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1 José Fleurí Queiroz K - KANT E KARDEC KANT E A CRÍTICA DA RAZÃO KARDEC E A CRÍTICA DA FÉ "Fé inabalável é somente aquela que pode encarar a razão face a face, em todas as épocas da humanidade"

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José Fleurí Queiroz

K - KANT E KARDEC

KANT E A CRÍTICA DA RAZÃO

KARDEC E A CRÍTICA DA FÉ

"Fé inabalável é somente aquela que pode encarar a

razão face a face, em todas as épocas da humanidade"

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QQQ - QUEIROZ

LIVRARIA, EDITORA E DISTRIBUIDORA

Rua Inácio Xavier Luiz, n. 10 – Vila Sene

BURI-SP. CEP 18.290.000. Fone (15) 3546-1191

e-mail – [email protected]

site: www.qqqqueiroz.com.br

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DOBRA DA CAPA FRONTAL

DADOS BIOGRÁFICOS DO AUTOR

JOSÉ FLEURÍ QUEIROZ

Nascido na cidade de Buri-SP, aos 16/10/1941, é Auditor Fiscal da Receita Federal

do Brasil, aposentado em 1991; bacharel em Ciências Contábeis e Atuariais pela Faculdade

de Ciências Econômicas de São Paulo – Fundação Álvares Penteado (1966); bacharel em

Direito pela Faculdade FKB, de Itapetininga (1973). Pós-graduado em Direito Penal – lato

sensu -, pela FMU-SP – Faculdades Metropolitanas Unidas – (1996). Mestre em Filosofia

do Direito e do Estado – scricto sensu -, pela PUC-SP – Pontifícia Universidade Católica –

(1998). Advogado criminalista e professor universitário de 1998 até 2.001, nas cadeiras de

Direito Penal, Instituições de Direito Público e Privado, Filosofia Geral, Filosofia do

Direito e do Estado, Filosofia e Ética Profissional, nas Faculdades de Direito de

Itapetininga-SP (FKB) e de Administração de Itapeva-SP (FAIT). É autor dos livros sobre

Filosofia do Direito, pela Editora Mundo Jurídico: “A EDUCAÇÃO COMO DIREITO E

DEVER À Luz da Filosofia e do Direito Natural” (2003), “CÓDIGO DE DIREITO

NATURAL ESPÍRITA” - Projeto Comentado (1ª. Edição/ 2006, 2ª. Edição/2010),

“SUICÍDIO É OU NÃO É CRIME?” (em parceria com seu filho Dr. Allan Francisco

Queiroz, 2007), MEDICINA ESPÍRITA - CIÊNCIA MÉDICA (2009), PENA DE

DURAÇÃO INDETERMINADA (Filosofia do Direito e Filosofia Espírita – 2009). No

último livro: FILOSOFIA GERAL VERSUS FILOSOFIA ESPÍRITA o autor coloca em

confronto as teorias dos principais filósofos com a Filosofia Espírita, para livre apreciação

dos leitores.

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AGRADECIMENTOS

Ainda não encontrei as palavras adequadas para registrar os meus e-

ternos agradecimentos a:

meu querido pai: Joaquim Antunes Pereira de Queiroz,

minha querida mãe: Santina Brandino de Queiroz,

e

minha idolatrada vovó-madrinha: Sinhaninha,

pelas bênçãos da vida e pela assistência material e moral que me dis-

pensaram e que foram decisivas para que eu chegasse até aqui.

QUE DEUS OS ABENÇOE!

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CONTRA CAPA

QUARTA CAPA

Poderá a Razão dispensar a Fé?

-A razão humana é ainda muito frágil e não poderá dispensar a coo-

peração da fé que a ilumina, para a solução dos grandes e sagrados proble-

mas da vida.

Em virtude da separação de ambas, nas estradas da vida, é que ob-

servamos o homem terrestre no desfiladeiro terrível da miséria e da destrui-

ção.

Pela insânia da razão, sem a luz divina da fé, a força faz as suas der-

radeiras tentativas para assenhorear-se de todas as conquistas do mundo.

Falastes demasiadamente de razão e permaneceis na guerra da des-

truição, onde só perambulam miseráveis vencidos; revelastes as mais eleva-

das demonstrações de inteligência, mas mobilizais todo o conhecimento pa-

ra o morticínio sem piedade, pregastes a paz, fabricando os canhões homici-

das; pretendestes haver solucionado os problemas sociais, intensificando a

construção das cadeias e dos prostíbulos.

Esse progresso é o da razão sem a fé, onde os homens se perdem em

luta inglória e sem-fim.

(EMMANUEL)

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PREFÁCIO

Convidada a prefaciar mais este trabalho de meu esposo, elaborei al-

gumas linhas, após percorrer o seu conteúdo. Isto fiz no dia 26 de novembro

de 2.010. Entretanto, no dia seguinte, durante os trabalhos e estudos espíri-

tas que realizamos semanalmente, no Liceu Allan Kardec, fui surpreendida

com a mensagem que transcrevo abaixo, recebida psicograficamente (sou

médium psicografa, há muitos anos) de nossa Presidente Espiritual Dolores.

FÉ RACIOCINADA!

Irmãos, bom dia!

Tenhamos em vista que sem o conhecimento, nada somos. Sem a ra-

zão que nos guie os passos não poderemos chegar à fé raciocinada; teremos,

então, somente a fé dogmática que não alimenta mais, pois já crescemos

com o progresso da Ciência.

Assim, de nada adiantará o homem ter espelho, se não tiver olhos de

ver, como, de nada adiantará ter olhos e espelho, se não tiver luz.

Portanto, necessitamos dos olhos de ver, do reflexo de nossas ações,

baseados e amparados pela luz do entendimento racional, que não nos deixa-

rá errar.

Porque se não tivermos olhos, de nada adiantará o espelho; mas se

não tivermos olhos, nem espelho e tivermos a luz do entendimento, qualquer

cego conhecerá o caminho a seguir.

Quem tiver olhos de ver, veja! Quem tiver ouvidos de ouvir, ouça!

Mas, sem a luz, todos nos perderemos no caminho.

Irmãos: muita luz, muito estudo, muita atitude positiva em todas as

ações, para servirem de espelho, para refletirem às futuras gerações o que

tem de ser aprendido, apreendido e executado.

Muita paz e muita luz a todos!

Espírito: Dolores (Presidente Espiritual do Liceu Allan Kardec. Buri

- SP). Médium: Domitila. Buri, 27 de Novembro de 2.010.

Entendi, salvo melhor juízo dos leitores, que melhor apresentação se-

ria impossível.

Dra. Domitila Meira de Vasconcellos

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ÍNDICE

INTRODUÇÃO..................................................................... 10

PROLEGÔMENOS 1: Emancipação Espiritual do Homem...... 12

PROLEGÔMENOS 2: Fideísmo Crítico. Kardec e a Crítica Fé

Kant e a Crítica da Razão....................................................... 20

ANTECEDENTES HISTÓRICOS: Emmanuel. A Revolução

A Revolução Francesa. França no século XVIII....................... 25

PRIMEIRA PARTE

KANT E A CRÍTICA DA RAZÃO

Concepção de Deus no Pensamento de Kant............................ 30

Concepção de Kant Sobre o Universo........................................ 31

Espírito e Matéria....................................................................... 32

Teoria de Kant Sobre a Importância do Homem........................ 33

A Alma e a Imortalidade Segundo Kant..................................... 33

O Bem e o Mal, ou Moral. A Filosofia Moral de Kant............... 34

Destino e Livre-arbítrio Segundo Kant....................................... 35

As Idéias e o Pensamento no entender de Kant.......................... 36

J. Herculano Pires. Ficha de Identificação Literária................... 38

J. Herculano Pires. Teoria Espírita do Conhecimento................ 38

SEGUNDA PARTE

KARDEC E A CRÍTICA DA FÉ

O Livro dos Espíritos: Lei de Adoração

Finalidade da Adoração.......................................................... 44

Adoração Exterior.................................................................. 45

Vida Contemplativa............................................................... 46

Da Prece............................................................................... 46

Politeísmo............................................................................. 48

Sacrifícios............................................................................. 49

O Evangelho Segundo o Espiritismo

A Fé Que Transporta Montanhas............................................ 52

A Fé Religiosa. Condição da Fé Inabalável............................... 53

Parábola da Figueira Que Secou................................................ 54

Fé, Mãe da Esperança e da Caridade......................................... 55

A Fé Divina e a Fé Humana....................................................... 56

Pedi e Obtereis............................................................................ 56

Condições da Prece..................................................................... 57

Eficácia da Prece......................................................................... 57

Ação da Prece. Transmissão do Pensamento.............................. 59

Preces Inteligíveis....................................................................... 61

Da Prece Pelos Mortos e Pelos Espíritos Sofredores.................. 62

Modo de Orar.............................................................................. 63

Ventura da Prece......................................................................... 64

APÊNDICE

ESPÍRITO EMMANUEL

Livro: Emmanuel

Os Tempos do Consolador...................................................... 66

Os Dogmas e os Preconceitos................................................. 68

Livro: O Consolador

Cultura. Razão....................................................................... 69

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Intelectualismo........................................................................ 71

Personalidade.......................................................................... 74

Iluminação. Necessidade.......................................................... 76

Trabalho.................................................................................. 78

Realização............................................................................... 80

Espiritismo. Fé......................................................................... 83

BIBLIOGRAFIA........................................................................ 87

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INTRODUÇÃO

Na condição de pesquisador e divulgador da Filosofia Espírita e, por

inspiração do saudoso Filósofo José Herculano Pires, apresento este humil-

de trabalho, que nada mais representa do que um leve desdobramento do

tema “Fideísmo Crítico – Kardec e a Crítica da Fé”, onde o querido Filósofo

estabeleceu um paralelo com a “Crítica da Razão de Kant”.

Foi através da leitura e estudo de suas magníficas obras que aprendi

a valorizar todos os livros de Allan Kardec, incluindo os 12 volumes da Re-

vista Espírita, que permanecem quase desconhecidos de muitos ilustres espí-

ritas.

Dessa forma, da conjugação desses estudos, percebi que nosso Meio

Cultural carecia e carece da inserção dos princípios da Ciência e Filosofia

Espíritas em seus currículos, para que, em conjunto, atinjam os sagrados

fins a que se destinam, pois estariam aliando Razão e Fé, elementos indis-

pensáveis à obtenção da Verdade.

Faço essa afirmação após a experiência de muitos anos como profis-

sional do Direito, na condição de Auditor Fiscal da Receita Federal, Advo-

gado, Professor Universitário e, concomitantemente, atuando no meio espí-

rita, principalmente junto à Federação Espírita do Estado de São Paulo. En-

tretanto, repito categoricamente, que só cheguei às conclusões mencionadas

no parágrafo anterior, após recentes e mais profundos estudos das obras de

Allan Kardec e J. Herculano Pires.

Empolgado com esse desfecho, tenho trabalhado, desde então, na e-

laboração de obras que possam encontrar boa acolhida nos meios universitá-

rios correspondentes: 1) A Educação Como Direito e Dever à Luz da Filoso-

fia e do Direito Natural; 2) Código de Direito Natural Espírita, já em sua se-

gunda edição; 3) Suicídio É Ou Não É Crime? Em parceria com meu filho

Allan Francisco Queiroz; 4) Pena de Duração Indeterminada – Filosofia do

Direito e Filosofia Espírita; 5) Medicina Espírita e Ciência Médica. Mediu-

nidade Curadora. Todas lançadas pela Editora Mundo Jurídico. Está no pre-

lo, atualmente, Filosofia Geral Versus Filosofia Espírita.

Sendo o Espiritismo, ao mesmo tempo, Ciência, Filosofia e Religião,

a matéria contida neste livro, selecionada das principais obras de Allan Kar-

dec, de J. Herculano Pires e do Espírito Emmanuel, constituem um passo

decisivo para a “Aliança da Ciência com a Religião”, conforme o Codifica-

dor estabeleceu em “O Evangelho Segundo o Espiritismo”, Capítulo I, como

segue abaixo:

ALIANÇA DA CIÊNCIA COM A RELIGIÃO

A Ciência e a Religião são as duas alavancas da inteligência humana.

Uma revela as leis do mundo material, e a outra as leis do mundo moral.

Mas aquelas e estas leis, tendo o mesmo princípio, que é Deus, não podem

contradizer-se. Se umas forem a negação das outras, umas estarão necessa-

riamente erradas e as outras certas, porque Deus não pode querer destruir a

sua própria obra. A incompatibilidade, que se acredita existir entre essas du-

as ordens de idéias, provém de uma falha de observação, e do excesso de

exclusivismo de uma e de outra parte. Disso resulta um conflito, que origi-

nou a incredulidade e a intolerância.

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São chegados os tempos em que os ensinamentos do Cristo devem

receber o seu complemento; em que o véu lançado intencionalmente sobre

algumas partes dos ensinos deve ser levantado; em que a Ciência, deixando

de ser exclusivamente materialista, deve levar em conta o elemento espiritu-

al; e em que a Religião, deixando de desconhecer as leis orgânicas e imutá-

veis da matéria, essas duas forças, apoiando-se mutuamente e marchando

Juntas, sirvam uma de apoio para a outra. Então a Religião, não mais des-

mentida pela Ciência, adquirirá uma potência indestrutível, porque estará de

acordo com a razão e não se lhe poderá opor a lógica irresistível dos fatos.

A Ciência e a Religião não puderam entender-se até agora, porque,

encarando cada uma as coisas do seu ponto de vista exclusivo, repeliam-se

mutuamente. Era necessária alguma coisa para preencher o espaço que as

separava, um traço de união que as ligasse. Esse traço está no conhecimento

das leis que regem o mundo espiritual e suas relações com o mundo corpo-

ral, leis tão imutáveis como as que regulam o movimento dos astros e a exis-

tência dos seres. Uma vez constatadas, pela experiência, essas relações, uma

nova luz se fez: a fé se dirigiu à razão, esta nada encontrou de ilógico na fé,

e o materialismo foi vencido.

Mas nisto, como em tudo, há os que ficam retardados até que sejam

arrastados pelo movimento geral, que os esmagará, se quiserem resistir em

vez de se entregarem. É toda uma revolução moral que se realiza neste mo-

mento, sob a ação dos Espíritos. Depois de elaborada durante mais de dezoi-

to séculos, ela chega ao momento de eclosão, e marcará uma nova era da

humanidade. São fáceis de prever as suas conseqüências: ela deve produzir

inevitáveis modificações nas relações sociais, contra o que ninguém poderá

opor-se, porque elas estão nos desígnios de Deus e são o resultado da lei do

progresso, que é uma lei de Deus.

QUE ASSIM SEJA!

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PROLEGÔMENOS

- 1 -

Livro: O Espírito e o Tempo.

J. Herculano Pires

II PARTE - FASE HISTÓRICA

EMANCIPAÇÃO ESPIRITUAL DO HOMEM

1. IMANÊNCIA E TRANSCENDÊNCIA — Colocando o problema

da evolução humana em termos de imanência e transcendência, segundo a

acepção moderna desses vocábulos, podemos compreender melhor a nature-

za transcendente do horizonte espiritual. Os quatro horizontes que o antece-

dem: o tribal, o agrícola, o civilizado e o profético, representam o período

de imanência do processo evolutivo. Nesse período, de acordo com o "prin-

cípio da imanência", de Le Roy, toda a potencialidade espiritual do homem

encontra-se em desenvolvimento, tudo o que nele é implícito transita para o

explícito. A experiência da magia, dos mitos agrários e da mitologia civili-

zada, das religiões organizadas e da eclosão profética, nada mais é do que

uma seqüência de fases do período imanente, em, que o homem acorda em

si mesmo as forças latentes da alma, preparando-se para a fase de transcen-

dência que virá com o horizonte espiritual.

