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Theoria -Revista Eletrnica de Filosofia
Faculdade Catlica de Pouso Alegre
Volume V - Nmero 13 - Ano 2013 - ISSN 1984-9052 64 | P g i n a
KANT, EDUCAO E ENSINO DA FILOSOFIA1
KANT, EDUCATION AND TEACHING OF PHILOSOPHY
Elton Cndido Ribeiro2
RESUMO:
Este artigo tem por objetivo analisar alguns dos problemas relacionados ao tema do ensino da filosofia no
confronto com o pensamento de Immanuel Kant. Assim, ser abordada, num primeiro momento, a problemtica
do ensino da filosofia em nossos dias. Destacar-se- a relevncia de um problema to antigo e to novo: aprender
filosofia ou aprender a filosofar? Ato contnuo, ser evocado o pensamento kantiano no que concerne educao
e ao ensino da filosofia. Ser dado destaque aos principais conceitos da pedagogia kantiana, como a necessidade
da educao, educao como arte, disciplina e moralidade. Tambm ser analisada a opinio de Kant, segundo a
qual no se pode aprender filosofia, mas, apenas, a filosofar. Por fim, algumas reflexes conclusivas tero o
interesse de lanar, a partir de Kant, algumas luzes para as questes do ensino filosfico.
Palavras-chave: Kant. Pedagogia. Educao. Ensino da Filosofia.
ABSTRACT:
This paper aims to analyze some of the problems related to the teaching philosophy issue in relation with Kants
thought. Thus, the teaching philosophy problem will be approached in a first moment. It will emphasize the
importance of a problem so old and so new: learning philosophy or learning to philosophize? Then, it will
remember the Kantian thought concerning to education and to teaching philosophy. It will emphasize the major
Kants pedagogy concepts, like the necessity of education, education as art, discipline and morality. It will either
analyze the Kants opinion according to that its not possible to learn philosophy, just learning to philosophize.
Lastly, it will make some conclusive reflections, with the goal of shedding lights on the teaching philosophy
questions.
Keywords: Kant. Pedagogy. Education. Teaching Philosophy.
Introduo
O tema do ensino da filosofia impe severas questes aos filsofos e educadores. De
maneira despretensiosa, prope-se, neste artigo, analisar alguns dos problemas relacionados a
esta temtica no confronto com o pensamento de Immanuel Kant. Sem a ambio doxogrfica
de reconstituir em mincias o pensamento kantiano sobre a educao e o ensino da filosofia,
este texto tem por finalidade, muito mais, analisar, com interesse filosfico, algumas de suas
reflexes a respeito da pedagogia mormente as que se encontram no opsculo Sobre a
1 Texto recebido em 15/05/13 e aprovado para publicao em 15/06/13. 2 Mestrando em Filosofia pela PUC-SP.
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Pedagogia e tambm aquelas que mais diretamente se relacionam ao ensino da filosofia e
educao para o pensar.
Por que Kant? Ao escolhermos Kant, colocamo-nos entre aqueles que querem
aprender a filosofar. O estudo de seu pensamento em nossos dias atingiu dimenses quase
industriais e o contato com ele importantssimo se quisermos compreender a identidade de
nosso prprio pensamento. Como j afirmou Perine (1987, p. 10), precisamos ler Kant hoje
se ns quisermos nos compreender, compreendendo aquele do qual vem a modernidade do
nosso pensamento, modernidade qual todos pertencemos mesmo quando nos levantamos
contra ela.
Deste modo, este artigo abordar, num primeiro momento, a problemtica do ensino
da filosofia em nossos dias. Destacar-se- a relevncia de um problema to antigo e to novo:
aprender filosofia ou aprender a filosofar? Ato contnuo, ser evocado o pensamento kantiano
no que concerne educao e ao ensino da filosofia. Assim, ser destacada a importante
relao entre educao e construo do ser humano, arte, disciplina e moralidade, bem como a
necessidade de um pensamento autnomo frente ao estabelecido, o que, bem entendido, no
significa um pensar ensimesmado, alheio tradio filosfica. Por fim, algumas reflexes
conclusivas tero o interesse de lanar, a partir de Kant, algumas luzes para as questes do
ensino filosfico.
