gilles deleuze a filosofia crítica de kant

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Nesta coleção publicam-se

textos considerados representativos dos nomes importantes da Filosofia,

assim como de investigadores de reconhecido mérito

nos mais diversos campos do pensamento filosófico.

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1 - A EPISTEMOLOGIA

Gaston Bacheland 2 - IDEOLOGIA E RACIONALIDADE NAS CIÊNCIAS DA VIDA

Georges Canguilhem 3 - A FILOSOFIA CRITICA DE KANT

Gilles Deleuze 4 - O NOVO ESPÍRITO CIENTÍFICO

Gaston Bachclard 5 - A FILOSOFIA CHINESA

Max Kaltenmark 6 - A FILOSOFIA DA MATEMÁTICA

Ambrosio Giacomo Manno 7 - PROLEGÔMENOS A TODA A METAFÍSICA FUTURA

Immanuel Kant 8 - ROUSSEAU E MARX

Galvano Delta Volpe 9 - BREVE HISTÓRIA DO ATEÍSMO OCIDENTAL

Jantes Thrower II) - FILOSOFIA DA FÍSICA

Mario Bunge 11 - A TRADIÇÃO INTELECTUAL DO OCIDENTE

J. Bronowskì e Bruce Mazlish 12 - A LÓGICA COMO CIÊNCIA HISTÓRICA

Galvano DeIla Volpe 13 - A HISTÓRIA DA LÓGICA - DE ARISTÓTELES A BERTRAND RUSSEL

Robert Blanché 14 - A RAZÃO

Gilles-Gaston Granger 15 - HERMENÊUTICA

Richard E. Palmer 16 - A FILOSOFIA ANTIGA

Emanuele Severino 17 - A FILOSOFIA MODERNA

Emanuele Severino 18 - A FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA

Emanuele Severino 19 - EXPOSIÇÃO E INTERPRETAÇÃO DA FILOSOFIA TEÓRICA DE KANT

Felix Grayeff 20 - TEORIAS DA LINGUAGEM. TEORIAS DA APRENDIZAGEM

Massimo Piattelli - Palmarini (org.) 21 - A REVOLUÇÃO NA CIÊNCIA 1500-1700

A. Rupert HalI 22 - INTRODUÇÃO À FILOSOFIA DA HISTÓRIA DE HEGEL

Jean Hyppolite 23 - AS FILOSOFIAS DA CIÊNCIA

Rum Harré 24 - GALILEU E NEWTON LIDOS POR EINSTEIN

Françoise Balibar 25 - A S RAZÕES DA CIÊNCIA

Ludovico Geymonat e Giulio Giorello 26 - A FILOSOFIA DE DESCARTES

John Cottingham 27 - INTRODUÇÃO A HEIDEGGER

Gianni Vattìmo 28 - HERMENÊUTICA E SOCIOLOGIA DO CONHECIMENTO

Susan J. Hekman 29 - EPISTEMOLOGIA CONTEMPORÂNEA

Jonathan Dane),

30 - HERMENÊUTICA CONTEMPORÂNEA Josef Bleicher

31 - CRÍTICA DA RAZÃO CIENTÍFICA Kurt Hübner

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A FILOSOFIA CRÍTICA

DE KANT

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Título original: La philosophie critique de Kant

© 1963, Presses Universitaires de France

Tradução de Germiniano Franco

Capa de Edições 70

Todos os direitos reservados para língua portuguesa por Edições 70, Lda. Lisboa – Portugal

Depósito legal n° 84760/94

ISBN: 972-44-0289-4

EDIÇÕES 70, LDA. Rua Luciano Cordeiro, 123 - 2.° Esq.° – 1069-157 Lisboa / Portugal

Tel.: 21 3190240 Fax: 21 3190249

Esta obra está protegida pela lei. Não pode ser reproduzida, no todo ou em parte, qualquer que seja o modo utilizado,

incluindo fotocópia e xerocópia, sem prévia autorização do Editor. Qualquer transgressão à lei dos Direitos do Autor será passível

de procedimento judicial.

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Introdução

O MÉTODO TRANSCENDENTAL A razão segundo Kant

Kant define a filosofia como «a ciência da relação entre todos os

conhecimentos e os fins essenciais da razão humana»; ou como «o amor que o ser racional experimenta pelos fins supremos da razão humana» (1). Os fins supremos da Razão formam o sistema da Cultura. Reconhecemos já nestas definições uma dupla luta: contra o empirismo, contra o racionalismo dogmático.

Para o empirismo, a razão não é, falando com propriedade, faculdade dos fins. Estes remetem para uma afetividade primordial, para uma «natureza» capaz de os estabelecer. A originalidade da razão consiste antes numa certa maneira de realizar fins comuns ao homem e ao animal. A razão é faculdade de ajustar meios indiretos, oblíquos; a cultura é manha, cálculo, rodeio. Decerto que os meios originais reagem sobre os fins e os transformam; porém, em última instância, os fins são sempre os da natureza.

Contra o empirismo, Kant afirma que há fins da cultura, fins inerentes à razão. Mais ainda, só os fins culturais podem ser considerados absolutamente derradeiros. «O fim último é um ______________________

(1) Crítica da Razão pura (CRP), e Opus postumum.

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fim de tal ordem que a natureza não pode bastar para o efetuar e realizar em conformidade com a idéia, pois tal fim é absoluto (2).»

Os argumentos de Kant a este respeito são de três espécies. Argumento de valor: se a razão apenas servisse para realizar fins da natureza, vemos mal como poderia ela ter um valor superior à simples animalidade (é evidente que deve possuir, na medida em que existe, uma utilidade e um uso naturais; mas ela não existe senão em relação com uma utilidade mais elevada donde retira o seu valor). Argumento por absurdo: se a Natureza tivesse querido... (Se a natureza tivesse querido realizar os seus próprios fins num ser dotado de razão teria feito mal em confiar-se ao que há nele de racional, tendo sido preferível que se entregasse ao instinto, tanto pelos meios como pelo fim.) Argumento de conflito: se a razão não passasse de uma faculdade dos meios, não se percebe de que modo dois gêneros de fins poderiam opôr-se no homem, como espécie animal e como espécie moral (por exemplo, deixo de ser uma criança do ponto de vista da Natureza quando me torno capaz de ter filhos; mas sou ainda uma criança do ponto de vista da cultura, já que não possuo ofício, que me falta apren-der tudo).

O racionalismo, por seu lado, reconhece sem dúvida que o ser dotado de razão persegue fins propriamente racionais. Mas, neste caso, o que a razão apreende como fim é ainda algo exterior e superior: um Ser, um Bem, um Valor, tomados como regra. da vontade. Por conseguinte, há menos diferença do que se poderia crer entre o racionalismo e o empirismo. Um fim é uma representação que determina a vontade. Enquanto a representação é a de alguma coisa exterior à vontade, importa pouco que ela seja sensível ou puramente racional; de qualquer maneira, ela só determina o querer pela satisfação ligada ao «objeto» que representa. Quer se considere uma representação sensível ou racional, «o sentimento de prazer pelo qual elas formam o princípio determinante da vontade... é de uma única e mesma espécie, não apenas na medida em que ele nunca pode ser conhecido senão empiricamente, mas também em virtude de afetar uma única e mesma força vital» (3).

Contra o racionalismo, Kant põe em realce que não somente os fins supremos são fins da razão, como ainda a razão não estabelece outra coisa senão ela própria ao estabelecê-los. Nos fins ________________________

(2) Crítica do Juízo (CJ), § 84. (3) Crítica da Razão prática (CRPr), Analítica, escólio 1 do teorema 2.

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da razão, é a razão que se toma a si mesma como fim. Há, pois, interesses da razão, mas, além disso, a razão é o único juiz dos seus próprios interesses. Os fins ou interesses da razão não são julgáveis nem pela experiência nem por outras instâncias que permaneçam exteriores ou superiores à razão. Kant recusa de antemão as decisões empíricas e os tribunais teológicos. «Todos os conceitos, inclusive todas as questões que a razão pura nos propõe, residem não na experiência, mas na razão... Foi a razão que engendrou sozinha estas idéias no seu seio; incumbe-lhe portanto a ela dar conta do respectivo valor ou inanidade (4).» Uma Crítica imanente, a razão como juiz da razão, tal é o princípio essencial do método dito transcendental. Este método propõe-se determinar: 1.° A verdadeira natureza dos interesses ou dos fins da razão; 2.° Os meios de realizar estes interesses.

Primeiro sentido da palavra faculdade

Toda a representação está relacionada com algo diferente de si, objeto e sujeito. Distinguimos tantas faculdades do espírito quantos os tipos de relações existentes. Em primeiro lugar, uma representação pode ser referida ao objeto do ponto de vista do acordo ou da conformidade: este caso, o mais simples, define a faculdade de conhecer. Mas, em segundo lugar, a representação pode entrar numa relação de causalidade com o seu objeto. Tal é o caso da faculdade de desejar: «faculdade de ser pelas suas representações causa da realidade dos objetos destas representações.» (Objectar-se-á que existem desejos impossíveis; mas, neste exemplo, está ainda implicada na representação como tal uma relação causal, se bem que esta depare com uma outra causalidade que acaba de contradizer. A superstição mostra ampla-mente que nem sequer a consciência da nossa impotência «pode refrear os nossos esforços») (5). Enfim, a representação está em relação com o sujeito, visto que tem um certo efeito sobre ele, visto que o afeta intensificando ou entravando a sua força vital. Esta terceira relação define, como faculdade, o sentimento de prazer e de dor.

Talvez não haja prazer sem desejo, desejo sem prazer, prazer e desejo sem conhecimento..., etc. Mas a questão não é

____________________

(4) CRP, Metodologia, «da impossibilidade em que se vê a razão em desacordo consigo mesma de encontrar a paz no cepticismo».

(5) CJ, introd., § 3.

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esta. Não se trata de saber quais as misturas de fato. Trata-se de saber se cada uma destas faculdades, tal como é definida de direito, é capaz de uma forma superior. Diz-se que uma faculdade tem uma forma superior quando ela acha em si mesma a lei do seu próprio exercício (ainda que, desta lei, decorra uma relação necessária com uma das outras faculdades). Sob a sua forma superior, uma faculdade é, pois, autônoma. A Crítica da Razão pura começa por perguntar: há uma faculdade de conhecer superior? A Crítica da Razão prática: há uma faculdade de desejar superior? A Crítica do Juízo: há uma forma superior do prazer e da dor? (Durante muito tempo, Kant só admitiu esta última possibilidade.)

Faculdade de conhecer superior

Uma representação não basta só por si para formar um conhecimento. Para conhecermos alguma coisa, é necessário não só termos uma representação mas também sairmos dela «para reconhecer uma outra como estando-lhe ligada». O conhecimento é, portanto, síntese de representações. «Pensamos encontrar fora do conceito A um predicado F que é estranho a este conceito, mas que julgamos dever unir a ele»; afirmamos do objeto de uma representação algo que não está contido nesta representação. Ora, uma tal síntese apresenta-se sob duas formas: a posteriori, quando ela depende da experiência. Se digo «esta linha reta é branca», trata-se realmente de um encontro entre duas determinações indiferentes: nem todas as linhas ratas são brancas e as que o são não o são necessariamente.

Ao invés, quando digo «a linha reta é o mais curto caminho», «tudo aquilo que muda tem uma causa», opero uma síntese a priori : afirmo B acerca de A supondo o primeiro necessária e universalmente ligado ao segundo. (B é, pois, ele próprio, uma representação a priori ; quanto a A, pode sê-lo ou não.) Os caracteres do a priori são o universal e o necessário. Mas a definição do a priori é: independente da experiência. Pode acontecer que o a priori se aplique à experiência e, em certos casos, não se aplique senão a ela; mas não deriva dela. Por definição, não há experiência que corresponda às palavras «todos», «sempre», «necessariamente»... O mais curto não é um comparativo ou o resultado de uma indução, mas uma regra a priori pela qual gero uma linha enquanto linha reta. Causa também não é o produto de uma indução, mas um conceito a priori pelo qual reconheço na experiência alguma coisa que acontece.

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Sempre que a síntese for empírica, a faculdade de conhecer aparece sob a sua forma inferior: encontra a sua lei na experiência e não em si mesma. Mas, a síntese a priori define uma faculdade de conhecer superior. Com efeito, esta já se não pauta por objetos que lhe dariam uma lei; pelo contrário, é a síntese a priori que atribui ao objeto uma propriedade que não estava contida na representação. E então preciso que o próprio objeto seja submetido à síntese de representação, que ele mesmo se paute pela nossa faculdade de conhecer, e não o inverso. Quando a faculdade de conhecer acha em si mesma a sua própria lei, legisla desta sorte sobre os objetos de conhecimento.

Eis porque a determinação de uma forma superior da faculdade de conhecer é ao mesmo tempo a determinação de um interesse da Razão: «Conhecimento racional e conhecimento a priori são coisas idênticas», ou os juízos sintéticos a priori são igualmente princípios do que se deve denominar «as ciências teoréticas da razão» (6). Um interesse da razão define-se por aquilo por que a razão se interessa, em função do estado superior de uma faculdade. A Razão experimenta naturalmente um interesse especulativo; e experimenta-o pelos objetos que são necessariamente submetidos à faculdade de conhecer sob a sua forma superior.

Se perguntarmos agora: quais são esses objetos?, vemos imediatamente que seria contraditório responder «as coisas em si». Como é que uma coisa tal qual ela é em si poderia ser submetida à nossa faculdade de conhecer e pautar-se por ela? Só o podem em princípio os objetos tais como eles aparecem, ou seja, os «fenômenos». (Assim, na Crítica da Razão pura, a síntese a priori é independente da experiência, mas não se aplica senão aos objetos da experiência.) Vê-se, pois, que o interesse especulativo da razão incide naturalmente sobre os fenômenos e apenas sobre eles. Não se creia que Kant tem necessidade de longas demonstrações para chegar a este resultado: é um ponto de partida da Crítica, o verdadeiro problema da Crítica da Razão pura começa para lá dele. Se só houvesse o interesse especulativo, seria bastante duvidoso que a razão se empenhasse alguma vez em considerações sobre as coisas em si.

Faculdade de desejar superior

A faculdade de desejar pressupõe uma representação que determina a vontade. Mas bastará, desta vez, invocar a

__________________

(6) CRPr, prefácio; CRP, introd. 5.

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existência de representações a priori para que a síntese da vontade e da representação seja ela própria a priori ? Na verdade, o problema coloca-se de forma assaz diversa. Mesmo quando uma representação é a priori , ela determina a vontade por intermédio de um prazer ligado ao objeto que representa: a síntese permanece assim empírica ou a posteriori; a vontade, determinada de maneira «patológica»; a faculdade de desejar, num estado inferior. Para que esta alcance a sua forma superior, é preciso que a representação deixe de ser uma representação de objeto, mesmo a priori . E preciso que seja a representação de uma pura forma. «Se tirarmos por abstração a uma lei toda a matéria, ou seja, todo o objeto da vontade como princípio determinante, nada mais resta que a simples forma de uma legislação universal (7).» A faculdade de desejar é, pois, superior, e a síntese prática que lhe corres-ponde é a priori , quando a vontade já não é determinada pelo prazer, mas pela simples forma da lei. Então, a faculdade de desejar já não encontra a sua lei fora de si mesma, numa matéria ou num objeto, mas em si mesma: diz-se autônoma (8).

Na lei moral, é a razão por si mesma (sem o intermédio de um sentimento de prazer ou de dor) que determina a vontade. Há, pois, um interesse da razão correspondente à faculdade de desejar superior: interesse prático, que se não confunde nem com um interesse empírico nem com o interesse especulativo. Kant não cessa de lembrar que a Razão prática é profundamente «interessada». Pressentimos assim que a Crítica da Razão prática vai desenvolver-se paralelamente à Crítica da Razão pura: trata-se, antes de mais, de saber qual é a natureza deste interesse e o que ele abarca. Isto é: achando a faculdade de. desejar a sua própria lei em si mesma, qual é o campo de incidência desta legislação? Quais os seres ou os objetos que se encontram submetidos à síntese prática? Todavia, não está posto de parte que, mau grado o paralelismo das questões, a resposta seja aqui muito mais complexa do que no caso precedente. Ser-nos-á assim permitido adiar para mais tarde o exame desta resposta. (Mais ainda: ser-nos-á provisoriamente permitido não examinar a questão de uma forma superior do prazer e da dor, porquanto o sentido desta questão pressupõe também as duas outras Críticas.)

___________________ (7) CRPr, Analítica, teorema 3. (8) Para a Crítica da Razão prática, deve consultar-se a introdução de M.

ALQUIÉ, na edição das Presses Universitaires de France, e o livro de VIALATOUX, na coleção «SUP-Initiation philosophique».

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Basta-nos reter o princípio de uma tese essencial da Crítica em geral: há interesses da razão que diferem em natureza. Estes interesses formam um sistema orgânico e hierarquizado, que é o dos fins do ser racional. Acontece que os racionalistas só retêm o interesse especulativo: afigura-se-lhes que os interesses práticos apenas decorrem daquele. Mas tal inflação do interesse especulativo tem duas conseqüências aborrecidas: é-se induzido em erro quanto aos verdadeiros fins da especulação, mas, acima de tudo, restringe-se a razão a um só dos seus interesses. A pretexto de desenvolver o interesse especulativo, mutila-se a razão nos seus interesses mais profundos. A idéia de uma pluralidade (e de uma hierarquia) sistemática dos interesses, em conformidade com o primeiro sentido da palavra «faculdade», domina o método kantiano. Esta idéia é um autêntico princípio, princípio de um sistema dos fins.

Segundo sentido da palavra faculdade

Num primeiro sentido, faculdade remete para as diversas relações de uma representação em geral. Mas, num segundo sentido, faculdade designa uma fonte específica de representações. Distinguir-se-ão assim tantas faculdades quantas as espécies de representações existentes. O quadro mais simples, do ponto de vista do conhecimento, é o seguinte: 1.° Intuição (representação singular que se refere imediatamente a um objeto de experiência e que tem a sua fonte na sensibilidade); 2.° Conceito (representação que se refere mediatamente a um objeto de experiência, por intermédio de outras representações, e que tem a sua fonte no entendimento); 3.° Idéia (conceito que supera igualmente a possibilidade da experiência e que tem a sua fonte na razão) (9).

No entanto, a noção de representação, tal como a empregamos até agora, permanece vaga. De uma maneira mais precisa, devemos distinguir a representação e o que se apresenta. O que se nos apresenta é, em primeiro lugar, o objeto tal como ele aparece. Ainda aqui a palavra «objeto» está a mais. O que se nos apresenta ou o que aparece na intuição é, antes de tudo, o fenômeno enquanto diversidade sensível empírica (a posteriori). Vemos que, em Kant, fenômeno não quer dizer aparência, mas aparição (10). ___________________

(9) CRP, Dialéctica, «Das idéias em geral». (10) CRP, Estética, § 8 («Não digo que os corpos se limitam a parecer existir

fora de mim... Enganar-me-ia se não visse senão uma pura aparência naquilo que deveria olhar como um fenômeno»).

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O fenômeno aparece no espaço e no tempo: o espaço e o tempo são para nós as formas de toda a aparição possível, as formas puras da nossa intuição ou da nossa sensibilidade. Enquanto tais, são por sua vez apresentações: neste caso, apresentações a priori . O que se apresenta não é, pois, unicamente a diversidade fenomenal empírica no espaço e no tempo, mas a diversidade pura a priori do espaço e do tempo em si mesmos. A intuição pura (o espaço e o tempo) é precisamente a única coisa que a sensibilidade apresenta a priori .

Falando com propriedade, não diremos que a própria intuição a priori seja uma representação nem que a sensibilidade seja uma fonte de representações. O que conta na representação é o prefixo: re-presentação implica uma retomada ativa daquilo que se apresenta, portanto, uma atividade e uma unidade que se distinguem da passividade e da diversidade inerentes à sensibilidade como tal. Deste ponto de vista, já não temos necessidade de definir o conhecimento como uma síntese de representações. É a própria reapresentação que se define como conhecimento, isto é, como a síntese do que se apresenta.