Esse é um dos motivos por que a Revelação Cristã se mostra mais

poderosa e atuante que as anteriores. Já vimos que o horizonte espiritual a-

parece com Jesus, com ele se define. Vimos também que Israel representou,

mais do que os outros países, o momento em que as forças desenvolvidas no

período da imanência atingiram a sua culminância. Assim, o próprio desen-

volvimento histórico explica e justifica as afirmações místicas, aparente-

mente dogmáticas, da supremacia espiritual de Israel e do seu papel de povo

eleito. Para a mentalidade mística dos horizontes anteriores, a posição de Is-

rael não poderia ser interpretada senão como uma determinação celeste. A

própria alegoria da Aliança confirma isto. O pacto firmado entre Deus e seu

povo é a simples divinização de um sistema agrário de compromissos hu-

manos. Mas era através dessa alegoria que os antigos conseguiam entender e

explicar uma realidade inexplicável, qual fosse a supremacia espiritual do

povo hebraico e o seu dever indeclinável de liderança mundial.

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A incompreensão do fato permanece ainda hoje, tanto no seio das re-

ligiões cristãs, quanto no próprio judaísmo. A expectativa milenária do

Messias, e a ambição de domínio universal e absoluto, das seitas cristãs

provindas do judaísmo, nada mais são do que resíduos do período de ima-

nência. A destinação messiânica de Israel não foi e não é encarada no seu

sentido histórico, mas no seu antigo aspecto teológico. Daí a razão do povo

eleito esperar ainda o cumprimento da promessa divina, e das seitas cristãs

modernas, que se julgam herdeiras da mesma promessa, insistirem tão fir-

memente nos seus direitos de dominação e orientação exclusiva das consci-

ências, para salvação das almas.

O Espiritismo, doutrina livre, dinâmica, sem dogmas de fé, sem in-

tenções exclusivistas ou pretensões salvacionistas, corresponde precisamen-

te à fase de esclarecimento do horizonte espiritual. Por isso é que ele se a-

presenta como desenvolvimento natural do Cristianismo, seqüência inevitá-

vel do processo histórico, enfrentando o problema da salvação em termos de

evolução, e procurando explicar as alegorias do passado à luz da compreen-

são racional. Curioso notar-se que, nesse ponto, os adversários do Espiritis-

mo o acusam de racionalismo, sustentando a tese imanente, ou seja, a tese

provinda do período de imanência, segundo a qual existem mistérios que a

razão não alcança. Entre esses mistérios, figura o da destinação messiânica

de Israel, que, como vimos, não era explicável no período anterior, mas hoje

é perfeitamente compreensível.

No período de imanência, o homem não havia atingido a emancipa-

ção espiritual que lhe permitiria encarar os grandes problemas da sua pró-

pria destinação. Possuindo, entretanto, o sentimento intuitivo desses pro-

blemas, procurava racionalizá-los através de símbolos, de alegorias. No pe-

ríodo de transcendência, o homem, já espiritualmente desenvolvido, possui

os elementos necessários para enfrentar esses problemas e resolvê-los. Isso

não quer dizer, entretanto, que o Espiritismo se considere, ou que os espíri-

tas se considerem como novos detentores da verdade absoluta. Pelo contrá-

rio: o Espiritismo proclama a existência de problemas que são ainda insolú-

veis, como a da própria natureza de Deus. Insolúveis, porém, no momento

presente, uma vez que o processo evolutivo levará o homem, progressiva-

mente, a desvendar os novos mistérios que lhe forem sendo propostos pela

própria evolução.

As reservas modernas quanto ao racionalismo são explicáveis, diante

da experiência que conduziu os homens ao ceticismo, à descrença, ao mate-

rialismo, e conseqüentemente a uma posição incômoda, de negativismo ex-

plícito ou implícito dos valores da vida. Mas o racionalismo espírita repre-

senta precisamente o reajuste da posição racionalista. Porque a razão aplica-

da ao julgamento do passado, em função das conquistas ainda recentes do

presente, provoca o desequilíbrio do espírito, quando se pretende estabelecer

o absolutismo racional. No Espiritismo, a razão é apresentada como uma

função do espírito, um dos seus instrumentos de ação, e não corno o próprio

espírito. O absolutismo da razão não existe, embora a razão se apresente

como instrumento indispensável para o esclarecimento espiritual.

Por outro lado, é necessário considerar que a razão foi a escada de

que o homem se serviu, para superar os horizontes anteriores, libertando-se

do domínio das forças naturais ou instintivas. A razão é, por assim dizer, a

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alavanca espiritual que elevou o homem do período de imanência para o de

transcendência, permitindo-lhe julgar-se a si mesmo e delinear as perspecti-

vas da sua própria libertação. O Espiritismo, como doutrina que corresponde

exatamente às aspirações e às exigências do horizonte espiritual, não pode

abrir mão da razão, nem mesmo em favor da intuição, que pertence a um pe-

ríodo futuro do desenvolvimento humano.

2. DESENVOLVIMENTO DA RAZÃO — O horizonte profético

assinalou a fase culminante de desenvolvimento da razão. Já tivemos ocasi-

ão de estudar os motivos dessa ocorrência, no vasto período histórico que

vai do IX ao III século antes de Cristo, segundo a teoria de John Murphy.

Resta-nos apreciar a maneira por que a razão vai progressivamente impondo

os seus direitos, até conquistar a supremacia necessária, para libertar o espí-

rito humano dos liames terríveis do passado.

Podemos observar com segurança o vigoroso surto da razão no hori-

zonte profético, a começar da própria agitação profética na Palestina. Os

conquistadores de Canaã carregavam no espírito a herança das civilizações

mesopotâmica e egípcia. Os germes da razão estavam bem desenvolvidos

naquelas mentes inquietas, que procuravam construir um novo mundo para

si mesmas e anunciar aos demais povos o advento de uma nova ordem. Mas

foram os profetas de Israel os corifeus desse movimento renovador, quer le-

vantando sua voz contra o apego aos velhos hábitos, quer anunciando com

insistência a aproximação dos novos tempos.

Os debates teológicos de Israel aparecem como uma preparação da

efervescência medieval. Os profetas agitam a pasmaceira teológica do povo

eleito, propondo questões que perturbam a própria ordem social. Ao mesmo

tempo, na Grécia, a filosofia se desprende da sua matriz órfica, supera o

pensamento místico do orfismo tradicional, e ensaia os primeiros passos da

perquirição racional. Na própria China estagnada surge a inquietação provo-

cada pela introdução do Budismo e pelo aparecimento do Confucionismo.

Na índia védica, submetida ao jugo das tradições, a renovação budista mis-

tura-se às influências procedentes do pensamento grego, cujo poder de irra-

diação não conhece barreiras, no Ocidente ou no Oriente. No mundo roma-

no, a infiltração grega submetia as tradições do Império e o politeísmo do-

minante ao julgamento progressivo, que a contribuição judeu-cristã iria ace-

lerar de maneira decisiva.

O Cristianismo aparece como o verdadeiro remate desse vasto pro-

cesso. Jesus não se limita a condenar o apego ao ritualismo religioso no

mundo judaico. Ele proclama a natureza espiritual de Deus, e conseqüente-

mente a do homem, filho de Deus. Ensina a universalidade do espírito, rom-

pendo assim as barreiras de todos os preconceitos tribais, que dividiam a

humanidade em grupos raciais ou religiosos. Mostra que o samaritano podia

ser melhor que um príncipe da igreja judaica, e adverte à mulher samaritana

que Deus devia ser adorado, não através de fórmulas exteriores, em locais

considerados sagrados, mas "em espírito e verdade".

Quando observamos o fenômeno do aparecimento e da propagação

do Cristianismo, primeiramente na Palestina, e depois no mundo, verifica-

mos que se tratava de uma verdadeira revolução. Mas a característica dessa

revolução é precisamente o apelo à razão. O Cristianismo exigia das criatu-

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ras o uso desse poder misterioso do raciocínio, que as fazia senhoras de si

mesmas, responsáveis pelos seus atos. Contra a autoridade das Escrituras e

dos Rabinos, bem como da própria tradição, Jesus proclamava a soberania

da consciência. Limpar o vaso por dentro, e não apenas por fora; servir-se

do sábado, em vez de escravizar-se a ele; orar conscientemente, sabendo que

Deus, sendo Pai, não dá pedra a quem lhe pede pão, nem cobra a quem lhe

pede peixe.

Os homens ainda não estão preparados para compreender todos os

princípios dessa revolução. Continuarão apegados, por muito tempo, aos ve-

lhos moldes autoritários, subjugados pelos antigos preceitos. Mas o fermen-

to está lançado na medida de farinha, e inevitavelmente a fará levedar. Os

próprios apóstolos não assimilarão suficientemente as lições do Mestre.

Procurarão ajustar o Cristianismo aos velhos moldes judaicos, retê-lo nas si-

nagogas, prendê-lo ao Templo de Jerusalém. Pedro, o velho pescador, não

admitirá cristão que não se submeta a ser circuncidado. Mas Jesus conhece

um homem que amadureceu o suficiente para fazer prevalecer a razão sobre

o costume, o uso, a tradição. Esse homem é Paulo de Tarso, que promoverá

no Cristianismo nascente o movimento vivo de repulsa ao predomínio do

passado.

A reforma grega do Orfismo pelo Pitagorismo, a reforma indiana do

Hinduísmo pelo Budismo, a reforma chinesa do Taoísmo pelo Confucio-

nismo e a reforma síria do Judaísmo pelo Cristianismo, eis os grandes even-

tos históricos que assinalam o advento mundial, no horizonte profético, da

era da razão. Pitágoras é o primeiro a ensaiar, na Grécia do século sexto, e

no mundo inteiro, a união do pensamento místico ao racional. E a partir dos

pitagóricos, o grande drama da evolução humana, durante milênios, se de-

senvolverá nesse plano: a luta pela racionalização da fé.

A crença pela crença, a fé pela fé, a obrigação e a necessidade de a-

ceitar a tradição, como verdade absoluta, acabada e perfeita, são caracterís-

ticos dos horizontes primitivos, das fases de predomínio do instinto e do

sentimento. Na proporção em que a razão se desenvolve, em que o homem

aprende a pensar e a julgar, a fé cega, tradicional, já não pode satisfazê-lo. A

fórmula comodista: "Creio porque creio", exigirá um substituto dinâmico e

fecundo: "Creio porque sei".

O horizonte profético se encerra com o predomínio da razão. Ao

contrário do que se costuma dizer, a razão não aparece como exclusivamen-

te grega, não obstante a contribuição da Grécia seja a mais decisiva para o

seu desenvolvimento. Encontramos, como já vimos acima, o florescimento

da razão ao longo de todo o horizonte profético, prenunciando a supremacia

mundial que ela deverá assumir, com o advento do horizonte espiritual. Mas

haverá ainda uma grande fase histórica de reação, de luta profunda e moro-

sa, entre a razão e a fé, embora aquela tenha de sair triunfante.

3. O DRAMA MEDIEVAL — A Idade Média é a fase dramática do

desenvolvimento da razão. A tentativa pitagórica renova-se nesse vasto e

sombrio período da história européia, mas em condições completamente di-

versas. O Cristianismo nascente recebera, desde a Palestina, um duplo im-

pulso de racionalização: de um lado, a insistência do Cristo em libertar os

homens do dogmatismo fideísta dos judeus; de outro, a influência do pen-

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samento grego, bem patente nos próprios evangelhos. "Religião do livro",

como mais tarde a chamariam os muçulmanos, penetrou essa nova religião

no Império Romano em meio à efervescência da decadência, incentivando e

acalorando os debates em torno dos problemas da fé. Mas no próprio Cristi-

anismo a contradição dialética se acentuava de maneira ameaçadora. Com o

correr do tempo, a fé conseguiu superar sua antagonista, a razão, e submetê-

la ao seu império. Nada exprime melhor esse fato do que a fórmula medie-

val: "A filosofia é serva da teologia."

Os que ainda hoje acusam o Cristianismo de religião reacionária e

obscurantista, em virtude do medievalismo e suas conseqüências, esquecem-

se de que foi ele a única religião capaz de incentivar o desenvolvimento da

razão, e até mesmo de preservar a herança cultural greco-romana através do

período bárbaro. Esquecem-se de que próximo a Nazaré existia a Decápolis

grega, e que o próprio nome da nova religião derivou de uma palavra grega.

Esquecem-se ainda dos fatos históricos fundamentais do desenvolvimento

do Cristianismo na Europa, entre os quais devemos assinalar a aproximação

constante com o pensamento grego, o interesse pelas suas contribuições fi-

losóficas, a tentativa de "pensar o evangelho através da lógica grega", e até

mesmo a de platonizar e aristotelizar os fundamentos da nova religião.

A reação do fideísmo, entretanto, quase fez recuar o ímpeto da razão.

O passado mítico e místico da humanidade pesou fundamente na balança. O

próprio Cristo foi transformado em novo mito, e suas expressões alegóricas,

empregadas sempre num sentido racional, esclarecedor, converteram-se em

dogmas de fé. "O cordeiro que tira o pecado do mundo", imagem explicati-

va, referente à crença judaica na eficácia mágica do sacrifício de animais; o

resgate dos pecados pelo sangue, alegoria ligada à antiga superstição da era

agrária, de purificação pela efusão de sangue; a transubstanciação do pão e

do vinho em corpo e sangue do Cristo, idéia mágica, de sentido alegórico,

proveniente dos antigos "Mistérios" das religiões orientais; e assim tantas

outras, adquiriram a força de preceitos literais, de ordenações divinas. Ao

mesmo tempo, as formas do culto exterior, das religiões pagãs e judaicas, e

as próprias festas do paganismo, foram adaptadas à nova religião. O proces-

so de sincretismo religioso, hoje tão bem conhecido e estudado pelos soció-

logos, transformou o Cristianismo em novo domínio do mito e da mística.

Apesar de todo esse gigantesco esforço de asfixia da razão, esta, en-

tretanto, continuou a se desenvolver. Submetida ao império da fé, constran-

gida a servir aos dogmas, em vez de criticá-los, transformada em "serva da

teologia", nem por isso a razão pôde ser esmagada. Porque, mesmo para

servir ao dogmatismo, ela conseguia agitar e inquietar os espíritos. As here-

sias surgiram do chão "como cogumelos", segundo a expressão de Tertulia-

no, e mesmo depois que o princípio de usucapião, do direito romano, foi

empregado racionalmente contra a razão, em defesa do fideísmo asfixiante,

a razão continuou a abrir as suas brechas na muralha dogmática. O próprio

Tertuliano acabou como herege, e foram muitos os padres e doutores que,

embriagados pelo vinho grego da dialética, resvalaram para o abismo das

condenações.

A famosa Querela dos Universais, provocada pelo desafio de Porfí-

rio, discípulo de Plotino, marcará a fase decisiva do desenvolvimento da ra-

zão, no mais agudo período da consolidação da dogmática medieval. Figu-

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ras brilhantes de pensadores cristãos, como estrelas perdidas no céu escuro

do medievalismo, assinalarão o roteiro da razão, como um traço de giz no

quadro-negro da época. A partir dos hereges dos quatro primeiros séculos,

sufocados pela violência ortodoxa dos que se julgavam herdeiros exclusivos

da era apostólica, podemos gizar no quadro urna linha que passa por Agos-

tinho, no século V; por Erígena e Alcuíno, no século VIII; pelo dialético Be-

ranger de Tours, do século XI, que negava a Eucaristia; por Abelardo, com

seu "Sic et Non"; pelo trabalho dos "mestres de sentença", entre os quais se

destaca Pedro Lombardo para, afinal, chegarmos a Tomás de Aquino, que

representa a codificação das contradições medievais, com sua "Suma Teoló-

gica".

