflito no Território quilombola do Curiaú 114

4.1.1 Ato 1 - a ruptura: ações de licenciamento, prisões e pagamento de multas 117

4.1.2 Ato 2 - ações de correção: definições de procedimentos 120

4.1.3 Ato 3: reintegração: a audiência pública para apresentar as Leis do Curiaú 122

4.2 As Leis do Curiaú 125

4.3 Instrumento de Gestão Ambiental: o Plano de Manejo da APA do rio Curiaú 132

4.3.1 O Mapa de Zoneamento como instrumento de gestão territorial 138

4.4 Contrapontos: zonear ou plantar, fixar ou diversificar? 142

CONSIDERAÇÕES FINAIS 150

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 154

ANEXOS

ANEXO A: ROTEIRO DE ENTREVISTA 170

ANEXO B: LEIS DO CURIAÚ 171

ANEXO C: LEIS, DECRETOS E REGULAMENTAÇÕES RELATIVAS À QUESTÃO QUILOMBOLA E AO MEIO AMBIENTE 178

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1

INTRODUÇÃO

“Lavrando a memória, cultivando a terra: o direito de dizer e fazer a roça no

Quilombo do Curiaú-AP” é fruto da pesquisa desenvolvida junto ao Programa de Pós-

graduação em Antropologia da Universidade Federal do Pará (PPGA-UFPA), e está inserida

na linha de estudos sobre “Povos Indígenas e Populações Tradicionais na Amazônia”1.

A temática central é a análise dos conflitos socioambientais produzidos a partir da

sobreposição de unidades de conservação (UC) com as terras tradicionalmente ocupadas no

Brasil, especificamente, as UCs que incidem sobre os territórios quilombolas, tomando-se

como estudo de caso o conflito no Território Quilombola do Curiaú (TQC) e a gestão da Área

de Proteção Ambiental do rio Curiaú (APA), no estado do Amapá, no período de 2011 a

2014.

O objetivo da tese é problematizar como os instrumentos de gestão ambiental, a

exemplo do plano de manejo e as políticas de zoneamento, impactam as dinâmicas

territoriais dos quilombolas. Nesse sentido, buscarei explicitar as estratégias dos agentes

sociais: agricultores quilombolas, instituições públicas e os mediadores, no debate sobre as

novas regras de uso do território com o advento da Unidade de Conservação de Uso

Sustentável (UCUS), especificamente, analisar de que forma a UC vem impactando o “fazer a

roça” dos agricultores quilombolas do Curiaú, entendido como um “fenômeno social total”

(Mauss 2003a) compreendendo um complexo de relações sociais e expressão de diversidade

cultural e territorial.

No aspecto mais abrangente de formação da sociedade brasileira, pensar a

diversidade étnica e territorial sempre foi um dilema para o Estado brasileiro, que, vem ao

longo da história conduzindo políticas que invisibilizam e rejeitam a diversidade, impedindo

um diálogo com os grupos étnicos e o reconhecimento de seus múltiplos “territórios

sociais”, entre os quais os indígenas e quilombolas.

As articulações sociais e políticas no contexto dos estados-nações são permeadas de

contradições. Historicamente, se considerou que se colocaria um ponto final na diversidade

1 Linha de pesquisa que tem como objetivo investigar a partir da diversidade cultural e biológica, na perspectiva

de apreender os diferenciados saberes que possibilitam o estabelecimento de relações sociais com a paisagem. Busca compreender as formas diversas e plurais de organização social e política de forma sincrônica e diacrônica, preocupando-se com o patrimônio cultural material e imaterial dos povos tradicionais (Regimento PPGA-UFPA).

Page 23: Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer

2

étnica, e, consequentemente territorial, diluindo-se numa pretensa identidade nacional. Na

constituição dos estados-nações, um ponto central é a tensão entre a construção de uma

nação e a impotência de aceitar a diversidade. Na perspectiva de Paul Little (2002a) a

hegemonia territorial do Estado-nação confunde-se com a ideia de nacionalismo e é baseada

no conceito de soberania.

Alcida Ramos (1994) denuncia que, para o pensamento social brasileiro, na formação

da nação, as “etnias são tidas como excrecências sociais que a História impingiu à pátria e

que devem ser aplainadas e diluídas na correnteza nacional” (1994: 79). Esse tem sido,

portanto, um dos grandes dilemas: como construir uma nação e administrar a diversidade

cultural, étnica e territorial?

Nessa linha de pensamento, Little (2002a), analisa a questão fundiária no Brasil nos

últimos 20 anos, a partir da constituição de um campo de estudos antropológicos a que ele

chama de antropologia das territorialidades, no qual a análise incide na questão territorial

como forma de organização identitária. Na visão do autor, “a questão fundiária no Brasil vai

além do tema de redistribuição e se torna uma problemática centrada nos processos de

ocupação e afirmação territorial” (Little 2002a: 2).

João Pacheco de Oliveira (1999) usa o conceito de territorialização para entender os

fenômenos de tradições culturais e de ressurgimentos de identidades indígenas no Nordeste

brasileiro. Nesse estudo, o autor mostra as dificuldades políticas e teóricas na abordagem

dessa temática e os obstáculos relacionados ao conjunto de instrumentos políticos e

jurídicos que caracterizam a incorporação dos grupos etnicamente diferenciados à

construção da nação brasileira. Para o autor, a dimensão estratégica para pensar a

incorporação de populações etnicamente diferenciadas dentro do Estado-nação, é a

territorial, onde mostra a centralidade da relação entre a sociedade e o território, e ao invés

de estudar culturas isoladamente, analisa processos identitários em contextos específicos,

onde usa o conceito de processo de territorialização.

Em relação aos povos indígenas, os estudos realizados no âmbito do “Projeto

Fronteiras Étnicas, Território e Tradição cultural”, coordenado por Oliveira (1999) mostram

que,

Ao final do século XIX, já não se falava mais em índios do Nordeste. Destituídos de seus antigos territórios, não sendo mais reconhecidos como

Page 24: Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer

3

coletividades, mas referidos individualmente como remanescentes ou descendentes. São os “índios misturados”, de que falam as autoridades, a população regional e eles próprios, os registros de suas festas e crenças sendo realizadas sob o título de tradições populares (1999: 24).

É preciso lembrar que foi um período seguido de políticas integracionistas e

assimilacionistas adotadas por vários países na América Latina, como mostra David

Maybury-Lewis (1983), quando em 1933, a VIII Conferência Pan-Americana que se reuniu em

Lima, no Peru, ao discutir a questão das minorias étnicas concluiu que elas não existiam na

América. O Brasil liderava essa concepção, propondo inclusive, uma resolução que alegava

que o “sistema de proteção das minorias étnicas” não teria nenhuma eficácia porque “não

existe as condições que caracterizam os grupos conhecidos como minorias étnicas”

(1983:106). Consequentemente, vários países começaram a implementar políticas

invisibilizadoras e decretar o fim de suas etnias. Na Bolívia, os indígenas foram categorizados

como campesinos ou trabalhadores rurais. Maybury-Lewis reflete sobre a necessidade que

se tinha de abolir com a indianidade dos índios, questionando: “será que, realmente, os

governos das Américas sentem na etnicidade indígena uma ameaça ao Estado?” (1983: 107).

Até a década de 1920 havia no Nordeste brasileiro somente um grupo indígena

reconhecido pelo Estado. A partir da década de 1930, começam a aparecer grupos que

reivindicam sua existência. Segundo Oliveira “na década de 1950, a relação de povos

indígenas no Nordeste incluía dez etnias; quarenta anos depois, 1994 essa lista montava 23”

(Oliveira 1999: 11). E, atualmente, são 46 grupos indígenas dos quais 28 reconhecidos pelo

órgão indigenista oficial (Souza 2003).

As pesquisas dão conta do processo de etnicidade indígena no Nordeste, e mostram

o ressurgimento de etnias indígenas (Oliveira 1999; Grunewald 1999; Brasileiro 1999; Arruti

1999; Martins 1999). Esses estudos indicam que o processo de elaboração da identidade é

algo muito complexo que exige rememorização da história, relação de alteridade e na

maioria das vezes, ocorre em situação de conflito e num processo de “mistura”.

É fundamental, portanto, o contexto intersocietário em que os grupos étnicos se

constituem, de forma que se deve entender a incorporação das populações etnicamente

diferenciadas a um Estado se dando de forma territorial. Administrar uma nação significa

conseguir gerir o território, definir limites e fronteiras. Oliveira (1999) insere no conceito de

Page 25: Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer

4

territorialização, as noções de grupo étnico e suas fronteiras, retomando o conceito de

Fredrik Barth (1998) de grupo étnico como

Um tipo organizacional em que uma sociedade se utilizava de diferenças culturais para fabricar e refabricar sua individualidade diante de outras com que estava em um processo de interação social permanente (Oliveira 1999: 20).

Oliveira (1999) concorda que o grupo étnico não se define por seu estofo cultural,

mas por meio de critérios pelos quais as fronteiras são estabelecidas e pela tentativa de

normatização da interação entre os membros do grupo e das pessoas de fora. A existência

de unidades étnicas se respalda a partir do contato interétnico, não se baseia no isolamento.

A partir das relações oriundas do confronto é que as fronteiras e as categorias são

estabelecidas com intuito de normatizar a pertença ou não de indivíduos a grupos étnicos.

Assim, a etnicidade surge como um princípio de organização social, na interação

entre diferentes etnias. O processo de territorialização deve ser entendido como a

construção de uma identidade étnica individualizada em face de um conjunto genérico, e

não como um movimento homogeneizador. É através do território que se media a relação

entre a pessoa e o grupo étnico, expressa por representações que remetem à recuperação

da memória ou a sua construção. O processo de territorialização implica na reorganização

social que consiste segundo o autor em quatro aspectos:

i)A criação de uma nova unidade sociocultural mediante o estabelecimento de uma identidade étnica diferenciadora; ii) a constituição de mecanismo políticos especializados; iii) a redefinição do controle social sobre os recursos ambientais; iv) a reelaboração da cultura e da relação com o passado (Oliveira 1999: 20).

No Brasil, as décadas de 1980 e 90 viveram um período histórico nunca antes

observado de constituição de novas identidades coletivas. Nesse contexto, os quilombolas

enquanto agentes sociais são exemplos desse movimento de transformação na sociedade

brasileira. São conquistas no campo constitucional e na legislação, e principalmente uma

mobilização quilombola por direitos territoriais e identitários que vem buscando na

etnicidade, um instrumento vigoroso de reivindicação política na tentativa de construção de

um país pluralista. Esse debate ganha fôlego à medida que o Brasil, principalmente a partir

da promulgação da Constituição de 1988, estabeleceu um marco jurídico que reconhece sua

própria pluralidade interna, se afastando de noções generalizantes. Segundo Joaquim

Shiraishi Neto (2010)

Page 26: Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer

5

As declarações e as Convenções internacionais aliadas ao processo de organização e mobilização de grupos sociais portadores de identidade étnica, resultaram, nas últimas décadas, em profundas transformações na ordem jurídica brasileira, bem como de diversos países da América Latina. Vários autores descrevem esse processo a partir da noção de ciclos, quando os ordenamentos incorporaram os dispositivos para o reconhecimento dos direitos dos povos e comunidades tradicionais. Para essa leitura, estaríamos vivendo uma terceira etapa que, no caso, corresponderia ao momento em que os Estados nacionais passaram a se definir como “Estados plurinacionais”, afirmando o “principio do pluralismo igualitário”. A

diversidade trouxe o “pluralismo jurídico” para o centro (2010: 9-10).

O Brasil vem protagonizando um processo de etnicidade quilombola, que embora,

revestido de singularidades, remete a processos semelhantes que ocorrem em outros países

a exemplo da Colômbia, Haiti, Venezuela e Suriname. Como afirma José Jorge de Carvalho

(1996)

As comunidades formadas pelos negros que fugiram do trabalho escravo receberam vários nomes nas regiões do Novo Mundo: quilombos ou mocambos no Brasil; palenques na Colômbia e em Cuba; cumbes na Venezuela; Marroons no Haiti; cimarrones na Jamaica, Suriname, e no sul

dos Estados Unidos (1996:13).

O antropólogo Richard Price (1999) ao comparar os diferentes processos que passam

hoje, países como Jamaica e o Suriname mostra que as políticas de reconhecimento

identitário oscilam entre avanços e retrocessos no que diz respeito aos direitos dos

quilombolas:

Na Jamaica a independência trouxe uma inovação legislativa que reconhecia o direito coletivo às terras dos quilombolas, e a história destes foi oficialmente consagrada pelo Estado como um capítulo heroico da historia jamaicana. No Suriname pré-independência dos anos de 1960, o governo colonial despejou sumariamente, em colaboração com a multinacional Alcoa, aproximadamente seis mil quilombolas Saramaka das terras que lhes eram garantidas pelo tratado do século XVIII, para

construção e barragens e uma usina hidrelétrica (1999: 2-3).

Na Colômbia, foram feitas reformas substanciais na Constituição que, entre outras

coisas, “concedeu às comunidades negras da região do Pacífico, direito coletivo aos

territórios que elas ocupam tradicionalmente” (Escobar et al 2000: 301). Como corrobora

José Mauricio Arruti (2000: 94) “as atuais cartas constitucionais, colombiana (1991) e

brasileira (1988) atribuem, pela primeira vez, um lugar específico para o reconhecimento dos

direitos culturais e fundiários de suas comunidades negras”.

Page 27: Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer

6

A Constituição Federal do Brasil (CFB) de 1988 instituiu o Art. 68 do Ato das

Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), que diz: “Aos remanescentes das

comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecido a propriedade

definitiva, devendo o estado emitir-lhes os títulos respectivos”.

Ilka Boaventura Leite (2004) explica que a conquista na Constituição de 1988 foi

produto de um intenso processo de mobilização do movimento negro desde a década de

1930:

O termo “quilombola” não surgiu do nada e nem foi fruto de imediatismo político. Ele decorre das discussões lançadas pela Frente Negra Brasileira, nos anos 30, sufocada pela ditadura Vargas, reaparece nos movimentos que antecedem ao golpe militar de 1964 e emerge novamente da /na pressão social pós-ditadura militar, na fase de redemocratização e no bojo dos movimentos sociais das décadas de 70 e 80. Relançado por militantes e intelectuais afrodescendentes, tornou-se pouco a pouco um fato político, ao alcançar visibilidade e interagir com diversos atores progressistas que

tinham voz e voto na Assembleia Constituinte (2004: 19).

Alfredo Wagner Berno de Almeida (2006a; 2011), analisa como os grupos

etnicamente diferenciados impulsionaram uma redefinição dos instrumentos de ação

fundiária no Brasil, inclusive para uma adequada proteção jurídica desses grupos e de suas

práticas e saberes. No mapeamento desses grupos, o autor aborda aspectos étnicos, de

parentesco, de vizinhança e de identidade coletivas, que diferem do padrão da estrutura do

mercado de terras no Brasil diante do modelo vigente.

A tradicionalidade a que se refere o conceito de terras tradicionalmente ocupadas e

que se soma à expressão povos e comunidade, se refere à apropriação dos recursos naturais

e à utilização de seus territórios para sua reprodução cultural, social e econômica (Almeida

2006a). Segundo o autor o conceito ‘tradicionais’ que compõe a expressão povos e

comunidades não pode ser lido segundo uma linearidade histórica ou sob a ótica do passado

ou ainda sobrevivência ou reminiscência. Trata-se de uma tradição dinâmica que se

transforma, possibilitando aos povos e comunidades tradicionais a defesa do uso do seu

território.

A construção política de uma identidade coletiva, coadunada com a percepção dos

agentes sociais de que é possível assegurar de maneira estável o acesso a recursos básicos,

resulta, deste modo, numa “territorialidade específica” que é produto de reivindicações e de

Page 28: Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer

7

lutas. As territorialidades específicas são “resultantes de diferentes processos sociais de

territorialização e como delimitando dinamicamente terras de pertencimento coletivo que

convergem para um território” (Almeida 2006a: 25).

Nessa linha, Almeida (2011) aborda os grupos no seu aspecto coletivo, organizados

em movimentos sociais, além do surgimento e das consequências desses movimentos:

quilombolas, ciganos, pomeranos, ribeirinhos, quebradeiras de coco babaçu, seringueiros,

pescadores artesanais, caiçaras, agroextrativistas da Amazônia, povos dos faxinais, dos

fundos de pasto, geraizeiros, pantaneiros, retireiros são sujeitos sociais que possuem

identidades coletivas fundamentadas em direitos territoriais e numa autoconsciência

cultural. Povos e comunidades tradicionais, portanto são grupos sociais que se constituem

na luta para conquistar e garantir seus territórios em uma situação de mobilização acionadas

em contexto de conflito.

Essa diversidade territorial hoje no Brasil é acompanhada por um lento e conflitivo

processo de reconhecimento e aplicação dos direitos constitucionais, e de constantes e

intensas oposições de alguns setores da sociedade aos direitos de povos e comunidades

tradicionais, configurando, com isso, as situações sociais de conflito nos quais os territórios

quilombolas, em sua grande maioria, entram em colisão com os mais diversos interesses

(grandes projetos, agronegócios), sejam eles públicos ou privados.

No levantamento nacional envolvendo 45 territórios quilombolas que vivenciam

situações sociais de conflito, Almeida (2010b) apresenta as explicações gerais dessa pressão

sobre as terras tradicionalmente ocupadas pelos quilombolas que concernem

principalmente em três frentes: i) crescimento do agronegócio; ii) intensificação das

chamadas “obras de infraestruturas” ou grandes projetos governamentais, bem como

iniciativas ligadas à segurança ou à política ambiental; iii) interesses empresariais para terras

que estão com sua cobertura vegetal relativamente preservada, compondo estoques de

carbono.

Essas situações vêm suscitando pesquisas em que as análises incidem sobre as

territorialidades específicas e as situações sociais de conflitos (Almeida 2010b; Almeida e

Acevedo 2012; Farias Jr 2010a, 2010b; 2013; Pereira Junior 2009; Acevedo Marin et al. 2010;

Almeida 2010c; Moraes 2012; Rodrigues 2013).

Page 29: Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer

8

Um caso que mostra um conjunto de contradições na relação entre o Estado

brasileiro e os grupos étnicos é o que acontece com as comunidades quilombolas de

Alcântara, no Maranhão, especificamente as que foram compulsoriamente remanejadas de

suas terras para as agrovilas, organizadas pela Aeronáutica, para receber as famílias com o

propósito de implantar o Centro de Lançamento de Alcântara (CLA) (Almeida 2006b; Paula

Andrade e Souza Filho 2006; Pereira Jr.2009).

No início dos anos oitenta, por meio do Decreto de nº 7.820 de 12 de setembro de

1980, o Estado do Maranhão declarou de utilidade pública para fins de desapropriação, a

área de terra necessária à implantação, pelo Ministério da Aeronáutica, de um centro

espacial no município de Alcântara, num total aproximado de 52.000 hectares. Sendo que

em 2002, durante o Governo Collor a área aumentou para 62.000 hectares. Em 1986, a

Aeronáutica realizou a primeira fase de deslocamento, quando 312 famílias foram

deslocadas para agrovilas. Estudos mostram que a instalação do CLA provocou danos

irreparáveis às famílias deslocadas, como a dificuldade para realizar a pesca, impacto na

dieta alimentar com redução do pescado. Além de interferir drasticamente na lógica de

usufruto dos recursos (Almeida 2006b).

Davi Pereira Junior (2009) mostra como o projeto da empresa binacional Alcântara

Cyclone Space, provoca a perda de autonomia dentro de território quilombola, pois seus

habitantes não podem mais pescar, caçar e fazer suas roças demonstrando com isso, que o

que acontece em Alcântara é um caso de etnocídio provocado pelo Estado em relação aos

povos e comunidades tradicionais no Brasil.

No Pará, um exemplo emblemático é o que acontece no Território Quilombola de

Jambuaçu (TQJ), em Moju, onde se intensificaram os conflitos com empresas mineradoras,

desde quando foi instalado em 2004, um mineroduto para transporte de bauxita, cuja

extensão é de 244 km, passando por sete municípios do Pará: Paragominas, Ipixuna do Pará,

Tomé-açu, Acará, Moju, Abaetetuba e Barcarena. Esse mineroduto integrava o Projeto Mina

de Bauxita Paragominas da Vale (PMBP), cujo objetivo é atender às estratégias de expansão

de refinaria de alumina, da sua subsidiária Alumina do norte do Brasil (PNCSA 2007; Pereira

2008; Trindade 2010b). Em 2009, a Vale vendeu o projeto para a Hydro, empresa de

mineração canadense.

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9

Em 2006, a Comissão Pastoral da Terra (CPT) solicitou uma parceria com o Projeto

Nova Cartografia Social da Amazônia (PNCSA) com objetivo de realizar um mapeamento dos

conflitos existentes no TQJ. Na ocasião, foram realizadas oficinas de cartografia social no TQJ

sobre os impactos da implantação do mineroduto de bauxita da companhia Vale e do linhão

de transmissão, quando foram registrados e denunciados os impactos socioambientais

provocados pelo empreendimento minerador. As estradas e infraestrutura construídas pela

Vale provocaram assoreamento e consequentemente a morte de Igarapés (PNCSA 2007).

Estudos realizados por Eliana Teles Rodrigues e Rosa Elizabeth Acevedo Marin (2012)

apresentam o quadro de violências a que são submetidos os quilombolas que vivem às

margens do rio Arari e Gurupá, no Marajó, enfrentando os fazendeiros e arrozeiros.

Rodrigues (2013) etnografou e analisou as estratégias de reprodução social e a trajetória dos

quilombolas dos rios Arari e Gurupá que estão envolvidos em conflito com os fazendeiros

que os impedem de “acessarem os recursos dos igarapés, dos lagos e de construírem seus

sítios” (Rodrigues 2013: 4).

No campo das chamadas “agroestratégias”2, Irislane Pereira de Moraes na pesquisa

que realizou no Vale do rio Capim entre os quilombolas do Aproaga mostra que

Para expansão da produção de biodiesel, as empresas usam um conjunto de estratégias que vão desde a compra de áreas de terra e fazendas, à assimilação e direcionamento de políticas governamentais, a pressão e coerção de lideranças e entidades dos movimentos sociais, até a intrusão de territórios tradicionais (Moraes 2012:66).

Os territórios quilombolas atingidos pelo cultivo de dendê no Nordeste paraense

abrangendo o Território quilombola de Jambuaçu (Moju), Território dos Povos do Aproaga

em São Domingos do Capim e os Territórios quilombolas de Concórdia do Pará e Bujaru

apresentam um quadro de antagonismo com os empreendimentos do monocultivo de

dendê. Esses projetos tem a pretensão de fazer do Estado do Pará, o centro de produção de

dendê do Brasil, com a meta de alcançar um milhão de hectares seguindo o modelo da

Malásia, o que se soma às áreas já cultivadas pelas empresas Agropalma, Dentauá,

Marborges, Denpasa (PNCSA 2014).

2As agroestratégias, segundo Almeida, compreendem um conjunto de iniciativas, articuladas por agências

multilaterais, conglomerados financeiros e entidades representativas de grandes empreendimentos agropecuários para remover obstáculos jurídpico-formais a expansão do cultivo de grãos e para incorporar novas extensões de terras aos interesses industriais, numa quadra de elevação geral do preço das commodieties agrícolas e metálicas Almeida 2010c: 9).

Page 31: Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer

10

Alinhados aos exemplos de situações de conflito abordados pelas pesquisas acima

referenciadas estão os casos que envolvem as UCs e as terras tradicionalmente ocupadas

que são analisados na perspectiva do conflito socioambiental, compreendido nesta tese

como uma espécie particular de conflito social, pois ocorre quando há disputa entre os

grupos sociais envolvendo questões ecológicas, como o uso dos territórios e seus recursos

naturais. Para Little (2001; 2006) os conflitos socioambientais se constituem entre os

diferentes grupos sociais que apresentam formas de inter-relacionamento com seus

respectivos meios sociais e naturais, no qual cada agente social possui sua forma de

adaptação, ideologia e modo de vida específico que se diferencia e se confronta com as

formas de outros grupos lidarem com suas realidades, formando a dimensão social e cultural

de conflitos ambientais.

Corroborando com o debate, Henri Acselrald (2004) define os conflitos ambientais

como os que envolvem grupos sociais com modos diferenciados de apropriação, uso e

ressignificação do território, tendo origem quando pelo menos um dos grupos tem

ameaçada a continuidade de suas formas de apropriação, por impactos indesejáveis. Para

este autor, os conflitos socioambientais são constituídos por quatro dimensões: apropriação

simbólica, apropriação material, durabilidade e interatividade. Elementos que se referem à

base física sobre a qual os grupos se estabelecem e que diz respeito à existência de duas ou

mais práticas territoriais uma sobre outra.

Os conflitos resultantes da sobreposição de UC em Terras Tradicionalmente

Ocupadas podem ser caracterizados como socioambientais por se alinharem a uma tipologia

proposta por Little (2001), onde há conflitos em torno do controle sobre os recursos

naturais, e os conflitos em decorrência dos impactos ambientais e sociais gerados pela ação

humana e natural. Outra questão diz respeito à tipologia dos conflitos no que se refere ao

conflito institucional, ou seja, “quando dois ou mais grupos mantêm dispositivos legais sobre

uma mesma área geográfica, muitas vezes vinculada às distintas instituições

governamentais” (Little 2001:110).

Para esta tese é fundamental a discussão em torno de como as unidades de

conservação incidem sobre as terras tradicionalmente ocupadas no Brasil. Trata-se de uma

questão complexa que ocupa espaço de debate nos meios acadêmicos, de organizações não

governamentais e instâncias do Estado. Em termos de categorização tem-se trabalhado com

Page 32: Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer

11

o conceito de área protegida, que, segundo a Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB)

significa “uma área definida geograficamente que é destinada, ou regulamentada, e

administrada para alcançar os objetivos específicos da conservação”. Na legislação brasileira

não existe uma definição única para área protegida3. Para áreas cujo objetivo é proteger a

biodiversidade e ecossistemas usa-se o conceito de Unidade de Conservação (UC), que é

definido pelo Sistema Nacional de Unidade de Conservação (SNUC) como

Espaço territorial e seus recursos ambientais, incluindo as águas jurisdicionais, com características naturais relevantes, legalmente instituídos pelo Poder Público, com objetivos de conservação e limites definidos, sob regime especial de administração, ao qual se aplicam garantias adequadas de proteção (SNUC 2000).

No Brasil, as unidades de conservação se apresentam em 12 categorias, definidas de

acordo com os objetivos do manejo e tipo de uso, são elas: Unidade de Conservação de

Proteção Integral (UCPI), na qual é proibida a interferência humana que, por sua vez

distribui-se em cinco categorias: Estação Ecológica; Reserva Biológica; Parque Nacional;

Monumento Nacional; Refúgio de Vida Silvestre. Já, as UCs de Uso Sustentável (UCUS), que

admitem a presença humana em seu interior estão divididas em sete tipos: Área de Proteção

Ambiental; Área de Relevante Interesse Ecológico; Floresta Nacional; Reserva Extrativista;

Reserva de Fauna; Reserva de Desenvolvimento Sustentável e Reserva Particular do

Patrimônio Natural. Atualmente, segundo os dados do Cadastro Nacional de Unidades de

Conservação (CNUC) o Brasil possui 698 unidades, equivalendo a 14,65% do território

nacional pertencente às UC4. São 137 UCPI e 173 UCUS (unidades federais); 222 UCPI e 166

UCUS (estaduais) e 60 municipais. Grande parte das UCs encontra-se na Amazônia,

compreendendo 26% da área desse bioma, o que representa 13% da área do território

brasileiro (CNUC 2010).

Em termos de Terras tradicionalmente ocupadas (TTO), existem atualmente 698

Terras Indígenas (TI), ocupando uma extensão de 113.597.452 hectares, o que representa

13,3% do território nacional. Desse total, 422 TI concentram-se na Amazônia, abrangendo

22,25% do território amazônico. Ao todo são 242 etnias, totalizando segundo o IBGE (2010),

3 Embora sendo diferentes, desde 2006, as UCs e as Terras tradicionalmente ocupadas são consideradas áreas

protegidas e compõem o Plano Estratégico Nacional de Áreas Protegidas (PNAP). Decreto Federal nº 5.758 de 13/04/2006. 4 Não foi possível ter informações mais precisas sobre a extensão das UCs, e existem aquelas que ainda não

foram cadastradas no CNUC.

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12

817.962 pessoas, que falam mais de 150 línguas, demonstrando a complexidade da

sociodiversidade cultural do País5.

Já, em relação aos quilombolas, existem no Brasil 2.474 comunidades certificadas

pela Fundação Cultural Palmares (FCP), excetuando-se os estados do Acre e Roraima e o

Distrito Federal. O estado da Bahia é o que tem o maior número, com 628 certificadas;

seguido por Maranhão, com 492; o Pará com 227, e, Minas Gerais com 2266.

Apesar de três órgãos do Governo fornecerem dados oficiais sobre os quilombolas:

FCP, Secretaria de Políticas de Promoção de Igualdade Racial (SEPPIR) e Instituto Nacional

de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), esses dados muitas vezes não coincidem. Além

disso, ainda não foi realizado um censo quilombola necessário para dar visibilidade,

reconhecer e garantir os direitos dessas comunidades. No caso das informações fornecidas

pela SEPPIR, o cálculo estimado da população foi feito a partir da “média de famílias das

comunidades certificadas acrescidas da previsão das comunidades em processo de

certificação e das terras tituladas que não são certificadas. São números apontados na

chamada nutricional quilombola de 2006” (SEPPIR 2013). Esses dados registram 207

comunidades tituladas7, abrangendo 995,1 mil hectares, beneficiando 12.906 famílias. Existe

uma estimativa populacional de 214 mil famílias, e 1,17 milhão de quilombolas em todo o

Brasil8.

Em face desse contexto mais geral existem as situações sociais que ocorrem em

consequência da gestão de UC, sobretudo as UCPI em territórios quilombolas. As questões

incidem sobre dois níveis de problemas: i) políticas de ordenamento territorial e gestão

ambiental que, no caso da UCPI, tem compulsoriamente transferido a “população” a quem

classificam de “residentes” (Chacpe 2014; Farias Junior 2010b; Spaolonse 2013). E em

alguns casos de UCUS, tem se pautado dentro de uma lógica autoritária e impositiva de

manejo e conservação da natureza, sem diálogo com os saberes e as formas de relação com

a natureza que os povos e comunidades tradicionais desenvolvem em seus territórios.

5 Disponível em www.socioambiental.org/pt-br. Acesso: abril de 2015.

6 Dados obtidos pelo Cadastro Geral de Remanescentes de Comunidades dos Quilombos Disponível em

www.palmares.gov.br/wp-content/uploads/crqs/quadro-geral-por-estado-ate -23-02-2015.pdf. Acesso: abril de 2015. 7 No site do Incra, o número de comunidades tituladas são 127 territórios e 217 comunidades. Disponível em

www.incra.gov.br/quilombolas Acesso: abril de 2015. 8 Disponível em www.seppir.gov.br/arquivos/relatorio-pbq-2012. Acesso: abril de 2015

Page 34: Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer

13

A análise neste trabalho incide nas situações de conflito, tomando-se como estudo de

caso um tipo de UCUS, a Área de Proteção Ambiental (APA) que se diferencia das UCPI por

permitir a presença humana em sua área. As APA’s, segundo a legislação ambiental brasileira

são:

Art. 1º - As Áreas de Proteção Ambiental – APA’s são unidades de conservação, destinadas a proteger e conservar a qualidade ambiental e os sistemas naturais ali existentes, visando à melhoria da qualidade de vida da população local e também objetivando a proteção dos ecossistemas regionais (Resolução Conama nº 10 de 1988).

A promulgação da Lei Estadual nº 0431 que criou a APA do rio Curiaú, em

15/09/1998, com uma área de 21.676 ha, localizada no município de Macapá, abrangendo

seis comunidades: Curiaú (De Dentro, De Fora, Extrema e Mocambo); Curralinho; São

Francisco da Casa Grande, Pirativa e Pescada, e a titulação coletiva do Curiaú como território

quilombola, em 1999, com uma área de 3.321,8931 ha, através do título de reconhecimento

nº 1/1999, pela FCP configuram, portanto, em acontecimentos que estão inseridos em um

contexto mais geral dos movimentos sociais quilombola, políticas de reconhecimento

identitário de direitos étnicos e territoriais, e, também, do fortalecimento de leis de políticas

de proteção ambiental no Brasil9.

As modificações na dinâmica territorial no Brasil, que se intensificaram nas últimas

décadas foram motivadas por um amplo contexto de mobilizações e de organização dos

movimentos sociais, e academia pelo reconhecimento e efetivação dos direitos étnicos e

territoriais dos quilombolas e conquistas ambientais que impulsionaram e consolidaram o

conjunto de leis referidas, que, entre outras questões, possibilitou a demarcação e titulação

de terras de quilombo e o significativo avanço à proteção do meio ambiente e a

biodiversidade. Nesse sentido, suscitam reflexões sobre os aspectos da formação do

território nacional brasileiro e as transformações que atravessa, sob o ponto de vista da

9 As leis a que me refiro são respectivamente: Art. 68 e os Art. 215 e 216 da Constituição Federal do Brasil (CFB)

de 1988; o Decreto 4.887, e a Lei 10.629, ambos de 2003; a Lei 5.051 que promulga a Convenção 169 da OIT, em 2004; a Portaria nº 98 de 2007; a Lei 6.040 que institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (PNPCT), de 2007; a Lei 12. 288, de 2010, que institui o Estatuto da Igualdade Racial. Já, no aspecto ambiental, o Art. 225 da CFB de 1988 Do meio ambiente; a promulgação da Convenção da Diversidade biológica, em 1998, pelo Decreto nº 2.519 de 1998, e a lei 9.985 que criou o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), em 2000. Para conhecimento na íntegra das leis e documentos citados, consultar os extratos e links no anexo C.

Page 35: Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer

14

realidade dos territórios sociais, e, mais especificamente, dos povos e comunidades

tradicionais no Brasil.

A Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades

Tradicionais (CNPCT) é composta por 16 categorias: povos indígenas, quilombolas, ciganos,

pomeranos, ribeirinhos, quebradeiras de coco babaçu, seringueiros, pescadores artesanais,

caiçaras, agroextrativistas da Amazônia, povos dos faxinais, dos fundos de pasto, geraizeiros,

pantaneiros, retireiros e comunidades de terreiros10. Apesar dessa diversidade, atualmente,

somente indígenas, quilombolas e os seringueiros são reconhecidos como grupos sociais

distintos dos demais pela Constituição Brasileira (Shiraishi Neto 2004).

O processo de efetivação de uma política identitária que visibilize, reconheça e

garanta os direitos territoriais e étnicos dos povos e comunidades tradicionais em seus

territórios está permeado de muitos entraves e contradições. A gestão de unidades de

conservação que ainda se baseia num paradigma de ruptura natureza e sociedade é um

exemplo desse impasse. Para as UCUS impõe um conjunto de regras proibitivas e

dispositivos de vigilância e nos casos de UCPI transferem, de forma compulsória, as

populações de seus territórios.

Esta pesquisa se soma a esse debate à medida que se propõe a estudar uma situação

social de conflito que envolve, por um lado, a implantação de uma unidade de conservação

no âmbito de uma política de proteção ambiental, que em princípio se constituiu, também

para “manutenção das comunidades quilombolas” (Amapá 2010). E, por outro lado, o

reconhecimento de direitos étnico territoriais de uma comunidade quilombola que possui o

título coletivo de suas terras, mas que nesses últimos dez anos vêm perdendo autonomia de

uso do seu território, principalmente, em suas atividades do “fazer a roça”, em decorrência

de regras de licenciamento ambiental geridas pelos mesmos agentes sociais que pretendem

“valorizar seu modo de vida” (Amapá 2010).

Diante do exposto, as perguntas da pesquisa são: em que aspectos de natureza

social, jurídica, política, econômica e simbólica se fundamentam as tensões estabelecidas

entre os agricultores quilombolas do Curiaú e a implementação de políticas ambientais,

especificamente a UCUS? E, quais as estratégias construídas pelos agentes frente ao

10

Sobre essa diversidade sociocultural de Povos e Comunidades Tradicionais consultar Almeida e Farias Jr. (2013).

Page 36: Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer

15

contexto de conflito socioambiental em torno das questões voltadas para o “fazer a roça” no

território quilombola do Curiaú?

Para alcançar os objetivos propostos organizo o texto com introdução, quatro

capítulos e conclusão. Na introdução, apresento a temática, os objetivos da pesquisa e a sua

estrutura. No primeiro capítulo “O Percurso Etnográfico” apresentarei os passos que me

fizeram chegar ao Curiaú, no estado do Amapá, e ao tema do conflito socioambiental.

Apresentarei uma etnografia sobre o contexto de produção da pesquisa que desenvolvi,

percorrendo os caminhos que levaram à definição da temática e da opção metodológica. Em

seguida, finalizo com as reflexões sobre a relação de pesquisa, com ênfase no debate sobre a

interlocução com os sujeitos da pesquisa, onde são destacadas questões éticas e reflexivas.

No segundo capítulo “Dinâmicas Territoriais do Estado do Amapá” apresento dados

históricos da formação territorial do Amapá, dando destaque para os aspectos da

territorialização quilombola e do contexto das políticas de reconhecimento identitário

quilombola na atualidade com objetivo de verificar dentro do campo estatal e jurídico, como

o Estado do Amapá vem estruturando sua política étnico-racial. Traço o cenário de conflito

socioambiental e principais abordagens sobre tema que envolve as UCs em terras

tradicionalmente ocupadas no Brasil e o contexto específico do Amapá. Em seguida, analiso

as políticas ambientais do Estado na atualidade, apresentando uma etnografia dos processos

de criação, gestão e manejo da APA do rio Curiaú.

No terceiro capítulo “Lavrando a memória, cultivando a terra” apresento o contexto

etnográfico, as histórias de chegada e de ocupação do território quilombola do Curiaú. Para

análise da territorialidade quilombola abordarei as narrativas trazidas pela memória

biocultural (Toledo e Barrera-Bassols 2015) e a cosmografia que possibilitam entender o

funcionamento de um território e as regras de relação com a natureza (Little 2002a). O

“fazer a roça” neste trabalho será abordado na perspectiva da teoria da dádiva de Marcel

Mauss (2003a), como um “fenômeno social total” que cria, dinamiza e fortalece as relações

de sociabilidade e vínculos sociais.

No quarto capítulo “O Direito de dizer onde e como fazer a roça” apresento os

conflitos socioambientais a partir da análise de como os agentes sociais se mobilizam na

arena de disputa pelo território. Pontualmente, abordarei os eventos que ocorreram de

2011 a 2014, envolvendo o Estado e os agricultores quilombolas em conflitos gerados em

Page 37: Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer

16

decorrência da gestão da unidade de conservação, e, que vem impactando, principalmente,

sua agricultura tradicional. Abordarei o documento “Leis do Curiaú”, elaborado pelos

quilombolas, constituindo-se em um material que expressa uma forma de “ordenamento

jurídico local” (Shiraishi Neto 2004; Cardoso Cardoso 2008), possibilitando conhecer as

estratégias dos quilombolas na defesa dos direitos de dizer como e onde fazer suas roças.

Em contrapartida, analisarei os instrumentos de gestão da APA, baseando-me no Plano de

manejo (2010), verificando as diferentes formas de percepção do território a partir do

cotejamento do ordenamento territorial expresso no zoneamento da APA, com o “fazer a

roça” enquanto expressão do modo de vida dos quilombolas.

Page 38: Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer

17

CAPÍTULO 1 O PERCURSO ETNOGRÁFICO

As melodias eram tristes, neste ou naquele verso, e muitas eram satíricas. Mas logo de outras viçava uma alegria de campo e de águas sem limites definidos. Atentando mais minuciosamente para aquela dança coletiva, sentíamos, através da originalidade de improvisação do canto ou do passo, o gênio do ritmo e o poder de exprimi-lo, que fazem do negro um excepcional dançarino em qualquer ângulo do continente africano e depois, mesmo através de seus mestiços do Laguinho e do Curiaú [...].

Nunes Pereira (1989:103)

1.1 O encontro etnográfico: primeiros passos

A primeira vez que ouvi falar do Curiaú foi quando lecionava a disciplina Folclore

brasileiro, na Universidade Federal do Pará (UFPA), em 199511. Em meio à bibliografia do

curso constava um livro cujo título era “Sahiré e Marabaixo” de Pereira (1989), de onde

empresto a epígrafe que abre este capítulo. No livro o autor faz um estudo de duas festas

na Amazônia, uma em Santarém, no Pará e a outra, em Macapá, no Amapá. Pereira fez uma

viagem na década de 1940 para o Amapá, e relata, com preciosismo de detalhes, as festas e

o batuque do Curiaú, o que despertou em mim um grande interesse em conhecer esse lugar.

Em 1996 viajei para Curiaú, ocasião em que me preparava para prestar seleção para o

mestrado em Antropologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), e uma

das exigências da seleção era apresentar um artigo cuja temática versasse sobre as

concepções de tempo em diversas culturas. Lembro-me que uma das leituras obrigatórias

era o livro de Dominique Tilkin Gallois (1994), “Mairi Revisitada: a Reintegração da Fortaleza

de Macapá na Tradição Oral dos Waiãpi”, que fazia referência à forma como os Waiãpi12

representam o tempo e o espaço em sua história e na do Amapá.

Foi minha primeira viagem ao Curiaú, lugar de muitas histórias que ouvi da boca dos

mais velhos. Contavam sobre os tempos d’outrora, sobre a fundação do quilombo, sobre a

11

Desde a graduação, temas voltados às relações étnico raciais exerceram uma forte influência em minha formação. Durante o projeto Escravidão e Formação de uma Agricultura Camponesa na Costa Setentrional do Pará, realizamos, entre as atividades de pesquisa, uma viagem em julho de 1991 para comunidade de Tapagem, localizada próxima à Reserva Biológica do Trombetas, no baixo Amazonas paraense. Na ocasião participamos do 3º Encontro de Raízes Negras, e, posteriormente, da I Audiência Pública no Estado do Pará, em Oriximiná. Em 1993, escrevi uma monografia de conclusão de curso intitulada “Negros do Trombetas Ameaçados: relatos e retratos” sob orientação da antropóloga Eneida Assis (Trindade 1993). 12

Waiãpi povo de língua e tradição tupi-guarani que vivem nos dois lados da fronteira que separa o Brasil (Amapá) da Guiana Francesa.

Page 39: Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer

18

vida cotidiana. Esse primeiro contato deu origem a um ensaio intitulado “Curiaú: presente e

passado de uma comunidade negra no Amapá”, onde pude traçar um pouco das referências

de memória dos “primeiros tempos” (Price 1983). Nesse contexto, algumas lideranças já se

mobilizavam para obterem o título coletivo de seu território.

Em 1997, a FCP 13 assinou um termo de cooperação com pesquisadores, mediado

pela Associação Brasileira de Antropologia (ABA), para realização de estudos sobre algumas

“comunidades negras rurais”. O “Projeto de Mapeamento e Sistematização das Áreas

Remanescentes de Quilombos” 14 foi executado em vários estados do Brasil. Nesse contexto,

realizamos uma pesquisa sobre o quilombo do Curiaú, no Amapá. O relatório intitulado

“Nascidos em Curiaú” (Acevedo Marin 1997) mostrou momentos importantes da trajetória

histórica do grupo e os conflitos que envolveram a luta pela demarcação e titulação de seu

território.

Posteriormente, por ocasião da pesquisa ocorrida de 1997-1999 no Curiaú, onde

desenvolvi a dissertação intitulada “No Tempo das Águas Cheias: Memória e História dos

Negros do Curiaú-AP” (Trindade 1999) analisei como a visão do passado interage com o atual

modelo de uma determinada cultura e quais as percepções sobre o passado encontradas

nela. Percebi que a interação entre o presente e o passado é construída na memória,

permitindo aos indivíduos reconhecerem por meio dela, os diversos significados que

conferem às suas experiências de vida. Debrucei-me sobre a análise da memória social,

entendida como o “conjunto de recordações, conscientes ou não de uma experiência vivida

e ou mitificada, por uma coletividade viva de cuja identidade faz parte integrante o

sentimento do passado” (Nora 1993). Na perspectiva de Maurice Halbwachs (2006), as

situações vividas só se transformam em memória se aquele que lembra estiver efetivamente

ligado ao grupo ao qual pertence. E para que esse “grupo de afeto”, “grupo comunidade” ou

“intergeracional” exista, é necessário um longo convívio.

