anpof xv3 - filosofia alema- de kant a hegel

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  • Nota preliminar Estes livros so o resultado de um trabalho conjunto das gestes 2011/12 e 2012/3 da ANPOF e contaram com a colaborao dos Coordenadores dos Programas de Ps-Graduao filiados ANPOF e dos Coordenadores de GTs da ANPOF, respon-sveis pela seleo dos trabalhos. Tambm colaboraram na preparao do material para publicao os pesquisadores Andr Penteado e Fernando Lopes de Aquino. ANPOF Gesto 2011/12Vinicius de Figueiredo (UFPR)Edgar da Rocha Marques (UFRJ)Telma de Souza Birchal (UFMG)Bento Prado de Almeida Neto (UFSCAR)Maria Aparecida de Paiva Montenegro (UFC)Darlei DallAgnol (UFSC) Daniel Omar Perez (PUC/PR) Marcelo de Carvalho (UNIFESP) ANPOF Gesto 2013/14Marcelo Carvalho (UNIFESP)Adriano N. Brito (UNISINOS)Ethel Rocha (UFRJ)Gabriel Pancera (UFMG)Hlder Carvalho (UFPI)Lia Levy (UFRGS)rico Andrade (UFPE)Delamar V. Dutra (UFSC)

    F487 Filosofia alem de Kant a Hegel / Organizao de Marcelo Carvalho, Vinicius Figueiredo. So Paulo : ANPOF, 2013. 742 p.

    Bibliografia

    ISBN 978-85-88072-14-5

    1. Filosofia alem 2. Kant a Hegel 3. Filosofia

    - Histria I. Carvalho, Marcelo II. Figueiredo, Vinicius III. Encontro Nacional ANPOF CDD 100

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)

  • 3Apresentao

    Apresentao

    Vinicius de FigueiredoMarcelo Carvalho

    A publicao dos Livros da ANPOF resultou da ideia, que pautou o progra-ma da Diretoria da ANPOF em 2011 e 2012, de promover maior divulgao da produo filosfica nacional.

    Esse intuito, por sua vez, funda-se na convico de que a comunidade filo-sfica nacional, que vem passando por um significativo processo de ampliao em todas as regies do pas, deseja e merece conhecer-se melhor. O aparecimento da primeira srie de Livros da ANPOF junta-se a outras iniciativas nesta direo, como a criao de uma seo voltada para resenhas de livros de filosofia publicados no Brasil ou no exterior que possuam repercusso entre ns, assim como da moder-nizao (ainda em curso) da pgina da ANPOF, para que ela permanea cumprindo a contento a funo de divulgar concursos, congressos, trabalhos, livros e fatos de relevncia para a comunidade. Essas iniciativas s sero consolidadas, caso o esp-rito que as anima for encampado por mais de uma gesto, alm, claro, do interes-se da prpria comunidade em conhecer-se melhor. A estreita cooperao entre as duas gestes a de 2011-2012 e a de 2013-2014 faz crer que a iniciativa lograr sucesso. Bem rente consolidao da filosofia no Brasil, em um momento em que fala-se muito em avaliao, o processo de autoconhecimento cumpre funo indis-pensvel: ele , primeiramente, autoavaliao.

    Os textos que o leitor tem em mos foram o resultado de parte significativa dos trabalhos apresentados no XV Encontro Nacional da ANPOF, realizado entre 22 e 26 de outubro de 2013 em Curitiba. Sua seleo foi realizada pelos coordenadores dos Grupos de Trabalho e pelos coordenadores dos Programas Associados a ANPOF. A funo exercida por eles torna-se, assim, parte do processo de autoconhecimento da comunidade.

  • 4 Apresentao

    Alm desse aspecto, h tambm outros a serem assinalados nesta apresenta-o. O ndice dos volumes possibilitar que pesquisadores descubram no trabalho de colegas at ento ignorados novos interlocutores, produzindo o resultado esperado de novas interlocues, essenciais para a cooperao entre as instituies a que per-tencem. Tambm deve-se apontar que essa iniciativa possui um importante sentido de documentao acerca do que estamos fazendo em filosofia neste momento.

    Nesta direo, a consulta dos Livros da ANPOF abre-se para um interessante leque de consideraes. perceptvel a concentrao dos trabalhos apresentados nas reas de Filosofia Moderna e de Filosofia Contempornea. Caber reflexo so-bre a trajetria da consolidao da filosofia no Brasil comentar esse fenmeno, exa-minando suas razes e implicaes. Como se trata de um processo muito dinmico, nada melhor do que a continuidade dessa iniciativa para medir as transformaes que seguramente esto por vir.

    Cabe, por fim, agradecer ao principal sujeito dessa iniciativa isto , a todos aqueles que, enfrentando os desafios de uma publicao aberta como essa, apresen-taram o resultado de suas pesquisas e responderam pelo envio dos textos. Nossa parte esta: apresentar nossa contribuio para debate, crtica e interlocuo.

  • 5Sumrio

    Filosofia Alem: de Kant a Hegel

    ADRIANO BUENO KURLE (PUC-RS)O conceito de eu na Crtica da Razo Pura .....................................................................................9AGEMIR BAVARESCO (GT Hegel)Metodologia Hegeliana, Articulaes e Estratgias de Robert Brandom ..................23AGOSTINHO DE FREITAS MEIRELLES (GT Criticismo e Semntica)Crtica e metafsica na concepo kantiana de histria (1790-1797) ............................41ANDR ASSI BARRETO (GT Kant)Teleologia e conhecimento: a questo das ideias no Apndice dialtica transcendental da Crtica da Razo Pura ......................................................................................49ANTONIO DJALMA BRAGA JUNIOR (GT Kant)A Contemplao esttica do Belo e a dissoluo do conflito entre Liberdade e Natureza ..................................................................................................................................57BRUNO AISL GONALVES DOS SANTOS (UFSC)O estatuto dos direitos na teoria utilitarista de MiIll .........................................................67CESAR AUGUSTO RAMOS (GT Hegel)Liberdade, reconhecimento e no-dominao no republicanismo de Hegel................81DANILLO LEITE (GT Kant)A presena do esquematismo na Deduo Transcendental das Categorias .............. 101DANILO FERNANDO MINER DE OLIVEIRA (UNIOESTE)Kant e o conceito de espao: uma anlise da dissertao de 1770 ................................. 107DEyVE REDySON (UFMG)Schopenhauer e o Budismo ..................................................................................................................... 115DISON MARTINHO DA SILVA DIFANTE (UFSM)A Fundamentao da Moralidade e a Doutrina do Sumo Bem em Kant ........................ 137EDNILSON GOMES MATIAS (UFC)O princpio metafsico da dinmica na filosofia kantiana da natureza ..................... 145EDUARDO RIBEIRO DA FONSECA (GT Schopenhauer)Schopenhauer e os vnculos entre desejo, intuio e racionalidade ........................... 151EMANUELE TREDANARO (PPGLM-UFRJ)Autocoscienza e libert in Kant. Alcune osservazioni a partire dallIo penso ...... 159Erick Calheiros de Lima (GT Hegel)A linguagem do pensamento e o pensamento da linguagem: reflexes sobre a concepo de linguagem em Hegel............................................................ 171

  • 6 Sumrio

    ETHEL PANITSA BELUzzI (GT Estudos Cartesianos)A Crtica de Kant ao Idealismo de Descartes ............................................................................. 187FBIO BELTRAMI (GT Kant)A relao felicidade e moralidade em Kant ............................................................................... 193FEDERICO SANGUINETTI (GT Hegel)Mente y mundo. La teora hegeliana de la sensacin ............................................................ 213FELIPE DOS SANTOS DURANTE (GT Schopenhauer)A formulao das doutrinas do Estado e do Direito elaboradas pelo jovem Schopenhauer: extenso, limites e mudanas em relao publicao de sua obra magna ......................................................................................................... 223GEFFERSON SILVA DA SILVEIRA (GT Kant)Acerca do papel da boa vontade na fundamentao da moralidade em Kant .......... 233GREICE ANE BARBIERI (UFRGS)As apresentaes do conceito de Famlia na Fenomenologia do Esprito e na Filosofia do Direito ......................................................................................................................... 243HLwARO CARVALHO FREIRE (UFC)A funo da sntese na primeira edio da Crtica da razo pura ................................. 251JAIR BARBOzA (GT Schopenhauer)Sabedoria de vida e praxis em Schopenhauer ou sobre uma possvel esquerda schopenhaueriana ................................................................................................................ 263JOO GERALDO MARTINS DA CUNHA (GT Kant)Da Metodologia Doutrina-da-cincia: Fichte leitor de Kant ....................................... 273JOS LUIz BORGES HORTA (GT Hegel)A subverso do fim da Histria e a falcia do fim do Estado: Notas para uma filosofia do tempo presente ...................................................................................................... 287JOS OSCAR DE ALMEIDA MARqUES (GT Criticismo e Semntica)Sntese e Representao na Deduo Transcendental ......................................................... 297JOS PEDRO LUCHI (GT Filosofia da Religio)A Comunidade de F em Kant, no entrecruzamento das vises filosfica e teolgica ...................................................................................................................................................... 309JOS PINHEIRO PERTILLE (GT Hegel)O saber absoluto na Fenomenologia do Esprito de Hegel ............................................. 323JLIA SEBBA RAMALHO (GT Hegel)O conceito de sujeito e o problema da relao mente-corpo na Filosofia do Esprito Subjetivo de Hegel .......................................................................................................... 331LEANDRO A. XITIUK wESAN (GT Dialtica)A lgica especulativa segundo a Enciclopdia de Hegel...................................................... 343