1. Sobre o ensino da filosofia
O assunto ensinar filosofia, se avaliado com ateno, traz consigo trs problemticas
que dizem respeito a 1) a delimitao de um campo terico-textual, a que chamamos de
filosofia; 2) o reconhecimento de uma atividade singular, o filosofar; 3) a possibilidade de
iniciar outras pessoas neste campo terico e nesta atividade, a saber, a possibilidade de
ensinar filosofia e de ensinar a filosofar. Todavia, no difcil comprovar que, diferena
das cincias formalizadas, a filosofia no pode ser fixada num corpus prprio e as tentativas
de se encontrar um significado homogneo para o filosofar vez ou outra se revelam
infrutferas. Ademais, j que se pode falar, no de filosofia, mas de filosofias, com
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fundamento e mtodo prprios, pareceria mais adequado delegar estas duas questes a cada
uma delas para que dessem suas prprias respostas (CERLETTI, 2004).
Porm, se forem deixadas de lado as duas primeiras questes inelutavelmente
essenciais e se considerar o fato de que existe uma tradio filosfica, ainda que plural, bem
como o fato de que existem filsofos que exercem a atividade do filosofar, tocar-se-, ento,
num problema clssico do ensino da filosofia, para o qual acenou a terceira questo: como
auxiliar o no filsofo a se inserir no mundo da filosofia, no s se apropriando de certos
contedos, ditos filosficos, mas desenvolvendo um pensamento crtico, que possa ser
chamado de filosfico? Seria mais importante o estudo de certos cnones do saber
filosfico, textos consagrados, autores reconhecidos? Ou o acento deveria ser dado atitude
filosfica, ao desenvolvimento do modo filosfico de pensar? Mas seria possvel adquirir tal
atitude sem um contato profundo com a tradio filosfica? Numa pergunta: deve-se ensinar a
filosofia e/ou ensinar a filosofar?
As respostas so plurais. Como um pndulo, ora se deslocam para o eixo do contedo
filosfico ora para o eixo da atitude filosfica. Cerletti (2004), por exemplo, aponta para a
importncia da atitude filosfica que, num contexto relativamente isento de certos contedos
tcnicos, poderia fazer com que qualquer um chegasse a filosofar. Deste modo, a diferena
entre um especialista e um estudioso de filosofia sem maiores ambies seria quantitativa,
mas no qualitativa, porque um e outro teriam o essencial: a mesma atitude questionadora,
crtica e desconfiada do filosofar (2004, p. 27).
Severino (2003), por sua vez, mostra que a dimenso do ensino da filosofia tambm
importante enquanto mediao pedaggica do pensar filosfico. Claramente, no se trata de
uma transmisso de contedos, mas do desenvolvimento de um estilo de reflexo. Porm, o
desenvolvimento deste modo de pensar exige a presena de certos contedos curriculares que
constituiriam sua mediao. Certo, assevera Severino, no cabe mesmo fetichizar o
currculo, mas mediaes especficas precisam estar atuantes para que aprendamos a
filosofar (2003, p. 54).
Assim, conclui-se com Severino que o convvio com os filsofos seria um caminho
bvio para o filosofar. E se tal convvio no frutuoso na vida de certos estudantes, isto se
deveria no presena de um contedo filosfico, mas a uma postura equivocada diante da
histria da filosofia, o historicismo, um esquecimento de que o pensamento filosfico se fez
por mltiplas contribuies que se articulam no tempo histrico e no espao social
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(historicidade). Ao lado desse perigo, o autor aponta tambm o risco do textualismo, que
acontece quando a tarefa do resgate do pensamento dos filsofos se reduz exegese
estruturalista dos textos. Ambos so insuficientes e reducionistas pedagogicamente, e
acabam dificultando, ao invs de facilitar, o aprendizado amadurecido e formativo da
filosofia (SEVERINO, 2003, p. 56).
Na esteira desta postura mais conciliatria entre atitude filosfica e tradio,
Marcondes (2004) afirma no haver necessariamente um conflito entre estes dois momentos
do estudo da filosofia. Desde que a histria da filosofia seja vista como histria de problemas
que continuam atuais, com seus respectivos conceitos e argumentos, ela contribui
enormemente para o despertar da atitude filosfica. Deste modo, tanto a viso da filosofia
como busca a partir de nossas indagaes, quanto como histria da filosofia e conhecimento
das doutrinas da tradio, no necessariamente se excluem e podem servir de ponto de partida
para o ensino da filosofia (MARCONDES, 2004, p. 61). De modo semelhante, Jos (2004)
lembra que, se ensinar a filosofia e ensinar a filosofar forem entendidos em termos de
contedo e procedimento, a relao entre eles no de mtua excluso. Todavia, acrescenta
que se os entendemos como duas atitudes frente verdade filosfica, uma dogmtica, outra
histrica e relacional, no h conciliao entre eles.