13

A Fundação Cultural Palmares (FCP) é vinculada ao Ministério da Cultura. Foi criada por meio do Decreto 7.688 de 22.08. 1988 com objetivo de “promover a preservação dos valores culturais, sociais e econômicos decorrentes da influencia negra na formação brasileira”. De 1988 a 2003, a FCP foi responsável pelo processo de regularização fundiária de terras de quilombo. Com o Decreto nº 4.887 - 2003 essa responsabilidade passou a ser do Ministério de Desenvolvimento Agrário-Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária. 14

Esse projeto foi realizado em parceria com a Comissão Nacional de Comunidades Negras e orientou-se a partir de ações do Grupo de Trabalho Interministerial População Negra do Governo Federal. A coordenação estava sob responsabilidade da antropóloga Eliane Cantarino O’Dwyer.

Page 40: Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer

19

A abordagem da memória foi utilizada para entender como ela é construída

socialmente a partir de um processo seletivo que envolve tanto o ato de lembrar quanto o

de esquecer (Pollack 1989). Outro aspecto relevante é o de que a análise da memória não se

baseia em contraposições entre o acontecido e o relato, entre o fato e a interpretação, o

verdadeiro e a invenção, mas no diálogo entre a possibilidade de ter acontecido e as

reelaborações de experiências em outro tempo. “A memória é um elo vivido, conduzido por

grupos, aberta à dialética da lembrança e do esquecimento, vulnerável a todos os usos e

manipulações” (Nora 1993: 9). O que mantém a memória social é justamente essa dinâmica,

pois são os pontos de vista que a revitalizam. Nesse sentido, foi possível conhecer histórias

da fundação e organização do Curiaú e algumas estratégias de construção de seu território,

por meio das quais analisei a sua organização social, pautada em três pilares: descendência,

herança e sucessão (Auge 1975).

Na análise das relações de parentesco refleti sobre os mecanismos de organização

social do Curiaú, na busca de um fio condutor para a compreensão dos seus direitos étnicos

e territoriais. Enfatizei neste trabalho, a análise da organização das festas religiosas, quando

elabora-se um conjunto de papéis sociais que são vivenciados pelos

“descendentes/herdeiros”. “A organização e realização das festas representam um desses

momentos em que se estruturam deveres, direitos e obrigações dos organizadores e

participantes dos festejos, e, além disso, definem posições hierárquicas” (Trindade 1999:

86).

Retornei ao Curiaú quinze anos depois, reencontro antecedido por alguns eventos: o

primeiro, em 2011, quando fui convidada a participar do júri do I Festival de Ladrão do

Marabaixo das Comunidades Afrodescendentes do Amapá. Essa atividade, organizada pela

Confraria Tucuju, entidade criada com a finalidade de resgatar e preservar a cultura popular

no Amapá. Entre as comunidades participantes estavam Maruanum, Curiaú, Torrão do

Matapi, Pirativa, Ilha Redonda, Mazagão Novo, Mazagão Velho, Campina Grande, Coração,

Favela e Laguinho. Todas apresentaram os Ladrões de Marabaixo, um recurso estilístico que

enriquece as narrativas, músicas entoadas, em que os versos cantados “roubam” a

privacidade das pessoas, revelando algum fato engraçado e do cotidiano da comunidade.

Page 41: Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer

20

O Curiaú foi representado por um “ladrão” que contava a história da onça que tinha

sido abatida por um caçador, fato que provocou problemas com a justiça ambiental15. Nesse

momento soube notícias de alguns acontecimentos que os quilombolas vinham enfrentando

com a gestão da APA do rio Curiaú: proibições de pescar, caçar e medidas de licenciamento

ambiental para fazer a roça. O tema do “ladrão” cantado naquela noite, durante o festival,

era uma forma de protesto e evidenciou os conflitos que estavam acontecendo.

Nessa mesma semana, fui convidada a proferir uma palestra na Universidade Federal

do Amapá (UNIFAP), atividade organizada no âmbito do PNCSA. O tema da minha exposição

foi “Ladrões que contam histórias: a performance de um narrador”, durante a roda de

conversa ressaltei a importância dos contadores de história no Amapá, tomando como

exemplo as narrativas do velho Joaquim Tibúrcio Ramos, um exímio cantador de “ladrões”,

que havia falecido em 2001, aos 92 anos.

Neste momento minha memória me transportou para um tempo d’antes. Relembrei

quando estive em Curiaú pela primeira vez, e eu me sentava ao lado de Joaquim Tibúrcio,

para ouvir suas histórias. Ele as narrava por meio de “técnicas corporais” (Mauss 2003b),

quando mãos, voz, olhos e alma se juntavam no momento que se expressava. Durante a

“contação” ele pedia permissão para uma pausa: levantava-se, como estava perdendo a

visão, caminhava firme, mas lentamente, tateando com as mãos da memória os móveis, até

alcançar uma garrafa de vinho que guardava no armário (pela aparência já estava se

tornando um vinagre, mas isso passava despercebido ao narrador).

Pelo contrário, ele, ao tomar um gole daquela bebida, dava a impressão de estar

degustando um elixir que o fazia lembrar e contar em um tom mais animado suas histórias.

Seus olhos, mesmo tomados pela catarata, não conseguiam esconder sua emoção. Fixava

seu olhar em algum ponto, silenciava e, de repente entre uma fala e outra, cantava um

“ladrão”. E assim se passavam as agradáveis manhãs chuvosas, em uma comunidade no

“meio do mundo” em que a figura do narrador se inscreve numa sociedade comunitária, na

15

Caçar é considerado crime, punível com pena de reclusão de 1 a 5 anos, a legislação ambiental considera o consumo somente de animais criados em cativeiro. Mas as legislações estaduais vêm relativizando essa proibição. Como as do Amazonas que assegura o direito a exploração e do Ceará que fala em promover o manejo ecológico das espécies (Legislação concorrente em meio ambiente 2009 centro de documentação e informação Brasília 2009. www.pm.al.gov.br/intra/ )

Page 42: Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer

21

qual é possível tecer coletivamente as histórias, e ele tem a função de contá-las, repetindo-

as quantas vezes quiser (Benjamin 1994).

Aquela tarde de debate na UNIFAP, realmente, foi um momento ímpar e de muita

emoção, pois além de relembrar e relatar os momentos incríveis vividos junto a um

“homem-memória” (Le Goff 1984) pude fazê-lo, ao lado do agricultor e historiador local,

Sebastião Menezes da Silva16. Além de ter sido a primeira oportunidade que tive de

socializar a minha pesquisa na UNIFAP e com a honra de tê-lo ao meu lado, recordando do

saudoso Tibúrcio, para um público de estudantes, professores, e parte da família do Sr.

Joaquim Tibúrcio Ramos. Durante o debate, Sebastião Menezes ouvia atentamente, e ao ser

convidado a se pronunciar, de forma minuciosa e descritiva, fez em sua fala, uma análise de

como ele percebia os pesquisadores que frequentemente iam procurá-lo, e relatou suas

impressões dos tempos em que eu andava pelo Curiaú “ouvindo as muitas histórias do

lugar”.

Figura 1- Debate na UNIFAP. 2011. Foto: autor desconhecido

16

Sebastião Menezes nasceu no Curiaú, publicou três livros: Curiaú: sua vida, sua história (sd), Curiaú: a resistência de um povo (Silva 2004) e Curiaú: Marcas de uma geração (2015).

Page 43: Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer

22

Em 2010, quando ingressei no Programa de Pós-Graduação em Antropologia17

(PPGA-UFPA), o projeto inicial da tese era o estudo em comunidades quilombolas no Pará,

com foco no conflito com os grandes projetos econômicos, tomando como estudo de caso o

Território Quilombola de Jambuaçu, intrusado pela empresa mineradora Vale (Trindade

2010b). No final do segundo semestre de 2012, alguns fatores motivaram a decisão por

redimensionar e mudar o lócus de pesquisa.

Em especial um e-mail, uma ligação de Curitiba, e posteriormente, a mudança de

orientador me fizeram redefinir os rumos da pesquisa para elaboração da tese. No segundo

semestre de 2012, recebi um e-mail de uma colega arqueóloga me perguntando se eu teria

interesse em fazer um trabalho, uma espécie de laudo antropológico na comunidade de

Curralinho, que fica 10 km de distância do Curiaú, e que também se localiza na APA do rio

Curiaú. A empresa Alphaville 18 estava interessada em construir um condomínio próximo ao

Curralinho e precisavam dar encaminhamentos aos estudos de impacto ambiental para

obter a licença ambiental.

A comunidade está certificada pela FCP, seu processo de regularização fundiário está

tramitando no INCRA, mas com muita morosidade. O laudo antropológico é uma peça

importante a ser efetivada, e a empresa tinha o entendimento de que ao encaminhá-lo seria

uma forma de “contrapartida”. Logo, o engenheiro responsável entrou em contato comigo,

de Curitiba. A empresa tinha o propósito de contratar um antropólogo para realizar estudos

que “comprovassem” ou não, que a comunidade do Curralinho era quilombola. Após a

conversa por telefone, liguei para o Sr. Sebastião Menezes, que à época fazia parte do

Conselho Gestor da APA do Rio Curiaú (CONGAR), e me relatou toda a situação, colocando-

me logo em contato com a presidente da Associação, dona Joaquina dos Santos.

Ao final, não realizei o trabalho para a empresa, mas acabei decidindo retornar ao

Amapá. Em fevereiro de 2013, arrumei minhas malas e fui para o Curiaú. Quinze anos depois

muita coisa tinha mudado. Nas tardes chuvosas de fevereiro, sentava-me ao lado do

17

O PPGA tem como base uma Antropologia nos quatro campos (Balée 2009). Nos EUA, o diálogo entre a linguística, arqueologia, antropologia cultural e biológica ensejou a possibilidade da formação de uma

antropologia dos quatro campos, que vem fortalecendo a importância de uma abordagem holística, configurando-se numa maior interação biocultural e na busca da superação da dicotomia natureza e cultura, o que vem apontando para uma crescente integração dos subcampos da antropologia.

18 Empresa que constrói empreendimentos horizontais, condomínios de grande porte, em seu site propaga ser

a principal urbanizadora do País, presente em 22 estados brasileiros. www.alphaville.com.br/institucional.

Page 44: Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer

23

Sebastião Menezes da Silva e punha-me a ouvir suas incontáveis histórias. Na ocasião me

relatou alguns problemas envolvendo principalmente os agricultores, com notícias de

prisões, pagamento de multas e imposição de uma série de regras para o uso do território.

De volta a Belém, ainda no primeiro semestre de 2013, por solicitação de meu

orientador me matriculei em três disciplinas na área de bioantropologia19. E, iniciei o

processo de escrita do meu texto de qualificação que foi apresentado em setembro de 2013.

As conversas iniciais com Sebastião Menezes que foi muito receptivo ao meu propósito de

retornar para desenvolver minha pesquisa, e após a qualificação consolidou-se a definição

da temática em torno dos conflitos existentes entre as formas tradicionais de uso do

território quilombola, sobretudo as roças, em colisão às novas percepções e representações

do uso do território que estão sendo construídas com a gestão da APA do rio Curiaú.

1.2 Curiaú: no meio do mundo

A linha imaginária do Equador corta a cidade de Macapá da mesma maneira que o

lago Curiaú corta a Vila do Curiaú de Dentro, ambas localizadas “no meio do mundo”. É

nesse cenário de cursos de água, de terras firmes, várzeas altas e baixas que se chega ao

Curiaú, que está localizado a 8 km do centro de Macapá, capital do estado do Amapá. Divide-

se entre seis vilas: Curiaú de Dentro, Curiaú de Fora, Extremas dos bairros do Ipê e Novo

Horizonte, Mocambo e Canteiro Central. No quilombo do Curiaú vivem cerca de 150

famílias, com uma população de 600 pessoas20

. O acesso ao Curiaú se dá por meio terrestre,

pela rodovia estadual Alceu Paulo Ramos (AP-70- Figura 2) e pela rodovia federal (BR-210).

Por meio fluvial pelos rios Curiaú e Amazonas.

19

Entre as disciplinas cursadas está a de “Tópicos especiais em Antropologia: Etnobiodiversidade”, disciplina que me colocou em contato com uma bibliografia de etnoecologia, e com o conceito de memória biocultural de Victor Toledo e Barrera-Bassols (2015). 20

Em 1998, quando realizei pesquisa no Curiaú, existiam aproximadamente 76 famílias, houve um aumento populacional do dobro de famílias no período de uma década. Os dados atuais sobre o número de famílias foram obtidos com Bráulio Chagas, que realizou uma pesquisa na comunidade.

Page 45: Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer

24

Figura 2- Rodovia AP-70 – Entrada do Curiaú.

Caminhando pelas ruas, logo se vê no Curiaú de Fora, as casas que estão à beira da

estrada, enfileiradas. A sede da Associação Atlética fica bem no centro do terreno, ao lado

de um campo de futebol. Andando um pouco mais, avista-se o antigo prédio da Associação

de Moradores do Quilombo do Curiaú, ao lado, está a igreja de São Joaquim. Para chegar ao

Curiaú de dentro, percorremos mais 1 km. Logo na entrada do Curiaú de Dentro, encontra-se

um campo de futebol que fica ao lado da Escola Estadual de Ensino Fundamental “José

Bonifácio”. Ali próximo avistamos um posto médico. A comunidade era assistida por uma

equipe do Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS), composta por 01 Enfermeiro

e 03 Agentes Comunitários de Saúde, subordinados à Secretaria Municipal de Saúde de

Macapá/AP, porém esta equipe do PACS não era específica para acompanhamento da

comunidade do Curiaú, pois atendia outro bairro da Capital do Estado. Atualmente, foi

constituída uma equipe para atuar no Programa Saúde da Família, composta por 01 Médica,

01 Enfermeira, Técnico de Enfermagem e Agentes Comunitários de Saúde.

Um pouco mais à frente se vê a Igreja de Santo Antônio e um posto policial. No

âmbito do Projeto Ecoturismo na APA do Rio Curiaú foi implantado um deck panorâmico,

com chalés ao lado que funcionariam como restaurante; loja de artesanato e um salão de

beleza afro. Além disso, foi construído um centro de cultura para que os moradores

pudessem realizar suas atividades culturais como o Batuque e o Marabaixo, expressões de

sua identidade. Anteriormente, quando fui ao Curiaú em 2003, pude perceber o estado de

Page 46: Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer

25

abandono da estrutura montada, e questionei os moradores sobre sua utilização. Alguns

foram enfáticos em dizer que o espaço não era interessante para a prática do Batuque e

Marabaixo como haviam projetado os técnicos da secretaria de turismo, pois “tem uma

péssima acústica” comentava seu Sebastião Menezes.

Na região verificam-se três sistemas ecológicos principais: campos inundáveis, a

floresta de várzea, e os campos cerrados, que correspondem a maior parte das terras. No

entorno das águas, existe uma floresta tropical densa e de alto porte, margeando os lagos,

bosques de buritis, afastando-se um pouco mais, existem 19 ilhas. Uma das belezas naturais

do local é o lago Curiaú.

O território do Curiaú possui cobertura vegetal classificada como 43% formada por

cerrado, 21% de floresta de várzeas, 23% campos de várzeas, 6% de mata de galeria, 6%

ilhas de mata, 1% rios e lagos. O clima é quente úmido, típico da região equatorial, com

estação chuvosa no inverno (Janeiro a Junho) e estação seca no verão (Julho a Dezembro). A

temperatura média no inverno fica em torno de 27ºC e no verão cerca de 32º C (Amapá

2007: 39).

O igarapé Curiaú do Meio percorre grande extensão dos campos alagados, tornando-

se no verão a única via de transporte fluvial daquela localidade. Durante o inverno, quando

as águas das intensas chuvas alagam totalmente aqueles campos, o igarapé se confunde

com a fisionomia da região alagada, só sendo percebido em face de o seu leito permanecer

limpo de vegetação. O igarapé percorre as regiões dos lagos e deságua no Rio Amazonas

(Chagas 1997).

O rio Curiaú é afluente do Rio Amazonas a sua margem esquerda, correndo numa

extensão de aproximadamente 584,47 km das terras do Curiaú. No período que corresponde

à estiagem (verão) ocorre uma redução significativa da área drenada, principalmente devido

à seca dos lagos temporários e de pequenos tributários. Por outro lado, “no período das

chuvas (inverno) ocorre um grande acréscimo de águas no referido sistema, notadamente

por áreas campestres permanecerem parte do ano inundadas” (Queiroz 2007: 33). Esse

movimento das águas é fixado na memória dos quilombolas como uma metáfora do

“tempos das águas cheias”, em que podiam pescar com abundância o tambaqui, cará,

surubim, tamuatá.

Page 47: Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer

26

Ao abranger os três tipos de ambientes (cerrados, matas e campos alagados), a

região é evidenciada como um biossistema rico em tipos de solo, constituída por solo tipo

latossalono, nos dois primeiros ambientes, e solo do tipo argiloso nos campos alagados, rico

em matéria orgânica e periodicamente inundado pela ação do vigoroso inverno (Chagas

1997).

Figura 3 - Lago Curiaú. Foto Willy Miranda. Agosto de 2013

Em vistas da riqueza do solo e da existência de uma grande variedade de espécies de

árvores no bioma natural do Curiaú, uma importante atividade é a da extração do fruto da

palmeira do açaí (Euterpe oleacea) que ocorre com intensidade no mês de maio, quando o

lago ainda está cheio. A figura 4 mostra o Sr. Israel da Silva Ramos debulhando o açaí que

trouxe da várzea para ser batido e engarrafado em recipiente pet de dois litros, que são

vendidos por R$15,00. O fruto do açaizeiro é um dos produtos que possui maior importância

na base alimentícia das famílias do Curiaú, depois da farinha de mandioca (Queiroz 2007).

Page 48: Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer

27

Figura 4- Sr. Israel da Silva Ramos, debulhando o açaí à beira do Lago Curiaú/Maio de 2014

A farinha é o ingrediente principal do “caldo” que é servido durante as festas em

louvor aos Santos. Durante a festa de São Sebastião, da qual pude participar, observei que,

em meio a um clima de alegria, é distribuído aos participantes da festa o alimento que os

mantêm firmes e fortes até a chegada da alvorada. Nesse ano de 2014, a farinha foi

produzida pela família da agricultora Nazaré Ramos, a responsável pela festa. Todos os anos,

a festa é organizada por uma família que se responsabiliza em organizar o batuque,

incluindo a alimentação que é acompanhada pela “gengibirra”, bebida tradicional feita com

gengibre e cachaça e servida nos festejos que, em alguns casos, levam três dias seguidos.

A devoção aos santos católicos é fortemente demonstrada por meio das festas que

ocorrem durante o ano todo. Sua religiosidade é expressa por meio de uma rica simbologia

que mistura ritos afro-brasileiros com rituais de religião católica. O calendário de festas do

Curiaú inicia no mês de janeiro, com os festejos em louvor a São Sebastião.

As festas contam com a participação de outras comunidades que trazem seus

tocadores e dançadeiras para apresentações. Esses momentos são espaços importantes de

celebração e de fortalecimento dos elos entre os quilombolas e evidenciam as redes e as

interações sociais proporcionadas pelas festas. Na tradição antropológica, a festa é analisada

como um meio para propiciar o sentimento comunitário no grupo que a celebra “no

decorrer dos acontecimentos históricos de uma comunidade, em que os membros desta se

Page 49: Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer

28

reúnem periodicamente e, por meio de rituais e de cerimônias, renovam os laços e o sentido

de adesão ao grupo que os vincula” (Dulcet 1999: 53).

Figura 5 - Barracão da festa de louvor a São Sebastião. Janeiro/2014

Figura 6 - Distribuição do “caldo” no Batuque a São Sebastião. Nazaré Ramos. 2014

No decorrer do ano acontece a festa de Santa Maria, em maio. No mês de junho, é a

vez de Santo Antônio. Mas é no mês de agosto que o Curiaú realiza sua maior festa: são os

festejos de São Joaquim, padroeiro da comunidade. Como mostrei em trabalho anterior,

Page 50: Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer

29

A festa constitui um domínio que se articula com outros tantos: econômico, religioso, e principalmente de parentesco. Ela pode ser considerada como uma daquelas configurações privilegiadas e estratégicas de “fenômeno social total” que permitem o entendimento do sentido real das relações sociais (Trindade 1999: 88).

O Batuque e o Marabaixo ocorrem, prioritariamente, durante os festejos de São

Joaquim e de Santa Maria, respectivamente. O Batuque é dançado ao ritmo de dois

tambores compridos chamados de macacos, e de três pandeiros confeccionados com

madeira e couro de cobra sucuri (figura 7).

Figura 7- tocadores no batuque em louvor a São Sebastião. Curiaú de Dentro 2014.

A participação ativa dos anciãos é uma marca das festas no quilombo, onde

cantam, dançam e celebram. Na figura 8, o batuque contou com a presença da senhora

Josefa Miranda, 85 anos, que entoou uma bandaia, música cantada no batuque. Após dona

Josefa cantar o refrão, os outros brincantes respondiam repetindo o refrão em alta voz.

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30

Figura 8 - Tocadores de macaco durante o batuque. Dona Josefa Miranda ao centro/2014

Para acompanhar o cantador ou a cantadora, os brincantes vão formando um grande

círculo e dançam em duplas. O traje usado pelas mulheres não pode dispensar o uso de uma

toalhinha que é balançada sempre que a música chega ao seu ápice, onde usam saias

rodadas com motivos florais que ganham em seu conjunto uma beleza cênica contagiante.

Figura 9 - Dançadeira cantando na festa em louvor a São Sebastião. Curiaú de Dentro 2014

Durante a realização do ciclo do Marabaixo, que ocorre no período da Semana Santa

no calendário católico, os participantes colhem galhos da Muteira, árvore considerada

sagrada, cujas ramas servem para enfeitar o mastro da festa. Durante a caminhada na mata,

Page 52: Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer

31

os participantes são acompanhados por dois tocadores de caixa, que entoam os famosos

“ladrões” numa atmosfera de muita alegria. Tanto no Marabaixo, quanto no Batuque, os

jovens passam por um aprendizado com os mais velhos, que lhes dão oportunidade de tocar,

“para que comecem a tomar gosto pela música” 21.

Em 1987, os moradores do Curiaú organizaram a Associação de Moradores da

Comunidade do Curiaú (AMCC). Em 02 de Abril de 1996, a Associação solicitou a

regularização fundiária de suas terras com base no Art. 68 do Ato das Disposições

Constitucionais Transitórias (ADCT). Três anos depois, em 1999, o Curiaú tornou-se a

primeira comunidade quilombola no Amapá, a ter seu título de território quilombola emitido

pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), o que lhes garantiu o

direito territorial coletivo de acesso, de uso e de controle sobre os recursos naturais.

Hoje, a Associação recebe o nome de Associação dos Moradores do Quilombo do

Curiaú (AMQC). Em 1990, foi criada a Associação de Mulheres Mãe Venina do Quilombo do

Curiaú (AMMVC). Além dessas associações, foram organizados, o Grupo de Idosos do

Quilombo do Curiaú; as “Provocantes”, movimento de mulheres quilombolas do Curiaú; o

grupo de jovens; a Associação Atlética do Curiaú; o grupo cultural Raízes do Bolão, de

músicas regionais. E vêm sendo desenvolvidos projetos culturais como os da Orquestra de

música, Ponto de cultura e esportes e Ponto de leitura. Em 2009 foi criada a Associação de

Criadores e Agricultores do Curiaú (ACRIAÚ), que reúne 17 agricultores, e de dois em dois

anos elegem sua diretoria.

1.3 A imersão em campo

Para corresponder aos objetivos da pesquisa, optei por fazer um recorte temporal

de 2011 a 2014. Esse período é particularmente importante para o Curiaú, pois abrange a

fase de titulação coletiva das terras e o início e desenvolvimento de uma política

ambiental e ordenamento territorial com o advento da APA do Rio Curiaú, sobretudo a

partir da instalação do Conselho Gestor da APA (CONGAR), em 2001, criado através do

Decreto estadual nº 3099, sendo composto por representantes de entidades públicas e da

sociedade civil organizada.

21

Para conhecer mais sobre o Marabaixo consultar Videira (2009)

Page 53: Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer

32

Como metodologia, organizei a pesquisa etnográfica em três momentos que

ocorreram simultaneamente:

i) Pesquisei sobre as narrativas de atividades agrícolas atuais e passadas,

desenvolvidas na comunidade quilombola do Curiaú, a partir da documentação quando

registrei a trajetória de vida, as crenças e narrativas de 06 agricultores quilombolas, as

formas de representação e socialização dos diferentes usos do seu território (roteiro das

entrevistas em anexo).

ii) Busquei documentar, identificar, registrar e analisar as formas de gestão do

território que são concebidas a partir da implementação da Área de Proteção Ambiental

do rio Curiaú (APA) por diferentes agentes estatais, sobretudo da Secretaria de Meio

Ambiente do Amapá (SEMA) e Instituto de Meio Ambiente e Ordenamento Territorial

(IMAP). Assim como das instituições que compõem o Conselho Gestor da APA (CONGAR),

com destaque para Secretaria de turismo do estado do Amapá.

iii) Realizei uma etnografia nômade (Arruti 2006), que pode ser entendida como

um recurso metodológico, onde fundamentei minha análise em redes de lugares, no qual

é possível buscar compreender a complexidade do mundo interconectado. Acompanhar o

debate sobre o uso do território exigiu da pesquisadora uma apreensão dos fluxos e as

redes dos aspectos dos objetos de estudo. Para corresponder a isso, busquei acompanhar

os eventos como reuniões, audiências, cuja temática era o debate sobre o uso do

território, que envolviam os agricultores quilombolas em sua interação com outros

agentes sociais: instituições públicas e mediadores.

Esses três momentos de pesquisa me proporcionaram produzir um considerável

conjunto de informações oriundas das seguintes fontes:

i) Transcrições de entrevistas com os agricultores quilombolas; oficinas de cartografia

social; mapa situacional; reuniões com a Associação de Criadores e Agricultores do

Quilombo do Curiaú (ACRIAÚ);

ii) Matérias sobre agricultura do Jornal do Quilombo que é editado há 15 anos pelo Sr.

Sebastião Menezes, com publicação de dois em dois meses. O Jornal é divido em seis

sessões: história, anúncios, denúncias, comentário, ponto de vista e poesia.

Page 54: Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer

33

iii) Processos judiciais e autuações ambientais envolvendo quilombolas; o Inquérito Civil

nº 000552-91.2013.8.03.0001 do Ministério Público Estadual (MPE) que investigou

denúncias de “desmatamentos provocados por agricultores quilombolas”;

iv) Transcrições de três audiências públicas promovidas pelo MPE, que equivalem a 12

horas de debates ocorridos no Curiaú, todas as audiências pautaram questões voltadas ao

uso do território pelos agricultores;

v)participação em reuniões mensais do CONGAR, gerando aproximadamente 14 horas de

gravação. As reuniões ocorreram no período de agosto de 2013 a maio de 2014;

v) Atas de reuniões do CONGAR de 2001 a 2012; Zoneamento Socioambiental e o Plano

de Manejo produzidos pela SEMA, publicados em 2010; Anotações do diário de campo;

vi) Pesquisa nas bibliotecas da UNIFAP e Universidade Estadual do Amapá (UEAP) de

trabalhos acadêmicos sobre o Curiaú e as comunidades quilombolas no Amapá.

Para uma melhor compreensão desses procedimentos e fontes, descrevo a seguir

como ocorreu a pesquisa de campo, que teve a duração de 12 meses, de agosto de 2013 a

julho de 2014, apresento meus principais interlocutores e por fim, relato as etapas da

pesquisa, indicando seus percalços e desafios.

1.3.1 Entrevistas: a memória biocultural Ao chegar ao Curiaú, em agosto de 2013, a primeira providência foi estabelecer

contato com a ACRIAÚ, que estava em processo de mudança de diretoria. Em novembro de

2013, finalmente pude reunir com a diretoria da ACRIAÚ, tratava-se de uma reunião para

posse da nova diretoria, onde participaram 17 agricultores. Na ocasião, pude expor os

objetivos da pesquisa, quando foi debatida a sua importância. A Associação recebeu com

entusiasmo meu propósito de realizar esse trabalho, e definimos que iria procurar alguns

agricultores durante os meses de novembro e dezembro, período de muitas atividades no

calendário agrícola da comunidade.

Assim, no período de agosto de 2013 a julho de 2014 realizei 13 entrevistas com 06

agricultores quilombolas, contabilizando aproximadamente 20 horas de entrevistas. Com base

na metodologia da memória biocultural, que permite compreender a importância dos

manejos e sabedorias tradicionais sobre a natureza e a biodiversidade. De todas as

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34

expressões que emanam de uma cultura, os conhecimentos sobre a natureza conformam

uma dimensão especialmente notável, porque refletem a profundidade e a riqueza da

observação sobre o entorno, realizadas, transmitidas e aperfeiçoadas através de largos

períodos de tempo, sem os quais a sobrevivência dos grupos humanos não seria possível

(Toledo e Barrera-Bassols 2015).

Ao longo do percurso da pesquisa, foram construídos espaços de socialização

intergeracional sobre a temática das formas de “fazer a roça” no Curiaú, observando-se as

estratégias de socialização dos saberes e como os quilombolas constroem imagens e

representações no processo de construção do território. O uso dos conceitos de memória

biocultural (Toledo e Barrera-Bassols 2015) e memória intergeracional (Halbachws 2006) por

meio da etnografia das crenças (cosmos), saberes (corpus) e práticas (práxis) permitiu

reconhecer, na interação entre gerações, não só os conteúdos transmitidos e as experiências

narradas, como também as práticas que são socializadas e compartilhadas. A memória

biocultural é intergeracional, pois contribui para a transmissão da memória de uma geração

à outra.

Para esse “trabalho de memória” (Bosi 2001) busquei definir os meus interlocutores,

primeiro, os interessados em participar da pesquisa e que contam sobre a ocupação do

território a partir do “fazer a roça”. São eles: Benedito Machado dos Santos, 87 anos;

Palmira Machado dos Santos, 79 anos; Roldão Amâncio da Silva, 80 anos; Sebastião Menezes

da Silva, 55 anos; Raimundo Noro, 62 e Nazaré Ramos, 62 anos.

Foram realizadas também reuniões e posteriormente, excursões com os

agricultores Sebastião Menezes e o Raimundo Noro. A primeira etapa do trabalho de

campo foram as idas às roças, o que redundou numa listagem e no registro fotográfico das

mesmas. Os locais também foram georreferenciados com o uso de GPS22. As figuras a

seguir (10 e 11) registram momentos em que o Sr. Sebastião mostrava e relatava sobre o

“fazer a roça” e como se diferenciam algumas plantas em relação à classificação dos

agricultores quilombolas e a dos pesquisadores, um exemplo são os diferentes tipos de

pimenta encontrados nos quintais.

22

Aparelho ligado a satélite por meio do qual é possível levantar as coordenadas geográficas que, posteriormente serão plotadas numa base cartográfica, para produção de mapas.

Page 56: Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer

35

Figura 10 - Sebastião Menezes trabalhando na roça. Fev/2014

Figura 11 - Mostrando e explicando sobre uma planta. Curiaú. Fev/2014.

Page 57: Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer

36

A ida com os agricultores aos locais de roça era permeada por longas conversas, em

geral sobre onde e como se localizavam as antigas roças, sobretudo as deixadas por seus

avós e pais, no qual eram cuidadosamente referidas, mesmo que ali não houvesse nenhum

vestígio de banana, melancia ou abacaxi. Mas, as “taperas” sinalizavam que ali havia uma

moradia, casa de farinha ou local de muita mandioca plantada, fazendo lembrar os tempos

de fartura.

Além do registro das narrativas, realizei uma pesquisa na perspectiva de uma

memória topográfica (Alencar 2007). O processo de cartografar e mapear são feitos por

meio do conhecimento que os agentes sociais têm de seu território e, sobretudo, sobre o

que querem marcar no mesmo, que está em suas memórias. Isso é muito importante porque

faz com que, em alguns momentos, esse mapa seja a redescoberta de como perderam o

território, os recursos e como podem ressignificá-los (Almeida 2010b; Acselrad 2010).

Para isso, no mês de fevereiro de 2014 realizamos uma oficina de cartografia para a

elaboração de mapas situacionais dos lugares indicados pelos quilombolas, onde ocorrem as

práticas agrícolas. Na oficina de cartografia participaram 12 quilombolas, para elaboração

dos croquis e relatos de onde e como desenvolviam as roças antigas e as atuais. Os temas

que foram amplamente debatidos pelos participantes da oficina foram: o conceito de

conservação; a forma como os antigos plantavam e o questionamento sobre as proibições

de caçar, pescar e as restrições para “fazer a roça” em uma terra onde secularmente eles

desenvolvem tais atividades.

A oficina ocorreu em dois momentos. Durante a manhã, reunidos em grupo foram

discutidos os acontecimentos em torno das audiências que estavam ocorrendo sobre as

regras do uso do território. Em um segundo momento, os participantes se dispuseram a

contar sobre como tradicionalmente desenvolvem práticas de conservação da natureza e

como se organizam para fazer suas roças, os locais definidos e demarcados para a atividade.

Foram momentos de muita troca, de diálogo intenso entre os participantes e de

rememoração da ocupação do território. As figuras (12 e 13) mostram a concentração e o

exercício da memória, demarcando referenciais de lugares, limites e fronteiras.

Page 58: Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer

37

Figura 12 - Oficina de cartografia social. Curiaú.Fev.2014

Figura 13 - Oficina de cartografia social. Curiaú. Fev. 2014

1.3.2 Etnografia nômade: audiências públicas e reuniões Durante a pesquisa, busquei acompanhar também as reuniões e as audiências que

ocorreram no Curiaú, e em Macapá, cujo tema era o uso do território pelos agricultores.

Gravei e, posteriormente, transcrevi três audiências públicas envolvendo os agricultores e as

discussões em torno dos conflitos com a gestão da unidade de conservação. Esses espaços

Page 59: Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer

38

de debate público foram fundamentais para acompanhar a situação de gestão dos órgãos

públicos no território.

Outro desses momentos importantes foi a ocorrência da audiência pública no Curiaú

de Fora, no dia 20 de fevereiro de 2014, cujo objetivo exposto no convite divulgado pelo

Ministério Público Estadual (MPE) era

Criar um grupo de trabalho formado pelo Instituto de Meio Ambiente do Amapá, Batalhão da Polícia Ambiental, CONGAR, Secretaria de Desenvolvimento Rural (SDR), CPRU e Ministério Público Estadual Amapá (MPE), para reunir com os moradores que mantêm roçados e estabelecer limites quanto ao desmatamento de áreas florestadas e utilização de cerrado.

Os agricultores quilombolas foram mobilizados apenas uma semana antes da

audiência, e sem nenhuma informação e documentos que os municiasse sobre os objetivos

da reunião. O Sr. Sebastião Menezes pediu-me que pesquisasse na internet alguma

informação sobre o evento. Pesquisei e verifiquei que se tratava de uma Audiência que fazia

parte do inquérito civil nº 000552-91.2013.8.03.0001, mas como já estava muito próximo da

data da audiência, não tive tempo hábil para tomar conhecimento mais aprofundado do que

se tratava. Após a Audiência solicitei ao MPE, por meio de um ofício, uma cópia do processo,

o que me foi disponibilizado e que será um dos materiais analisados no quarto capítulo da

tese.

A audiência tinha como pauta discutir a situação das roças dos agricultores e definir

regras de como desenvolver as atividades agrícolas. Tudo sinalizava que os órgãos presentes

SEMA, IMAP, MPE, Polícia Ambiental, definiriam as regras. Mas, a intervenção de Sebastião

Menezes foi crucial para reverter a situação. De posse da Convenção 169 da Organização

Internacional do Trabalho (OIT) 23, ele pediu a palavra, e baseado na ideia de autonomia,

reivindicou o direito que eles tinham de definir como, onde e quando usarem seu território.

A partir daí, o debate passou a ser em torno da autonomia dos quilombolas, no qual foi

decidido que eles elaborassem suas próprias regras sobre as práticas agrícolas desenvolvidas

no Curiaú. Essas regras foram traduzidas em 62 itens, em um documento que

posteriormente, chamaram de “Leis do Curiaú”.

23

Meses antes dessa audiência, tínhamos organizado, juntamente com o Sr. Sebastião Menezes, reuniões de estudo sobre Direitos étnico e territoriais, no qual um dos temas foi a Convenção 169 da OIT.

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39

Figura 14 - Audiência Pública no Curiaú de Fora 20/02/ 2014.

1.3.3 A construção das Leis do Curiaú

Após a audiência pública, os quilombolas começaram a realizar reuniões para

elaboração do documento a que chamaram “Leis do Curiaú”. Durante dois meses realizaram

cinco assembleias que mobilizou toda a comunidade. Participei de três delas, quando foram

discutidos temas como: organização social, a distribuição da terra e os obstáculos para fazer

a roça, impostas pelas proibições dos órgãos ambientais.

Nesse processo, frequentemente, eu era consultada sobre questões de cunho

jurídico. Explicava que por não ser advogada não tinha como dar uma explicação

aprofundada sobre o tema, por isso, sugeri que recorressem ao Art. 16 do Decreto 4.887 de

200324, que diz que, em casos de conflitos, a FCP tem a obrigação de lhes dar assessoria

jurídica. Aprovaram a minha sugestão, e enviaram uma carta para Brasília, e a Fundação

Palmares prontamente mandou uma advogada para auxiliar na segunda audiência pública

que aconteceu em maio com objetivo de discutir as “Leis do Curiaú”.

24

O Decreto 4887 de 2003 no seu Art. 16 diz: “Após a expedição do título de reconhecimento de domínio, a Fundação Cultural Palmares garantirá assistência jurídica, em todos os graus, aos remanescentes das comunidades dos quilombos para defesa da posse contra esbulhos e turbações, para a proteção da integridade territorial da área delimitada e sua utilização por terceiros, podendo firmar convênios com outras entidades ou órgãos que prestem esta assistência”.

Page 61: Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer

40

Nesse momento comecei a fazer um levantamento dos casos de conflito envolvendo

os agricultores, que na perspectiva dos órgãos não estavam seguindo as regras de

licenciamento. Entrevistei três agricultores que tinham sido presos. E, juntei os documentos

de autuações e multas que foram obrigados a pagar.

No dia 15 de abril foi protocolado junto ao MPE, o Documento “Leis do Curiaú” após

dois meses de mobilização, debates e reuniões que duravam uma tarde inteira.

Posteriormente, foi marcada a segunda audiência pública para o dia 23 de maio de 2014 a

fim de discutir o documento. Com a chegada da advogada da FCP dois dias antes da

audiência, foi possível realizar reuniões de trabalho para colocá-la a par da situação.

Havia muita expectativa em torno dos resultados dessa audiência. A Promotoria de

Justiça de Meio Ambiente, Conflitos Agrários, Habitação e Urbanismo de Macapá

(Prodemac-MPE) coordenou os trabalhos durante a Audiência, e no relatório do MPE na

internet foi registrado que “o objetivo da audiência era regular o processo de licenciamento

de atividades tradicionais na região” (site do MPE). Vale ressaltar que a representante da

FCP se limitou aos cumprimentos e saudações iniciais.

Algumas lideranças quilombolas consideravam como ponto importante para o

debate, a constituição de um Conselho de Anciãos, que de forma autônoma pudesse decidir

sobre questões que dizem respeito à comunidade, o que, entretanto, não foi levado em

consideração para o debate pelos coordenadores da Audiência. O promotor elegeu 10

pontos a serem abordados e discutidos, e após todas as intervenções propôs que fosse

elaborado um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com os órgãos competentes. Na

agenda ficou definido que em duas semanas após aquela audiência seria realizada uma

reunião com os representantes de órgãos públicos para formatar a minuta do TAC, o que até

junho de 2015 não tinha sido efetivado.

Simultaneamente às atividades na comunidade, iniciei uma pesquisa documental nos

órgãos que possuem intervenção na APA. Procurei a SEMA para solicitar algumas

informações, onde fui recebida pela chefa da Unidade de Conservação, a senhora Sirley

Figueredo, que me orientou a apresentar um ofício e o projeto de pesquisa, conforme a

Resolução do Conselho Estadual do Meio Ambiente (COEMA) nº 0016/2009 que

regulamenta as pesquisas científicas nas Unidades de Conservação Estadual e dá outras

providências.

Page 62: Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer

41

Em fevereiro, apresentei toda a documentação à SEMA: ofícios, declarações e o

projeto de pesquisa. Ressaltei, no ofício encaminhado ao Secretário de Meio Ambiente do

Amapá Cleyton Toledo, que durante a pesquisa não realizaria nenhum procedimento de

coleta ou estudo de fauna ou flora na APA. Expliquei que precisava dos dados secundários de

caracterização socioambiental da APA. Por isso solicitei os seguintes dados:

georreferenciamento (shapfile) da APA; o censo socioeconômico das famílias25; os estudos

de zoneamento e plano de manejo; dados sobre autuações ambientais e informações sobre

atuação do CONGAR.

Por essa ocasião comecei a participar das reuniões do CONGAR, que ocorrem todos

os meses. As reuniões são locais “multissituados” de pesquisa que me possibilitaram

entender como funciona a atuação dos órgãos que pretendem ter gestão sobre o território

ocupado tradicionalmente pelas comunidades quilombolas. Na biblioteca da SEMA consegui

fazer cópias de algumas atas de reuniões do CONGAR.

Figura 15 - Reunião do CONGAR, 25/02/2014-Macapá.

25

Informações no site da UNIFAP indicam que a SEMA e Unifap realizaram em 2012, um Censo da Apa do rio Curiaú, “com objetivo de cadastrar os moradores, além de realizar um levantamento atualizado dos aspectos socioeconômicos e ambientais, bem como o georeferenciamento dos locais com pressões antrópicas, de conflitos, de uso comum e de potencialidades econômicas”. Informação Disponível em www2.unifap.br/geografia/2012/11/12/acadêmicos-de-geografia-apoiaram-o-censo-da-apa-do-curiau/. Apesar de muita insistência em ter acesso às informações do Censo, as sucessivas respostas até junho de 2014 para pesquisadora era de que “a tabulação dos dados ainda não tinham sido concluídas.” Infelizmente, não tive acesso aos dados do Censo socioeconômico da Apa.

Page 63: Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer

42

Durante a pesquisa de campo foi possível também, acompanhar o debate que estava

ocorrendo no CONGAR sobre a construção e instalação de um condomínio na APA do Rio

Curiaú. Um novo projeto estava sendo apresentado pela empresa Idealiza, do Rio Grande do

Sul. Nas reuniões, foram apresentados os estudos e projetos para construção de um

condomínio que estava intrusando as terras da comunidade do Curralinho, que fica próxima

ao Curiaú. A empresa já tinha iniciado seus estudos de impacto ambiental quando o MPE em

uma reunião na comunidade do Curralinho, no dia 29 de março de 2014, instaurou

procedimento preparatório e inquérito civil, requisitando informações à SEMA, ao Instituto

Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), e à empresa Idealiza sobre a situação da

comunidade do Curralinho.

Figura 16 - Reunião do CONGAR com a empresa Idealiza, Curralinho/ 29/03/2014.

O desordenado crescimento urbano de Macapá tem promovido especulação

imobiliária e demandando a construção de conjuntos habitacionais que avançam sobre as

terras de quilombo, a exemplo do que vem acontecendo com a comunidade de Lagoa dos

Índios que perdeu parte de suas terras para construção de conjuntos habitacionais (Bastos

2006). São médios e grandes empreendimentos imobiliários que surgem com a expansão

urbana de Macapá e pressionam as terras de quilombo, que contam com a morosidade do

poder público na condução da regularização de suas terras, Lagoa dos Índios foi certificada

em 2005 e até hoje seu processo está parado no INCRA.

Page 64: Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer

43

1.4 Reflexividade e a relação de pesquisa

No livro “A Favor da Etnografia”, Mariza Peirano (1995) argumenta que na

Antropologia não é possível ensinar a fazer pesquisa de campo como se ensina em outras

abordagens metodológicas. O desenvolvimento da pesquisa está diretamente ligado à

biografia do pesquisador, ao enfoque teórico, e, principalmente, às relações que se fundam

entre o pesquisador e o campo de pesquisa. O trabalho etnográfico, portanto, nos apresenta

questões sobre a inserção do pesquisador no campo e a relação que se estabelece com os

sujeitos com os quais interagimos. São questões que nos colocam de forma diferente do que

habitualmente nos situamos: a etnografia é entendida aqui, como um lugar de fronteira, e a

alteridade torna-se um momento reflexivo e crítico.