  • 7Sumrio

    LETCIA MACHADO SPINELLI (UFRGS)Kant e a noo de ordem moral dos mbiles ............................................................................ 361LINCOLN MENEzES DE FRANA (UFSCAR)Hegel leitor de Aristteles: a Ideia que a Si retorna, o motor imvel, o movimento circular e teleologia .................................................................................................. 375LUCIANO CARLOS UTTEICH (GT Dialtica)O Fim do Estatuto Transcendental da Razo? Confronto Fichte vs Schelling ..... 383LUIz FERNANDO BARRRE MARTIN (GT Hegel)Relao entre a contradio e o finito na Cincia da Lgica ........................................... 403MANUEL MOREIRA DA SILVA (GT Hegel)Sobre a insuficincia da noo hegeliana do ser e suas consequncias na determinao do conceito puro enquanto a verdade do ser e da essncia ou como o ser verdadeiro ................................................................................................... 411MARA JULIANE wOICIECHOSKI HELFENSTEIN (UFRGS)Algumas consideraes sobre a fundamentao moral do direito na filosofia de Kant .................................................................................................................................. 431MRCIA CRISTINA FERREIRA GONALVES (GT Hegel)Sobre a possibilidade da unificao entre filosofia e poesia no sistema de Hegel ........441MARCIA zEBINA ARAUJO DA SILVA (GT Hegel)Natureza e histria em Hegel .............................................................................................................. 455MARCO VINCIUS DE SIqUEIRA CRTES (GT Kant)Origem do sujeito transcendental kantiano ............................................................................. 465MARCOS CSAR SENEDA (GT Kant)O estado da questo da exposio metafsica do conceito de espao na Dissertao de 1770 ............................................................................................................................ 481MARCOS FBIO ALEXANDRE NICOLAU (UFC)A Fenomenologia do Esprito como uma pedagogia do caminho ....................................... 493MARIA CECLIA PEDREIRA DE ALMEIDA (GT Filosofia e Direito)Impasses do Estado moderno de direito ......................................................................................... 505Maria Margarida Faverzani Kirchhof (GT Kant)O mtodo analtico em Kant ................................................................................................................. 517MARLy CARVALHO SOARES (GT Hegel)A estrutura psicolgica do esprito segundo Hegel .............................................................. 523MIGUEL SPINELLI (UFSM)Presena de Epicuro nas Lies de tica de Kant ................................................................... 541MITIELI SEIXAS DA SILVA (GT Kant)Objetividade em juzos e unidade objetiva da apercepo ................................................... 559NEILSON JOS DA SILVA (GT Kant)As referncias ao estoiciamo na Crtica da razo prtica de Kant .............................. 571

  • 8 Sumrio

    PAULO ROBERTO MONTEIRO DE ARAUJO (GT Hegel)A questo da Expresso no Processo de Criao Artistica na Esttica de Hegel ............585PEDRO AUGUSTO DA COSTA FRANCESCHINI (USP)O Hiprion de Hlderlin: uma mitologia da ausncia? ...................................................... 589PEDRO FERNANDES GAL (USP)Trs vezes Laocoonte: winckelmann, Lessing e Goethe ....................................................... 599PEDRO HENRIqUE VIEIRA (UFPR)A essncia da experincia na Crtica da razo pura ........................................................................ 617REJANE MARGARETE SCHAEFER KALSING (GT Kant)Dos interesses emprico e intelectual pelo belo em Kant ................................................. 627RENATO VALOIS CORDEIRO (PPGLM-UFRJ)Algumas consideraes sobre o princpio da finalidade formal na terceira Crtica ................................................................................................................... 639RICARDO MACHADO SANTOS (GT Criticismo e Semntica)Sobre a sensificao do conceito de progresso moral do indivduo no pensamento tardio de Kant............................................................................................................ 645ROGRIO MOREIRA ORRUTEA FILHO (UEL)Dos fundamentos do direito de propriedade na filosofia de Schopenhauer

    Suelen da Silva webber (GT Filosofia e Direito)Direitos humanos e universalidade: uma anlise da dignidade da pessoa humana sob a tica de Immanuel Kant ........................................................................................... 657SUzANO DE AqUINO GUIMARES (UFPE)O Estado sou Eu? Consideraes hegelianas sobre Reconhecimento e Comunicao ............................................................................................................................................... 673Trcio Renato Nanni Bugano (UNESP)Schiller e a pea teatral Os Bandoleiros .................................................................................... 685TOMS FARCIC MENK (UFRGS)A Justificao de Hegel a uma Filosofia da Natureza ............................................................ 695ULISSES RAzzANTE VACCARI (USP)A esttica em disputa: Fichte e Schiller sobre o conceito de determinao recproca 705

    VANESSA BRUN BICALHO UNIOESTESobre a compatibilizao ou no dos conceitos de natureza e liberdade na crtica da razo pura: uma aproximao ao debate atual ............................................ 713VERRAh ChAMMA (GT Hegel)Representao poltica em Hegel: entre a organizao feudal e a democracia advinda da Revoluo Francesa. Um estudo dos Debates na Assembleia dos estados de wrttemberg .............................................................................................................. 721wAGNER FLIX (GT Dialtica)Natureza e reflexo em Schelling .................................................................................................... 733

  • 9O conceito de eu na Crtica da Razo Pura

    O conceito de eu na Crtica da Razo Pura

    * Doutorando em Filosofia pela PUCRS

    Adriano Bueno Kurle*

    Resumo

    Busco mostrar neste trabalho como, ao abordar o conceito de eu e a ques-to do autoconhecimento na Crtica da Razo Pura, se encontra um paradoxo, que essencialmente reflexo da doutrina do idealismo transcendental. Apon-to para o conceito de eu em Kant e suas trs perspectivas coconstitutivas. Aponta-se a importncia da concepo de sujeito e seu entrelaamento com o conceito de razo, e ainda como estes dois conceitos aparecem no texto da Crtica da Razo Pura como pressupostos. Posteriormente, trato sobre algu-mas questes bsicas do idealismo transcendental. Por ltimo, fao uma bre-ve exposio das trs perspectivas do eu: como fenmeno, como estrutura transcendental e como nmeno. Concluo trazendo de volta o que Kant mesmo concebe como um paradoxo, que a relao de autoafeco do sujeito, como uma relao entre sujeito como nmeno e sentido interno.

    Palavras chave: Eu; Conscincia; Psicologia; Kant; Crtica Da Razo Pura.

    IntroduoO tratamento do problema que pergunta pelo lugar do sujeito na filosofia crtica de Kant fundamental para uma boa compreenso da amplitude, profundidade e articulao das premissas bsicas deste pensamento. pela posio do sujeito que se encontram as capacidades e faculdades que justi-ficam o conhecimento.

    Por outro lado, no se pode dizer que a problemtica seja descrever ou des-cobrir o sujeito. O objetivo de Kant , antes, resolver problemas fundamentais da

  • 10 Adriano Bueno Kurle

    filosofia no seu tempo, que esto ligados justificao do conhecimento, a possi-bilidade da metafsica, a relao da filosofia com as cincias modernas, a ao hu-mana, e a compatibilidade entre a moral e a religio com o determinismo da fsica do seu tempo.

    A principal tarefa de Kant para responder estas questes buscar os limites e as possibilidades do conhecimento em geral para, a partir destes limites, qualifi-car as questes que podem e que no podem ser respondidas ou, de outra manei-ra, separar questes empricas de questes puramente conceituais e, assim, refor-mular as questes metafsicas. Como, porm, toda tarefa tem um incio, o comeo de Kant acaba no fugindo do paradigma filosfico da modernidade, que trata o problema do conhecimento fundamentalmente pela relao sujeito-objeto, centra-do nas capacidades epistmicas do sujeito.

    A filosofia de Kant parte ento de uma certa concepo e posio do sujeito epistmico para responder questes que no so fundamentalmente sobre ele (ou seja, o que est no foco da questo no o sujeito). E a que acredito que possa se tornar frutfero tratar da questo do conceito de eu na filosofia crtica terica de Kant, pois neste conceito que se refletem algumas ambiguidades e problemas da filosofia de Kant, e em grande medida a que se apoia sua principal doutrina: a do idealismo transcendental. Busco mostrar neste trabalho como, ao abordar o conceito de eu e a ques-to do autoconhecimento, se encontra um paradoxo, que essencialmente reflexo da doutrina do idealismo transcendental, que por sua vez no se compreende sem o sujeito. A exposio argumentativa aqui ser breve, pois busco no breve espao apenas apontar para o conceito de eu em Kant e suas trs perspectivas coconsti-tutivas. Desta maneira, minha exposio inicia por apontar a importncia da con-cepo de sujeito e seu entrelaamento com o conceito de razo, e ainda como es-tes dois conceitos aparecem no texto da Crtica da Razo Pura como pressupostos, no estando claramente definidos. Posteriormente, trato sobre algumas questes bsicas do idealismo transcendental, doutrina essencial para entender a triparti-o do conceito de eu. Por ltimo, fao uma breve exposio das trs perspectivas do eu: como fenmeno, como estrutura transcendental e como nmeno. Concluo trazendo de volta o que Kant mesmo concebe como um paradoxo, que a relao de autoafeco do sujeito, como uma relao entre sujeito como nmeno e sentido interno (sujeito emprico), concluindo que o conceito numnico de eu parte integrante da teoria enquanto ela aborda e inclui a relao de autoafeco.

    1. Razo e sujeito como pressupostosDe maneira a encontrar o problema fundamental, acredito que seja impor-

    tante mostrar como, no que se pode dizer um pressuposto ou ponto de partida da teoria, h uma relao ntima entre razo e subjetividade, e que apesar de Kant no explicitar definies precisas para estes conceitos, o autor trabalha

  • 11O conceito de eu na Crtica da Razo Pura

    sobre eles. Olhando para a teoria como um todo, difcil negar o papel essencial que estes conceitos ocupam e que em grande medida esta teoria mesma trabalha com elementos que so considerados caractersticas da razo enquanto capaci-dade operacional de um sujeito.

    Tento defender uma interpretao que afirma o papel da abordagem psico-lgica como um elemento integrante e essencial da Crtica da Razo Pura. Kant no distingue entre elementos semnticos e elementos psicologistas, mas desenvolve sua argumentao atravs da concepo de uma ligao intrnseca entre semntica e psicologismo. Desta forma, defendo a ideia de que no possvel uma leitura que expurgue os elementos psicologistas ou que busque considerar a abordagem de Kant como uma abordagem puramente lgico-semntica (nos moldes de algumas filoso-fias contemporneas da linguagem) sem descaracterizar o que foi escrito por Kant1.

    A psicologia presente na teoria de Kant no , porm, uma psicologia emp-rica, nem uma antropologia, mas antes uma epistemologia que pressupe um su-jeito epistmico com certas capacidades operacionais (sujeito normativo). A ques-to no norteada pela descrio da mente ou do comportamento humano, mas guiada por uma abordagem normativa que pergunta pelas condies necessrias para que um determinado produto cognitivo seja gerado tendo sua legitimidade enquanto conhecimento. Desta maneira, se pode caracterizar a abordagem de Kant como uma psicologia transcendental, para diferenciar da psicologia emprica e da psicologia racional (metafsica e transcendente).

