a função da antropologia moral na filosofia prática de kant

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ALEXANDRE HAHN A FUNÇÃO DA ANTROPOLOGIA MORAL NA FILOSOFIA PRÁTICA DE KANT Tese de doutorado apresentada ao Departamento de Filosofia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas, sob a orientação do Prof. Dr. Zeljko Loparic. FEVEREIRO / 2010

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  • ALEXANDRE HAHN

    A FUNO DA ANTROPOLOGIA MORAL NA FILOSOFIA PRTICA DE KANT

    Tese de doutorado apresentada ao Departamento de Filosofia do Instituto de Filosofia e Cincias Humanas da Universidade Estadual de Campinas, sob a orientao do Prof. Dr. Zeljko Loparic.

    FEVEREIRO / 2010

  • FICHA CATALOGRFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA DO IFCH - UNICAMP

    Bibliotecria: Ceclia Maria Jorge Nicolau CRB n 3387

    Ttulo em ingls: The function of moral anthropology in Kants pratical philosophy

    Palavras chaves em ingls (keywords):

    rea de Concentrao: Histria da Filosofia Moderna Titulao: Doutor em Filosofia Banca examinadora:

    Data da defesa: 23-02-2010 Programa de Ps-Graduao: Filosofia

    Philosophical anthropology Philosophy History German philosophy Anthropology Moral and ethical aspects Ethics

    Zeljko Loparic, Oswaldo Giacoia Junior, Daniel Omar Perez, Aguinaldo Antnio Cavalheiro Pavo, Marcos Alberto de Oliveira

    Hahn, Alexandre H124f A funo da antropologia moral na filosofia prtica de Kant /

    Alexandre Hahn. - - Campinas, SP : [s. n.], 2010. Orientador: Zeljko Loparic. Tese (doutorado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Cincias Humanas.

    1. Kant, Immanuel, 1724-1804. 2. Antropologia filosfica. 3. Filosofia Histria. 4. Filosofia alem. 5. Antropologia Aspectos morais e ticos. 6. tica. I. Loparic, Zeljko, 1939- II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Cincias Humanas. III.Ttulo.

  • v

    Aos meus pais:

    Aloisio Norberto Hahn e Celsi Maria Hahn

  • vii

    AGRADECIMENTOS

    Gostaria de aproveitar esta oportunidade para agradecer a diversas pessoas e instituies que, de

    formas distintas, colaboraram com o desenvolvimento deste trabalho.

    Agradeo ao Prof. Dr. Zeljko Loparic, no apenas por ter aceito orientar o presente trabalho, mas

    tambm pela pacincia que teve com as minhas limitaes, pela confiana que depositou em mim,

    pelo entusiasmo com o qual sempre recebeu minhas pequenas descobertas (muitas vezes j

    antecipadas por ele prprio), e principalmente por ter me dado a oportunidade de aprender com

    ele. Enfim, agradeo por ter sido, muito mais do que um orientador, um incentivador e amigo.

    Agradeo CAPES Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior, pela bolsa

    de doutorado no Brasil e pela bolsa de doutorado sanduche na Alemanha.

    Agradeo ao DAAD Deutscher Akademischer Austauschdienst, pela bolsa de estudos do

    idioma alemo no Goethe-Institut de Dresden e por todo o suporte dado durante minha estada em

    Berlim.

    Agradeo ao Prof. Dr. Volker Gerhardt, por ter me acolhido na Humboldt Universitt zu Berlin.

  • viii

    Agradeo Rogrio Jos Cerveira Ribeiro, secretrio da Ps-graduao em Filosofia do IFCH

    UNICAMP (durante grande parte desta empreitada), por sempre ter sido muito atencioso com

    todas as minhas demandas.

    Agradeo aos professores que participaram da banca de qualificao e avaliao final deste

    trabalho, a saber, Prof. Dr. Osmyr Gabbi Faria Junior, Prof. Dr. Oswaldo Giacoia Junior, Prof.

    Dr. Daniel Omar Perez, Prof. Dr. Aguinaldo Antnio Cavalheiro Pavo e Prof. Dr. Marcos

    Alberto de Oliveira. Agradeo no apenas por terem aceitado ler este trabalho, mas

    principalmente pelas preciosas observaes feitas ao mesmo.

    Agradeo a todos os meus amigos, os quais, a fim de evitar a injustia de olvidar algum deles,

    no mencionarei um por um, por terem colaborado com este trabalho de diversas maneiras.

    Agradeo minha querida Ana Maria Bezerra Pina, por sempre ter me apoiado e me afastado da

    inrcia que, por vezes, parecia se apoderar de mim.

    Agradeo a toda a minha famlia, por ter me apoiado em todos os momentos do percurso da

    investigao, cujo resultado aqui apresento.

  • ix

    RESUMO

    Pretende-se, neste trabalho, determinar a funo da antropologia moral na filosofia prtica de

    Kant. Na Metafsica dos costumes, a mencionada antropologia designada como a contraparte

    (Gegenstck) da moral pura, isto , como o outro membro (Glied) da filosofia prtica. Tal

    concepo impulsionou a presente investigao, de entender como Kant concebe a conexo entre

    a moral e a antropologia, uma vez que o filsofo tambm parece demarcar uma rigorosa

    separao entre a moral e a antropologia. Em vista disso, este trabalho defender a tese de que a

    antropologia moral de Kant uma cincia pragmtica, cuja funo consiste em aplicar a moral no

    homem. Dito de outra forma, pretende-se mostrar que a antropologia moral, tomada como a

    contraparte da moral, cumpre o papel de formar o carter moral do homem. A fim de demonstrar

    essa tese, os dois primeiros captulos apresentaro um panorama da metafsica dos costumes

    (filosofia prtica pura), expondo os problemas e solues apresentados por Kant, e as evidncias

    que sustentam a necessidade de haver uma antropologia moral. O terceiro captulo explorar a

    definio do conceito de uma antropologia kantiana. O quarto captulo elencar e discutir alguns

    elementos que compem a natureza moral do homem. O ltimo captulo apresentar alguns

    dispositivos responsveis pela formao moral do homem.

  • xi

    ABSTRACT

    The aim of this work is to determine the function of moral anthropology in Kants practical

    philosophy. In the Metaphysics of Morals, this anthropology is called the counterpart

    (Gegenstck) of pure morality, that is, the other member (Glied) of practical philosophy. Such

    concept drove the present investigation in its attempt to understand the way Kant conceives the

    link between morality and anthropology, once the philosopher also seems to mark a strict

    distinction between morality and anthropology. Considering this, this work defends the thesis that

    Kants moral anthropology is a pragmatic science, whose function consists on applying morality

    to man. In other words, my purpose is to show that moral anthropology, taken as the counterpart

    of morality, performs the role of forming the moral character of man. In order to prove this, the

    first two chapters present a description of the metaphysics of morals (pure practical philosophy),

    exposing the problems and solutions proposed by Kant, and the evidence that supports the

    necessity for moral anthropology. The third chapter explores the definition of a Kantian

    anthropology. The fourth chapter lists and discusses a few elements which are part of the moral

    nature of man. The last chapter presents a few devices that are responsible for the moral

    formation of man.

  • xiii

    SUMRIO

    Introduo..........................................................................................................................................

    Captulo I A parte transcendental da filosofia prtica de Kant.................................................

    I.I. O conceito kantiano de filosofia transcendental e a filosofia prtica...................................

    I.II. O problema da fundamentao da filosofia prtica.............................................................

    I.II.I. O problema da possibilidade da liberdade transcendental na primeira Crtica...........

    I.II.II. A formulao do princpio prtico supremo na Fundamentao..............................

    I.II.III. A demonstrao da realidade objetiva da liberdade prtica na segunda Crtica......

    Captulo II A parte doutrinal da filosofia prtica de Kant.........................................................

    II.I. O problema da aplicao da lei moral.................................................................................

    II.II. O conceito de uma doutrina dos costumes.........................................................................

    II.III. Os princpios de aplicao da lei moral............................................................................

    II.III.I. Princpios para o uso externo da liberdade (deveres de direito)...............................

    II.III.II. Princpios para o uso interno da liberdade (deveres de virtude).............................

    II.III.II.I. Acerca da possibilidade de um dever de virtude............................................

    II.III.II.II. Exposio dos deveres de virtude para consigo e para com os outros.........

    II.IV. Antropologia moral como a contraparte da moral............................................................

    Captulo III Acerca do conceito de uma antropologia kantiana................................................

    III.I. Acerca da gnese da antropologia kantiana.......................................................................

    III.II. Definio do conceito de uma antropologia kantiana.......................................................

    III.II.I. Antropologia kantiana como filosofia emprica.......................................................

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  • xiv

    III.II.II. Antropologia kantiana: sistemtica e popular.........................................................

    III.II.III. Conhecimento antropolgico como conhecimento pragmtico.............................

    III.III. Acerca do projeto kantiano de uma antropologia moral..................................................

    Captulo IV Alguns elementos da antropologia moral de Kant.................................................

    IV.I. Fontes e mtodo do conhecimento acerca do homem........................................................

    IV.II. Acerca da questo: que o homem?.................................................................................

    IV.III. A natureza humana no que se refere faculdade de desejar...........................................

    IV.III.I. Vontade e arbtrio....................................................................................................

    IV.III.II. Predisposies naturais (Naturanlagen)................................................................

    IV.III.III. Propriedades (Beschaffenheiten) morais do nimo para a recepo do conceito

    de dever e a Esttica dos Costumes.........................................................................................

    IV.III.IV. Propenses (Hnge).............................................................................................

    IV.IV. A virtude..........................................................................................................................

    IV.V. Carter da pessoa..............................................................................................................

    IV.V.I Carter sensvel: Sinnesart ou temperamento...........................................................

    IV.V.II. Carter inteligvel: Denkungsart ou disposio de nimo (Gesinnung).................

    IV.VI. Carter da espcie............................................................................................................

    Captulo V A funo da antropologia moral na filosofia prtica de Kant................................

    V.I. A antropologia moral como responsvel pela formao do carter do ser humano............

    V.II. Os mecanismos antropolgicos de formao (Ausbildung) do ser humano......................

    V.II.I. Educao....................................................................................................................

    V.II.II. Religio.....................................................................................................................

    V.II.III. Poltica.....................................................................................................................

    V.II.IV. Arte..........................................................................................................................

    Concluso...........................................................................................................................................

    Bibliografia.........................................................................................................................................