O conceito de reflexividade é usado como uma forma de pensar e repensar a prática

etnográfica, o que significa dizer que tudo deve ser analisado, refletido, repensado e

resignificado: desde como se deram os processos de negociação da presença do antropólogo

em campo até a devolução dos resultados do trabalho. E, concordando com Bourdieu

(1997),

Ainda que a relação de pesquisa se distinga da maioria das trocas da existência comum, já que tem por fim o mero conhecimento, ela continua, apesar de tudo, uma relação social que exerce efeitos (variáveis segundo os diferentes parâmetros que podem afetar)

sobre os resultados obtidos (1997:694).

Nessa linha de pensamento, um aspecto que me faz refletir sobre a relação de

pesquisa é o fato de frequentemente ter sido questionada por meus interlocutores sobre o

papel da pesquisa e suas consequências, me impulsionando, portanto, a discorrer sobre a

reponsabilidade social do antropólogo, quando nos dedicamos a fazer pesquisa seja ela

acadêmica ou não.

Um desses momentos de descentramento foi quando o Sr. Sebastião Menezes, me

fez uma solicitação. Ele pediu, que se possível, eu organizasse todo material, gravador,

máquina fotográfica, porque gostaria de gravar um debate entre nós sobre o que significa a

pesquisa e qual a sua importância. Fiquei animada com a proposta, e logo organizei tudo e

no dia seguinte fui ao Curiaú.

Ao chegar a sua casa ele iniciou a conversa dizendo que já há algum tempo vinha

refletindo sobre a presença de pesquisadores na comunidade e analisando as diferentes

Page 65: Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer

44

formas de fazer pesquisa, seus impactos e as diferenças que há entre o “pesquisador-

professor”, o “pesquisador sociólogo”, o “pesquisador antropólogo” e o “pesquisador

arqueólogo”.

Sebastião Menezes é uma das primeiras pessoas a ser procurada no Curiaú, quando o

assunto é pesquisa, inclusive já esteve a convite na defesa da dissertação de mestrado de

Silvaneide Queiroz (2007), no Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (NAEA). Ele, repetidas

vezes, me relatou a experiência de ter estado na universidade, e como quebrou o protocolo

da cerimônia de defesa ao pedir a palavra para a banca e fazer um pronunciamento em

defesa da pesquisadora.

A reflexão sobre essas questões implica pensar sobre o contexto e os fatores que

motivaram esses questionamentos. As questões foram suscitadas e reforçadas por razões

aqui elencadas: i) o fato de Sebastião Menezes estar por décadas em contato com

pesquisadores das mais diversas áreas. Só para se ter uma ideia na revisão bibliográfica

realizada, o Curiaú é local de pesquisa de duas teses de doutorado, 10 dissertações, uma

monografia de especialização e um número grande de monografias de graduação. Todos

esses trabalhos abarcam diferentes áreas do conhecimento: saúde, educação, museologia,

economia, nutrição, ambiental, biologia, linguística, geografia, antropologia, turismo,

bioantropologia (Acevedo Marin 1997; Trindade 1999; Silva 2002; Lima 2003; Viana 2003;

Brito 2003; Oliveira 2006; Queiroz 2007; Cantuária 2011; Videira 2013)

Somados a esses estudos acadêmicos, há inúmeros cadastros, censos e pesquisas

realizadas por instituições fora e de dentro da academia. Uma dessas pesquisas aconteceu

recentemente, produto de um edital financiado pela FCP, em 2012, para realização do

Mapeamento e Publicação do Patrimônio Cultural das 28 comunidades quilombolas no

estado do Amapá certificadas e/ou tituladas pela FCP, edital de chamada pública 002-2012

FCP-Ministério da Cultura (MINC).

Essa pesquisa provocou uma maior inquietude no Sr. Sebastião Menezes, sobretudo

após ele ter tomado conhecimento do que foi publicado em um relatório da pesquisa

disponibilizado pela internet no site da Universidade Federal do Amapá (UNIFAP). O

relatório, inicialmente, apresenta a equipe e a metodologia usada, explicando que “a equipe

da pesquisa foi composta por 13 profissionais de diversas áreas: cientistas políticos, cientista

social, geógrafos, administradores, educação artística. Não há na equipe nenhum

Page 66: Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer

45

antropólogo. Mesmo o relatório sendo contundente em informar sobre a presença “da

antropóloga”, e que o instrumento utilizado como metodologia de pesquisa teria sido o

laudo antropológico, somado ao questionário quantitativo, que, como informam “a escolha

desses instrumentos se deu pelo objetivo e tempo determinado da investigação de campo -

máximo de três dias em cada comunidade”. Em outro parágrafo está escrito: “O laudo é um

guia, uma ‘técnica’ utilizada por instituições públicas e privadas que levantam questões

acerca de um grupo social, em que o antropólogo segue um roteiro”.

O que chamou a atenção de Sebastião Menezes foi como as informações que ele

havia repassado para os pesquisadores foram registradas no relatório, no qual dados

históricos, da toponímia do lugar e a referência ao Curiaú como bairro, dados que não

condizem com a história de origem que o Sr. Sebastião conta e escreveu.

No que diz respeito à referência ao vocábulo inicial que denominou a comunidade,

diz o texto do relatório:

Criaú significa ‘onde cria búfalo’, mais tarde derivou para expressão Curiaú que também denomina o lago que cerca a comunidade.

Há uma divisão apenas simbólica na área, que separa a comunidade em Curiaú de fora e Curiaú de dentro. A de fora está nas imediações do lago e a

de dentro está mais próxima do centro urbano de Macapá 26.

Sebastião Menezes explica que o búfalo só entrou no Curiaú na década de 1970, não

tem nenhuma relação do búfalo com o nome Curiaú, que existe antes disso. Em termos de

toponímia, Curiaú de Dentro é que fica próximo ao lago.

Frente a esta situação, Sebastião resolveu escrever uma carta à FCP, que ainda está

sem resposta. Nesta carta dá uma sugestão à Fundação Palmares: propõe que passe a

promover, dar condições e instrumentos para que os próprios quilombolas elaborem

materiais sobre os conhecimentos do lugar, sejam eles históricos, ecológicos, de saúde, e

para que eles mesmos possam contar sobre sua história de resistência.

Na sequência do ocorrido, após a conversa que tivemos sobre pesquisa, se propôs a

escrever um texto em que expõe sua percepção e o que pensa sobre os pesquisadores. No

trecho do texto que ele escreveu e publicou no Jornal do Quilombo, edição de junho-julho

26

Ao realizar nova consulta ao relatório em dez de 2014, observei que algumas informações foram retificadas. Disponível em http://lides.unifap.br/comunidades/apresentação.htm/ .

Page 67: Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer

46

de 2014, estão registradas algumas impressões do quilombola escritor sobre a pesquisa e os

pesquisadores:

Este agricultor, conhecido como Sabá do Curiaú, ao longo destes 30 anos diretamente lidando com as questões desta comunidade e com várias classes de pessoas, categorias, e principalmente com a classe da educação. Eu lidei com professores pesquisadores, Antropólogos, Arqueólogos e Sociólogos. Observei quê, mesmo que esteja na mesma linha, mas, cada um tem um perfil. O professor-pesquisador, ele tem uma ânsia, agonia de descobrir fatos diferentes do que já viu, coisas novas, e ao conversar com as pessoas, este tem perguntas prontas, e fica na dúvida não questiona, fica com receio de perguntar coisas, pensando que o entrevistado não vai saber responder. O Antropólogo, este é focado no que já sabe, mas, busca se aprofundar em detalhes pra encachar nos espaços que faltou nas suas teorias. Para se tornar fato consumado, este vai fuçar nas escrituras, fotografias, pessoas e lugares. E este se torna amigo que passa a contribuir, ajudar a desvendar mistérios e orientar, esclarecer pontos obscuros que muitos de má fé tentam esconder, e, mais, este é capaz de se juntar com estes poucos entendimentos para dar a autoestima às pessoas ou à comunidade em destaque, este se torna gente humana. O arqueólogo, este na conversa se percebe, que só quer o que lhe interessa: é descobrir o lugar, o que tem pra ele vasculhar, encontrar, e depois se alto orgulhar: eu encontrei! Pouco importa as pessoas, e sim o achado, a atenção e o foco pra ele é aquilo que encontrou. O Sociólogo, eles são observadores, ao chegarem na comunidade e nas casas das pessoas de classe baixa, muito humilde, ou matuto, envergonhado. Este (o sociólogo) se sente o sabe tudo, em conversa com uma pessoa inibida, fala de muitas coisas e até coisas complicadas, difícil de entender, porque não é a praia daquele agricultor. Em primeiro lugar, valorizem as pessoas, deem ênfase a elas, diferenciem o seu potencial, e se coloquem próximo, no nível de quem você quer conversar. Aí, você pode ter certeza, que vai fluir um bom entendimento.

Voltando ao questionamento do Sr. Sebastião Menezes: qual a diferença que há

entre o “pesquisador-professor”, do “pesquisador sociólogo”, do “pesquisador antropólogo”

e do arqueólogo? Penso que o central aqui, não é responder sobre as diferenças ou

aproximações que esses campos do conhecimento têm entre si, mas buscar refletir o que a

pergunta e o entendimento do agricultor e escritor quilombola Sebastião Menezes pode nos

ensinar, que lições tirar delas? O que isso pode contribuir para entender “o mundo social da

ética” (Shurch 2011) e os desafios que a pesquisa antropológica nos apresenta? Nessa

perspectiva reflexiva, cabe ainda um questionamento: como o conhecimento produzido pelo

pesquisador (a) e os próprios (a) pesquisadores (as) são vistos pelos sujeitos do campo?

O exercício de problematizar sobre como o Sr. Sebastião Menezes vem refletindo

sobre a prática da pesquisa no Curiaú, me faz pensar também sobre os constantes

Page 68: Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer

47

reposicionamentos do pesquisador e dos sujeitos: como os sujeitos que participam de

nossos estudos, dinamicamente, nos encorajam a nos deslocar e a nos colocar também em

questão – desafiando-nos a constantemente nos descentrar. Muitas vezes nos convidando a

sair da “zona de conforto” do pesquisador observador para o pesquisador engajado, assim

como questionou Roberto Cardoso de Oliveira, no artigo de abertura do livro Antropologia e

ética: o debate atual no Brasil (2004: 22) “qual de nós, especialmente os etnólogos, não se

viu um dia pressionado a agir simultaneamente ao seu esforço de conhecer?” Concordo com

Patrice Shurch (2011), quando ela afirma que

A ética antropológica aparece, dessa maneira como uma produção emergente de contextos diversos de relações, o que assinala seu caráter dinâmico, aberto às contingências e é eminentemente relacional

(2011:20).

Sem dúvida, o domínio de reflexões sobre a prática etnográfica, não se constitui em

norma, e nem está escrito em nenhum manual de conduta em campo. Mas, é importante

salientar que o trabalho do antropólogo envolve sempre uma relação de interlocução. Luís

Roberto Cardoso de Oliveira (2010) indica as premissas éticas da pesquisa que implicam em

reciprocidade e dádiva, por meio de três responsabilidades que o pesquisador deve assumir:

i) Compromisso com a verdade e a produção de conhecimento antropológico, seguindo os critérios de validade científica compartilhados entre seus pares; ii) O compromisso ético, moral e político perante os sujeitos da pesquisa informando-lhes sobre sua condição de pesquisador e os objetivos e formas de abordagem da pesquisa, sempre respeitando suas práticas culturais, sua privacidade e o livre consentimento em participar ou não da pesquisa; iii) e o compromisso com a sociedade e a cidadania, principalmente ao retribuir aos sujeitos de pesquisa a divulgação e publicação dos resultados da pesquisa (2010:25).

Esse compromisso de dar, receber e retribuir estabelece uma conduta do pesquisador

em relação ao “outro”, o que está muito evidente na última frase do texto do Sr. Sebastião

que, com eloquência chama a atenção para a relação entre os sujeitos envolvidos na pesquisa

e sobre a importância do olhar de quem está dentro. A crítica do narrador se concentra à

tendência de se subestimar o conhecimento do outro, e até distorcê-lo em alguns momentos,

saber este construído ao longo da história secular, e é necessário que isso seja observado, para

não produzir uma violência simbólica (Bourdieu 2004b).

Page 69: Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer

48

CAPÍTULO 2

DINÂMICAS TERRITORIAIS DO ESTADO DO AMAPÁ

Nas fronteiras da Amazônia colonial, quilombolas – apoiados por outros personagens dos mundos da escravidão -, que já eram hidras, transformaram-se em bumerangues. Entraram em contato não só com ideias, mas fundamentalmente com outras experiências históricas.

Flávio Gomes (1995: 55)

2.1 Os Quilombos nas “Terras do Cabo Norte”

A história de formação territorial do Amapá, desde o período colonial caracteriza-se

por disputas que estão diretamente ligadas à história de ocupação da Amazônia. O

historiador Arthur Cezar Ferreira Reis (1982), por exemplo, diz que a “cobiça internacional”

de ingleses, holandeses, e, sobretudo, de franceses, gerou enormes conflitos entre essas

nações e Portugal. O rei Felipe IV de Espanha e III de Portugal concedeu a donataria da

Capitania do cabo Norte em 1627, quando a área territorial do atual estado do Amapá foi

doada a um português chamado Bento Maciel Parente, instituindo o regime de capitanias

hereditárias em terras amapaenses e estabelecida a Capitania do Cabo Norte. Ao final do

XVII, a região foi invadida pelos ingleses e holandeses, logo expulsos pelos portugueses. No

século XVIII, os franceses reivindicaram a possessão da área. Em 1713, o Tratado de Utrecht

estabeleceu as fronteiras entre o Brasil e a Guiana Francesa. Tratado esse que não foi

honrado pelos franceses (Reis 1982).

A criação de núcleos de povoamento, principalmente o de Macapá, nos anos de

1752-1754, ocorreu devido às constantes ameaças de invasão francesa a estas áreas (Reis

1982). O povoamento da região se deu com a chegada de colonos lusitanos e,

posteriormente, com a política de assentamento de casais açorianos pela administração

portuguesa, cujo empreendimento visava a ocupação das terras do Cabo Norte. O objetivo

era garantir o território ocupado por colonos portugueses, uma vez que o domínio colonial

de Portugal não tinha até então os contornos físicos definidos na costa setentrional. Em

primeiro de janeiro de 1900, uma Comissão de arbitragem, sediada em Genebra, deu ao

Brasil a possessão da região e o território do ex - contestado foi incorporado ao Pará, sob o

nome de Amapá (Reis 1982).

Page 70: Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer

49

O litígio pelas terras do Cabo Norte impulsionou uma das iniciativas estratégicas para

a geopolítica colonial portuguesa: a construção da Fortaleza de São José de Macapá. A

colonização das terras do Cabo Norte tomou novo impulso a partir da construção da

Fortaleza, que durou 18 anos (1764-1882), produzindo um aumento na população de

escravos africanos, que em 1788, segundo Vicente Salles (2005) atingia em Macapá o

número de 750 indivíduos. O povoamento e a construção da Fortaleza foram os dois

principais investimentos para garantir o domínio português na região.

Em relação à resistência ao regime de escravidão, os historiadores têm mostrado que

não foram poucas as organizações quilombolas na Amazônia, e, sobretudo, no Amapá (Salles

2005; Gomes 1995; 1997; 1999). As fontes documentais registraram que grandes quilombos

se formaram no período colonial nas terras do Cabo Norte, se proliferavam com uma

pluralidade de tamanhos e formas de organização política e econômica.

Flávio dos Santos Gomes (1997) desenvolveu uma extensa pesquisa de história social

da escravidão, analisou comparativamente as experiências das organizações quilombolas na

Amazônia colonial, no Grão-Pará, os quilombolas de Turiaçu-Gurupi no Maranhão e os

quilombos do Rio de Janeiro, São Paulo e Mato-Grosso. Revela e analisa uma face da

experiência negra na região da Guiana brasileira, especialmente Macapá, desde o período

colonial até o último quartel do século XIX. Amparado nas pesquisas de Salles (2005), Gomes

(1997) afirma que os primeiros africanos que chegaram ao Grão Pará foram para região do

Amapá, nas duas últimas décadas do século XVI, nas primeiras do XVII e organizaram-se em

mocambos.

Em relação às rotas de organização dos quilombos na Guiana brasileira, em 1749, já

existia no rio Anaeurapucu “um importante mocambo cujos negros se internaram para o

Norte quando descoberto pelas expedições de resgate de índios” (Salles 2005:255). A região

do rio Anaeurapucu é hoje o município de Santana. Os quilombos situavam-se no médio rio

Anaeurapucu, no lago do rio Arapecu (local das pedreiras e do rio Flexal até o Araguari). Os

quilombolas navegaram os principais rios do Amapá e construíram suas rotas de liberdade.

Em sua pesquisa Gomes (1997; 1999; 1995) apresenta também algumas rotas de fuga

dos negros que resistiam à escravidão. No artigo “Em torno dos bumerangues: outras

histórias de mocambos na Amazônia Colonial”, Gomes (1995) se refere aos quilombos nos

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50

limites territoriais da Amazônia colonial como os “bumerangues” e “hidras”27, onde o

cenário principal para esses bumerangues era a região de Macapá na capitania do Grão-Pará

que limitava-se com a Guiana Francesa (1995) . Havia ali, uma constante movimentação de

fugas de escravos e formação de quilombos desde o primeiro quartel dos setecentos. Era

nessa época, principalmente, na chamada “era pombalina” entre 1751 e 1759, que

começava a se avolumar a entrada de escravos africanos nessa região. Este comércio foi,

inclusive, facilitado pelas atuações da Companhia Geral de Comércio e da Companhia do

Grão Pará e Maranhão.

A fuga de escravos e o estabelecimento de mocambos eram já nessa época

considerados problemas crônicos. Grande parte dos escravos que fugiam nesta região era

formada por aqueles que trabalhavam nas fortificações militares em Macapá. Mocambos e

fugidos davam o que falar nas áreas de fronteiras do Grão Pará com a Guiana Francesa, o

que corresponde atualmente ao Amapá. Metaforicamente falando “Enquanto a Hidra de

Lerna precisou de um pântano mefítico para sobreviver, os quilombos também formaram

pântanos que nada mais foram do que cenários das suas histórias de suas lutas por

autonomia” (Gomes 1997:29).

Segundo dados de Anaíza Vergolino-Henry e Napoleão Figueredo (1990) na geografia

da organização quilombola no período colonial não foram apenas as fronteiras às margens

do rio Oiapoque que originaram os quilombos no Amapá. A região encachoeirada do rio

Araguari, nas cercanias de Macapá, foi também área de alta concentração de quilombos.

Apesar das perseguições, havia escravos que desciam armados às cabeceiras dos rios para

vila de Macapá. Facilmente eles alcançavam a vila e mobilizavam outros cativos. “Dos vários

quilombos que se constituíram na região do Amapá, aqueles que se formaram na área do

Araguari foram, sem dúvida, os mais populosos e estáveis” (Vergolino-Henry e Figueiredo

1990: 26).

Os rios Pedreira e Matapi que foram navegados pelos quilombolas são indicados

pelos historiadores como um lócus de resistência. A rota quilombola surgida dos

“aquilombamentos” do rio Araguari deixou na contemporaneidade um rico e imenso

território remanescente ao longo do seu afluente, o Matapi. Na região do vale do rio da

27

Gomes faz referencia à mitologia grega quando Hércules se depara com a Hidra de Lerna, monstro de várias cabeças que mesmo depois de cortadas, renasciam. A metáfora em relação aos quilombos era de que apesar das investidas de destruição dos quilombos pela sociedade escravista, eles ressurgiam.

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51

Pedreira se formou outra importante concentração de comunidades quilombolas, essas

regiões hoje equivalem aos municípios de Macapá e Santana. Os territórios ocupados por

comunidades quilombolas no Amapá estão, em sua maioria, concentrados em duas áreas

extensas às margens de dois rios da bacia hidrográfica amapaenses: as comunidades às

margens do rio Matapi e a do vale do rio Pedreira.

Atualmente, próximo ao rio Matapi, por toda sua extensão, desde o rio Araguari até o

desague do rio Amazonas, localizam-se, aproximadamente, vinte comunidades quilombolas.

Algumas no vale do rio Pedreira, tais como: Curiaú, São José do Mata Fome, Ressaca da

Pedreira, Santo Antônio da Pedreira, Abacate da Pedreira, Lontra, Mel da Pedreira, Cavalos,

Alegre, São Pedro dos Bois, Ambé e Conceição do Macacoari conforme visualizamos na

figura 17, desenho de Willy Miranda, 25 anos, jovem quilombola do Curiaú.

Figura 17- Croquis das comunidades quilombolas de Macapá

2.2 A criação do Território Federal do Amapá

Em 1943, o governo do presidente Getúlio Vargas definiu como meta a criação do

Território Federal do Amapá, que nesse mesmo ano foi desmembrado do estado do Pará, e

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52

permaneceu como território até 1988. Com a promulgação da Constituição Federal de 1988,

tornou-se Estado. Jadson Porto (2005) define três períodos econômicos locais: gênese,

estruturação produtiva e organização espacial (1943-1974); planejamento estatal e

diversificação produtiva (1975-1987); estadualização e sustentabilidade econômica pós

1988. Na perspectiva de Porto (2005) nos 45 anos que o Amapá permaneceu como

território federal, além das transformações econômicas e administrativas, surgem nos

primeiros anos após a criação do TF do Amapá, algumas decisões no que diz respeito à

gestão dos recursos naturais no espaço amapaense, entre elas, a indicação da reserva

manganífera amapaense como reserva nacional pelo decreto n.9.858 de 1946 (Porto 2005).

Em relação à história de territorialização dos negros no Amapá, Mariana Gonçalves

(2013) mostra que no século XIX, grupos negros desenvolveram um processo de

territorialização na região de Macapá e seus arredores. Entretanto, a partir de 1943 muitas

dessas famílias negras estabelecidas em Macapá, principalmente na frente da cidade,

passaram por um processo de desterritorialização, sendo obrigadas a sair de suas moradias e

foram destinadas às áreas periféricas. Como bem aponta Gonçalves (2013), os negros foram

expulsos da frente da cidade, e se territorializaram nos lugares que hoje é o Laguinho e a

Favela, são dois bairros que configuram um território negro urbano em Macapá, com uma

expressão cultural muito forte, considerados o berço do Marabaixo, importante

manifestação cultural negra do estado (Videira 2009).

Esse momento de transferência compulsória dos negros também era sempre

lembrado pelo velho Joaquim Tibúrcio, sua memória transcendia os limites do Curiaú. Em

uma de suas narrativas relatava os acontecimentos da década de 1940, quando aproveitava

e cantava o famoso “Aonde tu vai rapaz?” 28, que conta nos seus versos como na história

recente do Amapá, os negros foram excluídos do planejamento do território federal, sendo

expulsos para o que hoje se configura o bairro do Laguinho.

Atualmente, o Amapá (figura 18) é um estado compreendido pela região amazônica

que apresenta, segundo dados do IBGE (2010), uma área territorial de 142.828,521 km²,

distribuída em 16 municípios, com uma população de 669.526 habitantes. Está situado a

nordeste da região Norte e tem como limites o Pará a oeste e sul, a Guiana Francesa a norte,

28

“Pra onde tu vai rapaz por estes campos sozinho com esse feixe de palha? Vou fazer minha morada lá nos

campos do Laguinho” (trecho do “ladrão” Aonde tu vai rapaz?).

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53

o Oceano Atlântico a leste e o Suriname a noroeste. Macapá, a capital, é a cidade mais

populosa com 355.408 habitantes, com uma área urbana de 6.862,4 km², seguida por

Santana com 98.600 habitantes.

Figura 18 - Mapa da divisão politica do Amapá. Fonte: Amapá, 2008

2.3 Terras de quilombo no Amapá

O Amapá é um dos estados da Amazônia brasileira que se caracteriza pela expressiva

formação territorial constituída através da existência de terras públicas. Além disso, neste

estado se verifica um processo de territorialização étnica objetivado pela existência social de

povos e comunidades tradicionais quilombolas, que ainda precisam ser compreendidos no

que se refere à sua construção de “territorialidades específicas” (Almeida 2006a), bem

como, a efetivação da regularização fundiária de seus territórios tradicionais.

Page 75: Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer

54

Na esfera administrativa do estado do Amapá, mediante o Decreto 1.441 de 2004

que trata das normas de funcionamento do modelo de gestão, estrutura da administração e

da organização básica das secretarias, ressalta-se a existência da Secretaria Extraordinária de

Políticas Públicas para os Afrodescendentes (SEAFRO). Essa Secretaria, entre outras linhas de

atuação, desenvolveu até 2014, o projeto intitulado “SEAFRO, Presente Com Você” que pelo

seu alcance, posteriormente, passou a ser referido “SEAFRO Presente com Você Sem

Fronteira”.

Segundo o coordenador do projeto no período de 2010 a 2014, João Ataíde29, o

projeto governamental “SEAFRO presente com você sem Fronteira era uma forma

encontrada pela Secretaria para chegar as 124 comunidades espalhadas por todo o Amapá,

a fim de informá-las sobre seus direitos, e incentivar o seu empoderamento e autonomia”.

João Ataíde ressaltou que uma das características do Projeto é a composição da equipe

técnica, no qual todos são quilombolas. Nesse sentindo, refletiu que “essas comunidades

não conhecem como funcionam os marcos regulatórios, título de domínio coletivo e não

conhecem os seus direitos”.

No que se refere ao processo de regularização fundiária de terras quilombolas

observamos que a Constituição do Estado Amapá, promulgada no ano de 1991, não trouxe

no seu texto, o dispositivo equivalente ao art. 68 ADCT30, de forma que isso, somente foi

juridicamente garantido no nível estadual através da Lei Ordinária nº 1.505 de 23 de julho de

201031, que define:

Art. 1º. Os procedimentos administrativos para identificação, o reconhecimento e delimitação, a desintrusão, a demarcação e a titulação da propriedade definitiva das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos, de que trata o Art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (CRFB-88), serão procedidos de acordo com o estabelecido nesta Lei.

29

Entrevista realizada em dia 15 fevereiro de 2014, na cidade de Macapá (AP). 30

Entre o ano de 1991 da promulgação até o ano de 2009, a Constituição Estadual do Amapá contou com 44 Emendas Constitucionais (EC), entre as quais se destaca a EC 35/2006 que acrescenta ao Título VIII - Da Ordem Social o Capitulo XII – Dos Afro-brasileiros, no intuito de se garantir no texto constitucional a promoção da igualdade racial e as Politicas Afirmativas e se “promover a correção das distorções e desigualdades raciais decorrentes do processo de escravidão e das demais práticas discriminatórias adotadas durante todo o processo de formação social do Brasil”, muito embora não se verifique nenhum direcionamento específico para a regularização fundiária das terras de quilombo como política pública de reparação à violência histórica sofrida. 31

Esse instrumento jurídico estadual apresenta-se então em consonância com o disposto pelo Decreto Federal 4.887/2003.

Page 76: Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer

55

Nesse ínterim, outro dispositivo jurídico ligado ao órgão fundiário estadual, no ano

de 2008, se referia à questão quilombola, conforme se observa no Decreto Lei 1.184 de 04

de janeiro de 2008 que dispõe sobre as alterações no Instituto de Terras do Amapá (Terrap),

tornando-o a partir dali, o Instituto do Meio Ambiente e de Ordenamento Territorial do

Estado do Amapá (IMAP), vinculado à Secretaria de Estado de Meio Ambiente (SEMA),

assim:

Art. 4º Fica criado o fundo de ordenamento territorial e desenvolvimento Agrário - FDA, gerido pelo Instituto do Meio Ambiente e de Ordenamento Territorial do Estado do Amapá – IMAP, para aplicação em programas de estruturação e fomento à reforma agrária, regularização fundiária e ao desenvolvimento agrícola, preservação ambiental, projetos quilombolas, de comunidades locais e desenvolvimento institucional do IMAP.

Em 25 de novembro de 2010, o governador do Amapá, instituiu a Lei 1.519 que criou

o Programa Amapá Afro a ser realizado sob coordenação geral da SEAFRO:

Art. 3º O programa Amapá afro tem a finalidade de programar, no âmbito do Governo do estado, políticas públicas direcionadas à redução das desigualdades raciais para população negra e ou afrodescendentes e quilombola, proporcionando ações exequíveis para garantir melhoria das condições de vida e a consolidação de seus direitos constitucionais de cidadãos.

Art. 7º As despesas decorrentes do Programa Amapá AFRO estão contempladas no Orçamento Estadual e cada órgão empreenderá esforços para atendimento definido por ato do Poder Executivo.

Assim, o programa se coloca com a finalidade de direcionar as ações dos diversos

órgãos governamentais, como Secretaria de Estado da Cultura (SECULT), Secretaria Estadual

de Educação (SEED), Agência de Desenvolvimento do Amapá (ADEAP), Secretaria Estadual do

Meio Ambiente (SEMA) e construir políticas de ações afirmativas voltadas aos

“afrodescendentes” e comunidades quilombolas.

Na esfera municipal do poder público, mediante a Lei Complementar nº 083/2011 de

06 de outubro foi criado o Instituto Municipal de Promoção de Igualdade Racial (IMPROIR).

Segundo seu regimento interno, este instituto constitui-se enquanto “uma autarquia

pública, datada de personalidade jurídica e patrimonial própria, com sede e foro na Capital

do Estado, com o objetivo de gerir políticas públicas de promoção da igualdade racial no

Page 77: Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer

56

âmbito do Município de Macapá”32. Assim no Art. 27 do regimento interno do IMPROIR, se

estabelece o Departamento de Promoção da Igualdade Racial com a finalidade de:

I – planejar, coordenar e articular as atividades de proteção, preservação e promoção da identidade cultural da população afrodescendente e das comunidades dos remanescentes dos quilombos; II – acompanhar projetos de intervenção em bens móveis e imóveis do patrimônio cultural afro-brasileiro, com vistas a garantir a preservação de suas características culturais; III – proceder ao registro das declarações de autodefinição apresentadas pelas comunidades dos remanescentes dos quilombos e expedir a respectiva certidão; IV – apoiar e articular ações culturais, sociais e econômicas com vistas à sustentabilidade das comunidades dos remanescentes dos quilombos; V – assistir e acompanhar as ações de regularização fundiária das comunidades dos quilombos certificadas; VI – propor e apoiar atividades que assegurem a assistência jurídica às comunidades dos remanescentes dos quilombos, com o apoio jurídico nos termos do Decreto nº 4.887, de 20 de novembro de 2003.

O IMPROIR é um Instituto ainda em processo de estruturação, mas que tem em seu

regimento propostas que se efetivadas serão fundamentais para alavancar a titulação das

terras de quilombos no Amapá.

2.3.1 Ações de regularização fundiária: mapeamento, certificação e titulação no Amapá

No último levantamento sistematizado e apresentado em uma planilha de Excel

fornecido pela SEAFRO, sobre a existência de “comunidades negro-quilombolas”, até o ano

de 2013, identificaram-se 85 (oitenta e cinco) “comunidades tradicionais” 33. No mesmo

sentido dessa expressiva existência de comunidades quilombolas que aponta a SEAFRO, a

Coordenação nacional de comunidades quilombolas (CONAQ-Sessão Amapá) identifica em

seu website, a existência de cerca de 70 (setenta) comunidades quilombolas no estado34.

O coordenador do Projeto “SEAFRO Presente com você, Sem Fronteira” nos explicou

que a oralidade, a pesquisa bibliográfica e a construção de banco de dados são os principais

componentes da metodologia de trabalho que buscou sistematizar as informações de

campo, e que já conseguiram chegar as 85 comunidades. As categorias usadas pelos

32

Durante a pesquisa de campo e percurso nas instituições para levantamento de dados, estivemos no IMPROIR, onde obtivemos cópia do regimento interno, porém, até o momento o regimento ainda não foi aprovado pelo prefeito. 33

Informações obtidas da SEAFRO mediante levantamento preliminar de dados institucionais realizado em novembro de 2013. 34

Disponível em: http://quilombolasdoamapa.blogspot.com.br/p/relacao-de-comunidades-quilombolas-do.html Acesso: 08.02.2014.

Page 78: Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer

57

pesquisadores são: “i) tradicional quando a pessoa não conhece que é quilombola, pois

ainda não ocorreu a autoidentificação; ii) negro pela pigmentação da pele; e, iii) quilombola

pela auto identificação”.

Segundo João Ataíde, O trabalho do Projeto “SEAFRO presente com você, sem

fronteira” é iniciar um processo de organização das comunidades para conquistar a sua

certidão junto à FCP. O trabalho consiste em reuniões e orientação para organização da

documentação necessária exigida para certificação. O coordenador lembra que as

comunidades de Conceição do Igarapé do Lago do Maracá, Mari, Joaquina, Fortaleza e

Laranjal do Maracá deverão abrigar o primeiro Território Quilombola do Amapá, estão

localizadas na região do Maracá, na divisa dos municípios de Mazagão e Laranjal do Jari, na

região sul do estado. Foi fundada a Associação Quilombola dos Remanescentes das

Comunidades do Igarapé do Lago do Maracá (AQRCILM), que também representa todas as

comunidades do entorno. “A Secretaria Extraordinária de Políticas para Afrodescendentes

(SEAFRO) acompanha esse processo de organização coletiva desde o início. Com a entidade

formalmente criada, agora a luta é pela criação do primeiro Território Quilombola

oficialmente reconhecido do Amapá”, afirma Ataíde.

A partir de 2008 foi criado mais um condicionante para que as terras de quilombos

fossem tituladas, a apresentação de certificado, emitido pela FCP, que passou a exigir

também a apresentação de um relatório sintético da trajetória comum do grupo e a as

visitas técnicas nas comunidades. O que torna o processo mais lento35.

Conforme informações do site da FCP organizadas no quadro 1, existem 33

comunidades quilombolas certificadas, das quais 19, se localizam em Macapá; 23 processos

estão tramitando na Superintendência do Incra (SR 21), 04 (quatro) estão com o processo

de certificação em andamento, quatorze foram abertos há mais de cinco anos e ainda não

foram tituladas e outros cinco aguardam solução há uma década.

35

Portaria nº 98 de 2007.

Page 79: Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer

58

Quadro 1 - Comunidades Quilombolas no Amapá Certificadas pela FCP

UF MUNICIPIO COMUNIDADE QUILOMBOLA PUBLICAÇÃO/DOU

AP Calçoene Cunani 19/04/2005

AP Macapá Lagoa dos Índios 19/08/2005

AP Macapá Conceição do Macacoari 09/11/2005

AP Macapá Mel da Pedreira 09/11/2005

AP Macapá Ilha Redonda 12/05/2006

AP Macapá Rosa 12/05/2006

AP Macapá São José do Mata Fome 12/05/2006

AP Macapá São Pedro dos Bois 12/05/2006

AP Macapá Ambé 07/06/2006

AP Macapá Porto do Abacate 28/07/2006

AP Santana São Raimundo do Pirativa 13/12/2006

AP Oiapoque Kulumbú do Patuazinho 19/11/2009

AP Santana Engenho do Matapí 19/11/2009

AP Macapá Curralinho 24/03/2010

AP Macapá São João do Matapi 24/03/2010

AP Santana Nossa Senhora do Desterro dos Dois Irmãos 24/03/2010

AP Macapá Ressaca da Pedreira 28/04/2010

AP Macapá Santo Antônio do Matapi 28/04/2010

AP Santana Alto Pirativa 28/04/2010

AP Santana Cinco Chagas 28/04/2010

AP Tartarugalzinho São Tomé do Aporema 28/04/2010

AP Ferreira Gomes Igarapé do Palha 04/11/2010

AP Macapá São José do Matapi do Porto do Céu 04/11/2010

AP Itaubal do Piririm São Miguel do Macacoari 27/12/2010

AP Santana Igarapé do Lago 17/06/2011

AP Macapá Santa Lúzia do Maruanum I 04/10/2011

AP Macapá São João do Maruanum II 04/10/2011

AP Macapá Curiaú (Titulada) 13/03/2013

AP Laranjal do Jari São José 24/05/2013

AP Mazagão Lagoa do Maracá 24/05/2013

AP Vitória do Jari Taperera 24/05/2013

AP Macapá Campina Grande 19/09/2013

AP Macapá Carmo do Maruanum 25/10/2013

Total 33

Fonte: Fundação Cultural Palmares (2013)

Page 80: Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer

59

Somente 04 (quatro) comunidades quilombolas foram tituladas: Curiaú (1999);

Conceição do Macacoari (2006); Mel da Pedreira (2007), e mais recentemente, a

comunidade de São Raimundo do Pirativa (2013). As tituladas totalizam 14.660,594

hectares, o que representa menos de 1% da área geográfica do estado.

Quadro 2 - Comunidades Tituladas no Amapá até 2013

Fonte: Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) SR 21

Em relação à mobilização pela garantia dos direitos constitucionais, os movimentos

sociais negros e quilombolas vêm se mobilizando, muitas vezes, junto ao Ministério Público

Federal (MPF) para pressionar o avanço do processo de regularização de terras quilombolas

no Amapá. Em novembro de 2013, pude participar de uma audiência pública para discutir a

regularização fundiária de terras de quilombo no Amapá. Entre as instituições presentes

nessa audiência, estavam: IMAP, INCRA, a Secretária do Patrimônio da União (SPU), Instituto

Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). Entre as comunidades:

Maruanum, Lagoa dos Índios, São Pedro dos Bois, Cunani, Ilha Redonda e a CONAQ.

O MPF/AP propôs na ocasião, o estabelecimento de uma “força-tarefa” com o

envolvimento de todas as instituições presentes, no intuito de agilizar os trâmites dos

processos abertos no INCRA referentes à regularização fundiária das terras quilombolas.

Desde essa audiência, de fevereiro a maio de 2014, os quilombolas, com o direcionamento

da CONAQ, realizaram inúmeras mobilizações, tanto no MPF quanto no Incra, com intuito

de pressionar o processo de regularização fundiária quilombola.

Em maio de 2014, a partir de uma ação civil pública ajuizada pelo MPF/AP que

tramitou na 2ª Vara da Justiça Federal, se decidiu que as áreas objeto de regularização

fundiária quilombola deverão ser averbadas e inscritas no Cartório de Registro de Imóveis.

As providências para essa inscrição devem ser realizadas pelo INCRA e IMAP.

Nome Município Famílias Área há Órgão expedidor Ano

Curiaú Macapá 160 3.321,89 Fundação Palmares

1999

Conceição do Macacoari Macapá 20 8.475,47 Incra 2006

Mel da Pedreira Macapá 25 2.629,05 Incra 2007

São Rdo. do Pirativa Santana 17 234.184 Incra – SPU 2013

Page 81: Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer

60

O MPF/AP pede também que a União Federal, através do Ministério do

Desenvolvimento Agrário (MDA), não realize nenhuma demarcação, por meio do Programa

Terra Legal, em território ocupado por comunidades quilombolas no Estado. Os órgãos

deverão também emitir relatórios de inspeção acerca da precária situação a que estão

submetidas as comunidades quilombolas. É solicitada, ainda, a realização de oficinas nas

comunidades com o objetivo de promover a identidade étnica e cultural, bem como a

reafirmação de direitos das comunidades quilombolas.

Por meio da ação do MPF/AP, os órgãos poderão ser condenados ao pagamento de

R$10 milhões por danos morais coletivos. A indenização deve ser depositada em conta

específica vinculada à Justiça (Processo 0006890-11.2014.4.01.3100- 2º Vara de Justiça do

Amapá). Essa ação teve origem em inquéritos civis existentes na Procuradoria da República

no Amapá (PR/AP) e na audiência pública realizada pela instituição em novembro de 2013.

Foram ajuizadas até agora seis ações civis públicas contra o INCRA e à FCP, com cobranças

de processos que já tem mais de dez anos sem nenhuma resolução, a exemplo de Cunani

que convive com o impasse da sobreposição do Parque Nacional do Cabo Orange (PNCO) em

suas terras, o que levou o MPF/AP a processar a União e o ICMBio, para que o INCRA possa

concluir o processo de regularização das terras quilombolas sem prejuízo de suas terras36.

Na figura 19 se destacam as delimitações de terras quilombolas fornecidas pelo

INCRA, e que compõem 13 comunidades, sendo que 12 delas configuram uma área quase

que contígua, demonstrando a conformação de um amplo território quilombola em Macapá.

36

Disponível em noticias. pgr.mpf.mp/noticias-do site/copy-of-indios e minorias/mpf vai a justiça pela regularização de terras quilombolas no Amapá. Acesso: maio de 2015

Page 82: Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer

61

Figura 19- Mapa de terras de quilombos delimitadas no Amapá, em 2013

Page 83: Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer

62

2.4 Cenários de conflitos em territórios quilombolas

As pesquisas acerca das situações sociais de conflitos, em seus aspectos jurídicos,

direitos territoriais de povos e comunidades tradicionais em sua relação com o Estado

analisam, entre outras questões, as situações de sobreposição entre as áreas que possuem

finalidades opostas, o que ocasiona conflitos decorrentes das distintas tutelas jurídicas sobre

o mesmo espaço (Ricardo 2004; Chacpe 2014; Arruti 2013).

Um dos primeiros trabalhos a desenvolver uma abordagem sistemática sobre

possíveis conflitos entre UC e TTO é “Terras indígenas & Unidades de Conservação da

Natureza - o desafio das sobreposições” organizado por Fany Ricardo (2004). Essas pesquisas

mapearam os conflitos com o propósito de avançar na reflexão a respeito das

“sobreposições” entre terras destinadas a diferentes usos no Brasil, particularmente UC e TI,

partindo de diferentes perspectivas: histórica, jurídica, antropológica, política e ecológica.

Em seguida fazem um mapeamento dos casos mais emblemáticos do que eles consideram

sobreposição entre TI e UC no Brasil.

O estudo aponta, ainda, que até 2004 foram contabilizados 55 casos de

“sobreposição” de áreas protegidas, cuja aplicabilidade vem sendo debatida tanto no meio

acadêmico, quanto no âmbito dos órgãos governamentais competentes. O debate é

incipiente e inconcluso, o que demonstra a complexidade da questão (Ricardo 2004). Os

casos de sobreposição apontados pelos pesquisadores são: os Guarani e a Mata Atlântica; os

Xokleng e o Alto do vale do Itajaí; os Yanomami e a Terra Floresta em Roraima; os Karajá e a

Ilha do Bananal; os Uru-Eu-Wau-Wau e a Serra dos Pacáas Novos; os Munduruku na Flona do

Tapajós e a Terra Indígena Porto da Praia na Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS)

do Mamirauá.

Sérgio Leitão ao discutir a questão de sobreposição é enfático em afirmar que a Lei

9.985/2000 que criou o SNUC “não inova, não conseguindo romper a rígida e antiga

classificação utilitarista do meio ambiente que só enxerga os atores pelo viés maniqueísta de

quem faz uso ou não dos recursos naturais” (2004: 18). Na perspectiva do jurista existem

ainda obstáculos que não possibilitam que haja uma maior flexibilidade ao rever situações

Page 84: Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer

63

de UCPI, reclassificando-as para possibilitar a permanência dos Povos e Comunidades

Tradicionais (PCT) em seu interior.

Em relação aos territórios quilombolas, a pesquisa de Juliana Chacpe (2014) buscou

identificar, no aspecto jurídico, as dificuldades encontradas na condução dos processos

tramitados na Câmara de Conciliação e Arbitragem da Administração Federal (CCAF) de

casos de “conflitos socioambientais entre unidades de conservação de proteção integral e

comunidades quilombolas, decorrentes da sobreposição de dois direitos fundamentais, em

tese, impassíveis de restrição” (2014: 10). A autora analisa seis procedimentos conciliatórios

que tramitam no CCAF: i) Parque Nacional de Cabo Orange e o Território Quilombola de

Cunani, no Amapá; ii) Reserva Biológica do Trombetas no Território Quilombola do Alto

Trombetas, no Pará; iii) Reserva Biológica do Guaporé sobre o TQ de Santo Antônio do

Guaporé, em Rondônia; iv) Parque Nacional de Aparados da Serra e da Serra Geral sobre o

território quilombola de São Roque em Santa Catarina e Rio Grande do Sul; v) Comunidade

quilombola do Mumbuca e Reserva Biológica (REBIO) Mata Escura no Jequitinhonha-MG; e

vi) Comunidade quilombola do Tambor e o Parque Nacional do Jaú no Amazonas.