O drama da razão na Idade Média empolga pelos seus lances herói-

cos, mas ao mesmo tempo assusta, pelo trágico de seus episódios cruéis.

Abelardo é uma das figuras mais representativas, senão a própria encarna-

ção desse drama. Em pleno século XI, aceitava a supremacia da fé, mas

chegou a tentar uma explicação racional do dogma da Trindade, caindo na

condenação de heresia. Duas vezes foi condenado pelos Concílios. E para

que não faltasse, no simbolismo da sua vida, o colorido das paixões huma-

nas da época, temos o seu romance com Heloísa e o desfecho cruel a que é

levado. Dilthey considerou a Idade Média como um caldeirão, em que fervi-

am as idéias, misturando, num gigantesco processo de fusão, as contribui-

ções do pensamento greco-romano com os princípios judeu-cristãos. Esse

imenso "cozido", que teve de ser preparado através de um milênio, só estaria

completo nos albores do século XIV, logo após a codificação da "Suma

Teológica".

A luta entre a razão e a fé encontra, portanto, o seu epílogo, na Re-

nascença. Embora tenhamos de reconhecer a sua continuidade, mesmo em

nossos dias, a verdade é que ela agora se processa em plano secundário, co-

mo simples resíduo natural de épocas superadas. Descartes foi o espadachim

que deu o golpe final nesse duelo de milênios. Inspirado pelo Espírito da

Verdade, segundo a sua própria expressão, o filósofo do "cogito" libertou a

filosofia da servidão medieval e preparou o terreno para o advento do Espi-

ritismo. Mais tarde, Kardec poderia exclamar, como vemos no pórtico de "O

Evangelho Segundo o Espiritismo", que "Fé inabalável é somente aquela

que pode encarar a razão face a face, em todas as etapas da humanidade".

O que hoje se condena como racionalismo não é propriamente a ra-

zão, mas o absolutismo racional. A luta filosófica que se travou e ainda se

trava no nosso tempo já não se refere mais ao problema antigo e medieval

de razão e fé, mas às questões modernas, tipicamente metodológicas, de ra-

zão e intuição. É uma batalha que se trava no campo da teoria do conheci-

mento, e não mais no campo da superstição e do dogmatismo fideísta. Para

o Espiritismo, essa batalha está superada.

A razão é apenas o instrumento de que o Espírito, o Ser, em sua ma-

nifestação temporal, se serve para dominar o mundo. A intuição é o proces-

so direto de conhecimento, de que o Espírito dispõe em seu plano próprio de

ação — o espiritual — e que desenvolverá no plano material, na proporção

em que o dominar pela razão. Mas a importância da razão, no processo evo-

lutivo do homem, como forma de libertação espiritual, jamais poderá ser

negada. Ao estudar o Renascimento, compreendemos o papel do raciona-

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lismo, na emancipação espiritual do homem, e o motivo por que o Espiri-

tismo não pode abdicar de suas características racionalistas, para realizar a

sua missão emancipadora total.

4. A MATURIDADE ESPIRITUAL — O Renascimento assinala o

momento histórico de emancipação espiritual do homem. O processo de de-

senvolvimento da razão aparece completo, nesse homem novo que, com

Descartes, refuta o dogmatismo medieval e proclama os direitos do pensa-

mento. Não importa que o fenômeno cartesiano pertença ao século dezesse-

te, quando os albores da nova era já haviam surgido no catorze, no Quattro-

cento italiano. O processo, como vimos anteriormente, vinha de muito antes.

Mas assim como Abelardo encarna o drama medieval em todas as suas co-

res, Descartes é quem encarna a epopéia do Renascimento, a vitória da razão

sobre o fideísmo medieval. Nele e através dele é que a razão triunfa para

sempre, marcando os rumos de um novo mundo, para uma humanidade re-

novada.

Mas o episódio histórico que assinalará, como verdadeiro marco no

tempo, o momento de emancipação espiritual do homem, somente ocorrerá

em fins do século dezoito, na efervescência da Revolução Francesa. O esta-

belecimento do Culto da Razão, por Pierre Gaspar Chaumette, com a entro-

nização da bailarina Candeille, da Ópera de Paris, na presença de Robespier-

re, em 1793, na Catedral de Notre Dame, é um episódio que representa ver-

dadeira invasão do processo histórico pelo mito. Aliás, toda a Revolução

Francesa apresenta esse curioso aspecto de uma revivescência mítica em

pleno domínio da história. Foi um movimento histórico que se desenrolou

no plano da alegoria. Cada uma das suas fases, e ela inteira, no seu conjun-

to, aparecem como símbolos. Nesse vasto enredo alegórico, o Culto da Ra-

zão é a simbologia específica, o episódio lendário, que marca a vitória do

homem sobre a lenda e o mito.

Chaumette foi guilhotinado em 1794. Pagou caro e sem demora a o-

fensa cometida contra os poderes celestes, ao substituir em Notre Dame o

culto da Mater Divina pelo da Razão Humana. Assim entenderam, e ainda

hoje o entendem, os supersticiosos adversários do progresso espiritual do

homem. Mas o sentido do episódio não estava na heresia. Chaumette não

era um iconoclasta, nem um profanador de templos. Era apenas um intérpre-

te do momento histórico em que a Razão Humana proclamava a sua liberta-

ção da Mater Divina, ou seja, em que o homem se libertava da Fé Dogmáti-

ca, para usar o raciocínio, duramente conquistado através dos milênios.

Fácil compreender-se o horror que a audácia revolucionária provo-

cou no mundo. A bailarina Candeille foi conduzida à Catedral de Notre

Dame sobre um andor, vestida de azul, com barrete frígio na fronte, prece-

dida de um cortejo de moças vestidas de branco, ostentando faixas tricolo-

res. A Convenção decidira substituir a religião tradicional por essa religião

racionalista, e Robespierre presidiu a cerimônia. Uma estátua do Ateísmo

foi queimada durante a festa que se seguiu. A religião de Chaumette era es-

piritualista, rejeitava o ateísmo e o materialismo. Mas quem poderia enten-

der esse espiritualismo que não se submetia aos dogmas e aos sacramentos?

Até hoje, o episódio do Culto da Razão causa arrepios aos próprios historia-

dores, que passam rapidamente sobre ele. É qualquer coisa de monstruoso,

que deve ser esquecido.

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Durante dois meses, novembro e dezembro de 1793, o Culto da Ra-

zão se estendeu pela França. As igrejas foram desprovidas de seus aparatos

tradicionais e a Deusa Razão foi entronizada em cerimônias festivas. Carl-

yle, referindo-se à cerimônia de Notre Dame, exclama indignado que a bai-

larina Candeille era levada em procissão, e acrescenta: "escoltada por músi-

ca de sopro, barretes frígios, e pela loucura do mundo." Realmente, tudo pa-

recia loucura, naquele momento irreal. A tradição se esboroava. Os ídolos

caíam. Bispos e padres renunciavam. Carlyle acentua que surgiam, de todos

os lados: "curas com suas recém-desposadas freiras". E uma bailarina da ó-

pera era transformada em deusa, embora apenas de maneira simbólica.

Mas toda essa loucura nada mais era que a reação do espírito contra

a asfixia das tradições. Qual o momento de libertação que não traz consigo

esses arroubos? Passadas, porém, as emoções do início, o coração se acalma

e a razão restabelece as suas leis. Por outro lado, a "loucura do mundo", a

que Carlyle se refere, pode ser historicamente identificada com a própria ra-

zão, pois vemo-la sempre denunciada pelos tradicionalistas, pelos conserva-

dores renitentes, nos momentos cruciais da evolução humana. Os homens

velhos, como as castas e os povos envelhecidos — ensina Ingenieros — vi-

vem esclerosados em suas armaduras ideológicas e não podem compreender

senão como loucura as verdadeiras revoluções sociais, que afetam os inte-

resses estabelecidos e transformam as idéias dominantes.

A vitória da razão, na sua luta milenar contra o obscurantismo fideís-

ta, não podia deixar de parecer um momento de loucura. Porque, desenvol-

vida através de um laborioso processo de acúmulo de experiências, de gera-

ção a geração, de civilização a civilização, o seu crescimento se assemelha

ao das plantas que rompem o calçamento das ruas, para afirmar o poder da

vida sobre as construções artificiais. Sabemos hoje, pelo aprofundamento

que o relativismo crítico realizou na doutrina das categorias, de Kant, que a

razão é o sistema dessas categorias vitais, forjadas no processo da experiên-

cia sempre renovada. Assim como a planta, rompendo o calçamento, afirma

as exigências vitais da natureza, em toda parte, assim também a razão, vio-

lentando as estruturas das velhas convenções, afirma as exigências vitais da

consciência humana. A primeira dessas exigências é a liberdade, fundamen-

to e essência do homem, que asfixiada durante um milênio no caldeirão me-

dieval, explodiu com o fragor de uma detonação atômica, no período da Re-

volução Francesa.

Devemos ainda lembrar que o episódio do Culto da Razão tem o seu

lugar no centro de uma linha de acontecimentos históricos. Não foi um caso

isolado. Mesmo porque, na história, não existem casos dessa espécie. Já Ti-

vemos ocasião de lembrar o antecedente pitagórico da luta medieval entre a

razão e a fé. Jérome Carcopino estabeleceu as ligações entre o pitagorismo e

o cristianismo primitivo, nos seus estudos sobre a conversão do mundo ro-

mano. No período medieval já traçamos a linha que assinala o desenvolvi-

mento dessa luta. Basta que a retomemos agora em Descartes, para vermos a

sua continuidade no mundo moderno. Mas o mais curioso é vermos como

essa luta sugeriu, no pensamento francês, tão afeito à síntese, a idéia de uma

religião racional, que teve também o seu lento desenvolvimento.

Sem procurarmos entrar em maiores indagações, acentuemos que

Descartes fundava o seu racionalismo na inspiração do Espírito da Verdade.

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Aparente contradição, que mais tarde se esclarecerá. Logo a seguir, temos o

caso de Espinosa, que estabelece ao mesmo tempo a forma racional de uma

interpretação panteísta do cosmos e lança as bases, segundo Huby, "do mais

radical racionalismo escriturístico". Dessas tentativas, surgem muitas deri-

vações e paralelismos, que parecem desembocar na Convenção. Clootz pro-

põe que o Deus Único seja o povo, e a Deusa Razão, de Chaumette, levará

na mão o cetro de Júpiter-Povo.

Fracassada a tentativa revolucionária, e retomadas as igrejas, não

tardará muito a aparecer a tentativa de Auguste Comte, de fundação da Re-

ligião da Humanidade. Nessa linha milenar se insere o racionalismo espírita,

que surge com Kardec, em meados do século dezenove, como a síntese de-

finitiva de um grande processo histórico. O Espiritismo representa o triunfo

decisivo da razão. Não sobre a fé, com a qual se estabelece o equilíbrio, mas

sobre o dogmatismo fideísta, que em nome da última asfixiava a primeira.

*

- 2 -

Livro: Introdução à Filosofia Espírita

J. Herculano Pires

FIDEÍSMO CRÍTICO – KARDEC E A CRÍTICA DA FÉ

VERSUS

KANT E A CRÍTICA DA RAZÃO.

A Teoria Espírita do Conhecimento nos levou da simples sensação

até à captação da realidade espiritual. O Espiritismo, como síntese de todo o

progresso espiritual da Humanidade, repete, em seu desenvolvimento, o

processo filogenético do conhecer. O Espiritismo aparece, assim, como um

novo ser da família do conhecimento. À maneira das crianças que repetem,

em sua vida intra-uterina, o processo da evolução animal, o Espiritismo rei-

nicia a descoberta do mundo no campo fenomênico através da sensação e da

percepção, passando pelo desenvolvimento racional para atingir o plano me-

tafísico da fé. Mas a fé espírita apresenta-se como raciocinada e, portanto,

proveniente do raciocínio. É uma filha da razão, e, não obstante, tem como

pai o sentimento.

Se nos lembrarmos de que a razão, no plano existencial, procede da

sensação, veremos que a imagem do processo filogenético se justifica. Para

Kant a razão era um sistema de princípios universais e necessários, que or-

ganizava os dados da experiência sensível. Era o espírito humano, dotado do

poder de discernir e disciplinar as sensações, que organizava o conhecimen-

to a partir das categorias racionais. Para os neokantianos atuais, na corrente

do Relativismo Crítico de Octave Hammelin e René Hubert, as categorias da

razão se formam na experiência, são as próprias experiências sensoriais

transformadas em elementos dinâmicos do psiquismo. Na Filosofia Espírita

esses elementos são apriorísticos, segundo entendia Kant, mas como poten-

cialidades. A experiência sensível os desenvolve e atualiza, transforma a

potência em ato.

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Vemos assim que a sensação excita e desenvolve a razão, mas esta é

que dá sentido à sensação. O princípio inteligente universal possui os ger-

mes da razão, que a experiência sensorial faz desabrochar. No cap. “Pro-

gressão dos Espíritos”, de “O Livro dos Espíritos”, itens 114 a 127, vemos

que a evolução espiritual (semelhante ao desenvolvimento psíquico das cri-

anças) parte do geral indiferenciado (indiferenciação psíquica) para a dife-

renciação progressiva dos reinos vegetal, animal e hominal, atingindo neste

a plena individualização e buscando conscientemente a perfeição. Os espíri-

tos humanos aparecem no plano existencial dotados de inteligência (capaci-

dade de captar o nexo das coisas e das idéias), de livre-arbítrio (liberdade

de escolha) e da missão (obrigação a cumprir) a desenvolver na ordem uni-

versal ou na harmonia do Universo, aperfeiçoando-se moralmente para se

aproximarem de Deus. Isso nos mostra o conhecimento como um processo

que vai do finito (o plano fenomênico ou sensorial) ao infinito (Deus) de

maneira que sensação, razão e intuição aparecem como simples fases (de

desenvolvimento sucessivo mas coexistentes no dinamismo espiritual) da

evolução dos seres.

Razão e Fé constituem, portanto, elementos essenciais do espírito,

conjugados em torno de um eixo que é a Vontade. Esta, a Vontade, se repre-

senta pelo livre-arbítrio, o princípio da liberdade, sem o qual a Razão de

nada serviria e a Fé não teria sentido. Vê-se claramente a natureza sintética

do Espiritismo. Todas as antinomias, todas as contradições se resolvem nu-

ma visão mais ampla do problema universal. O racionalismo e o empirismo,

o positivismo e o idealismo, o materialismo e o espiritualismo, o ontologis-

mo e o existencialismo, e assim por diante, encontram o seu delta comum

numa visão gestáltica ou global do Universo. Não há motivo para as inter-

mináveis disputas a respeito de Razão e Fé, pois ambas pertencem à própria

substância do ser, que desprovido de uma delas já não poderia ser.

Fé e Razão estão implícitas na própria destinação dos seres e a Ra-

zão se desenvolve, ao mesmo tempo, apoiada na Fé e buscando a Fé. Vice-

versa, a Fé serve de apoio à Razão e nela encontra o meio de se desenvolver.

Para a demonstração desse sincronismo a Filosofia Espírita teve de cumprir

a tarefa de explicar a Fé. Isso levou Kardec a realizar a crítica da Fé, como

Kant se vira obrigado, para superar as divergências do empirismo e do ra-

cionalismo, a realizar a crítica da Razão. Kardec não faz um trabalho siste-

maticamente filosófico porque o seu objetivo não é fundar um sistema novo

de Filosofia, mas oferecer ao mundo “uma Filosofia Racional, livre dos pre-

juízos do espírito de sistema”, como já tivemos oportunidade de ver. Mas a

sua crítica da Fé penetra na raiz do problema. Depois de mostrar que ela

pertence à própria essência do ser, estuda o processo de sua manifestação.