Devemos distinguir, por um lado, a sensibilidade intuitiva como faculdade de recepção e, por outro, as faculdades ativas como fontes de verdadeiras representações. Tomada na sua atividade, a síntese remete para a imaginação; na sua unidade, para o entendimento; na sua totalidade, para a razão. Temos assim três faculdades ativas que intervêm na síntese, mas que são do mesmo modo fontes de representações específicas, quando se considera uma delas em relação a outra: a imaginação, o entendimento, a razão. A nossa constituição é de tal ordem que possuímos uma faculdade receptiva e três faculdades ativas. (Podemos supor outros seres diferentemente constituídos; por exemplo, um ser divino cujo entendimento seria intuitivo e produziria o diverso. Mas então todas as suas faculdades se reuniriam numa unidade eminente. A idéia de um tal Ser como limite pode inspirar a nossa razão, mas não exprime a nossa razão nem a sua situação relativamente às nossas outras faculdades.)

Relação entre os dois sentidos da palavra faculdade

Consideremos uma faculdade no primeiro sentido: sob a sua forma superior, ela é autônoma e legislativa; legisla sobre objetos que lhe estão submetidos; corresponde-lhe um interesse da razão. A primeira questão da Crítica em geral, pois: quais são essas formas superiores, que interesses são esses e sobre

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que incidem eles? Mas sobrevém uma segunda questão: como se realiza um interesse da razão? Isto é: o que garante a submissão dos objetos, como são eles submetidos? O que é que legisla verdadeiramente na faculdade considerada? E a imaginação, é o entendimento ou é a razão? Vê-se que, ao definir-se uma faculdade no primeiro sentido da palavra, de tal sorte que lhe corresponda um interesse da razão, devemos ainda procurar uma faculdade, no segundo sentido, capaz de realizar esse interesse ou de garantir a tarefa legisladora. Por outras palavras, nada nos garante que a razão se encarregue por si mesma de realizar o seu próprio interesse.

Seja o exemplo da Crítica da Razão pura. Esta começa por descobrir a faculdade de conhecer superior, portanto, o interesse especulativo da razão. Tal interesse incide sobre os fenômenos; com efeito, visto que não são coisas em si, os fenômenos podem ser submetidos à faculdade de conhecer, e devem sê-lo para que o conhecimento se torne possível. Mas, perguntamos por outro lado, qual é a faculdade, enquanto fonte de representações, que garante esta submissão e realiza este interesse? Qual é a faculdade (no segundo sentido) que legisla na própria faculdade de conhecer? A célebre resposta de Kant é que só o entendimento legisla na faculdade de conhecer ou no interesse especulativo da razão. Não é, pois, a razão que vela, aqui, pelo seu próprio interesse: «A razão pura abandona tudo ao entendimento (11) ...»

Devemos prever que a resposta não será idêntica para cada Crítica: assim, na faculdade de desejar superior, por conseguinte, no interesse prático da razão, é a própria razão que legisla, não deixando a mais ninguém o cuidado de realizar o seu próprio interesse.

A segunda questão da Crítica em geral comporta ainda um outro aspecto. Uma faculdade legisladora, enquanto fonte de representações, não suprime todo o emprego das outras faculdades. Quando o entendimento legisla no interesse de conhecer, a imaginação e a razão nem por isso deixam de desempenhar um papel inteiramente original, mas adaptado a tarefas determinadas pelo entendimento. Quando a própria razão legisla no interesse prático, é o entendimento que deve por seu turno desempenhar um papel original, numa perspectiva determinada pela razão ..., etc. Segundo esta Crítica, o entendimento, a razão e a imaginação entrarão em relações diversas, sob a presidência de uma das faculdades. Há, pois, variações sistemáticas na relação entre faculdades, __________________

(11) CRP, Dialéctica, «das idéias transcendentais».

FK - 2

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consoante consideramos um ou outro interesse da razão. Em suma: a uma certa faculdade no primeiro sentido da palavra (faculdade de conhecer, faculdade de desejar, sentimento de prazer ou de dor) deve corresponder uma certa relação entre faculdades no segundo sentido da palavra (imaginação, entendimento, razão). E por tal motivo que a doutrina das faculdades forma um verdadeiro entrelaçamento, constitutivo do método transcendental.

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Capítulo I

RELAÇÃO DAS FACULDADES NA CRÍTICA DA RAZÃO PURA

«A priori» e transcendental

Os critérios do a priori são o necessário e o universal. O a priori define-se como independente da experiência, mas precisamente porque a experiência nunca nos «dá» nada que seja universal e necessário. As palavras «todos», «sempre», «necessariamente» ou mesmo «amanhã» não remetem para coisa alguma na experiência: não derivam da experiência, ainda que a ela se apliquem. Ora, quando conhecemos, empregamos tais palavras: dizemos mais do que aquilo que nos é dado, ultrapassamos os dados da experiência. Falou-se muitas vezes da influência de Hume sobre Kant. Hume, de fato, foi o primeiro a definir o conhecimento por uma tal superação. Conheço, não quando verifico: «vi mil vezes o Sol nascer», mas quando julgo: «o Sol nascerá amanhã”, “todas as vezes que a água está a 100°, entra necessariamente em ebulição» ...

Kant começa por perguntar: qual é o fato do conhecimento (quid facti)? O fato do conhecimento é termos representações a priori (graças às quais julgamos). Sejam simples «apresentações»: o espaço e o tempo, formas a priori da intuição, intuições elas próprias a priori , que se distinguem das apresentações empíricas

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ou dos conteúdos a posteriori (por exemplo, a cor vermelha). Sejam «representações» propriamente ditas: a substância, a causa, etc., conceitos a priori que se distinguem dos conceitos empíricos (por exemplo, o conceito de leão). A questão quid facti? é o objeto da metafísica. Que o espaço e o tempo sejam apresentações ou intuições a priori , tal é o objeto do que Kant denomina «a exposição metafísica» do espaço e do tempo. Que o entendimento disponha de conceitos a priori (categorias), os quais se deduzem das formas do juízo, tal é o objeto do que Kant denomina «a dedução metafísica» dos conceitos.

Se superamos o que nos é dado na experiência, é em virtude de princípios que são nossos, princípios necessariamente subjetivos. O dado não pode fundar a operação pela qual ultrapassamos o dado. Todavia, não é suficiente que tenhamos princípios; não menos necessário é que disponhamos da ocasião de os exercer. Digo «o Sol nascerá amanhã», mas amanhã não se torna presente sem que o Sol nasça realmente. Não tardaríamos a perder a ocasião de exercer os nossos princípios se a própria experiência não viesse confirmar e como que efetivar as nossas superações. Importa, pois, que o próprio dado da experiência seja submetido a princípios do mesmo género que os princípios subjetivos que pautam as nossas diligências. Se o Sol umas vezes nascesse e outras não; «se o cinábrio fosse ora vermelho ora negro, ora pesado ora leve; se um homem se transformasse ora num animal ora noutro; se durante um longo dia a terra apare-cesse coberta ora de frutos ora de gelo e neve, a minha imaginação empírica não encontraria ocasião de receber no pensamento o pesado cinábrio com a representação da cor vermelha...»; «a nossa imaginação empírica nunca teria algo para fazer que fosse conforme à sua potência e, por conseguinte, quedar-se-ia enterrada no fundo do espírito como uma faculdade morta e desconhecida de nós mesmos» (1).

Vemos assim em que ponto se realiza a ruptura entre Kant Hume. Hume tinha visto muito bem que o conhecimento implica princípios subjetivos, pelos quais superamos o dado. Mas estes princípios pareciam-lhe apenas princípios da natureza humana, princípios psicológicos de associação concernentes às nossas próprias representações. Kant transforma o problema: o que se nos apresenta de maneira a formar uma Natureza deve necessariamente obedecer a princípios do mesmo género (mais ainda, aos mesmos princípios) que aqueles que regulam o curso _________________

(1) CRP, Analítica, 1.ª ed., «da síntese da reprodução na imaginação».

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das nossas representações. São os mesmos princípios que devem dar conta dos nossos procedimentos subjetivos e também do fato de o dado se submeter aos nossos procedimentos. O que equivale a dizer que a subjetividade dos princípios não é uma subjetividade empírica ou psicológica, mas uma subjetividade «transcendental».

Eis porque, à questão de fato, sucede uma mais alta questão: questão de direito, quid juris? Não basta verificar que, de fato, temos representações a priori . É ainda indispensável que se nos torne claro por que motivo e de que modo tais representações se aplicam necessariamente à experiência, conquanto dela não derivem. Por que motivo e de que modo está o dado que se apresenta na experiência necessariamente submetido aos mesmos princípios que os que regulam a priori as nossas representações (portanto, submetido às nossas próprias representações a priori )? Tal é a questão de direito. A priori designa representações que não derivam da experiência. Transcendental designa o princípio em virtude do qual a experiência é necessariamente submetida às nossas representações a priori . Assim se explica que à exposição metafísica do espaço e do tempo suceda uma exposição transcendental. E à dedução metafísica das categorias, uma dedução transcendental. «Transcendental» qualifica o princípio de uma submissão necessária dos dados da experiência às representações a priori e, correlativamente, de uma aplicação necessária das representações a priori à experiência.

A revolução copernicana

No racionalismo dogmático, a teoria do conhecimento fundava-se na idéia de urna correspondência entre o sujeito e o objeto, de um acordo entre a ordem das idéias e a ordem das coisas. Este acordo tinha dois aspectos: implicava em si mesmo uma finalidade; e exigia um princípio teológico como fonte e garantia dessa harmonia, dessa finalidade. Mas é curioso verificar que, numa perspectiva muito diferente, o empirismo de Hume recorria a um expediente semelhante: para explicar que os prin-cípios da Natureza estivessem de acordo com os da natureza humana, Hume era forçado a invocar explicitamente uma harmonia preestabelecida.

A idéia fundamental do que Kant denomina a sua «revolução copernicana» consiste no seguinte: substituir a idéia de uma harmonia entre o sujeito e o objeto (acordo final) pelo princípio de uma submissão necessária do objeto ao sujeito.

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A descoberta essencial é que a faculdade de conhecer é legisladora ou, mais precisamente, que há algo de legislador na faculdade de conhecer. (De igual modo, algo de legislador na faculdade de desejar.) Assim, o ser dotado de razão descobre em si novos poderes. A primeira coisa que a revolução copernicana nos ensina é que somos nós que comandamos. Há aqui uma inversão da antiga concepção da Sageza: o sábio definia-se de uma certa forma pelas suas próprias submissões, de uma outra forma pelo seu acordo «final» com a Natureza. Kant opõe à sageza a imagem crítica: nós, os legisladores da Natureza. Quando um filósofo, aparentemente muito afastado do kantismo, anuncia a substituição de Parere por Jubere, mostra-se mais devedor a Kant do que ele próprio pensa.

Seria legítimo esperar que o problema de uma submissão do objeto pudesse ser facilmente resolvido do ponto de vista de um idealismo subjetivo. Mas nenhuma solução é mais estranha ao kantismo. O realismo empírico é uma constante da filosofia crítica. Os fenômenos não são aparências, mas também não são produtos da nossa atividade. Afetam-nos na medida em que somos sujeitos passivos e receptivos. Podem ser-nos submetidos, precisamente porque não se trata de coisas em si. Mas como o serão, sabendo-se que não somos nós que os produzimos? Como é que um sujeito passivo pode ter, por outro lado, uma faculdade ativa de tal ordem que as afecções que ele experimenta sejam necessariamente submetidas a esta faculdade? Em Kant, o problema da relação do sujeito e do objeto tende, pois, a interiorizar-se: converte-se no problema de uma relação entre faculdades subjetivas que diferem em natureza (sensibilidade receptiva e entendimento ativo).

A síntese e o entendimento legislador

Representação quer dizer síntese do que se apresenta. A síntese consiste, portanto, no seguinte: uma diversidade é representada, ou seja, tida como encerrada numa representação. A síntese tem dois aspectos: a apreensão, pela qual fixamos o diverso como ocupando um certo espaço e um certo tempo, pela qual «produzimos» partes no espaço e no tempo; a reprodução, pela qual reproduzimos as partes precedentes à medida que chegamos às seguintes. A síntese assim definida não incide somente sobre a diversidade tal como aparece no espaço e no tempo, mas sobre a diversidade do espaço e tempo em si mesmos. Sem ela, com efeito, o espaço e o tempo não seriam «representados».

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A síntese, quer como apreensão quer como reprodução, é sempre definida por Kant como um ato da imaginação (2). Mas a questão é: será inteiramente exato dizer, como fizemos precedentemente, que a síntese basta para constituir o conhecimento? Na verdade, o conhecimento implica duas coisas que extravasam a própria síntese: ele implica a consciência ou, mais precisamente, a pertença das representações a uma mesma consciência na qual devem estar ligadas. Ora, a síntese da imaginação, tomada em si mesma, não é de modo algum consciência de si (3). Por outro lado, o conhecimento implica uma relação necessária com um objeto. O que constitui o conhecimento não é simples-mente o ato pelo qual se faz a síntese do diverso, mas 'o ato pelo qual se refere a um objeto o diverso representado (recognição: é uma mesa, é uma maçã, é tal ou tal objeto...).

Estas duas determinações do conhecimento têm uma relação profunda. As minhas representações são minhas enquanto estão ligadas na unidade de uma consciência, de tal sorte que o «Eu penso» as acompanha. Ora, as representações não estão assim unidas numa consciência sem que o diverso que sintetizam esteja no mesmo passo referido a um objeto qualquer. Sem dúvida, conhecemos unicamente objetos qualificados (qualificados como tal ou tal por uma diversidade). Mas nunca o diverso se referiria a um objeto se porventura não dispuséssemos da objetividade como de uma forma em geral («objeto qualquer», «objeto = x»). Donde vem esta forma? O objeto qualquer é o correlato do Eu penso ou da unidade da consciência, é a expressão do Cogito, sua objetivação formal. Por isso, a verdadeira fórmula (sintética) do Cogito é: penso e, pensando-me, penso o objeto qualquer ao qual se refere uma diversidade representada.

A forma do objeto não remete para a imaginação, mas para o entendimento: «Sustento que o conceito de um objeto em geral, que não é possível encontrar na mais clara consciência da intuição, pertence ao entendimento como a uma faculdade particular (4).» Com efeito, todo o uso do entendimento se desenvolve a partir do Eu penso; mais ainda, a unidade do Eu penso «é o próprio entendimento» (5). O entendimento dispõe de

________________________ (2) CRP, Analítica, passim (cf. 1.ª ed., «da relação entre o entendimento e

objetos em geral»: «Há uma faculdade ativa que opera a síntese dos elementos diversos: denominamo-la imaginação, e à sua ação que se exerce imediatamente nas percepções, chamo-lhe apreensão»).

(3) CRP, Analítica, § 10. (4) Carta a Herz, 26 de Maio de 1789. (5) CRP, Analítica, § 16.

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conceitos a priori que se chamam categorias; se perguntarmos como é que as categorias se definem, veremos que são ao mesmo tempo representações da unidade da consciência e, como tais, predicados do objeto qualquer. Por exemplo, nem todos os objetos são vermelhos, e os que o são não o são necessariamente; mas não há objeto que não seja necessariamente substância, causa e efeito de outra coisa, que não esteja em relação recíproca com outra coisa. A categoria confere assim à síntese da imaginação uma unidade sem a qual esta nos não proporcionaria conhecimento algum propriamente dito. Em suma, podemos dizer o que incumbe ao entendimento: não é a própria síntese, mas a unidade da síntese e as expressões desta unidade.

A tese kantiana é: os fenômenos estão necessariamente submetidos às categorias, de tal modo que, pelas categorias, somos os verdadeiros legisladores da Natureza. Mas a questão é, antes de mais: por que motivo é precisamente o entendimento (e não a imaginação) o legislador? Por que motivo é ele que legisla na faculdade de conhecer? Para encontrar a resposta a esta questão, talvez baste comentar os respectivos termos. E evidente que não poderíamos perguntar: porque é que os fenômenos estão submetidos ao espaço e ao tempo? Os fenômenos são o que aparece, e aparecer é estar imediatamente no espaço e no tempo. «Como é unicamente mediante estas puras formas da sensibilidade que uma coisa pode aparecer-nos, isto é, tornar-se objeto de intuição empírica, o espaço e o tempo são puras intuições que contêm a priori a condição da possibilidade dos objetos como fenômenos (6).» Eis porque o espaço e o tempo são objeto de uma «exposição», não de uma dedução; e a sua exposição transcendental, comparada à exposição metafísica, não levanta qualquer dificuldade particular. Não é possível, portanto, dizer que os fenômenos estão «submetidos» ao espaço e ao tempo: não só porque a sensibilidade é passiva, mas sobretudo porque ela é imediata, além de a idéia de submissão implicar, ao invés, a intervenção de um mediador, isto é, de uma síntese que refira os fenômenos a uma faculdade ativa capaz de ser legisladora.

Por conseguinte, a imaginação também não é faculdade legisladora. A imaginação encarna precisamente a mediação, opera a síntese que refere os fenômenos ao entendimento como única faculdade que legisla no interesse de conhecer. É por isso que Kant escreve: «A razão pura abandona tudo ao entendimento, o qual se aplica imediatamente aos objetos da intuição ou, antes, ______________

(6) CRP, Analítica, § 13.

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à síntese destes objetos na imaginação (7).» Os fenômenos não são submetidos à síntese da imaginação, são submetidos por esta síntese ao entendimento legislador. Ao contrário do espaço e do tempo, as categorias como conceitos do entendimento são, pois, objeto de uma dedução transcendental, que coloca e resolve o problema particular de uma submissão dos fenômenos.

Eis como o problema é resolvido nas suas grandes linhas: 1.° Todos os fenômenos estão no espaço e no tempo; 2.° A síntese a priori da imaginação incide a priori sobre os próprios espaço e tempo; 3.° Os fenômenos estão, portanto, necessariamente submetidos à unidade transcendental desta síntese e às categorias que a representam a priori. E realmente neste sentido que o entendimento é legislador: sem dúvida, ele não nos diz as leis a que estes ou aqueles fenômenos obedecem do ponto de vista da sua matéria, embora constitua as leis a que todos os fenômenos estão submetidos do ponto de vista da sua forma, de tal maneira que eles «formam» uma Natureza sensível em geral.

Papel da imaginação

Perguntamos agora o que faz o entendimento legislador com os seus conceitos ou as suas unidades de síntese. Ele julga: “O entendimento não pode fazer destes conceitos outro uso além do de julgar por seu intermédio (8).» Perguntamos ainda: que faz a imaginação com as suas sínteses? Segundo a célebre resposta de Kant, a imaginação esquematiza. Não se confundirão, pois, na imaginação, a síntese e o esquema. O esquema pressupõe a síntese. A síntese é a determinação de um certo espaço e de um certo tempo, pela qual a diversidade é referida ao objeto em geral conformemente às categorias. Mas o esquema é uma determinação espaço-temporal, ela mesma correspondente à categoria, em qualquer tempo e em qualquer lugar: não consiste numa imagem, mas em relações espaço-temporais que encarnam ou realizam relações propriamente conceptuais. O esquema da imaginação é a condição sob a qual o entendimento legislador faz juízos com os seus conceitos, juízos que servirão de princípio a todo o conhecimento do diverso. Não responde à questão: __________________

(7) CRP, Dialéctica, «das idéias transcendentais». (8) CRP, Analítica, «do uso lógico do entendimento em geral». A

questão de saber se o juízo implica ou forma uma faculdade particular será examinada no capítulo III.

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como é que os fenômenos são submetidos ao entendimento?, mas a estoutra questão: como é que o entendimento se aplica aos fenômenos que lhe são submetidos?

Na circunstância de relações espaço-temporais poderem ser adequadas a relações conceptuais (apesar da sua diferença de natureza) reside, na opinião de Kant, um profundo mistério e uma arte escondida. Mas não devemos apoiar-nos neste texto para pensar que o esquematismo é o ato mais profundo da imaginação ou a sua arte mais espontânea. O esquematismo é um ato original da imaginação: só ela esquematiza. Mas só esquematiza quando o entendimento preside ou tem o poder legislador. Ela. apenas esquematiza no interesse especulativo. Quando o entendimento se encarrega do interesse especulativo, por conseguinte, quando se torna determinante, então e só então a imaginação é determinada a esquematizar. Veremos mais adiante as conseqüências de tal situação.