    No se deve confundir a psicologia transcendental com a lgica pura. A in-teno de Kant no tratar somente das fontes do conhecimento discursivo e con-ceitual, mas das condies para formar conhecimento de objetos que envolvem a associao regulada entre elementos no discursivos e discursivos. Para fazer clara esta diferena, Kant distingue entre lgica geral e lgica transcendental2.

    Kant parte da concepo de que o conhecimento fruto de uma relao entre faculdades heterogneas, a saber: sensibilidade e entendimento. O sujeito aparece como um ponto de unidade destas faculdades, por isto mesmo estando para alm delas, e como estas so condies para o conhecimento, o prprio sujeito est alm das possibilidades de conhecimento e aparece na teoria como um limite. a raiz desconhecida que une sensibilidade e entendimento. Kant diz o seguinte, explici-tando os princpios bsicos de sua anlise e o papel de uma unidade pressuposta entre as faculdades de um sujeito epistmico:

    1 Comentadores como Strawson e Patricia Kitcher reconhecem os elementos psicologistas da Crtica da Razo Pura. O primeiro, porm, busca reconstruir a teoria de Kant isolando os aspectos psicologis-tas e o idealismo transcendental. A segunda defende a plausibilidade de um psicologismo de carter transcendental. Cf. KITCHER, Patricia. Kants Transcendental Psychology. (1994). New York: Oxford University Press; e STRAWSON, Peter F. (2005). The Bounds of Sense: an essay on Kants Critique of Pure Reason. New York: Routledge.2 Cf. KrV A 50-58/ B 74-83.

  • 12 Adriano Bueno Kurle

    Parece-nos, pois, apenas necessrio saber, como introduo ou prefcio, que h dois troncos do conhecimento humano, porventura oriundos de uma raiz comum, mas para ns desconhecida, que so a sensibilidade e o entendi-mento; pela primeira so-nos dados os objetos, mas pela segunda so esses objetos pensados. Na medida em que a sensibilidade dever conter repre-sentaes a priori, que constituem as condies mediante as quais os objetos nos so dados, pertence filosofia transcendental. A teoria transcendental da sensibilidade deve formar a primeira parte da cincia dos elementos, por-quanto as condies, pelas quais unicamente nos so dados os objetos do co-nhecimento humano, precedem as condies segundo as quais esses mesmos objetos so pensados. (KANT, KrV: A 15-16/B 29-30). Esta raiz comum, para ns desconhecida a unidade subjetiva, que se en-

    contra para alm dos limites do conhecimento, como veremos adiante atravs da exposio do idealismo transcendental e assim da delimitao do conhecimento constitutivo e legtimo do conhecimento transcendente e ilegtimo.

    2. O idealismo transcendentalO conceito de eu se apresenta de acordo com trs perspectivas: como fe-

    nmeno, como elemento da estrutura transcendental e como nmeno. Para que se possam compreender as fronteiras entre cada perspectiva, devo apresentar a doutrina que permite esta diferenciao: o idealismo transcendental.

    As caractersticas principais do idealismo transcendental so a distino entre sensibilidade e entendimento, espao e tempo como condies subjetivas da sensibilidade, e a delimitao do conhecimento possvel a objetos possveis da intuio sensvel. Assim, a idealidade transcendental do espao e do tempo cum-pre papel fundamental para distinguir entre a perspectiva do fenmeno e do n-meno, e da parte do nmeno entre objeto puro do pensamento e objeto sensvel considerado conhecido como em si mesmo. Como espao e tempo no podem ser deduzidos da experincia, mas antes so elementos fundamentais para que ela ocorra, Kant conclui que espao e tempo so elementos intrnsecos sensibilidade do sujeito, sendo assim impossvel conhecer os objetos como so em si mesmos, mas apenas se conhece o produto do aparecer dos objetos mediante as capacida-des formais que o sujeito pe nele3.

    O conceito de nmeno tem um uso heurstico na teoria. Ele pode ser enten-dido no sentido positivo ou no sentido negativo. No sentido positivo, se considera o nmeno como uma realidade conhecida, no caso dos conceitos puros como intui-o intelectual. No sentido negativo pensado como tendo sua realidade apenas possvel, mas no conhecida por ns. Isto , no sentido positivo uma iluso, mas no sentido negativo tem a funo de ampliar as possibilidades de pensamento le-vando em considerao a delimitao transcendental do conhecimento. Anlogo a esta distino Kant trata do uso constitutivo e regulativo de ideias transcendentais.

    3 Cf. KrV, A27/ B 48; A 35-36/ B 52-53.

  • 13O conceito de eu na Crtica da Razo Pura

    Se quisssemos, pois, aplicar as categorias a objetos que no so considera-dos fenmenos, teramos, para tal, que tomar para fundamento uma outra intuio, diferente da sensvel, e o objeto seria ento um nmeno em sentido positivo. Como, porm, tal intuio, isto , a intuio intelectual, est total-mente fora do alcance da nossa faculdade de conhecer, a aplicao das cate-gorias no pode transpor a fronteira dos objetos da experincia; aos seres dos sentidos correspondem, certo, seres do entendimento e pode tambm haver seres do entendimento, com os quais a nossa capacidade de intuio sens-vel no tenha qualquer relao; mas os nossos conceitos do entendimento, enquanto simples formas de pensamento para a nossa intuio sensvel, no ultrapassam esta; aquilo que denominamos nmeno dever pois, como tal, ser entendido apenas em sentido negativo. (KANT, KrV: B 308-309)

    A partir do idealismo transcendental podemos pensar as trs perspectivas do conceito de eu.

    3. O eu fenomnicoO eu enquanto fenmeno o eu considerado como objeto emprico. Para

    Kant o eu como objeto emprico pode ser dado na intuio temporal pelo sentido interno, em uma relao que envolve a aplicao do conceito de permanncia e a autoafeco. A aplicao do conceito de permanncia exige uma relao no ape-nas com o tempo, mas tambm com o espao, para que se possa formar, a partir da relao entre sucesso e simultaneidade, a conscincia de estados temporais de antes, agora e depois, que so possveis mediante o conceito de permanncia, que representado espacialmente atravs de uma linha, a linha do tempo. Pode--se aplicar o conceito de permanncia ao estado comum do sentido interno de o sujeito ser permanentemente sujeito de diferentes representaes empricas em certa sequncia temporal.

    Na relao de autoafeco, h a pressuposio do sujeito enquanto nmeno afetando a si mesmo e produzindo representaes empricas no sentido interno, gerando um paradoxo, pois esta atividade mesma no pode ser afirmada sem que-bra dos limites do conhecimento impostos pelo idealismo transcendental.

    Ora, aquilo que, enquanto representao, pode preceder qualquer ato de pen-sar algo, a intuio e, se esta contiver apenas relaes, a forma da intui-o; e esta forma da intuio, como nada representa seno na medida em que qualquer coisa posta no esprito, s pode ser a maneira pela qual o esprito afetado pela sua prpria atividade, a saber, por esta posio da sua represen-tao, por consequncia, por ele mesmo, isto , um sentido interno considera-do na sua forma. Tudo o que representado por um sentido sempre, nesta medida, um fenmeno; e, portanto, ou no se deveria admitir um sentido in-terno, ou ento o sujeito, que o seu objeto, s poderia ser representado por seu intermdio como fenmeno e no como ele se julgaria a si mesmo se a sua intuio fosse simples espontaneidade, quer dizer, intuio intelectual. Toda a dificuldade consiste aqui em saber como se pode um sujeito intuir a si mesmo interiormente; mas esta dificuldade comum a toda a teoria. A conscincia

  • 14 Adriano Bueno Kurle

    de si mesmo (a apercepo) a representao simples do eu e se, por ela s, nos fosse dada, espontaneamente, todo o diverso que se encontra no sujeito, a intuio interna seria ento intelectual. No homem, esta conscincia exige uma percepo interna do diverso, que previamente dado no sujeito, e a maneira como dado no esprito, sem espontaneidade, deve, em virtude des-sa diferena, chamar-se sensibilidade. Se a faculdade de ter conscincia de si mesmo deve descobrir (apreender) o que est no esprito, preciso que este seja afetado por ela e s assim podemos ter uma intuio de ns prprios; a forma desta intuio, porm, previamente subjacente ao esprito, determina na representao do tempo a maneira como o diverso est reunido no espri-to. Este, com efeito, intui-se a si prprio, no como se representaria imediata-mente e em virtude da sua espontaneidade, mas segundo a maneira pela qual afetado interiormente; por conseguinte, tal como aparece a si mesmo e no tal como . (KANT, KrV: B67-68)

    Kant afirma que na autoafeco no h uma intuio da alma como objeto, mas apenas de estados fenomnicos do sujeito, que de nenhuma maneira defi-nem o que o sujeito em si mesmo. Como toda intuio sensvel, e como no h conhecimento vlido sem a intuio correspondente, o conhecimento do eu s pode ser dado mediante uma intuio sem, porm, que este seja conhecido em sua constituio ontolgica, mas apenas no seu aparecer temporal dado no senti-do interno mediante as determinadas representaes empricas que constituem a sua histria emprica, enquanto este eu o elo comum que permanece diante das distintas representaes.

    Por intermdio do sentido externo (de uma propriedade do nosso esprito) temos a representao de objetos como exteriores a ns e situados todos no espao. neste que a sua configurao, grandeza e relao recproca so de-terminadas ou determinveis. O sentido interno, mediante o qual o esprito se intui a si mesmo ou intui tambm o seu estado interno, no nos d, em verdade, nenhuma intuio da prpria alma como um objeto; todavia uma forma de-terminada, a nica mediante a qual possvel a intuio do seu estado interno, de tal modo que tudo o que pertence s determinaes internas representado segundo relaes do tempo. O tempo no pode ser intudo exteriormente, nem o espao como se fora algo de interior. (KANT, KrV: A 24-25/ B 37-38)

    Pelo sentido interno que se representam as coisas como representaes para o sujeito que representa de acordo com o fluxo da conscincia, isto , o tempo. Po-rm, no possvel o sujeito conhecer a si mesmo como objeto a no ser enquanto ele representa coisas no tempo para si mesmo e, pensando em si mesmo como ob-jeto, s o poderia faz-lo de acordo com a forma do tempo, e assim, de acordo com a intuio sensvel e, portanto apenas se representa como objeto enquanto fenmeno.