Psicologicamente (itens 960 a 962 do L.E.) a fé se apresenta como “o senti-

mento inato de justiça” que todas as criaturas humanas possuem. Sentimento

que se apóia na “idéia inata de Deus”, nessa certeza intuitiva que faz do ho-

mem uma criatura naturalmente religiosa, a ponto de nunca haver existido

uma tribo ou um povo ateu. Assim, sociologicamente a Fé se manifesta co-

mo um elemento de ligação social, o cimento que embasa as estruturas da

sociedade e se concretiza nas instituições religiosas. Gnoseologicamente a

Fé se traduz na Lei de Adoração, lei natural que dirige todo o processo da

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evolução humana, individual e coletiva, e que só aparece definida e estuda-

da em “O Livro dos Espíritos”.

No Cap. XIX de “O Evangelho Segundo o Espiritismo” Kardec es-

tuda os aspectos imanente e transcendente da Fé. O imanente é o que ele

chama a Fé humana, que consiste na “confiança na realização de alguma

coisa, a certeza de atingir um fim”. O transcendente é a fé religiosa. O ho-

mem tem fé em si mesmo, na sua força, na sua inteligência, na sua capaci-

dade. Mas tem fé, também, no seu destino, nas forças sobrenaturais e em

Deus. Em todos os estágios de sua manifestação, desde as eras primitivas

até os nossos dias, a Fé se justifica pela Razão. Mas somente na era espírita,

no momento em que o Espiritismo desvenda novas perspectivas à compre-

ensão humana, a fé se confirma pela explicação racional e se demonstra de

maneira científica. A Fé cega do passado se transforma, então, na Fé racio-

nal e raciocinada do Espiritismo.

A posição crítica de Kardec, em relação à Fé, assemelha-se à de

Kant em relação ao problema da Razão. Ambos procuram tirar a Filosofia

de um impasse. No século dezoito esse impasse se referia à natureza e aos

limites do conhecimento. Ao dogma metafísico da Razão como elemento

único do conhecimento, e ao dogma empirista que colocava as sensações

nessa mesma posição, sucedera o agnosticismo de Hume, para quem todo

conhecimento se tornava impossível e toda verdade ilusória. Kant se propõe

a realizar uma crítica profunda da Razão e consegue chegar a uma síntese

parcial do processo gnoseológico, superando a contradição racional-

empírica. Recorre à Ética e nela se apóia para superar as contradições e ofe-

recer uma nova base à Metafísica destruída pela época das luzes. Kant res-

tabelece o valor da Razão e reconstrói os fundamentos da Fé. A natureza

moral do homem lhe oferece os elementos necessários à vitória sobre Hume.

De Kant para frente, a existência de Deus se torna uma verdade moral que

não depende dos sofismas racionais. Mas a fé, reduzida ao campo ético, fica

exposta às controvérsias que logo mais se travarão sobre o próprio valor da

Moral e que, ainda hoje conturbam o mundo filosófico.

O grande problema do século dezenove era o da validade da fé. Kar-

dec enfrenta esse problema com a simplicidade do bom-senso cartesiano.

Não necessita de entrar na arena das grandes especulações. Dispõe de duas

armas excelentes: o bom-senso e a pesquisa científica. O bom-senso lhe ofe-

rece o melhor da conquista kantiana: a liberdade de julgar, que prova a natu-

reza transcendente do Homem. A pesquisa científica lhe assegura a prova

positiva e até mesmo material dessa transcendência. Fica, pois, dispensado

dos circunlóquios infindáveis da argumentação filosófica. É com essas duas

armas que ele responde ao desafio do século. E com elas realiza a crítica ne-

cessária, que completa a especulação kantiana, provando a validade univer-

sal da fé.

A crítica de Kardec reveste-se das exigências fundamentais do cha-

mado espírito-crítico: é genética ou externa, examinando a origem e a ma-

nifestação objetiva da Fé no plano social; e é ontológica ou interna, investi-

gando a substância e o significado da Fé em si mesma, como um fato subje-

tivo. Nada falta, pois, à sua crítica da Fé para ser filosoficamente válida. No

item 4 (Questão 4) de “O Livro dos Espíritos”, encontramos a afirmação da

existência de Deus como necessidade lógica. A Filosofia Espírita reafirma o

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postulado cartesiano: “A idéia de Deus está no homem como a marca do o-

breiro na sua obra.” E completa o pensamento de Descartes de que: “Tirar

Deus do Universo seria como tirar o Sol do nosso sistema solar”, com o cé-

lebre postulado kardeciano: “Todo efeito inteligente tem uma causa inteli-

gente, e a grandeza da causa corresponde à grandeza do efeito.”

A posição espírita no tocante ao problema da Fé está hoje suficien-

temente confirmada pela investigação filosófica. O Relativismo Crítico, essa

corrente neokantiana a que já nos referimos, estabelece o primado moral das

exigências da razão no campo do conhecimento. A primeira dessas exigên-

cias, para o conhecimento do Universo e o desenvolvimento moral do ho-

mem é a existência de Deus. A segunda é a Fé em Deus, a confiança interna,

intuitiva, no seu poder e na sua providência, não como uma entidade pesso-

al, antropomórfica, mas como “a intuição de uma Presença e a identificação

a essa Presença”, segundo a expressão final de Hubert em “Esboço de Uma

Doutrina da Moralidade”. Por outro lado, a Fé espírita não se enquadra num

sistema dogmático e ritual: o seu ambiente natural e necessário é o da liber-

dade moral. Para Kardec, como para seu mestre Enrico Pestalozzi, a religião

verdadeira é a Moralidade, a que leva o homem, não à santidade convencio-

nal, mas à sua realização como ser moral. Kant e os neokantianos dizem o

mesmo.

O pecado de Kant foi o da dicotomia no plano do conhecimento, ne-

gar à Razão a possibilidade da metafísica. Essa posição estimulou, em nos-

sos dias, alguns pensadores que procuram manter-se no campo do empiris-

mo, entendendo que as ciências não podem ir além do sensível. Mas é tão

insustentável esse argumento que os próprios filósofos materialistas o têm

recusado. John Lewis, filósofo marxista inglês, afirma em seu livro “Ciên-

cia, Fé e Ceticismo”, que tal argumento implica a rejeição da realidade obje-

tiva das próprias leis e teorias científicas. Wilhelm Dilthey, o famoso filóso-

fo historicista alemão, estuda a formação da consciência metafísica do Oci-

dente a partir dos gregos, passando pela Idade Média e eclodindo na Renas-

cença, para concluir que o método experimental das ciências se fundamenta

na Fé.

Um trabalho de Alfred North Whitehead, “A Ciência e o Mundo

Moderno”, põe água na fervura demonstrando que toda a nossa estrutura

científica se alicerça numa fé ingênua e jamais demonstrada. Se a religião

parte do pressuposto da existência de Deus, de que tanto zombam alguns ci-

entistas, a verdade é que a Ciência faz o mesmo, partindo do pressuposto da

ordem universal. Essa ordem, por sua vez, exige um poder mantenedor, uma

força ou um conjunto de forças que garanta o controle e a regularidade per-

manente das funções criadoras e renovadoras da Natureza. O que Kardec

chamou de “sentimento intuitivo da existência de Deus”, o filósofo White-

head chama de “convicção instintiva”. Os termos se equivalem, mas a ex-

pressão de Kardec é mais adequada. Ouçamos Whitehead: “Em primeiro lu-

gar, não pode haver Ciência viva se não estiver difundida a convicção ins-

tintiva de uma ordem das coisas e, em particular, de uma ordem da Natu-

reza.” E acrescenta: “Usei intencionalmente a palavra instintiva.” Referin-

do-se ao agnosticismo da filosofia de David Hume, lembra Whitehead que a

Ciência o repeliu e continuou apegada à fé na ordem universal, sem o que

voltaríamos à Idade Média.

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Uma passagem curiosa de Whitehead nos lembra o Evangelho. Es-

creve ele: “A fé científica se manteve à altura das circunstâncias e aplainou

tacitamente a montanha filosófica.” É uma confirmação histórica e científica

de que a fé remove montanhas. Ai das Ciências se assim não fosse! E Whi-

tehead confirma a seguir a teoria de Dilthey: “Minha explicação é que a fé

na possibilidade da Ciência, originada antes da teoria científica moderna, é

um derivado inconsciente da teologia medieval”. Teríamos de voltar a Dil-

they para lembrar que em seu livro “O Homem e o Mundo” ele considera a

Idade Média como um longo período de treinamento da Razão, durante o

qual fermentou na Europa o racionalismo iluminista que deveria eclodir no

Renascimento e dar início ao mundo moderno.

Dessa maneira, a Ciência aparece no Renascimento como uma rea-

ção da Teologia Medieval contra si mesma. Por isso, Descartes surge como

o continuador de Abelardo, cujo racionalismo é levado pelo cartesianismo

“sob inspiração do Espírito da Verdade” (segundo as declarações do próprio

filósofo) às últimas conseqüências. Os pressupostos metafísicos da ordem

universal e das conexões de causa e efeito não puderam ser abandonados

nem mesmo pelo Positivismo e o Materialismo Dialético, pois sem esses

pressupostos seria impossível qualquer conhecimento e voltaríamos ao ag-

nosticismo destruidor de Hume. A fé científica permitiu o desenvolvimento

das Ciências e continua a sustentá-la.

E podemos ir além, acrescentando que neste momento, quando um

foguete cósmico é lançado no espaço (façanha que tem servido para novas e

ingênuas esperanças de parte dos negadores sistemáticos), o poder da Fé se

confirma e se demonstra. Por outro lado, o lançamento de um foguete é um

ato de submissão a Deus. Pois o que faz a inteligência humana para conse-

guir essa realização, senão curvar-se ante a realidade das leis universais e

obedecer rigorosamente a essas leis, sob pena de acabar numa catástrofe?

A Filosofia Espírita não é dicotômica, não divide a realidade em du-

as partes, não abre um abismo entre matéria e espírito. Pelo contrário, sua

posição é monista, sua cosmovisão é global. As leis naturais, físicas, psíqui-

cas, morais ou metafísicas são todas leis de Deus. A fé humana do vendedor

que confia em si mesmo, a Fé científica do sábio que confia na ordem uni-

versal, a Fé mística do crente que confia no seu santo ou no seu Deus são

todas manifestações de uma mesma lei, que é estudada em “O Livro dos Es-

píritos” como Lei de Adoração. Essa lei universal levou Pierre Gaspar

Chaumette a entronizar a bailarina Candeille no altar da Catedral de Notre

Dame como a Deusa Razão; fez o filósofo positivista Augusto Comte cair

de joelhos ante a deusa Clotilde de Vaux; obrigou Marx e Engels a procla-

marem a classe operária como o Messias da redenção socialista; e só encon-

trou, apesar de tudo isso, na Filosofia Espírita a sua análise, a sua crítica e a

sua explicação racional.

*

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ANTECEDENTES HISTÓRICOS

EMMANUEL

A REVOLUÇÃO FRANCESA

FRANÇA NO SÉCULO XVIII

Livro: A Caminho da Luz (Espírito. Emmanuel)

A independência americana acendera o mais vivo entusiasmo no â-

nimo dos franceses, humilhados pelas mais prementes dificuldades, depois

do extravagante reinado de Luís XV.

O luxo desenfreado e os abusos do clero e da nobreza, em propor-

ções espantosas, haviam ambientado todas as idéias livres e nobres dos en-

ciclopedistas e dos filósofos, no coração torturado do povo. A situação das

classes proletárias e dos lavradores caracterizava-se pela mais hedionda mi-

séria. Os impostos aniquilavam todos os centros de produção, salientando-se

que os nobres e os padres estavam isentos desses deveres. Desde 1614, não

mais se haviam reunido os Estados-Gerais, fortalecendo-se, cada vez mais, o

absolutismo monárquico.

De nada valera o esforço de Luís XVI convidando os espíritos mais

práticos e eminentes para colaborar na sua administração, como Turgot e

Malesherbes. O bondoso monarca, que tudo fazia para reerguer a realeza de

sua queda lamentável, em virtude dos excessos do seu antecessor no trono,

mal sabia, na sua pouca experiência dos homens e da vida, que uma era no-

va começava para o mundo político do Ocidente, com transformações dolo-

rosas que lhe exigiriam a própria vida.

Reunidos em maio de 1789 os Estados-Gerais, em Paris, explodiram

os maiores desentendimentos entre os seus membros, não obstante a boa-

vontade e a cooperação de Necker, em nome do Rei. Transformada a reuni-

ão em Assembléia Constituinte, precedida de numerosos incidentes, inicia-

se a revolução instigada pela palavra de Mirabeau.

ÉPOCA DE SOMBRAS

Derrubada a Bastilha em 14 de julho de 1789 e após a célebre Decla-

ração dos Direitos do Homem e do Cidadão, uma série de reformas se veri-

fica em todos os departamentos da vida social e política da França.

Aquelas renovações, todavia, preludiavam os mais dolorosos aconte-

cimentos. Famílias numerosas aproveitavam a trégua, buscando o acolhi-

mento de países vizinhos, e o próprio Luís XVI tentou atravessar a fronteira,

sendo preso em Varenas e reconduzido a Paris.

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Um mundo de sombras invadia as consciências da França generosa,

chamada, naquela época, pelo plano espiritual, ao cumprimento de sagrada

missão junto à Humanidade sofredora. Cabia-lhe tão-somente aproveitar as

conquistas inglesas, no sentido de quebrar o cetro da realeza absoluta, orga-

nizando um novo processo administrativo na renovação dos organismos po-

líticos do orbe, de acordo com as sábias lições dos seus filósofos e pensado-

res.

Todavia, se alguns Espíritos se encontravam preparados para a jor-

nada heróica daquele fim de século, muitas outras personalidades, infeliz-

mente, espreitavam na treva o momento psicológico para saciar a sede de

sangue e de poder. Foi assim que, depois de muitas figuras notáveis dos

primórdios revolucionários, surgiram espíritos tenebrosos, como Robespier-

re e Marat. A volúpia da vitória generalizou uma forte embriaguez de morti-

cínio no ânimo das massas, conduzindo-as aos mais nefastos acontecimen-

tos.

CONTRA OS EXCESSOS DA REVOLUÇÃO

A Revolução Francesa, desse modo, foi combatida imediatamente

pelas outras nacionalidades da Europa, que, sob a orientação de Pitt, Minis-

tro da Inglaterra, sustentaram contra ela, e por largos anos, uma luta de mor-

te.

A Convenção Nacional, apesar das garantias que a Constituição de

1791 oferecia à pessoa do Rei, decretou-lhe a morte na guilhotina, verifi-

cando-se a execução aos 21 de janeiro de 1793, no local da atual Praça da

Concórdia. Em vão, tenta Luís XVI justificar sua inocência ao povo de Pa-

ris, antes que o carrasco lhe decepasse a cabeça. As palavras mais sinceras

afluem-lhe aos lábios, suplicando a atenção dos súditos, numa onda de lá-

grimas e de sentimentos que lhe burburinhavam no coração, não obstante a

sua calma aparente. Renovam-se as ordens aos guardas do cadafalso e rufam

os tambores com estrépito, abafando as suas afirmativas.

A França atraía para si as mais dolorosas provações coletivas nessa

torrente de desatinos. Com a influência inglesa, organiza-se a primeira coli-

gação européia contra o nobre país.

Mas, não somente nos gabinetes administrativos da Europa se pro-

cessavam providências reparadoras. Também no mundo espiritual reúnem-

se os gênios da latinidade, sob a bênção de Jesus, implorando a sua proteção

e misericórdia para a grande nação transviada. Aquela que fora a corajosa e

singela filha de Domrémy volta ao ambiente da antiga pátria, à frente de

grandes exércitos de Espíritos consoladores, confortando as almas aflitas e

aclarando novos caminhos. Numerosas caravanas de seres flagelados, fora

do cárcere material, são por ela conduzidos às plagas da América, para as

reencarnações regeneradoras, de paz e de liberdade.