Algumas consideraes devem ser feitas a partir disso. Primeiro, a relao entre o
ensinar a filosofia e o ensinar a filosofar no necessariamente exclusiva. Ela pode ser
inclusiva, desde que o estudo da histria da filosofia seja filosfico, ou seja, sirva de
mediao pedaggica para o despertar do pensamento filosfico. Mas foroso admitir que a
linha entre a compreenso da historicidade dos textos e o historicismo propriamente dito , em
certos casos, muito tnue. A leitura de um texto filosfico sempre cercada de muitos
cuidados. No possvel compreender um escrito dessa natureza sem fazer ampla referncia
ao pensamento geral do autor, seu contexto histrico e social, os principais problemas e
conceitos de seu itinerrio filosfico. Assim, o docente se encontra numa espcie de corda
bamba, estando a um passo tanto da possibilidade do despertar do filosofar com a mediao
do texto quanto do seu contrrio, o eruditismo e o dogmatismo filosfico a falsa crena de
que uma verdade histrica possa ter se tornado definitiva.
Segundo, quem tomar a deciso sobre qual das duas atividades supracitadas dever
receber determinada nfase a pessoa que, concretamente, encontra-se diante do duplo
desafio de ensinar a filosofia e o filosofar: o professor. E a prtica , a fortiori, terreno bem
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mais escorregadio do que a teoria. A oscilao entre estas duas instncias est tambm
presente nas salas de aula onde se trabalha com a filosofia. H aqueles que enfatizam bastante
a atitude filosfica, o pensamento crtico, com a boa inteno de atrair, sobretudo, os que no
escolheram a filosofia, mas tm de passar por ela de alguma forma. Assim, uma excessiva
discusso sem devido embasamento na histria da filosofia acaba encerrando a todos num
nvel que Plato chamara de doxogrfico (conhecimento de opinio), no chegando nunca ao
nvel propriamente filosfico.
H, por outro lado, os que enfatizam demasiadamente a tradio filosfica, qui para
agradar queles que desejam se tornar especialistas no assunto. O aprendizado se reduz, ento,
apreenso de conceitos de vrios sistemas filosficos, dos quais o estudante dificilmente
percebe a unidade e a coerncia internas. So respostas para perguntas que foram esquecidas.
Diante dessa confuso, ganha destaque o professor que consegue simplificar as questes,
que desce ao nvel dos alunos, oferecendo uma verso escolarizada do saber filosfico. Um
exemplo clssico a tica kantiana:
Com o tempo, desenvolveu-se uma verso escolarizada que d conta, de uma
maneira muito simplificada, da postura kantiana a respeito da questo moral. Agora,
encontrar os nexos desse produto didtico com as ideias filosficas centrais da
Fundamentao da metafsica dos costumes ou da Crtica da razo prtica um
verdadeiro desafio (o professor transmitiu a filosofia kantiana? Ensinou a filosofar
como o fazia Kant? O aluno aprendeu a filosofar kantianamente sobre a questo
moral? S incorporou informao? Enfim, aprendeu algo?). Em sntese, e em um
sentido geral, como podemos medir o grau de distoro de um conhecimento,
quando escolarizado? Quando que ele deixa de ser o que era em sua origem?
(CERLETTI, 2004, p. 26).
Esta ponderao sobre o ensino da tica kantiana oportuna para fazer, agora, uma
aproximao ao pensamento pedaggico do filsofo de Knigsberg. Assim, depois do
confronto com estes problemas relacionados ao ensino da filosofia, til indagar: qual a
compreenso que este filsofo tem de educao e, em particular, do ensino da filosofia?
Tambm ele confrontou-se com a relao entre o ensino da filosofia e do filosofar? Como a
concebeu: inclusiva ou exclusivamente? Que luzes sua reflexo pode lanar sobre os desafios
aqui levantados?