    Na perspectiva transcendental, mesmo que a representao do objeto seja considerada como fenmeno, no se nega o objeto como realmente dado. E o mes-mo vale para a alma: o eu, enquanto tomado como objeto, tem afirmada a sua existncia, mas no estado de reflexo (modo pelo qual pode se tomar como objeto)

  • 15O conceito de eu na Crtica da Razo Pura

    apenas (1) reflexo sobre seu modo de conhecer ou (2) fenmeno (emprico, como se d a si mesmo no sentido interno). Visto que o fenmeno resguarda a existncia do objeto, enquanto h o fenmeno do eu ele no uma iluso: ele realmente dado. Porm, enquanto ele fenmeno, no pode ser conhecido em si mesmo. Ento, o paradoxo: o eu afeta a si mesmo, sem saber o que em si, seno que esta manifestao dele em si mesmo sempre ocorre mediante a sua prpria forma (limitada) de conhecer os objetos, ento o que impossibilita o eu de conhe-cer a si mesmo a sua prpria constituio cognitiva. Fica claro que o esprito, a alma ou qualquer equivalente do eu um pressuposto na Crtica da Razo Pura, e apenas porque ele pode ser um objeto que participa como limite (assim como a coisa em si, ele mesmo como uma coisa em si) da teoria que lhe pode ser negado acesso como conhecimento do que em si4. No se afirma com isto, porm, nenhu-ma propriedade do objeto (neste caso, o esprito, alma ou qualquer equivalente), mas apenas que este fenmeno tem um equivalente real. Isto quer dizer que no se sabe com isto se este equivalente real simples ou composto (por exemplo, se esta unidade do sujeito no apenas o produto da relao regulada de diversos componentes que tendem a uma unidade, etc.), entre outras propriedades quais-quer, como ser indestrutvel, imortal, de outra natureza, entre outras coisas que se poderia pensar.

    Para que se possa tratar da conscincia fenomnica, e manter-se fora da arbitrariedade dos casos particulares da psicologia emprica, deve-se considerar apenas algumas condies gerais para que seja possvel tratar desta conscincia emprica. a partir dos elementos transcendentais que se pode pensar sob quais condies possvel uma conscincia emprica. E de acordo com as condies transcendentais, espao e tempo so condies para qualquer experincia, assim, tambm condies fundamentais da conscincia emprica. Atravs da anlise das condies gerais da relao entre espao e tempo, possvel pensar alguns aspec-tos essenciais para uma teoria transcendental do eu fenomnico, que se distingue de uma teoria emprica por tratar justamente apenas das condies de possibilida-de do eu como fenmeno.

    4. O eu transcendental

    O conceito transcendental de eu deve ser buscado na anlise da posio do conceito de apercepo transcendental. Para bem compreend-lo necessrio atentar para a concepo de entendimento enquanto faculdade epistmica, a dis-tino entre lgica geral e lgica transcendental, a concepo de sntese e de con-ceito enquanto funo que regula a atividade de sintetizar representaes diversas sob uma unidade. S assim se pode entrar na apresentao do conceito de unidade

    4 Cf. KrV, B 69-70.

  • 16 Adriano Bueno Kurle

    sinttica originria da apercepo e identidade analtica da apercepo, que defini-mos paralelamente como conscincia e conscincia de si (ou conscincia refletida).

    importante compreender a centralidade do conceito de sntese como uma capacidade ou atividade do entendimento. No possvel compreender o que Kant entende pela relao entre elementos sensveis e conceituais, por juzo sinttico a priori e por unidade sinttica originria da apercepo sem levar em considerao o conceito de sntese como uma capacidade mental subjetiva, como uma condio transcendental para que seres finitos formem conhecimento e para que seja poss-vel o produto da relao entre a sensibilidade e o entendimento.

    O conceito de unidade originria da apercepo a unidade sinttica trans-cendental, isto , a unidade fundamental a priori das snteses, que participa da te-oria transcendental por ser considerada necessria para o conhecimento em geral. a unidade da conscincia e a condio para a unidade de diversas representa-es em um conceito. A unidade analtica da conscincia, que pressupe a unidade sinttica, a necessidade transcendental da possibilidade emprica do reconheci-mento da posse de representaes como pertencendo ao sujeito que as pensa (ou, a conscincia de operar relaes atravs da atividade sinttica e reconhecer a si mesmo como sujeito desta operao).

    Kant quer mostrar que, dado uma representao sensvel 1, e outra repre-sentao sensvel 2, distintas entre si, se deve haver uma relao entre elas, esta deve ser operada pelo entendimento, nunca as distintas experincias dadas na intuio sendo a fonte desta relao. Como a mera experincia emprica sensvel no contm em si nenhuma conexo, seja dada pela intuio seja pelos prprios objetos (visto que a relao entre diversas experincias dispersas em uma uni-dade uma necessidade para que possam ser pensadas juntas e, assim, compor juzos e tambm a ideia de que so provenientes de uma e mesma experincia), necessrio que esta ligao seja operada pelo sujeito cognitivo mesmo, atravs da espontaneidade do entendimento.

    Este problema invoca tambm, junto com a unidade da experincia pela uni-ficao das distintas representaes, a identidade de uma conscincia que as re-conhece como suas representaes. E assim a operao de sntese tem um papel fundamental na relao com a unidade da conscincia, e justamente por isto Kant inicia a deduo transcendental com a abordagem sobre a sntese como operao do entendimento5.

    Todo conhecimento deve estar ligado ao entendimento para que se torne ele-mento de um juzo discursivo ou um objeto identificado de acordo com conceitos, de maneira que esta atividade de ligao a representao da unidade sinttica do diverso. (KANT, KrV: B 130-131) No h, portanto, nenhuma unidade anterior ligao, e mesmo as categorias pressupe esta ligao. Kant trata, assim, de uma

    5 Cf. KrV, B 129-130.

  • 17O conceito de eu na Crtica da Razo Pura

    unidade que possibilita mesmo a sntese discursiva em conceitos e juzos, sendo esta unidade superior que permite a unidade dos pensamentos. Esta unidade Kant chama unidade originariamente sinttica da apercepo.

    A unidade sinttica originria a unidade das snteses das representaes, s que dada a priori, assim anterior, portanto originria, a qualquer unidade deri-vada. Isto o mesmo que dizer: h condies transcendentais para a unidade de representaes empricas. Visto que apenas mediante a sntese possvel a unidade das mais simples representaes empricas, e que esta sntese ocorre de acordo com funes, estas funes mesmas, enquanto unidade de ao de sintetizar, devem se relacionar (sendo variadas as funes destas operaes) em uma unidade anterior mediante a qual operam em conjunto. Esta unidade deve ser a priori, pois opera por sobre funes a priori. Como opera unidade sobre as funes, no pode ser depen-dente delas para promover esta unidade, sob a pena de circularidade do argumento. Sendo assim, esta unidade qualitativa e anterior s categorias. A unidade sinttica originria condio para qualquer unidade emprica.

    5. O eu numnico Atravs do conceito numnico de eu se diferencia entre o seu sentido po-

    sitivo e o seu sentido negativo, de acordo com o uso constitutivo ou regulativo da ideia transcendental de alma.

    Este tema aparece na concepo kantiana de razo, no sentido estrito (en-quanto faculdade distinta do entendimento), onde Kant trata sobre como surgem, pela dialtica natural da razo, ideias de totalidade de acordo com cada uma das formas de juzo: categrico, hipottico e disjuntivo. Neste sentido, o juzo categri-co, na busca pela totalidade das condies do objeto (na busca pelo incondiciona-do), gera a ideia absoluta de sujeito. A totalidade das condies do sujeito a ideia de alma. Esta ideia tem seu uso constitutivo, que gera iluses e m metafsica sobre o sujeito, pois leva a afirmaes que transgridem os limites do conhecimento que tem como princpio que todo conceito constitutivo deve ter sua contrapartida na unidade do objeto que deve poder ser dado na intuio sensvel. Esta ideia tem, porm, seu uso legtimo como ideia regulativa, que utiliza este conceito heuristica-mente, tendo como funo dar unidade aos diversos conhecimentos constitutivos e conceitos normativos necessrios para a unidade de um sistema terico, entre os elementos constitutivos e normativos.

    s falcias geradas pelo raciocnio puro da razo sobre a unidade do sujeito Kant chama paralogismos da razo pura. Ao mostrar o carter falacioso destes ar-gumentos (que consiste em extrapolar os limites do conhecimento ao aplicar con-ceitos a um objeto que no pode ser dado na intuio, tomando como real algo que no se conhece, mas uma pura ideia de um objeto da razo), Kant quer refutar o que ele chama de psicologia racional. Desta maneira Kant refuta a possibilidade do conhecimento metafsico do eu ou da alma6.

    6 Cf. KrV A 341-405 e B 397-432.

  • 18 Adriano Bueno Kurle

    A aplicao dos conceitos ao eu ou alma enquanto objeto em geral, gera as seguintes relaes: (1) a alma substancia; (2) a alma uma substancia simples (3) uma unidade no tempo (4) est em relao com possveis objetos no espao. O problema, segundo Kant, que se passa da simples afirmao da necessidade transcendental de um sujeito lgico das representaes e dos discursos, para a aplicao de conceitos deste eu como objeto. Segundo Kant: O que objeto no a conscincia de mim prprio determinante, mas apenas determinvel, isto , da minha intuio interna (KANT, Krv: B 407). Deve-se desta maneira sempre distin-guir o eu transcendental, que sempre sujeito, do eu enquanto objeto. O eu como objeto sempre objeto fenomnico, e sendo assim ou sujeito emprico ou as simples condies transcendentais para determinadas representaes possveis o puro eu penso enquanto permanncia temporal diante das possveis repre-sentaes e o reconhecimento da sua atividade sinttica. Ou seja, sobre o sujeito transcendental, nada mais se pode predicar.