Papel da razão

O entendimento julga, mas a razão raciocina. Ora, conformemente à doutrina de Aristóteles, Kant concebe o raciocínio de maneira silogística: dado um conceito do entendimento, a razão procura um meio-termo, isto é, outro conceito que, tomado em toda a sua extensão, condicione a atribuição do primeiro conceito a um objeto (assim, homem condiciona a atribuição de «mortal» a Caio). Deste ponto de vista, é pois relativamente aos conceitos do entendimento que a razão exerce o seu gênio próprio: «A razão chega a um conhecimento por meio de atos do entendimento que constituem uma série de condições (9).» Mas, precisamente, a existência de conceitos a priori do entendimento (categorias) coloca um problema particular. As categorias aplicam-se a todos os objetos da experiência possível; para encontrar um meio-termo que fundamente a atribuição do conceito a priori a todos os objetos, a razão já não pode dirigir-se a um outro conceito (mesmo a priori ), antes deve formar Idéias que superam a possibilidade da experiência. É assim que a razão é induzida de uma certa maneira, no seu próprio interesse especulativo, a formar Idéias transcendentais. Estas representam a totalidade das condições sob as quais se atribui uma categoria de relação aos objetos da experiência possível; representam então algo __________________

(9) CRP, Dialéctica, «das idéias transcendentais».

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de incondicional (10). É o caso do sujeito absoluto (Alma) relativamente à categoria de substância, da série completa (Mundo) relativamente à categoria de causalidade, do todo da realidade (Deus como ens realissimum) relativamente à comunidade.

Também aqui se vê que a razão desempenha um papel que só ela é capaz de assumir; mas é determinada a desempenhar tal papel. «A razão só tem propriamente como objeto o entendimento e o seu emprego conforme ao seu fim (11).” Subjetivamente, as Idéias da razão referem-se aos conceitos do entendimento para lhes conferir ao mesmo tempo um máximo de unidade e de extensão sistemáticas. Sem a razão, o entendimento não reuniria num todo o conjunto das suas diligências respeitantes a um objeto. Eis porque razão, a no próprio momento em que abandona ao entendimento o poder legislativo no interesse do conhe-cimento, não deixa de conservar um papel ou, melhor, recebe em troca, do próprio entendimento, uma função original: constituir focos ideais fora da experiência, para os quais convergem os conceitos do entendimento (máximo de unidade); formar horizontes superiores que refletem e abarcam os conceitos do entendimento (máximo de extensão) (12). «A razão pura abandona tudo ao entendimento, que se aplica imediatamente aos objetos da intuição ou, antes, à síntese destes objetos na imaginação. Reserva somente para si a absoluta totalidade no uso dos conceitos do entendimento e procura impelir a unidade sintética concebida na categoria até ao incondicional absoluto (13).”

A razão tem também um papel, objetivamente, pois o entendimento só pode legislar sobre os fenômenos do ponto de vista da forma. Ora, suponhamos que os fenômenos se encontram submetidos à unidade da síntese mas apresentam, do ponto de vista da sua matéria, uma diversidade radical: igualmente aqui, o entendimento deixaria de ter ocasião de exercer o seu poder (desta vez: a ocasião material). «Já nem sequer haveria conceito de género, ou conceito geral, e, por conseqüência, entendimento (14).» É, portanto, necessário, não apenas que os fenômenos do ponto de vista da forma estejam submetidos às categorias, mas ainda que os fenômenos do ponto de vista da matéria correspondam ou simbolizem com as Idéias da razão. __________________

(10) CRP, íbíd. (11) CRP, Dialéctica, apêndice, «do uso regulador das idéias». (12) CRP, ibid.. (13) CRP, Dialéctica, «das idéias transcendentais». (14) CRP, Dialéctica, apêndice, «do uso regulador das idéias».

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Reintroduzem-se a este nível uma harmonia, uma finalidade. Mas vê-se que, neste caso, a harmonia é simplesmente postulada entre a matéria dos fenômenos e as Idéias da razão. Não é lícito dizer, com efeito, que a razão legisla sobre a matéria dos fenômenos. Ela deve supor uma unidade sistemática da Natureza, deve fixar esta unidade como problema ou, como limite e pautar todas as suas diligências pela idéia deste limite até ao infinito. A razão é, pois, a faculdade que diz: tudo se passa como se... Não afirma de modo algum que a totalidade e a unidade das condições são dadas no. objeto, mas apenas que os objetos nos permitem tender para esta unidade sistemática como para o mais alto grau do nosso conhecimento. Assim, os fenômenos na sua matéria correspondem de fato com as Idéias, e as Idéias com a matéria dos fenômenos; porém, em vez de uma submissão necessária e determinada, temos aqui apenas uma correspondência, um acordo indeterminado. A Idéia não é uma ficção, diz Kant; tem um valor objetivo, possui um objeto; mas este objeto é igual-mente «indeterminado», «problemático». Indeterminada no seu objeto, determinável por analogia com os objetos da experiência, carregando o ideal de uma determinação infinita relativamente aos conceitos do entendimento: tais são os três aspectos da Idéia. A razão não se contenta, pois, em raciocinar relativamente aos conceitos do entendimento, ela «simboliza» relativamente à matéria dos fenômenos (15).

Problema da relação entre as faculdades: o senso comum

As três faculdades ativas (imaginação, entendimento, razão) entram assim numa certa relação, que é função do interesse especulativo. E o entendimento que legisla e julga; mas, sob o entendimento, a imaginação sintetiza e esquematiza, a razão raciocina e simboliza, de tal maneira que o conhecimento tenha um máximo de unidade sistemática. Ora, todo o acordo das faculdades entre si define aquilo a que se pode chamar um senso comum.

«Senso comum» é uma expressão perigosa, demasiado marcada pelo empirismo. Portanto, não deve definir-se como um «sentido» particular (uma faculdade particular empírica). Designa, pelo contrário, um acordo a priori das faculdades ou, mais

___________________ (15) A teoria do simbolismo só aparecerá na Crítica do Juízo. Mas a

«analogia», tal como ela é descrita no «apêndice à Dialéctica» da Crítica da Razão pura, é o primeiro esboço desta teoria.

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precisamente, o «resultado» de um tal acordo (16). Deste ponto de vista, o senso comum aparece, não como um dado psicológico, mas como a condição subjetiva de toda a «comunicabilidade». O conhecimento implica um senso comum, sem o qual não seria comunicável e não poderia aspirar à universalidade. Nesta acepção, Kant nunca renunciará ao princípio subjetivo de um senso comum, ou seja, à idéia de uma boa natureza das faculdades, de uma. natureza sã e reta que lhes permite conciliarem-se umas com as outras e formar proporções harmoniosas. «A mais alta filosofia, relativamente aos fins essenciais da natureza humana, não pode conduzir mais longe do que o faz a direção concedida ao senso comum.» Mesmo a razão, do ponto de vista especulativo, desfruta de uma boa natureza que lhe permite estar em acordo com as outras faculdades: as Idéias «são-nos dadas pela natureza da nossa razão, e é impossível que o próprio tribunal supremo de todos os direitos e de todas as pretensões da nossa especulação encerre ilusões e prestígios originais» (17).

Busquemos, antes de mais, as implicações da teoria do senso comum, ainda que elas devam suscitar um problema complexo. Um dos pontos mais originais do kantismo é a idéia de uma diferença de natureza entre as nossas faculdades. Esta diferença de natureza não aparece unicamente entre a faculdade de conhecer, a faculdade de desejar e o sentimento de prazer e de dor, mas também entre as faculdades como fontes de representações. Sensibilidade e entendimento diferem em natureza, uma como faculdade de intuição, a outra como faculdade de conceitos. Também aqui, Kant opõe-se simultaneamente ao dogmatismo e ao empirismo, que, cada qual à sua maneira, afirmavam uma simples diferença de grau (quer diferença de claridade, a partir do entendimento, quer diferença de vivacidade, a partir da sensibilidade). Mas então, para explicar como a sensibilidade passiva se concilia com o entendimento ativo, Kant invoca a síntese e o esquematismo da imaginação que se aplica a priori às formas da sensibilidade em conformidade com os conceitos. Mas, assim, o problema é apenas deslocado: visto que a imaginação e o entendimento diferem também, em natureza, e o acordo entre estas duas faculdades ativas não é menos «misterioso». (O mesmo sucede com o acordo entendimento-razão.)

Parece que Kant se debate com uma dificuldade temível. Vimos que ele recusava a idéia de uma harmonia preestabelecida

______________________ (16) CJ, § 40. (17) CRP, Dialéctica, apêndice, «do objetivo final da dialéctica».

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entre o sujeito e o objeto: substituía-se pelo princípio de uma submissão necessária do objeto ao próprio sujeito. Mas acaso não reencontra ele a idéia de harmonia, simplesmente transposta para o nível das faculdades do sujeito, que diferem em natureza? Não há dúvida de que tal transposição é original. Mas não basta invocar um acordo harmonioso das faculdades nem um senso comum como resultado deste acordo; a Crítica em geral exige um princípio do acordo, com uma gênese do senso comum. (O problema de uma harmonia das faculdades é tão importante que Kant tem tendência a reinterpretar a história da filosofia na sua perspectiva: «Estou persuadido de que Leibniz, com a sua harmonia preestabelecida, que ele estendia a tudo, não pensava na harmonia de dois seres distintos, ser sensível e ser inteligível, mas na harmonia de duas faculdades de um único e mesmo ser, no qual sensibilidade e entendimento se conciliam para um conhecimento de experiência (18).» Mas esta reinterpretação é igual-mente ambígua: parece indicar que Kant invoca um princípio supremo finalista e teológico, da mesma maneira que os seus predecessores. «Se queremos ajuizar da origem destas faculdades, ainda que uma tal pesquisa seja de todo em todo feita para lá dos limites da razão humana, não podemos indicar outro fundamento que não seja o nosso divino criador» (19).)

Todavia, abordemos com mais minúcia o senso comum sob a sua forma especulativa (sensos communis logicus). Ele exprime a harmonia das faculdades no interesse especulativo da razão, ou seja, sob a presidência do entendimento. O acordo das faculdades é aqui determinado pelo entendimento, ou, o que vem a dar no mesmo, faz-se sob conceitos determinados do entendimento. Devemos prever que, do ponto de vista de um outro interesse da razão, as faculdades entram numa outra relação, sob a determinação de outra faculdade, de maneira a formar outro senso comum: por exemplo, um senso comum moral, sob a presidência da própria razão. E por isso que Kant diz que o acordo das faculdades é capaz de várias proporções (consoante é esta ou aquela faculdade que determina a relação) (20). Mas, todas as vezes que nos colocamos assim do ponto de vista de uma relação ou de um acordo já determinado, já especificado, é fatal que o senso comum se nos afigure uma espécie de fato a priori , para lá do qual não podemos avançar. ___________________

(18) Carta a Herz, 26 de Maio de 1789. (19) Ibid. (20) CJ, § 21.

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O mesmo é dizer que as duas primeiras Críticas não podem resolver o problema originário da relação entre as faculdades, mas apenas indicá-lo, e remeter-nos para este problema como para uma tarefa última. Todo o acordo determinado pressupõe, com efeito, que as faculdades, mais profundamente, sejam capazes de um acordo livre e indeterminado (21). E somente ao nível deste acordo livre e indeterminado (sensus communis aestheticus) que poderá pôr-se o problema de um fundamento do acordo ou de uma gênese do senso comum. Eis porque não devemos esperar da Crítica da Razão pura, nem da Crítica da Razão prática, a resposta a uma questão que só adquirirá o seu verdadeiro sentido na Crítica do Juízo. No que diz respeito a um fundamento para a harmonia das faculdades, as suas primeiras Críticas só na última acham o seu acabamento.

Uso legítimo, uso ilegítimo

1.° Apenas os fenômenos podem ser submetidos à faculdade de conhecer (seria contraditório que as coisas em si o fossem). O interesse especulativo incide, portanto, naturalmente sobre os fenômenos; as coisas em si não são objeto de um interesse especulativo natural. 2.° Como é que os fenômenos são precisa-mente submetidos à faculdade de conhecer, e a quê nesta faculdade? São submetidos, pela síntese da imaginação, ao entendimento e aos seus conceitos. E pois o entendimento que legisla na faculdade de conhecer. Se a razão é assim levada a abandonar ao entendimento o cuidado do seu próprio interesse especulativo, é porque ela não se aplica aos fenômenos e forma Idéias que superam a possibilidade da experiência. 3.° O entendimento legisla sobre os fenômenos do ponto de vista da sua forma. Como tal, aplica-se e deve aplicar-se exclusivamente ao que lhe é submetido: não nos fornece conhecimento algum das coisas tais como elas são em si.

Esta exposição não aflora um dos temas fundamentais da Crítica da Razão pura. A títulos diversos, o entendimento e a razão são profundamente atormentados pela ambição de nos fazerem conhecer as coisas em si. Uma tese constantemente recordada por Kant é a de que há ilusões internas e usos ilegítimos das faculdades. Acontece às vezes a imaginação sonhar, em lugar de esquematizar. Mais ainda: em lugar de se aplicar ______________

(21) Ibid.

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exclusivamente aos fenômenos («uso experimental»), acontece ao entendimento pretender aplicar os seus conceitos às coisas tais como elas são em si («uso transcendental»): E ainda não é o mais grave. Em vez de se aplicar aos conceitos do entendimento («uso imanente ou regulador»), acontece à razão pretender aplicar-se diretamente a objetos e querer legislar no domínio do conhecimento («uso transcendente ou constitutivo»). Porque é isto o mais grave? O uso transcendental do entendimento pressupõe apenas que este se abstraia da sua relação com a imaginação. Ora, tal abstração teria apenas efeitos negativos se porventura o entendimento não fosse impelido pela razão, que lhe dá a ilusão de um domínio positivo a conquistar fora da experiência. Como diz Kant, o uso transcendental do entendimento vem unicamente da circunstância de este negligenciar os seus próprios limites, ao passo que o uso transcendente da razão nos ordena que transponhamos os limites do entendimento (22).

É neste sentido que a Crítica da Razão pura merece o seu título: Kant denuncia as ilusões especulativas da Razão, os falsos problemas para os quais ela nos arrasta, a respeito da alma, do mundo e de Deus. Kant substitui o conceito tradicional de erro (o erro como produto, no espírito, de um determinismo externo) pelo de falsos problemas e de ilusões internas. Estas ilusões são ditas inevitáveis e até tidas como resultantes da natureza da razão (23). Tudo o que a Crítica pode fazer é conjurar os efeitos da ilusão sobre o próprio conhecimento, mas não impedir a sua formação na faculdade de conhecer.

Abordamos, desta vez, um problema que respeita plenamente à Crítica da Razão pura. Como conciliar a idéia das ilusões internas da razão ou do uso ilegítimo das faculdades com estoutra idéia, não menos essencial ao kantismo: que as nossas faculdades (incluindo a razão) são dotadas de uma boa natureza e se acordam umas com as outras no interesse especulativo? Por um lado, é-nos dito que o interesse especulativo da razão incide natural e exclusivamente sobre os fenômenos; por outro, que a razão não pode coibir-se de sonhar com um conhecimento das coisas em si e de «se interessar» por elas do ponto de vista especulativo.

Examinemos com mais precisão os dois principais usos ilegítimos. O uso transcendental consiste no seguinte: o entendimento pretende conhecer alguma coisa em geral (logo, independentemente

__________________ (22) CRP, Dialéctica, «da aparência transcendental». (23) CRP, Dialéctica, «dos raciocínios dialécticos da razão pura» e

«apêndice»,

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das condições da sensibilidade). Por conseguinte, esse alguma coisa só pode ser a coisa tal como ela é em si; e só pode ser pensada como supra-sensível («númeno»). Mas, na verdade, é impossível que um tal númeno seja um objeto positivo para o nosso entendimento. O nosso entendimento tem, sem dúvida, como cor-relato a forma do objeto qualquer ou o objeto em geral; mas, precisamente, este só é objeto de conhecimento na medida em que é qualificado por uma diversidade que se lhe refere sob as condições da sensibilidade. Um conhecimento de objeto em geral, que não fosse restringido às condições da nossa sensibilidade, é simplesmente um «conhecimento sem objeto». «O uso puramente transcendental das categorias não é de fato um uso e não tem objeto determinado, nem sequer objeto determinável quanto à forma (24).»

O uso transcendente consiste nisto: a razão pretende por si mesma conhecer alguma coisa de determinado. (Ela determina um objeto como correspondendo à Idéia.) Tendo embora uma formulação aparentemente inversa do uso transcendental do entendimento, o uso transcendente da razão leva ao mesmo resultado: só podemos determinar o objeto de uma Idéia supondo que ele existe em si conformemente às categorias (25). Mais ainda, é esta suposição que conduz o próprio entendimento ao seu uso transcendental ilegítimo, inspirando-lhe a ilusão de um conhecimento de objeto.

Por muito boa que seja a sua natureza, é penoso para a razão ter de se desfazer do cuidado do seu próprio interesse especulativo e remeter para o entendimento o poder legislativo. Mas, neste sentido, nota-se que as ilusões da razão triunfam sobretudo enquanto esta permanece no estado de natureza. Ora, não deve confundir-se o estado de natureza da razão com o seu estado civil, nem mesmo com a sua lei natural que se cumpre no estado civil perfeito (26). A Crítica é precisamente a instauração deste estado civil: à semelhança do contrato dos juristas, ela implica uma renunciação da razão, do ponto de vista especulativo. Mas quando a razão renuncia assim, o interesse especulativo não deixa de ser o seu próprio interesse, e ela realiza plenamente a lei da sua própria natureza.

__________________ (24) CRP, Analítica, «do princípio da distinção de todos os objetos em

geral em fenômenos e númenos». (25) CRP, Dialéctica, «do objetivo final da dialéctica natural». (26) CRP, Metodologia, «disciplina da razão pura relativamente ao seu

uso polêmico».

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Todavia, esta resposta não é suficiente. Não basta referir as ilusões ou perversões ao estado de natureza e a sã constituição ao estado civil ou até à lei natural. Pois as ilusões subsistem sob a lei natural, no estado civil e crítico da razão (mesmo quando elas já não têm o poder de nos enganar). Uma única saída se abre então: é que a razão, por outro lado, experimenta um interesse propriamente legítimo e natural pelas coisas em si, mas um interesse que não é especulativo. Como os interesses da razão não permanecem indiferentes uns aos outros, antes formam um sistema hierarquizado, é inevitável que a sombra do mais alto interesse se projete sobre o outro. Então, até a ilusão toma um sentido positivo e bem fundado, a partir do momento em que cessa de nos enganar: exprime à sua maneira a subordinação do interesse especulativo num sistema dos fins. Jamais a razão especulativa se interessaria pelas coisas em si se estas não fossem primeiro e verdadeiramente objeto de um outro interesse da razão (27). Devemos, portanto, perguntar: qual é esse interesse mais alto? (E é justamente porque o interesse especulativo não é o mais alto que a razão pode remeter-se para o entendimento na legislação da faculdade de conhecer.)

________________ (27) CRP, Metodologia, «do objetivo final do uso puro da nossa razão».

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Capítulo II

RELAÇÃO DAS FACULDADES NA CRÍTICA DA RAZÃO PRÁTICA

A razão legisladora

Vimos que a faculdade de desejar era capaz de uma forma superior: quando ela era determinada não por representações de objetos (sensíveis ou intelectuais), não por um sentimento de prazer ou de dor que ligaria representações deste género à vontade, mas pela representação de uma pura forma. Esta forma pura é a de uma legislação universal. A lei moral não se apresenta como um universal comparativo e psicológico (por exemplo: não faças aos outros, etc.). A lei moral ordena-nos que pensemos a máxima da nossa vontade como «princípio de uma legislação universal». E pelo menos conforme à moral uma ação que resiste a esta prova lógica, ou seja, uma ação cuja máxima pode ser pensada sem contradição como lei universal. O universal, neste sentido, é um absoluto lógico.