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2. O olhar do filsofo de Knigsberg
Antes de se fazer a devida aproximao do conceito kantiano de educao, so
necessrias duas observaes. A primeira diz respeito a um opsculo que contm suas
prelees sobre pedagogia, ber Pdagogik, do qual se dispe de uma traduo intitulada
Sobre a Pedagogia. Embora possam ser encontrados elementos de pedagogia em diversas
obras kantianas, este livro parece sintetizar o que o filsofo compreende por educao.
preciso dizer que Kant nunca escreveu um tratado sistemtico de pedagogia. Conforme relata
Philonenko (1966), Sobre a Pedagogia resultado das prelees que Kant realizou na
Universidade de Knigsberg, respectivamente, no semestre de inverno de 1776-1777, no
semestre de vero de 1780, no semestre de inverno de 1783-1784 e, finalmente, no semestre
de inverno de 1786-1787. As aulas consistiam em comentrios ao texto-base dos cursos
primeiramente, o Methodenbuch de Basedow e, depois, o Manual de Educao de Samuel
Bock. Ao fim de sua carreira, Kant houve por bem remeter as notas desses cursos a um
discpulo seu, Friedrich Theodor Rink (1770-1821), para que selecionasse o que acreditasse
ser mais til ao pblico. Embora no se saiba como Rink tenha compreendido sua tarefa de
editor, presume-se que a ordem dos captulos e os nomes dos ttulos (Introduo, Sobre a
Educao Fsica, Sobre a Educao Prtica) so trabalho seu.
A segunda observao relaciona-se influncia de outro filsofo sobre o pensamento
pedaggico de Immanuel Kant: Jean-Jacques Rousseau e sua obra, o Emlio. O rico
anedotrio kantiano conta que apenas duas coisas fizeram com que o relgio de Knigsberg
faltasse ao seu passeio vespertino: a leitura do Emlio e a Revoluo Francesa (PERINE,
1987, p. 12). Anedota ou no, o fato que Rousseau exerceu visvel influncia em seu
pensamento pedaggico. Dois aspectos, em particular, merecem destaque: a crtica ao
intelectualismo pedaggico reinante na poca e o conceito de infncia. Rousseau criticara
tanto o mtodo de memorizao e o raciocnio a partir de conceitos abstratos alheios ao
mundo das crianas quanto o tratamento inadequado dado a elas, mostrando que as crianas
aprendem inicialmente pelos sentidos e depois desenvolvem o pensamento abstrato3.
3 Na verdade, faltava ao incio do sculo XVIII o senso da infncia (PHILONENKO, 1966, p. 17). As crianas
eram retratadas como homens pequenos. Rousseau, dentre outras coisas, teve o mrito de mostrar que a infncia
tem suas maneiras prprias de pensar, querer e sentir e, por conseguinte, que o mtodo educativo tem de se
adaptar peculiaridade de seu mundo.
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Denunciando a maneira como a sociedade adulta corrompia as crianas, impondo-lhes vcios
e maus costumes, preconizava uma espcie de educao negativa que as protegesse o mximo
possvel de tal influncia perniciosa (DALBOSCO, 2011).
Feitos estes esclarecimentos preliminares, ser visto, ento, como se articulam a
pedagogia kantiana e sua compreenso da educao.
2.1 Kant e a pedagogia
Na introduo da obra Sobre a pedagogia, Kant comea afirmando que o homem a
nica criatura que precisa ser educada. (KANT, 2011, p. 11). Em seguida, acrescenta o que
entende por educao: o cuidado de sua infncia (a conservao, o trato), a disciplina e a
instruo com a formao. Esta indicativa inicial pode ajudar a compreender os diversos
aspectos do conceito kantiano de educao.
2.1.1 Educao e construo do ser humano
Ao dizer que o homem a nica criatura que precisa ser educada, Kant j oferece uma
definio do ser humano. Conforme indica Perine (1987), o alemo tem duas palavras para
expressar necessidade: sollen, que indica obrigao prtica, do interesse da razo, e o verbo
mssen, que indica necessidade metafsica. Kant serve-se deste ltimo vocbulo para falar da
necessidade da educao.
Deste modo, a definio do homem apresentada por Kant de um ser que
metafisicamente tem necessidade da educao, ou seja, precisa dela para se realizar como ser
humano. Diz Kant (2011, p. 15) que o homem no pode se tornar um verdadeiro homem
seno pela educao. Ele aquilo que a educao faz dele. Ele traz consigo potencialidades
insondveis. Se um ser de natureza superior tomasse cuidado de nossa educao, ver-se-ia,
ento, o que poderamos nos tornar (2011, p. 15). Mas somos educados por outros seres
humanos, que tambm trazem consigo suas imperfeies. Isto, porm, no desabona o ideal
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da educao, que nobre, mas de modo nenhum uma quimera. Com efeito, o conceito de
perfeio no se encontra na experincia. Para que uma ideia seja verdadeira, porm, basta
que a realidade que ela vislumbra seja autntica e que os obstculos para concretiz-la no
sejam absolutamente impossveis. E a ideia de uma educao que desenvolva no homem
todas as suas disposies naturais verdadeira absolutamente. (2011, p. 17).