    Em suma, os paralogismos se resumem confuso do eu enquanto sujei-to dos pensamentos com o eu enquanto objeto de juzos determinados, ou seja, enquanto objeto de conhecimento. Neste sentido, Kant demonstra a diferena do sujeito na sua reflexividade, mostrando que com este movimento reflexivo se pe tambm uma mediao, o que pe a diferena do eu para si mesmo. O eu no totalmente transparente para si mesmo enquanto objeto, isto , no tem acesso imediato sua prpria constituio ontolgica. O conhecimento do eu enquanto objeto em geral (de uma determinao universal, portanto, e no de um determina-do sujeito emprico) s pode ser conhecido de acordo com os predicados que lhe so inerentes. Mas a predicao de objetos depende das categorias do entendimento do sujeito, que s tem significao se relacionadas com intuies sensveis. Como a in-tuio sensvel determina a fenomenalidade do conhecimento, todo conhecimento do eu que v alm da determinao do sujeito como sujeito lgico dos discursos uma determinao emprica. Portanto, a psicologia racional no tem validade.

    Apesar de no ser possvel conhecer um objeto que corresponda ideia de unidade absoluta do sujeito, ainda possvel pens-lo. Neste sentido, a ideia de eu, como objeto puro da razo, tem seu uso regulativo. Nesta perspectiva, usa-se a ideia como elemento norteador da pesquisa psicolgica, ordenando e regulando eventos sensveis, conceitos empricos e raciocnios em uma unidade sistemtica maior, que regula o uso do entendimento em torno da investigao emprica sobre um determinado tema, neste caso a psicologia7.

    Esta ideia de alma, no seu uso regulativo, serve como princpio orientador para relacionar os diversos conceitos, relaes e foras em torno da ideia de um sujeito uno.

    7 Cf. KrV, A 643/ B 671.

  • 19O conceito de eu na Crtica da Razo Pura

    ConclusoConcluo trazendo de volta o que Kant mesmo concebe como um paradoxo, que

    a relao de autoafeco do sujeito, como uma relao entre sujeito como nmeno e sentido interno (sujeito emprico), concluindo que o conceito numnico de eu parte integrante da teoria enquanto ela aborda e inclui a relao de autoafeco:

    agora aqui o lugar para esclarecer o paradoxo, que a ningum deve ter pas-sado despercebido na exposio da forma do sentido interno ( 6), a saber, que este nos apresenta conscincia, no como somos em ns prprios, mas como nos aparecemos, porque s nos intumos tal como somos interiormente afetados; o que parece ser contraditrio, na medida em que assim teramos de nos comportar perante ns mesmos como passivos; por este motivo, nos sistemas de psicologia se prefere habitualmente identificar o sentido interno com a capacidade de apercepo (que ns cuidadosamente distinguimos). O que determina o sentido interno o entendimento e a sua capacidade origi-nria de ligar o diverso da intuio, isto , de o submeter a uma apercepo (como aquilo sobre o qual assenta a sua prpria possibilidade). Ora, como o nosso humano entendimento no uma faculdade de intuies, e mesmo que estas fossem dadas na sensibilidade no as poderia acolher em si, para de certa maneira ligar o diverso da sua prpria intuio, ento a sua sntese, considerada em si mesma, no mais do que a unidade do ato de que tem conscincia, como tal, mesmo sem o recurso sensibilidade, mas que lhe per-mite determinar interiormente a sensibilidade em relao ao diverso, que lhe pode ser dado segundo a forma de intuio dessa sensibilidade. Com o nome de sntese transcendental da imaginao exerce, pois, sobre o sujeito passivo, de que a faculdade, uma ao da qual podemos justificadamente dizer que por ela afetado o sentido interno. A apercepo e a sua unidade sinttica so pois to pouco idnticas ao sentido interno, que as primeiras, enquanto fonte de toda a ligao, se dirigem, com o nome de categorias, ao diverso das intuies em geral e aos objetos em geral, anteriormente a qualquer intuio sensvel; ao passo que o sentido interno, pelo contrrio, contm a simples forma da intuio, mas sem a ligao do diverso nela inclusa, no contendo, portanto, nenhuma intuio determinada; esta s possvel pela conscincia da determinao do seu sentido interno mediante o ato transcendental da imaginao (influncia sinttica do entendimento sobre o sentido interno) a que dei o nome de sntese figurada. (KANT, KrV, B 152-155)

    Kant parece resolver este paradoxo cindindo internamente o sujeito: de um lado, esta atividade espontnea afeta a sua outra parte, o sentido interno, com este ltimo sendo uma tabula rasa com a mera forma do tempo. Ora, at que pon-to a considerao de uma faculdade que realmente afeta a outra (Kant diz, por meio da sntese da imaginao produtiva) considerada apenas formalmente? A espontaneidade do entendimento no guarda em si um resqucio numnico? Parece que a ciso mesma entre fenmeno e nmeno se reproduz no interior do sujeito transcendental.

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  • 23Silogismo e inferencialismo: aproximaes entre Hegel e Brandom

    Silogismo e Inferencialismo: aproximaes entre Hegel e Brandom

    * Ps-Doutor, PUCRS.Agemir Bavaresco*(GT HEGEL)

    Resumo

    Na Cincia da Lgica, no livro da Lgica do Conceito, Hegel trata do silogismo. O primeiro objetivo relacionar o silogismo hegeliano com o inferencialismo de Robert Brandom. Qual a estratgia argumentativa de Hegel ao propor o silogismo na Lgica do Conceito? Como ele opera a dialetizao do silogis-mo clssico? Em que medida a teoria do inferencialismo de Robert Brandom pode ser relacionada com o silogismo dialtico-especulativo hegeliano? He-gel opera uma transformao dialtica do silogismo, apresentando-o como momento em que a subjetividade retoma as figuras racionais enquanto au-tomovimento, dando-se uma realidade objetiva. Propomos uma leitura do inferencialismo de Brandom como interpretao do hegelianismo pelo vis do pragmatismo americano. O segundo objetivo apresentar a aproximao do pensamento de Hegel com a filosofia analtica. Brandom acentua o carter dinmico das categorias, formando uma rede de significado. esta dialtica imanente que anima a Lgica que permite investig-la luz do inferencialis-mo contemporneo. Palavras-Chave: Lgica. Silogismo. Inferencialismo. Pragmatismo. Hegel. Brandom.

    1. Silogismo e Inferencialismo: Hegel e Brandom1Na Cincia da Lgica, no livro da Lgica do Conceito, Hegel trata do silogismo, em que ele incorpora propriamente um tema que atravessa a histria da lgica e o reinterpreta dentro de sua perspectiva dialtica. Neste sentido, Hegel retoma uma longa tradio que remete pelo menos a Aristteles e culmina 1 Esta parte reproduz parte do artigo de BAVA-RESCO, Agemir. Silogismo Hegeliano e Inferencia-lismo em Brandom. Cog-nitio: Revista de Filosofia, So Paulo, v. 13, n. 1, jan./jun., 2012.

  • 24 Agemir Bavaresco

    com a filosofia kantiana. Nosso objetivo apresentar e analisar o silogismo he-geliano e, de certo modo, relacion-lo com o inferencialismo de Robert Brandom. Mas, qual a estratgia argumentativa de Hegel ao propor o silogismo na Lgica do Conceito? Como ele opera a dialetizao do silogismo clssico? Em que medida a te-oria do inferencialismo de Robert Brandom pode ser relacionada com o silogismo dialtico-especulativo hegeliano? As figuras silogsticas permanecem como uma espcie de formalismo do entendimento, ou seja, nesse sentido para Hegel, no alcanam o momento da razo. A preocupao formalista era evitar a contradio e assim no apreendiam o seu contedo. O silogismo dentro da organizao lgico-hegeliana o ltimo momento da subjetividade do conceito que realiza a transio para a objetividade. Trata-se, por-tanto, de uma reconstruo minuciosa do silogismo tradicional, sob o ponto de vis-ta dialtico, para aceder efetividade racional, isto , objetividade. Hegel afirma que o silogismo , ao mesmo tempo, o racional e o real, pois esses funcionam como um silogismo. Sendo assim, Hegel opera uma transformao dialtica do silogis-mo, apresentando-o como o momento em que a subjetividade retoma as figuras racionais enquanto automovimento, dando-se uma realidade objetiva atravs da exposio das categorias do mecanismo, quimismo e teleologia. A proposta inferencialista de Robert Brandom, por sua vez, insere-se no legado do Idealismo Alemo, focando-se, sobretudo, em Kant e Hegel. Propomos uma leitura do inferencialismo de Brandom como interpretao do hegelianismo pelo vis do pragmatismo americano, atualizando o silogismo da Lgica hegelia-na. O silogismo hegeliano uma inferncia que articula a forma e o contedo. A articulao dialtica da razo formal do conceito se diferencia no juzo e se reflete na razo concreta como silogismo objetivo. Ou seja, ocorre uma inferncia lgico--pragmtica da razo lgica ao, atuando no real atravs da rede de significao da prpria Lgica que se amplia, metodologicamente, em toda a filosofia hegeliana. O pensar silogstico que atravessa todo o sistema hegeliano tornar explcito esse movimento do silogismo implcito em toda razo terico-prtica: uma inferncia permite pensar a contradio e efetiva uma razo inferencialista, neste ponto que se aproximam Hegel e Brandom.

    1.1. Lgica do Silogismo Hegeliano

    O silogismo o ltimo momento do processo de autodeterminao do con-ceito subjetivo (1 seo da Cincia da Lgica). Hegel retoma uma longa tradio que remete a Aristteles e que passa pela Crtica da Razo Pura kantiana. Com efeito, Kant na Lgica Transcendental analisa as trs faculdades do pensamento: o conceito, o juzo e o raciocnio. Hegel, no entanto, prope uma releitura do silo-gismo sob o ponto de vista especulativo. A lgica tradicional estuda o silogismo e suas diversas figuras, em que a razo funciona em si mesmo na sua universalidade

  • 25Silogismo e inferencialismo: aproximaes entre Hegel e Brandom

    formal. O contedo sempre particular e recebido do exterior atravs da intui-o ou da experincia. O desafio pensar a unidade da universalidade formal e a particularidade contingente. Em face dessa situao ganha ateno o estudo do meio-termo e sua funo de mediao para superar o dualismo e o formalismo do silogismo. Trata-se de pensar a unidade dialtica do silogismo, em que a forma o automovimento do contedo, mediatizado por sua unidade negativa.