A forma de uma legislação universal pertence à Razão. Com efeito, o próprio entendimento nada pensa de determinado se as suas representações não forem as de objetos restritos às condições da sensibilidade. Uma representação independente, não só de todo o sentimento, mas também de toda a matéria e de toda a condição sensível, é necessariamente racional. Mas, aqui,

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a razão não raciocina: a consciência da lei moral é um fato, «não um fato empírico, mas o fato único da razão pura que se anuncia deste modo como originariamente legisladora» (1). A razão é, pois, a faculdade que legisla imediatamente na faculdade de desejar. Sob este aspecto, chama-se «razão pura prática». E a faculdade de desejar, encontrando a sua determinação em si mesma (não numa matéria ou num objeto), chama-se, falando com propriedade, vontade, «vontade autônoma».

Em que consiste a síntese prática a priori ? As fórmulas de Kant variam a este propósito. Mas, quando se pergunta qual é a natureza de uma vontade suficientemente determinada pela simples forma da lei (logo, independentemente de toda a condição sensível ou de uma lei natural dos fenômenos), devemos responder: é uma vontade livre. E quando se pergunta qual é a lei capaz de determinar uma vontade livre enquanto tal, devemos responder: a lei moral (como pura forma de uma legislação uni-versal). A implicação recíproca é de tal ordem que razão prática e liberdade talvez se identifiquem. Todavia, a questão não é esta: Do ponto de vista das nossas representações, é o conceito da razão prática que nos leva ao conceito da liberdade como a algo que está necessariamente ligado àquele primeiro conceito, que lhe pertence e que no entanto não «reside» nele. Na verdade, o conceito de liberdade não reside na lei moral, visto ser ele mesmo uma Idéia da razão especulativa. Mas esta idéia permaneceria puramente problemática, limitativa e indeterminada, se a lei moral nos não ensinasse que somos livres. E pela lei moral, unicamente, que nos sabemos livres, ou que o nosso conceito de liberdade adquire uma realidade objetiva, positiva e determinada. Achamos assim na autonomia da vontade uma síntese a priori que confere ao conceito da liberdade uma realidade objetiva determinada, ligando-o necessariamente ao da razão prática.

Problema da liberdade

A questão fundamental é: sobre que incide a legislação da razão prática? quais os seres ou os objetos que são submetidos à síntese prática? Esta questão já não é a de uma «exposição» do princípio da razão prática, mas a de uma «dedução». Ora, dispomos de um fio condutor: só seres livres podem ser submetidos _________________

(1) CRPr, Analítica, escólio da «lei fundamental».

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à razão prática. Esta legisla sobre seres livres, ou, mais exatamente, sobre a causalidade destes seres (operação pela qual um ser livre é causa de alguma coisa). Consideramos agora já não o conceito de liberdade por si mesmo, mas o que representa um tal conceito.

Enquanto apreciamos fenômenos, tais como eles aparecem sob as condições do espaço e do tempo, nada encontramos que se assemelhe à liberdade: os fenômenos estão estritamente submetidos à lei de uma causalidade natural (como categoria do entendimento) segundo a qual cada um é o efeito de outro até ao infinito, ligando-se cada causa a uma causa anterior. A liberdade, ao invés, define-se por um poder «de começar de si mesmo um estado, cuja causalidade não se situa por seu turno (como na lei natural) sob outra causa que a determina no tempo» (2). Neste sentido, o conceito de liberdade não pode representar um fenômeno, mas apenas uma coisa em si que não é dada na intuição. Há três elementos que nos levam a tal conclusão.

1.° Ao incidir exclusivamente sobre os fenômenos o conhecimento é forçado no seu próprio interesse a pôr a existência das coisas em si como não podendo ser conhecidas, mas devendo ser pensadas para servir de fundamento aos próprios fenômenos sensíveis. As coisas em si são, pois, pensadas como «númenos», coisas inteligíveis ou supra-sensíveis que marcam os limites do conhecimento e o remetem para as condições da sensibilidade (3). 2.° Pelo menos num caso, a liberdade atribui-se à coisa em si, e o númeno deve ser pensado como livre: quando o fenômeno a que ele corresponde goza de faculdades ativas espontâneas que se não reduzem à simples sensibilidade. Temos um entendimento e sobretudo uma razão; somos inteligência (4). Enquanto inteligências ou seres racionais, devemos pensar-nos como membros de um mundo inteligível ou supra-sensível, dotados de uma causalidade livre. 3.° Mesmo assim, o conceito de liberdade, tal como o de númeno, permaneceria puramente problemático e indeterminado (ainda que necessário), se a razão não tivesse outro interesse além do seu interesse especulativo. Vimos que só a razão prática determinava o conceito de liberdade dando-lhe uma realidade objetiva. Com efeito, quando a lei moral é a lei da vontade, esta acha-se inteiramente independente das

_____________________ (2) CRP, Dialéctica, «solução das idéias cosmológicas da totalidade da

derivação...». (3) CRP, Analítica, «do principio da distinção fenômenos-númenos...». (4) CRP, Dialéctica, «esclarecimento da idéia cosmológica de liberdade».

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condições naturais da sensibilidade que ligam qualquer causa a uma causa anterior: “Nada é anterior à determinação da vontade (5).» E por isso que o conceito de liberdade, como Idéia da razão, desfruta de um privilégio eminente sobre todas as outras Idéias: em virtude de poder ser determinado praticamente, é o único conceito (a única Idéia da razão) que dá às coisas em si o sentido ou a garantia de um «fato» e que nos faz efetivamente penetrar no mundo inteligível (6).

Parece, portanto, que 'a razão prática, ao conferir ao conceito de liberdade uma realidade objetiva, legisla precisamente sobre o objeto deste conceito. A razão prática legisla sobre a coisa em si, sobre o ser livre enquanto coisa em si, sobre a causalidade numenal e inteligível de um tal ser, sobre o mundo supra-sensível formado por tais seres. «A natureza supra-sensível, tanto quanto dela podemos fazer um conceito, não é mais do que uma natureza sob a autonomia da razão prática; mas a lei desta autonomia é a lei moral, que é assim a lei fundamental de uma natureza supra-sensível...»; «a lei moral é. uma lei da causalidade por liberdade, por conseguinte, uma lei da possibilidade de uma natureza supra-sensível» (7). A lei moral é a lei da nossa existência inteligível, isto é, da espontaneidade e da causalidade do sujeito como coisa em si. Eis porque Kant distingue duas legislações e dois domínios correspondentes: «a legislação por conceitos naturais» é aquela em que o entendimento, determinando esses conceitos, legisla na faculdade de conhecer ou no interesse especulativo da razão; o seu domínio é o dos fenômenos como objetos de toda a experiência possível, na medida em que formam uma natureza sensível. «A legislação pelo conceito de liberdade» é aquela em que a razão, determinando esse conceito, legisla na faculdade de desejar, isto é, no seu próprio interesse prático; o seu domínio é o das coisas em si pensadas como númenos, na medida em que formam uma natureza supra-sensível. Tal é o que Kant denomina o «abismo imenso» entre os dois domínios (8).

Os seres em si, na sua causalidade livre, são, pois, submetidos à razão prática. Mas em que sentido se deve compreender «submetidos»? Enquanto o entendimento se exerce sobre os fenômenos no interesse especulativo, ele legisla sobre algo diferente de si. Mas, quando. a razão legisla no interesse prático, ela legisla sobre

_______________

(5) CRPr, Analítica, «exame crítico». (6) CJ, § 91; CRPr, Prefácio. (7) CRPr, Analítica, «da dedução dos princípios da razão pura prática». (8) CJ, introdução, § 2, § 9.

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seres racionais e livres, sobre a sua existência inteligível independente de toda a condição sensível. É, pois, o ser racional que se atribui a si mesmo uma lei pela sua razão. Contrariamente ao que se passa quanto aos fenômenos, o númeno apresenta ao pensamento a identidade do legislador e do sujeito. «Não é enquanto a pessoa está submetida á lei moral que tem em si sublimidade, mas na medida em que, no tocante a essa mesma lei, ela é ao mesmo tempo legisladora e só nesta qualidade lhe está subordinada (9).” Eis, pois, o que significa «submetido» no caso da razão prática: os mesmos seres são súbditos e legisladores, de tal modo que o legislador faz aqui parte da natureza sobre a qual ele legisla. Pertencemos a uma natureza supra-sensível, mas na qualidade de membros legisladores.

Se a lei moral é a lei da nossa existência inteligível, é no sentido em que ela é a forma sob a qual os seres inteligíveis constituem uma natureza supra-sensível. Com efeito, ela encerra um mesmo princípio determinante para todos os seres racionais, donde deriva a sua união sistemática (10). Compreende-se, portanto, a possibilidade do mal. Kant sustentará sempre que o mal se acha numa certa relação com a sensibilidade. O que não obsta a que ele se funda igualmente no nosso carácter inteligível. Uma mentira ou um crime são efeitos sensíveis, mas nem por isso deixam de ter uma causa inteligível fora do tempo. É até por este motivo que não devemos identificar razão prática e liberdade: há sempre na liberdade uma zona de livre-arbítrio pela qual podemos optar contra a lei moral. Quando optamos contra a lei, não cessamos de ter uma existência inteligível, apenas perdemos a condição sob a qual esta existência faz parte de uma natureza e compõe com as outras um todo sistemático. Cessamos de ser súbditos, mas antes de tudo porque deixamos de ser legisladores (na verdade, recebemos da sensibilidade a lei que nos determina).

Papel do entendimento

É, pois, em dois sentidos assaz diferentes que o sensível e o supra-sensível formam cada qual uma natureza. Entre as duas Naturezas há somente uma «analogia» (existência sob leis). Em virtude do seu carácter paradoxal, a natureza supra-sensível ________________

(9) Fundamentos da Metafísica dos Costumes (FMC), II. (10) Ibid.

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nunca é completamente realizada, visto que nada garante a um ser racional que os seus semelhantes harmonizarão a existência deles com a sua e formarão essa “natureza” que apenas é possível pela lei moral. Assim, não basta dizer que a relação das duas naturezas é de analogia; convém acrescentar que o próprio supra-sensível só pode ser pensado como uma natureza por analogia com a natureza sensível (11).

Vemo-lo bem na prova lógica da razão-prática, onde se investiga se a máxima de uma vontade pode tomar a forma prática de uma lei universal. Pergunta-se, primeiramente, se a máxima pode ser erigida em lei teórica universal de uma natureza sensível. Por exemplo, se toda a gente mentisse, as promessas destruir-se-iam por si mesmas, já que seria contraditório que alguém nelas acreditasse: a mentira não pode, portanto, ter o valor de uma lei da natureza (sensível). Conclui-se daí que, se a máxima da nossa vontade fosse uma lei teórica da natureza sensível, «cada um de nós seria obrigado a dizer a verdade» (12). Donde: a máxima de uma vontade mentirosa não pode sem contradição servir de lei prática pura a seres racionais, de maneira a que eles componham uma natureza supra-sensível. E por analogia com a forma das leis teóricas de uma natureza sensível que indagamos se uma máxima pode ser pensada como lei prática de uma natureza supra-sensível (isto é, se uma natureza supra-sensível ou inteligí-vel é possível sob uma tal lei). Neste sentido, «a natureza do mundo sensível» aparece como «tipo de uma natureza inteligível» (13).

É evidente que o entendimento desempenha aqui o papel essencial. Na realidade, nada retemos da natureza sensível que se refira à intuição ou à imaginação. Retemos unicamente «a forma da conformidade à lei» tal como ela se encontra no entendimento legislador. Mas, justamente, servimo-nos desta forma, e do próprio entendimento, segundo um interesse e num domínio onde este já não é legislador. Porquanto não é a comparação da máxima com a forma de uma lei teórica da natureza sensível que constitui o princípio determinante da nossa vontade (14). A comparação não passa de um meio pelo qual investigamos se uma máxima «se adapta» à razão prática, se uma ação é um caso que se inscreve na regra, isto é, no princípio de uma razão a partir de agora única legisladora.

______________ (11) Ibid. (12) CRPr, Analítica, «da dedução dos princípios da razão pura prática». (13) CRPr, Analítica, «da típica do juízo puro prático». (14) CRPr, ibid.

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Eis que encontramos uma nova forma de harmonia, uma nova proporção na harmonia das faculdades. Segundo o interesse especulativo da razão, o entendimento legisla, a razão raciocina e simboliza (determina o objeto da sua Idéia «por analogia» com os objetos da experiência). Segundo o interesse prático da razão, é a própria razão que .legisla; o entendimento julga ou inclusivamente raciocina (se bem que este raciocínio seja muito simples e consista numa singela comparação) e simboliza (extrai da lei natural sensível um tipo para a natureza supra-sensível). Ora, nesta nova figura, devemos manter sempre o mesmo prin-cípio: a faculdade que não é legisladora desempenha um papel insubstituível, que só ela é capaz de assumir, mas ao qual é deter-minada pela legisladora.

Como se explica que o entendimento possa desempenhar por si mesmo um papel de acordo com uma razão prática legisladora? Consideremos o conceito de causalidade: ele está implicado na definição da faculdade de desejar (relação entre a representação e. um objeto que ela tende a produzir) (15). Está, pois, implicado no uso prático da razão concernente a esta faculdade. Mas quando a razão persegue o seu interesse especulativo, relativamente à faculdade de conhecer, ela «abandona tudo ao entendimento»: a causalidade atribui-se como categoria ao entendimento, não sob forma de uma causa produtora originária (visto que os fenômenos não são produzidos por nós), mas sob forma de uma causalidade natural ou de uma conexão que liga os fenômenos sensíveis até ao infinito. Quando, pelo contrário, a razão persegue o interesse prático, retira ao entendimento o que lhe havia emprestado unicamente na perspectiva de outro interesse. Determinando a faculdade de desejar sob a sua forma superior, ela «une o conceito de causalidade ao de liberdade», isto é, dá à categoria de causalidade um objeto supra-sensível (o ser livre como causa produtora originária) (16). Perguntar-se-á como é que a razão pode retirar o que abandonara. ao entendimento e de certo modo alienara na natureza sensível. Mas, precisamente, se é verdade que as categorias nos não fazem conhecer outros objetos que, não sejam os da experiência possível, se é verdade que elas não formam um conhecimento de objeto independentemente das condições da sensibilidade, nem por isso deixam de conservar um sentido puramente lógico relativamente a objetos

_____________________ (15) CRPr, Analítica, «do direito da razão pura no uso prático a uma

extensão...»: «no Conceito. de Uma Vontade está já contido o da causalidade». (16) CRPr, Prefácio.

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não sensíveis, e podem aplicar-se a eles com a condição de que tais objetos sejam determinados por outra parte e de um ponto de vista diferente do conhecimento (17). Assim, a razão deter-mina praticamente um objeto supra-sensível da causalidade e determina a própria causalidade como uma causalidade livre, apta a formar uma natureza por analogia.

O senso comum moral e os usos ilegítimos

Kant lembra amiúde que a lei moral não tem necessidade alguma de raciocínios subtis, antes assenta no uso mais vulgar ou mais comum da razão. Nem sequer o exercício do entendimento pressupõe qualquer instrução prévia, «nem ciência nem filosofia». Devemos, pois, falar de um senso comum moral. Decerto que há sempre o perigo de compreender «senso comum» à maneira empirista, de o tornar um sentido particular, um sentimento ou uma intuição: não haveria pior confusão, atingindo a própria lei moral (18). Mas definimos um senso comum como um acordo a priori das faculdades, acordo determinado por uma de entre elas enquanto faculdade legisladora. O senso comum moral é o acordo do entendimento com a razão, sob a legislação da própria razão. Reencontramos aqui a. idéia de uma. boa natureza das faculdades e de uma harmonia determinada em conformidade com tal interesse da razão.

Porém, não menos que na Critica de Razão pura, Kant denuncia os exercícios ou os usos ilegítimos. Se a reflexão filosófica é necessária, é porque as faculdades, não obstante a sua boa natureza, engendram ilusões nas quais elas não podem livrar-se de cair. Em lugar de «simbolizar» (ou seja, de se servir da forma da lei natural como se fosse um «tipo» para a lei moral), acontece por vezes ao entendimento procurar um «esquema» que refere a lei a uma intuição (19). Mais ainda: em lugar de comandar, sem nada conceder, no que diz respeito ao princípio, às inclinações sensíveis ou aos interesses empíricos, acontece à razão acomodar o dever com os nossos desejos: «Resulta daí uma dialéctica natural (20).» Importa, pois, perguntar, também neste caso, como se conciliam os dois temas kantianos, o de __________________

(17) CRPr, Analítica, «do direito da razão pura no uso prático a uma extensão...”,

(18) CRPr, Analítica, escólio 2 do teorema IV. (19) CRPr, Analítica, “da típica do juízo puro prático». (20) FMC, I (fim).

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uma harmonia natural (senso comum) e o dos exercícios discordantes (contra-senso).

Kant insiste na diferença entre a Crítica da Razão pura especulativa e a Crítica da razão prática: esta última não é uma crítica da Razão «pura» prática. Com efeito, no interesse especulativo, a razão em si mesma não pode legislar (olhar pelo seu próprio interesse): é, pois, a razão pura que é fonte de ilusões internas, a partir do momento em que pretende assumir um papel legislador. Ao invés, no interesse prático, a razão não remete para mais ninguém o cuidado de legislar: «Depois de se mostrar que existe, ela já não necessita de crítica (21).» O que tem necessidade de uma crítica, o que é fonte de ilusões, não é a razão pura prática, mas, isso sim, a impureza que se lhe vem misturar, na medida em que os interesses empíricos nela se refletem. À critica da razão pura especulativa corresponde então uma crítica da razão prática impura. No entanto, algo de comum subsiste entre as duas: o método dito transcendental é sempre a determinação de um uso imanente da razão, conformemente a um dos seus interesses. A Crítica da Razão pura denuncia assim o uso transcendente de uma razão especulativa que pretende legislar por si mesma; a Crítica da Razão prática denuncia o uso transcendente de uma razão prática que, em vez de legislar por si mesma, se deixa condicionar empiricamente (22).

Seja como for, o leitor tem o direito de se interrogar se este célebre paralelo que Kant estabelece entre as duas Críticas responde suficientemente à questão formulada. O próprio Kant não fala de uma única «dialéctica» da razão prática, antes emprega a palavra em dois sentidos bastante diferentes. Mostra, de fato, que a razão prática não pode deixar de instituir uma ligação necessária entre a felicidade e a virtude, mas cai assim numa antinomia. A antinomia consiste na circunstância de a felicidade não poder ser causa da virtude (porquanto a lei moral é o único princípio. determinante da vontade boa) e de a virtude não parecer igualmente poder ser causa da felicidade (porquanto as leis do mundo sensível se não pautam de modo algum pelas intenções de uma boa vontade). Ora, não há dúvida de que a idéia de felicidade implica a satisfação completa dos nossos desejos e inclinações. Hesitar-se-á, não obstante, em ver nesta antinomia (e sobretudo no seu segundo membro) o efeito de uma simples projeção dos interesses empíricos: a razão pura prática exige

_____________ (21) CRPr, Introdução. (22) Ibid.

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ela própria uma ligação da virtude e da felicidade. A antinomia da razão prática exprime na verdade uma «dialéctica» mais profunda que a precedente; implica uma ilusão interna da razão pura.

A explicação desta ilusão interna pode ser reconstituída como segue (23): 1.° A razão pura prática exclui todo o prazer ou toda a satisfação como princípio determinante da faculdade de desejar. Mas, quando a lei a determina, a faculdade de desejar experimenta por isso mesmo uma satisfação, uma espécie de fruição negativa exprimindo a nossa independência a respeito das inclinações sensíveis, um contentamento puramente intelectual exprimindo imediatamente o acordo formal do nosso entendimento com a nossa razão. 2.° Ora, esta fruição negativa não deve ser confundida com um sentimento sensível positivo, ou até com um móbil da vontade. Não se confunda o contentamento intelectual ativo com algo de sentido, de experimentado. (É inclusive desta maneira que o acordo das faculdades ativas surge ao empirista como um sentido especial.) Há aí uma ilusão interna que a própria razão pura prática não pode evitar: «Há sempre aí ocasião de cometer a falta a que se chama vitium subreptionis e, de certo modo, de ter uma ilusão de óptica na consciência do que se faz, diferentemente do que se sente, ilusão que até o homem mais experimentado não pode evitar na totalidade.» 3.° A antinomia assenta, pois, no contentamento imanente da razão prática, na confusão inevitável deste contentamento com a felicidade. Cremos assim umas vezes que a própria felicidade é causa e móbil da virtude, outras vezes, que a virtude por si mesma é causa da felicidade.