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  • xv

    Die Wissenschafft der Regel, wie der Mensch sich verhalten soll, ist die practische Philosophie; und die Wissenschafft der Regel des wrklichen Verhaltens ist die Anthropologie. Diese beyden Wissenschafften hangen sehr zusammen und die Moral kann ohne die Anthropologie nicht bestehen; denn man mu das Subject erst kennen, ob es auch im Stande ist das zu leisten, was man von ihm fordert das es thun soll. Man kann zwar die practische Philosophie wohl erwgen auch ohne die Anthropologie oder ohne die Kenntni des Subjects; allein dann ist sie nur speculativ und eine Idee, so mu doch wenigstens der Mensch hernach studirt werden. (Kant, I. Vorlesung zur Moralphilosophie. Hrsg. von Werner Stark, mit einer Einleitung von Manfred Khn. Berlin; New York: Walter de Gruyter, 2004, p. 5)

  • xvii

    CRONOLOGIA DA OBRAS DE KANT

    A relao cronolgica das obras kantianas, indicada abaixo, tem por objetivo orientar a

    conferncia (confronto) dos trechos citados ao longo do presente trabalho. As referncias seguem,

    na sua grande maioria, a paginao original dos escritos de Kant, conforme a edio de Wilhelm

    Weischedel (Immanuel Kant Werke in sechs Bnden). Muitos dos trechos citados basearam-se em

    tradues para o portugus, quando havia tradues disponveis. As tradues utilizadas podem

    ser consultadas na bibliografia. Gostaria de destacar, no entanto, que nem todas as citaes

    seguem fielmente tais tradues. Por vezes, quando achei conveniente, apresentei tradues

    alternativas prprias. Excetuando-se as lies sobre filosofia moral (que seguiu a edio de

    Werner Stark), todas as outras citaes de lies (Vorlesungen), cartas (Briefe), manuscritos

    (Handschriftliche Nachla), e outros escritos menores seguiram a edio da Academia (Kants

    gesammelte Schriften).

    1755 Allgemeine Naturgeschichte und Theorie des Himmels / Histria geral da natureza e teoria do cu

    1757 Entwurf und Ankndigung eines Collegii der physischen Geographie / Projeto e anncio de um curso de geografia fsica

    1764 Beobachtungen ber das Gefhl des Schnen und Erhabenen / Observaes acerca do sentimento do belo e do sublime

    1765 Nachricht von der Einrichtung seiner Vorlesungen in dem Winterhalbenjahre von 1765-1766 / Anncio do programa das lies para o semestre de inverno de 1765-66

    1770 De mundi sensibilis atque intelligibilis forma et principiis / Forma e princpios do mundo sensvel e do mundo inteligvel

  • xviii

    1781 (A) / 1787 (B)1 Kritik der reinen Vernunft / Crtica da razo pura

    1783 Prolegomena zu einer jeden knftigen Metaphysik / Prolegmenos a toda metafsica futura

    1784 Idee zu einer allgemeinen Geschichte in weltbrgerlicher Absicht / Idia de uma histria universal de um ponto de vista cosmopolita

    1785 Grundlegung zur Metaphysik der Sitten / Fundamentao da metafsica dos costumes

    1786 Metaphysische Anfangsgrnde der Naturwissenschaft / Princpios metafsicos da cincia da natureza

    1788 Kritik der praktischen Vernunft / Crtica da razo prtica

    1790 Kritik der Urteilskraft / Crtica da faculdade do juzo

    1793 Die Religion innerhalb der Grenzen der blossen Vernunft / Religio nos limites da simples razo

    1795 Zum ewigen Frieden / A paz perptua

    1797a Rechtslehre / Doutrina do direito (primeira parte da Metafsica dos costumes)

    1797b Tugendlehre / Doutrina da virtude (segunda parte da Metafsica dos costumes)

    1798a Anthropologie in pragmatischer Hinsicht / Antropologia de um ponto de vista pragmtico

    1798b Der Streit der Fakultten / O conflito das faculdades

    1800 Logik. Ein Handbuch zu Vorlesung / Manual dos cursos de lgica geral

    1802 Physische Geographie / Geografia fsica

    1803 ber Pdagogik / Sobre a pedagogia

    1900ss Akademie-Ausgabe2 / Edio da Academia dos escritos reunidos de Kant

    2004 Vorlesung zur Moralphilosophie / Lio sobre filosofia moral

    1 Nas referncias, a letra A significa sempre a primeira edio, e a letra B, a segunda edio da obra citada.

    2 As referncias da edio da Academia mencionaro sempre o volume citado. Por exemplo, Kant, 1900ss: XXI.245. Isso significa que o trecho citado se encontra no volume 21, pgina 245.

  • INTRODUO

    A investigao, proposta neste trabalho, tem como ponto de partida um fragmento da

    Metafsica dos costumes (1797), no qual Kant afirma que a antropologia moral seria a

    contraparte [Gegenstck] de uma metafsica dos costumes, ou seja, o outro membro da diviso

    da filosofia prtica em geral (Kant, 1797a: AB 11). Tal afirmao me impulsionou a investigar

    como o filsofo concebe a conexo entre a moral e a antropologia, j que tambm insiste em

    demarcar uma rigorosa separao entre a moral e a antropologia. Ao empreender esta

    investigao, percebi que a mencionada conexo s poderia ser compreendida sob a perspectiva

    da filosofia prtica de Kant como um todo. Quer dizer, percebi que, para tornar clara a

    necessidade de a moral conectar-se com uma antropologia denominada moral, era necessrio

    entender como a filosofia prtica kantiana havia sido construda (arquitetada).

    A compreenso do conceito de filosofia prtica de Kant passa, a meu ver, pelo

    entendimento das diferentes fases dessa filosofia, ou melhor, pelo entendimento dos diversos

    problemas e pelas solues que o filsofo tinha de fornecer a esses problemas. A explicitao

    dessas fases importante, pois evita que diferentes discusses (questes) sejam confundidas ou,

    mesmo, mal compreendidas. Seguindo esse critrio, pude identificar trs fases da filosofia prtica

    1

  • 2

    kantiana. Na primeira, Kant parece tratar to-somente de questes preliminares (transcendentais).

    Mais precisamente, ele se ocupa da determinao e justificao (da validade objetiva) do

    fundamento do campo prtico. Tendo em vista que a aes humanas tem de se basear, segundo o

    filsofo, unicamente na liberdade da vontade, a questo fundamental do campo prtico consiste

    em resolver se a razo pura pode ser prtica. Dizer que a razo pura pode ser prtica significa

    dizer que a razo capaz de prescrever (independentemente de qualquer influncia sensvel) uma

    lei obrigatria para as aes. Como a capacidade de prescrever semelhante lei (denominada lei

    moral) equivale capacidade de a vontade (razo prtica) operar uma sntese a priori, o problema

    fundamental do campo prtico consiste em responder como possvel uma sntese prtica a

    priori (ou, como so possveis juzos sintticos a priori prticos). A soluo desse problema, no

    entanto, no garante que o ser humano (enquanto ser racional) seja efetivamente livre nas aes

    que executa, mas apenas que ele pode ser livre, pois a ele pertence essa faculdade.

    Todavia, como o arbtrio humano tambm pode ser influenciado sensivelmente, o uso da

    faculdade da liberdade pode ser prejudicado (impedido) por obstculos impostos por inclinaes

    sensveis. Por esse motivo, a segunda fase da filosofia prtica kantiana caracteriza-se pelo

    estabelecimento de princpios que visam regular e desobstruir o uso da liberdade da vontade. Para

    tanto, esses princpios determinam a execuo de certas aes como um dever. Em vista disso, a

    doutrina dos costumes tem por tarefa definir quais so os deveres relativos ao uso interno ou ao

    uso externo da liberdade, e como eles so possveis (isto , como possvel a coero pressuposta

    para o cumprimento dos mesmos). A determinao da validade objetiva desses princpios garante

    a possibilidade do uso da liberdade da vontade. Mas, ela ainda no assegura o cumprimento dos

    mencionados deveres, isto , no assegura o efetivo uso da liberdade ou a prpria moralidade do

    ser humano. Para isso, necessrio adquirir uma disposio de esforar-se (empenhar-se) para

  • 3

    que esses deveres sejam cumpridos (levando em considerao que o cumprimento dos deveres do

    uso externo pode se reduzir ao cumprimento dos deveres de uso interno da liberdade).

    A aquisio dessa disposio (denominada disposio virtuosa) diz respeito terceira fase

    da filosofia prtica. Nessa ltima fase, diferente das duas primeiras, a filosofia prtica kantiana

    no se ocupa da discusso de princpios metafsicos que estabelecem como o ser humano deve

    agir, mas se dedica observao de como o ser humano efetivamente age, a fim de reunir

    informaes (acerca da natureza do ser humano) que permitam discernir quais so as condies

    subjetivas que prejudicam ou que favorecem o cumprimento dos referidos princpios (da

    moralidade) ou o efetivo uso da liberdade. O conhecimento dessas condies possibilita o

    estabelecimento de dispositivos (mecanismos) para o combate das primeiras condies e para a

    promoo das segundas. Mais precisamente, porque tratam do ensino, do desenvolvimento e do

    fortalecimento dos princpios da moral pura, esses mecanismos (ou preceitos baseados na

    experincia) se dedicam ao melhoramento moral do ser humano, ou melhor, formao do

    carter moral do ser humano.

    Tendo em vista essa arquitetura da filosofia prtica, o presente trabalho buscar mostrar

    que as duas primeiras fases correspondem parte pura (metafsica), denominada moral pura ou

    metafsica dos costumes, e a terceira fase parte emprica (antropolgica) da filosofia prtica

    kantiana, chamada de antropologia moral. Com isso, pretende-se esclarecer que a conexo entre

    moral e antropologia imprescindvel, pois, embora a metafsica dos costumes no [possa] ser

    fundada na antropologia, [ela] certamente pode ser aplicada a ela (Kant, 1797a: AB 12). Ao

    reconhecer essa relao, Kant est, na verdade, admitindo que a filosofia prtica no se esgota na

  • 4

    fundamentao racional do princpio moral supremo (lei moral) e na determinao da sua

    validade objetiva, ou seja, ela exige ainda a aplicao desse princpio na natureza humana.

    Pretendo deixar claro que o desenvolvimento de uma cincia pragmtica da aplicao da

    moral um dos pontos centrais da filosofia prtica de Kant, j que a obedincia lei moral no

    ocorre de forma espontnea ou natural. Pelo contrrio, como reitera vrias vezes o filsofo, o ser

    humano com freqncia se encontra diante de um conflito interno, no qual a lei moral tem de

    enfrentar a concorrncia de impulsos (inclinaes) sensveis na determinao do arbtrio. Em

    vista disso, o meu objetivo, no presente trabalho, mostrar que a antropologia moral, alm de

    fornecer um mapeamento das condies subjetivas que compem a natureza humana, tem a

    funo de engendrar mecanismos (dispositivos) para conduzir o homem moralidade, quer dizer,

    torn-lo apto a buscar por si mesmo o prprio aperfeioamento moral. Em outras palavras,

    defenderei a tese de que a funo da antropologia moral na filosofia prtica kantiana aplicar a

    moral no homem. Neste sentido, sustentarei que a antropologia moral uma cincia pragmtica

    da aplicao da moral no homem e que, por isso, indispensvel para a moral (Cf. Kant, 1797:

    AB 12).