    As figuras silogsticas tradicionais permanecem como um tipo de forma-lismo do entendimento, ou seja, nesse sentido para Hegel, elas no alcanaram o momento da razo. Sua preocupao formalista era evitar a contradio e nisso no apreendiam o contedo. Por isso, o silogismo formal , por conseguinte, es-sencialmente, em razo de sua forma, algo de contingente segundo seu contedo (HEGEL, CL, 1981, p. 163). O silogismo dentro da organizao lgica hegeliana o ltimo momento da subjetividade do conceito que realiza a transio para a objetividade. Trata-se de uma reconstruo minuciosa do silogismo tradicional sob o ponto de vista dial-tico-especulativo para aceder efetividade racional, isto , objetividade. Hegel afirma que o silogismo , ao mesmo tempo, o racional e o real; isto , esses funcio-nam como um silogismo: Todo o racional um silogismo e todas as coisas so o silogismo (CL, 1981, p. 154-155). Hegel opera uma desconstruo dialtica do silogismo, apresentando-o como o momento em que a subjetividade retoma as figuras racionais como au-tomovimento, dando-se uma realidade objetiva. O movimento anterior tratava do juzo. Este a ciso originria do conceito em sua dualidade opositiva. A identi-dade d-se entre o sujeito (singular) e o predicado (universal), porm, perdura a contradio entre a diviso interior do conceito e a relao exterior do juzo. A resoluo da contradio o resultado de todo o processo do juzo, em que ocorre a transformao da cpula em uma unidade conceitual, ao mesmo tempo, refletida e negativa. Ento, esse novo processo de autodesenvolvimento do conceito recebe o nome de silogismo: O silogismo mediao, o conceito completo no seu ser--posto. Esse ser , por conseguinte, uma coisa que em e para si, a objetividade (CL, 1981, p. 205).

    O silogismo (3 captulo), na organizao interna da Lgica do Conceito, o mo-mento da unidade entre o conceito (1 captulo) e o juzo (2 captulo). O silogismo torna explcita a articulao interna da unidade diferenciada do conceito no interior do juzo. O silogismo a reflexo em si do conceito abstrato at se tornar concreto, totalizando-se pela diferenciao do juzo. Aqui, no h mais uma razo formal, mas a unidade dialetizada em contradio, unidade que o silogismo formal desconheceu, evitando sempre de pensar o movimento da razo concreta e a contradio.

    A razo a vida do conceito na efetividade do mundo, ou seja, a infinitude da razo est dentro do processo do finito; a sua universalidade inscreve-se inte-riormente na exterioridade das coisas singulares. O silogismo esse processo, ao

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    mesmo tempo, nico e duplamente em contradio, unidade e verdade do conceito e do juzo.O silogismo na sua imediatidade abstrato e formal. Trata-se de uma opo-sio entre o contedo e a forma, a subjetividade e a objetividade. o silogismo interpretado pelo entendimento que separa o meio-termo e os extremos. Hegel reconstri assim o silogismo retomando o desenvolvimento da Lgica objetiva, co-meando pelo ser-a, o aparecer da essncia e a efetividade do conceito. Assim, o formalismo do silogismo do entendimento dissolve-se na racionalidade intrnseca das coisas, pela unidade do sujeito e do objeto. Todas as mediaes da Lgica ob-jetiva (Ser e Essncia) so explicitadas na totalidade interiormente diferenciada e articulada do conceito, tornando-se objetiva. Na inferncia do silogismo, a Lgica objetiva recapitulada e legitimada na plenitude de seu sentido. Ou seja, o Ser se interioriza na Essncia e pela reflexo exterioriza-se na efetividade relacional, completando-se no Conceito (cf. BIARD, 1987, p. 151-160).

    Reproduzimos um quadro global dos trs silogismos, elaborado por Jarczyk, mostrando a ligao, a circularidade e a unidade fundamental das trs figuras (JARCZYK, 1980, p. 124):

  • 27Silogismo e inferencialismo: aproximaes entre Hegel e Brandom

    A forma do trip silogstico a mesma, isto , sua circularidade comea e ter-mina com a singularidade. O primeiro silogismo tem como termo-mdio a diferena (particularidade), o segundo a singularidade e o terceiro a unidade (universalidade). Em cada caso, toda a mediao tem que cumprir-se em direo ao sentido da unida-de na diferena, ou seja, identidade da identidade e da diferena. Nos silogismos do ser-a e da reflexo a forma esteve sempre alm do contedo, da o seu formalismo. Porm, o movimento da reflexo conduziu-nos a uma determinao progressiva dos termos ainda abstratos, que agora levou-nos a privilegiar o contedo em relao forma. O movimento entre a interioridade do contedo (meio-termo) e a exteriorida-de da forma (extremos), conduz suprassuno da forma na objetividade. Mencionando o silogismo hegeliano, nosso objetivo foi mostrar como Hegel opera a suprassuno da lgica do entendimento expressa no silogismo clssico aristotlico. Nossa preocupao no se ateve em reconstituir a argumentao tc-nica de cada figura dos trs silogismos, antes, apenas apontamos em grandes li-nhas as figuras, a fim de tornar mais acessvel o trabalho de compreenso do movi-mento dialtico-especulativo da mediao, ou seja, do processo inferencialista. Os silogismos operam a partir de conceitos mediadores, isto , o termo-mdio. Cabe ressaltar que cada um dos termos-mdios assume o lugar da mediao ou da in-ferncia. Assim, todo o real, segundo o modelo holista, precisa ser pensado como um silogismo: Dieter Henrich afirma que qualquer aplicao da forma plena da lgica do silogismo, na triplicidade do sistema de formas silogsticas, d-se sob o pressuposto de uma determinao conceitual que permite que se o interprete e de-senvolva como totalidade. Assim sendo, se todo o racional tambm silogismo e por ele , de alguma maneira, mais ainda, de vrias maneiras, momento da totalida-de, sem dvida, apenas uma totalidade como tal um todo de formas silogsticas. Hegel, porm, conhece apenas um pequeno nmero de conceitos que so tratados segundo a forma do silogismo total: sistema solar, quimismo, organismo e Esprito objetivo (Henrich, 1987, p. 276). Robert Brandom ampliar o silogismo na filoso-fia explicitando-o como uma lgica do inferencialismo.

    1.2 . Lgica do Inferencialismo em Brandom

    Para Hegel, o termo-mdio desempenha, segundo Brandom, um papel no si-logismo clssico de mediao (Vermittlung), articulando a inferncia dos contedos, induzidos da relao da negao determinada. Assim, a mediao realiza uma ne-gao determinada que leva a inferir uma concluso (cf. BRANDOM, 2003, p. 251). a) Silogismo ou inferncia mediadora: Brandom adota a tese de Gilbert

    Harman (1984), o qual distingue processos inferenciais de relaes inferenciais que emergem na lgica, ou seja, a inferncia um processo e a implicao de uma relao: Vale dizer um tipo especfico de pragmatismo conceitual sobre o modo em que se constri a relao entre relaes objetivas e processos subjetivos (BRAN-

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    DOM, 2003, p. 287). Harman defende essa tese da conexo com a lgica dedutiva formal, porm, h uma aplicao mais ampla, isto , em particular com o termo he-geliano Schlu, que normalmente traduzido por silogismo, identificando a infe-rncia silogstica aristotlica. Segundo Brandom, o termo silogismo, na Cincia da Lgica, significa em geral inferncia. Embora, s vezes, Hegel fale da relao entre os diferentes elementos de um silogismo clssico, por exemplo, o lugar e a funo do termo-mdio; claro que est falando do movimento da premissa concluso. Ora, esse movimento inferencial recebe um nome correlato: mediao (BRANDOM, 2003, p. 266). importante perceber que Brandom identifica o termo silogismo com inferencialismo, sendo esse um processo de mediao que se caracteriza pelos momentos da identidade e diferena, imediato e mediato. Hegel opera, ento, uma suprassuno do silogismo formal pela mediao concreta dos conceitos lgicos.A Lgica mais do que uma elaborao de um sistema consistente de axio-mas. Segundo Vittorio Hsle, a Lgica filosfica para Hegel e Brandom uma ex-plicitao dos conceitos, proposies e inferncias. O esforo conceitual, isto , in-ferencial torna transparente a realidade, porque a ideia dos conceitos enquanto inferencialmente articulados permite uma configurao do pensamento e do mun-do, sob o qual se direciona o pensar. Alm do sentido lgico, os conceitos so nor-mativos, tendo uma atividade inferencial normativa (cf. HSLE, 2003, p. 307-309).

    b) Semntica inferencial e pragmatismo normativo: Brandom explicita a concepo inferencialista da razo a partir de uma interpretao do reconheci-mento da normatividade conceitual. Segundo Italo Testa, a raiz hegeliana do in-ferencialismo semntico foi explicitado por Brandom atravs de uma leitura da Fenomenologia (TESTA, 2003, p. 321). Nesse contexto, Brandom afirma que a in-ferncia material no depende nem de uma semntica e nem de uma lgica formal. Por exemplo, em hoje segunda-feira e amanh ser tera-feira, a correo da inferncia depende do significado de segunda-feira e tera-feira e no da forma. Na base dessa concepo, a lgica no o cnone do raciocnio correto, mas tem a funo de explicitar, de codificar com um vocabulrio lgico a relao inferencial que articula implicitamente os contedos conceituais no lgicos institudos em nossas prticas. Pode-se dizer que o maior esforo de Brandom consiste em ras-trear na Fenomenologia de Hegel, o modelo originrio de uma concepo que una o expressivismo lgico com uma semntica inferencialista e holstica (Id., p. 323). Brandom explicita a negao determinada como uma forma de incompati-bilidade material. Hegel no nega o princpio de no contradio, antes, para ele h uma forma mais fundamental de negao comparada quela codificada pela lgica formal. Trata-se de uma negao que se institui em nvel pr-lgico, em termos de relao material de incompatibilidade. A negao da lgica formal (no p), que He-gel chama negao abstrata, algo derivado da negao material e definida nos termos desta ltima: Tal como a negao abstrata de p, ou seja, ~p, o que se segue de toda coisa materialmente incompatvel com p; abstrai-se o contedo determinado desses dados incompatveis com p, e assim , meramente, incompatvel (Id., p. 323).