H, assim, muitas disposies naturais que devem ser desenvolvidas para que o
homem atinja seu fim. Ao contrrio dos animais, que cumprem sua finalidade espontnea e
inconscientemente, o homem precisa da educao para se realizar como tal (KANT, 2011).
2.1.2 Educao como arte
A educao, tal como o homem que a criou e que dela depende, tambm est sempre
em processo de aperfeioamento, mediante acumulao de experincias ao longo do tempo.
Kant afirma (2011, p. 16) que talvez a educao se torne sempre melhor e cada uma das
geraes futuras d um passo a mais em direo ao aperfeioamento da humanidade. Por
conta disso, educao no cincia no sentido kantiano mas arte, uma vez que sua
prtica necessita ser aperfeioada por vrias geraes. (2011, p. 19).
Deste modo, cada gerao transmite suas experincias na arte de educar s geraes
seguintes que, por sua vez, tambm aperfeioaro estas experincias e deixaro seu legado s
geraes posteriores. Justamente pelo seu carter experimental, a educao considerada,
com razo, como o maior e o mais rduo problema que pode ser proposto aos homens
(KANT, 2011, p. 20). No obstante esta dificuldade, no h outro caminho seno o da
experimentao. No possvel estabelecer uma teoria pedaggica a partir da simples razo:
Cr-se geralmente que no preciso fazer experincia em assuntos educacionais e
que se pode julgar com a razo se uma coisa ser boa ou m. Quanto a isso se erra
muito e a experincia nos ensina que nossas tentativas produziram, de fato,
resultados opostos queles que espervamos. V-se, pois, que, sendo nesse assunto
necessria a experincia, nenhuma gerao pode criar um modelo completo de
educao (KANT, 2011, p. 29).
Estas palavras podem causar estranheza. Por que razo o pai do criticismo filosfico
defenderia um empirismo pedaggico? Segundo Philonenko (1966), h uma razo metafsica
para tal escolha de Kant: a liberdade humana. Ora, afirmar que o homem livre significa
dizer que ele no redutvel ao mundo das coisas nem pode ser objeto da cincia ou do
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conhecimento. Assim, os objetos do mundo, de essncia determinada, podem ser abarcados
por um entendimento a priori. Mas, tratando-se do ser humano, sua essncia no poderia
determinar a priori sua existncia ou o postulado da liberdade cairia por terra. Por essa
razo a educao arte e no cincia.
Isso no quer dizer que as experincias educativas se deem de maneira arbitrria. Kant
afirma que a arte da educao no pode ser apenas mecnica (desordenada), mas deve ser
raciocinada e, neste sentido peculiar, cincia: preciso colocar a cincia em lugar do
mecanicismo, no que tange arte da educao; de outro modo, esta jamais se tornar um
esforo coerente; e uma gerao poderia destruir tudo o que outra anterior tivesse edificado
(KANT, 2011, p. 21-22).
2.1.3 Educao e disciplina
Outra grande caracterstica do conceito kantiano de educao o valor da disciplina. A
disciplina a parte negativa da educao. Negativa porque traz a ideia de restrio, negao.
ela que conteria certa selvageria instintiva, transformando a animalidade em humanidade.
Para Kant, a razo principal das crianas frequentarem a escola, a princpio, no seria a
aquisio de conhecimentos, mas o aprendizado da disciplina. A falta de cultura pode ser
remediada mais tarde. Mas dificilmente o ser a falta de disciplina. ela o que impede o
homem de desviar-se de seu destino, de desviar-se da humanidade, por meio de suas
inclinaes animais. (KANT, 2011, p. 12).
A nfase no conceito de disciplina denuncia que h, no homem, certa tendncia
selvageria e acena para um problema desafiante no pensamento de Kant: a questo do mal4. O
homem traz consigo certa propenso para o bem, mas tambm para o mal. O objetivo ltimo
da educao ser, pois, a moralidade.
2.1.4 Educao e o cuidado da moralidade
Os efeitos da educao so a disciplina (domnio dos instintos), cultura (habilidades e
instruo) e civilidade (aptido para a vida em sociedade). Mas o vrtice da educao, para
4 Uma abordagem interessante desta questo encontra-se em Pavo (2011).
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Kant, a moralidade: no basta que o homem seja capaz de toda sorte de fins; convm
tambm que ele consiga a disposio de escolher apenas os bons fins (KANT, 2011, p. 26).