    Gostaria de destacar que o presente trabalho insere-se em uma discusso em curso acerca

    do papel da antropologia na filosofia prtica kantiana. Neste sentido, importante dizer que este

    trabalho se filia a uma interpretao desenvolvida por Zeljko Loparic em suas aulas (ministradas

    na UNICAMP) e tambm em vrios artigos, como Loparic 2003b, 2007 e 2008. Loparic sustenta

    a tese de que a antropologia moral de Kant estuda o domnio de aplicao (sensificao) da

    metafsica dos costumes (regras da moral e do direito), e que essa tarefa realizada mediante

    regras semnticas e pragmticas. Essa proposta no consensual. Reinhard Brandt, por exemplo,

  • 5

    entende que a antropologia pragmtica no corresponde antropologia moral (a qual, segundo

    ele, parece no ter sido desenvolvida por Kant), e sugere que a primeira pretende apenas fornecer

    ao homem as regras do jogo das relaes sociais. Quero frisar que as propostas que aqui

    apresento tem um grande dbito com a interpretao de Loparic. Meu objetivo, em vista disso,

    consiste em trazer algumas contribuies pessoais, em acordo com a interpretao de Loparic,

    para enriquecer o debate em torno do significado e da relevncia da antropologia em relao

    filosofia prtica de Kant.

    Com o propsito de demonstrar a tese supracitada, tratarei, nos captulos um e dois, da

    poro metafsica da filosofia prtica, ou seja, da filosofia moral ou da parte pura da filosofia

    prtica. No pretendo, todavia, discutir exaustivamente os tpicos que dizem respeito filosofia

    moral, mas apenas fornecer uma viso panormica dos problemas enfrentados e dos resultados

    alcanados por Kant nessa fase. Com isso, espero no somente deixar claro a relevncia dos

    resultados alcanados na parte pura da filosofia prtica, mas tambm mostrar a insuficincia dos

    mesmos no que se refere aplicao da moral pura, isto , formao moral do ser humano. A

    fim de tornar didtica a exposio dos problemas e dos resultados da filosofia moral, dividirei a

    mesma em duas partes. A primeira, denominada transcendental, discorrer sobre questes

    anteriores a qualquer doutrina moral (metafsica dos costumes), quer dizer, sobre a autntica

    fundao de um domnio prtico. A segunda, denominada doutrinal, tratar da doutrina moral

    (metafsica dos costumes) propriamente dita. Ao final, almejo ter deixado manifesta a

    importncia e o significado de uma antropologia, dita moral, para a aplicao da moral pura.

    No terceiro captulo, me ocuparei da determinao do conceito de antropologia kantiana.

    No meu interesse tratar imediatamente do conceito de uma antropologia moral. Antes sim,

  • 6

    partindo do pressuposto de que h um nico conceito que comum a todas as antropologias

    referidas por Kant quais sejam, a fisiolgica, a emprica, a prtica, a pragmtica e a moral , o

    meu objetivo esclarecer o significado do conceito kantiano mais geral de antropologia. Para

    tanto, comearei apresentando a gnese da disciplina kantiana de antropologia. Em seguida,

    discutirei os aspectos que compem o conceito kantiano de antropologia, ou seja, explicarei

    porque se trata de uma filosofia emprica prtica que , ao mesmo tempo, sistemtica e popular.

    Por ltimo, discutirei se a inteno de Kant de tratar de uma antropologia moral foi realizada e,

    em vista disso, apresentarei elementos que comprovam que o contedo da mesma foi, de fato,

    desenvolvido.

    O quarto captulo consistir, em linhas gerais, no aprofundamento do conceito de uma

    antropologia moral. Iniciarei pela apresentao (enumerao) das fontes para, ento, explicar os

    mtodos empregados por Kant na obteno do conhecimento acerca do homem. De posse desses

    dados, responderei pergunta o que o homem? (Kant, 1800: 25) e explicarei o seu

    significado. Em seguida, tratarei de alguns elementos que compem o conhecimento pragmtico

    da antropologia moral de Kant. Quer dizer, me ocuparei dos elementos que dizem respeito

    natureza moral do homem. Nesse contexto, o conhecimento da natureza humana no deve ser

    tomado na mesma acepo do conhecimento especulativo, cuja realidade objetiva exige a

    referncia a objetos, mas em sentido pragmtico, isto , com vistas aos resultados que podem ser

    obtidos por meio desse conhecimento.

    No quinto e ltimo captulo, tratarei do ponto central da presente tese, que determinar a

    funo da antropologia moral na filosofia prtica kantiana. Pretendo, neste captulo, apresentar a

    antropologia moral como uma cincia pragmtica da formao moral do ser humano. Neste

  • 7

    sentido, indicarei os mecanismos antropolgicos contidos na educao, religio, poltica e arte.

    Essa abordagem, todavia, no almeja apenas explicitar o carter antropolgico dessas disciplinas,

    mas principalmente mostrar que as mesmas auxiliam a formao moral do homem.

  • 9

    CAPTULO I

    A PARTE TRANSCENDENTAL DA FILOSOFIA PRTICA DE KANT

    No presente captulo, discorrerei sobre as dificuldades envolvidas na constituio do

    campo prtico da filosofia kantiana. Mostrarei que, nesta primeira fase da filosofia prtica (e da

    filosofia moral),3 Kant no almeja fornecer um conjunto de normas (regras) para determinar o

    agir ou a conduta humana em situaes particulares do cotidiano. Ao invs disso, pretendo deixar

    claro que ele, nessa fase, tratou to somente de questes anteriores a qualquer doutrina moral, ou

    seja, questes que dizem respeito prpria possibilidade de um campo, no qual normas e juzos

    de valor moral fazem sentido. Posto isto, espero tornar patente que a investigao e os resultados

    alcanados por Kant na Fundamentao da metafsica dos costumes (1785) e na Crtica da razo

    prtica (1788) so transcendentais, e a filosofia prtica resultante dessas obras uma filosofia

    3 Os conceitos de filosofia prtica e filosofia moral no so exatamente sinnimos. A moral apenas uma parte da filosofia prtica, qual tambm pertencem questes pragmticas e tcnicas, entre outras. Quero, no entanto, destacar que a discusso transcendental (que pretendo aqui expor) a mesma para ambas, uma vez que as questes morais s tm sentido ao pressupor-se a realidade de um campo prtico. Alm disso, interessante observar que, na Metafsica dos costumes, Kant parece aproximar (um do outro) os conceitos de filosofia prtica e filosofia moral. Pois, afirma que, em contraste com as leis da natureza, essas leis da liberdade so denominadas leis morais (Kant, 1797a: AB 6). Na seqncia, ele explica que tais leis morais, enquanto dirigidas meramente a aes externas e sua conformidade lei, so chamadas de leis jurdicas; porm, se adicionalmente requererem que elas prprias (as leis) sejam os fundamentos determinantes das aes, so leis ticas (idem).

  • 10

    prtica transcendental equivalente filosofia terica (especulativa) transcendental exposta na

    Crtica da razo pura (1781). A fim de desenvolver o objetivo proposto, ocupar-me-ei

    essencialmente do problema da fundamentao da filosofia prtica (e da moral) o qual envolve

    a questo da liberdade na primeira Crtica, a formulao do princpio prtico supremo na

    Fundamentao, e a demonstrao da realidade objetiva da liberdade prtica na segunda Crtica.

    I.I. O conceito kantiano de filosofia transcendental e a filosofia prtica

    Nesta seo, tratarei do conceito de filosofia transcendental, de acordo com o que foi

    exposto por Kant na primeira Crtica. Com isso, pretendo estabelecer o ponto de partida para

    afirmar que a determinao do princpio prtico supremo e a demonstrao da realidade do

    conceito de liberdade prtica constituem a parte transcendental da filosofia prtica (e da filosofia

    moral). Alm disso, espero no apenas tornar evidente a situao da filosofia prtica com relao

    filosofia transcendental, mas tambm indicar que tal situao deu impulso ao empreendimento

    kantiano de inclu-la no conjunto da filosofia transcendental.

    Para se compreender o conceito kantiano de filosofia transcendental, necessrio ter em

    mente o problema que essa filosofia se propunha a solucionar. Neste sentido, ela deve ser tomada

    como uma resposta ao embate travado entre o dogmatismo e o ceticismo em torno da validade

    dos conhecimentos metafsicos (isto , conhecimentos que se estendem para alm dos limites de

    toda experincia possvel). O dogmatismo considerado por Kant como a marca de toda a

    metafsica tradicional supunha poder erigir os seus conhecimentos, amparando-se

    exclusivamente em princpios racionais, sem justificar como e com que direito os alcanou

  • 11

    (Kant, 1781: B XXXV). Por outro lado, o ceticismo enquanto conseqncia inevitvel do

    dogmatismo julgava ter o direito de questionar a validade de todo o conhecimento (Cf. Kant,

    1781: A 423-424 / B 451). Este suposto direito se apoiava na insuficincia dos fundamentos do

    dogmatismo, uma vez que, contra afirmaes sem fundamento, [...] se podem opor outras

    igualmente verossmeis (Kant, 1781: B 22-23). Na viso do filsofo, ambas as doutrinas eram

    nocivas pretenso de validade dos conhecimentos metafsicos; e, portanto, deveriam ser

    afastadas da metafsica. Neste contexto, a filosofia transcendental no se ocupa da prpria

    metafsica, mas de estabelecer as condies sob as quais a metafsica pode ser cincia (Kant,

    1781: B 22).

    Tendo em vista que a razo a faculdade que nos fornece os princpios do conhecimento

    a priori e a razo pura a que contm os princpios para conhecer algo absolutamente a priori

    (Kant, 1781: B 24), Kant entendeu ser necessrio empreender uma crtica da prpria faculdade

    da razo em geral, com respeito a todos os conhecimentos a que pode aspirar, independentemente

    de toda a experincia (Kant, 1781: A XII). Esta crtica deveria, portanto, determinar tanto as

    fontes da razo como a sua extenso e os seus limites (Cf. Kant, 1781: A XII; B 25). Ele estava

    convicto de que, apenas por meio de tal crtica, estaria em condies de fornecer uma soluo

    para o problema da possibilidade ou impossibilidade de uma metafsica em geral.