  • 29Silogismo e inferencialismo: aproximaes entre Hegel e Brandom

    Cabe salientar que Brandom conecta a negao determinada como incom-patibilidade material a uma interpretao inferencialista da doutrina hegeliana da mediao (Vermittlung) conceitual (Id., p. 323). Hegel ensina que a relao in-ferencial material uma relao de incompatibilidade, ou seja, uma relao que identifica o contedo conceitual: este o nexo entre a estrutura lgica do concei-to e a negao determinada. Hegel mostra que as propriedades da inferncia so derivveis da relao de incompatibilidade ou, em outros termos, que as relaes de mediao so derivveis daquelas de negao determinada (Id., p. 323). O con-ceito de mediao sustenta a tese de que os conceitos so mediados e articulados inferencialmente. Por isso, a mediao tem o seu paradigma no termo-mdio do silogismo, isto , no termo que tem a funo de mediar a inferncia da premissa concluso. Compreendendo a mediao conceitual como negao determinada, percebe-se que a articulao inferencial dos conceitos instituda por ligaes de incompatibilidade material (cf. Id., p. 324). Para Brandom, o pragmatismo de Hegel caracteriza-se por fundar a semn-tica inferencial sob uma pragmtica normativa, privilegiando a prtica conceitual articulada inferencialmente, isto , a prtica de dar e de receber razes na luta por reconhecimento. O conceito hegeliano como o grande sistema inferencial que se institui simultaneamente ao instituir conceitos determinados, ou seja, a mesma ideia hegeliana da mediao, expressando a estrutura inferencial-argumentativa do elemento conceitual, pode ser intelegvel num modelo intersubjetivo: o holismo semntico explicitvel em termos de reconhecimento (Id., p. 331).

    c) Representacionismo e pragmatismo lingustico inferencial: Brandom, em Making It Explicit, formulou seu inferencialismo como uma alternativa ao para-digma representacionista. Trata-se de um inferencialismo que racionalista e prag-mtico. O representacionismo concebe a conscincia em termos de contedo men-tal que representa coisas do mundo, eventos e fatos. Ao contrrio, o pragmatismo lingustico e racionalista acaba por mudar o ponto focal da experincia consciente para as prticas lingusticas humanas, isto , para as normas de racionalidade impl-citas em tais prticas e aproxima o significado das nossas asseres lingusticas em termos de relaes normativas e inferenciais (cf. REDDING, 2003, p. 501).

    Brandom reconhece que na Filosofia Moderna cabe ao Idealismo Alemo, e em especial a Kant, o mrito de ter iniciado a abordagem inferencialista no conhe-cimento humano. Hegel ir inverter a ordem tradicional de explicao semntica, comeando com o conceito de experincia como atividade inferencial, discutindo a formao dos juzos e o desenvolvimento dos conceitos a partir do papel que es-ses desempenham na atividade inferencial (Id., p. 502). Na Enciclopdia, na parte dedicada Cincia da Lgica, Hegel apresenta o carter inferencialista de sua abordagem ao afirmar que o silogismo a unidade do conceito e do juzo (1995, 181, p. 315). A ideia inferencialista uma forma de justificao atravs de juzos, que Hegel expressa ao dizer que o silogismo a

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    verdade do juzo. O juzo implicitamente inferencial, a saber, a inferncia a ver-dade do juzo. A teoria do inferencialismo ope-se tradio kantiana a respeito da relao entre juzo e inferncia na Crtica da Razo Pura.

    d) Do entendimento formal kantiano razo inferencial hegeliana: Para Kant, a inferncia no produz uma ampliao, pois um juzo analtico, que dependente de uma teoria representacional. Ou seja, o entendimento a correo inferencial a partir de uma correo representacional. Como meta-juzo analtico a inferncia pertence, portanto, lgica formal, que estuda as formas pertencentes aos juzos uma vez feita a abstrao de qualquer contedo particular emprico, ao invs da lgica transcendental que estuda o contedo transcendental dos juzos (REDDING, 2003, p. 509). O contedo transcendental precisa ser compreendido a partir da distino entre analtico e sinttico do conhecimento a priori. A forma lgica de um juzo deriva das leis lgicas como o princpio da contradio, tornan-do vlidos os juzos sintticos a priori, constituindo o contedo transcendental da experincia e dos conceitos do conhecimento. Kant restringe o contedo trans-cendental aos juzos empricos, negando-o ao produto silogstico da razo (Ver-nunft), vale dizer fora cognoscitiva da razo inferencial (Id., p. 509). Kant demonstra que o uso transcendental da razo no objetivamente vli-do, pois, a inferncia vista como uma atividade puramente formal, que estudada apenas pela lgica geral. A lgica da inferncia considerada, por Kant, como uma lgica da aparncia, estudada pela tradio escolstica sob o nome de dialtica transcendental (cf. Id., p. 509). Kant pe a inferncia dentro da lgica geral, pois o silogismo uma estrutura produzida pela razo. No se pode a partir da inferncia obter um conhecimento sinttico. A ideia da razo pode ser apenas regulativa. Hegel ir se opor a esta limitao da razo inferencial, principalmente no que se refere a seu aspecto puramente formal. Ele devolver lgica a capacidade de produzir pontos de vista objetivos. isso que Brandom chama como a inverso hegeliana na ordem tradicional da explicao semntica. Em contraste com Kant, Hegel quer restituir lgica a capacidade de produzir pontos de vista objetivos isto , a capacidade de produzir verdade sinttica, no apenas analtica (Id., p. 512). Esta a transformao inferencial da razo em Hegel. Brandom faz a amplia-o lgica desta razo inferencial atravs do inferencialismo pragmtico, que se articula estrategicamente na primazia da pragmtica sobre a semntica, no infe-rencialismo expressivista, proposicional e holstico.

    1.3. Uma Ampliao Lgica: Inferencialismo Pragmtico2Brandom, em seu livro Articulando Razes: Uma Introduo ao Inferencia-lismo (2000), torna explcita as estratgias que ele usou em Making it Explicit. Po-dem-se enumerar quatro estratgias inferencialistas: (a) A primazia da pragmtica sobre a semntica, porque o uso explica o contedo; (b) A adoo do expressivismo

    2 Esta parte est ba-seada no artigo de ALVES, Marco Ant-nio Sousa. O Inferen-cialismo de Robert Brandom e a Rejeio da Anlise da Signifi-cao em Termos de Referncia. In: PERI, v. 02, n. 02, 2010, p. 1-14. Disponvel em: http://nexos.ufsc.br/index.php/peri/arti-cle/viewFile/70/27.

  • 31Silogismo e inferencialismo: aproximaes entre Hegel e Brandom

    racionalista, porque a lgica desempenha a funo de tornar o que est implcito na ao, explcito no discurso; (c) A adoo do ponto de vista proposicional que su-pera o representacionismo nominalista, porque so os usos pragmticos que expli-cam as expresses subsentenciais; (d) A adoo do holismo semntico, pois torna possvel compreender um conceito em relao a outros conceitos.

    a) Inferencialismo pragmticoBrandom explica o contedo dos conceitos a partir de seus usos, ou seja, com-preender um contedo proposicional uma espcie de know-how, um domnio pr-tico de um jogo de dar e pedir razes. Assim, a compreenso de um conceito ter um domnio prtico sobre as inferncias envolvidas nele, ou seja, dominar as prticas de dar e pedir razes. As relaes semnticas so entendidas como o scorekeeping prag-mtico, ou seja, como um jogo em que os resultados de cada participante conta pon-tos, quando suas jogadas so bem sucedidas. Isto ocorre quando os compromissos e direitos so reconhecidos e realizados. Portanto, o contedo semntico est ligado ao significado pragmtico, compreendendo a inferncia de forma pragmtica, como um tipo de ao. O aspecto representacional do contedo proposicional entendido a partir da dimenso social da comunicao de razes. A partir da prtica ou ativida-de de aplicar conceitos, Brandom elabora o contedo conceitual.

    b) Inferencialismo expressivista racionalO conceito de atividade no apenas uma questo de representao, mas um problema de expresso. Brandom defende, ento, um expressivismo na lgica e um inferencialismo no contedo. O vocabulrio lgico explicita as inferncias que esto implcitas na prtica. O expressivismo pensado no sentido pragmtico, ou seja, tornar algo que know-how em know-that. Tudo o que est expresso numa prtica implcita pode se tornar explcito. Compreender o conceito explcito do-minar seus usos inferenciais, o que um compromisso inferencialmente articulado. O expressivismo racionalista de Brandom no pode ser confundido com o expres-sivismo romntico tradicional, que enfatizava a espontaneidade, transformando o que sentimento interno em gesto externo. O expressivismo racionalista implica um jogo de dar e pedir razes. colocar algo no conceito, de forma explcita. Agora, ser explcito no sentido conceitual um papel especificamente inferencial, ou seja, servir como uma premissa ou concluso de uma inferncia. Para tornar explci-to um know-how, tornando uma declarao num contedo proposicional, usa-se o vocabulrio bsico lgico. Nossa linguagem, por exemplo, rica o suficiente para conter condicionais (se x, ento y), podendo ainda incluir quantificadores (se algo x, ento y), e tambm negaes (se x y, ento no z), por isso, as afirmaes condicionais, consideradas paradigmticas para um inferencialista, tornam expl-citas as relaes inferenciais (ALVES, 2010, p. 4).

    c) Inferencialismo proposicional

    Ao invs de abordar o significado de uma explicao de baixo para cima (as-

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    cendente), comeando com as partes de significaes subsentenciais, de um modo nominalista representacional, Brandom realiza uma explicao a partir de uma abordagem de cima para baixo (descendente), que comea com o uso de concei-tos e contedo proposicionais, fazendo uma conexo entre proposicionalismo e pragmatismo. A questo de termos singulares tratada desta segunda maneira, sem buscar o conceito de um objeto ou estado de coisas, porque, fazendo o cami-nho oposto, o inferencialista define o que o objeto e o termo singular a partir dos usos pragmticos. As explicaes do inferencialismo semntico comeam com as propriedades da inferncia para explicar o contedo proposicional e, depois, tornar inteligveis os contedos conceituais expressos em subsentenciais, termos singulares e predicados.

    d) Inferencialismo holsticoBrandom defende que, ao invs do atomismo semntico, deve-se adotar o in-ferencialismo holstico. O inferencialismo holstico porque diz que voc no pode ter qualquer conceito quando voc no tem pelo menos alguns. Ou seja, o conte-do de cada conceito articulado nas relaes inferenciais com outros conceitos: Conceitos devem vir em pacotes (BRANDOM, 2000, p. 16). Isso no significa que eles so dados em um nico pacote, mas eles j esto articulados em pacotes de significado de uma forma holstica.