Se é verdade, de acordo com o primeiro sentido da palavra «dialéctica», que os interesses ou os desejos empíricos se projetam na razão e a tornam impura, tal não obsta a que esta projeção tenha um princípio interior mais profundo, na própria razão prática pura, em conformidade com o segundo sentido da palavra dialéctica. A confusão do contentamento negativo e intelectual com a felicidade é uma ilusão interna que nunca pode ser inteiramente dissipada, sendo apenas possível escon-jurar o seu efeito através da reflexão filosófica. Acrescentemos que a ilusão, neste sentido, só aparentemente é contrária à idéia de uma boa natureza das faculdades: a própria antinomia prepara uma totalização, que ela é, sem dúvida, incapaz de operar, mas que nos força a procurar, do ponto de vista da reflexão, como sua solução própria ou chave do seu labirinto. «A antinomia

_______________ (23) CRPr, Dialéctica, «solução crítica da antinomia».

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da razão pura, que se torna manifesta na sua dialéctica, é de fato o erro mais benfazejo em que alguma vez caiu a razão humana (24).»

Problema da realização

A sensibilidade e a imaginação não têm até agora qualquer papel no senso comum moral. Isto não causará admiração visto que a lei moral, tanto no seu princípio como na sua aplicação típica, é independente de todo o esquema e de toda a condição da sensibilidade; visto que os seres e a causalidade livres não são objeto de intuição alguma; visto que a Natureza supra-sensível e a natureza sensível estão separadas por um abismo. Há realmente uma ação da lei moral sobre a sensibilidade. Mas a sensibilidade é considerada aqui como sentimento, não como intuição; e o próprio efeito da lei é um sentimento mais negativo que positivo, mais próximo da dor que do prazer. Tal é o sentimento de respeito da lei, determinável a priori como o único «móbil» moral, mas minimizando mais a sensibilidade do que dando-lhe um papel na relação das faculdades. (Vemos que o móbil moral não pode ser fornecido pelo contentamento intelectual, de que. falávamos mais atrás; este não é de modo algum um sentimento, mas apenas um «análogo» do sentimento. Só o respeito pela lei fornece um tal móbil; ele apresenta a própria moralidade como móbil) (25).

Mas o problema da relação da razão prática e da sensibilidade não fica assim resolvido nem suprimido. O respeito serve antes de regra preliminar para uma tarefa que continua por efetivar positivamente. Um único contra-senso é perigoso, no que respeita ao conjunto da Razão prática: crer que a moral kantiana permanece indiferente à sua própria realização. Na verdade, o abismo entre o mundo sensível e o mundo supra-sensível não existe senão para ser preenchido: se o supra-sensível escapa ao conhecimento, se não há uso especulativo da razão que nos faça passar do sensível ao supra-sensível, em compensação «este deve ter uma influência sobre aquele, e o conceito de liberdade deve realizar no mundo sensível o fim imposto pelas suas leis» (26).

_________________________ (24) CRPr, Dialéctica, «de uma dialéctica da razão pura prática em geral». (25) CRPr, Analítica, «dos móbiles da razão pura prática». (Sem dúvida que o

respeito é positivo, mas somente «pela sua causa intelectual».) (26) Cf, Introdução, § 2.

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Eis que o mundo supra-sensível é arquétipo e o mundo sensível, “éctipo, porque contém o efeito possível da idéia do primeiro» (27). Uma causa livre é puramente inteligível; mas devemos considerar que é o mesmo ser que é fenômeno e coisa em si, submetido à necessidade natural como fenômeno, fonte de causalidade livre como coisa em si. Mais ainda: é a mesma ação, o mesmo efeito sensível que remete, por um lado, para um encadeamento de causas sensíveis segundo o qual ele é necessário, mas que, por outro, com as suas causas, remete igualmente para uma Causa livre da qual é sinal ou expressão. Uma causa livre nunca tem o seu efeito em si própria, dado que nela nada acontece nem começa; a livre causalidade não tem efeito algum que não seja sensível. Por conseguinte, a razão prática, como lei da causalidade livre, deve «ter causalidade relativamente aos fenômenos» (28). E a natureza supra-sensível, que os seres livres formam sob a lei da razão, deve ser realizada no mundo sensível. E neste sentido que se pode falar de uma ajuda ou de uma oposição entre a natureza e a liberdade, consoante os efeitos sensíveis da liberdade na natureza são conformes ou não à lei moral. «Oposição ou ajuda só existem entre a natureza como fenômeno e os efeitos da liberdade como fenômenos no mundo sensível (29).» Sabemos que há duas legislações, logo, dois domínios, correspondendo à natureza e à liberdade, à natureza sensível e à natureza supra-sensível. Mas há somente um campo, o da experiência.

Kant apresenta assim o que ele designa por «o paradoxo do método numa Crítica da razão prática»: nunca uma representação de objeto pode determinar a vontade livre ou preceder a lei moral; mas, ao determinar imediatamente a vontade, a lei moral determina também objetos como conformes a esta vontade livre (30). Mais precisamente, quando a razão legisla na faculdade de desejar, a faculdade de desejar também legisla sobre objetos. Estes objetos da razão prática formam aquilo a que se chama o Bem moral (é em ligação com a representação do bem que experimentamos o contentamento intelectual). Ora, «o bem moral é, quanto ao objeto, algo de supra-sensível». Mas ele representa objeto como a realizar no mundo sensível, isto é, «como um efeito possível pela liberdade» (31). E por isso que, na sua

_____________________ (27) CRPr, Analítica, «da dedução aos princípios da razão pura prática». (28) CRP, Dialéctica. (29) CJ, Introdução, § 9. (30) CRPr, Analítica, «do conceito de um objeto da razão pura prática». (31) CRPr, Ibid.

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definição mais geral, o interesse prático se apresenta como uma relação da razão com objetos, não para os conhecer, mas para os realizar (32).

A lei moral é inteiramente independente da intuição e das condições da sensibilidade; a Natureza supra-sensível é independente da Natureza sensível. Os próprios bens são independentes do nosso poder físico de os realizar e são só determinados (conformemente à prova lógica) pela possibilidade moral de querer a ação que os realiza. Resta dizer que a lei moral nada é, separada das suas conseqüências sensíveis; nem a liberdade, separada dos seus efeitos sensíveis.. Bastaria, então, apresentar a lei como legislando sobre a causalidade de seres em si, sobre uma pura natureza supra-sensível? Certamente que seria absurdo dizer que os fenômenos estão submetidos à lei moral como princípio da razão prática. A natureza sensível não tem a moralidade por lei; nem sequer os efeitos da liberdade podem causar dano ao mecanismo como lei da Natureza sensível, já que eles se encadeiam necessariamente uns nos outros, de maneira a formar «um único fenômeno» exprimindo a causa livre. Jamais a liberdade produz qualquer milagre no mundo sensível. Mas, se é verdade que a razão prática só legisla. sobre o mundo supra-sensível e sobre a causalidade livre dos seres que o compõem, tal não obsta a que toda essa legislação faça deste mundo supra-sensível algo que deve ser «realizado» no sensível e desta causalidade livre, algo que deve ter efeitos sensíveis exprimindo a lei moral.

Condições da realização

Falta ainda saber se uma tal realização é possível. Se o não fosse, era a lei moral que desabaria por si mesma (33). Ora, a realização do bem moral pressupõe um acordo da natureza sensível (segundo as suas leis) com a natureza supra-sensível (segundo a sua lei). Este acordo apresenta-se na idéia de uma proporção entre a felicidade e a moralidade, ou seja, na idéia do Soberano Bem como «totalidade do objeto da razão pura prática». Mas, se se perguntar como é que o Soberano Bem é por sua vez possível, logo, realizável, depara-se com a antinomia: está posto de parte que o desejo da felicidade seja móbil da virtude; mas também parece excluído que a máxima da virtude seja causa da _________________

(32) CRPr, Analítica, «exame crítico». (33) CRPr, Dialéctica, «a antinomia da razão prática».

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felicidade, visto que a lei moral não legisla sobre o mundo sensível e que este é regido pelas suas próprias leis que permanecem indiferentes às intenções morais da vontade. Todavia, esta segunda direção deixa aberta uma solução: que a conexão da felicidade com a virtude não seja imediata, mas se faça na perspectiva de um progresso que vá até ao infinito (alma imortal) e por intermédio de um autor inteligível da natureza sensível ou de uma «causa moral do mundo» (Deus). As Idéias da alma e de Deus são assim as condições necessárias sob as quais o próprio objeto da razão prática é colocado .como possível e realizável (34).

Vimos já que a liberdade (como Idéia cosmológica de um mundo supra-sensível) recebia uma realidade objetiva da lei moral. Eis que, por seu turno, a Idéia psicológica da alma e a Idéia teológica do ser supremo recebem sob esta mesma lei moral uma realidade objetiva. De tal modo que as três grandes Idéias da razão especulativa podem ser postas no mesmo plano, tendo em comum o serem problemáticas e indeterminadas do ponto de vista da especulação, mas recebendo da lei moral uma deter-minação prática: neste sentido e enquanto são determinadas praticamente, elas denominam-se «postulados da razão prática»: são objeto de uma «crença pura prática» (35). No entanto, mais precisamente, notar-se-á que a determinação prática não incide sobre as três Idéias da mesma forma. Só a Idéia de liberdade é imediatamente determinada pela lei moral: a liberdade, por conseguinte, é menos um postulado do que uma «matéria de fato» ou o objeto de uma proposição categórica. As duas outras idéias, como «postulados», são apenas condições do objeto necessário de uma vontade livre: «O que equivale a dizer que a sua possibilidade é provada pelo fato de a liberdade ser real (36).»

Mas serão os postulados as únicas condições de uma realização do supra-sensível no sensível? Para tal são ainda necessárias condições imanentes à própria natureza sensível, que devem fundar nesta a capacidade de exprimir ou de simbolizar alguma coisa de supra-sensível. Elas apresentam-se sob três aspectos: a finalidade natural na matéria dos fenômenos; a forma da finalidade da natureza nos objetos belos; o sublime no informe da natureza, pelo qual a natureza sensível dá igualmente

______________________ (34) CRPr, Dialéctica, «sobre os postulados da razão pura prática». (35) CRPr, Dialéctica, «do assentimento vindo de uma necessidade da razão

pura». (36) CRPr, Introdução; CJ. § 91.

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testemunho da existência de uma mais alta finalidade. Ora, nestes dois últimos casos, vemos a imaginação assumir um papel fundamental: quer ela se exerça livremente, sem estar sob a dependência de um conceito determinado do entendimento; quer ela supere os seus próprios limites e se sinta ilimitada, referindo-se também a Idéias da razão. Assim, a consciência da moralidade, ou seja, o senso comum moral, não comporta apenas crenças, mas também os atos de uma imaginação através dos quais a Natureza sensível surge como apta a receber o efeito do supra-sensível. A própria imaginação é pois, realmente, parte constituinte do senso comum moral.

Interesse prático e interesse especulativo

«Pode atribuir-se a cada poder do espírito um interesse, isto é, um princípio que contém a condição sob a qual este poder é posto em exercício (37).» Os interesses da razão distinguem-se dos interesses empíricos, devido a incidirem sobre objetos, mas só enquanto estes estão submetidos à forma superior de uma faculdade. Logo, o interesse especulativo incide sobre os fenômenos na medida em que formam uma natureza sensível. O interesse prático incide sobre os seres racionais como coisas em si, na medida em que formam uma natureza supra-sensível a realizar.

Os dois interesses diferem em natureza, de sorte que a razão não efetua progresso especulativo quando entra no domínio que lhe é aberto pelo seu interesse prático. A liberdade como Idéia especulativa é problemática, em si mesma indeterminada; quando recebe da lei moral uma determinação prática imediata, a razão especulativa nada ganha em extensão. «Ela ganha aí apenas no que respeita à garantia do seu problemático conceito de liberdade, ao qual se dá então uma realidade objetiva que, embora simplesmente prática, nem por isso deixa de ser indubitável (38).» Na verdade, não conhecemos melhor do que anteriormente a natureza de um ser livre; não temos qualquer intuição que se lhe possa referir. Sabemos somente, pela lei moral, quê um ser assim existe e possui uma causalidade livre. O interesse prático é de tal ordem que a relação entre a representação e um objeto não forma um conhecimento, antes designa algo a realizar. A alma e Deus, como Idéias especulativas, não recebem igualmente da sua ____________________

(38) CRPr, Dialéctica, «da supremacia da razão pura prática». (38) CRPr, Analítica, «da dedução dos princípios da razão pura prática.»

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determinação prática uma extensão do ponto de vista do conhecimento (39).

Mas os dois interesses não estão simplesmente coordenados. É evidente que o interesse especulativo está subordinado ao interesse prático. O mundo sensível não apresentaria interesse especulativo se, do ponto de vista de um interesse mais alto, não desse testemunho da possibilidade de realizar o supra-sensível. E por este motivo que as Idéias da própria razão especulativa não têm determinação direta que não seja prática. Vemo-lo bem no que Kant denomina «crença». Uma crença é uma proposição especulativa, mas que se não torna assertória senão pela determinação que recebe da lei moral. Por isso, a crença não remete para uma faculdade particular, antes exprime a síntese do interesse especulativo e do interesse prático, ao mesmo tempo que a subordinação do primeiro ao segundo. Donde a superioridade da prova moral da existência de Deus sobre todas as provas especulativas. Pois, enquanto objeto de conhecimento, Deus só é determinável indireta e analogicamente (como aquilo de que os fenômenos tiram um máximo de unidade sistemática); mas, enquanto objeto de crença, adquire uma determinação e uma realidade exclusivamente práticas (autor moral do mundo) (40).

Um interesse em geral implica um conceito de fim. Ora, se é verdade que a razão no seu uso especulativo não renuncia a encontrar fins na natureza sensível que ela observa, estes fins materiais nunca representam um objetivo final, o mesmo sucedendo com a dita observação da natureza. «O fato de ser conhecido não pode conferir ao mundo qualquer valor; é preciso supor nele um objetivo final que dê algum valor a esta própria observação do mundo (41).» Objetivo final, na verdade, significa duas coisas: ele aplica-se a seres que devem ser considerados como fins em si e que, por outro lado, devem dar à natureza sensível um fim último a realizar. O objetivo final é então necessariamente o conceito da razão prática ou da faculdade de desejar sob a sua forma superior: só a lei moral determina o ser racional como fim em si, visto que constitui um objetivo final no uso da liberdade, mas ao mesmo tempo determina-o como fim último da natureza sensível, porquanto ela nos ordena que realizemos o _______________________

(38) CRPr, Dialéctica, «sobre os postulados da razão pura prática em geral». (38) CJ, §§ 87 e 88. (38) CJ, § 86.

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supra-sensível unindo a felicidade universal à moralidade. «Se a criação tem um fim último, não o podemos conceber de outro modo que não seja em harmonia com o fim moral, que é o único a tornar possível o conceito de fim... A razão prática não indica apenas o objetivo final, mas determina ainda este conceito relativamente às condições sob as quais um objetivo final da criação pode ser concebido por nós (42).» O interesse especulativo só encontra fins na natureza porque, mais profundamente, o interesse prático implica o ser racional como fim em si e também como fim último desta própria natureza sensível. Em tal sentido, importa dizer que «todo o interesse é prático, e o interesse mesmo da razão especulativa é apenas condicionado e só é completo no uso prático» (43).

______________________

(42) CJ, § 88. (43) CRPr, Dialéctica, «da supremacia da razão pura prática». (Cf. FMC, III:

«Um interesse é aquilo através do qual a razão se torna prática... O interesse lógico da razão, que consiste em desenvolver os seus conhecimentos, nunca é imediato, antes pressupõe fins aos quais se refere o uso desta faculdade.»)

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Capítulo III

RELAÇÃO DAS FACULDADES NA CRÍTICA DO JUÍZO

Há uma forma superior do sentimento

Esta pergunta significa: há representações que determinem a priori um estado do sujeito como prazer ou dor? Uma sensação não é abrangida por este caso: o prazer ou a dor que ela produz (sentimento) só pode ser conhecido empiricamente. E o mesmo sucede quando a representação de objeto é a priori . Invocar-se-á a lei moral como representação de uma pura forma? (O respeito como efeito da lei seria o estado superior da dor, o contenta-mento intelectual, o estado superior do prazer.) A resposta de Kant é negativa (1). Pois o contentamento não é um efeito sensível nem um sentimento particular, mas um «análogo» intelectual do sentimento. E o próprio respeito só é um efeito na medida em que é um sentimento negativo; na sua positividade, confunde-se com a lei como móbil, mais do que dela deriva. Em regra, é impossível que a faculdade de sentir alcance a sua forma superior, quando ela própria encontra a sua lei na forma inferior ou superior da faculdade de desejar.

_____________ (1) CJ, § 12.

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Que seria, então, um prazer superior? Ele não deveria estar ligado a nenhum atrativo sensível (interesse empírico pela existência do objeto de uma sensação) nem a nenhuma inclinação intelectual (interesse prático puro pela existência de um objeto da vontade). A faculdade de sentir só pode ser superior sendo desinteressada no seu princípio. O que conta não é a existência do objeto representado, mas o simples efeito de uma representação sobre mim. O mesmo é dizer que um prazer superior é a expressão sensível de um juízo puro, de uma pura operação de julgar (2). Esta operação apresenta-se primeiramente no juízo estético do tipo «é belo».

Mas qual é a representação que, no juízo estético, pode ter como efeito este prazer superior? Dado que a existência material do objeto permanece indiferente, trata-se ainda da representação de uma pura forma. Mas, desta vez, é uma forma de objeto. E esta forma não pode ser simplesmente a da intuição, que nos refere a objetos exteriores materialmente existentes. Na verdade, «forma» significa agora o seguinte: reflexão de um objeto singular na imaginação. A forma é o que a imaginação reflete de um objeto, por oposição ao elemento material das sensações que este objeto provoca enquanto existe e age sobre nós. Acontece por vezes a Kant perguntar: uma cor, um som, podem ser ditos belos por si mesmos? Talvez o fossem se, em lugar de apreendermos materialmente o seu efeito qualitativo sobre os nossos sentidos, fôssemos capazes de refletir pela nossa imaginação as vibrações de que eles se compõem. Mas a cor e o som são demasiado materiais e acham-se demasiado impregnados nos nossos sentidos para se refletirem assim na imaginação: são adjuvantes, mais do que elementos da beleza. O essencial é o desenho, é a composição, os quais são precisamente manifestações da reflexão formal (3).

A representação refletida da forma é causa, no juízo estético, do prazer superior do belo. Devemos então verificar que o estado superior da faculdade de sentir apresenta dois caracteres paradoxais, intimamente ligados um ao outro. Por um lado, contrariamente ao que se passava no caso das outras faculdades, a forma superior não define aqui nenhum interesse da razão: o prazer estético é tão independente do interesse especulativo como do interesse prático e define-se a si próprio como inteiramente desinteressado. Por outro lado, a faculdade de sentir sob a sua _______________

(3) CJ, § 9. (3) CJ, § 14.

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forma superior não é legisladora: toda a legislação implica objetos sobre os quais ela se exerce e que lhe estão submetidos. Ora, não só o juízo estético é sempre particular, do tipo «esta rosa é bela» (implicando a proposição «as rosas são belas em geral», uma comparação e um juízo lógicos) (4). Mas, sobretudo, ele nem sequer legisla sobre o seu objeto singular, visto que permanece inteiramente indiferente à sua existência. Kant recusa assim o emprego da palavra «autonomia.» para a faculdade de sentir sob a sua forma superior: impotente para legislar sobre objetos, o juízo só pode ser heautônomo, o que significa que legisla sobre si (5). A faculdade de sentir não tem domínio (nem fenômenos nem coisas em si); não exprime condições a que um género de objetos deve estar submetido, mas unicamente condições subjetivas para o exercício das faculdades.