    De acordo com o plano do filsofo, a crtica da razo pura4 deveria ser a necessria

    preparao para o estabelecimento de uma metafsica slida fundada rigorosamente como cincia

    4 Segundo Kant, uma das principais tarefas dessa crtica consiste em alterar o mtodo que a metafsica at [ento] seguiu (Kant, 1781: B XXII). Essa alterao de mtodo deveria operar uma revoluo completa na metafsica e, para tanto, deveria seguir o exemplo dos gemetras e dos fsicos (Kant, 1781: B XXII). Sendo assim, pode-se dizer que a crtica da razo pura um tratado acerca do mtodo da metafsica. Note-se, todavia, que esta alegao, de que necessrio alterar o mtodo da metafsica, no surge como uma novidade da Crtica da razo pura (1781). Ao menos

  • 12

    (Kant, 1781: B XXXVI), ou seja, uma propedutica do sistema da razo pura (Kant, 1781: B

    25). Nesta perspectiva, ela a idia perfeita da filosofia transcendental, mas no [...] ainda essa

    mesma cincia (Kant, 1781: A 14 / B 28). O que a diferencia da filosofia transcendental o fato

    de no conter uma anlise pormenorizada de todo o conhecimento humano a priori (Kant, 1781:

    A 13 / B 27), mas apenas uma anlise que avana at onde o exige a apreciao [Beurteilung]

    completa do conhecimento sinttico a priori (Kant, 1781: A 14 / B 28). Quer dizer, ela apresenta

    uma enumerao completa de todos os conceitos fundamentais, que constituem esse

    conhecimento puro. Contudo, [...] dispensa-se da anlise exaustiva desses mesmos conceitos

    (Kant, 1781: A 13 / B 27). Sendo assim, ela se limita a esboar arquitetonicamente o plano total

    (idem) da filosofia transcendental, que a idia de uma cincia, isto , de um sistema de todos os

    conceitos (conhecimentos) e princpios da razo pura (Cf. Kant, 1781: A 13 / B 27).

    A filosofia transcendental, segundo Kant, se ocupa menos dos objetos, que do [...] modo

    de os conhecer, na medida que este deve ser possvel a priori (Kant, 1781: B 25). Tambm no

    almeja o alargamento dos prprios conhecimentos, mas a sua justificao, ou seja, a

    determinao do valor ou no valor de todos os conhecimentos a priori (Kant, 1781: B 26).

    Neste sentido, ela estabelece os critrios (condies) a serem observados pelos conhecimentos

    metafsicos, a fim de valerem objetivamente. Esses critrios no so outra coisa que princpios da

    razo pura (em sentido amplo). Na primeira Crtica, tais princpios determinam as fontes, a

    extenso e os limites da razo no seu uso cognitivo (terico-especulativo). Isto significa que, para

    solucionar o problema da possibilidade ou impossibilidade da metafsica em geral, a filosofia

    desde 1764 isto , desde a Investigao sobre a evidncia dos princpios da teologia natural e da moral o filsofo j insistia nesse ponto (Cf. Kant, 1764: A 71-73; A 79-82). Tambm no Anncio do programa das lies para o semestre de inverno de 1765-66, incisivo, com relao ao mtodo da metafsica, ao afirmar que ele no sinttico, como aquele da matemtica, mas analtico (Kant, 1765: A 8).

  • 13

    transcendental tem, antes, de estabelecer os princpios do conhecimento em geral. Em outras

    palavras, fornecer uma resposta ao interesse especulativo da razo, expresso na questo: que

    posso saber? (Kant, 1781: A 805 / B 833).

    Segundo Kant, toda ampliao do conhecimento se d por meio de uma operao de

    sntese.5 Esta sntese pode resultar de uma relao estabelecida ou por meio da experincia ou de

    forma puramente racional. No primeiro caso, chama-se sntese emprica e, no segundo, sntese

    pura. Os juzos (ou proposies) que expressam estas operaes so denominados,

    respectivamente, juzos sintticos a posteriori e juzos sintticos a priori. O primeiro tipo de

    juzos encontrado nas cincias experimentais e, o segundo, na matemtica pura e na fsica pura.

    Em vista disso, a metafsica tambm tem de recorrer a esse ltimo tipo de juzos, caso pretenda

    tratar de conhecimentos puros (Cf. Kant, 1781: B 18). Sendo assim, para esclarecer como a

    metafsica pode ser cincia, o verdadeiro problema a ser resolvido pela filosofia transcendental

    consiste em responder pergunta: como so possveis juzos sintticos a priori? (Kant, 1781: B

    19).

    A primeira parte da soluo dessa questo se resume, basicamente, na exigncia de que os

    objetos, referidos nesses juzos, possam ser dados na experincia possvel (Cf. Kant, 1781: B 73).

    A segunda parte no muito diferente, pois requer que as condies formais da intuio a priori,

    a sntese da imaginao e a sua unidade necessria numa apercepo transcendental, [sejam

    referidas] a um conhecimento da experincia possvel em geral (A 154 / B 193). Em outras

    palavras, a validade objetiva dos conhecimentos racionais puros (entre os quais esto os

    5 A anlise, por outro lado, no amplia o conhecimento sobre algo. De acordo com o filsofo, ela se ocuparia meramente de explicar (descompactar) o que est pressuposto, por exemplo, em um conceito. Os juzos analticos, por esse motivo, no so ampliativos, mas apenas explicativos.

  • 14

    metafsicos) se baseia na sua referncia a objetos que possam ser dados na intuio sensvel. No

    se requer a experincia concreta desses objetos, mas apenas que possam ser dados na experincia

    (isto , que no sejam meras fices). No que diz respeito aos conhecimentos puros da

    matemtica e da fsica, uma referncia possvel, pois os objetos desses conhecimentos podem

    ser dados ou construdos na intuio pura. Os conhecimentos metafsicos, por outro lado, se

    referem a objetos supra-sensveis que, na verdade, no so nada alm de meras idias da razo

    (como, por exemplo: a existncia de Deus, a imortalidade da alma e a liberdade da vontade). Isso

    implica que todo o conhecimento sinttico da razo pura, no seu uso especulativo [...],

    completamente impossvel (Kant, 1781: A 796 / B 824).

    Tal resultado, segundo o filsofo, talvez leve a crer que a utilidade [da crtica da razo

    pura seja] apenas negativa, isto , a de no nos atrevermos a ultrapassar com a razo especulativa

    os limites da experincia (Kant, 1781: B XXIV). Mas, a mesma tambm tem uma utilidade

    positiva, uma vez que resguarda (protege) o uso prtico da razo pura. De acordo com Kant, a

    crtica da razo pura

    Se torna positiva, se nos compenetrarmos de que os princpios, em que a razo especulativa se

    apia para se arriscar para alm dos seus limites, tm por conseqncia inevitvel no uma

    extenso, mas [...] uma restrio do uso da nossa razo, na medida em que, na realidade, esses

    princpios ameaam estender a tudo os limites da sensibilidade a que propriamente pertencem, e

    reduzir assim a nada o uso puro (prtico) da razo (Kant, 1781: B XXIV-XXV).

    Assim, a crtica da razo pura, por um lado, no outra coisa do que uma disciplina da

    razo (Cf. Kant, 1781: A 710-712 / B 738-740; A 795 / B 823) que coage, por meio de princpios,

    a razo especulativa a permanecer dentro dos limites da experincia possvel. Portanto,

  • 15

    certamente no serve para alargar a nossa razo, mas to somente para clarific-la, mantendo-a

    isenta de erros (Kant, 1781: B 25). Por outro lado, no que se refere ao uso prtico da razo pura,

    a crtica no visa disciplin-lo, mas sim garantir a sua independncia em relao sensibilidade.

    Logo, embora Kant deixe claro que, a partir do ponto de vista da especulao, uma metafsica

    seja impossvel, o uso prtico da razo pura parece proporcionar um novo espao para a

    metafsica. Tais resultados sugerem, por sua vez, que a filosofia transcendental, no contexto da

    primeira Crtica, est a preparar o terreno para a fundao de uma metafsica do uso prtico da

    razo pura. Neste sentido, a filosofia transcendental, enquanto sistema de todos os princpios da

    razo pura, no se ocuparia apenas de princpios que disciplinam (limitam) o uso especulativo da

    razo, mas tambm cuidaria do ou dos princpios que asseguram (comprovam) o uso prtico da

    razo.

    Curiosamente, contrariando essa expectativa, Kant afirma que a filosofia transcendental

    outra coisa no que uma filosofia da razo pura simplesmente especulativa (Kant, 1781: A 15 /

    B 29) e, alm disso, que os princpios supremos da moralidade e os seus conceitos fundamentais,

    embora sendo conceitos a priori, no pertencem filosofia transcendental (idem). A explicao

    dada pelo filsofo para a excluso da filosofia prtica do conjunto da filosofia transcendental, na

    primeira Crtica, simples. Segundo ele, a filosofia transcendental trata apenas do conhecimento

    a priori puro e no admite conceito algum que contenha algo de emprico (Kant, 1781: A 14 /

    B 28). Neste sentido, visto que tudo o que prtico, na medida em que contm motivos

    [Triebfedern], refere-se a sentimentos que pertencem a fontes de conhecimentos empricas (Kant,

    1781: A 15 / B 29), a filosofia prtica no pode fazer parte da filosofia transcendental. Zeljko

    Loparic interpreta essa excluso como um sintoma da condio ainda pr-crtica da filosofia

    prtica (ou da filosofia moral) na primeira Crtica. Tal condio se deve, segundo ele, ao fato de

  • 16

    a pergunta crtica decisiva como so possveis juzos sintticos a priori prticos? no [ser]

    respondida, nem ao menos claramente formulada (Loparic, 2003b: 2). Alm disso, a filosofia

    moral (metafsica dos costumes), continua ele, permanece incompleta, no sistematizada, [e]

    sem um princpio a priori de sistematizao (idem).

    A interpretao de Loparic pertinente, pois chama ateno para a marca caracterstica da

    filosofia transcendental na primeira Crtica, qual seja, o seu esforo em estabelecer os princpios

    que determinam a capacidade cognitiva do ser humano. Como a capacidade cognitiva dividida

    em dois trocos, a filosofia transcendental se ocupou de fixar os princpios da sensibilidade

    (receptividade para representaes intuitivas ou fenmenos) e os princpios do entendimento

    (espontaneidade para representaes discursivas ou conceitos). Os primeiros (o tempo e o espao)

    nada mais so do que princpios a priori da receptividade para representaes de objetos, isto ,

    condies subjetivas da intuio (Cf. Kant, 1781: A 33 B 49). Os segundos (as categorias), so

    formas fundamentais da sntese de dados para a unidade da experincia, ou ainda, princpios a

    priori da possibilidade da experincia (Kant, 1781: B 294). Os primeiros princpios determinam

    as fontes (da sensibilidade pura) e, os segundos, a extenso e os limites do entendimento puro.

    Em suma, os princpios estabelecidos a priori pela filosofia transcendental, na primeira Crtica,

    servem como resposta ao interesse especulativo da razo pura.