A situação do PNCO37 que sobrepõe o quilombo do Cunani no Amapá expõe o

impasse entre os órgãos jurídicos das principais autarquias envolvidas no conflito: INCRA e

ICMBio. O processo de regularização fundiária da comunidade de Cunani tramita desde

2004. O INCRA não concluiu o processo de regularização das terras quilombolas, porque

parte da terra pleiteada pela Associação dos Moradores Remanescentes Quilombolas de

Cunani (AMRQC) o equivalente a 36.342 hectares, desta área, 21.970 há está sobreposto

pelo PNCO.

Para resolver a situação de impasse entre os órgãos, em 2007, o processo seguiu para

o CCAF, com o intuito de tratar da controvérsia administrativa entre o INCRA e ICMBio em

razão da “sobreposição geográfica de área de interesse da AMRQC com a área do PNCO”. O

MPF em sua recomendação nº 26/2013, referente ao Inquérito Civil nº

1.12.000.000273/2007-62, foi contundente em afirmar que “a comunidade não foi ouvida

em nenhuma reunião e que as pseudos consultas não atendem aos atributos essenciais de

consulta prévia, livre e informada”. Ao longo da tramitação do processo no CCAF, a

37

O Parque Nacional do Cabo Orange (PNCO) foi criado em 1980, abrange uma área de 619.000 mil ha num perímetro de 590 km, compreendendo os municípios e Oiapoque e Calçoene. Disponível em: http://uc.socioambiental.org/

Page 85: Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer

64

comunidade não foi consultada, contrariando a Convenção 169 da OIT. Nessa

recomendação, feita à época pelo procurador da República do MPF do Amapá, Luís Camões

Lima Boaventura, solicita ao ICMBio que promova debates para informar à comunidade

sobre o que significa uma Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS), pois é uma das

alternativas indicadas pelo CCAF para solucionar os conflitos.

O Workshop Políticas de Reconhecimento e Sobreposições Territoriais38 realizado em

2013 na Unicamp reuniu pesquisadores de várias regiões do Brasil para discutir 25 casos

concretos de sobreposição de populações tradicionais, entre estes casos temos em terras

indígenas (sete casos) e entre os quilombolas (nove casos) (Arruti 2013). Os pesquisadores

colocaram em questão, entre outros temas, os embates concretos produzidos tanto pelas

demandas, quanto pelos efeitos do processo de territorialização. Um dos objetivos do

seminário, segundo os organizadores:

Observar o campo de ação das agências governamentais, dando especial atenção às incongruências produzidas pelo confronto entre dispositivos de territorialização baseados em categorias fixas, homogêneas e excludentes e sua aplicação às situações nas quais os coletivos sociais não são fixos, nem homogêneos, nem excludentes, gerando situações de sobreposição territorial (Arruti e Almeida 2012: 2).

Almeida e Rezende (2013), em um dossiê publicado após o Workshop, chamam

atenção para algumas contradições entre o SNUC e os princípios e políticas de

reconhecimento de Povos e Comunidades tradicionais, anunciados pelo Estado brasileiro

pelo Decreto nº 6.040 de 2007. Contradição exemplificada pelo estudo apresentado por

Marcelo Spaolonse (2013) no qual etnografa a situação do território quilombola de São

Roque e os Parques Nacionais de Aparados da Serra e da Serra Geral, localizados em região

limítrofe entre os estados de Santa Catarina e Rio Grande do Sul. O autor expõe que, com a

criação das duas unidades de conservação de proteção integral, em 1992, as famílias que

viviam há mais de um século na região passaram a ser consideradas como “ilegais” e suas

38 Realizado e organizado por Mauricio Arruti e Mauro Almeida na Universidade de Campinas (Unicamp). Nesse Workshop, foram discutidos os seguintes casos de sobreposição em territórios tradicionais, indígenas e quilombolas no Brasil: Resex Alto Juruá TI Arara do rio Amônia (Acre); Resex Alto Juruá TI Kuntanawá do rio Tejo Acre; Resex Tapajós-Arapiuns-Quilombos e indígenas e tradicionais (Pará); Flona Tapajós tradicionais, quilombos e indígenas (Pará); APA Terra Indígena Cobra Grande (Pará); Resex Quilombo do Frechal no Maranhão; Quilombo de São Roque; Comunidade quilombola do Tambor, Parque Nacional do Jaú (Amazonas); Quilombo Maria Rosa Parque Estadual de Intervalares (São Paulo).

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65

práticas de subsistência qualificadas como “crime ambiental”. Essas famílias reivindicam a

titulação de seu território até os dias atuais.

Almeida (2012) considera que as dificuldades operacionais de dirimir as

sobreposições nos casos de terras indígenas e terras de quilombo demonstram que

O discurso burocrático dos órgãos governamentais e das agências ambientalistas incorpora o termo “re-categorização” de unidades de conservação, chamando a atenção para as novas distinções espaciais a partir das sobreposições e suas implicações. Está em pauta uma classificação mais rígida de espaços geográficos eleitos oficialmente para garantir a implementação da política ambiental, quando confrontadas com povos e comunidades tradicionais (2012:69).

No livro Territórios Quilombolas e Conflitos (Almeida et al 2010c) foram apresentadas

duas situações de conflito vivenciadas nos territórios quilombolas que são sobrepostas por

UCPI (Farias Jr. 2010a; 2010b). Emmanuel Farias Jr. (2010b) ao estudar a dinâmica social do

conflito envolvendo a comunidade do Tambor no Amazonas e o Parque Nacional do Jaú,

mostra que,

Com a instalação da base de fiscalização na foz do rio Jaú, em 1985 e a presença dos agentes do IBDF, posteriormente, IBAMA, intensificaram as fiscalizações. Da mesma forma, estabeleceram uma série de restrições e proibições, quanto ao uso dos recursos naturais, a caça, a pesca, a agricultura, a coleta e o extrativismo vegetal. Essa “nova” fisionomia técnica e arbitrária de gestão territorial impôs o controle social, econômico e cultural. Tais proibições ocasionaram diversas situações de conflito entre o modelo proposto de unidade de conservação e as formas de uso dos recursos pelos denominados “povos e comunidades tradicionais” (2010b: 143).

José Franco e José Drumont (2009) na publicação “Terras de Quilombolas e Unidades

de Conservação: uma discussão conceitual e política, com ênfase nos prejuízos para

conservação da natureza”39, ao examinarem a situação do Parque Nacional do Jaú (PNJ) e

dos Parques Nacionais de Aparados da Serra e Serra Geral, elaboraram um argumento

contrário à permanência dos quilombolas e se referem aos estudos antropológicos como

“invenção de um quilombo”(2009:67) . Em outro momento da publicação são enfáticos ao

afirmar que a “propensão a ceder áreas de UCs e de outras terras públicas para

comunidades auto-identificadas carece de bases científicas e jurídicas” (2009:4).

39

Estudo financiado pelo grupo Iguaçu, que se intitula “conservacionistas de longa e efetiva atuação” (Franco e Drumont 2009).

Page 87: Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer

66

O texto registra a preocupação com “o surgimento de mais uma forma de

desestabilização dos ganhos, ainda relativamente modestos, da política brasileira de áreas

protegidas” (2009:5). Os autores contestam as decisões jurídicas e argumentações feitas

pelas partes interessadas e por seus aliados, com base no Decreto Federal 4.887 de 20 /11/

2003, e na Convenção 169 da OIT e argumentam que tais decisões colocam em risco a

integridade de todo o sistema brasileiro de áreas protegidas40.

Artigo publicado por Farias Jr. (2010a) analisa a situação da comunidade quilombola

do Moura, que teve suas terras sobrepostas pela REBIO do Rio Trombetas. No trabalho, o

autor ressalta como viver para os quilombolas do Trombetas passou a ser sinônimo de

ilegalidade. No início da década de 1990, Acevedo Marin e Edna Castro (1993), em estudo

realizado na região do Trombetas, em Oriximiná, onde se localizam nove territórios

quilombolas, às margens dos rios Erepecuru, Trombetas, Acapú e Cuminá, organizados em

35 comunidades, tecem o seguinte comentário sobre a situação de intervenção dos órgãos

de preservação ambiental na região,

Sobre a realidade da área do Trombetas – como, por sinal, em quase toda a Amazônia! – montam-se discursos sobre preservação ambiental. Parece inquestionável a necessidade de decifrar esses discursos e em especial as práticas segundo seus atores e interlocutores. Se os denominados Filhos do Trombetas construíram na cumplicidade com a natureza, fortes laços de intimidade entre o mundo social e natural a noção de totalidade – síntese da diversidade- no seu discurso não poderia ser deslocado das práticas de reprodução social e ambiental (1993:217).

Eliane Cantarino O’ Dwyer (2002) mostra que, com o decreto de criação da REBIO do

Trombetas, em 1979, e da Floresta Nacional de Saracá-Taquera em 1989, com superfícies de

385 mil hectares e 426 mil hectares, respectivamente, foi subtraída das comunidades

remanescentes de quilombos, principalmente àquelas do Trombetas, a principal parcela do

seu território. A autora afirma que,

O paradigma da preservação ambiental, ao estabelecer o comportamento padrão que deve ser seguido, torna as condutas que dele se afastam como sujeitas de normatização. As medidas disciplinares para o controle da

40

Em março de 2014, o governo federal, por meio da Câmara de Conciliação da Advocacia Geral da União - AGU determinou a remoção dos moradores, que esta sendo questionada pelo Ministério Público Federal por meio de uma liminar para impedir a remoção das famílias remanescentes de quilombo que vivem na comunidade de Tambor, dentro do Parque Nacional do Jaú, no município de Novo Airão (AM), pelo ICMbio e MMA. Disponível em amazoniareal.com.br/icmbio-diz-que-comunidade-quilombola-compromete-gestao-do-jau/ Acesso: maio de 2015.

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67

população encontram na legislação sua justificativa legal. Os negros do Trombetas passam a ser vistos pelas autoridades administrativas e pelo corpo técnico dos organismos governamentais como indivíduos que precisam ser disciplinados, visando a alteração de seus hábitos. Quanto às suas práticas culturais, elas passam a ser identificadas como transgressões à legislação ( O’ Dwyer 2002:269).

Essas pesquisas abordam as situações de UCs criadas no momento da política

ambiental no Brasil, conduzidas no período da ditadura civil-militar de 1964, quando as

unidades eram implantadas de maneira autoritária (Diegues 2001). O recorte temporal nesta

tese é o período pós-Constituição de 1988, quando a criação de unidades de conservação se

dá no âmbito de um debate mais amplo, resultando na Lei 9.985 que criou o SNUC, proposta

que tramitou no Congresso Nacional de 1992 a 2000. Esses quase dez anos de tramitação

refletiram o debate entre conservacionistas e preservacionistas, onde se dividem naqueles

que acreditam em preservar as áreas isoladas para conservação da biodiversidade, e, outro

pensamento que já começa a considerar as populações tradicionais responsáveis pela

biodiversidade. Somado a isso, nesses últimos 25 anos, cresceu o empoderamento de povos

e comunidades tradicionais que se organizam para conquistar a regularização de suas terras

e a garantia de permanência em seu território.

Embora as APAs tenham como pressuposto “a melhoria da qualidade de vida da

população local” as pesquisas realizadas no que diz respeito às UCUS têm revelado conflitos

em várias situações, a exemplo da APA de Cairuçu, unidade de conservação federal, no

estado do Rio de janeiro, onde em seu território está a Reserva Ecológica Estadual de

Juatinga (Vianna 2008), as aldeias Guarani Araponga e Paraty-Mirim, a APA municipal da

Baia de Paraty-Mirim, o Saco do Mamamguá (Diegues e Nogara 2001; Abirached 2011) e o

Quilombo de Campinho. Essa região é conhecida como mosaico de Bocaina.

Lucila Pissard Vianna (2008) desenvolveu uma pesquisa na década de 1990 na

Reserva Ecológica de Juatinga, em Paraty RJ, onde problematizou a construção da ideia de

“populações tradicionais” no contexto de unidades de conservação, momento em que se

iniciava o debate sobre a categoria “povos e comunidades tradicionais” e o reconhecimento

dos direitos territoriais de um grupo específico, os “caiçara”41, que habitam o litoral das

regiões sul e sudeste do Brasil. Carlos Abirached (2011) pesquisou os conflitos e a

complementariedade entre os instrumentos de ordenamento territorial limítrofe de

41

Caiçara vem da palavra de origem tupi que se refere aos habitantes das zonas litorâneas (Dicionário Aurélio).

Page 89: Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer

68

Ubatuba-Paraty, e analisou como tais instrumentos afetam os direitos territoriais de

comunidades caiçaras, indígenas e quilombolas. Danielle Migueletto (2011) chama atenção

para a crise ambiental e as encruzilhadas geradas por distintos projetos de desenvolvimento

que estão em disputas nos territórios protegidos em nome da sustentabilidade em Paraty.

As pesquisas realizadas no Amapá sobre a APA do Rio Curiaú por Daguinete Brito

(2003); Queiroz (2007); Eliane Cantuária (2011) e Fernando Santos (2012) abordam aspectos

dos conflitos socioambientais com enfoques econômico, jurídico e no campo dos estudos

sobre a governança de gestão da APA.

Queiroz (2007) a partir de uma análise da economia ecológica no território

quilombola do Curiaú mostra que

A APA representa um marco na construção de novas práticas de uso dos recursos territorializados das famílias. [...] Os conflitos socioambientais giram em torno do modo de vida e do trabalho dos quilombolas. Os espaços de convivência e trabalho vêm sendo reduzidos e substituídos por novos espaços e lógicas de uso, limitando o acesso aos recursos necessários para manutenção das famílias (2007: 93).

Santos (2012) analisa a relação entre cultura e desenvolvimento na APA do rio

Curiaú, foca seu estudo na comunidade de Pirativa, argumentando sobre a fragilidade, tanto

do lado das estratégias institucionais do Estado, quanto por parte da comunidade,

argumenta o autor que essa fragilidade institucional “isso se reflete em conflitos que se

expressam na imposição das respectivas territorialidades” (2012: 110).

Brito (2003) e Cantuária (2011) incorporam a linha de estudos sobre mediação de

conflitos em unidades de conservação. A primeira autora focaliza a governança da gestão da

APA e a segunda faz uma análise jurídica da APA. Brito (2003) ao realizar pesquisa sobre a

implementação da gestão ambiental no estado do Amapá, discute sobre a construção do

espaço público na APA do rio Curiaú, com o objetivo de analisar as formas como o meio

ambiente vem sendo gerido a partir da participação das comunidades envolvidas no

processo de criação e gestão de áreas legalmente protegidas.

2.4.1 Conflitos socioambientais no Estado do Amapá

A campanha “Na Floresta tem Direitos: justiça Ambiental na Amazônia” que teve

como eixo o fortalecimento da luta por justiça ambiental e pela garantia e promoção da

Page 90: Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer

69

Plataforma de Direitos Humanos, Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais (Dhesca)42 a

partir de uma metodologia participativa, buscou evidenciar a degradação ambiental e o

desrespeito aos direitos e modos de vida dos povos amazônicos.

No âmbito da Campanha por justiça ambiental foi construído o “Mapa dos Conflitos

Socioambientais em Comunidades Negras do Amapá”, resultante da III Plenária de Mulheres

Negras do Amapá que aconteceu em 2008, organizado pelo Instituto de Mulheres Negras do

Amapá (IMENA), onde foram estabelecidos 21 tipos de conflitos que atingem as

comunidades negras, são eles: ordenamento territorial, recursos hídricos, grandes projetos,

transporte, abuso de autoridade, extração de madeira, moradia, violência física declarada,

pesca e caça predatória, regularização fundiária, garimpo, pecuária, queimada e/ou

incêndio, acesso ao trabalho, violência institucional, educação, habitação, saúde, lazer e

racismo ambiental, como demonstrado na figura 20.

Nesse trabalho de mapeamento foi usado o conceito de racismo ambiental e injustiça

ambiental, onde é aplicado em situações em que grupos racialmente discriminados e

populações de baixa renda enfrentam os danos ambientais gerados pelo desenvolvimento.

O conceito de justiça ambiental surgiu então da experiência das lutas protagonizadas por

grupos vulneráveis e marginalizados nos Estados Unidos, que reivindicam alternativas e

soluções para o fato de serem estes a suportar, de maneira desproporcional, a exposição aos

riscos ambientais, uma vez que seus locais de residência eram constantemente escolhidos

para depósitos de lixo, aterros e incineradoras (Acselrald 2009)43..

42

Constituída pelo Fórum Amazônia Oriental (FAOR), Grupo de Trabalho da Amazônia (GTA), Federação dos trabalhadores na Agricultura (FETAGRI), Conselho Nacional dos Seringueiros (CNS), Federação dos órgãos para Assistência Social e educacional (Fase) Sociedade paraense de Defesa dos Direitos humanos (SDDH), Comissão pastoral da terra. Movimento nacional dos direitos humanos, Fórum de Mulheres da Amazônia paraense (FMAP), Associação brasileira de organizações não governamentais (ABONG), Pastorais sociais da comissão nacional dos bispos do Brasil-CNBB. Disponível em www.koinonia.Org,br/tpdigital/uplods/angrev/,pdf. Acesso: maio/2015. 43

Os negros de Warren County, na Carolina do Norte, iniciaram um movimento contra instalação de um aterro de resíduos tóxicos de PCBs (bifenil-policlorado) em sua vizinhança. As manifestações ganharam grandes proporções que levou a disseminação das denuncias e início de pesquisas que indicou que ¾ dos aterros de resíduos tóxicos da região do sudeste dos EUA estavam em bairros habitados por negros (Silva 2012).

Page 91: Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer

70

Figura 20 - Mapa de conflitos socioambientais no Amapá. Fonte: IMENA, 2008

Page 92: Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer

71

Um exemplo emblemático de racismo ambiental é o caso da Indústria e Comércio de

Minério S/A (ICOMI) no Amapá. A empresa explorou jazidas de minério de manganês

durante 47 anos, encerrando suas atividades em 1998, deixando um sério problema

socioambiental em relação à deposição dos resíduos de manganês (arsênio) que foram

deixados no pátio de concentração de minérios da empresa, no porto de Santana. A SEMA

decidiu que o material seria depositado em um aterro sanitário. Em 2001, a secretaria emitiu

uma licença de instalação de um aterro nos km 34 e 35 da rodovia 156, próximo ao

quilombo do Curiaú (Chagas 2010). Os quilombolas se mobilizaram contra, e não permitiram

a finalização da obra (Jornal do Quilombo 2001). Mas, a vila de Eslebão, localizada em

Santana, passou mais de 20 anos convivendo com o depósito de rejeitos de manganês que

ficou armazenado. Pesquisas feitas pela Universidade Federal do Pará (UFPA) mostraram

indícios de que os moradores sofreram contaminação, o que provocou casos de câncer e má

formação fetal (Fagundes 2011).

Em nível nacional, o Mapa de conflitos envolvendo injustiça ambiental e saúde no

Brasil (Fiocruz 2010) indica aproximadamente 300 casos de conflitos ambientais em todos os

estados do Brasil, no qual os quilombolas, indígenas e os agricultores familiares estão entre

os três grupos mais atingidos pelo impacto do racismo ambiental em seus territórios (Fiocruz

2010).

De acordo com os conflitos socioambientais indicados na figura 20, nota-se o

gradativo ingresso do estado do Amapá, em uma conjuntura mais ampla colocada para a

Amazônia de expansão do capital e chegada de grandes empresas e seus projetos

neodesenvolvimentistas voltados à exploração madeireira, mineração, agronegócio,

construção de usinas hidrelétricas, entre outros projetos. Essa dinâmica de expansão de

territorialização de projetos neodesenvolvimentistas e de obras de infraestrutura acaba por

demandar gradativas e maiores extensões de terras. Nesse sentido, a titulação de terras

quilombolas passa por inúmeros obstáculos e um deles é a efetivação de uma lógica de

apropriação com o aquecimento formal do mercado de terras, há uma pressão política e

econômica para que ocorra a disponibilização de terras para outros agentes sociais que não

para as comunidades tradicionais (Almeida et al 2005).

O cenário amapaense de morosidade para titulação de terras de quilombolas não

escapa ao quadro nacional em que se observa a quase completa estagnação dos trâmites

Page 93: Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer

72

necessários ao processo de regularização fundiária. Temos notado para o Amapá, o

desencadeamento e o acirramento de conflitos sociais, pois cada vez mais se estabelecem

agentes e ações antagonistas aos direitos quilombolas. De forma que esses contextos de

impasse para a titulação de terras quilombolas no âmbito das instituições competentes têm

sido agravados pela pressão e intrusamento dos territórios tradicionais quilombolas, a

exemplo daqueles encontrados na região de Macapá, por especulação imobiliária e

construção de condomínios.

Exemplo disso são os projetos de expansão urbana, em alguns casos conduzidos

pelos governos locais nessas últimas duas décadas, e que vêm, inclusive, pressionando as

terras do Curiaú, que desde 1987 perdeu cerca de 300 hc. que se destinou a construção dos

bairros Felicidade I e II. Ricardo Ângelo Pereira Lima (2003) descreve como ocorreu a

expansão urbana em direção ao território quilombola do Curiaú:

Entre os anos de 1991 e 1992, foi implantado o bairro Capilândia, e depois o Novo Horizonte. Entre os anos de 1997 e 1999, outra área contigua a BR 156 foi parcelada, originando os bairros Infraero I e Infraero II. Ao mesmo tempo, o bairro Brasil novo seguiu crescendo e dando origem a outro bairro, o da Liberdade. Mais tarde em 2000, se conformou o bairro residencial Morada das Palmeiras. Essas intervenções produziram mudanças no sistema de uso das terras do Curiaú (tradução livre) (2003:211-212).

Como demonstrado por Lima (2003) observa-se nesse contexto um processo

agressivo de fragmentação das terras quilombolas do Curiaú, que segundo os argumentos de

Brito (2003) e Chagas (1997) tem na criação da APA do Curiaú uma forma de frear o avanço

e a pressão urbana em terras quilombolas.

2.5 A Política Ambiental no Amapá: a criação das Unidades de Conservação

A gestão ambiental no espaço amapaense começa a se configurar no final da década

de setenta e início da de oitenta, como consequência dos planos desenvolvimentistas

executados em nível nacional. Essa conjuntura é influenciada pela polarização entre, de um

lado, o estado brasileiro com sua concepção desenvolvimentista, e, por outro lado, a pressão

da sociedade brasileira e internacional em torno da proteção dos recursos naturais na

Amazônia. À luz dessas tensões, o Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF)

estabeleceu em 1980, as primeiras UCs em ambiente ama

Page 94: Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer

73

paense, o PNCO e a REBIO do Lago Piratuba (Brito 2010).

O processo inicial de criação das UCs no Amapá foi resultante de encaminhamentos

centralizados da União e por uma política ambiental que, a partir de 1979, orientou a criação

das UCs Federais para os estados da Amazônia Legal, em particular para o Amapá. Josiane

Souza (2008) aponta os principais problemas decorrentes dessa política presentes também

em outros estados da Região Norte: i) as UC são criadas de maneira desvinculadas das outras

políticas de planejamento; ii) os critérios de seleção e delimitação de áreas e o

enquadramento delas nas categorias de manejo não são transparentes; iii) não há

participação social no processo de criação e há carência de recursos humanos para gerenciar

as unidades (2008: 227).

Essas orientações permaneceram até o governo de Fernando Henrique Cardoso em

2002, quando no Amapá, foi criado sem a participação social, o Parque Nacional de

Tumucumaque, considerado a maior reserva ambiental do mundo com 3.8 milhões de

hectares (Souza 2008).

A política ambiental amapaense se estrutura institucionalmente a partir da

transformação do Amapá em estado da federação. No âmbito estadual, o marco é o ano de

1989 quando foi criada a Coordenadoria Estadual do Meio ambiente (CEMA). No período de

1992 a 1996, foram publicados várias leis e decretos para dar suporte à política ambiental

amapaense, com destaque para as leis que dispõem sobre: política agrária, fundiária,

agrícola e extrativista vegetal, a política pesqueira, o código de proteção ambiental; o

sistema estadual de meio ambiente e o que cria a procuradoria do meio ambiente. Ainda em

1996 surge a Secretaria de Estado de Meio Ambiente (SEMA). Posteriormente, em 1997 foi

realizado o Zoneamento Ecológico-Econômico (ZEE) do Amapá.

Lima e Jackson Porto (2008) demonstram a dinâmica de ordenamento territorial no

atual estado do Amapá, apontando os aspectos da jurisdição das terras e gestão dos recursos

naturais adotados durante o período de 1960 a 2007:

Durante o processo da transformação do Território Federal do Amapá em Estado da Federação (efetivada em 1988), o tema da terra permaneceu vinculado ao Governo Federal até a promulgação das Constituição Estadual, em 1991. De fato, os problemas gerados pela posse da terra justificaram a implantação da Coordenadoria Estadual de Terras do Amapá (COTERRA) que, posteriormente, seria transformada no Instituto de Terras do Amapá (TERRAP) e, em 2007, em Instituto do Meio Ambiente e de Ordenamento

Page 95: Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer

74

Territorial do Amapá (IMAP). De acordo com o Programa de Zoneamento Econômico-Ecológico do Amapá (ZEE) em 1997, as terras públicas apresentavam a seguinte distribuição: TERRAP 16.736 km2 (11,67%); FUNAI 11.498 km2 (8,01%); IBAMA 17.586 km2 (12,26%) e INCRA com 97.622 km2 (68,05%), em um total de 143.453 km2. Atualmente, de acordo com os dados da Secretaria de Estado do Meio Ambiente (SEMA) em 2007, as terras públicas apresentam a seguinte distribuição: IMAP, 40.605 km2 (22,27%); FUNAI, 11.498 km2 (6,30%); IBAMA, 56.453 km2 (30,96%) e INCRA com 73.764 km2 (40,45%), em um total de 143.453, 7km2 .

Esse quadro da política ambiental no Amapá com a criação de UCs foi sistematizado

em um Atlas de Unidades de Conservação, publicado em 2008, que reúne as informações

disponíveis sobre 19 UCs federais, estaduais e municipais existentes, o que demonstra que

61,60% do território amapaense está sob modalidades especiais de proteção, totalizando

8.798.040,31 hectares, abrangendo 12 UCs federais, 05 estaduais e duas municipais. Destas,

08 são unidades de proteção integral e 11 são de uso sustentável. As unidades abrangem

trechos de 15 dos 16 municípios amapaenses.

Ressalte-se que ainda em fins do período do regime civil-militar foram criadas quatro

áreas com a especificidade de serem de proteção integral. Posteriormente, a partir da

constituição de 1988, o Amapá começa a diversificar os tipos de unidade de conservação.

Nesse âmbito surgem em maior número as unidades de uso sustentável, assimilando,

inclusive, as categorias previstas no SNUC, como por exemplo, as Reservas extrativistas, as

áreas de proteção ambiental e as reservas particulares de uso sustentável.

Há um descompasso entre a titulação de terras quilombolas e a criação de unidades

de conservação enquanto só foram regularizadas 04 comunidades quilombolas, em

contrapartida, no período de 1989 a 2007 foram criadas 15 UC’s, nos âmbitos federal,

estadual e municipal, como se observa no quadro 3.

Page 96: Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer

75

Quadro 3 - Unidades de Conservação do Estado do Amapá em ordem cronológica de criação/ 2008

Nº Nome Jurisdição Ano Grupo Área hc Municípios Abrangidos

1 Parque Nacional do Cabo Orange

Federal 1980 Proteção Integral

399.773,70 Calçoene, Oiapoque

2 Reserva Biológica do Lago Piratuba

Federal 1980 e 1984

Proteção Integral

357.000,00 Tartarugalzinho,Amapá

3 Estação Ecológica Maracá –Jipioca

Federal 1981 Proteção Integral

72.000,00 Amapá

4 Estação ecológica do Jari Federal 1982 e 1984

Proteção Integral

67.675,72 Laranjal do Jari e Almerim (PA)

5 Floresta Nacional do Amapá

Federal 1989 Uso Sustentável

412.000,00 Amapá, Ferreira Gomes,

Pracuúba

6 Reserva Extrativista do rio Cajari

Federal 1990 e 1997

Proteção Integral

501.771,00 Laranjal do Jari,Mazagão, Vitória

do Jari

7 Parque Nacional Montanhas do Tumucumaque

Federal 2002 Proteção Integral

3.828.923,00

Calçoene, Laranjal do Jari, Oiapoque, Pedra Branca do Amapari, Serra do navio e

Almerim (PA)

8 Reserva Particular do Patrimônio Natural Retiro Paraíso

Federal 1997 Uso sustentável

46,75 Macapá

9 Reserva Particular do Patrimônio Particular Revecom

Federal 1998 Uso sustentável

17,18 Santana

10 Reserva Particular do Patrimônio Natural Seringal Triunfo

Federal 1998 Uso sustentável

9.996,16 Ferreira Gomes

11 Reserva Particular do Patrimônio Natural Retiro Boa Esperança

Federal 1998 Uso sustentável

43,01 Porto Grande

12 Reserva Particular do Patrimônio Aldeia Ekinox

Federal 2000 Uso Sustentável

10,87 Macapá

13 Área de Proteção Ambiental da Fazendinha

Estadual 1984 Uso sustentável

136,59 Macapá

14 Reserva biológica do Parazinho

Estadual 1985 Proteção integral

111,32 Macapá

15

Reserva de Desenvolvimento Sustentável do rio Iratapuru

Estadual 1997 Uso sustentável

806.184,00 Pedra Branca do Amapari, Laranjal do Jari,Mazagão,

16 Área de proteção Ambiental do Rio Curiaú

Estadual 1998 Uso sustentável

21.676,00 Macapá

17 Floresta Estadual do Amapá

Estadual 2006 Uso sustentável

2.320,304,75

Serra do navio, Pedra Braca do Amapari, Mazagão,Porto Grande,

Ferreira Gomes,Tartarugalzinho,Pracaúba,

Amapá,Calçoene e Oiapoque

18 Parque Natural Municipal do Canção

Municipal 2007 Proteção Integral

370,26 Serra do Navio

19 Reserva extrativista Beija-Flor Brilho de Fogo

Municipal 2007 Uso Sustentável

68.524,20 Pedra Branca do Amapari

Total 8.798. 040,31= 61,60%

Fonte: Atlas UC no Estado do Amapá (2008)

Page 97: Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer

76

Na figura 21, a seguir, podemos visualizar espacialmente a distribuição das unidades

de conservação no território amapaense somado às terras indígenas que são: TI Galibi (6.689

há), Juminá (41.601 há), Uaça I e II (470.164 há) e Waiãpi (607.017 há) e o Parque Indígena

de Tumucumaque, criado em 1997, estão todas homologadas, somando 1.183,498,31

hectares o que equivale a 8,29% da superfície do Estado (Amapá 2008).

Figura 21- Mapa de áreas protegidas no Amapá. Fonte: CIB, 2007

Page 98: Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer

77

2.5.1 A Área de Proteção Ambiental do Rio Curiaú

No âmbito da política ambiental do Amapá, a APA do rio Curiaú é a segunda UC

criada nessa modalidade e sob jurisdição estadual. No início de sua trajetória foi definida

como área de relevante interesse ecológico (ARIE), ou seja, como área com extensão inferior

a 5.000 há e que possui características naturais extraordinárias ou que abriguem exemplares

raros da biota regional, exigindo cuidados especiais de proteção por parte do poder público

(Chagas 1997).

Após estudos realizados em conjunto com o Museu Costa Lima, a Coordenadoria do

Meio Ambiente (CEMA) encaminhou proposta de criação da ARIEC ao Governo do Estado

que, em 20 de fevereiro de 1990, para criar a referida Unidade de Conservação. Seu tempo

de existência foi curto, pois entre as razões não abrangia todo o sistema de recursos hídricos

do rio Curiaú, nem protegia as comunidades negras nela existentes. Conforme estratégia da

CEMA acrescentou-se a letra C à sigla ARIE, tornando-se ARIEC. Ainda na década de 1990, o

Governo do Estado, começou a discutir programas de ecoturismo (Chagas 1997).

Em 1990, o Decreto nº 0024/1990 estabeleceu a criação da “Área de Relevante

Interesse Ecológico e Cultural – ARIEC”, que previa “não só a preservação do ecossistema

local, mas, sobretudo a proteção da cultura Afro-Brasileira dos descendentes do antigo

Quilombo ali existente desde o século XIX” (Chagas 1997).

Em 28 de setembro de 1992, por meio do Decreto nº 1417 foi criada a APA do Curiaú.

Segundo Brito (2003) a partir de “reivindicações das populações remanescentes de

quilombos da ARIEC do Curiaú, o governo estadual altera a sua categoria para APA”,

revogando o Decreto Nº 0024/90. Os motivos que levaram à criação da APA são expostos

por Marcos Chagas (1997):

Os pressupostos que levaram à criação da APA do Curiaú basearam-se nos riscos atuais que a expansão urbana desordenada de Macapá vem imprimindo na área geográfica de abrangência da bacia do Rio Curiaú e seus ecossistemas e, notadamente, pela preocupação com o resguardo da integridade do homem local, representado pelas comunidades residentes, respeitando seus valores e raízes étno-culturais, de modo a garantir sua convivência sustentável com o meio ambiente e seu potencial de uso (Chagas 1997:36).

Neste mesmo ano, o Curiaú foi tombado como patrimônio cultural do Amapá por

meio do decreto nº 1418/1992. Nessa fase foram realizadas algumas intervenções no

Page 99: Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer

78

território: foi elaborado o Projeto de ecoturismo para o Curiaú (Amapá 1999); o Projeto para

utilização dos recursos naturais e plaqueamento para identificação da APA.

No dossiê sobre a APA está expresso, também, o propósito de “compatibilizar essa

ocupação com a proteção da região” e que para isso, “devem ser adotadas medidas que

orientem a ocupação racional e a conscientização da comunidade sobre a importância do

ecossistema.” Expressando a ideia de que a APA tem papel “educador”, ou seja, de ensinar

as “populações residentes” a preservarem o meio ambiente, como expõe Chagas,

A falta de envolvimento das pessoas mais diretamente relacionadas com o uso dos recursos naturais como o meio de subsistência. Para tanto, é fundamental a integração das populações residentes no papel de zeladores na manutenção da qualidade ambiental local. Reitera-se a ideia de que as populações nativas da região são partes integrantes do ecossistema e, portanto, precisam ser incluídos como participantes ativos de todo processo de proteção da área. Isto lhes permitirá conservar as tradições que desejam e manejar a adaptação das tradições das populações novas, de forma a evitar a perda absoluta de culturas, tanto tecnológicas, como físicas (recursos genéticos) (Chagas 1997: 34-35, grifo nosso).

Em 1998, a SEMA enviou ao legislativo o projeto de lei que alterou a nomenclatura e

os limites da área, passando a ser denominada de APA do rio Curiaú, através da Lei Estadual

nº 0431, de 15 de setembro. A área da APA está circunscrita por comunidades quilombolas,

são elas: além do Curiaú, as comunidades Casa Grande e Curralinho, São José do Mata-Fome

e Santa Rosa e Ilha Redonda, conforme visualizamos na figura 22.

Brito (2003) afirma que em função de sua localização, a APA do Rio Curiaú sofre

influência da expansão urbana de Macapá, e a integridade de seu ecossistema é afetada por

atividades urbanas e rurais, como: desflorestamento, deposição inadequada do lixo,

queimadas, agricultura predatória, criação extensiva de gado bubalino, caça, pesca,

extrativismo vegetal (extração de madeira e palmito, sem devido manejo), cultura de pinu

em escala industrial, e aterramento dos lagos, (alterando definitivamente o ecossistema da

unidade). A autora lembra que no processo de institucionalização da APA, a UC conta com o

Conselho deliberativo instituído desde 2002, que em parceria com a SEMA, tem

responsabilidade de administrar a área.

Page 100: Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer

79

Figura 22- Mapa de delimitação da APA do Rio Curiaú e Terras Quilombolas/ 2014

Com a criação da APA, intensificou-se a participação governamental no local, através

do desenvolvimento de ações voltadas para o ordenamento territorial da unidade e a gestão

ambiental. Brito e Drumont (2007) analisam a participação social no desenho e gestão das

políticas públicas na APA do rio Curiaú, e concluem que a implantação da gestão

participativa na APA foi uma tentativa de suavizar os conflitos. Brito (2003) analisa a

experiência da elaboração do diagnóstico e do zoneamento ambiental participativo, como

uma estratégia que dá suporte às ações implementadas na área (2003:18).

Page 101: Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer

80

2.5.2 Estrutura da APA do rio Curiaú

Para administrar a APA do rio Curiaú foi criado em 2001, o Conselho Gestor da Área

de Proteção Ambiental do Rio Curiaú (CONGAR), instrumento de gestão oficial da APA,

fundamentado nos artigos. 15, § 5º do SNUC; 7º, da Lei Estadual 431/985; 3º, IV da Lei

Estadual 005/946 e no Regimento Interno do CONGAR - Curiaú. Segundo esses documentos

a gestão deve ser realizada de maneira compartilhada entre o poder público e as

representações das comunidades que habitam a UC.

A APA do rio Curiaú é de jurisdição estadual e, portanto, tem a SEMA na presidência

do CONGAR, por meio da chefia da UC, cargo vinculado à estrutura organizacional da

secretaria. Na composição estão também os representantes das secretarias de Estado de

Turismo (Setur); Serviço Brasileiro de Apoio a Pequena Empresa (Sebrae); Câmara Municipal

de Macapá (CMM); Prefeitura Municipal de Macapá, por meio da Secretaria Municipal de

Meio Ambiente (PMM/SEMAM); Associação dos Moradores do Quilombo do Curiaú (AMQC),

representante dos moradores do Curiaú de Fora, do Curiaú de Dentro, da Vila Mocambo, da

Vila Extrema, dos movimento negros do Amapá, representado pela União dos Negros do

Amapá (UNA), Associação de Mulheres Mãe Venina do Quilombo do Curiaú e pela

representação dos jovens, por meio da participação do Curiaú Atlético Clube.

De acordo com art. 2º, do Regimento interno, o CONGAR- Curiaú tem como objetivos

principais:

i) O gerenciamento da APA do Rio Curiaú; por meio da elaboração do Plano de

Gestão para a APA;

ii) A estruturação de programas de fiscalização, proteção, conservação,

melhoria e recuperação da qualidade ambiental da área;

iii) A promoção da preservação, conservação e melhoria da qualidade de vida

das populações residentes na área;

iv) A promoção da integração entre as instituições públicas e privadas, que

desenvolvem atividades na APA, e destas com a população;

Page 102: Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer

81

v) A promoção e acompanhamento do desenvolvimento de pesquisas e

processos tecnológicos destinados a manter a qualidade ambiental da APA e

a melhoria da qualidade de vida da população residente;

vi) A promoção de atividades educacionais para manter a qualidade ambiental

da Unidade de Conservação; a orientação das comunidades locais para a

busca da melhoria da qualidade de vida dentro dos princípios da

sustentabilidade, ou seja, conciliando as atividades socioeconômicas com a

preservação, conservação e recuperação do patrimônio ambiental e cultural,

e auxiliar o poder público na consolidação de políticas públicas de cunho

social, econômico e de meio ambiente voltadas à APA do Rio Curiaú.

A APA do rio Curiaú (figura 23) vem sendo projetada, também, como uma

potencialidade turística no Estado do Amapá. Após a promulgação que criou a APA do rio

Curiaú, surgiu posteriormente, o Projeto Ecoturismo da APA do Rio Curiaú (1999), tentando

torná-la polo receptor. Os quilombolas do Curiaú presenciam uma ressignificação do espaço

representadas por projetos econômicos voltados para “indústria do turismo”.

Considerado como um dos últimos refúgios ecológicos da região, o lugar vem se

transformando em uma opção de lazer dos habitantes de Macapá. Um reflexo disso é o que

acontece no mês de julho, o governo do estado do Amapá realiza no Curiaú, um projeto

turístico. As atividades são shows, passeios e torneios. Os eventos atraem um grande

número de pessoas, e consequentemente, a concretização de uma política oficial de

marketing com intuito de atrair turistas para o Estado.

Fora de períodos de férias (julho), o Curiaú também é constantemente visitado por

pessoas que vêm do centro urbano. Os ônibus que fazem a linha Centro-Curiaú, durante

todo o final de semana transportam centenas de pessoas. Essa movimentação transforma a

paisagem e a tranquilidade peculiar do lugar. As ruas centrais da vila são totalmente

tomadas por fileiras de carro.

A questão do turismo em unidades de conservação, principalmente naquelas

ocupadas por populações tradicionais, tem constado das agendas do Estado, do setor

empresarial e destas populações. Os governos estadual e federal reconhecem no turismo

uma atividade produtiva, capaz de se constituir em uma “alternativa econômica de

desenvolvimento”. Consequentemente, elaboram projetos e promovem cursos de

Page 103: Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer

82

capacitação dos moradores, estratégias que nessa perspectiva, “poderão melhorar” a oferta

turística da APA (Projeto Ecoturismo da APA do Rio Curiaú 1999)

Figura 23- Mapa da APA do Rio Curiaú. Fonte: Amapá /Atlas de UC (2008)

Page 104: Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer

83

CAPÍTULO 3

LAVRANDO A MEMÓRIA, CULTIVANDO A TERRA A memória é o recurso primordial, impostergável e insubstituível de toda a

consciência histórica. A espécie humana, ou, se preferir, a humanidade, lembra ou esquece, como unidade biológica e social, o processo histórico do qual surgiu e o qual a tem moldado e transformado. [...] Reconhecer e recuperar a memória biocultural da humanidade é uma tarefa essencial, necessária, urgente e obrigatória.

Victor Toledo e Narciso Barrera-Bassols (2015:257)

Neste capítulo apresento o contexto etnográfico, as histórias de chegada e ocupação do

território quilombola do Curiaú. Para isso, abordaremos as narrativas trazidas pela memória

biocultural (Toledo e Barrera-Bassols 2015) e pela cosmografia que possibilitam entender o

funcionamento de um território e as regras de relação com a natureza (Little 2002a). Em

seguida buscarei etnografar o “fazer a roça” no Curiaú, entendendo-o como um “fenômeno

social total” (Mauss 2003a) abrangendo um processo complexo que envolve a interação com a

natureza, as crenças, a cooperação, a organização social, religiosa, econômica, hábitos

alimentares, sistemas de cura e o parentesco.

3.1 Curiaú: tempos de chegada e a ocupação do território

No estudo sobre a memória social no Curiaú (Trindade 1999), analisei entre outras, as

narrativas de chegada, que simbolizam uma leitura do Curiaú como marca dos “primeiros

tempos” (Price 1983), uma memória do período de chegada e de início de ocupação e

construção do território. Segundo relatos, a fundação do lugar chamado Curiaú ocorreu com

a chegada de um casal e seus escravos. Na memória social, a origem é marcada por dois

momentos: primeiro, o descobrimento do lago pelo escravo Francisco Inácio, um dos sete

irmãos, que à procura do mel encontra o que mais tarde seria o lugar no qual prosperaria

“essa enorme nação”, como enfatizava um dos memorialistas da comunidade, o velho

Joaquim Tibúrcio Ramos.

A narrativa que conta sobre a busca pelo mel e que leva ao encontro do “lugar bom

para viver”, nos faz refletir sobre como a experiência humana se ofereceu aos sentidos, ao

olhar, à escuta, ao cheiro e ao gosto. Nesses jogos perceptivos, são colocadas em destaque,

as formas sensíveis que movem os habitantes em suas lógicas de viver os espaços e os

tempos culturais (Sansot 1983).

Page 105: Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer

84

Essa narrativa traduz a ideia de terra escolhida, quando os sete irmãos, após uma

incansável peregrinação e busca, finalmente decidiram que ali ficariam. A memória

prendesse à chegada em terras de pasto natural e à fundação de uma parada. Ali surge a

Casa Grande, como local inicial de instalação. A partir daí, o território é construído e a

ocupação passa a ser gradativa.

Um segundo momento importante na narrativa de origem do Curiaú é quando o Sr.

Miranda morre. A terra é partilhada entre os sete irmãos e registrada por Francisco Inácio

em 1893. Quanto ao nome Curiaú, os relatos explicam que a relação do nome com as

características do lugar, propício à criação de gado, demonstra o poder criativo das

narrativas e a cartografia simbólica elaborada pelo grupo, como nos conta o Sr. Roldão:

Curiaú vem de criaú, por causa que cria, vem de criação, e U é por causa que é parecido com mugido que o gado faz. Quem colocou assim foi muitos antes de nós. Meus pais me contaram que deveria ser comparação com a língua do lugar que vieram, e agora é Curiaú. Quando eu nasci já tinha ficado assim (Roldão Amâncio, maio 1998).