O PERÍODO DO TERROR

A lei das compensações é uma das maiores e mais vivas realidades

do Universo. Sob as suas disposições sábias e justas, a cidade de Paris teria

de ser, ainda por muito tempo, o teatro de trágicos acontecimentos. Foi as-

sim que se instalou o hediondo tribunal revolucionário e a chamada junta de

salvação pública, com os mais sinistros espetáculos do patíbulo. A consci-

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ência da França viu-se envolvida em trevas espessas. A tirania de Robespi-

erre ordenou a matança de numerosos companheiros e de muitos homens

honestos e dignos. Erradamente, Carlota Corday entregou-se ao crime na re-

sidência de Marat, com o propósito de restituir a liberdade ao povo de sua

terra e expiando o seu ato extremo com a própria vida. Ocasiões houve em

que subiram ao cadafalso mais de vinte pessoas por dia, mas Robespierre e

seus sequazes não tardaram muito a subir igualmente os degraus do patíbu-

lo, em face da reação das massas anônimas e sofredoras.

A CONSTITUIÇÃO

Depois de grandes lutas com o predomínio das sombras, conseguem

os gênios da França inspirar aos seus homens públicos a Constituição de

1795. Os poderes legislativos ficavam entregues ao "Conselho dos quinhen-

tos" e ao "Conselho dos anciães", ficando o poder executivo confiado a um

Diretório composto de cinco membros.

Estabelece-se dessa forma uma trégua de paz, aproveitada na recons-

trução de obras notáveis do pensamento. Os centros militares lutavam contra

os propósitos de invasão de outras potências européias, cujos tronos se sen-

tiam ameaçados na sua estabilidade, em face do advento das novas idéias do

liberalismo, e os políticos se entregavam a uma vasta operosidade de edifi-

cação, vingando nesse esforço as mais nobres realizações.

Contudo, a França, depois dos seus desvarios de liberdade, estava

ameaçada de invasão e desmembramento. Povos existem, porém, que se fa-

zem credores da assistência do Alto, no cumprimento de suas elevadas obri-

gações junto de outras coletividades do planeta. Assim, com atribuições de

missionário, foi Napoleão Bonaparte, filho de obscura família corsa, chama-

do às culminâncias do poder.

NAPOLEÃO BONAPARTE

O humilde soldado corso, destinado a uma grande tarefa na organi-

zação social do século XIX, não soube compreender as finalidades da sua

grandiosa missão. Bastaram as vitórias de Árcole e de Rívoli, com a paz de

Campoformio, em 1797, para que a vaidade e a ambição lhe ensombrassem

o pensamento.

A expedição ao Egito, muito antes de Waterloo, assinalava para o

mundo espiritual a pouca eficácia do seu esforço, considerado o espírito de

orgulho e de imperialismo que predominou nas suas energias transformado-

ras. Assediado pelo sonho de domínio absoluto, Napoleão foi uma espécie

de Maomet transviado, da França do liberalismo. Assim como o profeta do

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Islã pouco se aproximara do Evangelho, que a sua ação deveria validar,

também as atividades de Napoleão pouco se aproximaram das idéias gene-

rosas que haviam conduzido o povo francês à revolução. Sua história está

igualmente cheia de traços brilhantes e escuros, demonstrando que a sua

personalidade de general manteve-se oscilante entre as forças do mal e do

bem. Com as suas vitórias, garantia a integridade do solo francês, mas espa-

lhava a miséria e a ruína no seio de outros povos. No cumprimento da sua

tarefa, organizava-se o Código Civil, estabelecendo as mais belas fórmulas

do direito, mas difundiam-se a pilhagem e o insulto à sagrada emancipação

de outros, com o movimento dos seus exércitos na absorção e anexação de

vários povos.

Sua fronte de soldado pode ficar laureada, para o mundo, de tradi-

ções gloriosas, e verdade é que ele foi um missionário do Alto, embora traí-

do em suas próprias forças; mas, no Além, seu coração sentiu melhor a am-

plitude das suas obras, considerando providencial a pouca piedade da Ingla-

terra que o exilou em Sta. Helena após o seu pedido de amparo e proteção.

Santa Helena representou para o seu espírito o prólogo das mais dolorosas e

mais tristes meditações, na vida do Infinito.

ALLAN KARDEC

A ação de Bonaparte, invadindo as searas alheias com o seu movi-

mento de transformação e conquistas, fugindo à finalidade de missionário da

reorganização do povo francês, compeliu o mundo espiritual a tomar enérgi-

cas providências contra o seu despotismo e vaidade orgulhosa. Aproxima-

vam-se os tempos em que Jesus deveria enviar ao mundo o Consolador, de

acordo com as suas auspiciosas promessas.

Apelos ardentes são dirigidos ao Divino Mestre, pelos gênios tutela-

res dos povos terrestres. Assembléias numerosas se reúnem e confraterni-

zam nos espaços, nas esferas mais próximas da Terra. Um dos mais lúcidos

discípulos do Cristo baixa ao planeta, compenetrado de sua missão consola-

dora, e, dois meses antes de Napoleão Bonaparte sagrar-se imperador, obri-

gando o papa Pio VII a coroá-lo na igreja de Notre Dame, em Paris, nascia

Allan Kardec, aos 3 de outubro de 1804, com a sagrada missão de abrir ca-

minho ao Espiritismo, a grande voz do Consolador prometido ao mundo pe-

la misericórdia de Jesus-Cristo.

*

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PRIMEIRA PARTE

KANT E A CRÍTICA DA RAZÃO

Livro: Ensinamentos Básicos dos Grandes Filósofos

S.E. Frost Jr.

Concepção de Deus no Pensamento de Kant

Deus, na teoria de Emmanuel Kant, é a noção ou a idéia mais elevada

que o homem possa ter, a idéia da entidade mais alta, do Todo Absoluto, que

inclui e abrange tudo. Essa idéia transcende a experiência e por meio dela

não pode ser obtida. É um dos resultados da razão, que enfeixa em si todos

os acontecimentos.

Kant insiste para que não nos esqueçamos de ter formado a idéia so-

bre o todo da experiência. Ela nada é que possamos saber, como se dá com

as idéias a que chegamos através da experiência, pois não podemos sentir

todo o universo. Depois de termos formado essa idéia, fazemos desse todo

uma entidade e personificamo-la. Então ela vem a ser Deus para nós.

Kant ataca os argumentos pró-existência de Deus, apresentados pelos

filósofos que o antecederam, procurando provar que cada um está repleto de

inconsistências e ilogismos. Conquanto seja impossível provar a existência

de Deus pela razão, torna-se, entretanto, necessário crer em Sua Existência

em benefício da vida moral. Precisamos dessa Idéia do Todo, dessa teologia

transcendente, como fundamento para nossos princípios éticos.

Embora Kant critique os argumentos de outros em favor da existên-

cia de Deus, oferece seu próprio argumento ou prova, que crê assentar em

base filosófica mais verdadeira que os demais. Acreditava que cada indiví-

duo encontrou, inerente à própria razão, o imperativo categórico: “Age so-

mente de acordo com uma máxima que possas, ao mesmo tempo, querer que

se converta em uma lei geral; age de modo a poderes desejar que todo o

mundo siga o princípio de teu ato.” Isso constitui uma ordem para que o in-

divíduo viva de acordo com uma vontade absolutamente sã. Mais ainda, vi-

ver assim é merecer a felicidade. Por conseguinte, a felicidade e a vida justa

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deveriam estar sempre unidas no mundo. É o que não se dá muitas vezes.

Vemos pessoas boas muito infelizes; e outras, muito ruins, que são felizes.

Deve, portanto, haver um Deus que seja perfeitamente sábio, bom e

poderoso para unir a felicidade à bondade. Deus, segundo Kant, pode saber

tudo, é um Ser que possui nossas idéias morais e tem absoluto poder.

Vê-se que a teoria de Kant é um novo desenvolvimento da de Hume.

Não podemos saber, pela razão, que Deus exista ou o que possa ser, se exis-

tir. Ninguém pode provar coisa alguma sobre Ele, quer por argumentos quer

pela razão. Mas podemos, com base em nossas fracas experiências formar

uma idéia sobre o Todo do universo e personificá-lo. Além disso, precisa-

mos da idéia de Deus como fundamento de nossa vida moral. Kant chamou

essa idéia, sobre Deus, transcendente, porquanto transcende nossa experiên-

cia. É também uma idéia necessária para uma vida justa, para a moral.

Esse ponto de vista é a resposta de Kant ao ceticismo. Os filósofos

conduzidos por John Locke, em seus argumentos ardentes, declararam que o

homem só pode ter conhecimento daquilo que sente. Mas o homem não po-

de sentir Deus. Na melhor das hipóteses, pode desenvolver suas fracas e pe-

quenas idéias até ao infinito e chamar a isso Deus. Kant concordou com os

que afirmavam não podermos ter conhecimento de Deus através da razão,

mas acrescentou que precisamos de Deus. Por conseguinte, a razão pode

lembrar Deus como uma incógnita necessária.

*

Concepção de Kant Sobre o Universo

A filosofia alemã atingiu seu ponto culminante com a obra de Em-

manuel Kant, um dos grandes criadores de sistemas filosóficos de todos os

tempos. Seu problema fundamental jazia na questão: Que é o conhecimento

e como é ele possível? Que podemos realmente saber e como? Concluiu que

somente podemos conhecer nossas experiências. Temos sensações. Vemos

uma cadeira. Por ser nosso espírito tal como é, recebemos essa sensação de

modo definido. Não conhecemos, entretanto, a causa dessa sensação.

De acordo com essa teoria, não podemos conhecer o universo que e-

xiste fora de nosso pensamento. Nosso espírito recebe sensações e amolda-

as em idéias por serem o que são. É impossível saber o que é o mundo fora

de nosso espírito.

Podemos, entretanto, formar, pela Razão, uma Idéia do mundo, do

universo. Ao sentirmos o mundo no espírito, vemos que não tem começo no

tempo em que os corpos, nele, não podem ser divididos indefinidamente; tu-

do se realiza segundo as leis da natureza e não há um Ser absolutamente ne-

cessário que faz o mundo existir. Temos que aceitar a teoria sobre o mundo

da experiência porque não podemos senti-lo diferentemente.

Mas a Razão pode também construir um mundo de Idéias que não

tem começo no tempo, onde os corpos podem ser divididos indefinidamente

e no qual há liberdade e um Ser absolutamente necessário, Deus, que é a

causa de tudo. Conquanto não possamos conhecer tal mundo através da ex-

periência, podemos discutir sua existência e agir como se fosse real. Kant

acreditava, de fato, que o homem deve agir como se existisse essa espécie de

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mundo, se quiser preservar sua integridade moral. Pois, na base de tal mun-

do, Kant inferia a existência de Deus, da liberdade e da imortalidade. Além

disso, demonstrou que toda bondade e toda moralidade dependem de ação,

como se existisse essa espécie de mundo. A idéia deste mundo, afirmou, é

reguladora – orienta o homem para certos objetivos. Acreditando na existên-

cia dele, o homem esforça-se em ser bom.

Assim, para Kant, existem dois mundos: o da experiência, o fenome-

nal, e o da razão, o numenal. Um é científico, o outro, prático.

Kant ensinava que o princípio fundamental do mundo prático é a lei

moral, que se pode enunciar como segue: “Age sempre de acordo com uma

máxima ou com determinado princípio que possas converter em lei univer-

sal; age como se quisesses que todo o mundo seguisse o princípio de tua a-

ção.” A isso chamou ele imperativo categórico.

Se alguém age de maneira a que o princípio de sua ação se torne uma

lei para todos os homens, deve estar livre para agir dessa maneira. Kant co-

locou, pois, a liberdade no centro de seu mundo prático.

*

Espírito e Matéria

Com Kant surgiu uma teoria bem definida sobre o espírito, como

única fonte do conhecimento. Embora admitisse a existência de um mundo

diferente do mundo do espírito, mundo do qual o último recebe impressões,

afirmou que o espírito não pode conhecer este mundo, esta coisa-em-si-

mesma. O espírito recebe impressões segundo sua natureza ou suas catego-

rias e molda-as em padrões que não se harmonizam com o mundo fora dele

e sim com a natureza do espírito.

Conhecemos, pois, somente aquilo a que o espírito dá forma e a-

molda. Por causa das necessidades de natureza moral, podemos crer na e-

xistência dessa coisa-em-si-mesma, mas o espírito não pode prová-lo, tam-

pouco provar que seja destituída de espírito. Estamos encerrados em nosso

espírito e temos que interpretar tudo em termos dele. O espaço e o tempo,

por exemplo, não são realidades que existam por si, porém, por meios que

o espírito possui para receber sensações e dar-lhes forma. “Elimine-se o in-

divíduo pensante – argumentava Kant – e todo o mundo corpóreo desapa-

recerá, pois ele nada mais é que aparência, na sensibilidade do indivíduo.”

O ponto de vista de Kant deu origem ao grande movimento idealista

alemão do século XVIII. Os filósofos que o seguiram acharam que a única

solução para o problema do espírito e da matéria estava em eliminar esta

última. Parecia ser esta a concepção mais lógica. O espírito parecia eviden-

te, mas a matéria tinha que ser interpretada como algo diferente e fora do

espírito. Isso, porém, trouxe à baila o problema de como essas duas coisas,

tão diferentes, pudessem atuar uma sobre a outra. O problema, e todas as

suas dificuldades, podiam ser eliminados abolindo-se a matéria. Tal solu-

ção, conforme vimos, não era nova, mas foi grandemente fortalecida pelos

trabalhos de Kant. Ele indicou o caminho e ofereceu seguras provas de que

era o certo e verdadeiro.

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33

*

Teoria de Kant Sobre a Importância do Homem

Aquele ousado desafio da tendência da época, aquele apelo para se

voltar à natureza, em toda a sua riqueza e pujança, exerceu, talvez, influên-

cia sobre o maior de todos os filósofos modernos, Emmanuel Kant.

Kant empreendeu a tarefa de restaurar o homem em seu lugar domi-

nante, no universo. Impunha-se, portanto, responder às questões suscitadas

pelos filósofos que o tinham precedido. Foi sua tarefa “limitar o ceticismo

de Hume, por um lado, e o velho dogmatismo, por outro lado, e refutar e

destruir o materialismo, o fatalismo, o ateísmo, bem como o sentimentalis-

mo e as superstições”. O empreendimento não era insignificante; para sua

realização, foi necessária a vinda de um espírito da grandeza de Kant.

O homem – doutrinou ele – faz parte do mundo de objetos e coisas.

Mas na verdade, embora possa ter certeza da existência deste mundo sepa-

rado de si, não pode conhecê-lo. Tudo que pode conhecer é o mundo que

seu espírito, dada a sua natureza, constrói das sensações recebidas pelo con-

tato com o mundo exterior. Nisso, ele concorda com a parte essencial das

teorias de Locke, Berkeley e Hume. O conhecimento acha-se limitado às i-

déias.

Mas isso não é tudo. O homem pode raciocinar e, nessa base, formar

idéias sobre o mundo exterior, Deus, liberdade e imortalidade. Pode, pois,

em virtude da razão, agir como se houvesse um mundo exterior, como se es-

te e ele mesmo fossem obra de um Criador, como se fosse livre e possuísse

uma alma imperecível.