    No que diz respeito ao interesse prtico da razo pura, que busca uma resposta para a

    questo que devo fazer? (Kant, 1781: A 805 / B 833), Kant no foi capaz de fornecer nenhum

    princpio a priori satisfatrio na primeira Crtica. O mais prximo que chegou desse ponto foi na

    formulao do princpio Faz o que pode tornar-te digno de ser feliz (Kant, 1781: A 808-809 /

    B 836-837). Mas, como essa frmula no fornece uma regra clara para o agir, no serve como

  • 17

    princpio de sistematizao da filosofia prtica. Sendo assim, talvez o principal motivo para a

    excluso da metafsica do uso prtico da razo pura (metafsica dos costumes) do quadro da

    filosofia transcendental seja justamente a ausncia de provas de que ela, de fato, contm os

    princpios que determinam a priori e tornam necessrios o fazer e o deixar de fazer (Kant, 1781:

    B 869). 6 Neste sentido, compartilho da viso de Loparic, quando ele sugere que foi o

    reconhecimento dessa situao da filosofia prtica que motivou o esforo de Kant para [...] achar

    o ou os princpios fundamentais da metafsica dos costumes [e] submeter esses princpios a

    exame crtico, perguntando pelas condies em que deles podem ser ditos terem uma realidade

    objetiva prtica (Loparic, 2003b: 2).

    Penso que esse esforo do filsofo alemo pertence a um ambicioso projeto de incluir a

    filosofia prtica no quadro da filosofia transcendental. Considero ainda que essa ampliao do

    conceito de filosofia transcendental pode perfeitamente ser entendida como a prpria fundao do

    campo prtico no qual faz sentido, por exemplo, julgar aes como morais ou imorais, e como

    legais ou ilegais. Posto isto, pretendo agora mostrar em que consistem as dificuldades enfrentadas

    por Kant a fim de instaurar o campo prtico.

    6 Na verdade, possvel apontar aqui dois elementos que impedem a filosofia prtica de fazer parte da filosofia transcendental. O primeiro, como mencionei, a ausncia de um ou mais princpios prticos a priori fundamentais (que estabeleam a execuo de uma ao como dever). O segundo elemento diz respeito ao empenho da filosofia transcendental em justificar todos os conhecimentos a priori (Cf. Kant, 1781: B 26), isto , em estabelecer os critrios a serem observados pelos mesmos, a fim de valerem objetivamente. Na primeira Crtica, a validade objetiva dos conhecimentos a priori (juzos sintticos a priori especulativos) est condicionada experincia possvel, ou seja, para que tal conhecimento seja dito objetivamente vlido, necessrio que o seu objeto possa ser dado ou construdo na intuio sensvel. No que se refere filosofia prtica, Kant chega a afirmar que a moral tambm pode apresentar, pelo menos em experincias possveis, todos os seus princpios in concreto, juntamente com as suas conseqncias prticas, e assim evitar o mal-entendido da abstrao (Kant, 1781: A 425 / B 452-453). Mas, segundo Loparic, ficou em aberto, na primeira Crtica, a questo de saber como definir a experincia possvel que possa dar in concreto as idias morais (Loparic, 1999: 19).

  • 18

    I.II. O problema da fundamentao da filosofia prtica

    O objetivo desta seo consiste em apresentar a questo central que Kant tem de tratar, a

    fim de incluir a filosofia prtica no quadro da filosofia transcendental, a saber, a determinao do

    fundamento do campo prtico. Como foi dito na seo anterior, a filosofia transcendental diz

    respeito apenas a conhecimentos a priori puros e no admite conceito algum que contenha algo

    de emprico (Kant, 1781: A 14 / B 28). Na mesma seo tambm ficou claro que a referncia do

    campo prtico a sentimentos que pertencem a fontes de conhecimentos empricos (Kant, 1781:

    A 15 / B 29) uma das causas principais da sua excluso do conjunto da filosofia transcendental.

    Sendo assim, parece que o problema central, a ser enfrentado pelo filsofo, consiste em mostrar

    que os princpios fundamentais de uma metafsica dos costumes (ou seja, da moral pura) podem

    ser obtidos de forma absolutamente a priori, sem pressupor nada de emprico. O cumprimento

    desta tarefa envolve o esforo de provar a existncia de uma faculdade de produzir

    espontaneamente (sem influncia emprica) regras prticas. Mais precisamente, provar a

    realidade objetiva da faculdade da liberdade, enquanto fundamento do campo prtico. Mostrarei

    que, na primeira Crtica, Kant no pode assegurar mais do que a possibilidade lgica do conceito

    da liberdade, postergando a resoluo do problema central do campo prtico para a segunda

    Crtica.

    Tendo em vista o mencionado objetivo, na primeira subseo me concentrarei em expor

    alguns pontos do tratamento dispensado por Kant ao problema da possibilidade da liberdade na

    primeira Crtica. Com isso, tenho em mente tornar claro o carter problemtico da idia

    transcendental da liberdade e a soluo para essa questo. Na segunda subseo, ocupar-me-ei da

    deduo da frmula do princpio prtico supremo, empreendida na Fundamentao da Metafsica

  • 19

    dos Costumes. Neste sentido, pretendo explicitar o raciocnio (caminho) envolvido nessa deduo

    e a relao de implicao existente entre esse princpio e a liberdade (prtica). Por ltimo,

    esforar-me-ei para mostrar que a demonstrao da realidade objetiva da liberdade prtica,

    executada pelo filsofo na segunda Crtica, tem por conseqncia a fundao de um novo campo

    de significao dos conceitos.

    I.II.I. O problema da possibilidade da liberdade transcendental na primeira Crtica

    A primeira Crtica deixa claro que o campo prtico se fundamenta unicamente sobre a

    liberdade (da vontade), uma vez que prtico tudo aquilo que possvel pela liberdade (Kant,

    1781: A 800 / B 828). Dito de outra forma, a liberdade a condio transcendental do campo

    prtico e, conseqentemente, de toda moral. Contudo, nessa obra, a liberdade exposta

    meramente como uma idia problemtica da razo pura. Esta situao pe em dvida todo o

    campo prtico, pois a sua subsistncia depende da admissibilidade da liberdade. Sem admitir-se a

    liberdade, normas ou regras morais no tm sentido algum e, por conseqncia, ningum pode ser

    responsabilizado por suas aes. Sendo assim, o problema fundamental, relativo ao campo

    prtico, a ser discutido na primeira Crtica, consiste em explicar como possvel a liberdade, isto

    , explicar a forma pela qual a razo pura pode ser entendida como uma faculdade de iniciar, por

    si prpria, uma srie de acontecimentos (Kant, 1781: A 554 / B 582).

    Na primeira Crtica, Kant trata da liberdade, inicialmente, no contexto da Dialtica

    Transcendental, ou seja, na parte da Lgica Transcendental que se ocupa de conceitos resultantes

  • 20

    de snteses operadas no pelo entendimento, mas pela razo pura. Isto significa que a abordagem

    empreendida pelo filsofo (considerada a partir de um ponto de vista estritamente cognitivo ou

    terico-especulativo) toma a liberdade apenas como uma idia da razo, qual no corresponde

    objeto algum na experincia. O exame dessa idia, na Dialtica Transcendental, visa basicamente

    evidenciar o conflito (antinomia) que a mesma idia gera no mbito da razo pura, na medida em

    que aparentemente incompatvel com as leis da natureza.

    Kant explicita essa incompatibilidade ao apresentar, no contexto da Terceira Antinomia,

    uma tese a favor e uma anttese contra a aceitao de uma causalidade pela liberdade. A tese

    sustenta que a causalidade segundo as leis da natureza no a nica de onde podem ser

    derivados os fenmenos do mundo no seu conjunto. H ainda uma causalidade pela liberdade que

    necessrio admitir para os explicar (Kant, 1781: A 444 / B 472). A anttese, por outro lado,

    revoga a tese ao afirmar que no h liberdade, mas tudo no mundo acontece unicamente em

    virtude das leis da natureza (Kant, 1781: A 445 / B 473). Em seguida, recorrendo a um

    raciocnio de reductio ad absurdum, ele apresenta premissas que desqualificam ambas as

    posies (tese e anttese). Quer dizer, para sustentar que necessrio admitir uma causalidade

    pela liberdade, ele argumenta que a proposio segundo a qual toda a causalidade s possvel

    segundo as leis da natureza, contradiz-se a si mesma na sua universalidade ilimitada (Kant, 1781:

    A 446 / B 474). Da mesma forma, a fim de ratificar que s existe a causalidade segundo as leis da

    natureza, ele afirma que a liberdade quebra o fio condutor das regras, nico pelo qual possvel

    uma experincia totalmente encadeada (Kant, 1781: A 448 / B 476). Desse recurso segue-se que

    tanto a tese quanto a anttese podem ser consideradas simultaneamente possveis (verdadeiras).

  • 21

    Tendo em vista que esse resultado paradoxal e insustentvel, devido s duas proposies

    (tese e anttese) constiturem opostos contraditrios, faz-se necessrio decidir pela verdade de

    apenas uma delas. Todavia, segundo Kant, uma deciso impossvel, pois se trata aqui de um

    conflito de conhecimentos dogmticos em aparncia (thesis cum antithesi), sem que se atribua a

    um, mais do que ao outro, um direito especial aprovao (Kant, 1781: A 420 / B 448). Neste

    sentido, diante da impossibilidade em solucionar a contenda ou mesmo em permanecer

    indiferente a ela, resta apenas, de acordo com ele, refletir sobre a origem deste conflito da razo

    consigo mesma, para apurar se no ser culpa de um simples mal-entendido (Kant, 1781: A 464

    / B 492).7

    Cabe indagar, no entanto, como a filosofia transcendental se posiciona com relao a esse

    conflito, j que a sua natureza tal que nenhuma questo respeitante a um objeto dado razo

    pura, [pode] ser insolvel para essa mesma razo humana (Kant, 1781: A 477 / B 505). Quanto a

    isto, Kant faz uma ressalva. De acordo com ele, para as questes cosmolgicas (isto , questes

    que dizem respeito a idias cosmolgicas como, por exemplo, a liberdade) possvel

    legitimamente exigir apenas uma resposta satisfatria respeitante natureza do objeto (Kant,

    1781: A 478 / B 506). Ora, a filosofia transcendental s pode fornecer solues certas para

    questes que dizem respeito a objetos de uma experincia possvel, ou seja, objetos que podem

    ser conhecidos (ou pensados a partir de predicados determinados). Como o objeto correspondente

    7 Mas, se, porventura, fssemos coagidos a tomar partido na mencionada contenda, deveramos, segundo Kant, optar em favor da tese. A justificativa para esta opo estaria na natureza arquitetnica da razo humana, que considera todos os conhecimentos como pertencentes a um sistema possvel, e, por conseguinte, s admite princpios que, pelo menos, no impeam qualquer conhecimento dado de coexistir com outros num sistema (Kant, 1781: A 474 / B 502). Sendo assim, o interesse arquitetnico da razo estaria inclinado em favor da tese, em virtude de as proposies da anttese serem de tal natureza que impossibilitam totalmente a construo completa de um edifcio de conhecimentos (idem) e, portanto, no asseguram a unidade (racional pura a priori) dos conhecimentos exigida pela razo. Alm disso, obviamente, a preferncia pela tese tem um motivo adicional igualmente caro, que a satisfao do interesse prtico da razo.