A educao deve, portanto, ajudar o homem a desenvolver suas disposies para o
bem. Muito mais do que mera aquisio de conhecimentos, a educao est intimamente
unida ao processo de formao do ser humano como ser tico que deve se tornar digno da
felicidade: tornar-se melhor, educar-se e, quando se mau, produzir em si a moralidade: eis
o dever do homem (KANT, 2011, p.19).
O processo educativo estaria incompleto apenas com disciplina, cultura e civilizao.
A realizao plena do ser humano, sua felicidade, s se dar com o desenvolvimento da
verdadeira moralidade. De fato, como poderamos tornar os homens felizes se no os
tornamos morais e sbios? (KANT, 2011, p. 28).
Kant, em suma, apresenta a educao como uma arte, que precisa ser racionalmente
aperfeioada, j que necessria para que o homem se construa como tal necessidade esta
que no contingente, mas que se encontra na ordem do essencial. Atravs da educao, o
homem disciplina paulatinamente sua propenso animalidade, aprende a viver em sociedade
e a escolher os bons fins, desenvolvendo a moralidade e tornando-se digno da felicidade.
2.2 Kant e o ensino da filosofia
Ato contnuo, falta examinar a atitude que Kant assumiu frente ao ensino da filosofia e
ao pensar filosfico. Ainda que com uma tmida compreenso do conceito kantiano de
educao, talvez se esteja em condies de avaliar, agora, afirmaes concernentes ao
pensamento crtico, autonomia do pensar e ao aprender filosofia ou a filosofar.
sabido que Kant deu nfase ao aprender a filosofar. Veja-se, por exemplo, o seguinte
trecho da Crtica da Razo Pura:
[...] aquele que propriamente aprendeu um sistema de filosofia, o wolffiano, por
exemplo, nada mais possui do que um conhecimento histrico completo da filosofia
wolffiana, mesmo que tenha presente na mente e possa contar nos dedos todos os
princpios, explicaes e provas junto com a diviso de todo o sistema; ele s sabe e
julga quanto lhe foi dado. Contestai-lhe uma definio e j no sabe de onde deve
tirar outra. Formou-se segundo uma razo alheia, mas a faculdade imitativa no a
faculdade produtiva, ou seja, o conhecimento no se lhe originou a partir da razo;
embora, verdade, se trate objetivamente de um conhecimento racional,
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subjetivamente no passa de um conhecimento histrico. Compreendeu e guardou
bem, isto , aprendeu bem, constituindo-se numa cpia de gesso de um ser humano
vivo. (KANT, 1986, p. 236-237, grifos do autor).
Kant, mais adiante, complementa: Dentre todas as cincias racionais (a priori),
portanto, s possvel aprender Matemtica, mas jamais Filosofia (a no ser historicamente);
no que tange razo, o mximo que se pode aprender a filosofar. (KANT, 1986, p. 237,
grifo do autor).
Destas duas passagens, depreende-se que o conhecimento de um determinado sistema
de filosofia meramente conhecimento histrico. No porque se aprenderam determinados
conceitos filosficos que, por conseguinte, aprendeu-se a filosofar. Kant mostra a diferena
entre a imitao e a produo da filosofia. E, entre reproduo e produo, o filsofo de
Knigsberg fica com a ltima. No se aprende filosofia, mas a filosofar.
Esta postura do filsofo reflete bem a mentalidade do Iluminismo, da qual devedor.
Este preconizava, como o prprio Kant o definiu (2005), a coragem de usar o prprio
entendimento e pensar por si mesmo: Sapere aude! Tem coragem de fazer uso de teu prprio
entendimento, tal o lema do esclarecimento (KANT, 2005, p. 63-64). O iluminismo
pregava a superao da menoridade a incapacidade de servir-se do prprio intelecto sem a
direo de outrem qual o homem se submete por comodismo ou covardia:
to cmodo ser menor. Se tenho um livro que faz as vezes de meu entendimento,
um diretor espiritual que por mim tem conscincia, um mtodo que por mim decide
a respeito de minha dieta, etc., ento no preciso de esforar-me eu mesmo. No
tenho necessidade de pensar, quando posso simplesmente pagar; outros se
encarregaro em meu lugar dos negcios desagradveis. A imensa maioria da
humanidade (inclusive todo o belo sexo) considera a passagem maioridade difcil e
alm do mais perigosa, porque aqueles tutores de bom grado tomaram a seu cargo a
superviso dela. (KANT, 2005, p. 64).