Senso comum estético

Quando dizemos «é belo», não queremos dizer simplesmente «é agradável»: aspiramos a uma certa objetividade, a uma certa necessidade, a uma certa universalidade. Mas a pura representação do objeto belo é particular: a objetividade do juízo estético não tem, portanto, conceito ou (o que vem a dar no mesmo) a sua necessidade e a sua universalidade são subjetivas. Cada vez que intervém um conceito determinado (figuras geométricas, espécies biológicas, idéias racionais), o juízo estético cessa de ser puro ao mesmo tempo que a beleza deixa de ser livre (6). A faculdade de sentir, sob a sua forma superior, não pode depender do interesse especulativo, tal como não depende do interesse prático. É por este motivo que só o prazer é admitido como universal e necessário no juízo estético. Supomos que o nosso prazer é de direito comunicável ou válido para todos, presumimos que cada qual deve experimentá-lo. Esta presunção, esta suposição nem sequer é um «postulado», visto que exclui todo o conceito determinado (7).

Contudo, tal suposição seria impossível se o entendimento não interviesse de certa maneira. Vimos qual era o papel da imaginação: ela reflete um objeto singular, do ponto de vista da ___________________

(7) CJ, § 8. (7) CJ, Introdução, §§ 4 e 5. (7) CJ, § 16 (pulcbritudo vaga). (7) CJ, § 8.

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forma. Procedendo assim, não se refere .a um conceito determinado do entendimento. Mas refere-se ao próprio entendimento como à faculdade dos conceitos em geral; refere-se a um conceito indeterminado do entendimento. Quer dizer: a imaginação na sua liberdade pura concorda com o entendimento na sua legalidade não especificada. Poderia afirmar-se em rigor que a imaginação, aqui, «esquematiza sem conceito» (8). Mas o esquematismo é sempre o ato de uma imaginação que já não é livre, que se acha determinada a agir conformemente a um conceito do entendimento. Na verdade, a imaginação faz algo diferente de esquematizar: manifesta a sua liberdade mais profunda refletindo a forma do objeto, «ela joga-se de certo modo na contemplação da figura», torna-se imaginação produtiva e espontânea «como causa de formas arbitrárias de intuições possíveis» (9). Eis, pois, um acordo entre a imaginação como livre e o entendimento como indeterminado. Eis um acordo igualmente livre e indeterminado entre faculdades. Devemos dizer acerca deste acordo que ele define um senso comum propriamente estético (o gosto). Com efeito, o prazer que supomos comunicável e válido para todos é apenas o resultado deste acordo. Não se fazendo sob um conceito determinado, o livre jogo da imaginação e do entendimento não pode ser intelectualmente conhecido, mas apenas sentido (10). A nossa suposição de uma «comunicabilidade do sentimento» (sem a intervenção de um conceito) funda-se assim na idéia de um acordo subjetivo das faculdades, na medida em que tal acordo forma também um senso comum (11).

Poderia crer-se que o senso comum estético completa os dois precedentes: no senso comum lógico e no senso comum moral, ora o entendimento ora a razão legislam e determinam a função das outras faculdades; agora, seria a vez da imaginação. Mas não pode ser assim. A faculdade de sentir não legisla sobre objetos; não há, portanto, nela uma faculdade (no segundo sentido da palavra) que seja legisladora. O senso comum estético não representa um acordo objetivo das faculdades (isto é: uma submissão de objetos a uma faculdade dominante, a qual determinaria ao mesmo tempo o papel das outras faculdades relativamente a estes objetos), mas uma pura harmonia subjetiva onde a imaginação e o entendimento se exercem ______________________

(8) CJ, § 35. (9) CJ, § 16 e «nota geral sobre a primeira secção da analítica». (10) CJ, § 9. (11) CJ, §§ 39 e 40.

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espontaneamente, cada qual por sua, conta. Por conseguinte, o senso comum estético não completa os outros dois; funda-os ou torna-os possíveis. Jamais uma faculdade assumiria um papel legislador e determinante se, porventura, todas as faculdades juntas não fossem primeiro capazes desta livre harmonia subjetiva.

Mas, então, encontramo-nos perante um problema particularmente difícil. Explicamos a universalidade do prazer estético ou a comunicabilidade do sentimento superior pelo livre acordo das faculdades, Mas bastará presumir este livre acordo, supô-lo a priori ? Não deve ele, pelo contrário, ser produzido em nós? Quer dizer: o senso comum estético não deve ser objeto de uma gênese, gênese propriamente transcendental? Tal problema domina a primeira parte da Crítica do juízo; a sua própria solução comporta vários momentos complexos.

Relação das faculdades no Sublime

Enquanto permanecemos no juízo estético do tipo «é belo», a razão não parece ter qualquer papel: só intervêm o entendimento e a imaginação. Além disso, é encontrada uma forma superior do prazer, não uma forma superior da dor. Mas o juízo «é belo» é apenas um tipo de juízo estético. Devemos considerar o outro tipo, «é sublime». No Sublime, a imaginação entrega-se a uma atividade de todo em todo diferente da reflexão formal. O sentimento do sublime é experimentado diante do informe ou do disforme (imensidade ou potência). Tudo se passa então como se a imaginação fosse confrontada com o seu próprio limite, forçada a atingir o seu máximo, sofrendo uma violência que a leva ao extremo do seu poder. Decerto que a imaginação não tem limite enquanto se trata de apreender (apreensão sucessiva de partes). Mas, na medida em que deve reproduzir as partes precedentes conforme vai chegando às seguintes, tem efetivamente um máximo de compreensão simultânea. Ante o imenso, a imaginação experimenta a insuficiência deste máximo, «ela busca ampliá-lo e recai sobre si mesma» (12). À primeira vista, atribuímos ao objeto natural, ou seja, à Natureza sensível, essa imensidade que reduz à impotência a nossa imaginação. Mas, na verdade, unicamente a razão nos força a reunir num todo a imensidade do mundo sensível. Todo esse que é a Idéia do sensível, tanto quanto este último tem como substrato algo _____________________

(12) CJ, § 26.

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de inteligível ou de supra-sensível. A imaginação aprende assim que é a razão que a impele até ao limite do seu poder, forçando-a a confessar que toda a sua potência nada é relativamente a uma Idéia.

O Sublime coloca-nos, pois, na presença de uma relação subjetiva direta entre a imaginação e a razão. Mas mais do que um acordo, esta relação é em primeiro lugar um desacordo, uma contradição vivida entre a exigência da razão e a potência da imaginação. E por isso que a imaginação parece perder a sua liberdade e o sentimento do sublime ser uma dor mais do que um prazer. Porém, no fundo do desacordo, surge o acordo; a dor torna possível um prazer. Quando a imaginação é posta na presença do seu limite por alguma coisa que a supera por todos os lados, ela mesma supera o seu próprio limite, é verdade que de maneira negativa, representando-se a inacessibilidade da Idéia racional e fazendo desta própria inacessibilidade algo de presente na natureza sensível. «A imaginação, que fora do sensível nada encontra onde se situar, sente-se no entanto ilimitada graças ao desaparecimento das suas balizas; e esta abstração é uma apresentação do infinito, que, por til razão, só pode ser negativa, mas que, todavia, alarga a alma (13).» Tal é o acordo — discordante — da imaginação e da razão: não é apenas a razão que tem uma «destinação supra-sensível» mas também a imaginação. Neste acordo, a alma é sentida como a unidade supra-sensível indeterminada de todas as faculdades; somos nós próprios referidos a um foco, como a um «ponto de concentração» no supra-sensível.

Então, vê-se que o acordo imaginação-razão não é simples-mente presumido: é verdadeiramente engendrado, engendrado no desacordo. Eis porque o senso comum que corresponde ao sentimento do sublime se não separa de uma «cultura», como movimento da sua gênese (14). E é nesta gênese que aprendemos o essencial respeitante ao nosso destino. Com efeito, as Idéias da razão são especulativamente indeterminadas, praticamente determinadas. Tal é já o princípio da diferença entre o Sublime matemático do imenso e o Sublime dinâmico da potência (um põe em jogo a razão do ponto de vista da faculdade de conhecer, o outro, do ponto de vista da faculdade de desejar) (15). De sorte que, no sublime dinâmico, a destinação supra-sensível das nossas __________________

(13) CJ, § 29, «Nota geral». (14) CJ, § 29. (15) CJ. § 24.

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faculdades aparece como o pré-destino de um ser moral. O sentido do sublime é engendrado em nós de tal maneira que ele prepara uma mais alta finalidade e nos prepara a nós próprios para o advento da lei moral.

Ponto de vista da gênese

O difícil é achar o princípio de uma gênese análoga para o sentido do belo, dado que no sublime tudo é subjetivo, relação subjetiva entre faculdades; o sublime apenas se refere à natureza por projeção, e esta projeção efetua-se sobre o que há de informe ou de disforme na natureza. Também no belo nos encontramos diante de um acordo subjetivo; mas este faz-se a propósito de formas objetivas, de tal modo que se coloca no caso do belo um problema de dedução que se não colocava para o sublime (16). A análise do sublime pôs-nos no caminho, visto que ela nos apresentava um senso comum que não era apenas presumido, mas engendrado. Todavia, uma gênese do sentido do belo coloca um problema mais difícil, dado que requer um princípio cujo alcance seja objetivo (17).

Sabemos que o prazer estético é inteiramente desinteressado, já que em nada concerne à existência de um objeto. O belo não é objeto de um interesse da razão. O que não obsta a que ele possa estar sinteticamente unido a um interesse racional. Suponhamos que é assim: o prazer do belo não deixa de ser desinteressado, mas o interesse a que está unido pode servir de princípio para uma gênese da «comunicabilidade» ou da universalidade deste prazer; o belo não deixa de ser desinteressado, mas o interesse a que está unido sinteticamente pode servir de regra para uma gênese do sentido do belo como senso comum.

Se a tese kantiana é realmente esta, devemos indagar qual é o interesse unido ao belo. Pensar-se-á, antes de mais, num interesse social empírico, tão amiúde ligado aos objetos belos e capaz de engendrar uma espécie de gosto ou de comunicabilidade do prazer. Mas é óbvio que o belo apenas está ligado a um tal interesse a posteriori, não a priori (18). Só um interesse da razão pode responder às exigências precedentes. Mas em que pode consistir aqui um interesse racional? Ele não pode incidir ___________________

(16) CJ, § 3o. (17) Daí o lugar da análise do Sublime na Crítica do Juízo. (18) CJ, § 41.

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sobre o próprio belo. Incide exclusivamente sobre a aptidão que a natureza possui para produzir belas formas, ou seja, formas capazes de se refletirem na imaginação. (E a natureza apresenta esta aptidão, até mesmo onde o olho humano penetra demasiado raramente para as refletir efetivamente: por exemplo, no fundo dos oceanos) (19). O interesse unido ao belo não incide, pois, sobre a bela forma enquanto tal, mas sobre a matéria empregue pela natureza para produzir objetos capazes de se refletirem formalmente. Não causará espanto que Kant, tendo começado por dizer que as cores e os sons não eram em si mesmos belos, acrescente em seguida que eles são objeto de um «interesse do belo» (20). Além de que, se procurarmos qual é a matéria-prima que intervém na formação natural do belo, vemos que se trata de uma matéria fluida (o mais antigo estado da matéria), da qual uma parte se separa ou evapora e da qual o resto se solidifica bruscamente (cf. formação dos cristais) (21). O mesmo é dizer que o interesse do belo não é parte integrante do belo nem do sentido do belo, mas concerne a uma produção do belo na natureza, e pode nesta qualidade servir de princípio em nós para uma gênese do próprio sentido do belo.

Toda a questão reside nisto: de que espécie é esse interesse? Temos até agora definido os interesses da razão por um género de objetos que se achavam necessariamente submetidos a uma faculdade superior. Mas não há objetos que estejam submetidos à faculdade de sentir. A forma. superior da faculdade de sentir designa somente a harmonia subjetiva e espontânea das nossas faculdades ativas, sem que uma destas faculdades legisle sobre objetos. Quando apreciamos a aptidão material da natureza para produzir belas formas, não podemos concluir daí a submissão necessária desta natureza a uma das nossas faculdades, mas unicamente o seu acordo contingente com todas as nossas faculdades em conjunto (22). Mais ainda: procurar-se-ia em vão um fim da Natureza quando ela produz o belo; a precipitação da matéria fluida explica-se de maneira puramente mecânica. A aptidão da natureza apresenta-se assim como um poder sem objetivo, apropriado por acaso ao exercício harmonioso das nossas faculdades (23). O prazer deste exercício também é ________________

(19) CJ, § 30. (20) CJ, § 42.

(21) CJ, § 58. (22) CJ, Introdução, § 7.

(23) CL § 58.

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desinteressado; o que impede que experimentemos um interesse racional pelo acordo contingente das produções da natureza com o nosso prazer desinteressado (24). Tal é o terceiro interesse da razão: define-se, não por uma submissão necessária, mas por um acordo contingente da Natureza com as nossas faculdades.

O simbolismo na natureza

Como se apresenta a gênese do sentido do belo? Parece certo que as matérias livres da natureza, as cores, os sons, se não referem apenas a conceitos determinados do entendimento. Eles extravasam o entendimento, «dão que pensar» muito mais do que está contido no conceito. Por exemplo, não referimos somente a cor a um conceito do entendimento que se aplicaria diretamente a ela, referimo-la ainda a qualquer outro conceito, que não tem à sua conta um objeto de intuição, mas que se assemelha ao conceito do entendimento porque fixa o seu objeto por analogia com o objeto da intuição. Estoutro conceito é uma Idéia da razão, que apenas se assemelha ao primeiro, do ponto de vista da reflexão. Assim o lis branco não é simplesmente referido aos conceitos de cor e de flor, visto despertar a Idéia de pura inocência, cujo objeto não é mais do que um análogo (reflexivo) do branco na flor-de-lis (25). Eis que as Idéias são objeto de uma apresentação indireta nas livres matérias da natureza. Esta apresentação indireta chama-se simbolismo e tem como regra o interesse do belo.

Seguem-se duas conseqüências: o próprio entendimento vê os seus conceitos alargados de maneira ilimitada; a imaginação encontra-se liberta do constrangimento do entendimento que ela ainda sofria no esquematismo e torna-se capaz de refletir livre-mente a forma. O acordo da imaginação como livre e do entendimento como indeterminado já não é, portanto, simplesmente presumido: é de certo modo animado, vivificado, engendrado pelo interesse do belo. As livres matérias da natureza sensível simbolizam as Idéias da razão; assim, elas permitem que o entendimento se alargue, que a imaginação se liberte. O interesse do belo atesta uma unidade supra-sensível de todas as nossas faculdades, como um «ponto de concentração no supra-sensível», de que decorre o livre acordo formal ou a harmonia subjetiva delas. ______________

(25) CJ, § 42. (25) CJ, §§ 42 e 59.

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A unidade supra-sensível indeterminada de todas as faculdades e o acordo livre que daí deriva são o mais profundo da alma. Efetivamente, quando o acordo das faculdades se acha determinado por uma de entre elas (o entendimento no interesse especulativo, a razão no interesse prático), supomos que as faculdades são, antes de mais, capazes de uma livre harmonia (segundo o interesse do belo), sem a qual nenhuma destas deter-minações seria possível. Mas, por outro lado, o acordo livre das faculdades deve já fazer aparecer a razão como chamada a desempenhar o papel determinante no interesse prático ou no domínio moral. É neste sentido que a destinação supra-sensível de todas as nossas faculdades é o pré-destino de um ser moral; ou que a idéia do supra-sensível como unidade indeterminada das faculdades prepara a idéia do supra-sensível tal como ela é pratica-mente determinada pela razão (como princípio dos fins da liberdade); ou que o interesse do belo implica uma disposição para ser moral (26). Como afirma Kant, o próprio belo é símbolo do bem (pretende dizer que o sentido do belo não é uma percepção confusa do bem, que não há qualquer relação analítica entre o bem e o belo, mas uma relação sintética segundo a qual o interesse do belo nos dispõe a ser moral, nos destina à moralidade) (27). Deste modo a unidade indeterminada e o acordo livre das faculdades não constituem unicamente o mais profundo da alma, mas preparam ainda o advento do mais alto, ou seja, a supremacia da faculdade de desejar, e tornam possível a passagem da faculdade de conhecer à faculdade de desejar.

O simbolismo na arte, ou o gênio

É verdade que tudo o que precede (o interesse do belo, a gênese do sentido do belo, a relação do belo e do bem) só diz respeito à beleza da natureza. Tudo assenta, de fato, no pensamento de que a natureza produziu a beleza (28). É por isso que o belo na arte parece ser desprovido de relação com o bem e o sentido do belo na arte não poder ser engendrado a partir de um princípio que nos destina à moralidade. Donde a frase de Kant: é respeitável aquele que sai de um museu a fim de se voltar para as belezas da natureza... ___________________

(26) CJ, § 42. (27) CJ, § 59. (28) CJ, § 42.

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A não ser que a arte se revele igualmente susceptível de se sujeitar, à sua maneira, a uma matéria e a uma regra fornecidas pela natureza. Mas a natureza, aqui, não pode proceder senão por uma disposição inata no sujeito. O Gênio é precisamente a disposição inata pela qual a natureza dá à arte uma regra sintética e uma rica matéria. Kant define o gênio como a faculdade das Idéias estéticas (29). A primeira vista, uma Idéia estética é o contrário de uma Idéia racional. Esta é um conceito a que nenhuma intuição se ajusta; aquela, uma intuição a que nenhum conceito se adequa. Mas, perguntar-se-á, é tal relação inversa suficiente para descrever a Idéia estética? A Idéia da razão supera a experiência, quer por não ter objeto que lhe corresponda na natureza (por exemplo, seres invisíveis) quer por fazer de um simples fenômeno da natureza um acontecimento do espírito (a morte, o amor...). A Idéia da razão contém, pois, algo de inexprimível. Mas a Idéia estética supera todo o conceito porque cria a intuição de uma natureza diferente da que nos é dada: outra natureza cujos fenômenos seriam autênticos acontecimentos espirituais e os acontecimentos do espírito, determinações naturais imediatas (30). Ela «dá que pensar», força a pensar. A Idéia estética é, sem dúvida, a mesma coisa que a Idéia racional: exprime o que nesta há de inexprimível. Assim se explica que ela surja como uma representação «secundária», uma expressão segunda. Por isso mesmo, acha-se bastante próximo do simbolismo (o gênio também procede por alargamento do entendimento e libertação da imaginação) (31). Mas, em vez de apresentar indiretamente a Idéia na natureza, exprime-a secundaria-mente na criação imaginativa de uma outra natureza.

O gênio não é o gosto, mas anima o gosto na arte dando-lhe uma alma ou uma matéria. Há obras que são perfeitas do ponto de vista do gosto, mas que carecem de alma, isto é, de gênio (32). E que o próprio gosto não passa do acordo formal de uma imaginação livre e de um entendimento alargado. Permanece sombrio e morto, e somente presumido, se porventura não remeter para uma instância mais alta, como para uma matéria capaz justamente de alargar o entendimento e de libertar a imaginação. O acordo da imaginação e do entendimento, nas artes, só é vivi-ficado pelo gênio, e sem ele ficaria incomunicável. O gênio é um __________________

(29) Cf, § 57, nota 1. (30) CJ, § 49. (31) Ibid. (32) Ibid.

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apelo lançado a outro gênio; mas, entre os dois, o gosto torna-se uma espécie de médium; e ele permite esperar, quando o outro gênio ainda não nasceu (33). O gênio exprime a unidade supra-sensível de todas as faculdades, e exprime-a como viva. Fornece, portanto, a regra sob a qual as conclusões do belo na natureza podem ser estendidas ao belo na arte. Logo, não é apenas o belo na natureza que é símbolo do bem; é também o belo na arte, sob a regra sintética e genética do próprio gênio (34).

A estética formal do gosto, Kant junta assim uma meta-estética material, de que os dois principais capítulos são o interesse do belo e o gênio, e que patenteia um romantismo kantiano. Designadamente, à estética da linha e da composição, por conseguinte, da forma, Kant junta uma meta-estética das matérias, das cores e dos sons. Na Crítica do Juízo, o classicismo acabado e o romantismo nascente encontram um equilíbrio completo.