  • 22

    idia de liberdade transcendental (no pode ser dado empiricamente), no podemos conhec-

    lo. Logo, questes relativas natureza da liberdade tambm so inteiramente nulas e vazias (Cf.

    Kant, 1781: A 480 / B 508). Na viso do filsofo, no se trata, com essa ressalva, de eximir a

    filosofia transcendental de fornecer uma resposta questo, pois a ausncia de resposta

    tambm uma resposta (Kant, 1781: A 479 / B 507). Mais precisamente, trata-se de afirmar que

    uma soluo dogmtica no [apenas] incerta, mas impossvel (Kant, 1781: A 484 / B 512).

    Como o recurso ao silncio no exatamente o que se chamaria de uma soluo satisfatria

    para Kant, ele prope uma soluo crtica, que no apenas seria possvel, mas tambm totalmente

    certa. Tal soluo, devido caracterstica do objeto (que desconhecido), obviamente, no

    considera [...] o problema objetivamente, mas de acordo com o fundamento do conhecimento em

    que se alicera (idem). Isto significa que a resposta tem de poder ser buscada na prpria idia (e

    nunca fora dela), uma vez que esta uma simples criao da razo (Kant, 1781: A 479 / B 507)

    e nada correspondente a ela pode ser dado na experincia.

    A mencionada soluo crtica, ao considerar o fundamento do conhecimento sobre o qual

    se baseia o conflito entre liberdade e natureza, serve-se de um mtodo ctico. O emprego desse

    mtodo visa tornar evidente que o referido conflito (antinomia) se baseia sobre um pressuposto

    infundado quer dizer, sobre uma idia que tem de ser totalmente vazia e destituda de sentido

    (Kant, 1781: A 486 / B 514) e que, portanto, ele (o conflito) inevitvel. O filsofo almeja, por

    meio do mtodo ctico, tornar claro que, do uso dogmtico da idia de liberdade, resulta uma

    iluso. A iluso consiste em podermos tomar uma deciso objetiva acerca das questes que

    envolvem essa idia no campo dos fenmenos do mundo. Assim, lanando mo da doutrina do

  • 23

    idealismo transcendental,8 Kant acredita poder dissipar o conflito, rejeitando ambas as partes

    (tese e anttese), ao mostrar que ele dialtico e que resulta de uma aparncia [Schein]

    proveniente de se ter aplicado a idia da totalidade absoluta, vlida unicamente como condio da

    coisa em si, a fenmenos (Kant, 1781: A 506 / B 534).

    A supracitada soluo crtica da antinomia pe em xeque a idia da liberdade

    transcendental e, neste sentido, a inteno de abandon-la definitivamente pode figurar razovel.

    Mas, Kant no parece inclinado a tomar esta direo. O principal motivo, obviamente, o

    prejuzo que isso acarretaria ao interesse prtico da razo. Como se sabe, o pressuposto da

    liberdade vontade a pedra angular do campo prtico e, sem ele, as idias morais e os seus

    princpios perdem todo o valor (Kant, 1781: A 468 / B 496). Na verdade, a meu ver, a inteno

    do filsofo parece ser antes a de encontrar um lugar e uma funo definitiva para a idia

    transcendental da liberdade. Essa tese parece se sustentar, na medida em que Kant enxerga nela

    uma funo regulativa. Mais precisamente, o filsofo entende as idias cosmolgicas (dentre elas,

    a liberdade) no como princpios constitutivos da razo que serviriam para ampliar o conceito

    do mundo sensvel para alm de toda a experincia possvel (Kant, 1781: A 509 / B 537) , mas

    sim como princpios reguladores da razo que permitem prosseguir e alargar a experincia o

    mais possvel e segundo [os quais] nenhum limite emprico dever considerar-se como valor de

    limite absoluto (idem). Kant acreditava que, se o empreendimento de tornar evidente o valor do

    princpio da razo como regra da progresso e da grandeza de uma experincia possvel (Kant,

    1781: A 516 / B 544) fosse bem-sucedido, todo o conflito da razo consigo mesma cessaria

    8 Kant define o idealismo transcendental da seguinte forma: Compreendo por idealismo transcendental de todos os fenmenos a doutrina que os considera, globalmente, simples representaes e no coisas em si e segundo a qual, o tempo e o espao so apenas formas sensveis da nossa intuio, mas no determinaes dadas por si, ou condies dos objetos considerados como coisas em si (Kant, 1781: A 369).

  • 24

    definitivamente. Isto porque, segundo ele, seria eliminada, mediante esta soluo crtica, no s

    a aparncia que punha a razo em discrdia consigo mesma, mas em seu lugar seria estabelecido

    o sentido em que concorda consigo mesma e cuja falsa interpretao era a nica causa de conflito;

    deste modo, um princpio, de dialtico que era, converter-se-ia em doutrinal (idem).

    Podemos interpretar tais consideraes como um indcio de que Kant pretendia

    compatibilizar a causalidade livre com a causalidade natural, a fim de salvar a liberdade? Vrios

    intrpretes entenderam que exatamente isso o que faz o filsofo. H uma proposta, ilustrada

    principalmente por Kuno Fischer e Norman Kemp Smith,9 a qual podemos denominar tradicional,

    que interpreta que Kant, de fato, compatibilizou ambas as causalidades, ao lanar mo da

    distino transcendental entre fenmeno e coisa em si (nmeno). Segundo essa distino, seria

    possvel considerar tanto a causalidade quanto os efeitos nos fenmenos ou de um ponto de vista

    puramente fenomnico (isto , de acordo com o princpio de causalidade natural e as condies

    temporais, e onde a causa igualmente um fenmeno), ou de um ponto de vista numnico (que

    no leva em considerao as condies de determinao causal-temporal, e a causa pode ser

    tomada como coisa em si). Vista dessa forma, a causalidade de todo fenmeno apresentaria um

    carter duplo (emprico e inteligvel, respectivamente). 10 Isto significa que, para explicar a

    causalidade dos fenmenos, no necessrio recorrer a nada alm de outros fenmenos no tempo.

    Simultaneamente, a causalidade inteligvel e atemporal da coisa em si no contradiz ou entra em

    conflito com a causalidade natural dos fenmenos, pois as duas espcies de causalidade

    simplesmente no podem, por assim dizer, se encontrar no mesmo plano (Fischer, 1866: 245).

    9 Cf. Fischer, 1866: 239-249; e tambm Kemp Smith, 1918: 512-518.

    10 O que, segundo Kant, no contradiz nenhum dos conceitos que temos de fazer de uma experincia possvel (Kant, 1781: A 538 / B 566).

  • 25

    Quer dizer, elas no so foras concorrentes. Empregando esse raciocnio s aes humanas

    enquanto uma subclasse dos fenmenos , seria possvel, sem causar dano ao encadeamento

    causal natural dos fenmenos, conferir uma causalidade livre a certos agentes no interior da

    natureza.

    Lewis White Beck, embora tambm acredite que Kant desejava compatibilizar liberdade e

    natureza, entende que a interpretao tradicional problemtica. A proposta tradicional, segundo

    ele, ao recorrer distino transcendental entre fenmeno e coisa em si (nmeno), teria gerado

    dois problemas diretamente opostos. Kant teria, ao mesmo tempo, provado demasiado e muito

    pouco. Por um lado, teria provado demasiado, pois ao considerar que todo fenmeno tem como

    fundamento transcendental uma causa inteligvel se algo, na natureza, livre, ento tudo

    livre (Beck, 1987, 42). Quer dizer, todo evento poderia ser dito livre, at mesmo, por exemplo,

    uma ma caindo de uma rvore. Por outro lado, Kant teria provado muito pouco, pois ainda

    que atribua a liberdade transcendental a uma causalidade inteligvel ele tambm sustenta que

    cada uma das aes voluntrias est determinada no carter emprico do homem ainda antes de

    acontecer (Kant, 1781: A 553 / B 581). Logo, de nada adiantaria Kant assegurar a possibilidade

    da liberdade, valendo-se de uma causalidade inteligvel (numnica), se continuasse insistindo que

    as aes livres, ou melhor, todas as aes de seres racionais, na medida em que so fenmenos

    (encontrando-se em qualquer experincia), esto submetidas necessidade da natureza (Kant,

    1783: 154-155). Em outras palavras, vista dessa forma, a causalidade livre no faria nenhuma

    diferena no curso dos fenmenos da natureza.

    Beck sugere uma alternativa proposta tradicional. A sua proposta pretende,

    essencialmente, apresentar uma sada para o suposto dilema contido no compatibilismo entre

  • 26

    natureza e liberdade, que se baseia na distino transcendental entre fenmeno e coisa em si

    (nmeno). O dilema tem a seguinte forma: se a posse da liberdade numnica faz uma diferena

    na uniformidade da natureza, ento no h uniformidade; se no faz diferena, ento cham-la de

    liberdade uma v pretenso (Beck, 1960: 192). Segundo Beck, a nica soluo para tal

    dilema seria interpretar o conflito entre natureza e liberdade como um conflito metodolgico.

    Mais precisamente, ele acredita poder traar um paralelo entre o mencionado conflito (exposto na

    3 Antinomia da primeira Crtica) e o conflito entre as explicaes teleolgica e mecnica

    (exposto na Crtica da faculdade de julgar) (Cf. Beck, 1987: 44-45). Logo, no haveria mais um

    conflito entre princpios constitutivos, mas sim entre princpios ou mximas reguladoras. Tudo se

    resumiria, ento, questo de determinar os contextos de aplicao de cada uma dessas mximas.