Kant faz distino entre uso pblico e uso privado da razo. O uso privado da razo
seria o uso que o intelectual dela faz enquanto exerce determinado cargo pblico ou funo.
Clrigos, funcionrios do Estado, militares, etc., no exerccio de sua funo, no se arvoraro
a pensarem por si mesmos, mas simplesmente obedecero. Porm, no uso pblico de sua
razo ou seja, fora de suas funes o intelectual tem o direito de discutir quaisquer
assuntos e formar sua opinio a respeito deles (KANT, 2005).
Fica claro, portanto, que Kant aplica esse mesmo princpio da autonomia do
pensamento ao ensino da filosofia. Apenas reproduzir o que outros filsofos disseram no
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significa superao da maioridade. No basta apenas pensar o que os outros pensaram.
preciso ter a coragem de se servir do prprio pensamento e dar respostas prprias s perguntas
e inquietaes que a filosofia traz.
Se a nfase deve ser dada atitude filosfica, qual mtodo seria mais adequado para
despert-la no estudioso? Ora, para que o estudante de filosofia chegue autonomia de
pensamento e aprenda a filosofar, o professor no pode reduzir suas aulas mera exposio
de um contedo j pronto, mas deve suscitar o dilogo com ele prprio, atravs de perguntas
oportunas, num mtodo que Kant chama de erottico:
Este mtodo erottico , por seu turno, dividido no mtodo do dilogo e naquele da
catequese, em funo do mestre dirigir suas questes razo do aluno ou
simplesmente memria deste, pois se o mestre quer questionar a razo de seu
aluno, precisa faz-lo num dilogo no qual mestre e aluno se dirigem perguntas cada
um por seu turno. O mestre, atravs de suas perguntas, norteia o curso de
pensamento do seu jovem aluno, meramente lhe apresentando casos em que sua
predisposio para certos conceitos se desenvolver (o mestre a parteira das ideias
do aluno). O aluno, que assim compreende que ele prprio capaz de pensar, reage
mediante questes suas em torno de obscuridades nas proposies admitidas ou
acerca de suas dvidas relativas a elas, proporcionando assim ensejos para que o
prprio mestre aprenda a interrogar habilmente, conforme o dito docendo discimus
(KANT, 2003, p. 320, grifos do autor).
Assim, o mtodo de ensino filosfico proposto por Kant, ao menos em princpio, no
outra coisa seno o mtodo socrtico da maiutica, onde o professor deve fazer a verdade vir
luz mediante perguntas e questionamentos oportunos. E o prprio professor, atravs dessa
prtica, tambm vai se desenvolvendo em seu conhecimento e esmerando-se na arte de
perguntar.
Kant rejeitaria por completo qualquer tentativa, no ensino do filosofar, de inserir
tambm o estudo da histria da filosofia? Embora no exista resposta direta a esta pergunta, ,
contudo, lcito supor que no. No famoso pargrafo 40 da Crtica do Juzo, Kant (2010)
enumera trs princpios do entendimento humano comum:
a) o pensar por si mesmo (autonomia), que livre de preconceitos (heteronomia);
b) o pensar colocando-se no lugar do outro, necessrio para alargar o prprio
horizonte;
c) o pensar consequente ou pensar sempre de acordo consigo prprio.
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No primeiro e ltimo princpios, percebe-se a nfase na autonomia do pensar e em sua
coerncia interna. Mas, no segundo, v-se que pensar a partir do pensamento do outro j
pensar. Esta seria uma das exigncias do pensamento crtico para ampliar o horizonte do
prprio pensamento. Um pensar que no tomou contato com o mundo de outrem seria um
pensar ensimesmado, de perspectiva tacanha e horizonte limitado. Por isso, no h mal
nenhum em pensar o que outros pensaram, desde que isso, evidentemente, no sirva como
desculpa para a menoridade, mas ajude a ampliar horizontes.
Kant, portanto, percebe que, no ensino da filosofia, deve-se dar nfase atitude
filosfica, j que s possvel aprender a filosofar e, por sua vez, aprender filosofia apenas
num sentido histrico. Por isso, no processo de ensino-aprendizagem, o professor se servir
do mtodo erottico, feito de perguntas e respostas, para auxiliar os alunos a conquistarem a
autonomia do pensar. Este objetivo ltimo, porm, no exclui a aproximao da tradio
filosfica, j que o contato com o pensamento do outro necessrio para ampliar o prprio
horizonte o que radicalmente diferente da atitude de menoridade combatida
veementemente pelo filsofo.