Nessa perspectiva, a memória possibilita uma incursão aos lugares ocupados pelos

primeiros moradores, ou seja, permite entender e acompanhar os movimentos e

transferências. O que se depreende daqui é uma topologia da memória onde é possível

passar de um igarapé ao outro ou de uma paisagem a outra. Essas leituras sintetizam uma

redefinição e atualização por parte do grupo em diferentes momentos e diante de diversos

interlocutores. Quando nos contatos iniciais com visitantes, estudiosos, todos estranhos a

essa memória, conduzem-nos para esses caminhos, frisam o que consideram mais

importante, sempre aguardando a reação dos visitantes. Para alguns moradores é

fundamental lembrar e identificar os lugares mais antigos que muitas vezes correspondem

ao início da ocupação pelos seus ancestrais. A exemplo de um dos primeiros lugares a ser

encontrado, chamado de Teso da Malhada:

O lugar é assim denominado porque quando Francisco Ignacio, o irmão mais velho que descobriu o lugar saiu a procura de mel, ao retornar informou a existência de um bom lugar para viver e propicio para criação de gado (Sebastião Menezes, maio de 1998).

Outros lugares marcantes na memória da paisagem são: o igarapé Mocambo, o poço

Manoel Felipe e as taperas. Numa visita às terras do Curiaú, o senhor João Pio, 92, mostrava-

nos o mocambo, “lugar em que os negros fugidos se amucambavam”, “ali perto do igarapé

Curiaú Grande”. O mocambo representa um sítio aonde, no tempo da escravidão

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85

dificilmente os brancos alcançavam, constituindo-se num espaço de interação entre negros

libertos e fugitivos. Era possível aos negros, de fato, constituírem relações de convivência,

sem intermediação escravocrata branca. Como nos conta seu Joaquim Tibúrcio:

Esses amocambados não iam à cidade. Elegiam um liberto para ir lá,

quando precisavam fazer alguma troca. Os soldados sabiam da existência

desses escravos fugidos no Mocambo, mas não iam buscar, principalmente

porque o inspetor de polícia civil ali era um desses negros libertos, o

Francisco Ignácio, irmão da velha Domingas. Ele tinha ordem de pegar, mas

como ele próprio era um ex-escravo, não pegava deixava, tinha amizade.. E

quando chegava algum estranho, os libertos batiam tambor para os

amocambados se esconderem na mata. O toque era bem combinado, era

uma comunicação (Joaquim Tibúrcio Ramos, maio, 1998).

Na cartografia da região, os poços e os furos são lugares presentes na memória.

Mesmo nos casos que os poços não existam mais, sua localização e denominação ainda são

lembradas. Os poços funcionam como reservatórios e viveiros de peixes. No período menos

chuvoso, quando o lago seca, os moradores dirigem-se a estes locais para pescar. Alguns

destes pontos são poços localizados no lago e compõem o imaginário local com suas

histórias, mitos e lendas, de tal maneira que alguns moradores sabem dizer o nome e a

localização de cada um deles relacionados a seguir: poços do Buritizal, do caju, do Tapera, do

Maré, do Inferno e do Açaí. Esses lugares são pontos importantes para a demarcação da

efetiva história de ocupação.

3.2 O saber “fazer a roça” no território quilombola do Curiaú Quando o Jornal do Quilombo chegou a sua edição de nº 100, organizei com o Sr.

Sebastião Menezes, redator e editor do jornal, um evento cujo objetivo era lançar uma edição

especial, uma espécie de retrospectiva dos fatos marcantes ocorridos no quilombo e

registrados nas edições anteriores. Solicitei a ele os jornais que tinha em seu arquivo, e,

posteriormente, consegui com Rogério Castelo na biblioteca da SEMA, as edições que ele havia

digitalizado. Para esse trabalho de edição do nº 100, eu e o Sr. Sebastião Menezes lemos ao

todo 97 jornais, e selecionamos matérias de 15 edições, publicadas nesses últimos quinze anos.

Essa atividade foi muito frutífera, porque na medida em que revisitávamos as edições

anteriores o Sr. Sebastião Menezes tecia comentários de acontecimentos marcantes e

lembrava-se de pessoas que tinham colaborado para o trabalho de comunicação na

Page 107: Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer

86

comunidade. A figura 24 é a primeira página da edição especial em que foram registradas as

impressões dos leitores sobre o Jornal, pessoas tanto do Curiaú, quanto de fora.

Figura 24- Capa da edição especial do Jornal do Quilombo. Maio/2014

O jornal do quilombo é um instrumento precioso contra a ameaça do esquecimento, sua

fonte de inspiração são os acontecimentos cotidianos. Tem uma publicação bimensal, entre as

seções apresenta uma sobre a história do Curiaú, onde o Sr. Sebastião pretende futuramente

reunir todo o material histórico para produzir seu terceiro livro.

Page 108: Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer

87

A programação de lançamento, além de festejar a data, tinha o objetivo de debater

sobre o tema da importância da comunicação para organização quilombola no Amapá, para o

qual foram convidadas lideranças de outras comunidades. O lançamento foi organizado em

torno de uma programação que nos possibilitou reunir, alguns dos senhores e senhoras mais

velhas da comunidade, em uma mesa dos Guardiões (figura 25).

Figura 25- Mesa dos Guardiões - Curiaú de Dentro, 16/05/2014

O Sr. Sebastião Menezes tem o costume de iniciar sua fala nos eventos públicos,

contando alguma história ou fábula, além de ser um exímio narrador, ele escreve peças

teatrais. E, já se dedicou a escrever dois livros sobre a história do Curiaú. O seu trabalho de

visita aos parentes para buscar referências das origens e dos tempos antigos, o faz contador de

muitas histórias que ele aprendeu com os mais velhos e que tem o dom de transmitir.

No dia do lançamento do nº 100, nos presenteou com uma narrativa, contando uma

história que mostra que o “fazer a roça”, não se restringe a ser um lócus de produção de

alimentos, ela é um local de construção de categorias sociais. Sua narrativa nos guiou por

referenciais intergeracionais. É uma história que passou por gerações, história da origem do

mundo. Na figura 26, o Sr. Sebastião Menezes, vestido em seu terno próprio para ocasiões

especiais, se prepara para contar a história do momento em que Deus chama o homem para se

harmonizar com a roça e com os outros seres.

Page 109: Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer

88

Figura 26 - Sebastião Menezes da Silva. Curiaú de Dentro. 16/05/2014

Trata-se de uma longa narrativa, onde assinalo a presença de gerações, a existência de

elos de solidariedade, de onde emergem aspectos importantes da vida no quilombo e que

analiso como dividida em três partes: uma primeira parte apresenta uma perspectiva de

criação, e o papel do homem na sua relação com Deus e com outros seres vivos; na segunda

parte, o narrador questiona a sociedade moderna que instrumentaliza a relação homem-

natureza, e por último, a parte que o narrador propõe a roça como patrimônio da humanidade.

Convido o leitor a acompanhar atentamente as linhas a seguir:

Deixa eu contar uma outra história que segue na mesma direção: o meu pai contava, que o pai dele contava, que o avô dele contava. No princípio do mundo, da humanidade, existia um lugar, onde estava em harmonia o homem, a roça, a natureza, e, principalmente, os animais. Um dia, Deus falou com uma voz bem alta do céu e disse: - “Olha, vocês se reúnam aí em baixo na Terra que eu quero passar uma ordem para vocês. Então, Deus disse: “- olha, vocês vão ter que viver aí, em harmonia, mas prestem bem atenção: primeiro eu, (Deus), depois o Homem, depois a Roça, e depois a Onça. A onça ficou furiosa e disse: - “não, você está errado, primeiro Deus, segundo eu, depois o homem, e depois a roça”. E, Deus disse:- ‘não, é do jeito que eu estou determinando’. E a onça ficou furiosa, e para ela mostrar o poder de fúria, ela começou a matar todos os animais que via pela frente, para mostrar o potencial que ela tinha, e o homem com a sua

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89

família ficou desesperado dela vim destruir seus filhos. Aí, ao deitar ele disse:-“ oh! Divino Deus! Eu quero que você me dê uma luz, que eu quero me defender da onça, que ela está muito furiosa. E Deus deu a sabedoria para ele fazer uma arma para se defender. Quando foi um belo dia que ele foi para roça com a sua família, a onça pulou no caminho e se sentou e deu três rosnado “Rôô, Rôô, Rôô. Primeiro Deus, segundo eu, terceiro o homem e veio para o ataque, o homem puxou a arma das costas e deu, a onça saiu carambolando, caía e levantava, caía e levantava, caiu lá na frente, o homem chegou lá perto e ela sacudiu o rabo, e aí ela mudou o tom, e ai ela gritou: - “primeiro Deus, segundo o homem e terceiro o homem”, e foi morrendo...

Agora, preste atenção nesse raciocínio como é que as coisas são: o homem inverteu: separou Deus dessa longa caminhada, aí botou a onça que estava brigando para ser o primeiro lugar, o peixe, a árvore, o computador, o telefone, aí depois é que vem o homem e a mulher, só que Deus não está gostando disso, mas também isso vai acabar. Por que Deus elegeu a roça depois do homem? Por que está em terceiro plano? Porque desde o princípio da vida humana foi o espaço a onde ele deixou sabedoria para o homem plantar o trigo, tirar a farinha para fazer o pão para dar à população, se o homem do campo não plantar, o povo da cidade não vive, vai passar fome, porque vai ficar na frente do computador e vai morrer de fome. Mas, estão dando prioridade para quem? Para a máquina, e o homem ficou por último (Sebastião Menezes, 2014, grifo nosso).

O tema da reciprocidade que aborda a relação entre o homem, Deus e a natureza

encontra-se na análise de Ellen Woortman (2009), quando explica a percepção moral da

relação do homem com a natureza. Os três polos de reciprocidade são materializados pelo

dar, receber e retribuir: o homem prepara a terra, a terra recebe os nutrientes e se

fortalece, retribuindo ao homem com seus frutos.

O saber camponês revela um conhecimento complexo relativo à sua prática agrícola. Expressão sofisticada da relação entre o homem e a natureza, que expressa não apenas dimensões técnicas, mas também princípios morais. Refiro-me o que se pode chamar de triângulo - Deus, homem, terra. Uma percepção moral de relação com a terra e entre os homens, configura-se uma relação de reciprocidade entre os três polos daquele triângulo (2009:119).

Essa narrativa, portanto me impulsionou a enveredar por um exercício de reflexão

ancorado no paradigma da dádiva (Caillé 1998)44. Buscarei então estabelecer um diálogo entre

a história contada e a teoria da dádiva de Marcel Mauss (2003a). A escolha desse modelo

44

Alain Caillé (1998: 7) defende a ideia de que a teoria de Mauss deve ser considerado “o único paradigma propriamente sociológico que se possa conceber e defender”. O autor considera três importantes paradigmas nas Ciências Sociais: i) o individualismo metodológico; ii) o holismo; e, iii) a dádiva.

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90

teórico-metodológico não é casual, configura-se como um caminho que possibilita uma

compreensão mais ampla acerca do plantar, colher e viver no Curiaú.

O tema da dádiva tem seu marco na Antropologia, nos estudos de Mauss (2003). No

Ensaio sobre a dádiva: forma e razão da troca nas sociedades arcaicas, publicado em 1924,

Mauss inicia seu texto com as estrofes do Havamál, um poema escandinavo que o faz refletir

sobre as trocas e contratos em forma de presente na cultura escandinava. Mauss (2003a)

analisa um conjunto de fatos complexos, “onde tudo se mistura”, a isso ele denomina

“fenômenos sociais totais”:

Nesses fenômenos sociais “totais” como nos propomos chamá-los, exprimem-se, de uma só vez, as mais diversas instituições: religiosas, jurídicas e morais – estas sendo políticas e familiares ao mesmo tempo -; econômicas- estas supondo formas particulares da produção e do consumo, ou melhor, do fornecimento e da distribuição -; sem contar os fenômenos estéticos em que resultam esses fatos e os fenômenos morfológicos que essas instituições manifestam (2003a:187).

Como problema central, o antropólogo buscou compreender “qual é a regra de

direito e de interesse que, nas sociedades do tipo arcaico ou atrasado, faz com que o

presente recebido seja obrigatoriamente retribuído? Que força existe na coisa dada que faz

com que o donatário a retribua?” (2003a: 188). Para responder a isso, Mauss fez um estudo

amplo em três áreas principais “Polinésia, Melanésia, Noroeste Americano, e alguns grandes

direitos” (2003a:189)45. O antropólogo encontrou na categoria maori hau, a chave do

problema. O “jurista maori Tamati Ranapiri” deu uma explicação que havia sido anotada por

Robert Hertz. Explica o sábio maori :

Vou falar-lhe do hau [...]O hau não é o vento que sopra. Nada disso. Suponha que o senhor possui um artigo determinado (taonga), e que me dê esse artigo; o senhor o dá sem um preço fixo. Não fazemos negócio com isso. Ora, eu dou esse artigo a uma terceira pessoa que, depois de algum tempo, decide dar alguma coisa em pagamento (utu), presenteando-me com alguma coisa (taonga). Ora, esse taonga que ele me dá é o espírito (hau) de taonga que recebi do senhor e dei a ele. Os taonga que recebi por esse taonga (vindos de você) tenho que devolver-lhes. Não seria justo (tika) de minha parte guardar esses taongas para mim, fossem eles

45

O Kula, instituição de troca recíproca em que parceiros permanentes dão e recebem objetos de valor socialmente reconhecido e que só podem ser trocados um pelo outro, acontece por todas as ilhas Trobriand (Malinowski 1978). E o Potlatch que quer dizer nutrir e consumir, é um complexo de atividades, festas, danças, representações dramáticas, empréstimos, destruição de bens entre as tribos que habitam a costa noroeste da América do Norte (Mauss 2003). Foram as principais instituições analisadas por Mauss.

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91

desejáveis (rawe) ou desagradáveis ( kino). Devo dá-los de volta, pois são um hau do taonga que você me deu (2003a: 198).

Mauss demonstrou que em todas as sociedades já existentes na história humana é

possível observar a presença constante de um sistema de reciprocidade de caráter

interpessoal. Este sistema, que se apresenta a partir de uma tríplice obrigação coletiva de

doação, de recebimento e devolução de bens simbólicos e materiais é conhecido como

dádiva. Nesse estudo Mauss demonstrou que os fenômenos do Estado e do mercado não

são universais.

Tal fato esclarece dois sistemas importantes de fenômenos sociais na Polinésia e mesmo fora da Polinésia. Em primeiro lugar, compreende-se a natureza do vínculo jurídico criado pela transmissão de uma coisa. Mostraremos de que maneira esses fatos podem contribuir para uma teoria geral da obrigação. Mas por ora é nítido que, em direito maori, o vínculo do direito, vínculo pelas coisas, é um vínculo de alma, pois a própria coisa tem uma alma, é alma. .. Enfim, a coisa dada não é uma coisa inerte. Animada, geralmente individualizada, ela tende a retornar ao que Hertz chamava seu “lar de origem”, ou a produzir, para o clã e o solo do qual surgiu, equivalente que a substituía (2003 a : 200).

A compreensão da dádiva, enquanto um sistema de trocas, básico da vida social, nos

conduz a um olhar crítico ao modelo naturalizado que propaga a ideia de que a sociedade ou

seria fruto de uma ação planificadora do Estado, ou do movimento fluente do mercado. A

troca sob o ponto de vista maussiano libertou o fenômeno do viés econômico, ampliando-

lhe os sentidos. O movimento constante de dar-receber e retribuir que organiza a vida social

possui suas especificidades. O que nos ensinou Mauss no Ensaio sobre a dádiva é que a vida

social não é só circulação de bens, mas também de pessoas, nomes, palavras, visitas, títulos,

festas. A sociedade, nessa perspectiva relacional, é um “fenômeno social total”, porque ela

se faz primeiramente pela circulação de dádivas (presentes, hospitalidade, memórias,

sonhos, intenções, festas) considerados elementos fundantes na constituição dos vínculos

sociais. Na perspectiva da dádiva, a sociedade e o indivíduo são modos de manifestação do

“fenômeno social total”. Segundo Paulo Henrique Martins (2005),

Uma das contribuições centrais de Mauss para sociologia foi demonstrar que o valor das coisas não pode ser superior ao valor da relação e que o simbolismo é fundamental para vida social. [...] Isto é, Mauss entendeu que a lógica mercantil moderna não substitui as antigas formas de constituição dos vínculos e alianças entre os seres humanos e constatou que tais formas continuam presentes nas sociedades modernas. Semelhantes modalidades de trocas aparecem, para ele, como um fato social total que se revela a partir de duas compreensões do total: totalidade no sentido de que a

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92

sociedade inclui todos os fenômenos humanos de natureza econômica, cultural, política, religiosa, entre outros, sem haver nenhuma hierarquia prévia que justifique uma economia natural que preceda os demais fenômenos sociais. Totalidade, também, no sentido de que a natureza desses bens produzidos pelos membros das comunidades não é apenas material, mas, também é sobretudo simbólico (2005: 46).

Esse debate feito por Mauss no Ensaio de quase 170 páginas, dividido em introdução,

três capítulos e conclusão, me inspirou a olhar para o “fazer a roça” na perspectiva de um

“fenômeno social total”, uma vez que reúne diversos aspectos da vida social: o econômico, o

religioso e as relações sociais. Analisar o “fazer a roça” como um propulsor de reciprocidade

e dádivas, amplia nossa compreensão sobre as formas de organização social dos

quilombolas, pelo fato de que a reciprocidade é um elemento importante que dinamiza as

relações de sociabilidade e de vínculos sociais. Essa linha de pensamento nos permite

formular algumas questões: como registrar o sistema da dádiva no plano da organização

social e especificamente no “fazer a roça”? São estabelecidos vínculos sociais oriundos do

“fazer a roça”? O que circula?

Retornando à narrativa de Sebastião Menezes, a dádiva contida no “fazer roça” é

retribuída pela circulação de alimentos, mas, também, pelas práticas sociais, pelas

experiências de vida entre os envolvidos: as amizades, os casamentos, os compadrios. Estou

falando, portanto, de sociabilidade, palavras, orgulho, autoestima, status, relações entre as

pessoas. O “fazer a roça” é uma atividade passada de geração a geração, portanto um dom

que pai e mãe passam para os filhos dentro de uma família. Do ponto de vista antropológico,

o princípio de reciprocidade corresponde, portanto, a um ato reflexivo entre os sujeitos e

não apenas na permuta de bens ou coisas, ou seja, não se reduz a uma troca. Sebastião

Menezes nos oferece “a chave do problema”:

Desde o princípio da vida humana, a roça existiu, seja de feijão, de arroz, de farinha de mandioca, a roça é a vida, tira da terra para dar o sustento para as pessoas, mas ninguém valoriza, só dá prestígio e valor à roça, quem faz parte da vida da gente, de quem está no campo, aqueles guardiões, ali, que nasceram dentro dela, viveram dentro dela, e já estão morrendo vivendo da roça, e estão até se aposentando porque trabalharam na roça, para eles e até para mim, a roça faz parte da vida, porque é um relacionamento que a gente tinha, de roça com as pessoas, que era muito mais fácil a pessoa sair todo dia parar o caminho da roça e visitar todo domingo, do que ele sair para visitar seu filho ou compadre ou irmão, vinha na roça, às vezes só para visitar a roça, e quem trabalhou em extensão rural como aquele cidadão, ele sabe, porque estava no sangue. (Sebastião Menezes, 16 maio de 2014, grifo nosso).

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93

Nessas linhas o narrador do Curiaú traça as formas de convívio e ressalta como o

fazer a roça comanda o cotidiano das pessoas, afinal “a roça faz parte da vida”, é patrimônio

essencial do quilombo, traduz elos de reciprocidades, pois, “um relacionamento de roça com

as pessoas” significa uma comunicação que produz códigos, etiquetas e formas de

relacionamento imerso no cotidiano da roça.

3.2.1 “A Roça patrimônio da humanidade”

A terceira e última parte da narrativa faz referência à ideia de tornar a “roça patrimônio

cultural da humanidade”, o que também pode constituir parte da compreensão que está

intrinsecamente ligado à dádiva, que é a dinâmica de produção dos vários domínios da vida

social, em seu caráter relacional, incluindo vivências e experiências históricas e os processos de

construção de identidades, os saberes e as atividades que caracterizam o “fazer a roça”.

Prossegue o narrador:

Então, gente, eu pergunto a vocês que são professores, educadores, quem foi que já teve a ideia, e pensou: vamos tombar o nome Roça como patrimônio internacional da humanidade? Será que o nome Fortaleza de São Jose de Macapá é mais velho que a roça? Não, mas, já foi tombado. O acarajé lá da Bahia é mais velho do que a roça? E o produto já sai de lá, já para fazer o acarajé, já foi tombado. Porque não batalhamos por isso? Pelo menos para valorizar os negros. (Sebastião Menezes da Silva, Curiaú, 16 de maio de 2014, grifo nosso).

Sebastião não apenas propõe, ele conclama as pessoas a pensarem sobre o valor das

coisas e dos lugares de memória e de preservação da história, e, portanto, da própria

continuidade da existência do quilombo. Proposta semelhante ao do Sr. Sebastião Menezes

está sendo concretizada na região do rio Negro no estado do Amazonas, onde a Associação

das Comunidades do Médio Rio Negro (ACMRN), a Federação das Organizações Indígenas do

Rio Negro (FOIRN) e a Associação Indígena de Barcelos (ASIBA) solicitaram ao Instituto do

Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) que inscrevesse seu sistema agrícola como

patrimônio imaterial.

Em 2010, o IPHAN registrou o Sistema Agrícola Tradicional do rio Negro (SAT) como

patrimônio cultural do Brasil no livro dos saberes e modos de fazer. Em junho de 2011, iniciou-

se a discussão de um plano de salvaguarda para o SAT-Rio Negro. O Sistema agrícola tradicional

do rio Negro é entendido como um conjunto formado por elementos interdependentes, as

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94

redes sociais, a cultura material, os sistemas alimentares, os saberes, as normas, artefatos,

técnicas, os direitos que envolvem os espaços manejados, as plantas cultivadas, as formas de

transformação dos produtos agrícolas e os sistemas alimentares locais46.

Manuela Carneiro da Cunha (2012) explica, por exemplo, a importância do cultivo da

mandioca na agrobiodiversidade47 do Rio Negro, como um complexo de saberes, práticas e

relações sociais que atuam nas roças ou mesmo nas florestas e vão até os alimentos e seus

modos de consumo em diversos contextos da vida social, inclusive nas festas e rituais, em seu

sistema de cura, pois todos esses fatores são relevantes para explicitar a noção de sistema

agrícola.

Cultura e agricultura convergem de outros modos também para proliferação de variedades de mandioca. Por um lado, há um gosto em todos esses povos pelas coleções, e em todos eles a agricultura tira prestígio e orgulho do número de variedade que cultiva. Isso vale não só para mandioca, mas para outros cultivos também. Outro elemento é a rede de relações, atestada pela diversidade que se obteve ao longo dos anos. As mudas de plantas, e as estacas de maniva, em particular, são obtidas de parentes e de amigos em viagens, casamentos, festas... [...]. As manivas são, portanto, produtoras e produtos de relações sociais, e sua origem é lembrada (2012: 449).

Na pesquisa realizada entre os Mebêngokre-Kayapó por Robert Pascale et al (2012) os

autores analisam o manejo atual da agrobiodiversidade em aldeias Kayapó do sul do Pará, que

desde os estudos de Anthony Anderson e Darrel Posey (1991) são exemplos dos conhecimentos

indígenas sobre a diversidade de cultivos e ambientes e de formas específicas de organização

social a partir da organização da roça, fortalecendo o seu caráter relacional.

O sucesso da agricultura MebêngoKre reside, sim, na diversidade do plantio, mas depende, por sua vez das redes de relações sociais nas quais se situam as pessoas, as unidades domésticas e as aldeias: cultivar mandioca ou milho significa cultivar suas relações (2012:362).

Quando Sebastião Menezes propõe tornar a roça patrimônio, ele está enfatizando

aspectos importantes na organização social, nas relações, e alertando para o perigo de ver esse

patrimônio se desestruturar, demandando do Estado, políticas que garantam a proteção de

seus conhecimentos tradicionais sobre o “fazer a roça”, que como já abordei anteriormente, é

46

Disponível em www.socioambiental Acesso em: 26 de novembro de 2014. 47

Agrobiodiversidade é um “conceito que reflete as dinâmicas e complexas relações entre as sociedades humanas, as plantas cultivadas e os ambientes em que convivem, repercutindo sobre as políticas de conservação dos ecossistemas cultivados, de promoção da segurança alimentar e nutricional das populações humanas, de inclusão e desenvolvimento local sustentável. A biodiversidade - diversidades de formas de vida encobre três níveis de variabilidade: a diversidade de espécies; genética; e os diferentes ecossistemas e paisagens (O sistema agrícola tradicional de queima e pousio coivaras) (Santilli 2009:67).

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95

um fato relacional e de reciprocidade, integrando conhecimentos originados a partir da relação

com a natureza e que consequentemente organiza o mundo social.

No aspecto da salvaguarda desses conhecimentos, Juliana F. Rocha Santilli (2009)

realizou um estudo sobre os espaços legais conferidos aos sistemas agrícolas tradicionais, onde

argumenta que a agrobiodiversidade é negligenciada pelos ambientalistas e pelas políticas

públicas, que tendem a associar a biodiversidade somente aos animais e plantas silvestres.

Afirma Santilli (2009):

Apesar dos avanços das leis socioambientais nos últimos anos, ainda não há nenhuma especificamente consagrada à agrobiodiversidade (ou que pelo menos lhe dê uma atenção especial), e há poucas políticas públicas voltadas para conservação da biodiversidade agrícola. Entre as principais leis socioambientais, como as que tratam da política nacional de meio ambiente, da política nacional da biodiversidade, do sistema nacional de unidade de conservação e do acesso aos recursos genéticos e conhecimentos tradicionais, nenhuma delas se preocupa especificamente com o tratamento da agrobiodiversidade (2009:21).

Embora os sistemas tradicionais de agricultura não tenham, ainda, políticas para

salvaguardá-los, apesar de tentativas pontuais48, o exercício de ouvir as histórias e ter contato

com a forma como os agricultores quilombolas cultivam suas roças é uma maneira de buscar

visibilizar e valorizar a agrobiodiversidade do território quilombola do Curiaú e seu patrimônio.

A memória biocultural dos agricultores nos conduz para uma compreensão desse mundo social

a partir de suas vivências quotidianas do “fazer a roça”, descortinando “elos afetivos” com o

lugar, a reciprocidade com a terra e as redes de relações.

Na busca de compreender estes “elos afetivos” fui apresentada pelo Sr. Raimundo

Noro ao agricultor Benedito Machado, 87 anos, conhecido carinhosamente como seu Biló, o

mais velho de uma família de oito irmãos. Quando chegamos ao lugar chamado Canto da

Água Preta, no sítio São Benedito, estava em sua casa de farinha, realizando alguns

consertos no telhado. Há muito tempo eu tinha o desejo de conhecê-lo, pois trata-se do tio-

avô de Sebastião Menezes. Devido suas inúmeras atividades na roça, na casa de farinha e no

viveiro de peixes, dificilmente tem tempo para ir à sede central do Curiaú. Suas idas são em

momentos especiais, como nas festividades do padroeiro da comunidade, São Joaquim. Me

48

Em 2009, ocorreu o Seminário Franco-Brasileiro Patrimônio Cultural e Sistemas agrícolas locais, promovido pelo IPHAN e IRD, com objetivo de debater metodologias que permitem apreender a complexidade destes sistemas e encontrar os instrumentos que são passíveis de salvaguardar e ao mesmo tempo manter o caráter dinâmico dos mesmos. Disponível em www.portal.iphan.gov.br Acesso: abril de 2015.

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96

apresentei e expliquei a razão de minha ida a sua casa, perguntei se ele me concederia uma

entrevista. No mesmo instante dispôs-se, mas me perguntou se podia ser ali mesmo,

respondi que tudo bem.

Figura 27- Benedito Machado, mostrando o viveiro de peixes, 2014.

Logo que começamos a conversar, ia contando sua história, e mostrando com

orgulho, os lugares, a casa de farinha, o viveiro de peixes com tambaqui e tilápia, as

plantações do quintal. A entrevista foi acontecendo enquanto caminhávamos, assim ele

indicava os lugares e contava as suas histórias. Posteriormente, passado algum tempo,

fomos nos acomodar na varanda de sua casa, onde se encontrava sua esposa, dona Palmira,

com quem também conversei e fiz uma entrevista.

À medida que o assunto passava a ser sobre a APA do rio Curiaú e as novas medidas

de uso do território, a entrevista ficava tensa. Pois, algum tempo atrás, o Sr. Benedito sofreu

inúmeros constrangimentos49, e não gostava de relembrar esses acontecimentos. Ele nos

conta sobre sua infância e o trabalho na roça:

Desde menino que eu trabalho na roça, e nunca fui empregado. Criei 12 filhos, tudo no serviço de roça, e, toda ajuda que nós tivemos foi daqui e mais ninguém, dando murro. Para eu comprar esse forno que eu tenho de cobre já de segunda mão, nós trabalhávamos era noite e dia com farinha, o menino, mas velho trabalhava com nós, o seu Rodão trabalhava comigo, a minha irmã Venina trabalhava comigo, o seu Cupu do Curiaú, o finado Curicáca, Teteu,

49

Extremo constrangimento impingido a um trabalhador da terra, já ancião. Foi preso e levado para delegacia de polícia, quando teve que ficar em uma cela com mais quatro pessoas.

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97

meu cunhado, o velho Garcia, meu irmão Lica, José, tudo trabalhou comigo para nós adquirir 200 mil reis, para eu comprar esse forno, empenhei um casal de gado, com a farinha que eu fiz, eu fui em um comércio em Macapá que se chamava Abrão Peres, ele era comerciante em Macapá, ele e o finado Alcolumbre, eu já comprei esse forno do finado Alcolumbre que comprou do Horlei Machado, eles mandaram um recado e eu comprei o forno, mas trabalhamos para adquirir. Sempre trabalhei sozinho com a minha família, e nunca tive ajuda, a única ajuda foi de Deus, mais ninguém. Nós fazíamos mutirão, reuníamos todo o pessoal que trabalhava na roça. Exemplo: começava na segunda feira e falavam -“hoje vamos começar na tua roça” e íamos trabalhar na minha roça segunda feira, quando fosse na terça já íamos para outra roça com o pessoal, e assim nós fazíamos.

Nossa infância foi boa, o meu pai morreu com 105 anos, mas até hoje o que ele plantou ainda tem, um laranjal que tem aqui na várzea, muita laranja, laranjal, ainda do meu pai, morreu, mas até hoje está lá. Meus irmãos, nós éramos 8, e deixou, mas no tempo que era de arriar laranja, todos os 8 irmão, nós íamos para lá, arriava as laranjas tudo e era tudo dividido, o tanto que ganhava um, todo mundo ganhavam, agora no meio de 8 irmão só existe eu, meus sobrinhos da família e meus filhos. A roça do meu pai era aqui dentro, até hoje está lá, dá muita laranja, daqui é uma boa distância e o caminho para a gente atravessar está muito ruim, e dá poraquês nessa travessia. Aí dá muita onça, mas só que já não estão andando mais por aqui, mas dá muita onça, mês de agosto é o ajuntamento delas (Benedito Machado, Curiaú, maio de 2014, grifo nosso).

Seu Benedito lamentou não poder me levar até a roça que havia sido feita por seu

pai, pois como era tempo ainda de muita chuva, ficava difícil a travessia para chegar ao local.

Ao destacar o laranjal como um marcador de coesão familiar e organização de papéis sociais,

onde o narrador detalha desde o momento da realização da escolha do local da roça, até a

colheita do fruto, colheita esta partilhada com todos os irmãos, o narrador evidencia a roça

como fato relacional e integrador, inclusive fortalecendo a percepção de mutirão, chamados

de “puxirum”, com um grande apelo à solidariedade e cooperação entre os agricultores,

bem evidente na fala: “hoje vamos começar na tua roça”.

Além disso, o “fazer a roça” se constitui em um importante fator da base alimentar,

do sistema de cura, das festas e crenças religiosas, ou seja, pode ser pensado como um

elemento organizador de contextos culturais específicos. Tema que surgiu durante a

conversa com o casal Palmira e Benedito (figura 28).

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98

Figura 28 - Casal Palmira Machado e Benedito Machado na varanda de sua casa. Curiaú, maio de 2014

3.2.2 O caráter relacional do fazer a roça: o alimento e o cultivo das plantas que curam

Entender o caráter relacional da roça como “fenômeno social total” torna-se o

fundamento para assegurar a soberania alimentar do grupo. Essa soberania se traduz na

possibilidade de dizer onde e como “fazer a roça”, e, portanto, decidir e organizar em

conjunto a estrutura social do grupo, escolher o tempo de plantar, o que plantar, a forma

como plantar, que insumos utilizar neste plantio, enfim, plantar para viver.

Essa perspectiva vem ao encontro da concepção da Via Campesina50, que propõe o

conceito de soberania alimentar como “o direito dos povos a alimentos nutritivos e

culturalmente adequados, acessíveis, produzidos de forma sustentável e o direito de decidir

seu próprio sistema alimentar e produtivo”, ou seja, os povos precisam ter soberania para

decidir o que vão comer, inclusive livre de agrotóxicos, sem veneno51.

Na pesquisa de Isabela Leão Ponce Pasini (2014) sobre conflito territorial e soberania

alimentar na comunidade quilombola Angelim I no Sapê do Norte-ES, a autora explica como

50

Trata-se de um movimento e organização internacional de camponeses, composta por movimentos sociais e

organizações camponesas de pequenos e médios agricultores, trabalhadores agrícolas, mulheres rurais e

comunidades indígenas e negras da Ásia, África, América e Europa. A soberania alimentar é uma das principais

políticas da Via Camponesa. Disponível em www.social.org.br/cartlhas/cartilha003/cartilha012.htm Acesso maio

de 2015. 51

“Soberania Alimentar, os agrocombustíveis e a soberania energética”. Disponível em:

www.mpabrasil.org.br/soberania. Acesso: maio de 2015.

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99

a perda de território para plantação do monocultivo de eucalipto pela empresa Aracruz vem

impactando, influenciando nas perdas e práticas alimentares e pressionando situações de

insegurança alimentar entre os quilombolas52.

Roseane Gonçalves Viana (2003) realizou pesquisa sobre os aspectos nutricionais da

população do Curiaú, na qual estudou os saberes e as práticas alimentares dos quilombolas, e

argumenta que eles são resultantes da interação entre os recursos naturais existentes na

comunidade, da produção agrícola e da dinâmica econômica das mercadorias locais. A autora

mostra que nas falas de seus interlocutores, “a fartura de alimentos aparece como um

acontecimento do passado, ligado ao que a natureza proporcionava à comunidade, e, que no

momento atual, sofre uma transformação” (2003:84).

Sobre o assunto, o Sr. Benedito Machado conta, com saudosismo, como era a dieta

alimentar na sua infância, e os impactos que ocorrem com as novas regras e proibições de

caçar, pescar, e, as restrições no fazer a roça:

Olha: quando não tinha essa lei, nós comia bem: veado, catitú, tatu, paca, cutia, às vezes, anta, sempre entrava aqui, queixada sempre entrou aqui, a gente comia bem, mas hoje em dia se tu for matar uma caça... agora, por uma banda eu acho bom, porque muitos matam para vender, então se eu for matar uma caça, eu vou matar uma caça, mas é para mim e para minha família comer. Comia, tinha época que eles estavam de filho e a gente não pegava. Os meus pais, foi uma coisa que eu nunca tive essa ciência de marisco com o negócio de pirarucu, comia muito pirarucu que meus pais mariscavam com meus irmãos mais velhos e nós comia, mas tinha a época de pegar eles. Estamos sem comer a caça. Nós não podemos não!. O tracajá pra desovar, a gente não pode mais comer o ovo do tracajá não pode tirar não, mas tem gente aqui que come, mas pior, que aqui não existe tracajá só tem tartaruga aqui no lago, mas dessas pequenas, aqui existe tartaruga, mas tracajá não. Não. Às vezes quando o vizinho é bom, quando ele pega e dá algum pedaço pra gente de pirarucu. Ai a gente come.

Na nossa infância a gente comia pirarucu, jacaré, esses outros peixes tambaqui, piratininga, filhote, matrinchã, aí no igarapé tinha. Eu como bem o tambaqui, porque eu tiro daqui do tanque, porque é do tanque, agora não é proibido vender, mas para pegar assim pra vender não pode, é proibido o tambaqui, mas, do tanque não, quem tem viveiro pode vender tambaqui, aqui eu vendo muito, aqui vive cheio de peso de gente comprando peixe aqui (Benedito Machado, Curiaú, maio de 2014).

Com o advento da APA ocorreram transformações nas estratégias de reprodução

social, inclusive na produção e decisão do que comer ou não. O tema da caça e pesca

52

Segundo dados da Chamada Nutricional Quilombola do Ministério do Desenvolvimento Social (MDS) de 2006, a população negra é o “segmento social” mais atingido pela insegurança alimentar.

Page 121: Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer

100

infelizmente não é trabalhado nesta tese, mas trata-se de um assunto que precisa ser mais

discutido, face às restrições impostas pela APA, que atingem as estratégias agroalimentares.

Sem falar que, ao abordar esse tema da soberania alimentar, não se pode restringir a

questão somente aos aspectos nutricionais ou econômicos, mas entender que os alimentos

compõem aspectos simbólicos e culturais, e que, como enfatiza seu Benedito, “antes da lei,

eles comiam bem”. Mas também quando o comer significava uma relação intrínseca do que

se come e os ciclos que envolvem esse ato, que não é só fisiológico, mas produtor de

cultura. O que o narrador explica quando relata que eles sabiam a “ciência de marisco”, ou

seja, o momento de desova do tracajá, a melhor época para pescar o pirarucu, o que

constitui saberes oriundos de uma experimentação, de uma construção da relação com a

natureza de forma integrada.

Essa percepção é corroborada por Carlos Roberto Antunes dos Santos (2001):

O alimento constitui uma categoria histórica, pois os padrões de permanência e mudanças dos hábitos e práticas alimentares têm referências na própria dinâmica social. Os alimentos não são somente alimentos. Alimentar-se é um ato nutricional, comer é um ato social, pois constitui atitudes ligadas aos usos, costumes, protocolos, condutas e situações. Nenhum alimento que entra em nossas bocas é neutro (2001: 12).

Para os quilombolas, o território e o que dele se obtêm como alimentos e plantas

para curar doenças do “corpo e do espírito” são formas de garantir seu direito de

pertencimento às terras do Curiaú. As medidas restritivas reduzem esse acesso e

criminalizam o que os quilombolas secularmente fazem, com sua própria forma de manejo.

O que nos conta dona Orlandina Banha:

Eu sou antes do território. Eu vou fazer 80 anos, e morei aqui, meus pais morreram, minha mãe era daqui, meu pai era de outro interior, mas também é descendente daqui meus tios também me criaram aqui e eles davam umas diretrizes para nós conservamos, e sempre conservamos. Talvez nós não usássemos a palavra conservação. Mas, eu lembro, tracajá que todo mundo gosta de comer o ovo do tracajá, mas era assim: dava-se primeiro as chuvas “não pode se tirar o ovo que esse é para nascer”, e todo mundo obedecia porque já estavam com os filhotinhos dentro. Nós tínhamos aquelas ordens de conservação. “Fez roça aqui, replanta esse ano, e no outro não, tem que deixar a mata crescer”, mas tudo ele dizia: “não pode fazer aqui, então vai fazer alí”.

Agora só dizem: - “tu não pode fazer”. Mas, não dizem onde vai fazer e não dão apoio. -“Se virem”. Como professora? Eu acho que todos os animais

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101

tem que ser respeitados, mas o respeito maior é com o animal homem, entre um tracajá, cutia e o homem, mata a cutia e alimenta o homem.

Eles querem as leis deles e a gente não pode ir contra, e nós temos que se adaptar, a Constituição é geral nós temos uns pontos algumas coisas que vai de encontro. Vou dar só um exemplo: no meu tempo aqui não matava-se, a lei era se achasse uma fêmea do pirarucu com o filhote não se matava nem filhote e nem a fêmea, era uma lei porque nós obedecíamos aos mais velhos. Essa era a nossa lei.

As nossas festas, nós temos as festas de batuque, tem todo um ritual e ai o homem diz assim: “só pode ir até quatro horas”, mas nós temos um ritual que nós paramos só às seis horas da manhã, o pessoal está descendo o batuque, aí o pessoal vai para a porta da Igreja oferecer e entregar ao Santo aquela alvorada ai volta e as cozinheiras já prepararam a sopa e o que tiver, e tem que ir na cozinha agradecer as cozinheiras e o pessoal que tá trabalhando ali dentro toma a sopa e começa a música para dançar.

“Eu sou antes do território” expressa o sentido de chegada, de originar, de construir

coletivamente um projeto de vida e de cuidado com os que conformam o quilombo em suas

diferentes dimensões existenciais: rituais de dança e louvação aos santos, expressas no

Batuque e no Marabaixo, nos alimentos e nas plantas que curam. Presente no relato de

dona Orlandina Banha e de seu Benedito Machado está também o sentido de preservação

da fauna que os alimenta, pois sabiam quando o tracajá “não pode tirar o ovo que esse é

para nascer” ou quando não podiam pescar a fêmea do pirarucu.

3.2.3 O cultivo da terra: saberes-fazeres agroecológicos no Curiaú

A agrobiodiversidade construída pelos quilombolas no Curiaú se expressa em uma

diversidade de cultivares. Na várzea, são cultivados: milho, banana, melancia, jerimum,

maxixe, cana, quiabo. Na terra firme cultivam nos quintais: laranjas, tangerina, jaca, graviola,

carambola, cupuaçu, muruci, mamão, abacate, maracujá, caju, goiaba, acerola.

O quadro a seguir mostra alguns dos cultivares que compõem o conhecimento

agroecológico. Há uma diversidade de espécies, que aparecem nas narrativas dos

quilombolas entrevistados durante a pesquisa. Importante notar como esse saber faz com

que se diferenciem as formas de plantio, o que cada uma das espécies precisa e a

importância alimentar de um tipo e de outro.

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Quadro 4- Cultivares da Agrobiodiversidade citados pelos Agricultores quilombolas

NOME

RELATOS SOBRE A DIVERSIDADE DE ESPÉCIE

BANANA

“Até que agente tem, a banana chorona, a banana prata, que é a banana branca e a banana de mingau, que agente chama açu, que é pacuçu, eu nem sei verdadeiramente por que é pacuçu, ou por que chamava de banana açu” (Sebastião Menezes) “A banana tinha, um bocado de qualidade delas, era essas bananas grandes, banana branca, banana prata, aquela que chama mulatinha, já tivemos muita banana. Tem de diversas qualidades”.

(Palmira Machado)

ABACAXI

“Abacaxi, nós temos duas variedades, as outras já são introduzidas de outras comunidades: é o chamado rabo de cavalo que era porque ele tinha um rabo fino da cabeça a parte da cipa grossa, e da bunda vai ficando fina, então chamava rabo de cavalo, e uma outra variedade se chamava cabecinha. Cabecinha, era o abacaxi mais doce que você já viu. E o tipo daqui mesmo é o original da gente”. (Roldão Amâncio)

CANA

“Cana, tinha uma variedade, tinha, nós perdemos nossa variedades próprias, inclusive um finado meu, ele disse –‘é... nós não temos cana como nós tínhamos antigamente que era uma variedade’. Era uma cana que eles chamavam cana taboca, que ela dava o canudo, mais de um palmo de comprimento, a cana ela crescia muito grande, e ela não era uma cana dura, era uma cana macia”. (Sebastião Menezes)

MANIVA

“A maniva plantávamos: curuçarí, pai Lourenço, pacuí, tudo isso a gente plantava, que nós temos até ai nessa roça uma que se chama caça macho que vai e soca pra dar soca, o nome da maniva, a soca é grande é muito boa, ela não cresce alta; marapituba; Santo Antônio, isso tudo cada uma qualidade tinha um nome. Tinha uma (maniva) sorrisinho que era bem baixinha, mas dava muita soca. É conhecido, porque essa marapituba e a sorrisinho elas são baixas é como a caça macho, elas não crescem alta só desgalha muito, e o pai Lourenço clarea e cresce alta” (Palmira Machado).