Desse modo, embora Kant reconheça que, do ponto de vista do co-

nhecimento, o homem se vê tolhido dentro de suas próprias idéias, isso

constitui apenas parte do quadro. A outra é que há fatores, dentro do ho-

mem, que justificam admitir ele a existência de tudo por que Rousseau se

batia, e mais ainda. Nisso, ficaria restaurada a dignidade do homem no uni-

verso. Kant acreditava ter solucionado os problemas deixados pelos seus

predecessores e tê-los resolvido bem. Acreditava que o homem pode levan-

tar-se novamente e enfrentar o universo, cônscio de poder compreendê-lo e

controlá-lo dentro de seu destino. Tinha certeza de que devolvera ao homem

a dignidade que o ceticismo de Hume havia virtualmente destruído.

Kant deu ao mundo filosófico a chave para tudo que parecia valioso

aos homens. Sugeriu, com argumentos fortes e atraentes, que existe uma es-

pécie de verdade mais elevada que a oferecida pela inteligência humana: a

lei moral, dentro de nós, que garante o mundo dos valores. Essa chave fas-

cinou os adeptos imediatos de Kant. Eles trataram, por conseguinte, de de-

senvolver a teoria ao máximo e, com isso, dar ao homem a certeza de sua

força e dignidade no universo.

*

A Alma e a Imortalidade Segundo Kant

Foi Kant quem reuniu as muitas correntes do pensamento num sis-

tema que provou ser uma das mais importantes realizações da história do

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pensamento humano. Afirmou que o intelecto somente pode conhecer aqui-

lo que experimentamos. Contudo, a razão pode ir além e conceber um mun-

do do qual não temos, de fato, experiência. Ela, portanto, transcende, eleva-

se acima da experiência e fornece-nos princípios transcendentes.

A razão dá ao homem uma idéia da alma como resultado de todos os

processos mentais. Conquanto não sintamos a alma, a idéia sobre ela tem

valor, e podemos, portanto, nela pensar.

Como não pode haver conhecimento sem conhecedor, assiste-nos

concluir que há tal coisa como alma, que age como se ela existisse. Embora

não possamos provar a existência de uma alma imortal, podemos agir como

se existisse, porquanto vale realmente fazê-lo. Kant afirmava que o emprego

dessa idéia é regulador, porquanto unifica muitos conceitos nossos e siste-

matiza muitas de nossas idéias. A idéia sobre a alma serve como ponto fo-

cal, para o qual podemos orientar as experiências conscientes.

Além disso, a idéia sobre a alma tem valor ético. É resultado da lei

moral e serve como base para a vida moral. A lei moral exige boa vontade e

é de tal forma regulada que age sempre de modo à sua ação poder muito

bem tornar-se geral, pelo menos como princípio. Essa boa vontade deve ser

realizável. Mas o homem não pode tornar-se absolutamente bom em todo

momento, durante sua existência mortal. Conseqüentemente, esse princípio

torna necessária a imortalidade da alma, a fim de as exigências da lei moral

poderem ser atendidas. Durante esse tempo infinito, tornado necessário e

possível, a alma humana encaminha-se para a perfeição, para a completa re-

alização das exigências da lei moral.

*

O Bem e o Mal ou Moral. A Filosofia Moral de Kant

O problema básico de Kant foi descobrir o significado do que é justo

e injusto, do bem e do mal. Perguntou: “Como definir o dever e o que impli-

ca a definição?” Ao atacar o problema, aceitou, como fundamental, o prin-

cípio traçado por Rousseau de que a única coisa absolutamente boa, no

mundo, é a vontade humana governada pelo respeito para com as leis morais

ou a consciência do dever. Ato moral é aquele que é praticado, mais respei-

tando as leis morais do que com vistas a ganhos egoístas ou com vistas à

simpatia dos outros.

Assim, segundo Kant, não se devem considerar as conseqüências pa-

ra determinar o que é justo ou injusto num ato. Não é questão de grande im-

portância saber se os resultados de um ato produzem felicidade ou dor. Se o

agente pratica o ato com boas intenções, respeitando as leis morais, o ato é

bom.

As leis morais, no pensamento de Kant, são inerentes à própria ra-

zão. Estão a priori, antes da experiência, na própria natureza do pensamento

humano. Enunciando uma sentença, diz: “Age somente de acordo com uma

máxima que possas, ao mesmo tempo, querer que se converta em uma lei

geral; age de modo a poderes desejar que todo o mundo siga o princípio de

teu ato.” Em cada caso – julgava Kant – essa regra, esse imperativo categó-

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rico, é um critério seguro sobre o que constitui o bem e o mal. O ato que de-

sejamos seja praticado por alguém, ou por todo o mundo, é um ato bom.

Essa lei, sendo compreendida inteiramente, está em todos. Talvez

não seja reconhecida nos termos enunciados, mas quem se der ao trabalho

de pensar reconhecerá que a vida humana só é possível nessa base moral.

Tentasse o homem agir contrariamente a esse princípio e seria caótica a as-

sociação humana.

Kant enunciou outra lei, implicando o imperativo categórico: “Age

sempre de modo a tratar a Humanidade como um fim, tanto em tua própria

pessoa como na dos outros, e nunca te sirvas dela como um simples meio.”

Nisso está afirmado o valor fundamental do indivíduo. Nossos atos não de-

vem ser tais que usemos o indivíduo como um meio para atingir nossos fins,

ao contrário, devem ser destinados a servir a outros, como sendo esses os

seus próprios fins.

Segundo Kant, existe, pois, implantada na própria razão humana,

uma lei básica e fundamental que dirige todas as atividades morais. Ela exi-

ge que cada um aja sempre como se fosse o supremo monarca do mundo, e

que o princípio de seus atos se torne o dos atos de todos. Se cada indivíduo

medir seus atos por esse imperativo categórico, poderá afirmar, inquestiona-

velmente, se o mesmo é justo ou não.

*

Destino e Livre-arbítrio Segundo Kant

Diz-se que Kant, recebendo um exemplar de Émile, de Rousseau, fi-

cou tão fascinado pelos argumentos ali expendidos, e pelo ponto de vista a-

dotado, que deixou de dar seu costumeiro passeio da tarde. Deixar de dar tal

passeio afigurava-se quase uma grande tragédia na comunidade, pois o velho

filósofo fazia-o diariamente, com tal pontualidade que os aldeões podiam a-

certar seus relógios pela sua aparição à porta da casa. Foi Rousseau quem

encorajou Kant no grande esforço de salvaguardar a liberdade do homem

num mundo de ciências.

Kant ensinava que não há prova de liberdade enquanto se apegar à

experiência. Encontramos nesta as relações necessárias: causa e efeito. Não

podemos, portanto, provar teoricamente a existência do livre-arbítrio. Até aí

Kant concordava com os mecanicistas, aqueles que viam o mundo como uma

série de leis mecânicas e operações que se entrelaçam. Não há, do ponto de

vista da razão pura prova que apóie a crença no livre-arbítrio.

Mas Kant acreditava que o espírito tem a faculdade da razão, facul-

dade empenhada em reunir os vários processos, eventos e ocorrências em um

todo ou idéias. Essas idéias, embora não sejam questões de experiência,

constituem bases legítimas para o raciocino do homem. E os resultados desse

raciocínio devem ser aceitos como bases legítimas para crenças e atos.

Não é na experiência que se vai encontrar a idéia de liberdade. Nela

encontramos apenas causa e efeito ad infinitum. Mas, argumentava Kant, as-

siste-nos o direito de ir além da experiência até às idéias transcendentes, i-

déias criadas pela razão independentemente da experiência.

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Além disso, é necessário, para preservar a vida moral, que o homem

creia na liberdade. É uma idéia prática, uma crença necessária. O livre-

arbítrio é, portanto, uma idéia que o homem constrói por causa das exigên-

cias de sua natureza moral. É necessário e, portanto, legítimo, mesmo que

não possa ser provado pela experiência.

O homem é, pois, segundo Kant, um agente livre. Pode agir volunta-

riamente, não sendo, portanto, seus atos, elos numa cadeia de causas natu-

rais. O homem, como agente livre, cria o ato que, ao ser visto pelo espírito,

faz parte de uma intrincada tela de causa e efeito.

É impossível, sustentava Kant, provar sempre que a vontade é livre.

Contudo, por ser necessária tal crença, podemos agir e viver como se a von-

tade fosse livre. Quando assim agimos e vivemos, descobrimos serem possí-

veis certos discernimentos morais. Por exemplo, podemos responsabilizar

cada indivíduo pelos seus atos e estar em condições de lutar por uma vida

melhor. Não estamos mergulhados num desespero moral total, nem colhidos

nesse inevitável emaranhado de causa e efeito que caracteriza o mundo da

natureza. A vida torna-se mais significativa para nós, como seres humanos,

quando podemos crer que aquilo que fazemos representa o resultado da livre

escolha e tem, com isso, uma significação moral. A consciência moral do

homem implica ser livre a vontade.

Nessa teoria, Kant reserva um lugar para os valores que a Ciência de

seu tempo estava arrancando celeremente do cenário. Concordou com os ci-

entistas em que a experiência não dava lugar para esses valores, os quais, en-

tretanto, se tornavam tão necessários que nos sentíamos justificados em agir

como se eles fossem reais.

Elemento básico para essa atitude foi a tese de que existe uma verda-

de mais elevada que a das ciências, a verdade da natureza moral do homem.

As leis morais, no homem, constituem a garantia do mundo além dos senti-

dos, um mundo no qual se aplica a liberdade. A fé nesse mundo foi o modo

com que Kant escapou do aterrador mundo da experiência.

*

As idéias e o pensamento no entender de Kant

Kant procurou vencer as dificuldades de ambos os extremos, afir-

mando que recebemos impressões do ambiente, da coisa-em-si-mesma, mas

que a natureza do espírito é tal, que ele dá forma a essas impressões trans-

formando-as em idéias. Segundo Kant, o espírito semelha uma bacia com

muitas cavidades e estranhas depressões no contorno. Quando nela se der-

rama água, esta toma-lhe a forma e enche todas as cavidades. Do mesmo

modo, o ambiente derrama impressões no espírito que as recebe, assumindo

elas a forma de acordo com a natureza desse espírito.

O conhecimento é, entretanto, universal. Isso é devido ao fato de se-

rem todos os espíritos fundamentalmente semelhantes. Todos têm certas ca-

tegorias fundamentais, como totalidade, unidade, pluralidade, realidade, etc.

Por serem todos da mesma natureza geral, pensamos de modo muito igual.

Ordenamos as impressões transformando-as em idéias. Mas estas são idéias

do espírito e não podem ser aplicadas a um mundo fora dele. Podemos agir

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como se existissem e podemos corrigir nossas idéias em termos das impres-

sões adicionais que recebemos. Além disso, não podemos ir, porém. Nossas

idéias resultam da espécie de órgãos de pensamento que temos, sendo de-

terminadas pela sua natureza.

Podemos, naturalmente, reunir as idéias em idéias grandes e gerais,

agindo como se a generalização fosse verdadeira. De fato, para satisfazer

nossa natureza moral, precisamos agir assim. Mas, nesse ponto, estamos tra-

tando de juízos e não de idéias que possam ser provadas.

*

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J. Herculano Pires e Maria Virgínia

FICHA DE IDENTIFICAÇÃO LITERÁRIA

J. HERCULANO PIRES, nasceu em 25/09/1914 na antiga província

de Avaré, no Estado de São Paulo e desencarnou em 09/03/1979, filho de

José Pires Corrêa e de Da. Bonina Amaral Simonetti Pires. Fez seus estudos

em Avaré, Itai e Cerqueira César. Revelou sua vocação literária desde que

começou a escrever. Aos 16 anos publicou seu primeiro livro, Sonhos Azuis

(contos) e aos 18, o segundo livro Coração (poemas livres e sonetos). Já co-

laborava nos jornais e revistas das cidades de São Paulo e do Rio de Janeiro.

Foi um dos fundadores da União Artística do Interior. Mudou-se para Marí-

lia em 1940 onde adquiriu o jornal Diário Paulista e o dirigiu durante 6 a-

nos. Com José Geraldo Vieira, Zoroastro Gouveia, Osório Alves de Castro,

Nichemja Sigal, Anathol Rosenfeld e outros promoveu, através do jornal,

um movimento literário na cidade e publicou Estradas e Ruas (poemas) que

Érico Veríssimo e Sérgio Millet comentaram favoravelmente. Em 1946 mu-

dou-se para São Paulo e lançou seu primeiro romance, O Caminho do Meio,

que mereceu criticas elogiosas de Afonso Schimidt, Geraldo Vieira e Wil-

son Martins. Repórter, redator, secretário, cronista parlamentar e critico lite-

rário dos Diários Associados onde manteve, também, por quase 20 anos, a

coluna espírita com o pseudônimo de Irmão Saulo. Exerceu essas funções

na Rua 7 de Abril por cerca de trinta anos. Em 1958 bacharelou-se em Filo-

sofia pela Universidade de São Paulo, e pela mesma Universidade licenciou-

se em Filosofia tendo publicado uma tese existencial: O Ser e a Serenidade.

Autor de oitenta e um livros de Filosofia, Ensaios, Histórias, Psicologia, Es-

piritismo e Parapsicologia sendo a sua maioria inteiramente dedicada ao es-

tudo e à divulgação da Doutrina Espírita, e vários de parceria com Chico

Xavier. Lançou, recentemente, a série de ensaios Pensamento da Era Cós-

mica e a série de romances de Ficção Científica e Paranormal. Foi diretor-

fundador da Revista de Educação Espírita publicada pela Edicel. Em 1954

publicou Barrabás que mereceu Prêmio do Departamento Municipal de

Cultura de São Paulo em 1958, constituindo o primeiro volume da trilogia

Caminhos do Espírito. Em 1975 publicou Lázaro e, com o romance Mada-

lena, editado pela Edicel em maio de 1979, a concluiu.

Ao desencarnar, deixou prontos vários originais os quais vêm sendo

publicados pelas Editoras Paidéia e Edicel.

Livro Introdução à Filos. Espírita

TEORIA ESPÍRITA DO CONHECIMENTO:

Como Conhecemos? O que conhecemos? O processo gnoseológi-

co.

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1. - Como conhecemos? Já vimos que o problema do conhecimento

é básico em Filosofia. Pois se esta tem por objeto a Sabedoria, o que vale

dizer o nosso saber, aquilo que sabemos, é claro que o conhecimento e a

maneira pela qual o adquirimos é de importância fundamental em toda a in-

dagação filosófica. Por isso a Teoria do Conhecimento é uma das partes

mais complexas e mais debatidas da Filosofia, em todos os tempos. Na Filo-

sofia Espírita ela assume uma importância ainda mais profunda, pois a per-

gunta “Como conhecemos?” implica a relação espírito-corpo. E essa relação

exige a definição dos seus componentes, envolvendo as perguntas “o que é

espírito?” e “o que é corpo?”.

Mas antes dessas questões há outra, relacionada com os próprios e-

lementos do ato de conhecer. A tradição filosófica nos mostra duas posições

clássicas diante desse problema: a platônica ou socrático-platônica, que en-

volve a questão da reminiscência, das idéias inatas, e a sofística ou empírica

que se refere apenas aos nossos sentidos. Há entre esses dois campos, nume-

rosas escolas e subescolas, mas para o nosso propósito bastam essas duas li-

nhas fundamentais, que permanecem válidas em nossos dias e representam

as pontas do dilema de conhecer. Nessas duas linhas, a resposta à pergunta

“Como conhecemos?” é dada pela seguinte contradição: 1a.) “Conhecemos

pelo espírito”; 2a.) “Conhecemos pelos sentidos”. O primeiro a dar uma res-

posta conciliatória, ao que parece, foi Aristóteles com a sua teoria dos dois

espíritos do homem: o formativo e o receptivo. Esta dualidade é resolvida

pela Filosofia Espírita de maneira dialética, como veremos.