Consideraes finais
Procurou-se, neste breve itinerrio, examinar algumas dificuldades no ensino da
filosofia e tomar contato com as contribuies pedaggicas de Immanuel Kant. Agora, a
modo de concluso, deseja-se explicitar algumas luzes que o pensamento kantiano pode
lanar sobre as questes levantadas no incio deste artigo. Longe de serem respostas prontas
para o docente de filosofia, elas so indicativas de um possvel caminho a ser percorrido:
1) Educao, arte e filosofia. Como se viu acima, Kant preferiu conceber a educao no
como cincia em sentido estrito, mas como arte, uma vez que ela trata de um ser livre. O
desenvolvimento desta arte se dar, pois, pela acumulao de experincias, que depois
sero refletidas e organizadas. A perspectiva kantiana , por conseguinte, bastante
realista: quando se trata de educao, no existem receitas ou respostas prontas, a serem
formuladas de antemo pela pura razo. A experincia no pode ser desvalorizada. Por
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isso, o professor de filosofia dever tomar conhecimento das prticas de outrem e refletir
tambm sobre sua prpria prtica docente. sinal de esperana, neste sentido, o
crescimento relativamente recente da filosofia do ensino da filosofia, que expressa a
preocupao dos educadores em filosofia de refletirem a prpria prtica do ponto de
vista pedaggico e propriamente filosfico;
2) Educao, moralidade e filosofia. Kant mostra que a filosofia deve dar sentido a toda
realidade, inclusive s nossas aes e escolhas. Ela , pois, um caminho formativo, muito
mais amplo do que certa interpretao cognitivista do filosofar poderia supor. A filosofia
deve ajudar o amante do saber a discernir entre os fins e escolher os bons, desenvolvendo
toda sua potencialidade para o agir moral. E como as aes morais no dizem respeito
apenas ao mbito individual, mas repercutem na sociedade, a filosofia, ao oportunizar tal
itinerrio formativo, tem tambm uma funo social5.
3) Aprender a filosofar sem superestimar a histria da filosofia nem desvaloriz-la.
evidente a nfase que Kant d autonomia do pensamento e possibilidade de se
aprender a filosofar, mas no aprender filosofia (a no ser no sentido histrico).
Costuma-se contrapor Kant a Hegel, o primeiro como representante do aprender a
filosofar e o segundo do aprender filosofia6. Sem entrar no mrito desta questo,
inegvel, todavia, que, na perspectiva kantiana, o mtodo dialgico (erottico) ser
mais valorizado para ajudar o aprendiz a pensar por si mesmo. Entretanto, viu-se que o
pensamento crtico tambm tem como fase importante o pensar a partir do outro e
isso s possvel tomando-se contato com o pensamento filosfico historicamente
constitudo.
5 Franklin Leopoldo e Silva (1996) mostra que a discusso sobre a funo social do filsofo espinhosa. Deve-se
confessar que ela escapa ao escopo deste artigo. s vezes, vale dizer, o filsofo no quer se sujeitar a nenhuma
outra finalidade que no seja a contemplao da verdade. Todavia, conforme aponta Leopoldo e Silva no mito da
caverna, o filsofo paulatinamente vai se libertando de sua priso que representa o mundo das coisas sensveis
para contemplar a verdade ideal. Mas retorna, depois, caverna, para tentar convencer os outros a fazer o
mesmo processo. E se j atingiu a contemplao da luz, por que retornar? O retorno, certamente, no natural,
mas, de alguma forma, est incluso na tarefa da filosofia enquanto contemplao da verdade. Assim, a
contemplao no deixa de ser a funo do filsofo, mas esta est temperada com outra, uma vez que o filsofo
um homem entre homens. Ele aquele que contempla, mas tambm o guardio da cidade, o que conduz os
homens justia e autonomia espiritual. 6 Veja-se, por exemplo, a abordagem de Ramos (2007), onde Kant e Hegel so apresentados como paradigmas
do aprender a filosofar e do aprender filosofia.
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Este breve itinerrio quis trazer baila o conceito kantiano de educao e sua
compreenso do ensino da filosofia. Ter sido bem sucedido se contribuir de alguma forma
para que o leitor amante da filosofia, aluno ou professor no se esquea de que,
verdadeiramente, o que se aprende mesmo no a filosofia, mas o filosofar. Talvez esta luz
que emanou da antiga Knigsberg h mais de dois sculos possa ainda iluminar a prtica dos
que aprendem e tentam ensinar, em meio s mazelas e aflies humanas, o amor pela verdade.
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