Fonte: pesquisa de campo 2014

No que diz respeito à maniva (caule e a rama) recebem várias denominações, de

acordo com as características do que os quilombolas chamam de “soca” (raiz) a exemplo, da

curuçarí, pai Lourenço, pacuí, marapituba, Santo Antônio e sorrisinho. As representações e

as denominações da maniva variam segundo o tamanho da “soca” e a sua adaptação ao

solo, que produzirá ou não “socas” de tamanho pequeno ou grande. A qualidade da farinha

é identificada em decorrência da cor e do tamanho da soca. Pai Loureço é considerada uma

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103

maniva que dá origem a uma soca branca, uma mandioca enxuta que não é “agoada”, e

produz uma farinha clara.

A nominação dada pelos quilombolas aos diferentes tipos de maniva também

caracteriza o processo dinamizador de troca de mudas experimentadas entre as

comunidades e os agricultores. Dar nomes aos diferentes tipos de maniva ajuda a identificar

a sua origem, por exemplo, se for maniva proveniente do Curiaú ou de outras comunidades.

Com isso, cria-se uma rede de trocas que dinamizam os vínculos sociais entre as

comunidades.

As roças de maniva sempre foram colocadas em terra firme, mas com a preocupação

de estar próximo ao lago, onde a mandioca é colocada para macerar visando a produção da

farinha. No que diz respeito ao calendário agrícola, os meses de novembro e dezembro

correspondem ao tempo de queima. Os agricultores aguardam as chuvas de janeiro para

plantar a maniva, aproveitando que a terra fica encharcada. Em maio, realizam a capina, que

ocorre regularmente a cada três meses, para que no tempo de colheita o terreno esteja

limpo. A colheita da mandioca é anual. Passados 12 a 14 meses colhem a mandioca. As

raízes são transportadas para a casa de forno, onde são colocadas de molho para maceração

durante uns quatro dias, e posteriormente processam-na para fazer a farinha e outros

derivados: tucupi e a goma53. E com a folha da maniva, moem e acrescentam carne de porco

carne bovina e fazem a maniçoba. A seguir, as figuras 29, 30 e 31 mostram alguns momentos

do processo da “farinhada” que acompanhei na casa de farinha da senhora Nazaré da Silva

Ramos.

53

Com a goma produzem a tapioca iguaria típica da comida brasileira, feita com a fécula extraída da mandioca. O tucupi é o sumo amarelo extraído da mandioca, que é exprimida depois de extraído o caldo descansa, para que o amido (goma) se separe do líquido, que é cozido durante três dias e servido como molho na alimentação.

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104

Figura 29 - Nazaré da Silva Ramos descascando a mandioca. Curiaú.2014.

Figura 30 - Israel Ramos moendo a mandioca para fazer a farinha. Curiaú.2014.

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105

Figura 31- Torrando a farinha. Curiaú, 2014.

Para saber mais sobre os diferentes cultivares e entender a lógica seguida pelos

quilombolas acerca da importância e diversidade dos plantares fomos ao encontro de Dona

Palmira Machado dos Santos (figura 32), 79 anos, a simpática anciã estava sentada na

varanda, logo que nos apresentamos nos ofereceu um café que fomos saboreando,

enquanto ela nos contava sobre sua vida na roça, sobre os tempos de fartura e a diversidade

dos cultivares.

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106

Figura 32- Palmira Machado dos Santos, contando suas histórias de “fazer a roça”. Curiaú.

A mandioca, que em tempos d’antes já foi motivo de orgulho dos agricultores do

Curiáu, por ser considerado um dos maiores centros de produção de farinha de Macapá, é

lembrada por dona Palmira nos tempos de fartura. As décadas de grande produção de

farrinha que vai de 1960 a 1990.

Era mandioca, banana, feijão, cana, maxixe, jurumum, tudo a gente já plantou desde o tempo de meu pai, era farto, era difícil a gente comprar comida, quando me casei e vim para cá era muito difícil comprar comida, tinha muito peixe, caça, caçavam bem que tem, mas a população aumentou. O finado Colono, não sei se a Sra. conheceu? Tinha dia que ele dava duas viagens de caminhão ai na vila para comprar farinha, carregando farinha. A farinha já foi boa de vender também, agora só era barato, mas naquele tempo vendia porque as coisas estavam tudo barato, e agora pra gente fazer dinheiro basta, fazia e era rápido que acabava, agora tá tudo caro. Eu criei os meus filhos, graças a Deus, de barriga cheia, frutas, laranja, aqui era um laranjal, coco ai já deu muito coco, mas está se acabando tudo (Palmira Machado, Curiaú, maio de 2014).

Dois aspectos merecem ser destacados em relação ao manejo agroecológico do

Curiaú que, como atestado por dona Palmira, o ajudava a se constituir como um centro

produtor de farinha na região de Macapá: o processo de preparação e revigoramento da

terra e o conhecimento do solo. O primeiro baseia-se em um princípio de reciprocidade, no

qual o trabalho do homem de preparar e alimentar a terra é explicado por Benedito

Machado, principalmente quando comenta sobre as técnicas para deixar a terra se

“reformar”

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107

Olha, o que eu uso é o seguinte, se eu roço nessa parte daqui, a capoeira que eu roço eu tiro essas bananas de lá eu já vou para outra parte e deixo essa parte aqui se recuperar, às vezes tem banana, mas só pequenos cachos nessas capoeiras, tem muita banana ai nessas capoeiras, a gente deixa ela reformar para depois voltar de novo e continuar.

Segundo Toledo e Barrera-Bassols (2015) de todo o conjunto de conhecimentos

locais existentes, o referente aos solos é o mais significativo do ponto de vista agroecológico,

pois “o conhecimento e uso dos solos servem como critério essencial para a tomada de

decisões sobre as formas de manejar as paisagens do entorno” (2015:102), como

evidenciado por Benedito ao indicar o momento certo de deixar a terra se revigorar. Os

autores, evidenciam ainda, que nessas últimas duas décadas, cresceu os estudos que tem

como tema os conhecimentos tradicionais sobre o solo. Os chamados estudos de

etnopedologia54 têm contribuído para

i)Formalização do conhecimento local sobre solos, mediante esquema de classificação; ii) a comparação das classificações de solos, tanto técnica quanto locais; iii) a análise dos sistemas locais de avaliação de terras; e iv) avaliação das práticas de manejo agroecológico (2015:105).

As características físicas e químicas do solo são descritas por Sebastião Menezes ao

fazer um mapeamento da distribuição espacial do uso e ocupação do solo, e aptidão agrícola

no Curiaú, explica:

É só com o que o solo tem mesmo de nutriente. Tem o solo argiloso, o selicoso e tem o rochoso. Argiloso é uma terra barrenta. Selicoso é uma terra com areia e o solo rochoso é a piçarra com pedras. Em qualquer lugar da terra do Curiaú. Todas elas são apropriadas para o plantio da mandioca. O argiloso tá na várzea, na várzea, é uma argila que serve até para tirar, algumas pessoas antigamente tiravam o próprio barro para fazer panela, alguidá fazer essas coisas tudo. É parte das várzeas, rios e é uma terra sempre úmida. O selicoso é uma terra como essa daqui, é uma terra misturada, com um tanto de piçarra terra bruta. E o rochoso é onde tem muita piçarra grande, mas mesmo assim a gente planta. Lá embaixo é só piçarra, as minhas plantas estão lá e estão produzindo bacana (Entrevista Sebastião Menezes, fevereiro de 2014, Curiaú).

Na construção do Plano Territorial de Desenvolvimento Rural Sustentável (PTDRS) a

Secretaria de Desenvolvimento Rural (SDR) do Amapá lançou em 2010, o Programa

Territorial da Agricultura Familiar e Florestal (PROTAF), a mandioca foi indicada como o

54

Ciência que trata da influência dos solos em seres vivos, particularmente plantas, incluindo o uso do solo pelo ser humano com a finalidade de proporcionar o desenvolvimento das plantas. A etnofologia se interessa em estudar os conhecimentos locais sobre os solos (Dicionário).

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108

principal produto da cadeia produtiva no Amapá. Vem sendo implementado um novo

modelo de plantação de maniva através da mecanização com base no “Sistema bragantino”

que permite aumentar, no mínimo, em quatro vezes mais a produtividade da cultura da

mandioca por hectares 55. Esse projeto vem sendo gradativamente introduzido no Curiaú por

alguns agricultores. A mecanização e técnica de cultivo em rotação das culturas de milho,

arroz, mandioca e feijão, deverá em curto tempo ter um efeito de empobrecer o solo, na

perspectiva do agricultor Sebastião Menezes:

O solo do Curiaú é fértil demais, é muito bom. E essa introdução da mandioca mecanizada empobrece o solo, porque segundo quem fez anteriormente a análise do solo do Curiaú disse que tinha apenas 20% de solo arado em cima da terra degradada, então, a partir do momento que tu vira, ela começa a misturar argila com terra selicosa, e leva o solo arado, mistura e leva para baixo, e se tu não ajudar o solo, com o tempo vira uma terra improdutiva, que possa se dizer que vira um cerrado e fica um solo degradável e só tem que trabalhar com ela dali para frente só com adubo, é o que vai acontecer nessas terras de arado.Com o tempo vai fazer isso. Se a centenas de anos que o Curiaú existe, a gente vem utilizando terra para tirar o nosso sustento plantando, seja plantas permanentes ou plantas de pouca durabilidade, se nós estivéssemos trabalhando constantemente com esse solo dessa natureza, mexendo com ele constantemente, nós já estávamos com esse solo imprestável pelos anos que tem vivendo no mesmo local e plantando na mesma área. O que aconteceu é que talvez criou um algum tipo de resíduo que possa contrair doença, que foi na várzea o muco da bananeira e para outras coisas que já aconteceu de se exterminar por conta da doença do solo que contraiu por alguma razão.

A explicação de seu Sebastião Menezes e suas preocupações sobre como

futuramente o solo do Curiaú responderá aos projetos de mecanização da mandioca, nos

remete à metáfora usada por Vandana Shiva (2003) em que diz que “as monoculturas

ocupam primeiro a mente e depois são transferidas para o solo”. Observa-se a introdução de

um modelo que não segue a dinâmica da plantação da diversidade de maniva como as que

os agricultores relataram no quadro 4 de uma variedade de maniva no Curiaú com seus

respectivos nomes e características: “curuçaí, pai Lourenço, pacuí, caça macho, marapituba,

Santo Antônio e sorrisinho. O que esta predominando hoje é a maniva roxa, vindo segundo

Sebastião Menezes, da troca de mudas com os ribeirinhos. Em função da produção e busca

por grandes quantidade em pouco tempo não se respeita o ciclo normal de nascimento e

maturação da “soca”.

55

Embrapa Amapá Disponível em www.embrapa.br Acesso: abril de 2015.

Page 130: Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer

109

Shiva (2003) usa a expressão “monocultura da mente” para analisar como o saber

científico dominante cria uma monocultura mental ao fazer desaparecer os espaços das

alternativas locais com suas nominações, construções imagéticas e elaborações simbólicas. A

autora faz uma análise sobre o modelo monocultural do desenvolvimento, que faz surgir a

“mentalidade monocultural”, resultante do desaparecimento do saber local por meio de sua

interação com o saber ocidental dominante.

A vasta pesquisa histórica e sociológica realizada pela Shiva (2003), sobretudo, na

Índia, mostra entre outros elementos, o antagonismo entre dois paradigmas de silvicultura:

“uma que promove a vida e outro que a destrói“ (2003: 33). No Curiaú, a implantação de um

conhecimento científico universal em favor da negação do saber local vem organizando o

terreno para a imposição de uma visão monocultural.

Nesse aspecto ao implantar-se uma política de mecanização da mandioca no Curiaú,

com a perspectiva de resgatar o crescimento da produção da farinha de mandioca em

grande escala em detrimento da diversidade agrícola, pode provocar como prevê o

agricultor Sebastião Menezes, um esgotamento do solo, e, além disso, gradativamente pode

fazer desaparecer um saber local agrobiodiverso que alimenta o corpo e a mente. Ou seja, a

política de mecanização, além de fazer desaparecer a diversidade de plantas, a médio e

longo prazo pode influenciar o sistema de conhecimento que tem consequência na

linguagem, nos sistemas de cura, na percepção diversa de estar e ver o mundo.

3.2.4 O “fazer a roça” e as rotas de Cura

Um dos saberes que expressam também o caráter relacional do “fazer a roça” no

Curiaú é a pajelança, onde se desenvolve um sistema tradicional de cura com uso de plantas

medicinais coletadas nos quintais e roças. A pajelança praticada no Curiaú é um sistema

terapêutico centrado em seres suprassensíveis. E, dependendo da particularidade de

determinadas doenças, faz-se necessário um tratamento adequado que é acompanhado de

um ritual que ajuda na cura da doença. Os pajés são especialistas que têm acesso ao poder

de cura. Eles são iniciados para “praticar o bem, ajudando os humanos”. Essa demanda de

ajuda se traduz no dom de cura, no qual existe uma prática de cultivo das plantas que tem o

“poder de curar”, de que os especialistas são considerados exímios conhecedores, como

escreve Silva (2004):

Page 131: Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer

110

Os pajés do Curiaú possuem em média 60 mestres. Tradicionalmente eles trabalham cantando, ensinam remédio para todos os tipos de doenças. É curioso porque eles sabem o que as pessoas estão querendo. Eles ensinam remédios das cabanas, farmácias, mas o principal é o remédio do mato e plantas medicinais (2004: 37).

Silva (2004) explica algumas das características e as práticas dos especialistas que

manejam as plantas cultivadas, principalmente nos quintais:

Homens e mulheres chamados de curandeiros da terra, pajés, espíritos e benzedores são diferentes de feiticeiros. A pessoa comum é dotada de um poder vindo do além, e segundo elas, é dado por Deus para tratar dos sofredores de maledicência. A forma de tratar só eles conhecem, sentem e enxergam por meio dos poderes que lhe pertencem e sabem do que as pessoas sofrem. Diferente da medicina, que para diagnosticar o que o paciente tem é necessário fazer exame (2004: 37).

A pajelança diz respeito a seres supra-humanos, sem referência a espíritos humanos

ou à alma dos mortos. Na escrita de Silva, esses encantados jamais foram como nós, pois

pertencem a uma esfera da realidade invisível aos nossos olhos. Dentre os humanos, só os

escolhidos podem vê-los, mas eles sim podem ver e participar da vida humana sempre e

quando quiserem. Os encantados são os guardiões do equilíbrio psíquico e ecológico de seus

membros, como intermediário entre os mundos visível e invisível, como mestre dos

espíritos, como curandeiro supernatural56.

Tem crescido o interesse por pesquisas sobre etnoconhecimento de uso de plantas

em territórios quilombolas (Monteles 2007; Madeira 2005; Silva 2002; Nascimento e

Gonçalo 2011). Os estudos, em sua maioria, baseiam-se, ainda, em inventariar os recursos

naturais. Mas esses conhecimentos consistem num aparato cognoscivo extremamente

complexo, e, conforme lembra Almeida (2010a),

Eles não se restringem a um mero repertório de ervas medicinais. Tampouco consistem numa listagem de espécies vegetais. Em verdade, eles compreendem as fórmulas sofisticadas, o receituário e os respectivos procedimentos para realizar a transformação. Eles respondem a indagações de como uma determinada erva é coletada, tratada e transformada num processo de fusão (2010a: 14).

Entre as pesquisas de etnobotânica realizados no Curiaú, estão o de Raullyan Silva

(2002) e Pereira (sd), nos quais os pesquisadores fizeram levantamento dos usos de plantas

medicinais, visando documentar os conhecimentos tradicionais, e assim gerar informações

que auxiliem estudos fitoquímicos, biológicos, farmacêuticos e agronômicos. Para tanto,

56

Dados obtidos em entrevista com Senhor Sebastião Menezes da Silva. Fev. de 2013.

Page 132: Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer

111

foram realizadas coleta e catalogação das espécies de plantas de uso medicinal, e a

identificação botânica das espécies utilizadas para uso terapêutico e alimentar.

Os quintais são importantes territórios da agrobiodiversidade produzida pelas

famílias do Curiaú, onde se encontram cultivadas plantas alimentícias e medicinais. Estudo

realizado por Pereira (sd), no que se refere à diversidade e ao conhecimento local sobre o

uso e o manejo de plantas em quintais florestais, mostrou a variedade de pimentas

encontradas nos quintais do Curiaú. Foram inventariados 253 indivíduos distribuídos em

nove espécies, pertencentes às famílias Piperaceae e Solanaceae, sendo assinalada a maior

frequência para a espécie Capsicumfrutescens L. (pimenta malagueta), com 82 indivíduos

nos 16 quintais pesquisados. Na opinião do pesquisador, “os especialistas demonstraram

conhecer bem as taxonomias existentes, porém, a comunidade vem perdendo a sua

identidade cultural, a exemplo das 21 citações de etnoespécies, das quais, cerca de nove

delas não foram mais encontradas nos quintais inventariados e visitados” (Pereira sd).

Já na pesquisa realizada por Silva (2002) foram entrevistadas 42 pessoas, 15 no

Curiaú de Fora e 27 no Curiaú de Dentro. Durante a pesquisa, catalogou-se 144 espécies de

plantas com valor terapêutico, incluídas em 59 famílias e 121 gêneros. No Curiaú de Dentro,

foram citadas 131 espécies incluídas em 56 famílias e 109 gêneros e, no Curiaú de Fora,

foram identificadas 118 espécies de 49 famílias e 100 gêneros. Neste trabalho, foram

realizados levantamentos de dados etnobotânicos e etnofarmacológicos somados a um

levantamento de dados de caráter socioeconômico da população pesquisada.

Ao abordar o tratamento de doenças, Silva (2002) argumenta que os “entrevistados

das Vilas de Curiaú de Dentro e Curiaú de Fora, conhecem uma variedade de formas de

preparação de “remédios” e as administram no tratamento e prevenção dos mais variados

males” (2002:83) . Segundo Silva, a farmacotécnica de Curiaú é composta de chás, lavagens,

banhos, emplastos, plantas ou partes dela usadas in natura, sumos, compressas, tinturas,

gargarejos, macerações, sucos, xarope e outras. Nesses dois trabalhos, os chás são tratados

como decocção e servem para os mais variados usos, seja para ingerir, ou para banhos,

lavagens, gargarejos e outros usos (Silva 2002).

Silva (2002) demonstra uma variedade de habitats existentes no Curiaú, onde as

plantas medicinais utilizadas são coletadas ou cultivadas. Destes, destacam-se os quintais

como o ambiente mais explorado, com 114 espécies, seguido pela roça, com 23 espécies,

Page 133: Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer

112

onde os moradores plantam seus alimentos para o dia-a-dia. As hortas caseiras contribuem

com 12 espécies, que servem ao mesmo tempo como medicinais e alimentares. O cerrado

contribui com 10, e a floresta de várzea com 07 espécies. A terra firme, as matas secundárias

e as ilhas de mata aparecem com 03 espécies. Os moradores do Curiaú exploram todos os

ambientes da região, demonstrando dinamismo e adaptação aos diversos habitats. O quintal

e a roça são os ambientes mais explorados para coleta e cultivo das espécies medicinais.

Como plantas medicinais, os usos das espécies herbáceas predominam sobre as espécies de

outros hábitos de crescimento, seguidos pelas arbóreas.

A pesquisa mostrou que das 144 espécies medicinais indicadas pela comunidade

do Curiaú, 104 (72,22%) são obtidas exclusivamente de cultivos, feitos nos quintais, roça e

hortas caseiras; 19 (13,19%) são as espontâneas, obtidas exclusiva e diretamente da

natureza, através de coletas, e, 21(14,58%) são obtidas tanto de forma cultivada, como

espontânea (Silva, 2002). Das 1.010 prescrições citadas nas entrevistas, 559 (55,35%) são

de uso interno, 398 (39,41%) de uso externo, e 53 (5,25%) são para outros usos,

principalmente em aspectos místicos, como mau-olhado, para atrair bons espíritos, tirar

panemeira, dar boa sorte, quebranto, moleza do corpo, feitiço, limpeza do corpo, ganhar

felicidade, entre outros, e também é usado para defumações que tem como função

afugentar insetos, atrair boa sorte, aromatizar ambiente e calmante. As folhas, as cascas e

as flores são as partes dos vegetais mais utilizadas nas preparações medicamentosas. As

preparações terapêuticas preferenciais são os chás, lavagens e os banhos (Silva 2002).

O saber “fazer a roça” ligado à agrobiodiversidade de plantas que curam e que

alimentam no Curiaú, como os que descrevemos são produto de um longo processo de

relação com a natureza que se constitui em um sistema integrado e que vem

gradativamente sendo invisibilizado e sofrendo grandes impactos, “o saber local resvala

pelas rachaduras da fragmentação” (Shiva 2003:25).

A ideia central deste capítulo foi buscar conhecer como os agricultores quilombolas

do Curiaú criam e reproduzem sua relação com a natureza a partir de seu cosmo-corpus-

práxis (Toledo e Barrera-Bassols 2015). Mais do que chegar em “um lugar bom para viver”, o

território se construiu por meio de um trabalho coletivo de socialização e relação com a

natureza, realizado ao longo de gerações, sendo construído, vivido e criado pelo modo de

vida em que se misturam resistência, luta, e estão no centro da memória. Um território

Page 134: Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer

113

agrobiodiverso, prenhe de possiblidades de cura, onde elaboram regras de trocas e

reciprocidade, dinâmicas essas de vinculação a um espaço físico que se tornou território pela

própria relação com a natureza.

Uma análise do “fazer a roça” a partir da matriz de pensamento maussoniano nos

ajuda a compreender uma lógica social no qual prevalece uma percepção integral que não

separa a roça de outras dinâmicas da vida social, suscitando alguns questionamentos: em

que medida esses aspectos que tornam o “fazer a roça” um “fenômeno social total” são

visibilizados ou não em nome do discurso da produtividade e do desenvolvimento? O fato da

reciprocidade nortear os arranjos e os vínculos sociais no acesso e uso do território, e

especificamente no “fazer a roça” é negligenciado quando falamos de políticas de

conservação ambiental?

Como veremos no próximo capítulo, os conflitos decorrentes de diferentes

percepções sobre o território, e a implementação de instrumentos de gestão a exemplo de

normas de licenciamento ambiental e zoneamentos podem se constituir em grandes

obstáculos a esse sistema, vindo a impactar tanto os aspectos funcionais da agricultura

tradicional, quanto uma forma de ser, ver e estar no mundo. O “cerco está se fechando”

para os agricultores quilombolas do Curiaú, como representado, metaforicamente, na figura

33 onde a imagem de uma quantidade de maxixe da roça do Sr. Sebastião aparece

circundado e aprisionado por arames.

Figura 33- maxixe da roça de Sebastião Menezes. Curiaú. 2014.

Page 135: Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer

114

CAPÍTULO 4 O DIREITO DE DIZER ONDE E COMO FAZER A ROÇA

Realizar uma etnografia dos conflitos socioambientais requer ir além de um foco restrito aos embates políticos e econômicos para incorporar elementos cosmológicos, rituais, identitários e morais que nem sempre são claramente visíveis desde a ótica de outras disciplinas.

(Little 2006: 91-92)

O objetivo deste capítulo é discutir como os agentes sociais se mobilizam na arena de

disputa sobre o território, com base nos acontecimentos em torno das regras de

licenciamento para fazer as roças definidas pelos órgãos ambientalistas na APA do rio

Curiaú. As ações destes órgãos vêm impactando a agricultura tradicional, e produzindo

conflitos socioambientais. Em decorrência das tensões sociais em torno da política de gestão

da APA, pontualmente nesses últimos cinco anos, torna-se fundamental para compreender o

conflito que se estabeleceu, conhecer, primeiramente os agentes e suas respectivas ações

no campo das relações sociais, sejam elas de mediação e disputa, pelas quais também são

construídas estratégias e relações de poder postas por diferentes regras e capital simbólico

(Bourdieu 2004b).

Em seguida, analisarei de que forma as diferentes concepções sobre o território

entram em colisão, para tanto, tomarei como referência o documento as “Leis do Curiaú”,

que se originou nas estratégias de defesa dos direitos de dizer “como e onde fazer as roças”

e, que aqui serão analisadas como uma forma de “ordenamento jurídico local” (Geertz

2001b; Shiraishi Neto 2004; Cardoso e Cardoso 2008). E, ao final, abordarei os instrumentos

de gestão da APA, fundamentando-me no Plano de Manejo (Amapá 2010), contrapondo as

regras de ordenamento territorial expresso nas ações de zoneamento à concepção de

território quilombola, a partir do “fazer a roça” entendido como “fenômeno social total”

(Mauss 2003a).

4.1 Agentes e dinâmica social do conflito no território quilombola do Curiaú

Little (2006) propõe como metodologia para análise etnográfica do conflito

socioambiental alguns procedimentos importantes, entre eles, quatro elementos precisam

ser levados em consideração nessa análise: i) atores e seus interesses; ii) a natureza, seja

Page 136: Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer

115

econômica, ambiental, territorial; iii) o objeto do conflito, e por fim, iv) as dinâmicas do

conflito com a documentação das histórias específicas, com suas alianças, acomodações,

negociações e rupturas.

Os agentes envolvidos no conflito são: Instituto de Meio Ambiente e Ordenamento

Territorial do Amapá (IMAP); Secretaria de Meio Ambiente (SEMA), Batalhão Ambiental (BA);

Ministério Público Estadual (MPE); Ministério Público Federal (MPF) e FCP. Os institucionais

não governamentais são: Associação Quilombola dos Moradores do Curiaú (AQMC),

Associação de Criadores e Agricultores do Quilombo do Curiaú (ACRIAU) e a Comissão

Pastoral da Terra (CPT).

Com o advento da APA, os agricultores quilombolas passaram a conviver nesses

últimos 15 anos, com uma série de regras de licenciamento para fazerem suas roças, que são

definidas pelos órgãos ambientais: SEMA e IMAP.

A APA é uma UC “destinada a proteger e conservar a qualidade ambiental e os

sistemas naturais ali existentes” (Amapá 2010). As atividades e usos desenvolvidos estão

sujeitos a um disciplinamento específico. No caso da APA do rio Curiaú, as regras seguem o

licenciamento ambiental definido pelo IMAP, entidade autárquica vinculada a SEMA, que

tem a finalidade de executar as políticas de meio ambiente e a gestão do espaço territorial

do Amapá quanto ao licenciamento, fiscalização e monitoramento ambiental. Entre os

documentos expedidos pelo órgão, está a licença ambiental única para atividades

agrosilvopastoril (agricultura, criação de animais). Os agricultores para manter suas roças

tem que passar por um processo de solicitação de licenciamento junto ao órgão. Como

explica o representante do IMAP, presente na audiência pública do dia 23 de maio de 2014,

no Curiaú de Dentro:

Então, esses são os documentos básicos para a gente dar a entrada no IMAP para poder gerar a licença, a licença não pode surgir do nada, tem que ter os documentos que calcem os documentos técnicos que seriam: o projeto agrícola, mas que o agrônomo da SEMA pode preencher isso rapidinho, são três folhas, só que são dados de Georreferenciamento, tipos de cultura, o manejo, então, o agrônomo pode fazer isso aí rapidinho. Com essa lista dos agricultores, a gente vai à propriedade de cada um, porque nós vamos ter que delimitar a área através do GPS que o agricultor quer fazer o seu roçado, por exemplo, e já quer fazer a limpeza, lá para setembro ou agosto. Então, a gente vai definir isso aí, e o agrônomo já pega e poda esse projeto, aí a gente consegue avançar rápido. Essa questão da licença ambiental para a agricultura, a meu ver, está muito simples da gente

Page 137: Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer

116

resolver. Willy, você está coberto de razão, a gente ver em diversos locais e quando nós mesmos vamos à prefeitura, em outros locais, tem a burocracia que é necessária. O que acontece é o seguinte: se não houver essa burocracia não tem nenhum presidente de IMAP, de SEMA que vai dar uma assinatura numa única folha de papel, e aí vai continuar o que hoje a legislação diz, na ilegalidade, não sou eu Marcelo Creão, está aqui o promotor Marcelo Moreira, quem vai dizer que o agricultor vai está na ilegalidade. É a lei, e aí não vai ter nada que possa respaldar o agricultor de não ser multado. A questão de burocracia ela só tem um detalhe, se ela vai demorar muito ou se ela vai ser rápida, a burocracia é essa, e aí o que nós estamos querendo? Que esse ordenamento dessa burocracia possa garantir com que o agricultor não seja multado, porque, independente se ele tiver em um quilombo, num assentamento ou na sua propriedade privada, a lei vai ser igual (Marcelo Creão, Curiaú, 23/04/2014).

A “não obediência” às regras ambientais vem produzindo situações de tensão,

prisões, estabelecimento de multas, situações de “ilegalidades” e conflitos que foram

levados ao campo judicial, principalmente, nesses últimos cinco anos57. Ações, como essas,

que atingem os quilombolas, são analisadas também por Almeida e Acevedo Marin (2012) a

partir da perspectiva de “judicialização dos conflitos sociais”, quando os autores

caracterizam esses acontecimentos como

Uma diversidade de ações violentas contra comunidades quilombolas: assassinatos, prisão de grupos de quilombolas acompanhada de agressão policial, deslocamentos compulsórios, violência contra pessoas, agressão policial, intimidação, ameaças físicas, ameaças de morte, ações de despejo, ameaça de expulsão, destruição de roças, contaminação de recursos hídricos, acusação de roubo. [...]. Tanto o número expressivo de ocorrências de conflito já citado, envolvendo as comunidades quilombolas, quanto a diversidade de ações e agentes que a produzem chamam à reflexão do conhecimento antropológico e à construção de metodologia para interpretar os rituais de violência e os processos de judicialização dos conflitos sociais (2012: 13-14).

Felisa Anaya et al (2012) apresentam a situação da comunidade de vazanteiro no

norte de Minas Gerais, que disputa seu território tradicional com uma UCPI, revelando um

processo social e político de expropriação e cercamento de suas áreas de uso comunal. O

processo analisado pelos autores é tratado a partir da perspectiva de dramas sociais

elaborado pelo antropólogo Victor Tuner, que compreende “Drama social” como unidade do

processo social, isolável e passível de uma descrição pormenorizada que surge em situações

57

Difundiu-se na comunidade expedientes de “resolução de conflitos” baseados em processos judiciais.

Page 138: Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer

117

de conflito, para o qual se estabelece quatro fases de ação pública acessíveis à observação:

a ruptura, a crise, a ação de correção e a reintegração (Anaya 2012).

Clifford Geertz (2001a) citando Turner explica que “dramas sociais têm lugar em

todos os níveis da organização social, do Estado à família”.

Estes dramas surgem como resultado de situações conflitivas - uma aldeia se divide em facções, um marido que espanca a esposa, uma região que se rebela contra o Estado - e se desenrola até o desfecho final, graças a um comportamento convencionalizado e atuado em público. À medida que o conflito transforma-se em crise, e em um rápido fluir de emoções intensificadas, onde indivíduos sentem-se ao mesmo tempo envolvidos por sentimento comum e livres de suas amarras sociais, formas rituais de autoridade – ligações, feudo, sacrifício, orações, - são invocadas para conter a crise e transformá-las novamente em ordem (2001a:45-46).

A ideia de drama é incorporada à análise do conflito no Curiaú como um recurso

analítico que possibilita relatar os acontecimentos numa determinada temporalidade,

possibilitando circunscrever uma trama e uma narrativa central. Para isso descreverei alguns

acontecimentos que chegaram à esfera judicial, promovendo um processo de “judicialização

dos conflitos” e das relações sociais. Apresentarei os eventos dividindo-os em três atos: i)

ruptura: ações de licenciamento, prisões e pagamento de multas; ii) ações de correção; iii) a

reintegração.

4.1.1 Ato 1 - A ruptura: ações de licenciamento, prisões e pagamento de multas

Entre os anos de 2011 e 2014 alguns acontecimentos motivaram a instauração de

um processo envolvendo as diferentes instituições SEMA, IMAP, MPF, MPE, BA, AQMC e os

agricultores quilombolas. Essa nova dinâmica do conflito criou um estado de tensão entre os

quilombolas que desencadeou vários acontecimentos levados à esfera judicial.

No dia 8 de janeiro de 2011, o agricultor Raimundo Noro foi autuado, segundo o

documento nº 012152, expedido pelo IMAP, por estar “transportando 111 peças de madeira

macaúba, sem autorização, em desobediência ao que estabelece o Art. 54 da Lei

complementar 0005/1994”. O IMAP aplicou uma multa no valor de R$1.256,00.

Após o ocorrido, Raimundo Noro foi ao MPF fazer uma reclamação da atuação da

SEMA e da própria AQMC, que segundo ele, embargaram o uso da madeira que havia

extraído para a construção de um barracão, onde funcionaria uma escola para crianças com

“insuficiência educacional”. Como consta no Termo nº 29/2011 (MPF):

Page 139: Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer

118

No dia 22/02/2011 o senhor R.N declarou que é morador do quilombo do Curaiú que juntamente com sua esposa utiliza um espaço em sua residência para realizar atividades de reforço escolar para crianças em grande parte de rua. Retirou 111 peças de madeira que serviriam para construção de uma escola de reforço. Que fez isso baseado na cláusula segunda do titulo de reconhecimento de domínio 001/1999 que diz que o imóvel destina-se às atividades extrativistas que garantam a auto-sustentabilidade da comunidade remanescente. Que na ocasião da retirada da madeira a SEMA interviu juntamente com Associação, obrigando-o a interromper a extração da madeira. Que as ações se destinam unicamente para educação de crianças que se encontram em situação de risco e insuficiência educacional. Que pede ao órgão ministerial que atue junto aos reclamados para que lhe seja garantido o direito de fazer uso da madeira e assim retornar a construção da escola de reforço.

A partir do termo de declaração feito pelo Sr. R.N ao MPF foi instaurado um

procedimento administrativo nº 1.12.000.000105/2011-53 presidido pelo procurador da

república José Cardoso Lopes, representante da 6º Câmara de Coordenação e Revisão (CCR)

do MPF. Entre as providências tomadas, o MPF enviou a SEMA, no dia 26 de agosto de 2011,

o ofício nº 2333, solicitando informações sobre o “possível embargo de madeira”. Um

segundo ofício, foi enviado em 03 de março de 2012, reiterando ao secretário da SEMA,

Grayton Toledo, informações sobre o embargo. Obtendo retorno por parte do IMAP, no

ofício 615/2012 de 19 de abril, com a seguinte resposta: “informamos que não constam em

nossos assentos institucionais informações referentes a embargos de extração de madeira

na área do quilombo do Curiaú”.

O procurador José C. Lopes convocou a AMQC para uma oitiva, na ocasião, a

representante esclareceu “haver recebido denúncias de que o Sr. R.N, estaria praticando

crime ambiental”. O procurador José Cardoso Lopes ponderou que a tutela ministerial dos

quilombolas envolve a defesa dos interesses individuais indisponíveis, difusos e coletivos

daquelas comunidades. Assim dispõe o procurador no seu relatório datado em 27 de abril de

2012:

O caso sub examine relata possível lesão ao meio ambiente. Em que pese, a Lei complementar nº 75/93 atribuir ao ministério público a defesa dos interesses individuais indisponíveis, difusos e coletivos das comunidades quilombolas, o fato da infração ambiental ocorrer em área de quilombo, por si só, não atrai a competência da justiça federal para apreciação do dano.... Ademais, o quilombo encontra-se situado dentro da Área de proteção ambiental do Curiaú, criada pelo Decreto Estadual nº 24 de 1990. Trata-se, portanto de patrimônio do Estado do Amapá. Ante o exposto, o MPF pugna pelo declínio da competência da justiça federal para justiça estadual.

Page 140: Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer

119

No dia 07 de maio de 2012, o procurador José Carlos Lopes encaminhou à vice-

procuradora geral, Débora Duprat, os autos do PA 1.1200.001155/2011-58 para

homologação do declínio de atribuição em favor do MPE do Amapá. Em 18 de setembro de

2012, a vice-procuradora geral da República, assim expôs a questão: “trata-se de imputação

de crime ambiental a integrante de comunidade quilombola. A matéria está afeta à 2º CCR,

para onde devem seguir os autos, após deliberação do Colegiado da 6º CCR. Unânime.” O

relator Jose Bonifácio Borges de Andrade homologou o declínio de atribuição ao Ministério

público estadual no dia 05 de novembro de 2012. O MPE recebeu os autos do processo no

dia 22 de novembro de 2012, ficando assim sob responsabilidade da esfera estadual, e tendo

o PRODEMAC-MPE à frente dos trabalhos.

Em outras duas ocasiões, uma no ano de 2010, e outra, em outubro de 2012, o Sr.

R.N foi preso e novamente multado. Em 2012, foi preso e autuado, como consta no boletim

de ocorrência nº 26821/2012 da Polícia Militar, onde está registrada a seguinte informação:

Acionados para dar apoio a Sra. S. F, presidente do Conselho da APA do rio Curiaú, a fim de verificar a área de preservação permanente que estava sendo desmatada. Ao chegarmos ao local, deparamos com os envolvidos em plena atividade, motivo pelo qual os mesmos foram detidos e autuados conforme autos de infração ambiental nº 1643 e 016245. Os envolvidos tiveram os seus apetrechos de trabalho apreendidos (um machado, dois terçados e uma lima) conforme termo de apreensão nº 015340. Foram conduzidos ao BA para que sejam tomadas as medidas administrativas, junto ao IMAP e MPE. Os objetos ficarão à disposição da autoridade policial para qualquer procedimento necessário. Diante do fato os infratores foram conduzidos a este CIOSP para que a autoridade policial tome conhecimento da detenção do mesmo e as providências que o caso requer.

Nesse episódio da prisão do Sr. R.N., duas questões chamam atenção: a primeira é o

fato de que desde 2007, com a criação do IMAP, algumas atribuições da SEMA passaram ao

Instituto, como fiscalização, licenciamento ambiental de empreendimento de baixo impacto

ambiental, e como informa Eliane Cantuária (2007:7) “sem que tivesse explícito na lei de

criação os parâmetros para aferição de impacto e sem que a comunidade tivesse sido

consultada sobre as novas atribuições do IMAP; e o segundo problema é a intervenção

direta da presidente do CONGAR, que não tem atribuição de fiscalizar e reprimir, e sim, de

acompanhar, e “implementar políticas de educação ambiental” (Regimento CONGAR). No

processo, o auto de infração ambiental nº 016243 do IMAP de outubro de 2012, assim

descreve o motivo de aplicação de multa: “por desmatar vegetação nativa em área de

Page 141: Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer

120

preservação permanente (APP) em desobediência ao que estabelece o Art. 43 da lei

complementar.” Dessa vez a multa aplicada foi de R$1.251,00.

No ofício nº 013/2013, de 23 de janeiro, a AQMC em resposta à notificação

nº115/2012 da PRODEMAC, esclarece e solicita ao promotor de justiça providências:

Além do que o referido cidadão (se referindo ao Sr R.N) mesmo sem qualquer autorização dos órgãos licenciadores e da Associação dos Moradores, expande o seu plantio diariamente, efetivando queima e desmatamento. Diante do exposto, requer a apuração dos fatos para devida aplicação da lei, eis que a prática tem aumentado no interior da APA do Rio Curiaú (trecho do documento da AQMC enviado à PRODEMAC).

Em outro documento, do Batalhão Ambiental, está registrado que por estar “focado

na política de defensor dos recursos naturais e da preservação da ordem e qualidade de

vida”, a instituição firmou um convênio com a SEMA e o IMAP para “executar fiscalização em

qualquer atividade potencialmente poluidora e /ou que possam causar atividades lesivas

ao meio ambiente, saúde, segurança, conservação, preservação e recuperação do meio

ambiente (art. 222 da lei complementar 005/94)”. No documento endereçado ao promotor

Marcelo Moreira (PRODEMAC), em 27 de fevereiro de 2013, o BA enviou um relatório

informando sobre a fiscalização no “bairro quilombo do Curiaú” ocorrida no dia 23 de

fevereiro de 2013. No relatório de fiscalização ambiental consta no quesito danos:

Danos:

Detectamos presença de vegetação secundária (denominada de capoeira), ao redor área desmatada com a existência de vegetação conhecida como juribeba de aproximadamente dois metros de altura e que no seu interior existe as plantações mencionadas.

No caso da atuação do BA, novamente o fato de ter firmado convênio com a SEMA,

não condiz com os objetivos da Secretaria de ser um órgão participativo e que tem a

obrigação de desenvolver uma política de comunicação e incentivar o diálogo entre as

comunidades que compõem a APA.

4.1.2 Ato 2 - Ações de correção: definições de procedimentos

Como o processo que teve início com a denúncia do Sr. Raimundo Noro no MPF nº

1.1200.001155/2011-58 foi transferido para o MPE, iniciou-se a partir daí novos

procedimentos, com a realização de oitivas com as partes em questão. Em cinco de março

de 2013, o promotor Marcelo Moreira convocou a AMQC e o Sr. R.N, com objetivo de firmar

Page 142: Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer

121

um Termo de Compromisso e Ajustamento de Conduta Ambiental (TAC). No dia 14/04 de

2013, aconteceu uma reunião em que estavam presentes, o promotor de meio ambiente e a

presidente da AQMC 58. Na ocasião, o promotor sugeriu a criação de um grupo de trabalho,

que iria ser formado pelo IMAP, BA, CONGAR, MPE, SDR (Rurap) e a Polícia militar de

policiamento rural companhia Rural (CPRU), com o objetivo de “reunir com os moradores

que mantêm roçados e estabelecer limites quanto ao desmatamento de áreas florestadas e

utilização do cerrado com informações técnicas sustentáveis” (Edital 001/2014 PRODEMAC

MPE) 59.

Após isso, com o pedido de prorrogação no dia 23 de dezembro de 2013, o processo

foi convertido em Inquérito civil com o prazo de conclusão previsto para 22/06 de 2014

(Inquérito civil nº 000552-91.2013.8.03.0001 - MPE). A audiência pública ocorrida no Curiaú

de Fora, no dia 20 de fevereiro de 2014, convocada pelo MPE faz parte do inquérito acima

referido, que inicialmente, foi “instaurado com vistas a apurar o desmatamento de área

quilombola na APA do rio Curiaú” (Diário Oficial MPE 5/02/2014).

A convocatória para audiência pública foi veiculada no diário oficial do dia 05 de

fevereiro de 2014. É importante observar que os agricultores quilombolas foram mobilizados

por uma carta, onde estavam listados os convidados a participar, indicando-os como

“moradores que mantém roçado”. A expressão utilizada no convite aos quilombolas do

Curiaú traz em seu bojo um significado que remete a ideia de “ilegalidade”, como se fazer a

roça, conhecimento herdado da tradição, fosse um crime ambiental. Assim, a audiência teve

como pauta a situação das roças e a definição de regras de como desenvolver as atividades

agrícolas.

Numa manhã chuvosa, reunidos no barracão da igreja de São Joaquim, no Curiaú de

Fora, onde estavam os agricultores, a AQMC, a ACRIAÚ, e a CPT. Entre as instituições

governamentais participaram o MPE, a SEMA, o IMAP, o BA e a SDR. Após a composição da

mesa e as falas de saudação ao evento, o representante do IMAP foi convidado a se

pronunciar sobre o tema “licenciamento ambiental”, iniciando com isso, um debate sobre as

58

Existe uma convocatória entre os documentos do Inquérito Civil, endereçada ao Sr. Raimundo Noro, que não está assinada. Ele não esteve presente nesta reunião. 59

Disponível em www.jusbrasil.com.br/diários/71280247/mp-ap Acesso: fev. de 2014.

Page 143: Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer

122

regras de disciplinamento do uso do território. Onde se posicionaram, posteriormente,

SEMA, CPT e SDR.

O Sr. Sebastião Menezes pediu a palavra, e fez sua intervenção pautado na

Convenção 169 da OIT, argumentando que segundo a Convenção, eles teriam autonomia

para decidir sobre onde e como iriam plantar. A partir daí, o debate passou a ser em torno

da proposta feita pelo MPE para que os agricultores elaborassem suas próprias regras para a

sua agricultura, e que no período de 60 dias , o MPE convocaria uma nova audiência a fim de

debater o documento que seria elaborado.