    Assim sendo, para o inferencialismo de Brandom (2000), o significado en-tendido como inferncia; ou seja, o contedo semntico deve ser entendido em ter-mos de papis inferenciais, no em termos de referncias ou representacionalistas (cf. ALVES, 2010, p. 4-5).Constatamos, portanto, ao longo desta exposio, que o silogismo hegeliano, como exposto em sua Lgica, realiza uma mudana de paradigma lgico, pois amplia uma razo formal subjetiva, articulando-a na fora da razo inferencial ob-jetiva. No se trata de corrigir o silogismo ou o quadrado lgico aristotlico, mas de estabelecer uma nova normatividade conceitual segundo a lgica dialtico-especu-lativa inferencial. Alm disso, vimos que Robert Brandom torna explcita a lgica do silogismo como uma pragmtica inferencial normativa, atualizando a filosofia hegeliana e provando o potencial inovador de sua lgica em compreender o real, tornando possvel uma aproximao entre essas filosofias.

    2. Atualidade Hegeliana na Filosofia Analtica

    Robert Brandom escreveu o artigo Hegel e a Filosofia analtica (2011) com o objetivo de responder a alguns pontos crticos que Paul Redding estabelece em seu livro, Analytic Philosophy and the Return of Hegelian Thought, e de fazer uma anlise da recepo de Hegel pela Filosofia Analtica. Dentro dessa perspectiva,

  • 33Silogismo e inferencialismo: aproximaes entre Hegel e Brandom

    nesta parte tomamos as principais ideias de Brandom em sua discusso com Re-dding e explicitamos os principais conceitos hegelianos que emergem desse deba-te: a partir desses conceitos, podemos, ento, estabelecer a relao entre seu hege-lianismo e o inferencialismo que Brandom desenvolve em seu Articulating Reasons.a) Atomismo ou holismo semntico: o caminho da aproximao

    Inicialmente, Brandom fornece uma breve histria da tradio analtica por meio dos conceitos de atomismo e holismo semntico. Em sua filosofia, Russell de-fende o atomismo lgico e insiste no modelo atomstico, comeando com objetos, proposies e relaes inferenciais com a mesma ordem da lgica tradicional, a doutrina dos conceitos, juzos e silogismos. No obstante, o primeiro passo na es-trada holstica para Hegel foi tomado por Kant, que rompera com a ordem tradicio-nal da explanao semntica e lgica ao insistir na primazia do juzo (BRANDOM, 2011, p. 2), e foi continuado por Frege, que segue esta ideia kantiana na forma de seu princpio do contexto, para o qual, apenas no contexto de uma sentena os nomes tm uma referncia (BRANDOM, 2011, p. 2). Sob esse vis, igualmente, Wittgenstein v a frase como a mnima unidade lingustica que pode ser usada para fazer um movimento em um jogo de linguagem (BRANDOM, 2011, p. 2). Con-forme lembra Brandom, para Redding, com Kant, Frege e o segundo Wittgenstein que a filosofia analtica aproximou-se de Hegel, de modo que, com esta aproxima-o, passamos do atomismo semntico, lgico e metafsico a um holismo semnti-co, lgico e metafsico.

    Brandom entende que estas vertentes de tradio analtica foram represen-tadas tambm no pragmatismo clssico norte-americano com James, como um empirista-atomista, Peirce, como um kantiano, Dewey, como um hegeliano, e com Quine, como um analtico lgico que props a unidade mnima de significado, no na proposio, mas em toda a teoria: nessa perspectiva, Quine endossa este mo-vimento holstico com seu slogan: [o] Significado no que a essncia se torna, quando desanexada da coisa e anexada palavra (BRANDOM, 2011, p 5), cujo desenvolvimento dinmico e ativo at hoje, de maneira que, agora, assim como o dia sucede noite, vemos os primeiros sinais do que Redding chama de o retor-no do pensamento hegeliano nos crculos analticos, diz Brandom (2011, p. 5). Wilfrid Sellars esperava que seu trabalho comeasse a mover a filosofia analtica de sua fase humeana kantiana. Rorty caracterizou o trabalho de Brandom e de John McDowell como um apoio potencial no movimento de uma fase kantiana a uma fase hegeliana3, mudana que, a seu ver, precisa se dar, da ordem da explica-o semntica e ontolgica baseada nos juzos e no entendimento, inferncia e a razo, isto mover-se da estrutura do Verstand quela da Vernunft (BRANDOM, 2011, p. 9). O holismo semntico articula-se atravs dos conceitos de negao de-terminada e mediao.

    3 Ver BRANDOM, 2011, p. 6.

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    b) Negao determinada e MediaoDe acordo com Brandom, o principal conceito da lgica, da semntica e da metafsica de Hegel a negao determinada. Ela um conceito modal (BRAN-DOM, 2011, p. 12). Embora, para ele, a mediao seja, igualmente, um conceito muito importante, , todavia, subordinado negao determinada (ver nota 8, p. 12), assim, ele entende a mediao nas relaes inferenciais como derivadas do termo mdio de um silogismo que se move a partir de premissas maiores e meno-res concluso.

    [A]s relaes inferenciais que Hegel tem em mente so pensadas como infe-rncias modalmente robustas do tipo que poderia ser expressas por condicio-nais contrafactuais [e] inferncias podem ser definidas em termos das incom-patibilidades materiais (negaes determinadas) (BRANDOM, 2011, p. 12).

    Observe o seguinte exemplo oferecido por Brandom: uma vez que p implica q, tudo o que incompatvel com q incompatvel com p. Assim, Pedro um asno implica Pedro um mamfero, porque tudo o que incompatvel com ser um mamfero incompatvel com ser um asno. Neste sentido, percebe-se que Bran-dom tem em mente aqui, os conceitos de inferencialismo e holismo semntico: o inferencialismo no sentido de mostrar as implicaes lgicas implcitas em todas as nossas inferncias e o holismo como armao semntica, na qual todas as ex-presses que figuram nas sentenas possuem uma relao que nos obriga a aceitar ou rejeitar certas substituies.

    Brandom explica o conceito de negao determinada, a partir do captulo Percepo da Fenomenologia do Esprito, por meio de dois tipos de diferena: (1) diferena indiferente (gleichgltige) e (2) diferena excludente (ausschlieende). Nota-se que quadrado e vermelho so propriedades diferentes, no primeiro sentido, enquanto que quadrado e circular so diferentes no segundo sentido, elas so incompatveis porque impossvel na lgica modal altica, ao mesmo tempo, ser e no ser. Neste exemplo, a negao determinada tem tambm um sentido tanto como negao formal quanto como abstrata. Como observa Re-dding, negaes determinadas so anlogos aos contrrios aristotlicos, enquan-to negaes formais so anlogas aos contraditrios aristotlicos (BRANDOM, 2011, p 13). Em outras palavras, [o] termo negao produz o contrrio do termo negado, enquanto negar, ao invs de afirmar um predicado de um sujeito, produz uma sentena que contraditria afirmao (BRANDOM, 2011, p 13). Desse modo, Brandom conclui:

    [a]pesar de tudo, podemos usar a negao formal clssica para formar os contraditrios dos predicados, tambm como fizemos com o no-quadrado acima O passo importante da inconsistncia formal incompatibilidade ma-terial (BRANDOM, 2011, p. 13).

  • 35Silogismo e inferencialismo: aproximaes entre Hegel e Brandom

    Brandom contrasta a idia de inferncia material ao da inferncia formal. Uma inferncia formal aquela que obedece a uma regra da inferncia explicita-mente formulada, que se aplica independentemente do contedo da inferncia. Uma inferncia material, em primeiro lugar, uma inferncia que depende do contedo das afirmaes que esto sendo inferidas. Ou seja, no lado da inferncia, este o passo que Sellars chama de inferncias materiais; estas so inferncias, tais como, [e]st chovendo, por isso as ruas estaro molhadas (BRANDOM, 2011, p 14.). Inferncia material, em segundo lugar, inferncia, onde o contedo em si importante para a inferncia em si - onde o movimento inferencial deve ser en-tendido no em termos de uma premissa oculta que torna a inferncia uma lgica formal, mas em termos de uma proposio simplesmente implicando outra, em virtude do contedo das proposies elas mesmas, sem qualquer operao adicio-nal de mediador. Brandom acredita que a inferncia material , explicativamente, anterior inferncia formal - que a inferncia formal deve ser explicada em termos da inferncia material, e no o contrrio. A resposta para Redding , finalmente:

    [e]u no penso que a centralidade do conceito de negao determinada ao empreendimento de Hegel nos d qualquer razo para pensar que o signifi-cado de Hegel ser mascarado, se no o seguirmos em colocar seus objetivos na estrutura da lgica de termos (BRANDOM, 2011, p. 14).A negao determinada um conceito ligado lgica do entendimento, en-quanto mediao vincula-se a razo.c) Entendimento e Razo: Kant, Frege e HegelBrandom distingue os dois conceitos: o entendimento uma categoria lgi-

    co-semntica colocada em nvel do juzo e est ligada s abordagens kantiana e fre-geana, ao passo que, a razo um conceito hegeliano articulado pela incompati-bilidade material e as relaes de consequncia. Mas a lgica fregeana diz respeito inconsistncia e consequncia formais (BRANDOM, 2011, p 15). A partir deste pressuposto, Brandom responde a Redding: [m]as do fato de eu usar o aparato fregeano no se segue a concluso de que eu no esteja capturando o que distin-tivo na estrutura da Vernunft de Hegel (BRANDOM, 2011, p. 15). Brandom usa o conceito de inferncia e contedo conceitual de Frege:

    [o] contedo conceitual determinado pelo papel inferencial. [] claro que as inferncias que ele [Frege] tem em mente, como articuladoras desses