Não devemos confundir as diversas maneiras como, segundo Kant, as Idéias da razão são susceptíveis de uma apresentação na natureza sensível. No sublime, a apresentação é direta mas negativa, e faz-se por projeção; no simbolismo natural ou no interesse do belo, a apresentação é positiva, mas indireta, e faz-se por reflexão; no gênio ou no simbolismo artístico, a apresentação é positiva, mas secundária, e faz-se por criação de outra natureza. Veremos mais adiante que a Idéia é susceptível de um quarto modo de apresentação, o mais perfeito, na natureza concebida como sistema de fins.

O juízo é uma faculdade?

O juízo é sempre uma operação complexa, que consiste em subsumir o particular no geral. O homem do juízo é sempre um homem da arte: um perito, um médico, um jurista. O juízo implica um verdadeiro dom, uma queda (35). Kant foi o primeiro a saber colocar o problema do juízo ao nível do seu tecnicismo ou da sua originalidade própria. Em textos célebres, Kant distingue dois casos: ou o geral é já dado, conhecido, e basta aplicá-lo, quer dizer, determinar o particular a que ele se aplica («uso apodíctico da razão», «juízo determinante»); ou, então, o geral ____________________

(33) Ibid. (34) Contrariamente ao § 42, o § 59 («da beleza, símbolo da

moralidade») vale tanto para a arte como pata a natureza. (35) CRP, Analítica, «do juízo transcendental em geral».

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constitui problema, e deve ele mesmo ser encontrado («uso hipotético da razão», «juízo reflexivo») (36). Todavia, esta distinção é muito mais complicada do que parece: deve ser interpretada, tanto do ponto de vista dos exemplos como da significação.

Um primeiro erro seria crer que só o juízo reflexivo implica uma invenção. Mesmo quando o geral é dado, há necessidade de «juízo» para fazer a subsunção. Decerto que a lógica transcendental se distingue da lógica formal, porquanto contém regras que indicam a condição sob a qual se aplica um conceito dado (37). Mas estas regras não se reduzem ao próprio conceito: para aplicar um conceito do entendimento, é preciso o esquema, que é um ato inventivo da imaginação capaz de indicar a condição sob a qual casos particulares são subsumidos no conceito. Deste modo o esquematismo é já uma «arte», e o esquema, um esquema dos «casos que obedecem à lei». Seria, pois, errôneo crer que o entendimento julga por si mesmo: o entendimento não pode fazer dos seus conceitos outro uso que não seja o de julgar, mas tal uso implica um ato original da imaginação e também um ato original da razão (o que leva a que o juízo determinante apareça, na Crítica da Razão pura, como um certo exercício da razão). Todas as vezes que Kant fala do juízo como de uma faculdade, é para marcar a originalidade do seu ato, a especificidade do seu produto. Mas o juízo implica sempre várias faculdades e exprime o acordo destas faculdades entre si. O juízo é dito determinante quando exprime o acordo das faculdades sob uma faculdade também determinante, ou seja, quando determina um objeto em conformidade com uma faculdade encarada antes de mais como legisladora. Assim, o juízo teórico exprime o acordo das faculdades que determina um objeto conformemente ao entendimento legislador. De igual modo há um juízo prático, que determina se uma ação possível é um caso submetido à lei moral: exprime o acordo do entendimento e da razão, sob a presidência da razão. No juízo teórico, a imaginação fornece um esquema em conformidade com o conceito do entendimento; no juízo prático, o entendimento fornece um tipo conformemente à lei da razão. E a mesma coisa dizer que o juízo determina um objeto, que o acordo das faculdades é determinado, que uma das faculdades exerce uma função determinante ou legisladora.

Importa, pois, fixar os exemplos correspondentes aos dois tipos de juízos, «determinante» e «reflexivo». Seja um médico

____________________ (36) CRP, Dialéctica, Apêndice, «do uso regulador das idéias». (37) CRP, Analítica, «do juízo transcendental em geral».

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que sabe o que é a febre tifóide (conceito), mas não a reconhece num caso particular (juízo ou diagnóstico). Ter-se-ia tendência a ver no diagnóstico (que implica um dom e uma arte) um exemplo de juízo determinante, visto que se supõe o conceito conhecido. Mas, relativamente a um caso particular dado, o próprio conceito não é dado: é problemático ou absolutamente indeterminado. De fato, o diagnóstico é um exemplo de juízo reflexivo. Se procuramos na medicina um exemplo de juízo determinante, devemos antes pensar numa decisão terapêutica: aí, o conceito é efetivamente dado em relação ao caso particular, mas o difícil é aplicá-lo (contra-indicações em função do doente, etc.).

Precisamente, não há menos arte ou invenção no juízo reflexivo. Mas esta arte é nele distribuída de outra maneira. No juízo determinante, a arte está como que «escondida»: o conceito é dado, seja conceito do entendimento seja lei da razão; há, pois, uma faculdade legisladora, que dirige ou determina o contributo original das outras faculdades, de sorte que este contributo é difícil de apreciar. Mas, no juízo reflexivo, nada é dado do ponto de vista das faculdades ativas: só se apresenta uma matéria bruta, sem ser, para falar em termos precisos, «representada». Todas as faculdades ativas se exercem assim livremente em relação a ela. O juízo reflexivo exprimirá um acordo livre e indeterminado entre todas as faculdades. A arte, que permanecia escondida e como que subordinada no juízo determinante, torna-se manifesta e exerce-se livremente no juízo reflexivo. Não há dúvida de que podemos por «reflexão» descobrir um conceito que já existe; mas o juízo reflexivo será tanto mais puro quanto não houver conceito algum para a coisa que ele reflete livremente ou quanto o conceito for (de uma certa maneira) alargado, ilimitado, indeterminado.

Na verdade, juízo determinante e juízo reflexivo não são como que duas espécies de um mesmo género. O juízo reflexivo manifesta e liberta um fundo que permanecia escondido no outro. Mas já o outro não era juízo senão por este fundo vivo. Sem o que não compreenderíamos como é que a Crítica do Juízo pode intitular-se assim, embora apenas trate do juízo reflexivo. É que todo o acordo determinado das faculdades, sob uma faculdade determinante e legisladora, supõe a existência e a possibilidade de um acordo livre indeterminado. É neste acordo livre que o juízo não só é original (o que ele era já no caso do juízo determinante), como ainda manifesta o princípio da sua originalidade. Segundo este princípio, as nossas faculdades diferem em natureza, e todavia nem por isso deixam de ter um acordo livre e espontâneo, que torna possível em seguida o seu

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exercício sob a presidência de uma de entre elas, conforme uma lei dos interesses da razão. O juízo é sempre irredutível ou original: motivo pelo qual pode ser chamado «uma» faculdade (dom ou arte específica). Nunca consiste numa única faculdade, mas no seu acordo, quer num acordo já determinado por uma delas que desempenhe um papel legislador quer mais profundamente num livre acordo indeterminado, que constitui o objeto último de uma «crítica do juízo» em geral.

Da estética à teleologia

Quando a faculdade de conhecer é apreendida sob a sua forma superior, o entendimento legisla nesta faculdade; quando a faculdade de desejar é apreendida sob a sua forma superior, a razão legisla nesta faculdade. Quando a faculdade de sentir é apreendida sob a sua forma superior, é o juízo que legisla nesta faculdade (38). Acresce que este caso é muito diferente dos outros dois: o juízo estético é reflexivo; não legisla sobre objetos, mas somente sobre si mesmo; não exprime uma determinação de objeto sob uma faculdade determinante, mas um acordo livre de todas as faculdades a propósito de um objeto refletido. Devemos perguntar se não há um outro tipo de juízo reflexivo ou se um livre acordo das faculdades subjetivas se não manifesta de outro modo que não seja no juízo estético.

Sabemos que a razão, no seu interesse especulativo, forma Idéias cujo sentido é somente regulador. Quer dizer: elas não têm objeto determinado do ponto de vista do conhecimento, mas conferem aos conceitos do entendimento um máximo de unidade sistemática. Nem por isso deixam de ter um valor objetivo, posto que «indeterminado»; pois não podem conferir uma unidade sistemática aos conceitos sem emprestar uma unidade semelhante aos fenômenos considerados na sua matéria ou na sua particularidade. Esta unidade, admitida como inerente aos fenômenos, é uma unidade final das coisas (máximo de unidade na maior variedade possível, sem que se possa dizer até onde vai essa unidade). Tal unidade final só pode ser concebida segundo um conceito de fim natural; com efeito, a unidade do diverso exige uma relação da diversidade com um fim determinado, conforme os objetos que referimos a essa unidade. No conceito de fim natural, a unidade é sempre unicamente presumida ou _____________

(38) CJ, Introd., 3 e 9.

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suposta como conciliável com a diversidade das leis empíricas particulares (39). Por tal motivo não exprime ela um ato pelo qual a razão seria legisladora. Também o entendimento não legisla. O entendimento legisla sobre os fenômenos, mas somente enquanto são considerados na forma da sua intuição; os seus atos legislativos (categorias) constituem, pois, leis gerais e exercem-se sobre a natureza como objeto de experiência possível (toda a mudança tem uma causa..., etc.). Mas nunca o entendimento determina a priori a matéria dos fenômenos, o pormenor da experiência real ou as leis particulares deste ou daquele objeto. Estas só são conhecidas empiricamente e permanecem contingentes relativamente ao nosso entendimento.

Toda a lei comporta necessidade. Mas a unidade das leis empíricas, do ponto de vista da sua particularidade, deve ser pensada como uma unidade de tal ordem que apenas um entendimento diferente do nosso poderia dá-la necessariamente aos fenômenos. Um «fim» define-se precisamente pela representação do efeito como motivo ou fundamento da causa; a unidade final dos fenômenos remete para um entendimento capaz de lhe servir de princípio ou de substrato, no qual a representação do todo seria causa do próprio todo enquanto efeito (entendimento-arquétipo, intuitivo, definido como causa suprema inteligente e intencional). Mas seria errado pensar que um tal entendimento existe na realidade ou que os fenômenos são efetivamente produzidos desta maneira: o entendimento-arquétipo exprime um carácter próprio do nosso entendimento, isto é, a nossa impotência para determinarmos nós mesmos o particular, a nossa impotência para concebermos a unidade final dos fenômenos segundo um outro princípio que não o da causalidade intencional de uma causa suprema (40). É neste sentido que Kant sujeita a noção dogmática de entendimento infinito a uma profunda transformação: o entendimento arquétipo já só exprime até ao infinito o limite inerente ao nosso entendimento, o ponto em que este deixa de ser legislador no nosso próprio interesse especulativo e pelo que respeita aos fenômenos. «Em conseqüência da constituição particular das minhas faculdades de conhecer, não posso, acerca da possibilidade da natureza e da sua produção, julgar de outro modo que não seja imaginando uma causa agindo por intenção (41).» ________________

(39) CJ, Introd. 5 (cf.. CRP, Dialéctica, apêndice). (40) CJ, 77. (41) CJ, 75.

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A finalidade da natureza está, portanto, ligada a um duplo movimento. Por um lado, o conceito de fim natural deriva das Idéias da razão (na medida em que exprime uma unidade final dos fenômenos): «Ele subsume a natureza numa causalidade somente concebível por razão (42).» Só que ele não se confunde com uma Idéia racional, pois o efeito conforme a esta causalidade encontra-se de fato dado na natureza: «Neste aspecto, o conceito de fim natural distingue-se de todas as outras idéias (43). Diferentemente de uma Idéia da razão, o conceito de fim natural tem um objeto dado; diferentemente de um conceito do entendimento, não determina o seu objeto. Na realidade, intervém para permitir que a imaginação «reflita» sobre o objeto de maneira indeterminada, de tal forma que o entendimento «adquire» conceitos em conformidade com as Idéias da própria razão. O conceito de fim natural é um conceito de reflexão que deriva das Idéias reguladoras: nele todas as nossas faculdades se harmonizam e entram num livre acordo, graças ao qual refletimos sobre a Natureza do ponto de vista das suas leis empíricas. O juízo teleológico é, pois, um segundo tipo de juízo reflexivo.

Inversamente, a partir do conceito de fim natural determinamos um objeto da Idéia racional. Sem dúvida, a Idéia não tem em si mesma um objeto determinado; mas o seu objeto é determinável por analogia com os objetos de experiência. Ora, esta determinação indireta e analógica (que se concilia perfeitamente com a função reguladora da Idéia) só é possível na medida em que os próprios objetos da experiência apresentam a unidade final natural, relativamente à qual o objeto da Idéia deve servir de princípio ou de substrato. Deste modo é o conceito de unidade final ou de fim natural que nos força a determinar Deus como causa suprema intencional agindo à maneira de um entendimento. Em tal sentido, Kant insiste muito na necessidade de ir de uma teleologia natural para a teologia física. O caminho inverso seria um mau caminho, assinalando uma «Razão invertida» (a Idéia teria então um papel constitutivo e já não regulador, o juízo teleológico seria tomado como determinante). Não encontramos na natureza fins divinos intencionais; pelo contrário, partimos de fins que são antes de mais os da natureza e acrescentamos-lhes a Idéia de uma causa divina intencional como condição da sua compreensão. Não impomos fins à natureza, «violenta e ditatorialmente»; pelo contrário, refletimos sobre a

_____________ (42) CJ. 74. (43) CJ, 77.

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unidade final natural, empiricamente conhecida na diversidade, para nos elevarmos até à Idéia de. uma causa suprema deter-minada por analogia (44). O conjunto destes dois movimentos define um novo modo de apresentação da Idéia, último modo que se distingue dos que analisamos anteriormente.

Qual é a diferença entre os dois tipos de juízo, teleológico e estético? Devemos considerar que o juízo estético já manifesta uma verdadeira finalidade. Mas trata-se de uma finalidade subjetiva, formal, excluindo qualquer fim (objetivo ou subjetivo). A finalidade estética é subjetiva, visto que consiste no livro acordo das faculdades entre si (45). Decerto que ela põe em jogo a forma do objeto, mas a forma é precisamente o que a imaginação reflete do próprio objeto. Trata-se, pois, objetivamente de uma pura forma subjetiva da finalidade, excluindo todo o fim material determinado (a beleza de um objeto não se avalia nem pelo seu uso, nem pela sua perfeição interna nem pela sua ligação com um interesse prático seja ele qual for) (46). Objectar-se-á que a Natureza intervém, como vimos, pela sua aptidão material para produzir a beleza; neste sentido, devemos já falar, a propósito do belo, de um acordo contingente da Natureza com as nossas faculdades. Esta aptidão material é até para nós objeto de um «interesse» particular. Mas tal interesse não faz parte do sentido do próprio belo, se bem que nos dê um princípio segundo o qual este sentido pode ser engendrado. Aqui, o acordo contingente da Natureza e das nossas faculdades permanece pois, de certo modo, exterior ao livre acordo das faculdades entre si: a natureza dá-nos unicamente a ocasião exterior «de apreender a finalidade interna da relação das nossas faculdades subjetivas» (47). A aptidão material da Natureza não constitui um fim natural (que viria contradizer a idéia de uma finalidade sem fim): «Somos nós que recebemos a natureza favoravelmente, ao passo que ela mesma nos não faz favor algum (48).»

A finalidade, sob estes diferentes aspectos, é objeto de uma «representação estética». Ora, vemos que, nesta representação, o juízo reflexivo apela para princípios particulares, de vários modos: por um lado, o acordo livre das faculdades como fundamento deste juízo (causa formal); por outro, a faculdade de sentir como _________________________

(44) CRP, Dialéctica, apêndice, «do objetivo final da dialéctica natural. — CJ, §§ 68, 75 e 85.

(45) Donde, CJ, § 34, a expressão «finalidade subjetiva recíproca». (46) CJ, §§ 11 e 15. (47) CJ, § 58. (48) Ibid.

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matéria ou causa material, relativamente à qual o juízo define um prazer particular como estado superior; de um terceiro modo, a forma da finalidade sem fim como causa final; por último, o interesse especial pelo belo, como causa fiendi segundo a qual é engendrado o sentido do belo que se exprime de direito no juízo estético.

Quando consideramos o juízo teleológico, achamo-nos diante de uma representação da finalidade completamente diferente. Trata-se agora de uma finalidade objetiva, material, implicando fins. O que domina é a existência de um conceito de fim natural, exprimindo empiricamente a unidade final das coisas em função da sua diversidade. A «reflexão» muda então de sentido: já não reflexão formal do objeto sem conceito, mas conceito de reflexão pelo qual se reflete sobre a matéria do objeto. Neste conceito, as nossas faculdades exercem-se livre e harmoniosa-mente. Mas, aqui, o acordo livre das faculdades fica compreendido no acordo contingente da Natureza e das próprias faculdades. De sorte que, no juízo teleológico, devemos considerar que a Natureza nos faz realmente um favor (e quando, da teleologia, regressamos à estética, consideramos que a produção natural das coisas belas era já um favor da natureza a nosso respeito) (49). A diferença entre os dois juízos consiste no seguinte: o juízo teleológico não remete para princípios particulares (exceto no seu uso ou na sua aplicação). Ele implica, sem dúvida, o acordo da razão, da imaginação e do entendimento, sem que este legisle; mas esse ponto onde o entendimento abandona as suas pretensões legisladoras faz plenamente parte do interesse especulativo e permanece compreendido no domínio da faculdade de conhecer. É por isso que o fim natural é objeto de uma «representação lógica». Decerto que há um prazer da reflexão no próprio juízo teleológico; não experimentamos prazer na medida em que a Natureza é necessariamente submetida à faculdade de conhecer, mas experimentamos algum na medida em que a Natureza se concilia de maneira contingente com as nossas faculdades subjetivas. Mas, também aqui, este prazer teleológico se confunde com o conhecimento: não define um estado superior da faculdade de sentir tomada em si mesma, mas antes um efeito da faculdade de conhecer sobre a faculdade de sentir (50).

Que o juízo teleológico não remeta para um princípio a priori particular, é coisa que se explica facilmente. Na verdade, _________________

(49) CJ, § 67. (50) CJ, Introd., § 6.

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ele é preparado pelo juízo estético e ficaria incompreensível sem esta preparação (51). A finalidade formal estética «prepara-nos» para formar um conceito de fim que se acrescenta ao princípio de finalidade, o completa e o aplica à natureza; é a própria reflexão sem conceito que nos prepara para formar um conceito de reflexão. Outrossim não há problema de gênese a propósito de um senso comum teleológico; este é admitido ou presumido no interesse especulativo, faz parte do senso comum lógico, mas acha-se de certo modo encetado pelo senso comum estético.

Se considerarmos os interesses da razão que correspondem às duas formas do juízo reflexivo reencontramos o tema de uma «preparação», mas num outro sentido. A estética manifesta um acordo livre das faculdades, que se liga de uma certa maneira a um interesse especial pelo belo; ora, este interesse predestina-nos a ser moral, logo, prepara o advento da lei moral ou a supremacia do interesse prático puro. A teleologia, por seu lado, manifesta um acordo livre das faculdades, desta vez, no próprio interesse especulativo: «sob» a relação das faculdades tal como ela é deter-minada pelo entendimento legislador, descobrimos uma livre harmonia de todas as faculdades entre si, donde o conhecimento extrai uma via própria (vimos que o juízo. determinante, no conhecimento mesmo, implicava um fundo vivo que apenas se revela à «reflexão»). Deve então pensar-se que o juízo reflexivo em geral toma possível a passagem da faculdade de conhecer à faculdade de desejar, do interesse especulativo ao interesse prático, e prepara a subordinação do primeiro ao segundo, ao mesmo tempo que a finalidade toma possível a passagem da natureza à liberdade ou prepara a realização da liberdade na natureza (52). _________________

(51) CJ, Introd., § 8. (52) CJ, Introd., §§ 3 e 9.