Na ocasião, ao final da audiência o Sr. Raimundo Noro entregou ao promotor de

justiça um documento intitulado requerimento, onde expõe:

Eu, Raimundo Noro, agricultor familiar vem mui respeitosamente expor através deste, fatos ocorridos comigo ao trabalhar em minha plantação de subsistência que é feita em uma área de capoeira nas proximidades com o Curiaú mirim, local este, que mais de um século vem sendo utilizado com racionalidade por nossos antepassados, dos quais herdamos a forma de utilizar a terra. Apesar de pouca escolaridade, jamais pensamos em destruição da APA, por isto, venho através deste solicitar aos órgãos competentes alternativas para garantir o sustento de minha família. Digo isto, pelo fato de várias vezes ter sido notificado, autuado, e até mesmo apreendido sob alegação de infração ambiental (doc. em anexo), causando humilhação e constrangimento à minha esposa perante minha família e comunidade, pois acredito que antes mesmo de serem tomadas medidas desta natureza deveríamos ser esclarecidos e orientados sob a forma correta de utilizar o meio ambiente. Outro ponto que questiono é sobre as medidas compensatórias das grandes empresas multinacionais, dentre outras, como estas poderiam ser utilizados como benefícios para Área de preservação ambiental do Curiaú?

Por fim, reafirmo minha intenção que é trabalhar dentro da legalidade, e não ser novamente impedido arbitrariamente por órgãos, que no meu entendimento tem por objetivo orientar as pessoas menos esclarecidas (Trecho da carta do Sr. R N, entregue ao Promotor da MPE no dia 20/02/ 2014, Curiaú de fora)

4.1.3- Ato 3: reintegração: a audiência pública para apresentar as leis

Após dois meses de debate sobre as leis do Curiaú, no dia 23 de maio aconteceu a

segunda audiência pública com a finalidade de apresentar as leis do Curiaú. A audiência

aconteceu na escola José Bonifácio, no Curiaú de Dentro. Dessa vez com uma participação

mais ampla da comunidade. Nela estavam presentes IMAP, SEMA, BA, FCP e a SEAFRO. A

expectativa era grande em torno do debate das leis, principalmente sobre o primeiro item

Page 144: Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer

123

que propõe a criação do Conselho de Guardiões. Mas, o coordenador dos trabalhos,

representante do MPE, promotor Marcelo Moreira propôs que fossem discutidos somente

10 itens, dos 62 elaborados, os que ele considerou prioritários. Na sua fala ele expõe sua

compreensão das leis do Curiaú:

Eu vou passar a palavra inicialmente aos órgãos públicos, mas dizendo inicialmente, que recebi da Associação de Criadores e Agricultores do Curiaú (ACRIAÚ), uma sugestão que aqui podem juntar a esse inquérito civil, que de forma muito feliz, a meu ver, foi chamada de Leis do Quilombo do Curiaú, ou seja, aquelas regras normais do dia a dia de vocês, que já observam independentemente de está ou não escrita em uma Constituição ou uma lei feita pelo poder público, mas aquilo que a consciência de cada um dos senhores e senhoras diz que é importante. ... Na área específica de agricultura e pecuária que é o que a gente vai discutir agora. Não são tantas, são dez, eu queria pedir licença para ler cada um deles, e serão esses dispositivos que aqui constam que eu acho que vão guiar um pouco a nossa discussão. O que é importante observar é que o direito dos senhores e senhoras tem que ser reconhecidos de pronto, e esse daqui, é um guia. E é em cima desse guia que vamos discutir o que é possível ou não (Marcelo Moreira, Curiaú, 23 de Maio de 2014).

A dinâmica definida pela organização da audiência pública, que teve seu início as

9:00h e conclusão às 13:00 h, se estabeleceu a partir da leitura dos 10 itens referentes ao

tema da agricultura e da pecuária. Inicialmente, o promotor passou a palavra de

apresentação e saudação às entidades e instituições presentes. Em seguida, fez a leitura dos

10 itens para posterior destaque dos presentes na reunião. Abaixo selecionei duas

intervenções que ilustram o tema central do debate:

Nós estamos trabalhando com a própria proposta do promotor foi para criar a lei do quilombo, e não a lei da APA, que seria uma estupidez das nossas condições de querer mandar na área do Curralinho, mandar lá na área dos ribeirinhos, fazer uma lei aqui, para atingir lá. Nós estamos fazendo a lei do quilombo, agora, baseada nas leis que protege os quilombolas que é na Constituição de 1988, no art. 68, no art. 215 e na OIT dos povos tradicionais e tribais. É, essas as questões que nós estamos falando, ninguém está falando em Conselho de APA, muito pelo contrário, porque de qualquer maneira, se a gente pensar no conselho da APA, o que acontece é só para referendar o pacote que vem em direção às comunidades, e a primeira coisa que tem que se pensar é a vida, a vida das pessoas. Porque só existe área de proteção ambiental porque existe vida, e primeiro tem que dar prioridade para os seres humanos, porque se não existir vida de gente, as coisas não tem lógica para sobreviver (Sebastião Menezes da Silva, 23 de maio, Curiaú de Dentro).

Page 145: Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer

124

Muito embora o debate não tenha sido direcionado para discutir o documento na

íntegra, o que descartou a leitura do tema “Conselho dos Anciãos”, o assunto tornou-se

central na discussão. A ingerência e a autonomia sobre o território foram questões

importantes tratadas pelos participantes que demonstraram a articulação com as questões

referentes à agricultura e pecuária. O significado simbólico do trabalho e o modelo do saber

não são dimensões separadas, embora possam operar em registros distintos. Em conjunto,

constituem uma forma de ver o mundo (Woortman e Woortman 1997).

O entendimento da dimensão do “drama social” que vivenciam os quilombolas e os

agentes do Estado, no conflito sobre o uso do território é um passo importante para a

desconstrução da ideia que concebe o “fazer a roça”, como atividade que está apartada da

organização social do grupo, pois, ao contrário, ela é um dos elementos que garante sua

identidade e reprodução social.

A fala do Sr. Marcelo Creão ao expor as regras ligadas ao licenciamento para fazer a

roça é um exemplo de como, na perspectiva do gestor, as questões podem ser resolvidas por

um simples cálculo e mensuração. Insiste em reduzir o “fazer a roça” a um jogo de cálculos

agronômicos.

Pessoal, em situações com muita diversidade de informações de critérios, não dá para a gente ter uma única fórmula de bolo, não dá para a gente ter um único instrumento para o licenciamento, para a gente coordenar as diversas atividades. Eu já estive vendo aqui que dá para a gente elaborar rapidamente os critérios de licenciamento para a área do quilombo, e critérios de licenciamento para o restante da área de dentro da APA que não faz parte do quilombo. Algumas questões técnicas, algumas questões documentais vão ser iguais e outras vão ser diferenciadas como, por exemplo, anuência do conselho de guardiões, então não tem problema nenhum, dá para nós compatibilizarmos e inclusive eu já estou fazendo aqui, Sabá, a gente já vai sair com o negócio mais ou menos no rumo certo. Atividades, nós vamos separar atividades de agricultura com a pecuária. Cada agricultor tem o direito de até três hectares por ano. Não adianta eu colocar um hectare só, na licença, e já ter que fazer de novo a mesma burocracia, então ali já dá para fazer a sua agricultura. Então está aqui e já é uma coisa que a gente já vai avançar. Por que, o quê a atual lei diz? Cada agricultor independente da sua área tem direito a três hectares por ano e aí quando ele quiser de novo tirar os três hectares eu tenho que ir marcando a área dele até que ele chegue em 20%, se for área de floresta pro desmatamento, os outros 80% tem que ser preservado. Se eu não souber o tamanho da área, o perímetro, os limites, os confrontantes, os vizinhos, eu não vou conseguir ter esse controle. Mas se a

Page 146: Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer

125

gente fizer essa delimitação da área e vai dar um ponto, o GPS define essa propriedade. [...] (Marcelo Creão IMAP. 23/05/ 2014, Curiaú de Dentro).

O contraponto nas falas que ilustrei, expressam as duas formas antagônicas de

percepção do território. Primeiro, o entendimento do “fazer a roça” como uma atividade

relacional que não está separada das outras dinâmicas do grupo. E, a segunda perspectiva,

que, de forma pontual, trata o “fazer a roça” tornando-o algo isolado que pode ser resolvido

com cálculos, pontos de GPS e mensurações agronômicas realizadas em um tempo hábil.

Após a audiência do dia 23 de maio de 2014, até junho de 2015, nada mais foi

realizado sobre o tema das Leis do Curiaú. Quanto ao inquérito civil, aguarda-se o

posicionamento do MPE. A falta de retorno, o desrespeito com que as mobilizações em

torno das leis do Curiaú se procedeu e que foram relatadas nos três atos, expressam, ao meu

ver, um racismo institucional, por parte das instituições estatais que se estruturam em torno

das questões ligadas aos quilombola e ambiental. O conceito de racismo institucional60 vem

sendo usado para caracterizar como um mecanismo estrutural onde opera de forma a

induzir, manter e condicionar a organização e a ação do Estado, suas instituições e políticas

públicas, capaz de gerar e legitimar condutas excludentes61.

4.2 As Leis do Curiaú

De todo o processo acima referenciado, a elaboração das Leis do Curiaú é o

acontecimento que melhor evidencia o “direito de dizer o direito” (Bourdieu 2004b: 212),

por meio do qual os quilombolas definiram um conjunto de regras sobre como, onde, e

quem pode fazer a roça no Curiaú, mas ao qual não foi dada a devida importância pelos

representantes do Estado.

Bourdieu (2004b) aborda o direito sob uma perspectiva que salienta os diferenciais

de poder entre as pessoas, onde considera o direito como um campo. No campo jurídico

considera-se que os agentes estão em luta pelo “direito de dizer o direito”. Uma luta

simbólica de diferentes capitais que determinam os diferenciais de poder adquiridos nos

embates ou em experiências anteriores a eles.

60

Conceito definido pelos ativistas do grupo Panteras Negras Stokely Carmichael e Charles Hamilton em 1967 como capaz de produzir a falha coletiva de uma organização em prover um serviço apropriado e profissional às pessoas por causa de sua cor, cultura ou origem étnica (Sales Jr. 2006). 61

Disponível em www.seppir.gov.br/publicacoes-recentes/racismo-intitucional Acesso: maio de 2015.

Page 147: Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer

126

Geertz (1989) considera que o homem e as suas relações humanas devem ser

interpretadas em suas particularidades culturais, e não transformadas em leis gerais como

se fosse uma espécie de código cultural. Por meio de uma abordagem semiótica da cultura

nos mostra que os fenômenos culturais são dotados de simbologias com significados a

serem interpretados. Na perspectiva de Geertz (1989), a cultura é um conjunto ordenado de

sistemas de símbolos significantes ou padrões culturais, construídos historicamente, é

elemento essencial para o desenvolvimento do homem. Afirma o autor:

Acreditando, como Max Weber. Que o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas teias e sua análise; portanto, não como uma ciência experimental em busca de leis, mas como uma ciência interpretativa, à procura do significado

(1989:15).

A cultura funciona como uma espécie de plano, no qual os indivíduos norteiam suas

vidas, fazendo-os capaz de tomar suas próprias decisões. Dito de outro modo, o homem está

atrelado a esta teia, pois são os símbolos e seus respectivos significados que imprimem

sentido à sua própria existência. Assim, o que distingue o homem dos animais é a cultura,

pois somente ele tem o poder de criar e assimilar os símbolos. Ademais, o que distingue os

homens entre si não é a sua composição genética ou geográfica, mas a diferença da mútua

interação entre os modelos “da” e “para” a realidade que cada povo percebeu e elaborou de

maneira singular. Tal processo possibilitou, portanto, construções diversificadas de modelos

simbólicos, o que se reflete nas diferentes visões de mundo que cada cultura possui e

através das quais orienta seus indivíduos.

Nesse sentido, o trabalho antropológico é uma “interpretação de uma

interpretação”. O antropólogo tem a responsabilidade de buscar interpretar os fluxos do

discurso social para transformar tudo o que fora dito em registros pesquisáveis, de modo

que eles não se extingam. Ao tentar compreender a trama de significados, busco na

perspectiva de Geertz (1989; 2001b) compreender um fato particular, de uma comunidade

particular, de uma cultura particular. Neste sentido é que analiso as leis do Curiaú como uma

“teia de significados” que desempenham um papel recíproco: são modelos “da” realidade e

modelos “para” realidade, e eles assumem a responsabilidade de dar sentido à realidade. Os

homens modelam a realidade e não apenas adaptam-se a ela.

Page 148: Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer

127

A perspectiva que tomo nesse trabalho é compreender as Leis do Curiaú como um

“ordenamento jurídico local”. Que segundo Cardoso Cardoso (2008) se define por ser

Um conjunto de práticas jurídicas que garantem aos herdeiros desfrutarem do território, e criam, a partir de uma ideia de direito local, o sentimento e engajamento necessários para frear e punir os transgressores, sejam eles do grupo ou externos. Não se precisa do direito para se criar o direito (2008: 193).

Geertz (2001b) considera que construímos formas diferentes e percepções da

realidade a partir de elementos próprios de nosso cotidiano em que tecemos a teia de

significados. Para o autor, a atenção que a antropologia passou a dar às estruturas do

significado em cujos termos, indivíduos e grupos de indivíduos vivem suas vidas e, mais

especificamente, aos sistemas de símbolos através dos quais essas estruturas são

elaboradas, comunicadas, compartilhadas, modificadas e reproduzidas, parecem também

ter grande utilidade para os estudos de Direito, porque relembra Geertz, o homem não

nasceu governado, tornou-se governável coletivamente, envolvendo-se em uma série de

formas significativas ou teias de significação que ele próprio teceu, fato que conduz a um

olhar antropológico e a uma perspectiva de que as leis jurídicas são expressões de uma

“hermenêutica cultural”, e de uma “semântica em ação” (Geertz 2001b).

Nesse sentido, no artigo “o saber local: fatos e leis em uma perspectiva

comparativa”, Geertz (2001b), afirma que tal como a ciência, a religião a arte e a

antropologia, o direito também é um conhecimento local, a ser analisado e até pensado seja

por juristas, por antropólogos a partir do modo como se relaciona com a vida social que ele

constrói. E isso, sobretudo num contexto como o atual, em que culturas e sentidos de justiça

vários convivem lado a lado, configurando o que Geertz chama de “sensibilidades jurídicas”

(2001b:274).

Para demarcar sua argumentação dos arranjos jurídicos possíveis, o autor evoca três

termos de diferentes culturas: haqq (verdade para os islâmicos); dharma (dever para os

índicos) e adat (prática) para os malaios. Geertz chama atenção que o conceito de justiça

passa por outras significações, passando a representar a visão de mundo de cada cultura, o

direito, portanto, é saber local. Enfatiza o autor: “o direito pode tornar-se secular, ou algo

semelhante, e até mesmo casuístico. Porém, não perdeu seu relacionamento com a vida

local” (2001b:312).

Page 149: Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer

128

Nessa perspectiva, compreendo a construção das leis do Curiaú como as várias regras

e maneiras de uso do território que os agricultores elaboraram, o que pode ser denominada

de um sentido concreto de justiça ou “sensibilidade jurídica”, tais sensibilidades diferem em

grau de determinação e no poder que exercem sobre os processos da vida social. Um

conjunto de pesquisas tem abordado o tema das pluralidades de práticas jurídicas em

comunidades quilombolas, e têm sido definidas como “regras de ordenamento territorial”

(Shiraichi Neto 2004; Cardoso Cardoso 2009).

Na pesquisa realizada na comunidade quilombola do Bairro Alto, na ilha do Marajó

Luís Cardoso Cardoso (2009) buscou compreender o universo de relações do direito e as

práticas jurídicas, no âmbito de ardem simbólica do direito (Geertz 2001b). O autor segue os

caminhos da antropologia hermenêutica quando busca:

Investigar as práticas jurídicas das comunidades quilombolas para evidenciar as formas de organização político-jurídicas desses grupos; aspectos esses que compõem as expectativas de retomada de território e fundamentam suas ações políticas, com base no que compreendem como seus direitos nas relações com outros sujeitos sociais. Tais noções permitem visualizar a forma como organiza aquilo que estou chamando de práticas jurídicas e o significado que atribuem a elas em seu modo de vida. [...] Pesquisar as suas práticas jurídicas sobre a organização do território é examinar os significados de suas reivindicações, a partir da compreensão interna do que pensam sobre seu direito (2009: 52-53).

Argumenta-se referente à ordem jurídica, que ao lado das normas oficiais vigentes

coexistem diversas juridicidades não contempladas pelo Estado, mas detentoras de

coercibilidade e legitimidades. Os estudos sobre a diversidade de práticas jurídicas entre

povos e comunidades tradicionais, e especificamente indígenas, quilombolas e quebradeiras

de coco babaçu têm analisado a existência de ordens jurídicas, pois de acordo com Porro e

Sales (2013) “no encontro entre regras locais e leis formais é instigante pensar as estratégias

que povos e comunidades tradicionais devem elaborar na confrontação entre as dimensões

social e jurídica” (2013: 598).

À luz desse debate proponho pensar na sensibilidade jurídica dos quilombolas do

Curiaú ao elaborar um conjunto de normas, regras e dispositivos. O documento leis do

Curiaú está dividido em 62 itens, distribuídos em seis sessões, a saber: i) a constituição do

Conselho dos Guardiões; ii) Agricultura e pecuária; iii) organização comunitária; iv) direitos

sociais; v) cultura e manifestações; e, por último, vi) liberdade de expressão.

Page 150: Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer

129

Um dos elementos fundamentais da Lei é o debate sobre autonomia. Na perspectiva

do Sr. Sebastião Menezes, as leis significam uma forma de exercitar a autonomia:

As leis são para a gente tomar as rédeas do nosso próprio domínio. Mas a gente tem que ter a consciência do que tá fazendo, se o povo da época da dona Orlandina, ela tá dizendo que eles tinham as próprias leis de cuidado e era a “consciência” a palavra chave é o que nós também temos que fazer, temos que cuidar das nossas coisas e ter consciência de guardar para o futuro sem estar os órgãos públicos dizendo o que pode e o que não deve. Se nós sabemos que na época do peixe tá desovando nós temos que ter consciência de não pegar e não matar, então porque que a gente vai deixar que a SEMA ou outro departamento venha dizer que a gente não pode fazer isso? Nós sabemos (Sebastião Menezes, oficina de cartografia, 2014).

As leis do Curiaú constituem-se em um documento que expressa um conjunto de

temas, onde o direito é saber local, em que a análise do direito como fato cultural está em

inteira conexão com os contextos culturais específicos, desenvolvendo um sentido de justiça

que é sempre “local” numa dependência de relação entre fato e lei nos diferentes contextos

culturais.

Os fatos se tornaram “pedras no caminho” dos operadores do Direito, nesse cenário

que expus em forma de atos, em que os não versados em Direito, os profanos, se

manifestaram pelo “direito de dizer o direito”?(Bourdieu 2004b). O que temos aqui é o

conflito direto entre as partes interessadas em um debate regulado por procedimentos que

os agricultores quilombolas nem sempre dominam. Os caminhos são abertos através de uma

reviravolta interpretativa que não opõe lei e fato como “realidades inconciliáveis”. E como

afirmam Almeida e Acevedo Marin (2012)

Os povos e comunidades tradicionais elaboram uma percepção da justiça, do direito positivo e das violações de que são alvo. Estamos diante de evidências de uma construção social que assinala a especificidade do jurídico no tratamento da estrutura social e política dos povos. Há um campo de investigação empírica para análises específicas de outros povos que possuem um conjunto de regras reconhecidas como obrigatórias por seus membros. Os usos e acesso aos recursos comuns são objetos precípuos desta elaboração (2012:18).

Em alguns casos, o Estado por seu caráter conservador, não enfrenta os problemas

políticos e sociais vivenciados por PCT de forma integral. O Estado no seu afã de monopolizar

o “direito de dizer o direito”, de alguma forma não permite que os direitos dos povos

tradicionais sejam reconhecidos, tornando-se seu principal antagonista.

Page 151: Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer

130

Nessa linha de pensamento vou fazer um movimento contrário ao que o promotor de

justiça realizou na audiência pública para discutir as leis do Curiaú, quando optou por não

colocar em pauta os dois primeiros itens, destacarei aqui para corroborar com a ideia

discutida no terceiro capítulo de que a roça não é algo separado de outras instâncias da vida

dos sujeitos, a proposta de criação de um Conselho dos Guardiões, para ser constituído com

objetivo de ser uma instância de deliberação das questões relativas à comunidade que foi

elaborada da seguinte forma:

I

Constituir o Conselho dos Guardiões no qual será a instância maior de decisão sobre todos os problemas e assuntos da comunidade do Curiaú. Será composto por nove pessoas, na faixa etária de 65 a 90 anos, moradores que possuem um vasto conhecimento das questões comunitárias e sejam os guardiões desse lugar, ficando a cargo deles escolherem quatro pessoas com idade a partir dos 18 anos para auxiliá-los.

II

Fica assegurada a permanência e a sobrevivência dos quilombolas do Curiaú com o sustento da terra, dos rios, dos lagos e das matas. Sem intervenções externas aos interesses dos moradores. A preservação ambiental, ecológica e da paisagem fica sob responsabilidade da comunidade

Esses dois itens expressam o anseio pelo direito a decidir seus próprios rumos. Na

atualidade, o debate sobre autonomia e autoidentificação vem ganhando respaldo

nacional e internacional. E um desses instrumentos internacionais é a Convenção 169

Sobre Povos Indígenas e Tribais em Países Interdependentes da Organização Internacional

do Trabalho (OIT)62, aprovada na 76º Conferência Internacional do Trabalho em 1989,

“com vistas a garantir a preservação e sobrevivência dos sistemas de vida dos povos

indígenas e tribais e sua ativa e efetiva participação no planejamento e execução de

projetos que lhes dissessem respeito” (OIT 2010: 7). O Brasil está entre os dezessete

países que assinaram a Convenção e a ratificou por meio do Decreto Legislativo nº 143 de

25 de julho de 2002 e entrou em vigor dia 25 de julho de 2004.

Ao ratificarem a Convenção, os países membros “comprometem-se a adequar

sua legislação e práticas nacionais a seus termos e disposições e a desenvolver ações

62

A OIT é uma agência do Sistema das Nações Unidas da qual participam diretamente atores não governamentais, devido sua formação triparte. Dela fazem parte, em igualdade de condições, os Estados e as organizações de empregadores e trabalhadores de 175 países. Desses, somente 17 países assinaram a Convenção 169.

Page 152: Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer

131

com vistas à sua aplicação integral” (OIT 2010: 10). A Convenção 169 está estruturada

em dez partes e 44 artigos. Para o propósito deste trabalho, destaco, principalmente, os

Artigos 6º, 7º e 8º da Convenção, em que os conceitos de autonomia e

autodeterminação são evidenciados, constituindo-se em uma importante contribuição

aos países latino-americanos para que comecem a superar cada vez mais a lógica

integracionista e assimilacionista, buscando tornar a diversidade sociocultural e

territorial uma realidade.

Soma-se a isso, o fato de o Brasil ter reafirmado em 2007, a autoidentificação e

os direitos territoriais por meio do Decreto 6.040, ao definir povos tradicionais como:

Grupos culturalmente diferenciados que se reconhecem como tal, os quais mantêm suas próprias formas de organização social, ocupando e usando territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas geradas e transmitidas através da tradição.

As Leis do Curiaú pretendem ser um canal de autonomia e de pleno exercício dos seus

direitos sobre o uso do território, à medida que ao definir um Conselho de guardiões e

estabelecer critérios internos de decisão buscam garantir o que está estabelecido na

Constituição Federal do Brasil (CFB), e na Convenção 169, ratificada pelo Brasil, e que

infelizmente vem sendo negligenciada pela gestão da APA. Explica o Sr. Sebastião sobre o

objetivo do Conselho dos Guardiões:

Criar o conselho dos guardiões é para botar à frente o que nós perdemos, porque o que nós estamos vendo é pensando nisso, nós estamos a quilômetros à frente e quem está enxergando só um palmo do nariz é quem está enxergando só no agora, tá surgindo uma galera aqui que eles no futuro é que vão tomar conta dessa comunidade e se ele não tiver consciência e ensinamento dessas pessoas mais velhas nós vamos entregar esse Curiaú aos danos. Então, tem que ter esse conselho para poder ponderar as coisas, para passar gradualmente as coisas ponderadas, e se a gente perder essas pessoas que estão hoje deixando eles escorados, nós estamos deixando de dar vida a eles, da oportunidade e autoestima para eles. Então isso gente é o que nós estamos tentando resgatar. No mundo inteiro onde tem comunidades tradicionais sempre tem um conselho dessa classe, e por que o Curiaú, uma comunidade tão visitada, tão antiga e até reverenciada por muita gente tá uma galera jovem direcionando essa comunidade. Eu acho que chegou ao ponto e começou agora a nossa discussão. Em primeiro lugar, eu acho que tem um equívoco aí, eu não falei nós não falamos de maneira nenhuma que iríamos pedir permissão do Conselho gestor, nós estamos falando de quilombo baseado na 169 da Organização Internacional do Trabalho da OIT, é nisso que estamos nos

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132

baseando, e o conselho que nós vamos precisar criar que é necessário dos guardiões não tem nada a ver com o conselho da APA, é uma coisa paralela e é muito monstruosa, porque é uma coisa que nós vamos fazer para o quilombo. Porque se nós ficarmos dependendo de ficar pedindo autorização do conselho da APA, é esse problema que está ai. Então nós precisamos fazer o conselho dos guardiões que são as pessoas mais velhas dessa comunidade, aqueles que deixaram legado, e até hoje é esse o território para nós tirarmos a nossa sobrevivência (Sebastião Menezes, Audiência de 23/05/2014. Curiaú).

Um desafio a ser refletido é a superação do paradigma de unicidade, visibilizando os

sujeitos para o reconhecimento dos seus direitos territoriais e da sua capacidade de

autodeterminação, legitimando o domínio e o governo do seu território com base em

normas advindas de suas próprias dinâmicas socioambientais e culturais. Este estudo,

portanto, baseia-se na análise do potencial emancipatório protagonizado por coletividades

que cultivam práticas para a garantia de sua autonomia, vislumbrando uma compreensão

mais ampla e plural das dinâmicas sobre a formação do território. Não obstante,

mostraremos no próximo item como a gestão ambiental da APA elabora seus mecanismos

de zoneamento.

4.3 Instrumento de Gestão ambiental: o plano de manejo e o zoneamento da APA do rio

Curiaú

Até 1998, coexistiram no Brasil vários tipos de instrumentos de planejamento e

gestão de UC. Para APA, por exemplo, foi utilizado o termo plano de gestão, e em alguns

casos, plano diretor. O SNUC unificou as terminologias para planejamento de UC, e no seu

artigo 27º, determina que cada UC possua um Plano de Manejo, pois trata-se de um

Documento técnico mediante o qual, com fundamento nos objetivos gerais de uma Unidade de Conservação, se estabelece o seu zoneamento e as normas que devem presidir o uso da área e o manejo dos recursos naturais, inclusive a implantação das estruturas físicas necessárias à gestão da unidade de Conservação (SNUC 2000)

O instrumento que norteia as ações em uma UC, portanto, é o plano de manejo, que

segundo a legislação deve ser elaborado em um prazo máximo de cinco anos a partir da

criação da unidade, e revisado sempre que necessário. Após dez anos de promulgação da lei

que criou o SNUC, dentre as unidades federais apenas 27% possuem plano de manejo

(Medeiros e Araújo 2011). Pesquisa realizada por Chagas (1997) mostrou que as nove UC

federais e estaduais no Amapá apontaram a inexistência de planos de manejo, e segundo o

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133

autor, constitui como um dos fatores críticos que elevam a possibilidade de conflitos em UC

no Amapá.

No caso da APA do rio Curiaú, em 2006, a SEMA por meio do programa de

compensação ambiental da Mineradora Pedra Branca do Amapari (MPBA), investiu os

recursos na elaboração do PM da APA do rio Curiaú. Em janeiro de 2007, foi formalizado o

início dos trabalhos com a contratação da ONG Gente & Ambiente para elaboração do PM

da APA. O PM foi desenvolvido em várias etapas, constituído com uma equipe

multidisciplinar que realizou oficinas de planejamento (Amapá Relatório Plano de Manejo

2007).

Entretanto, no dia 11/04/2014, o MPE por meio da Portaria nº

0000174/2014/PRODEMAC encaminhou um documento à SEMA, solicitando

esclarecimentos sobre o Plano de Manejo da APA do Rio Curiaú em vigor, considerando que

a publicação oficial (Amapá 2010) não está assinada e nem promulgada63. O MPE teve esse

questionamento motivado pelo debate ocorrido em “audiência pública” convocada pela

SEMA, em 29 março de 2014, na comunidade do Curralinho, cuja pauta da reunião trazia a

apresentação do projeto imobiliário de construção de um condomínio da empresa Idealiza

na APA do rio Curiaú. Mas como existem problemas fundiários a serem superados, a

exemplo da regularização e titulação das terras da comunidade quilombola do Curralinho, e

enquanto não for resolvido, qualquer empreendimento deveria estar paralisado, por conta

disso, o MPE pediu esclarecimentos ao INCRA e à SEMA.

A publicação oficial do PM a qual o MPE se refere é a reprodução e a divulgação de

100 exemplares do PM, que foi feito com recurso proveniente da Lei SNUC (2000), e

“colocado à disposição da sociedade” (PM 2010), sem ter sido oficialmente aprovado. O

problema é que, mesmo tendo sido criada em 1998, e não apresentar oficialmente um PM, a

gestão da APA vem atuando repressivamente no território quilombola, como vimos na

primeira parte deste capítulo. Demonstrando, com isso, uma contradição no discurso de

quem está na “ilegalidade”, ou seja, no momento em que IMAP, SEMA e BA acionam

medidas de repressão contra os quilombolas, o fato do PM não estar regularizado não é

levado em conta. Na figura 35, mostro a capa da publicação oficial:

63

Diário oficial Eletrônico MPE do Amapá edição nº 064, Ano 05 página 10.

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134

Figura 34 - Plano de Manejo da APA do rio Curiaú

Mesmo sem a devida oficialização, este PM está norteando as ações dos órgãos de

ordenamento ambiental e vem delimitando as áreas e disciplinamento do uso do território,

e, reprimindo “quando necessário”. O Plano de Manejo da APA do rio Curiaú esta dividido

em três partes intituladas: Contextualização da unidade (Encarte I); Socioeconômica (Encarte

II); Legislação (encarte III); Planejamento (encarte IV); e Referências (encarte V).

Procederemos a analise de três itens: i) medidas de regulamentação geral para todo o

território da APA do Rio Curiaú; ii) regulamentação do zoneamento e, o iii) o mapa de

zoneamento.

Para análise do plano destacarei dois aspectos: i) o tema da agricultura e, a ii) o

zoneamento e sua caracterização, os quais cotejarei com os argumentos dos quilombolas

sobre a agricultura e a pecuária. Primeiro, é importante conhecer os objetivos específicos

que são:

i)Proteger sítios históricos e culturais para visitação e pesquisas; ii) proteger remanescentes de vegetação nativa; iii) propiciar atividades de educação ambiental e recreação; iv) proteger os recursos hídricos; v)promover o uso sustentável dos recursos florestais e faunísticos; vi)proteger espécies da fauna, incluindo as raras e ameaçadas de extinção; vii) produzir sementes e mudas de espécies florestais; viii) recuperar ecossistemas degradados; ix)possibilitar a pesquisa científica voltada à conservação e utilização dos

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135

recursos naturais; x)utilizar a mão de obra capacitada da comunidade da APA; xi) melhoria de qualidade da vida (Amapá Relatório Plano de Manejo 2007:20).

Entre os principais problemas e soluções indicadas no item Unidades Estratégicas do

Plano de Manejo estão:

1 - As ilhas de mata estão sobremaneira afetadas pela agricultura de subsistência. A sua situação de isolamento faz com que estejam muito vulneráveis a qualquer tipo de pressão sobre seus recursos: exploração madeira, desmatamento para abrir nova fronteira agrícola para cultivo de mandioca. Quase 200 ha já seriam alterados, ou seja, 12% de sua cobertura vegetal (Facundes; Gibson 2000);

2- Restringir e proibir a criação de búfalo na região, este é um objetivo a ser empregado em longo prazo;

3- Controle e fiscalização ambiental;

4- Realização de mutirão técnico interinstitucional para elaboração de laudos de danos ambiental causados nas ilhas de mata pela agricultura e outras intervenções ilegais;

5- Fiscalizar e controlar em conjunto, polícia ambiental e a SEMA, o adensamento urbano das comunidades, bem como o respeito ao zoneamento elaborado em conjunto com as mesmas.

A medida de regulamentação geral para todo o território da APA do Rio Curiaú,

possui 20 itens, o último item expõe o entendimento da agricultura praticada na APA,

indicando a seguinte proibição:

20 - É proibido qualquer tipo de atividade que implique na derrubada ou queima da vegetação nativa – nas ilhas de mata e na floresta de várzea. O problema de maior incidência é o desmatamento desses tipos de vegetação provocado pela agricultura itinerante de roça-derrubada-queima (Amapá Plano de Manejo 2010: 158).

Brito (2003) no estudo da gestão da APA do rio Curiaú, entre outros materiais se

baseou no diagnóstico e no zoneamento ambiental participativo que foram realizados em

2000. Segundo a autora, a partir do autodiagnóstico foi possível identificar que

Os moradores praticam uma agricultura extensiva de subsistência, que supri apenas às necessidades básicas da sua alimentação ... O sistema de produção associa a criação de pequenos animais, o cultivo de mandioca (transformada em farinha e comercialização os seu excedente), além do extrativismo animal (caça e pesca) e vegetal (açaí, palmito, madeira), o que demonstra uma permanente pobreza (Brito 2003:).

Brito (2003) sinaliza também para a necessidade urgente de desenvolver atividades

produtivas e projetos concretos de desenvolvimento econômico e social. Caso contrário,

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136

sem alternativa de atividades sustentáveis, os moradores irão “continuar a explorar a

floresta para fazer a sua agricultura de subsistência ou a sua pecuária predatória (através

dos búfalos)” (2003:127). A autora afirma também que os projetos a serem implementados

na APA poderão utilizar as inovações tecnológicas para permitir a diversificação e a

intensificação dos sistemas produtivos:

Essa ação é necessária, pois permitirá a recuperação de áreas degradas pela extração de madeira, retirada de palmitos, áreas de roça e ação do búfalo. Essas atividades são as que mais agridem o meio ambiente da APA e comprometem a sustentabilidade das comunidades (Brito 2003:114-115).

Como podemos observar, no que diz respeito à agricultura desenvolvida na APA do

rio Curiaú, os argumentos são baseados em quatro aspectos: i) a forma como a “agricultura

de subsistência” é transformada em empecilho para conservação ambiental, provocando

impactos; ii) a visão de que agricultura praticada na APA é sinônimo de pobreza, atraso

tecnológico, baixa produtividade, e de que “supri apenas às necessidades básicas da sua

alimentação”; iii) a necessidade de modernização e inovações tecnológicas das práticas

agrícolas; e iv) a valorização do potencial turístico da região.

Evidencia-se nesses argumentos, a oposição populações tradicionais x conservação

da natureza. Estudos e pesquisas numa perspectiva interdisciplinar ajudam a problematizar

o tema da gestão das UCs e suas relações específicas com as práticas de agricultura

tradicional desenvolvidas nos territórios quilombolas, nos quais se enfatiza o

questionamento em torno de um modelo conservacionista, buscando-se compreender os

padrões de ocupação do território e o uso da natureza.

Em relação ao debate sobre impactos ambientais, Antônio Carlos Diegues (2001a;

2001b) que se dedica a uma abordagem socioambiental tem priorizado uma análise que

busca ver uma relação intrínseca entre as comunidades tradicionais e as unidades de

conservação. Ao analisar o mito moderno da natureza intocada, aponta um desses mitos

como aquele que se baseia na ideia de que as áreas protegidas devem ser conservadas

virgens e intocadas. Diegues advoga a ideia de que “somente a integração das populações

tradicionais nas unidades de conservação onde moram poderá assegurar a proteção tanto

da diversidade biológica quanto cultural” (1993: 3). Os PCTs desenvolveram um tipo

específico de relação com a natureza.

Page 158: Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer

137

A relação dos povos e comunidades tradicionais com a biodiversidade tem gerado um

conjunto de pesquisas que buscam revisar e questionar a visão conservacionista de

“natureza intocada”, promovendo abordagens que visibilizam e valorizam a biodiversidade

promovida pelos PCTs. Estudos realizados entre indígenas na Amazônia têm mostrado que

muitas das áreas habitadas por populações tradicionais se conservam com cobertura

florestal e com alta biodiversidade, em virtude do manejo ligado ao modo de vida dessas

comunidades. Estas investigações também mostram que as formas locais de manejo dos

recursos naturais contribuem para a geracão e conservação da diversidade biológica

mediante a manipulacão de plantas, animais, hábitats e ecossistemas (Balleé 1993; Posey

1987).

Neste contexto, a crescente valorização das comunidades tradicionais em ações de

conservação da biodiversidade, vem incentivando mudanças de paradigmas nos estudos

sobre a relação entre sociedade e natureza. Flavio Barros (2011) na pesquisa que realizou na

Reserva Extrativista Riozinho do Anfrísio, em Altamira, no estado do Pará, mostra como os

conhecimentos dos ribeirinhos sobre o ecossistema é um importante fator de preservação

da biodiversidade da região.

Outras pesquisas demonstram que a cultura local e a memória são cruciais para a

biodiversidade, porque ambas podem contribuir para a renovação de alternativas, visando

manter a diversidade cultural e biológica, constituindo-se em um patrimônio biocultural, que

na perspectiva de Eckart Boege (2008) tem os seguintes componentes: recursos naturais

bióticos, manejo diferenciado e uso dos recursos naturais segundo padrões culturais, os

agrossistemas tradicionais, e a diversidade biológica domesticada. Desmistifica-se a ideia de

que a ação humana é sempre uma ameaça à biodiversidade e desconstrói-se o “mito

moderno da natureza intocada”.

Essa visão reforça o pensamento, segundo o qual, não há paisagem sem

transformação e não há natureza sem a ação humana (Posey 1987a, 1987b; Balleé 1989;

Toledo e Barrera-Bassols 2015). A paisagem é, portanto, um produto profundamente

impregnado de cultura, que resulta de processos de alteração contínuos, ditados por fatos

biofísicos, sociais e econômicos, portanto também políticos, expressando diversas formas de

ocupação e gestão do território. As territorialidades são expressas pelas diversas formas que

os grupos humanos se relacionam com a natureza.

Page 159: Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer

138

Tomando-se como base as pesquisas realizadas na região da Mata Atlântica por Lucia

Munari (2010) e Simone Rezende Silva (2008), ambos os estudos mostram como,

historicamente, as comunidades quilombolas dessa região vêm conformando seu território

com suas práticas agroflorestais e sua relação com natureza, como bem afirma Silva (2008):

A Mata atlântica, diante de seu histórico de ocupação e destruição, afirma-se também que seus remanescentes florestais somente existem porque neles viviam populações tradicionais, pois de outra forma estes teriam sido apropriados e consumidos pelo desenvolvimento urbano e industrial do país (2008: 334).

Munari (2010) numa perspectiva interdisciplinar, a partir da Antropologia ecológica da

agricultura de corte e queima, com pesquisas realizadas entre os quilombolas do Vale do

Ribeira, vem buscando descrever, caracterizar e analisar as práticas agrícolas, a diversidade

inter e intraespecífica de itens cultivados, sua articulação com o capital social das populações

quilombolas e seu papel na formação e manutenção da Mata Atlântica local que,

Além das grandes áreas de floresta, abriga atualmente diversas populações tradicionais, dentre elas caiçaras, indígenas e a maior parte dos remanescentes de quilombo do Estado, sendo tais populações as principais responsáveis pelo manejo florestal local (2010:23).

O Vale do Ribeira, no sudeste do Estado de São Paulo, abriga uma parcela expressiva de

remanescentes da mata atlântica brasileira, que é protegida na forma de Unidades de

Conservação. Munari (2010) mostra que a atividade agrícola, através do sistema de coivara, foi

determinante na estruturação da paisagem e na complexidade da floresta local nos últimos 200

anos de ocupação do território.

4.3.1 O Mapa de Zoneamento como instrumento de gestão territorial

A difusão dos parâmetros territoriais baseados na perspectiva de que a agricultura

passa a ser uma transgressão e propulsora de impactos ambientais na APA do rio Curiaú

ganha força quando se propõe um processo de zoneamento do território pensado pelo

Estado, onde se planeja reorganizá-lo conforme as quatro percepções acima elencadas:

combate ao impacto ambiental; à baixa produtividade, atraso tecnológico e o reforço ao

potencial turístico. O SNUC (2000) conceitua zoneamento como

Definição de setores ou zonas em uma unidade de conservação com objetivos de manejo e normas específicos, com o proposito de proporcionar

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139

os meios e as condições para que todos os objetivos da unidade possam ser alcançados de forma harmônica e eficaz.

No que diz respeito à regulamentação do zoneamento, o plano de manejo da APA do

rio Curiaú registra 08 (oito) zonas de uso do território com suas respectivas características e

pontos de ocorrência, conforme especificadas no quadro 5:

Quadro 5 - Zonas de uso da APA do Rio Curiaú

Fonte: Plano de Manejo (2010)

Denominação Características Principais pontos

Zona de uso extensivoCaracteriza-se como uma zona de trans ição entre a Zona

Primitiva e a Zona de Uso Intens ivo.

Extrema, Curiaú de fora, Curiaú de

dentro, Pescada. A Zona de Uso

Extens ivo inclui principa lmente as

tri lhas de acesso aos atrativos natura is

de vis i tação, como as lagoas , mirantes ,

abrigos e outros pontos de interesse.

Zona de uso intensivo

É aquela consti tuída de áreas natura is , permitindo alguma

forma de intervenção humana. Destina-se a conservação e às

atividades de vis i tação. As atividades abrangem a educação

ambienta l , conscientização ambienta l , turismo científico,

ecoturismo e recreação.

Casa Grande, Pi rativa ,

Mocambo,Pescada.

Zona histórico-cultural:

quilombo

É aquela consti tuída de áreas de relevância his tórica e cultura l ,

permitindo alguma forma de intervenção humana. Destina-se a

conservação do patrimônio Histórico cultura l e às atividades de

vis i tação. As atividades abrangem a educação ambienta l ,

turismo histórico cultura l , mani festações folclóricas , desde que

não prejudique o meio ambiente e o patrimônio his tórico

exis tente.

Extrema, Curra l inho, Curiaú de Dentro e

de Fora, Casa Grande e Pescada.

Zona de Recuperação

É aquela que contém áreas cons ideravelmente alteradas pelo

homem. Zona provisória , uma vez restaurada, será incorporada

novamente a uma das zonas permanentes . Sua indicação

justi fica-se quando houver s igni ficativo grau de alteração, a

cri tério da visão do planejamento e da anuência da

adminis tração da U.C. As espécies exóticas introduzidas

deverão ser removidas e a restauração deverá ser natura l ou

natura lmente agi l i zada.

Curra l inho, Curiaú de Dentro,

Pescada,Pirativa e Mocambo

Zona de uso especial

É aquela que contém as áreas necessárias à adminis tração,

manutenção e serviços da Unidade de Conservação, abrangendo

habitações , oficinas e outros . Esta área será escolhida e

controlada de forma a não confl i tarem com seu caráter natura l

e devem local izar-se, sempre que poss ível , em áreas a l teradas

e/ou na peri feria da U.C.

Extrema, Curra l inho, Pescada, Mocambo

Zona de reproduçãoPromover s is tema de produção sustentáveis que se uti l i zam de

componentes arbóreos .

Curiaú de Dentro, Curiaú de Fora,

Curra l inho, Extrema, Casa Grande,

Mocambo.

Zona de ocupação

São áreas onde exis tem centros comercia is e infraestrutura

para o ecoturismo (ocupação I), áreas para moradia (II) e áreas

restri tas (ocupação II I).

A Zona de Ocupação pode ser dividida

em três tipos : As Zonas de Ocupação I,

as Zonas de Ocupação II e as Zonas de

Ocupação II I .

Zona de uso-ConflitanteCorresponde às áreas que apresentam atividades com a l ta

poss ibi l idade de riscos ambienta is , inadequadas em UC.

Áreas de criaçao de búfa lo e áreas

ocupadas por infraestrutura públ ica:

dutos , rodovias , l inhas de transmissão.