Os elementos do conhecer podem ser definidos como a razão e o

sensório. Nesses dois elementos encontramos os seus respectivos instru-

mentos, que podemos chamar os instrumentos do conhecer. Na razão en-

contramos os conceitos ou idéias, que Sócrates foi o primeiro a descobrir

(escondidos atrás das palavras) e que Kant chamaria mais tarde de categori-

as. No sensório encontramos as sensações, que na Psicologia atual podemos

chamar de percepções. Assim, o conhecer é um ato de relação. O conhece-

dor, que é o homem, se põe em relação com alguma coisa, percebe essa coi-

sa e procura identificá-la. Mas identificá-la com o que? Com os conceitos ou

idéias, com as chamadas categorias da razão, que não estão nos sentidos mas

no espírito. Essa identificação é o próprio ato de conhecer. Captamos pela

vista uma forma à distância. Ela nos parece um cavaleiro. Identificamos a

forma visual com a idéia ou conceito de um cavaleiro. Mas, ao nos aproxi-

marmos, verificamos que se trata de uma pedra com forma de cavaleiro: re-

fazemos a identificação automaticamente. É assim que um objeto captado

pelos nossos sentidos pode enganar-nos, mas a verificação da razão corrige

o erro.

Estão aí os dois espíritos da teoria de Aristóteles. O primeiro é o es-

pírito-formativo, que para Aristóteles era a própria alma humana proceden-

te do mundo espiritual, não sujeita às influências do mundo exterior. O se-

gundo é o espírito-receptivo, uma espécie de matéria em que se imprimem

as sensações do mundo exterior, segundo Aristóteles. Isto implica a teoria

aristotélica da forma e matéria. As formas do mundo exterior se imprimem

na matéria dos sentidos e dão forma a essa matéria. Mas na Filosofia Espíri-

ta não é assim. Os sentidos são apenas instrumentos de captação. E esses

instrumentos pertencem à condição existencial do homem encarnado, do

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homem no mundo. O homem é um composto de espírito e corpo. O corpo é

o escafandro de que o espírito se serve para mergulhar nas profundidades da

matéria. Quando deixamos o escafandro os seus instrumentos não funcio-

nam. Quando deixamos o corpo os seus instrumentos morrem.

Para a Filosofia Espírita, portanto, a dualidade de espíritos da teoria

aristotélica não existe. O homem é essencialmente um espírito. Assim, o es-

pírito é a substância do homem e o corpo o seu acidente. A percepção é uma

faculdade do espírito e não do corpo. É o escafandrista que vê através dos

vidros do escafandro e não este que vê pelos seus vidros. A contradição das

teorias platônica e sofística do conhecimento se resolve numa síntese fun-

cional. Essa contradição ainda existe na Filosofia atual. Podemos represen-

tá-la pela teoria racional de Kant e a empírica ou sensorial de Locke: a esco-

la racional e empírica do conhecimento. A síntese funcional é a que nos ofe-

rece a reunião do racionalismo e do empirismo num sistema de funções. Es-

se sistema é o processo vital do homem, ou seja, um espírito encarnado,

uma razão prisioneira da rede sensorial, funcionando em relação ao mundo

através dessa rede.

A percepção, segundo a Filosofia Espírita, é uma faculdade geral do

espírito, que abrange todo o seu ser. Veja-se o ensaio teórico sobre as sensa-

ções dos espíritos, em “O Livro dos Espíritos”. O espírito não percebe atra-

vés dos órgãos, não vê pelos olhos nem ouve pelos ouvidos. Vê e ouve por

todo o seu ser. Somente quando sujeito ao corpo, tem a sua percepção redu-

zida ao organismo sensorial. Mas, apesar disso, a sujeição corpórea não é

absoluta. O espírito, mesmo encarnado, extravasa dos limites sensoriais e

tem percepções extra-sensoriais. Essa a grande “descoberta” da Parapsico-

logia, que, segundo o próprio prof. Rhine: “só é nova para a Ciência”. Sim,

pois os homens sabem, desde todos os tempos, que podem ver sem os olhos

e perceber sem os sentidos em todos os campos da percepção.

Mas se os homens podem ver sem os olhos, hão de ver também coi-

sas não visíveis para os olhos. Eis a questão, diria Shakespeare. E essa ques-

tão nos leva de volta à teoria das reminiscências de Sócrates e Platão. Que

teoria é essa? A de que os nossos espíritos, ou seja, nós mesmos, antes de

encarnarmos neste mundo já conhecíamos muitas coisas. Esse conhecimento

está dentro de nós na forma de reminiscência, de lembrança amortecida pela

carne. Por isso Sócrates inventou a maiêutica, o processo de tirar o conhe-

cimento das profundezas do ignorante como se tira água do poço. E Platão

ensinou, com o famoso mito da caverna, que na terra somos apenas som-

bras, as projeções passageiras e irreais de nós mesmos, dos nossos espíritos,

que na realidade vivem acima da matéria, transcendem a ela. E hoje, os pa-

rapsicólogos mais esclarecidos, mais conseqüentes consigo mesmos – como

o casal Rhine, os profs. Soal, Carington, Price, Tichner e outros -, afirmam

que a mente e o pensamento não são materiais, pertencem a outro plano da

natureza, a outro plano da complexa estrutura do Universo. A teoria espírita

do conhecimento tem a sanção das últimas conquistas científicas.

Mas voltemos ainda aos instrumentos do conhecimento para tra-

tarmos de um deles, que é para a Filosofia Espírita de muita importância.

Trata-se da idéia ou conceito de espírito. Todas as especulações foram fei-

tas para explicar a existência desse conceito. Conhece-se a teoria da proje-

ção anímica, de Feuerbach, adotada pelo Marxismo: “Não foi Deus quem

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criou o homem, mas o homem quem criou Deus”, a teoria animista de Ta-

ylor; a teoria da imaginação primitiva, de Spencer, que o seu discípulo Er-

nesto Bozzano ampliou para torná-la espírita. E é em Bozzano “Popoli Pri-

mitivi e Manifestazione Supernormale” que vamos encontrar a resposta es-

pírita a todas essas hipóteses imaginosas. O conceito de espírito é uma cate-

goria lógica, semelhante às de espaço e tempo, que o homem desenvolveu

com a experiência sensível. As pesquisas científicas da Metapsíquica, da

chamada Ciência Psíquica Inglesa, da antiga Parapsicologia alemã e da atual

Parapsicologia, ao lado das investigações clássicas e modernas da Ciência

Espírita confirmam essa teoria. Não foi da imaginação primata (incapaz de

tal abstração) que surgiu o conceito de espírito, mas dos fenômenos de apa-

rições, de materializações e de todos os tipos de manifestações paranormais.

2. - O que conhecemos? O espírito é, pois, o conhecedor, é o princí-

pio inteligente da Natureza, cuja faculdade perceptiva se desenvolve através

de fases sucessivas. Primeiro, temos a sensibilidade vegetal; depois, a per-

ceptibilidade animal; por fim, a inteligência humana. Uma frase célebre de

Léon Denis resume todo esse processo milenar: “A alma dorme na pedra,

sonha no vegetal, agita-se no animal e acorda no homem.” O conceito de

alma foi estudado por Kardec na introdução de “O Livro dos Espíritos”. A

Filosofia Espírita define a alma como o espírito encarnado. O princípio inte-

ligente, quando manifestado na matéria, produz a vida, segundo o nosso res-

trito conceito de vida. Assim, ele anima a matéria, é a ânima dos latinos, a

alma das coisas e dos seres. No homem, a alma é o espírito que anima o

corpo. Quando o homem morre, sua alma volta ao estado de espírito, liberta-

se da função de alma. Não existem almas do outro mundo, pois estas, na

verdade, são espíritos.

Mas o que é que o conhecedor conhece, o que é que conhecemos a-

través da nossa faculdade perceptiva e da nossa capacidade intelectiva? Há o

conhecimento das coisas exteriores e o das coisas interiores. Há a percepção

objetiva, que estabelece a relação sujeito-objeto, e a percepção subjetiva,

que faz do sujeito o seu próprio objeto. Isso quer dizer, em termos epistemo-

lógicos (na teoria das ciências) que há Ciência e há Filosofia. Como já vi-

mos, a Ciência investiga os objetos exteriores, a Filosofia investiga a si

mesma, é o pensamento debruçado sobre si mesmo. Podemos retornar às

explicações de Platão: há o mundo sensível e o mundo inteligível. Temos

acesso ao sensível por meio da percepção, captamos, sentimos, percebemos

as coisas exteriores. Temos acesso ao inteligível por meio da razão e da in-

tuição. São essas as duas faces da realidade. O verso e o reverso da moeda

com que pagamos o direito de saber.

Desde o tempo dos gregos a nossa Civilização Ocidental vem se de-

batendo entre esses dois campos do conhecimento. Hoje, temos o mundo di-

vidido em duas partes: numa se desenvolve o pensamento materialista como

ideologia oficial dos Estados; noutra, o pensamento espiritualista na mesma

posição. Nem uma nem outra dessas formas de pensamento, dessas sistema-

tizações do conhecimento, conseguiu trazer nem poderá trazer ao homem a

solução dos seus problemas. A Filosofia Espírita se coloca entre ambas e

nos oferece a solução dialética, nos termos da velha e boa dialética de He-

gel, mostrando o equívoco desse divisionismo artificial e anunciando o ad-

vento da compreensão global da realidade.

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Espírito e matéria, ensina a Filosofia Espírita, são os dois elementos

constitutivos do universo. Sobre ambos paira o poder unificador que é Deus.

Essa, diz “O Livro dos Espíritos”, é a trindade universal. Mas a realidade

não se fecha apenas nesse tríptico, nesse esquema geral. Ela é una em essên-

cia, mas é múltipla nas suas manifestações. A lei cósmica é a da diversidade

da unidade. Querer reduzir o real a um dos seus aspectos, o materialista ou o

espiritualista, é simples utopia. A própria História da Filosofia nos mostra a

impossibilidade de uma interpretação esquemática da realidade. Os esque-

mas das diversas escolas filosóficas serviram apenas de muletas do pensa-

mento, em sua busca da verdade. Hoje, os filósofos compreendem que as

escolas servem como pontos de observação, como posições estratégicas e

não como trincheiras definitivas no campo de batalha do conhecimento. Não

mais se formulam grandes sistemas. A época dos sistemas passou. A siste-

mática foi substituída pela problemática: importam os problemas, não as ex-

plicações conclusivas.

A Filosofia Espírita foi uma antecipação dessa nova atitude filosófi-

ca. Na mesma época em que surgiam os dois últimos grandes sistemas filo-

sóficos: o Positivismo de Augusto Comte e o Marxismo, os Espíritos diziam

a Kardec que era necessário apresentar ao mundo uma Filosofia racional,

“livre dos prejuízos do espírito de sistema”. E lhe davam as linhas mestras

do novo pensamento através do processo dinâmico do diálogo, que hoje está

consagrado em todo o mundo. A forma de perguntas e respostas de “O Li-

vro dos Espíritos”, às vezes considerada antiquada por alguns espíritas se-

quiosos de novidades, é hoje a forma preferida para a busca de soluções em

todos os setores das atividades humanas. O diálogo é a maiêutica de Sócra-

tes e a dialética de Platão e de Hegel ressuscitadas em nosso tempo. É o ins-

trumento mais prático de conhecimento no plano social. E foi através dele

que surgiu a Filosofia Espírita, no diálogo mediúnico de Kardec com os Es-

píritos.

A mediunidade se apresenta como a oportunidade do diálogo para-

normal. A palavra paranormal é simplesmente uma substituta da palavra so-

brenatural. Classifica o fenômeno natural inabitual a que se referia Richet.

Na proporção em que os homens avançam na evolução espiritual o diálogo

mediúnico se integra na normalidade. Quando Sócrates dialogava com o seu

daimon (demônio ou espírito protetor) ou quando Joana D’Arc dialogava

com as suas vozes, ou quando Abrahão Lincoln (à maneira do patriarca bí-

blico) dialogava com os Espíritos na Casa Branca, em Washington, não es-

tavam fora da Natureza nem de normalidades. Só a ignorância das leis natu-

rais que regem a comunicação interexistencial (a comunicação mediúnica

entre os diferentes planos de existência) levou os homens a tratarem o as-

sunto com prevenção e excesso de superstição. O diálogo mediúnico que fez

a Donzela de Orléans a empunhar a espada e salvar a França, que levou Só-

crates a impulsionar o conhecimento, que fez Lincoln assinar a lei de liber-

tação dos escravos nos Estados Unidos, que orientou Mackenzie King no

governo do Canadá, e assim por diante, levou Kardec a formular a Doutrina

Espírita e oferecer ao mundo a maior síntese filosófica de todos os tempos,

que é a Filosofia Espírita.

3. – O processo gnoseológico. Aplicada ao Espiritismo, na avaliação

da totalidade da Doutrina, a Teoria Espírita do Conhecimento nos mostra

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essa doutrina como a última fase de um processo gnoseológico que abrange

toda a evolução humana. Kardec explica, no cap.I de “A Gênese”, os moti-

vos do aparecimento do Espiritismo em meados do século passado (XIX).

Era necessário o desenvolvimento das Ciências, a superação racional dos es-

tágios anteriores da evolução, para que o homem se tornasse capaz de com-

preender o problema espírita. O processo gnoseológico iniciado na era tribal

se desenvolve através das fases anímica, mágica, mítica, mística ou religio-

sa, atingindo a científica ou racional e passando, então, à psicológica ou es-

pírita.

Lembremo-nos rapidamente da lei dos três estados da evolução gno-

seológica segundo Augusto Comte. Temos primeiro, o estado teológico em

que tudo se explica pela intervenção dos deuses; a seguir, o estado metafí-

sico das explicações abstratas (o ópio faz dormir porque tem a virtude dor-

mitiva); e depois, o estado positivo em que predominam as Ciências. Kar-

dec acrescentou a essa teoria, por sugestão de um leitor da “Revista Espíri-

ta” (Veja-se o n. de abril de 1858) o estado psicológico iniciado pelo Espiri-

tismo. Vemos hoje o acerto desse acréscimo. As ciências psicológicas do-

minam o mundo atual e já se abriram para o futuro através da investigação

parapsicológica. A Humanidade avança, segundo a observação de Simone

de Beauvoir, que não é espírita, “num constante devir”. O homem se liberta

da matéria, emancipando-se como espírito.

Mas o Espiritismo não é apenas a fase derradeira do processo gnose-

ológico em que nos encontramos como componentes da Humanidade terre-

na. Ele apresenta também, em si mesmo, as características de um processo

gnoseológico especial. A Teoria do Conhecimento nos mostra que as fases

sucessivas do conhecer se repetem no desenvolvimento do Espiritismo. A-

través do seu aspecto científico ele nos oferece a captação sensorial do

mundo fenomênico, dessa faixa da Natureza em que o espírito se manifesta

no sensível, e a captação extra-sensorial do inteligível, da realidade espiritu-

al. Através da Filosofia Espírita, nos mostra a interpretação racional do Uni-

verso e do Homem numa visão integral. Através da Religião Espírita, - mo-

ral, normativa e jamais ritual, sacramental, destituída de resíduos mágicos –

determina a orientação adequada, no plano existencial, à nossa conduta em

face da realidade ampla que conseguimos descortinar.

Assim, a Teoria Espírita do Conhecimento explica, ao mesmo tem-

po, o problema do conhecer em sua expressão mais simples e em sua ex-

pressão mais complexa. Aprendemos, graças a ela, que o processo gnoseo-

lógico é uma conquista e uma integração. Conquistando pelo conhecimento

progressivo o saber espírita integramo-nos na realidade multidimensional

da era cósmica. Não pensamos mais em termos geocêntricos, organocêntri-

cos ou antropocêntricos e, por isso mesmo, não vivemos mais apegados a

temores e superstições. O Espiritismo nos confere a emancipação espiritual

de cidadãos do Cosmos. Pertencemos à Humanidade Cósmica.