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P K-73

Conclusão

OS FINS DA RAZÃO

Doutrina das faculdades

As três Críticas apresentam um verdadeiro sistema de permutações. Em primeiro lugar, as faculdades são definidas segundo as relações da representação em geral (conhecer, desejar, sentir). Em segundo lugar, como fontes de representações (imaginação, entendimento, razão). Consoante consideramos esta ou aquela faculdade no primeiro sentido, uma certa faculdade no segundo sentido é chamada a legislar sobre objetos e a distribuir às outras faculdades a sua tarefa específica: é o caso do entendimento na faculdade de conhecer, da razão na faculdade de desejar. É verdade que, na Crítica do Juízo, a imaginação não tem acesso por sua conta a uma função legisladora. Mas ela liberta-se, de sorte que todas as faculdades entram em conjunto num livre acordo. As duas primeiras Críticas expõem assim uma relação das faculdades determinada por uma de entre elas; a última Crítica descobre mais profundamente um acordo livre e indeterminado das faculdades, como condição de possibilidade de toda a relação determinada.

Este acordo livre aparece de duas formas: na faculdade de conhecer, como um fundo suposto pelo entendimento legislador; e para si mesmo, como um germe que nos destina à razão

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legisladora ou à faculdade de desejar. Por isso, ele é o mais profundo da alma, mas não o mais alto. O mais alto é o interesse prático da razão, o que corresponde à faculdade de desejar, e que subordina a si a faculdade de conhecer ou o próprio interesse especulativo.

A originalidade da doutrina das faculdades em Kant consiste no seguinte: que a sua forma superior as não abstrai nunca da sua finitude humana, tal como não suprime a sua diferença de natureza. E enquanto específicas e finitas que as faculdades no primeiro sentido da palavra têm acesso a uma forma superior e que as faculdades no segundo sentido têm acesso ao papel legislador.

O dogmatismo afirmava uma harmonia entre o sujeito e o objeto e invocava Deus (gozando de faculdades infinitas) para garantir esta harmonia. As duas primeiras Críticas substituem-lhe a idéia de uma submissão necessária do objeto ao sujeito «finito»: nós, os legisladores, na nossa própria finitude (mesmo a lei moral é obra de uma razão finita). Tal é a revolução copernicana (1). Mas, deste ponto de vista, a Crítica do Juízo parece levantar uma dificuldade particular: quanto Kant descobre um livre acordo sob a relação determinada das faculdades, acaso não reintroduz ele simplesmente a idéia de harmonia e de finalidade? E isto de duas formas: no acordo dito «final» entre as faculdades (finalidade subjetiva) e no acordo dito «contingente» da natureza e das próprias faculdades (finalidade objetiva).

Contudo, o essencial não reside aqui. O essencial é que a Crítica do Juízo fornece uma nova teoria da finalidade, que corresponde ao ponto de vista transcendental e se concilia perfeitamente com a idéia de legislação. Esta tarefa é preenchida na medida em que a finalidade já não tem um princípio teológico, mas, isso sim, a teologia um fundamento «final» humano. Donde a importância das duas teses da Crítica do Juízo: o acordo final das faculdades é objeto de uma gênese particular; a relação final da Natureza e do homem é o resultado de uma atividade prática propriamente humana.

Teoria dos fins

O juízo teleológico não remete, como o juízo estético, para um princípio que sirva de fundamento a priori à sua reflexão.

____________________ (1) Cf. os comentários de Muillemin sobre a «finitude constituinte» em

L'béritage kantien et la révolution copernicienne.

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Por conseguinte, deve ser preparado pelo juízo estético, e o conceito de fim natural supõe antes de mais a pura forma da finalidade sem fim. Mas, em compensação, quando chegamos ao conceito de fim natural, coloca-se uma problema para o juízo teleológico, que se não colocava para o juízo estético: a estética deixava ao gosto o cuidado de decidir que objeto devia ser julgado belo; a teleologia, ao invés, exige regras que indiquem as condições sob as quais se julga acerca de uma coisa segundo o conceito de fim natural (2). A ordem de dedução é, pois, a que se segue: da forma da finalidade ao conceito de fim natural (exprimindo a unidade final dos objetos do ponto de vista da sua matéria ou das suas leis particulares); e do conceito de fim natural à sua aplicação na natureza (exprimindo para a reflexão que objetos devem ser julgados segundo este conceito).

Tal aplicação é dupla: ou aplicamos o conceito de fim natural a dois objetos, dos quais um é causa e o outro efeito, de tal modo que introduzamos a idéia do efeito na causalidade da causa (exemplo, a areia como meio relativamente aos pinhais). Ou, então, aplicamo-lo a uma mesma coisa como causa e efeito de si mesma, quer dizer, a uma coisa cujas partes se produzem reciprocamente na sua forma e na sua ligação (seres organizados, organizando-se eles próprios): desta maneira, introduzimos a idéia do todo, não enquanto causa da existência da coisa («pois seria então um produto da arte»), mas enquanto fundamento da sua possibilidade como produto da natureza do ponto de vista da reflexão. No primeiro caso, a finalidade é externa; no segundo, interna (3). Ora, estas duas finalidades têm relações complexas.

Por um lado, a finalidade externa por si mesma é puramente relativa e hipotética. Para que ela deixasse de o ser, seria preciso que fôssemos capazes de determinar um fim último; o que é impossível por observação da natureza. Só observamos meios que são já fins relativamente à sua causa, fins que são ainda meios relativamente a outra coisa. Somos assim forçados a subordinar a finalidade externa à finalidade interna, isto é, a considerar que uma coisa só é um meio na medida em que o fim para o qual ela serve é igualmente um ser organizado (4).

Mas, por outro lado, é duvidoso que a finalidade interna não remeta por seu turno para uma espécie de finalidade externa e não levante a questão (que parece insolúvel) de um fim último. __________________

(2) CJ, Introd., 8. (3) CJ, §§ 63-65. (4) CJ, § 82.

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Efetivamente, ao aplicarmos o conceito de fim natural aos seres organizados, somos conduzidos à idéia de que toda a natureza é um sistema que segue a regra dos fins (5). A partir dos seres organizados, somos remetidos para relações exteriores entre estes seres, relações que deveriam cobrir o conjunto do universo (6). Mas, precisamente, a Natureza só poderia formar um tal sistema (em vez de um simples agregado) em função de um fim último. Ora, é claro que nenhum ser organizado pode constituir um tal fim: nem sequer, ou sobretudo, o homem enquanto espécie animal. E que um fim último implica a existência de alguma coisa como fim; mas a finalidade interna nos seres organizados diz somente respeito à sua possibilidade sem considerar se a sua própria existência é um fim. A finalidade interna põe apenas a questão: porque é que certas coisas existentes têm esta ou aquela forma? Mas deixa subsistir inteiramente estoutra questão: porque existem coisas desta forma? Só poderia ser dito «fim último» um ser de tal ordem que o fim da sua existência estivesse em si mesmo; a idéia de fim último implica, portanto, a de objetivo final, que excede todas as nossas possibilidades de observação na natureza sensível, assim como todos os recursos da nossa reflexão (7).

Um fim natural é um fundamento de possibilidade; um fim último é uma razão de existência; um objetivo final é um ser que possui em si a razão de existência. Mas o que é objetivo final? Só pode sê-lo aquele que pode fazer-se um conceito de fins; só o homem enquanto ser racional pode encontrar o fim da sua existência em si mesmo. Trata-se do homem enquanto ser que procura a felicidade? Não, pois a felicidade como fim deixa inteiramente subsistir a questão: porque é que o homem existe (sob uma «forma» tal que ele se esforça por tomar a sua existência feliz) (8)? Trata-se do homem enquanto ser que conhece? Sem dúvida, o interesse especulativo constitui o conhecimento como fim; mas este fim nada seria se, porventura, a existência daquele que conhece não fosse já objetivo final (9). Ao conhecer, formamos somente um conceito de fim natural do ponto de vista da reflexão, não uma idéia de objetivo final. É certo que, com a ajuda deste conceito, somos capazes de determinar indireta e analogicamente ____________________

(5) CJ, § 67. (É inexato crer que, segundo Kant, a finalidade externa se subordina absolutamente à finalidade interna. O inverso é verdadeiro de uni outro ponto de vista.)

(6) CJ, § 82. (7) CJ, §§ 82, 84, (8) CJ, § 86. (9) Ibid.

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o objeto da Idéia especulativa (Deus como autor inteligente da Natureza). Mas «porque é que Deus criou a Natureza?» permanece uma pergunta absolutamente inacessível a esta determinação. É neste sentido que Kant recorda constantemente a insuficiência da teleologia natural como fundamento de uma teologia: a determinação da Idéia de Deus à qual chegamos por esta via dá-nos apenas uma opinião, não uma crença (10). Em suma, a teleologia natural justifica o conceito de uma causa criadora inteligente, mas unicamente do ponto de vista da possibilidade das coisas existentes. A questão de um objetivo final no ato de criar (para quê a existência do mundo e a do próprio homem?) ultrapassa toda a teleologia natural e nem sequer pode ser concebida por ela (11).

«Um objetivo final não é mais que um conceito da nossa razão prática (12).» Com efeito, a lei moral prescreve um objetivo sem condição. Neste objetivo, é a razão que se toma a si mesma como fim, a liberdade que se atribui necessariamente um conteúdo como fim supremo determinado pela lei. À pergunta «o que é objetivo final?» devemos responder: o homem, mas o homem como númeno e existência supra-sensível, o homem como ser moral. “A propósito do homem considerado como ser moral, já se não pode perguntar porque é que existe; a sua existência contém em si o fim supremo (13)...» O fim supremo é a organização dos seres racionais sob a lei moral, ou a liberdade como razão de existência contida em si no ser racional. Aparece aqui a unidade absoluta de uma finalidade prática e de uma legislação incondicionada. Esta unidade forma a «teleologia moral», na medida em que a finalidade prática é determinada a priori em nós mesmos com a sua lei (14).

O objetivo final é, pois, determinável e determinado praticamente. Ora, sabemos como, em conformidade com a segunda Crítica, esta determinação ocasiona por sua vez uma determinação prática da Idéia de Deus (como autor moral), sem a qual o objetivo final nem sequer poderia ser pensado como realizável. De qualquer modo, a teologia apoia-se sempre numa teleologia (e não o inverso). Mas, há bocado, elevávamo-nos de uma teleologia natural (conceito de reflexão) a uma teologia física (determinação especulativa da Idéia reguladora, Deus como autor _______________

(10) CJ, §§ 85, 91 e «nota geral sobre a teleologia». (11) CJ, § 85. (12) CJ, § 88. (13) CJ, § 84. (14) CJ, § 87.

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inteligente); se esta determinação especulativa se conciliava com a simples regulação, é precisamente na medida em que era de todo em todo insuficiente, permanecendo condicionada empiricamente e nada nos dizendo acerca de um objetivo final da criação divina (15). Agora, pelo contrário, vamos a priori de uma teleologia prática (conceito praticamente determinante do objetivo final) a uma teologia, moral (determinação prática suficiente da Idéia de um Deus moral como objeto de crença). Não se pense que a teleologia natural seja inútil: é ela que nos impele a procurar uma teologia, embora sendo incapaz de a fornecer verdadeira-mente. Não se pense também que a teologia moral «completa» a teologia física (nem que a determinação prática das Idéias completa a determinação especulativa analógica). De fato, ela supre-a, segundo um outro interesse da razão (16). É do ponto de vista destoutro interesse que determinamos o homem como objetivo final, e objetivo final para o conjunto da criação divina.

A história ou a realização

A última pergunta é: como se explica que o objetivo final seja também fim último da natureza? Quer dizer: como se explica que o homem, o qual só é objetivo final na sua existência supra-sensível e na qualidade de númeno, possa ser fim último da natureza sensível? Sabemos que o mundo supra-sensível deve, de uma certa maneira, ser unido ao sensível: o conceito de liberdade deve realizar no mundo sensível o fim imposto pela sua lei. Esta realização é possível sob duas espécies de condições: condições divinas (a determinação prática das Idéias da razão, que torna possível um Soberano bem como acordo do mundo sensível e do mundo supra-sensível, da felicidade e da moralidade); e condições terrestres (a finalidade na estética e na teleologia, como tornando possível uma realização do próprio Soberano bem, ou seja, uma conformidade do sensível com uma finalidade mais alta. A realização da liberdade é assim também a efetuação do soberano bem: «União do maior bem-estar das criaturas racionais no mundo com a mais alta condição do Bem moral nele (17).» Neste sentido, o objetivo final incondicional é fim último da natureza sensível, sob as condições que o estabelecem como necessariamente realizável e devendo ser realizado nesta natureza. ___________________

(15) CJ, § 88. (16) CJ, «nota geral sobre a teleologia». (17) CJ, § 88.

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Na medida em que o fim último é unicamente o objetivo final, ele é objeto de um paradoxo fundamental: o fim último da natureza sensível é um fim que esta natureza não pode bastar para realizar (18). Não é a natureza que realiza a liberdade, mas o conceito de liberdade que se realiza ou efetua na natureza. A efetuação da liberdade e do Soberano bem no mundo sensível implica, pois, uma atividade sintética original do homem: a História é esta efetuação, pelo que se não deve confundi-la com um simples desenvolvimento da natureza. A idéia de fim último implica sem dúvida uma relação final da natureza e do homem; mas esta relação é somente tornada possível pela finalidade natural. Em si mesma e formalmente, é independente da natureza sensível e deve ser estabelecida, instaurada pelo homem (19). A instauração da relação final é a formação de uma constituição civil perfeita: esta é o mais alto objeto da Cultura, o fim da história ou o Soberano bem propriamente terrestre (20).

Tal paradoxo explica-se facilmente. A natureza sensível enquanto fenômeno tem como substrato o supra-sensível. E apenas neste substrato que se conciliam o mecanismo e a finalidade da natureza sensível, um concernindo ao que é necessário nela como objeto dos sentidos, a outra, ao que é contingente nela como objeto da razão (21). E, pois, uma manha da Natureza supra-sensível o fato de a natureza sensível não bastar para rea-lizar o que, não obstante, é o «seu» fim último; porque este fim é o próprio supra-sensível enquanto devendo ser efetuado (isto é: ter um efeito no sensível). «A Natureza quis que o homem tirasse de si mesmo tudo o que supera o arranjo mecânico da sua existência animal e não participasse em nenhuma outra felicidade ou perfeição senão a que ele mesmo criou para si, independentemente do instinto, pela sua própria razão (22).» Assim, o que há de contingente no acordo da natureza sensível com as faculdades do homem é uma suprema aparência transcendental, que esconde uma manha do supra-sensível. Mas, ao falarmos do efeito do supra-sensível no sensível, ou da realização do conceito de liberdade, nunca devemos crer que a natureza sensível como fenômeno esteja submetida à lei da liberdade ou da razão. Uma tal concepção da história implicaria que os acontecimentos fossem determinados pela razão, e pela razão tal como existe _________________

(18) CJ, § 84. (19) CJ, § 83. (20) Ibid. — É Idéia de uma história universal (IHU), prop. 5-8. (21) CJ, § 77. (22) IHU, prop. 3.

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individualmente no homem enquanto númeno; os acontecimentos manifestariam então um «desígnio racional pessoal» dos próprios homens (23). Mas a história, tal como aparece na natureza sensível, mostra-nos exatamente o contrário: puras relações de forças, antagonismos de tendências, que formam um tecido tanto de loucura como de vaidade pueril. E que a natureza sensível permanece sempre submetida às leis que lhe são próprias. Mas se ela é incapaz de realizar o seu fim último, nem por isso deve deixar de, conformemente às suas próprias leis, tornar possível a realização de tal fim. E pelo mecanismo das forças e pelo conflito das tendências (cf. «a insociável sociabilidade») que a natureza sensível, no próprio homem, preside ao estabelecimento de uma Sociedade, único meio no qual o fim último possa ser historicamente realizado (24). Assim, o que parece um contra-senso do ponto de vista dos desígnios de uma razão pessoal a priori pode ser um «desígnio da Natureza» para assegurar empiricamente o desenvolvimento da razão no âmbito da espécie humana. A história deve ser julgada do ponto de vista da espécie, e não da razão pessoal (25). Há, pois, uma segunda manha da Natureza, que não devemos confundir com a primeira (ambas constituem a história). Segundo esta segunda manha, a Natureza supra-sensível quis que, mesmo no homem, o sensível procedesse consoante as suas próprias leis para ser capaz de receber finalmente o efeito supra-sensível.

_________________ (23) IHU, introd. (24) IHU, prop. 4. (25) IHU, prop. 2.

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BIBLIOGRAFIA SUMÁRIA (Indicamos com um asterisco as obras que se apresentam particularmente como introduções à leitura de Kant.)

Filosofia especulativa Boutroux*, La philosophie de Kant (curso), Vrin. Daval, La métaphysique de Kant, Presses Universitaires de France. Vleeschauwer, La déduction transcendentale dans l'oeuvre de Kant,

Anvers-Paris. Vuillemin, Physique et métaphysique kantiennes, Presses Universitaires

de France.

Filosofia prática

Alquié*, Introdução, edição Presses Universitaires de France, da Critique de la raison pratique — *La morale de Kant (curso), C.D.U.

Delbos, La philosophie pratique de Kant, Alcan. Vialatoux*, La morale de Kant, Presses Universitaires de France.

Filosofia do juízo M. Souriau, Le jugement réfléchissant dans la philosophie critique de

Kant, Alcan.

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Filosofia da história Delbos, Ibid. Locroix, Histoire et mystère, Casterman. Compilação de artigos (E. Weil, Ruyssen, Hassner, Polin...), La

philosophie politique de Kant, Presses Universitaires de France.

Os problemas kantianos no pós-kantismo

Delbos, De Kant aux postkantiens, Aubier. Guéroult, L'évolution et la structure de la Doctrine de la Science chez

Fichte, Les Belles-Lettres. Vuillemin, L'héritage kantien et la révolution copernicienne, Presses

Universitaires de France.

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ÍNDICE

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Capa - Contracapa Introdução. — O MÉTODO TRANSCENDENTAL ................................9

A Razão segundo Kant ............................................................................9 Primeiro sentido da palavra faculdade ....................................................11 Faculdade de conhecer superior ..............................................................12 Faculdade de desejar superior .................................................................13 Segundo sentido da palavra faculdade ....................................................15 Relação entre os dois sentidos da palavra faculdade ...............................16

Capítulo I. — RELAÇÃO DAS FACULDADES NA CRITICA DA RAZÃO PURA ........................................................................................19

A priori e transcendental .....................................................................19 A revolução copernicana ....................................................................21 A síntese e o entendimento legislador ................................................22 Papel da imaginação ...........................................................................25 Papel da razão .....................................................................................26 Problema da relação entre as faculdades: o senso comum ..................28 Uso legítimo, uso ilegítimo ................................................................31

Capitulo II. — RELAÇÃO DAS FACULDADES NA CRITICA DA

RAZÃO PRÁTICA .................................................................................35 A razão legisladora .............................................................................35 Problema da liberdade ........................................................................36 Papel do entendimento ........................................................................39 O senso comum moral e os usos ilegítimos ........................................42 Problema da realização .......................................................................45 Condições da realização .....................................................................47 Interesse prático e interesse especulativo ...........................................49

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Capítulo III. —RELAÇÃO DAS FACULDADES NA CRITICA DO JUÍZO ......................................................................................................53

Há uma forma superior do sentimento? ..............................................53 Senso comum estético ........................................................................55 Relação das faculdades no Sublime ....................................................57 Ponto de vista da gênese .....................................................................59 O simbolismo na Natureza .................................................................61 O simbolismo na arte, ou o gênio .......................................................62 O juízo é uma faculdade? ...................................................................64 Da estética à teleologia .......................................................................67

Conclusão. — OS FINS DA RAZÃO .......................................................73 Doutrina das faculdades ......................................................................73 Teoria dos fins ....................................................................................74 A história ou a realização ...................................................................78

BIBLIOGRAFIA SUMÁRIA ....................................................................81

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Impressão e acabamento da

CASAGRAF— Artes Gráficas, Lda. para

EDIÇÕES 70, Lda. em

Agosto de 2000

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A FILOSOFIACRÍTICA DE KANT

G. Deleuze situa-nos aqui no coração da «re-volução coperniciana» de Kant : a faculdade deconhecer como legisladora, a submissão ne-cessária do objecto ao sujeito, o homemverdadeiro legislador da Natureza.Neste contexto, é importante o problema darelação entre as três faculdades activas (imagi-nação, entendimento, razão), que é analisadonas três grandes Críticas .