    Julio Esteves entende que a soluo oferecida por Beck tambm insatisfatria, uma vez

    que no se pode assimilar o princpio da Segunda Analogia da Crtica da razo pura, um

    princpio constitutivo e que diz respeito ao juzo determinante, a uma mxima do juzo

    reflexionante da Crtica da faculdade de julgar, a um princpio que simplesmente regula nossa

    reflexo sobre os objetos (Esteves, 2000: 59). Alm do mais, tal assimilao no est, como o

    prprio Beck admite, textualmente amparada na primeira Crtica. Esteves reconhece o mrito da

    proposta de Beck, na medida em que busca assegurar a pretenso causalidade livre e

    excludente da necessidade natural, que diz respeito diretamente ao clssico problema da liberdade

    da vontade s prticas ordinrias de imputao de aes (Esteves, 2000: 59). Contudo, ele

    entende que as objees apresentadas por Beck ao compatibilismo baseado na distino

    transcendental entre fenmeno e coisa em si, embora pertinentes, j teriam sido antecipadas e

  • 27

    solucionadas por Kant.11 Esteves tambm questiona o pressuposto (empregado na interpretao

    tradicional do compatibilismo) de que natureza e liberdade podem ser compatibilizadas, j que

    no competem entre si (Esteves, 2000: 67). Segundo ele, esse pressuposto no correto por duas

    razes. Por um lado, porque (como atestam passagens da primeira Crtica) Kant admitiu a

    possibilidade de a razo ter causalidade com relao aos fenmenos. Por outro lado, porque

    determinados efeitos no mundo fenomnico so atribudos ao agir segundo imperativos, fazendo

    com que seja possvel, por assim dizer, discernir um canal de conexo entre o inteligvel e o

    sensvel (idem). Logo, inevitvel admitir que as duas espcies de causalidade esto em

    franca competio e em oposio contraditria no mundo fenomenal (Esteves, 2000: 67-68).

    A posio de Esteves quanto ao compatibilismo entre natureza e liberdade inequvoca.

    Para ele, Kant no pode querer compatibilizar natureza e liberdade (Esteves, 2000: 68), j que

    11 No que diz respeito primeira objeo, denunciadora de um suposto panlibertarianismo, Esteves entende que Kant estava consciente da urgncia em indicar critrios que permitam delimitar uma nica subclasse de fenmenos como objetos apropriados de imputao e com relao aos quais unicamente faz sentido e relevante apelar para o fundamento inteligvel. (Esteves, 2000: 60). De acordo com Esteves, a subclasse de manifestaes fenomenais que possibilita tornar o apelo ao fundamento inteligvel algo operacionalizvel e no indiscriminado aquela delimitada pelas (pretensas) aes dos agentes racionais feitas com base em imperativos (Esteves, 2000: 61).

    No que se refere segunda objeo de Beck, que acusa uma suposta ineficincia da noo de liberdade transcendental, Esteves acredita que o problema em questo resulta de uma interpretao equivocada da distino transcendental (entre fenmeno e coisa em si); mais precisamente, da aplicao imediata da distino transcendental [...] ao agir racional (Esteves, 2000: 64). Segundo Esteves, essa aplicao ilegtima, pois alm de (a mencionada distino) originalmente dizer respeito apenas reflexo sobre os objetos do conhecimento sensvel h indcios de que Kant tenha evitado proceder dessa forma, por estar ciente das dificuldades envolvidas (dentre elas, a considerao do agir racional, ora como livre, ora como submetido necessidade natural). Com efeito, ainda que (em tese) a distino transcendental pudesse assegurar a possibilidade da liberdade, evitando o conflito com a necessidade natural, Kant sabia que na aplicao, quando se as une em uma e mesma ao e, portanto, quando se quer explicar essa unio, surgem grandes dificuldades, que parecem tornar invivel uma tal unio (Kant, 1788: 170-171). Ora, tendo em vista que a referida aplicao exige que as aes humanas tambm sejam consideradas como meros fenmenos, i.e. como causalmente determinadas (Esteves, 2000: 66), parece improvvel (ou, ao menos, difcil de compreender) que a avaliao moral do agente possa ser capaz de fazer qualquer [...] diferena, no curso dos acontecimentos (idem). Neste sentido, o resultado absolutamente contrrio expectativa, a saber, o resultado a impossibilidade da liberdade. Isto porque, a liberdade resultante da aplicao da distino transcendental ao campo das aes humanas, por no ser absoluta, no seria melhor do que a liberdade de um assador giratrio [die Freiheit eines Bratenwenders] (Kant, 1788: 174). Logo, para Esteves, isto seria suficiente para entender que Kant recusou o compatibilismo (ao menos aquele segundo a proposta tradicional).

  • 28

    apenas enfraquecendo as pretenses de validade de um dos dois lados isto seria possvel. Algo

    que o filsofo, segundo Esteves, no parece estar disposto a fazer. Pois, na ocasio na qual se

    refere s aes racionais a partir de um ponto de vista prtico, admite que a causalidade a partir

    de princpios da razo e da liberdade pode fazer uma diferena (idem). E, por outro lado, quando

    assume o ponto de vista terico, se mantm firme na validade do princpio de causalidade

    natural (idem). Ao proceder dessa forma, o filsofo estaria, de acordo com Esteves,

    reconhecendo a insolubilidade do conflito entre natureza e liberdade. A forma de superar esse

    impasse consistiria em interpret-lo12 como um conflito entre os pontos de vista objetivo e

    subjetivo sobre nossas aes (Esteves, 2000: 68). Neste sentido apesar de, os dois pontos de vista,

    serem completamente incompatveis, Kant estaria interessado to-somente em mostrar que no

    auto-contraditrio reconhecer que princpios que esto em oposio contraditria so igualmente

    justificados (Esteves, 2000: 69).

    A anlise que Esteves faz do compatibilismo, tanto no seu modo tradicional quanto na via

    defendida por Beck, parece-me plausvel. Entendo que Kant, de fato, no pretende compatibilizar

    natureza e liberdade (e suas respectivas causalidades) no domnio sensvel, ou seja, no campo dos

    fenmenos. Mas, por outro lado, penso que inegvel (e Esteves tambm parece estar de acordo

    com isso) que Kant almeja tornar patente que liberdade e natureza podem coexistir pacificamente,

    sem entrar em conflito uma com a outra. Esta inteno est nitidamente manifesta no seguinte

    trecho: o problema que tnhamos que resolver [era apenas] saber se a liberdade entrava em

    conflito com a necessidade natural numa e mesma ao; e a isto demos suficiente resposta ao

    mostrarmos que [...] a lei da ltima no afeta a primeira e, por conseguinte, ambas se verificam

    12 Vale destacar, inspirando-se em Thomas Nagel. Cf. Nagel, 1979: 196ss.

  • 29

    independentemente uma da outra e sem que uma outra se perturbem (Kant, 1781: A 557 / B

    585). Sendo assim, resta saber como Kant compreende esse acordo entre natureza e liberdade.

    Para tanto, apresentarei resumidamente o percurso trilhado pelo filsofo na Dialtica

    Transcendental, com vistas a tornar clara a forma pela qual a causalidade livre pode harmonizar-

    se com a necessidade universal da natureza.

    Na seo da Dialtica intitulada Soluo das idias cosmolgicas que dizem respeito

    totalidade da derivao dos acontecimentos do mundo a partir das suas causas (Kant, 1781: A

    532 / B 560), Kant retoma, de incio, alguns pressupostos que so responsveis pelo conflito

    (antinomia) entre a natureza e a idia cosmolgica de liberdade. Logo em seguida, indica que a

    observao (cumprimento) da lei geral do entendimento, a qual exige que tudo o que acontece

    [deve] ter uma causa (Kant, 1781: A 533 / B 561), tem como resultado a completa rejeio da

    idia transcendental da liberdade. Portanto, o panorama delineado na referida seo no muito

    diferente daquele exposto na Terceira Antinomia, j que se probe afirmar a liberdade. Mas, na

    seo em questo, h um importante acrscimo a ser destacado, qual seja, a introduo do

    conceito prtico da liberdade. O objetivo da introduo deste novo conceito parece ser salientar

    que as elencadas dificuldades relativas ao problema da possibilidade da liberdade se referem

    unicamente idia transcendental desta mesma liberdade. O mencionado conceito prtico estaria,

    neste sentido, totalmente isento das dificuldades enfrentadas pela idia transcendental. O que, por

    sua vez, sugere que tal idia transcendental deva ser (afinal) abandonada em favor desse conceito

    prtico. Na verdade, como pretendo tornar claro mais adiante (na prxima seo do presente

    trabalho), mais ou menos isto o que Kant planeja fazer no Cnon (Cf. Kant, 1781: A 803-804 /

    B 831-832). Contudo, ele est convencido de que no pode simplesmente desistir da idia

    transcendental da liberdade, uma vez que sobre esta idia que se fundamenta o seu conceito

  • 30

    prtico (Cf. Kant, 1781: A 533 / B 561). Sendo assim, no permitido abster-se de fornecer uma

    soluo para a possibilidade da liberdade transcendental, pois a supresso da liberdade

    transcendental anularia simultaneamente toda a liberdade prtica (Kant, 1781: A 534 / B 562).13

    Kant enxerga no idealismo transcendental (como j foi apontado) a chave para solucionar

    o problema que envolve a liberdade transcendental. A inteno do filsofo, ao aplic-lo (como

    paradigma interpretativo) a toda a causalidade no mundo dos sentidos, parece ser a de tornar

    evidente que logicamente possvel pressupor, simultaneamente, natureza e liberdade como

    causas de um mesmo acontecimento; ou seja, mostrar que esta pressuposio no

    autocontraditria. Como o filsofo faz isso? Recorrendo distino transcendental entre

    fenmeno e coisa em si (nmeno).14 O raciocnio pode ser sintetizado da seguinte maneira: dado

    que o princpio do encadeamento universal de todos os acontecimentos do mundo sensvel no

    comporta exceo (Kant, 1781: A 536 / B 564), a nica possibilidade de salvar (retten) a

    liberdade est em negar a realidade dos fenmenos, isto , em consider-los simples

    representaes e, portanto, distintos da coisa em si. Pois, neste caso, os fenmenos tm eles

    prprios que possuir fundamentos que no sejam fenmenos (Kant, 1781: A 537 / B 565). Do

    contrrio, se eles fossem reais, no poderamos esperar encontrar neles nada alm daquilo que

    observamos empiricamente, e o encadeamento causal natural seria a nica forma possvel de

    13 Interpreto a subordinao do conceito prtico ao conceito (idia) transcendental da liberdade da seguinte forma: a liberdade transcendental se interessa pela prpria possibilidade de conceber-se uma causalidade no-natural no mundo dos fenmenos, enquanto que a liberdade prtica no apenas pressupe esta possibilidade, mas se interessa por mostrar que h no mundo certos fenmenos (aes humanas) que so livres. Neste sentido, diria que o conceito transcendental maior que o conceito prtico da liberdade e, portanto, abarca este ltimo.

    14 Note-se, todavia, que o recurso distino transcendental no serve, como pensavam Fischer e Kemp Smith, para explicar a prpria possibilidade (real) da liberdade, mas sim apenas para justificar a possibilidade lgica da liberdade. Em outras palavras, a distino transcendental entre fenmeno e coisa em si til para sustentar que no se trata de um conceito autocontraditrio.