Page 161: Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer

140

Como indica o quadro cinco, as oito zonas fazem uma distinção entre os espaços em

toda a APA do rio Curiaú que abrange às comunidades do Curralinho, Curiaú, São Francisco

da Casa Grande (comunidades quilombolas), Pirativa e Pescada (ribeirinhos). Observando a

circunscrição que o zoneamento realizou referente ao Curiaú, um aspecto merece destaque:

A zona de uso extensivo e intensivo segundo o PM serve para implantação de uma

política de ecoturismo. E a zona denominada histórico-cultural caracteriza-se pela

“intervenção humana”. Considerando que os demais espaços não foram produtos dessa

intervenção, pelo contrário eles se deterioram devido à “intervenção predatória”. A roça

restringe-se a zona de recuperação, novamente retirando o valor relacional do “fazer a roça”

como um espaço cultural e histórico de construção do território.

Na figura 35, mapa elaborado no PM que apresenta as delimitações circunscrevendo

a zonas em que a APA seria dividida, apresenta as áreas conforme suas características,

sinalizando para as formas de ordenamento do território. São apresentadas as seguintes

zonas com suas respectivas cores: i) zona de uso extensivo (vermelho); ii) zona de uso

intensivo (verde claro), iii) zona histórico-cultural (lilás); zona de recuperação (amarelo); iv)

zona de uso especial (laranjado); v) zona de reprodução (verde escuro), e vi) zona de

ocupação (marrom):

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141

Figura 35- Mapa do Zoneamento da APA do Rio Curiaú. Fonte: Amapá, Plano de Manejo 2010.

Como indica Benedict Anderson (2008) na construção da comunidade imaginada

chamada nação, três são as instituições de poder: o censo, o mapa e o museu. Estas três

instituições “moldaram profundamente a maneira pelo qual o estado colonial imaginava o

seu domínio – a natureza dos seres humanos por eles governados, a geografia dos seus

territórios e a legitimidade do seu passado” (Anderson 2008: 227). Essa discussão elaborada

por Anderson para analisar o fenômeno do nacionalismo em um período da emergência dos

novos estados nacionais a partir da II Guerra mundial, permite uma reflexão ampla, que

pode abarcar diferentes contextos e contribui na contemporaneidade para reflexão de como

os agentes do Estado planejam o espaço. Na argumentação do autor:

Assim mutuamente interligados, censo, mapa e museu iluminam o estilo de pensamento do Estado colonial tardio em relação aos seus domínios. A “urdidura” desse pensamento era uma grade classificatória totalizante que podia ser aplicada com uma flexibilidade ilimitada a qualquer coisa sob o controle real ou apenas visual do Estado: povos, regiões, religiões, línguas, objetos produzidos, monumentos, e assim por diante (Anderson 2008:252).

As tentativas de zonear e mapear o território quilombola, transformando-o a partir

dos instrumentos de gestão ambiental como o zoneamento da figura 36, expressam as

relações de poder representadas na guerra dos mapas (Almeida 1995), para usar um termo

que explica os enfrentamentos cartográficos na colisão entre diversos grupos e o Estado, e

Page 163: Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer

142

interesses empresariais, evidenciando as disputas no campo cartográfico que envolve essas

relações. O que representar e como representar a realidade são dois elementos

fundamentais nesse contexto da gestão da APA. Com base no argumento de Almeida

(2012a) sobre as estratégias de construção de espaços fixos em relação às UCs, o

zoneamento, a meu ver, representa um disciplinamento territorial “imaginado” pelos

tecnocratas do Estado.

O mapa de zoneamento traduzem afirmações que, por sua vez, produzem efeitos de

convencimento e restrições. É uma atividade de conhecimento, pois ela busca uniformizar,

padronizar e definir onde o Estado pode atuar e disciplinar o uso do território. A pergunta

então: a quem interessa e para que serve: mapear, “zonear”, georreferenciar e fixar o

território que historicamente vem sendo construído pelos quilombolas?

Segundo o PM, o zoneamento é a organização espacial de uma unidade de

conservação, em parcelas denominadas zonas, que demandam distintos graus de proteção e

de intervenção. Segundo o relatório das atividades das oficinas para o diagnóstico das áreas

da APA do Curiaú foram realizadas oficinas participativas de zoneamento para identificar

problemas e buscar soluções. De posse dessas informações sobre os recursos naturais da

APA, e tomando como base alguns parâmetros naturais, procedeu-se à demarcação dos

limites de cada zona.

Com base nessa estratégia a ideia de ordenamento territorial que está presente na

gestão de uma unidade conservação pode ser entendida como o “controle político e o

manejo ambiental do espaço geográfico que é o território de um grupo social ou entidade

política” (Little 2006:21). A cartografia no sentido científico-estatal indica a pretensão de

situar as pessoas e situações em um espaço único, fixo, padronizado em escalas e legendas.

Como explica Acserlad (2010)

A produção de mapas passou a integrar, assim, as lutas simbólicas envolvidas no processo de produção cultural da paisagem e de seus elementos materiais. Há por certo, outras estratégias e outros tipos de atores-mediadores que recorrem à participação de grupos sociais localizados pra configurar no quadro do desenvolvimentismo e do ambientalismo, por exemplo, mapas que tendem a se mostrar funcionais a projetos de ordenamento territorial, de

desenvolvimento local, de manejo de recursos naturais (2010:5).

Page 164: Lavrando a Memória, Cultivando a Terra: O Direito de Dizer

143

4.4 Contrapontos: zonear ou plantar, fixar ou diversificar?

(...) era invernos e verões, tirando o alimento dai. As matas que nós fazíamos roças, as roças antigas que hoje se tornaram capoeirão que hoje para muitos hoje nem sabe definir o que é isso (Sebastião Menezes. Curiaú. Fev de 2014).

Nas últimas décadas ocorreram mudanças em relação às cartografias sociais,

participativas e mapeamentos em relação às produzidas pelo Estado, assim como os

cadastros e censos. O que as experiências de cartografia social, a exemplo dos trabalhos

desenvolvidos no âmbito do Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia (PNCSA) e em

outras experiências de mapeamentos sociais, vêm demostrando por outro lado, é que nesse

território tem gente, sujeitos, conhecimentos, saberes, histórias e movimentos diferentes

que não só os do Estado ou projetos econômicos empresariais ou não. A questão ambiental,

portanto não pode prescindir de que ali naquele lugar tem sujeito com suas territorialidades

específicas, como corrobora Almeida (2010a)

[...] Transcendendo a uma noção estrita do recurso básico, terra, o esforço de reconceituação incorpora ademais fatores étnicos e políticos-organizativos, abarcando distintos atos de mobilização que denotam consciência ecológica. Deste modo, a questão ambiental não pode mais ser tradada como uma questão sem sujeito. Não se restringe ao contorno de um quadro natural isolado, pensado preponderantemente por botânicos e biólogos [...]. O advento nesta última década e meia de categorias que se afirmam através da existência coletiva, politizando nomeações de vida cotidiana tais como índios, seringueiros, quebradeiras de coco, ribeirinho, castanheiros, pescadores, extratores de arumã, quilombolas dentre outros, trouxe a complexidade de elementos identitários para o campo de significação da questão ambiental. Registrou-se uma ruptura profunda com a atitude colonialista homogeneizante, que historicamente apagou as

diferenças étnicas e a diversidade cultural (2010 a:21-22).

Com a perspectiva de discutir como as regras de licenciamento e o zoneamento da

APA, que mostrei no quadro cinco e na figura 35, vêm impactando a dinamicidade do uso do

território pelos quilombolas propus à ACRIAÚ a realização de uma oficina de construção de

mapas situacionais do território quilombola, principalmente os do território das roças

antigas e atuais com objetivo de buscar compreender o movimento de expansão das redes

de convívio das roças no Curiaú.

Realizamos uma oficina que iniciou um debate sobre a territorialização das roças. O

Sr. Roldão Amâncio (Figura 36), foi um dos participantes que relatou de forma minuciosa

como os antigos organizavam suas roças, o que plantavam, e como eram feitos os mutirões,

em que os agricultores organizavam o famoso “pichurum” (multirão) em que se ajudavam

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144

mutuamente na agricultura. Roldão Amâncio, nos conta como ocorreu a ocupação do

território com as roças, caça e pesca, demonstrando que, assim como acontece uma rota

dos poços e taperas, existe uma rota do “fazer a roça”. Na narrativa a seguir delineia sua

explicação sobre os limites do território quilombola e, como as roças, são demarcadoras do

vínculo entre as famílias:

A Casa Grande é do outro lado do igarapé, o igarapé é que é extremo do Curiaú e o São Francisco da Casa Grande. O Mata Ponta fica do lado da Casa Grande. Esse Novo Horizonte todo foi lugar de roça, onde tem, onde diz que é lago das vacas, aquilo era picada das vacas, porque lá embaixo tem uma mangueira, e lá, nós tínhamos uma casa de farinha. Aí no Novo Horizonte para a banda do Ypê nós tínhamos também uma roça, o Areão, o Noro deve saber, o tio Dica tinha uma casa de farinha lá, o compadre Pedro também teve roça lá. Nessa região só essa parte, agora, depois disso, nós fizemos ali naquela área onde tá o Caldo.

A região de caça, esse mato aqui do Novo Horizonte, isso tudo a gente caçava, era mata que se caçava, na várzea também, ai para esse areal também a gente caçava paca, tatu, veado. Do Ali para lá, para atrás do posto médico Marcelo Cândido, já era do Sercondino Campos. Do Dodoca vem dessa cerca viva até o laranjal e daí entra para o Ypê. No Ypê, no documento conta assim que tinha uma senhora com o nome Francisca Rola que era extremo com o Curiaú, a parte da direita é São Francisco. São Joaquim do Curiaú é para a parte da esquerda da Francisca Rola. O rio Curuçá já não entra é exatamente o extremo onde é o Ypê , hoje da parte de cima para baixo é que é o Curiaú. Isso, isso tudo já é entorno do Curiaú, isso ai é uma área que tá livre. Agora para cá que entra que já era dessa Francisca Rola que vendeu para o pessoal do Curuçá, e mais lá na frente para banda desse Marcelo Cândido que era do velho Sercondino Campos que vai varar até na BR. (Roldão Amâncio Oficina de cartografia, Curiaú.2014.grifo nosso).

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145

Figura 36 - Oficina de cartografia. Curiaú Fevereiro/2014

Foi um dia de muitas histórias sobre a ocupação tradicional do território quilombola.

Enquanto as narrativas iam sendo tecidas, as histórias de como plantavam e cultivavam a

terra sendo contadas, outro grupo se organizava em equipes, para desenhar o croquis dos

territórios de roças antigas e das atuais. Ao final o grupo expôs o que tinha conversado e

elaborado 64.

Figura 37 - Apresentação do croquis do território. 2014

64

Após a oficina foram organizadas equipes para iniciar o georreferenciamento das roças e quintais indicadas nos croquis elaborados. Mas, infelizmente esse trabalho teve que ser interrompido porque o Sr. Sebastião Menezes sofreu um grave acidente quando consertava o telhado de sua casa de farinha em junho de 2014.

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146

Sebastião Menezes (Figura 37) deu as boas vindas aos participantes de oficina e

procedeu a um relato minucioso sobre os movimentos de ocupação do território e sua

organização no “fazer a roça”,

Bom dia para todos aqui. Nesse trabalho, que é um resgate que estamos fazendo do antigo território do Criaú, que hoje é Curiaú, que no decorrer do tempo pelas questões públicas acabamos perdendo terreno, dignidade, e nós nos adequamos no que deram para a gente, e, com isso, nós nos comportamos a viver dentro de um espaço desse limitado hoje. Para a quantidade de pessoas que estão chegando no Curiaú e as que já estão, tá elevando e a tendência é inchar e a convivência se tornar mais difícil entre nós moradores, vizinhos e parentes descendentes e remanescentes de dentro dessa comunidade.

Um contraponto em relação ao ordenamento territorial proposto pelo zoneamento

expresso na fala do narrador é o da mobilidade, com que historicamente, os quilombolas

desenvolvem suas atividades de roça, pesca e caça, demonstrando um ponto nevrálgico

quando a política de zoneamento e fixação em zonas de ocupação entra em colisão com a

perspectiva de mobilidade no território. Um momento que ficou evidente quando se

cotejam as zonas do PM e as rotas das roças, com as capoeiras, os igarapés que os

quilombolas identificam:

É um exemplo esse nosso desenho que nós fizemos que mostra para a população como era no princípio da vivência do Curiaú, mostrar para a nova geração o que nós perdemos e o que temos de garantia aqui dentro desse espaço mesmo limitado por algumas instituições ou secretarias que quer que a gente se adéque aqui nesse lugar.

Para vocês terem uma ideia da dimensão do Criaú, hoje Curiaú, nós procurávamos os nossos alimentos e fazíamos os nossos trabalhos rotineiros eram as nossas roças, os nossos mariscos, as nossas andanças e principalmente, o que se chamava a busca pela alimentação era em cima dessa ampla área que tínhamos aqui. Era essa a quantidade de poços que tínhamos que chamávamos de poços criadores era invernos e verões, tirando o alimento dai. As matas que nós fazíamos roças, as roças antigas que hoje se tornaram capoeirão que hoje para muitos hoje nem sabe definir o que é isso.

Em constância disso, o grande Rio Curiaú de onde nós tirávamos a nossa alimentação de peixes de varias espécies. Está aí os lugares que hoje a gente tá falando de vilarejos, onde estava as nossas residências e onde está construído.

Na razão de tudo isso, tem a área de várzea que hoje estão chamando de área de extrativismo que é onde a gente fazia os nossos plantios, nossa agricultura e tirar o nosso alimento e de lá a gente caçava, apanhava o nosso açaí, tirava a casca de algumas árvores medicinal para fazer alguns

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remédios e alguns outros vegetais, plantas e árvores que serviam até de apoio para confecções de utensílios da manifestação cultural do Curiaú que é alguns paus que faziam tambores e pandeiros, e essas situações todas que a gente convive há mais de duzentos anos dentro dessa área que hoje a gente tá sobrevivendo.

Dentro desse contorno todo temos ainda a área de lago que hoje está sendo de criação para búfalos e a área de campo que todo o princípio da área do Curiaú foi de criação de gado comum que hoje está se abrangendo e se colocando o búfalo, o gado branco.

Nesse fluxo da memória biocultural, que originou o croquis da figura 38, podemos

perceber como os sujeitos envolvidos na reconstrução dessa memória topográfica delimitam

as fronteiras das terras do Curiaú, expandem depois para a descrição de uma rede de

vizinhança, e evidenciam por fim, a mobilidade nesse território, onde o “fazer roça”

constitui-se enquanto fundamental para criar e fortalecer vínculos sociais. Esses três

movimentos, ou seja, delimitar, expandir e mobilizar trarão consequências para vida dos

quilombolas, principalmente no aspecto material de sua reprodução social, na sua existência

física, nutricional, saúde, assim como nos aspectos simbólico e identitário, o que se expressa

num conjunto de estratégias no campo do imaginário, cosmológico, religioso, enfim de

ancestralidade que os mobiliza na defesa das formas próprias de uso do território.

Figura 38 - Croquis do território do Curiaú. Arte: Sebastião Menezes, Roldão Amâncio, Orlandina

Banha, Maria do Carmo, Raimundo Noro. 2014.

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O croquis mostra como o conhecimento do território onde estão é abrangente, eles

detêm informações do antes, vivenciaram e ainda vivem as mudanças ocorridas. O

conhecimento ancestral sobre o território que já tem 200 anos.

Uma série de situações que para se falar de APA, Área de Preservação Ambiental isso tá longe de acontecer, porque uma área de preservação ambiental tem regras específicas que a gente não pode mexer e tem que conviver com aquilo. Dentro dessa área que nós estamos é totalmente diferente isso é uma área de extensão universal do povo do Curiaú, então para todos os lugares que a gente poder se deslocar como quiser a gente tinha livre arbítrio para fazer e é isso que nós queremos viver com essa mesma natureza, ter expansão e a gente poder se locomover dentro da área e buscar o que nós precisamos. Na questão moderna que as áreas de campo que o povo chama de cerrado que tá se transformando no futuro na mecanização que vai causar um problema impactante na comunidade, porque nas áreas que a gente tá precisando fazer isso os criadores vão achar ruim, porque nós podemos talvez acabar com o espaço deles de gado viver a solta. Para a gente viver com as nossas roças do jeito que estamos há um impedimento e nós queremos viver do nosso jeito tradicional para nós podermos tirar os nossos alimentos e continuar plantando da nossa maneira, isso se chama preservação, de preservação de uma comunidade tradicional.

Evidencia-se, portanto a contraposição de duas percepções existentes no que diz

respeito ao “fazer a roça” e política de conservação da APA do rio Curiaú. As duas lógicas

entram em conflito principalmente no seu aspecto simbólico de ver e perceber o território.

São lógicas que se conflitam devido à persistência de desenvolver estratégias

governamentais de conservação pautados na dicotomia homem-natureza. O zoneamento

promovido pelo PM invisibiliza os sujeitos. Nega sua história de organização e mobilidade

pelo território e impõe uma reorganização do território por meio de espaços “modernos e

públicos”, baseado numa leitura de um espaço rural selvagem, em oposição ao urbano

civilizado. Não obstante, a gestão ambiental da APA insiste em negligenciar a existência

histórica e cultural do território quilombola. Na perspectiva de Diegues (1997)

Deve-se se rejeitar tanto a visão utilitarista da conservação, pela qual qualquer impacto de atividade humana pode ser revertido pela tecnologia moderna, quanto à visão estritamente preservacionista baseada no pressuposto de que, colocando-se de lado áreas naturais para conservação, automaticamente garantirá a integridade biológica. Em países subdesenvolvidos, a conservação poderá ser melhor conseguida com a real integração e participação das populações tradicionais que, como afirmado anteriormente, em grande parte foram responsáveis pela diversidade

biológica que hoje se pretende resguardar (1997: 318).

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Somado a esses fatores, a política de zoneamento pretende agregar valores étnicos e

culturais aos atrativos turísticos que o espaço pode oferecer, no qual os quilombolas e sua

história de resistência passam a ser a principal atração. Nesse caso, os aspectos culturais e

etno-históricos são zoneados e visibilizados para corresponder à “indústria do turismo”,

excluindo-se a roça, que pelo contrário, torna-se por esta perspectiva, um empecilho à

conservação.

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150

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O caminho desta etnografia e discussão vai chegando ao seu termo e as rotas

traçadas nos conduzem para a reafirmação de uma análise que busca dar visibilidade aos

direitos étnico territoriais de Povos e Comunidades Tradicionais. A efetivação de políticas

identitárias que promovam a diversidade sociocultural ainda é uma meta a ser atingida na

sociedade brasileira, e que apresenta diversos obstáculos a serem superados. Situações que

vão desde a morosidade e não efetivação da regularização fundiária de terras de quilombo

aos conflitos vivenciados pelas comunidades tradicionais decorrentes de processos de

implementação de projetos governamentais e privados.

Nas últimas três décadas podemos pensar nas consequências de três processos na

dinâmica territorial do quilombo do Curiaú: i) a construção da estrada que corta o Curiaú no

início da década de 1980; ii) a negociação de parte de suas terras para criação dos bairros

fronteiriços, ainda no final da década de 1980 ; iii) e, em 1998, a criação da APA.

Em 1980, na administração do prefeito Anibal Barcelos, o Curiaú experimentou uma

intervenção em seu território que provocou grandes impactos ambientais, quando foi

construída uma estrada que dividiu o lago Curiaú. Por ter sido planejada sem estudos de

impacto ambiental, e ignorada a opinião dos quilombolas, a estrada tem provocado sérios

problemas ecológicos por causa da interrupção do fluxo normal do lago (Trindade 1999).

Observa-se que nesta mesma década, o Curiaú perdeu terras em acordos de

lideranças com os governos locais, quando em 1985, na administração municipal do ex-

governador João Alberto Capiberibe foi negociada uma área para assentamento de famílias

de fora, o que deu origem aos bairros que fazem fronteira com o Curiaú. Em troca, a

comunidade teria a rodovia que separa o Curiaú da cidade, asfaltada. Nessa negociação, o

Curiaú perdeu uma área correspondente a 300 km² e que serviram à criação dos bairros

Felicidade I e II (Lima 2003; Trindade 1999).

Na década de 1990, a literatura sobre a APA do rio Curiaú mostra que um dos

motivos que levaram o governo estadual a criá-la foram as constantes ameaças e pressões

sobre as terras quilombolas e a necessidade de salvaguarda do patrimônio afro-brasileiro

(Chagas 2007; Brito 2003). Neste contexto, o Curiaú vivencia dois processos na sua dinâmica

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151

territorial, resultantes de acontecimentos no âmbito mais geral da sociedade brasileira, os

direitos garantidos pela titulação coletiva e a criação da APA do rio Curiaú.

Somado a esses fatores uma característica específica do Amapá é o fato de ter se

tornado um estado da federação também no período pós-Constituição de 1988, iniciando

um processo de organização e definição de suas políticas étnicas e ambientais com mais

autonomia e sem uma intervenção maior da federação. Entretanto, a política de

regularização fundiária de terras de quilombo e as políticas ambientais não apresentam

ainda grandes indícios de diálogo. Em 26 anos após a promulgação da Constituição de 1988,

foram tituladas apenas quatro comunidades quilombolas no estado do Amapá, e no mesmo

período criadas 15 UCs. Mesmo com o intenso debate em torno do SNUC e da discussão

sobre povos e comunidades tradicionais, a questão da sobreposição e da titulação das terras

dos quilombolas, ainda estão longe de serem solucionadas, a exemplo do PNCO, criado em

1980, que incide sobre as terras quilombolas do Cunani, e que tem seu processo de titulação

paralisado desde 2005.

Nesse sentido, o texto desta tese buscou compreender os conflitos existentes no

caso específico de gestão de UCUS e sua relação com um território quilombola já titulado. A

pergunta que norteou esta pesquisa buscou explicitar os aspectos sociais, jurídicos, políticos,

econômicos e simbólicos que fundamentam as tensões estabelecidas atualmente entre os

agricultores quilombolas do Curiaú e a implementação de políticas ambientais,

especificamente a UCUS. E, busquei analisar também as estratégias construídas pelos

agentes frente ao contexto de conflito socioambiental, ressaltando as questões voltadas

para o “fazer a roça” no território quilombola do Curiaú.

No decorrer da etnografia mostrei no capítulo três que o “fazer a roça” é mais do que

um espaço agrobiodiverso, é também um lócus de construção social e cultural. As

particularidades ecológicas, sociais e históricas fazem do “fazer a roça” uma categoria de

análise. Os processos socioculturais produzidos pelas atividades na agricultura tradicional

mostram-se indissociáveis de elementos voltados à organização social. Nessa perspectiva

constitui-se um patrimônio considerado em seus aspectos de manejo, de circulação de

pessoas, percepção e uso dos cultivares. As atividades na roça desempenham um

importante papel no processo de organização do território e fora dele, fornecendo inclusive

alimento para o centro urbano, garantindo a segurança alimentar de muitas famílias.

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152

Em relação às estratégias dos agentes, abordei no capítulo quatro duas formas

antagônicas de pensar o território. De um lado, a construção das leis do Curiaú na

perspectiva de um “sistema jurídico local”, que busca o fortalecimento dos espaços de

autonomia dos quilombolas. Com a criação do Conselho dos Guardiões encontra-se uma

forma de garantir com que os quilombolas continuem desenvolvendo sua lógica interna do

“fazer a roça”. Pois não é o fato de possuir “três ou mais hectares” para plantar, mas a

questão central é que esse território está prenhe de valores e simbologias que conformam a

identidade coletiva do ser agricultor quilombola.

Em contrapartida, mostrei que a política territorial de zoneamento da APA conflita

com as concepções territoriais dos agricultores quilombolas que têm como base uma

perspectiva de território das roças, das taperas, dos poços. Territórios esses emprenhados

do imaginário, ou seja, não o separam de suas histórias. A gestão da APA propõe implantar

uma lógica de zoneamento esvaziada da história de ocupação do território e de sua

simbologia, baseada em uma política de “imaginar” lugares que servirão para atividades de

ecoturismo e pesquisas científicas que inúmeras vezes ignoram o próprio conhecimento que

os quilombolas secularmente construíram na sua relação com a natureza.

Os conflitos territoriais, as disputas pelos recursos naturais, as políticas públicas para

“conservação” estão impactando os sistemas tradicionais agrícolas, e, como consequência,

pode provocar um processo de homogeneização das espécies cultivadas, produzindo

insegurança, ameaçando a soberania alimentar e desestruturando as estratégias de convívio

social. O território das roças passa a se visto como um empecilho para gestão da APA.

Impõe-se uma visão homogeneizadora para atender aos interesses de uma política

conservacionista que busca invisibilizar as concepções diferentes do território. Nessa linha

de pensamento, a agricultura tradicional passa a ser uma transgressão e sinônimo de atraso.

Como mostrei no capítulo quatro, as estratégias de repressão como multas, prisões e

discursos de “ilegalidade” provocam um clima de medo e recuo nas atividades das roças. É

construída uma estrutura de vigilância no território com a presença de Batalhão ambiental

(BA) e um policiamento, que muitas vezes, utilizam mecanismos que vigiam, coíbem,

constrangem e reprimem. Mas, ao mesmo tempo, os próprios órgãos ambientais como o

IMAP e a SEMA, não têm bem definido suas atribuições, e acabam por produzir uma gestão

sem ter clareza da política ambiental a ser desenvolvida na APA, como mostrei na descrição

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153

dos episódios de prisão e aplicação de multas ocorridas no período de 2011 a 2012, acabam

por demonstrar a fragilidade e expressam uma concepção autoritária de gestão.

Esse contexto amplia as preocupações em torno da garantia da diversidade étnico

cultural quilombola por representar ameaças aos conhecimentos construídos secularmente.

As políticas públicas de conservação ambiental não devem prescindir do entendimento das

lógicas locais e de suas especificidades. Criminalizando as atividades de roça, a gestão da

APA pode levar a uma desestruturação e impactar um modo de vida como um todo, pois o

“fazer a roça” é um fator que agrupa diversas dimensões da vida da comunidade: religiosa,

econômica, ritual e alimentar. O conflito entre essas duas lógicas: a “conservação sem

sujeito” e as práticas seculares do “fazer a roça” precisam ser visibilizados, para evitar que

esse sistema se desmorone de forma sutil, em nome de uma pretensa defesa do “ambiente

sem sujeito”.

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ANEXOS

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170

ANEXO A – ROTEIRO DE ENTREVISTA

1

Qual o seu nome, idade, onde nasceu, nome de seus pais; nome dos filhos; cônjuge

2 Quando começou a trabalhar na agricultura?

3 Quais são as plantas cultivadas?

4 Quais são as variedades que são cultivadas de cada uma delas?

5 Nome

6 Uso

7 Técnicas de manejo

8 Festividades associadas

9 No passado cultivavam mais variedades?

10 Onde cultivavam? Como se classificam os lugares do cultivo?

11 Como cultivam?

12 Quais os usos dos cultivares? É para alimentação? Para remédio?

13 Quais são as histórias a elas associadas?

14 De onde veio a semente? Para quem foi repassada? Qual a fonte de mudas e sementes? Há troca na comunidade?

15 Como faz a seleção e o armazenamento para próxima safra?

16 Como as pessoas aprendem e pensam sobre as plantas cultivadas?

17 Quem trabalha na roça? Com que frequência?

18 Qual o cronograma e o calendário agrícola?

19 Você segue o ciclo lunar no momento do plantio e da colheita?

20 Quais as práticas culturais que o sr.(a) usa no manejo:

21 Faz compostagem?

22 Como faz o combate de pragas?

23 Usa insumos externos, fertilizantes e agrotóxicos?

24 Para cobertura do solo (etnopedologia). Quais os solos encontrados no Curiaú? Quais as limitações do solo para o uso agrícola?

25 Já deixou de plantar algo? Por quê?

26 Incorporou alguma cultura nova?

27 O que só é plantado em outras épocas do ano? Em que quantidade?

28 Como se escolhiam a área para fazer a roça? Pelo solo? Pela idade da capoeira?-Quantas roças

costumavam ter? Qual era o tamanho da roça?

29 O Sr. (a) lembra de alguma planta que sua família cultivava. E hoje não cultiva mais? De onde eram extraídas as mudas e sementes das plantas cultivadas? Havia troca na comunidade?

30 Quanto era o tempo de descanso da terra, depois era usado para outro objetivo?

31 Quais áreas usavam antes da implantação APA?

32 Quais não pode usar mais?

33 O que modificou com a implantação da APA?

34 Quais os problemas que o Sr. (a) vem enfrentando com a APA? Como o Sr. (a) avalia esses últimos 10

anos? Vocês estão enfrentando problemas para fazer roça, caçar ou outro uso do território?

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171

ANEXO B: LEIS DO CURIAÚ

Leis do Curiaú

1- Constituir o Conselho dos Guardiões no qual será a instância maior de decisão sobre

todos os problemas e assuntos da comunidade do Curiaú. Será composto por nove

pessoas, na faixa etária de 65 a 90 anos, moradores que possuem um vasto

conhecimento das questões comunitárias e sejam os guardiães desse lugar, ficando a

cargo deles escolherem quatro pessoas com idade a partir dos 18 anos para auxiliá-los.

2- Fica assegurada a permanência e a sobrevivência dos quilombolas do Curiaú com o

sustento da terra, dos rios, dos lagos e das matas. Sem intervenções externas aos

interesses dos moradores. A preservação ambiental, ecológica e da paisagem fica sob

responsabilidade da comunidade.

Agricultura e pecuária

3- Fica garantida a manutenção das roças nas matas, nas capoeiras, na terra firme e na

várzea. De maneira consciente: roçando, derrubando, queimando e limpando.

Aproveitando a madeira para lenha e para as estacas de casas, cercas e currais;

4- Usar as capoeiras, campos e cerrados para fazer atividades produtivas de mandioca e

outras culturas de maneira antiga e moderna, garantindo a produção de alimento e

alternativas econômicas. O espaço utilizado será de um hectare por família, durante o

tempo de três anos;

5- Fica proibida a abertura de novas áreas de plantio de capim na várzea. Mas, as pessoas

que já possuem área plantada na várzea podem continuar cultivando os capinzais;

6- O agricultor que pretender abrir área na mata virgem consultará o Conselho dos

guardiões para exploração e produção da agricultura e pecuária;

7-Fica proibida a criação de qualquer tipo de animal pertencente as pessoas que não são

da comunidade: bois, cavalos, bodes, porcos. Evitando, com isso, um aumento

populacional de animais e um desequilíbrio ambiental;

8-Fica proibida a colocação de cerca elétrica, só é permitida com dispositivo a bateria;

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172

9-Fica garantida a manutenção da atividade de criação de gado, principalmente o

comum, pois foi a origem do Criaú;

10- O quilombola, antes de desenvolver suas atividades de plantio ou da criação, tem a

obrigação de cercar o local de suas atividades com cercas resistentes para desenvolver seu

trabalho harmoniosamente. É assegurada a colocação de cercas no entorno das roças e

quintais, não podendo ser danificada sem a consulta ao parente ou vizinho. O individuo

flagrado pelo ato será responsabilizado e deverá consertar a cerca;

11-Fica assegurado se por eventualidade ou acaso dos animais virem a ser atropelados na

estrada ou rua nas dependências do território do quilombo do Curiaú por carros e motos

dirigidos, estejam sóbrias ou embriagadas. Estes terão a sua parcela de culpa e poderão ser

punidos, caracterizando a imprudência e velocidade do condutor. As pessoas e animais

estão dentro do lugar de seus donos e proprietários, pois quem é infrator são os estão

adentrando em um local privado.

12-Os criadores serão responsáveis em cuidar dos animais: vaquerar, cercar os limites que

não tenha conflito com os vizinhos para não prejudicar suas plantações: roças e quintais;

Obs: é necessário que os criadores sempre encurralem os animais, evitando que esses

vaguem e atinjam grandes distancias. Caso os animais invadam roças e quintais ou

qualquer outro espaço protegido e que ficam muito distante da pastagem desses animais, o

dono se responsabilizará com todos os prejuízos. A partir de um diálogo entre as partes

envolvidas e ser for necessário, o pagamento da devida indenização;

13-Os criadores de animais têm o dever de vender os animais em um preço mais baixo

que do mercado quando for para as festas culturais do Curiaú. Desde que os encargos

sejam por conta do administrador da festa;

14- que seja respeitado o período do defeso dos peixes, principalmente do pirarucu,

evitando o uso da malhadeira.

Organização comunitária

15- As associações são ferramentas e mecanismos para ajudar na melhoria da comunidade

em todos os sentidos, e uma das atribuições das associações existentes no Curiaú é

promover a interação entre as pessoas. Sendo que as associações não podem impor suas

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173

ideias, pois as decisões têm que ser coletivas. E a diretoria tem que estar em comum

acordo com a maioria dos moradores quilombola curiauenses e associados;

16- Fica assegurado que para ser presidente das associações, a pessoa tem que ser nascido,

criado e morar pelo menos 10 anos na comunidade. E que tenha um profundo

conhecimento das questões da comunidade;

17-Fica assegurado que quaisquer que sejam as mudanças, construções ou ações que

venham impactar com os interesses da comunidade, o assunto deverá ser discutido

coletivamente não se restringindo à direção da Associação dos moradores;

18-Fica assegurado que todos os descendentes e remanescentes do Curiaú a partir de 16

anos, tem o direito de votar para escolha de seu representante. Ficando facultativo o voto.

19-Fica assegurado que os descendentes e remanescentes quilombolas do Curiaú não

poderão marcar e tirar terrenos para construção de casa, e, depois de pronta, vender para

terceiros que não tenham vínculos de origem com o quilombo do Curiaú;

20-Fica proibida a construção de sedes individuais para realização de festas na

comunidade;

21-Fica proibido que lideres religiosos que não tem vinculo de sangue com a comunidade

fiquem morando no Curiaú. Podendo fazer suas doutrinações, mas após as celebrações

retornem para suas moradias;

22-Fica definido que para dar espaço de terreno para os setores públicos dentro do Curiaú

é obrigatória uma assembleia geral com participação maciça dos moradores;

23-Fica assegurado se o casal que se juntar, e tiver filhos de criação, este não tem o direito

a terreno para construir casa. Caso esse individuo queira construir terá direito de fazê-lo no

terreno de seus pais, após uma avaliação do Conselho dos Guardiães e da Associação de

moradores;

24-Fica assegurado que se os quilombolas curiauenses se casarem com pessoas de fora,

construírem casa, e, por ventura, se separem depois, quem tem direito a permanecer é o

descendente do Curiaú; Será garantida a avaliação do bem do imóvel que construíram e

dividirão o valor em partes iguais;

25-Fica assegurado que pra ter direito de terreno, tem que comprovar suas origens;

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174

26-Fica assegurado que pessoas descendentes do Curiaú que trouxerem estranhos para

viver no lugar como caseiro ou outras profissões, o responsável pelo ato tem que informar

a comunidade. Tem que assinar um termo de ajuste de conduta e se responsabilizar por

questões que venham ocorrer;

27-Fica assegurado que a escola do Curiaú se adeque a realidade do quilombo, e o diretor

da escola tem que ser descendente ou remanescente do quilombo do Curiaú.

28-Fica assegurado que o Estado e o município interaja com as pessoas moradoras de

Curiaú, para trocar o nome da escola deste lugar, por um com as características da

comunidade e que venha a ser batizado com um nome escolhido pela comunidade a partir

de uma votação.

29-Fica assegurado que eventos, campanhas e competições que venha a ser promovidos na

estrada, no meio da vila desta comunidade e nos espaços públicos é necessário uma

divulgação com antecedência com avisos publicitários.

30-Fica em caráter de sensibilidade e de conscientização das escolas, universidades,

faculdades e institutos: orientar, educar seus alunos para que tenham respeito ao chegar no

vilarejo dos moradores de Curiaú.

31-Fica assegurado se por ventura os carros vierem derrubar postes de fiação de energia,

fios elétricos de casa serem arrebentados, canos de tubulação de agua serem quebrados,

cercas e muros de casas virem a ser destruído por estes carros, é dever de consertar, pagar

e repor. Isso seja no território do quilombo do Curiaú e parte da APA.

Direitos sociais

32-Fica assegurado que o povo do Curiaú tem que ter tratamento diferenciado por serem

quilombolas e negros e por terem ancestralidade e tradicionalidade no Estado do Amapá.

E, principalmente, porque seus antepassados sofreram as agruras do regime escravista,

edificando inclusive, a Fortaleza de São José de Macapá; e, após o fim do regime, foram

renegados, ficando sem educação, saúde e o seu direito a terra.

33-Fica assegurado que o atendimento no posto de saúde do Curiaú será prioritariamente

para os moradores do Curiaú;

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175

34-Fica assegurado aos quilombolas do Curiaú, o seguro defeso entre safra das atividades

as quais praticam;

35-Fica assegurado que as medidas compensatórias provenientes da implantação de algum

empreendimento serão definidas pela própria comunidade do quilombo e das demais que

estão na Apa;

36-Fica assegurado que pessoas desta comunidade que por ventura prestarem algum

serviço para pessoas ou seguimentos em geral, que esses venham a ser recompensados

com uma gratificação.

37-Fica assegurado que os moradores do Curiaú sejam isentos de impostos coletivos:

construção de moradia;

38- Fica assegurado que os quilombolas tenham direito à redução da tarifa de energia

elétrica;

39- Fica assegurado a isenção das tarifas de água e uma manutenção mais adequada para

uma melhor qualidade de água, sendo uma questão de saúde publica;

40-Fica assegurado a limpeza sustentável pelos setores públicos da sujeira, lixo entulhos.

Limpeza da estrada, na área da escola, no posto de saúde;

41-Fica assegurado que o Curiaú terá acesso a todos os programas sociais nos âmbitos

municipais, estaduais e federais. Ficando a critério dos moradores acessarem ou não; E as

três esferas tem o dever de promover qualidade de vida para o povo do Curiaú: saúde,

esporte, segurança e viagens para promover intercâmbio intercultural;

42-Fica assegurado que o Estado interaja com a comunidade para trabalhar conjuntamente

na qualificação e ganho de renda e sustentabilidade comunitária;

43-Fica assegurado que a responsabilidade em mediar os conflitos existentes no Curiaú é

dos setores públicos federais;

44-Fica assegurado que todos curiauenses quilombolas que são agricultores, criadores,

pecuaristas, pescadores, mariscadores, extrativistas, vaqueiro, artesãos e outras profissões

praticadas no Curiaú é dever do estado brasileiro dar os direitos aos benefícios

previdenciários para homens e mulheres que não tenham vinculo empregatício. E anistiar

a burocracia de documentos.

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176

45-Fica assegurado que nos documentos pessoais dos moradores do Curiaú faça

referencia a sua condição quilombola. Salvo o portador não quiser tal identificação. RG,

Carteira de agricultor, sindical, cartão de vacina, cartão SUS.

Cultura e manifestações

46-É assegurado a permanecia dos festejos promocionais como manifestação cultural na

comunidade do quilombo do Curiaú, com o ritual, toque e cantos do batuque e marabaixo

em louvor às imagens dos santos que existem na comunidade, com a garantia de não ter

concorrência com outro evento ou festa no período de comemoração das imagens dos

santos padroeiro da comunidade e os demais que vem sendo festejado há mais de 30 anos

de existência neste lugar. E necessário respeitar o amanhecer pela tradição de séculos.

47-As festas antológicas tradicionais ficam isentas de pedir autorização, ficando

confirmado o apoio na segurança pelas autoridades policiais.

48-Fica proibido fazer duas festas na comunidade no mesmo final de semana;

49-Fica proibido fazer festa em dia de semana, com exceção das festas em homenagem aos

santos. Que seja observado o calendário festivo da comunidade;

50-Fica proibido o aluguel dos espaços da sede para empresários de som e aparelhagens de

fora do Curiaú;

51-Fica assegurado que as festas com aparelhagens e som mecânico devem obedecer as

regras de volume do som. E diminuir as falações abusivas por parte dos DJs. Podendo ser

penalizado.

52-Fica proibida a alta velocidade de carros e motos na vila do Curiaú. Velocidade

permitida de 30 km. Ficando proibido o som em carros em alto volume na vila do Curiaú.

53-Fica proibido após as 22:00h, a concentração de pessoas e carros nos balneários e no

boeiros;

Liberdade de expressão

54-Ficam proibidas as autoridades de instituições, e repartições públicas virem ao

quilombo do Curiaú, adentrarem para intimidar, repreender, proibir, anular, amedrontar,

punir, multar, fazer busca e apreensão nas casas ou local de trabalho das pessoas do Curiaú.

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177

Qualquer abordagem deverá ser bem argumentada e com esclarecimento para evitar abuso de

poder.

55-Fica garantido que qualquer projeto implementado por setores públicos ou privados terão

que passar pela avaliação e concordância do Conselho dos Anciãos e associação de

moradores;

56-Nenhum empreendimento será implantado no Curiaú sem a devida consulta livre, prévia e

informada ao guardiães da comunidade.

57-Ficam proibidas pessoas física ou jurídica de fora da comunidade usar o nome do

quilombo do Curiaú em propagandas, comerciais, logomarcas, sem a devida autorização do

Conselho dos Guardiães e das Associações de Moradores que existe na comunidade.

58-Fica assegurada a permissão de crianças e adolescentes a partir de nove anos ter liberdade

de apanhar açaí, pescar, e outras coisas referentes à sua alimentação e do sustento da família.

E sempre acompanhados com adultos;

59-Fica assegurada a liberdade dos moradores do Curiaú de pescar, caçar e abater caças de

maneira racional. Porque em primeiro lugar é necessário preservar a natureza humana. Com

respeito ao defeso dos peixes.

60-Fica assegurado os adultos usarem arma de fogo registrada como espingarda para garantir

sua sobrevivência.

61-Fica garantido o direito dos moradores do Curiaú de decidir o momento e a hora de fechar

e abrir a entrada e saída da comunidade, com o apoio da Policia Federal. Com possibilidade

de cobrar pedágio e compensações pelos impactos causados pelo movimento intenso na

rodovia AP 70.

62-Fica assegurado que qualquer empreendimento que queira usar as terras do Curiaú será

analisado primeiramente pelo Conselho de Guardiães e pelas associações. Caso esses

empreendimentos sejam aprovados, que se discutam os direitos compensatórios da

comunidade a exemplo de recebimento de royalty.

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ANEXO C: LEIS, DECRETOS E PRINCIPAIS REGULAMENTAÇÕES RELATIVAS À QUESTÃO

QUILOMBOLA E AO MEIO AMBIENTE.

Lei Ano Constituição Federal do Brasil

TÍTULO X ATO DAS DISPOSIÇÕES CONSTITUCIONAIS TRANSITÓRIAS Art. 68. Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos. Disponível em: http://www.planalto.gov.br

1988

Constituição Federal do Brasil

TÍTULO VIII Da Ordem Social CAPÍTULO III DA EDUCAÇÃO, DA CULTURA E DO DESPORTO Seção II DA CULTURA Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais. Disponível em: http://www.planalto.gov.br

1988

Decreto nº 2.519, de 16 de março de 1998 Promulga a Convenção sobre Diversidade Biológica, assinada no Rio de Janeiro em 05 de Junho de 1992. Disponível em: www.planalto.gov.br/civil_3/decreto/D2519.htm

1998

Decreto 4.887 Regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos de que trata o Art. 68 do Ato das disposições Constitucionais transitórias. Disponível em: WWW.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2003/d4887.htm

2003

Lei 10.629 de 2003 - Institui a obrigatoriedade do ensino de história da África e cultura afro-brasileira

Disponível: www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/I10.639.htm

2003

Convenção n° 169 da OIT sobre Povos Indígenas e Tribais em Países Independentes da Organização Internacional do Trabalho Disponível em: www.socoambiental.org/inst/esp/consulta_previa/?q=convencao-169-da-oit

2004

PORTARIA Nº 98 Art. 1° - Instituir o Cadastro Geral de Remanescentes das Comunidades dos Quilombos da Fundação Cultural Palmares, também autodenominadas Terras de Preto, Comunidades Negras, Mocambos, Quilombos, dentre outras denominações congêneres, para efeito do regulamento que dispõe o Decreto nº 4.887/03. Disponível em: www.palmares.gov.br/wp-content/uplods/2015/03/ANEXO-04-Portaria-FCP-nº98-

2007

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179

de-26-novembro-de-2007.pdf

Lei 6.040 de 2007 que institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais. Disponível em: www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/decreto/d6040.htm

2007

Lei 12. 288 que institui o Estatuto da Igualdade Racial.

Disponível em: www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/Lei/L12288.htm

2010

Constituição Federal do Brasil

Art. 225 - Meio Ambiente

Disponível em: www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm

1988

Lei 9.985

Regulamenta o art.225, § 1º, incisos I, II,III e VII da Constituição Federal, institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza e dá outras providências

Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9985.htm

2000