  • 31

    causalidade. 15 Desta forma, mediante o emprego do idealismo transcendental, seria possvel

    tomar, ao mesmo tempo, natureza e liberdade como causas de um mesmo acontecimento

    Certos aspectos da soluo exposta acima precisam, no entanto, ser melhor explicados, a

    fim de evitar que surjam mal-entendidos decorrentes de uma avaliao apressada da mesma

    como, por exemplo, a alegao de que ela (a soluo) estabelece justamente aquilo que a terceira

    antinomia probe, a saber, uma causa (primeira quanto ao tempo) que quebra o fio condutor de

    uma experincia totalmente encadeada. Em primeiro lugar, necessrio deixar claro o que Kant

    entende por fundamentos que no [so] fenmenos. Alm disso, tambm importante elucidar

    o modo pelo qual, segundo ele, um mesmo evento pode ser determinado por duas causas

    concorrentes distintas (liberdade e natureza), e como o convvio (e, inclusive, a relao) entre

    ambas possvel.

    A primeira dvida pode ser sanada sem grande esforo, j que o fundamento (no-

    sensvel) dos fenmenos se trata daquilo que Kant denomina de causa inteligvel (mas, que

    tambm poderia ser chamada simplesmente de coisa em si ou nmeno). O diferencial dessa causa,

    o que a torna especial e permite a sua coexistncia com causas empricas (fenomnicas), a sua

    no-submisso s condies empricas (ainda que os seus efeitos estejam submetidos a tais

    condies). Quer dizer, de acordo com Kant, a causa inteligvel e a sua causalidade se encontram

    15 Kant tambm acredita ser possvel apreender, na prpria observao dos acontecimentos do mundo, razes para se rejeitar a causalidade natural como a nica possvel no mundo dos fenmenos. Segundo ele, se toda a causalidade no mundo dos sentidos fosse simplesmente natureza, cada acontecimento seria determinado por um outro, no tempo, segundo leis necessrias (A 534 / B 562). Por conseqncia, os fenmenos, na medida em que determinam o arbtrio, deviam tornar necessrias todas as aes como suas conseqncias naturais (idem). Logo, se algo que deveria ter acontecido (segundo essa necessidade causal natural) no aconteceu, ento isto seria um indcio de que a causa desse algo (fenomnico), que deveria ter acontecido, no era to necessria (determinante) como se pensava. Neste caso, nada impediria afirmar que o arbtrio tambm possui uma causalidade capaz de produzir, independentemente dessas causas naturais e mesmo contra o seu poder e influncia, algo determinado na ordem do tempo por leis empricas e, por conseguinte, capaz de iniciar completamente por si mesmo uma srie de acontecimentos (idem).

  • 32

    fora da srie, ao passo que os seus efeitos se encontram na srie das condies empricas (Kant,

    1781: A 537 / B 565).

    O segundo ponto tambm pode ser facilmente esclarecido, na medida em que

    compreendemos que, de fato, no pode haver duas causas para um mesmo evento. Para todo e

    qualquer fenmeno do mundo, pode haver apenas uma nica causa eficiente. Esta causa, todavia,

    na concepo kantiana, tem um duplo carter: emprico (ou sensvel) e inteligvel (ou numnico).

    O que, por sua vez, permite que os atos humanos (enquanto fenmenos) possam ser considerados,

    simultaneamente, no-livres e livres. No-livres, quando avaliados a partir do carter emprico da

    sua causa, pois estariam absolutamente encadeados com outros fenmenos (Kant, 1781: A 539

    / B 567) como efeitos dos mesmos de acordo com as leis constantes (e necessitantes) da natureza.

    Por outro lado, livres, quando o carter inteligvel levado em conta, j que neste caso a causa

    no se encontra subordinada a quaisquer condies da sensibilidade e no [...] fenmeno

    (idem). Sendo mais exato, a condio fundamental a qual o carter (ou causa) inteligvel no est

    subordinado a condio temporal, uma vez que o tempo s a condio dos fenmenos, mas

    no das coisas em si (Kant, 1781: A 539 / B 567). Justamente por no estar subordinada

    condio temporal, 16 a causa inteligvel independente de toda condio emprica e pode

    coexistir com a causa emprica, sem que as duas entrem em conflito uma com a outra.

    16 Segundo Kant, porque o sujeito agente no est submetido ao tempo, no surgiria nem cessaria nele qualquer ato e no estaria, por conseguinte, submetido lei de toda a determinao do tempo, de tudo o que suscetvel de alterao, a saber, que tudo o que acontece encontra a sua causa nos fenmenos (do estado precedente) (Kant, 1781: A 539-540 / B 567-568). Sendo assim, mesmo que no seja permitido afirmar que o sujeito agente (por possuir tal carter inteligvel) comea uma ao no mundo dos fenmenos, certamente possvel dizer que ele inicia espontaneamente [certos] efeitos no mundo dos sentidos (Kant, 1781: A 541 / B 569) e, portanto, que responsvel pelos mesmos.

  • 33

    Mas, ainda que ambas as causas possam verificar-se de forma independente, Kant no

    enxerga uma relao de indiferena entre elas. Pelo contrrio, ele entende que no h problema

    algum em admitir-se uma relao causal entre elas, na qual a causa inteligvel tem certa

    influncia sobre a causa emprica, ou, mais precisamente, na qual a primeira a causa

    transcendental da segunda (Cf. Kant, 1781: A 546 / B 574). Ele sugere que a causalidade

    emprica, que observamos nos fenmenos, possa ser [...] o efeito de uma causalidade no

    emprica, mas inteligvel (Kant, 1781: A 544 / B 572). Esta ltima, por sua vez, seria o efeito

    da ao originria (idem) daquela causa inteligvel. Note-se, todavia, que, do ponto de vista do

    encadeamento causal dos fenmenos, no possvel encontrar (observar) qualquer ao

    originria, visto que isso contraria diretamente a condio temporal a qual esto submetidos todos

    os fenmenos. Neste sentido, o filsofo mantm a sua posio de que, entre as causas do

    fenmeno, no pode certamente haver nada que por si possa iniciar, em absoluto, uma srie

    (idem). Quer dizer, sob a perspectiva emprica, ainda que se admita a existncia de uma causa e

    uma causalidade inteligvel, todas as causas dos fenmenos so meramente causas naturais (ou

    seja, fenmenos). O carter emprico o nico que pode ser acessado para explicar a causalidade

    nos fenmenos, enquanto que o carter inteligvel permanece totalmente desconhecido.

    De acordo com a soluo kantiana enunciada acima, no h conflito algum entre liberdade

    e natureza, ou seja, elas podem coexistir sem contradizer uma a outra. importante, no entanto,

    deixar claro qual o objetivo que o filsofo espera ter alcanado por meio dessa soluo. Kant

    explcito ao dizer o que no era a sua pretenso: no pretendemos aqui expor a realidade da

    liberdade, [...] nem sequer pretendemos demonstrar a possibilidade da liberdade (Kant, 1781: A

    558 / B 586). Ele, de fato, no poderia desejar atingir tais fins. Primeiro, porque a experincia

    a nica que pode conceder realidade aos nossos conceitos (Kant, 1781: A 489 / B 517) e, como

  • 34

    se sabe, o conceito da liberdade no pode, de forma alguma, ser dado na experincia. Por isso, ela

    permanece to-s uma idia sem verdade nem relao com um objeto (idem). Segundo, no

    poderia almejar demonstrar a possibilidade (real) da liberdade, porque esta possibilidade no

    pode ser conhecida mediante simples conceitos a priori (Kant, 1781: A 558 / B 586). Portanto,

    do ponto de vista cognitivo (da filosofia terico-especulativa), a liberdade apenas uma idia

    transcendental, pela qual a razo pensa iniciar absolutamente [...] a srie das condies no

    fenmeno, enredando-se assim numa antinomia com as prprias leis, que prescreve ao uso

    emprico do entendimento (idem). O mrito da soluo kantiana, ao mostrar que o conflito entre

    natureza e liberdade est baseado sobre uma simples aparncia (Schein), consiste em estabelecer

    a possibilidade lgica da liberdade, isto , a sua no-autocontradio.17 Logo, o resultado atingido

    no permite mais do que meramente pensar o conceito (idia) da liberdade. Mas, definitivamente,

    essa idia transcendental da liberdade no serve para fundamentar o campo das aes humanas.

    Penso que justamente visando fornecer uma resposta mais condizente com a pretenso

    de fundamentao (moral) do campo das aes humanas que Kant engendra o (j mencionado)

    conceito prtico da liberdade. De acordo com o filsofo, a liberdade prtica tem a vantagem de

    estar totalmente isenta dos problemas que resultam da tentativa de aplicar a liberdade (como

    causalidade inteligvel) no mundo dos fenmenos e, alm disso, pode ser conhecida por

    17 A possibilidade de algo definida por Kant, algumas vezes, nos seguintes termos: o conceito sempre possvel quando no contraditrio (Kant, 1781: A 597 / B 625). Mas, em outros momentos, ele chama a ateno para o fato de que a no-contradio do conceito [est] longe de provar a possibilidade do objeto (Kant, 1781: A 596 / B 624). Fica evidente que h uma importante diferena a ser destacada entre a possibilidade de um conceito e a possibilidade de um objeto. No primeiro caso, o que est em jogo meramente a possibilidade lgica do conceito que ele possa ser pensado. No segundo caso, por outro lado, a possibilidade real do objeto que se considera. A realidade de um conceito, segundo Kant, s pode ser fornecida pela experincia. Logo, para que um conceito seja dito possvel necessrio que, alm de ser logicamente consistente, o seu objeto possa ser dado na experincia. No propriamente necessrio que se faa a experincia do objeto, mas apenas que tal experincia seja possvel. Em outras palavras, um conceito (ou um juzo) possvel quando podemos decidir sobre a sua verdade ou falsidade a partir de dados intuitivos. Quanto diferena entre a possibilidade lgica e a possibilidade real de um conceito, confira tambm Kant, 1781: A 244 / B 302-303 nota de rodap.

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    experincia, [...] como uma das causas naturais, a saber, como uma causalidade da razo na

    determinao da vontade (Kant, 1781: A 803 / B 831). Tais elementos parecem justificar

    suficientemente uma filiao ao conceito prtico da liberdade e o abandono do seu conceito

    transcendental, quando se tem em vista a fundamentao do campo prtico. Quanto a isso, ao se

    referir ao conflito suscitado por essa idia com as leis da causalidade natural, Kant no deixa

    dvida: a questo relativa liberdade transcendental refere-se meramente ao saber especulativo

    e podemos deix-la de lado, como totalmente indiferente, quando se trata do que prtico (Kant,

    1781: A 803-804 / B 831-832).

    A concepo kantiana da li