*

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SEGUNDA PARTE

KARDEC E A CRÍTICA DA FÉ

O Livro dos Espíritos

ALLAN KARDEC

CAPÍTULO II

LEI DE ADORAÇÃO

I – FINALIDADE DA ADORAÇÃO

649. Em que consiste a adoração?

– É a elevação do pensamento a Deus. Pela adoração o homem apro-

xima dEle a sua alma.

650. A adoração é o resultado de um sentimento inato ou o produto

de um ensinamento?

– Sentimento inato, como o da Divindade. A consciência de sua fra-

queza leva o homem a se curvar diante dAquele que o pode proteger.

651. Houve povos desprovidos de todo sentimento de adoração?

– Não, porque jamais houve povos ateus. Todos compreendem que

há, acima deles, um Ser supremo.

652. Pode-se considerar a adoração como tendo sua fonte na lei natu-

ral?

– Ela faz parte da lei natural, porque é o resultado de um sentimento

inato no homem; por isso a encontramos entre todos os povos, embora sob

formas diferentes.

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II – ADORAÇÃO EXTERIOR

653. A adoração necessita de manifestações exteriores?

– A verdadeira adoração é a do coração. Em todas as vossas ações,

pensai sempre que o Senhor vos observa.

653-a. A adoração exterior é útil?

– Sim, se não for um fingimento. É sempre útil dar um bom exem-

plo; mas os que o fazem só por afetação e amor próprio, e cuja conduta

desmente a sua aparente piedade, dão um exemplo antes mau do que bom, e

fazem maior mal do que supõem.

654. Deus tem preferência pelos que o adoram desta ou daquela ma-

neira?

– Deus prefere os que o adoram do fundo do coração, com sincerida-

de, fazendo o bem e evitando o mal aos que pensam honrá-Lo através de ce-

rimônias que não os tornam melhores para os seus semelhantes.

– Todos os homens são irmãos e filhos do mesmo Deus, que chama

para Ele todos os que seguem as suas leis, qualquer que seja a forma pela

qual se exprimam.

– Aquele que só tem a aparência da piedade é um hipócrita; aquele

para quem a adoração é apenas um fingimento e está em contradição com a

própria conduta, dá um mau exemplo.

– Aquele que se vangloria de adorar o Cristo mas que é orgulhoso,

invejoso e ciumento, que é duro e implacável para com os outros ou ambi-

cioso de bens mundanos, eu vos declaro que só tem a religião nos lábios e

não no coração. Deus, que tudo vê, dirá: aquele que conhece a verdade é

cem vezes mais culpável do mal que faz do que o selvagem ignorante e será

tratado de maneira conseqüente, no dia do juízo. Se um cego vos derruba ao

passar, vós o desculpais, mas se é um homem que enxerga bem, vós o cen-

surais e com razão.

– Não pergunteis, pois, se há uma forma de adoração mais conveni-

ente, porque isso seria perguntar se é mais agradável a Deus ser adorado

numa língua do que em outra. Digo-vos ainda uma vez: os cânticos não

chegam a Ele senão pela porta do coração.

655. É reprovável praticar uma religião na qual não se acredita de

coração, quando se faz isso por respeito humano e para não escandalizar os

que pensam de outra maneira?

– A intenção, nisso como em tantas outras coisas, é a regra. Aquele

que não tem em vista senão respeitar as crenças alheias, não faz mal: faz

melhor do que aquele que as ridicularizasse, porque esse faltaria com a cari-

dade. Mas quem as praticar por interesse ou por ambição é desprezível aos

olhos de Deus e dos homens. Deus não pode agradar-se daqueles que só

demonstram humildade perante Ele para provocar a aprovação dos homens.

656. A adoração em comum é preferível à adoração individual?

– Os homens reunidos por uma comunhão de pensamentos e senti-

mentos têm mais força para atrair os bons Espíritos. Acontece o mesmo

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quando se reúnem para adorar a Deus. Mas não penseis, por isso, que a ado-

ração em particular seja menos boa; pois cada um pode adorar a Deus, pen-

sando nEle.

III – VIDA CONTEMPLATIVA

657. Os homens que se entregam à vida contemplativa, não fazendo

nenhum mal e só pensando em Deus, têm algum mérito aos seus olhos?

– Não, pois se não fazem o mal, também não fazem o bem e são inú-

teis. Aliás, não fazer o bem já é um mal. Deus quer que se pense nEle, mas

não que se pense apenas nEle, pois deu ao homem deveres a serem cumpri-

dos na Terra. Aquele que se consome na meditação e na contemplação nada

faz de meritório aos olhos de Deus, porque sua vida é toda pessoal e inútil

para a Humanidade. Deus lhe pedirá contas do bem que não tenha feito.

(Ver item 640).

IV – DA PRECE

658. A prece é agradável a Deus?

– A prece é sempre agradável a Deus, quando ditada pelo coração,

porque a intenção é tudo para Ele. A prece do coração é preferível a que po-

des ler, por mais bela que seja, se a leres mais com os lábios do que com o

pensamento. A prece é agradável a Deus quando é proferida com fé, com

fervor e sinceridade. Não creias, pois, que Deus seja tocado pelo homem

vão, orgulhoso e egoísta, a menos que a sua prece represente um ato de sin-

cero arrependimento e de verdadeira humildade.

659. Qual o caráter geral da prece?

– A prece é um ato de adoração. Fazer preces a Deus é pensar nEle,

aproximar-se dEle, pôr-se em comunicação com Ele. Pela prece podemos

fazer três coisas: louvar, pedir e agradecer.

660. A prece torna o homem melhor?

– Sim, porque aquele que faz preces com fervor e confiança se torna

mais forte contra as tentações do mal, e Deus lhe envia bons Espíritos para o

assistir. É um socorro jamais recusado, quando o pedimos com sinceridade.

660-a. Como se explica que certas pessoas que oram muito sejam,

apesar disso, de muito mau caráter, ciumentas, invejosas, implicantes, faltas

de benevolência e de indulgência; que sejam até mesmo viciosas?

– O essencial não é orar muito, mas orar bem. Essas pessoas julgam

que todo o mérito está na extensão da prece e fecham os olhos para os seus

próprios defeitos. A prece é para elas uma ocupação, um emprego do tempo,

mas não um estudo de si mesmas. Não é o remédio que é ineficaz, neste ca-

so, mas a maneira de aplicá-la.

661. Pode-se pedir eficazmente a Deus o perdão das faltas?

– Deus sabe discernir o bem e o mal: a prece não oculta as faltas.

Aquele que pede a Deus o perdão de suas faltas não o obtém se não mudar

de conduta. As boas ações são a melhor prece, porque os atos valem mais do

que as palavras.

662. Pode-se orar utilmente pelos outros?

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– O Espírito daquele que ora está agindo pela vontade de fazer o

bem. Pela prece, atrai a ele os bons Espíritos que se associam ao bem que

deseja fazer.

Possuímos em nós mesmos, pelo pensamento e a vontade, um poder

de ação que se estende muito além dos limites de nossa esfera corpórea. A

prece por outros é um ato dessa vontade. Se for ardente e sincera, pode

chamar os bons Espíritos em auxílio daquele por quem pedimos, a fim de

lhe sugerirem bons pensamentos e lhe darem a força necessária para o cor-

po e a alma. Mas ainda nesse caso a prece do coração é tudo e a dos lábios

não é nada.

663. As preces que fazemos por nós mesmos podem modificar a na-

tureza das nossas provas e desviar-lhes o curso?

– Vossas provas estão nas mãos de Deus e há as que devem ser su-

portadas até o fim, mas Deus leva sempre em conta a resignação. A prece a-

trai a vós os bons Espíritos, que vos dão a força de as suportar com cora-

gem. Então elas vos parecem menos duras. Já o dissemos: a prece nunca é

inútil, quando bem feita, porque dá força, o que já é um grande resultado.

Ajuda-te a ti mesmo e o céu te ajudará; tu sabes disso. Aliás, Deus, não po-

de mudar a ordem da Natureza ao sabor de cada um, porque aquilo que é um

grande mal, do vosso ponto de vista mesquinho, para a vossa vida efêmera,

muitas vezes é um grande bem na ordem geral do Universo. (Espinosa dizia

que “Deus age segundo unicamente as leis de sua natureza, sem ser constrangido por nin-

guém” (Proposição XVII da “ética”.), e afirmava a impossibilidade do milagre, por ser

uma violação das leis de Deus. Também no tocante aos males individuais, alegava que eles

não existiam na ordem geral do Universo. (N. do T.).

Além disso, de quantos males o homem é o próprio autor, por sua

imprevidência ou por suas faltas! Ele é punido pelo que pecou. Não obstan-

te, os vossos justos pedidos são em geral mais escutados do que julgais.

Pensais que Deus não vos ouviu, porque não fez um milagre em vosso favor,

quando, entretanto, vos assiste por meios tão naturais que vos parecem o e-

feito do acaso ou da força das coisas. Freqüentemente, ou o mais freqüente-

mente, ele vos suscita o pensamento necessário para sairdes por vós mesmos

do embaraço.

664. É inútil orar pelos mortos e pelos Espíritos sofredores, e nesse

caso como podem as nossas preces lhes proporcionar consolo e abreviar os

sofrimentos? Têm elas o poder de fazer dobrar-se a justiça de Deus?

– A prece não pode ter o efeito de mudar os desígnios de Deus, mas

a alma pela qual se ora experimenta alívio, porque é um testemunho de inte-

resse que se lhe dá e porque o infeliz é sempre consolado quando encontra

almas caridosas que compartilham as suas dores.

De outro lado, pela prece provoca-se o arrependimento, desperta-se o

desejo de fazer o necessário para se tornar feliz. É nesse sentido que se pode

abreviar a sua pena, se do seu lado ele contribui com a sua boa vontade. Es-

se desejo de melhora, excitado pela prece, atrai para o Espírito sofredor os

Espíritos melhores que vêm esclarecê-lo, consolá-lo e dar-lhe esperanças.

Jesus orava pelas ovelhas transviadas. Com isso vos mostrava que sereis

culpados se nada fizerdes pelos que mais necessitam.

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665. Que pensar da opinião que rejeita a prece pelos mortos, por não

estar prescrita nos Evangelhos?

– O Cristo disse aos homens: amai-vos uns aos outros. Essa reco-

mendação implica também a de empregar todos os meios possíveis de tes-

temunhar afeição aos outros, sem entrar, entretanto, em nenhum detalhe so-

bre a maneira de atingir o objetivo. Se é verdade que nada pode desviar o

Criador de aplicar a justiça, que é inerente a Ele mesmo, a todas as ações do

Espírito, não é menos verdade que a prece que lhe dirigis, em favor daquele

que vos inspira afeição, é para este um testemunho de recordação que não

pode deixar de contribuir para aliviar os seus sofrimentos e o consolar. Des-

de que ele revele o mais leve arrependimento, e somente então, seria socor-

rido; mas isso não o deixará jamais esquecer que uma alma simpática se o-

cupou dele e lhe dará a doce crença de que essa intercessão lhe foi útil. Dis-

so resulta necessariamente, de sua parte, um sentimento de afeição por aque-

le que lhe deu essa prova de interesse e de piedade.

Dessa maneira, o amor recomendado aos homens pelo Cristo desen-

volveu-se e aumentou entre eles, e ambos obedeceram à lei de amor e de u-

nião de todos os seres, lei divina que deve conduzir à unidade, objetivo e

fim do Espírito. (Resposta dada pelo Espírito do Sr. Monod, pastor protestante de Paris,

falecido em abril de 1856. A resposta precedente, número 664, é do Espírito de São Luís.)

666. Podemos orar aos Espíritos?

– Podemos orar aos bons Espíritos, como sendo os mensageiros de

Deus e os executores de seus desígnios, mas o seu poder está na razão da

sua superioridade e decorre sempre do Senhor de todas as coisas, sem cuja

permissão nada se faz; eis porque as preces que lhes dirigimos só são efica-

zes se forem agradáveis a Deus.

V – POLITEÍSMO

667. Por que o Politeísmo é uma das crenças mais antigas e mais es-

palhadas, se é falsa?

– A idéia de um Deus único só podia aparecer como o resultado do

desenvolvimento mental do homem. Incapaz, na sua ignorância, de conceber

um ser natural, sem forma determinada, agindo sobre a matéria, ele lhe ha-

via dado os atributos da natureza corpórea, ou seja, uma forma e uma figura,

e desde então tudo o que lhe parecia ultrapassar as proporções da inteligên-

cia comum tornava-se para ele uma divindade.

Tudo quanto não compreendia devia ser obra de um poder sobrena-

tural, e disso a acreditar em tantas potências distintas quantos efeitos pudes-

se ver, não ia mais do que um passo, Mas em todos os tempos houve ho-

mens esclarecidos, que compreenderam a impossibilidade dessa multidão de

poderes para governar o mundo sem uma direção superior e se elevaram ao

pensamento de um Deus único.

668. Os fenômenos espíritas sendo produzidos desde todos os tem-

pos e conhecidos desde as primeiras eras do mundo, não podem ter contri-

buído para a crença na pluralidade dos deuses?

– Sem dúvida, porque para os homens, que chamavam deus a tudo o

que era sobre-humano, os Espíritos pareciam deuses. E também por isso,

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quando um homem se distinguia entre os demais pelas suas ações, pelo seu

gênio ou por um poder oculto que o vulgo não podia compreender, faziam

dele um deus e lhe rendiam culto após a morte. (Ver item 603).

A palavra Deus tinha entre os antigos uma acepção muito extensa;

não era, como em nossos dias, uma designação do Senhor da Natureza, mas

uma qualificação genérica de todos os seres não pertencentes às condições

humanas.

Ora, tendo as manifestações espíritas lhes revelado a existência de

seres incorpóreos que agem como forças da Natureza, eles os chamaram

deuses, como nós os chamamos Espíritos. Uma simples questão de pala-

vras. Com a diferença de que, em sua ignorância, entretida deliberadamen-

te pelos que tinham interesse em mantê-la, elevaram templos e altares lu-

crativos a esses seres, enquanto para nós eles não passam de criaturas nos-

sas semelhantes, mais ou menos perfeitas, despojadas de seu envoltório ter-

reno.

Se estudarmos com atenção os diversos atributos das divindades pa-

gãs, reconheceremos sem dificuldade todos os que caracterizam os nossos

Espíritos, em todos os graus da escala espírita: seu estado físico nos mun-

dos superiores, todas as propriedades do perispírito e o papel que exercem

no tocante às coisas terrenas.

O Cristianismo, vindo aclarar o mundo com a sua luz divina, não

podia destruir uma coisa que está na própria Natureza, mas fez que a ado-

ração se voltasse para Aquele a que realmente pertence. Quanto aos Espíri-

tos, sua lembrança se perpetuou sob diversos nomes, segundo os povos, e

suas manifestações, que jamais cessaram, foram diversamente interpretadas

e freqüentemente exploradas sob o domínio do mistério.

Enquanto a religião as considerava como fenômenos miraculosos,

os incrédulos as tomaram por charlatanice. Hoje, graças a estudos mais sé-

rios, feitos a plena luz, o Espiritismo, liberto das idéias supersticiosas que o

obscureceram através dos séculos, nos revela um dos maiores e mais subli-

mes princípios da Natureza.

VI – SACRIFÍCIOS

669. A prática dos sacrifícios humanos remonta à mais alta Antigüi-

dade. Como foi o homem levado a crer que semelhantes coisas pudessem

agradar a Deus?

– Primeiro, porque não compreendia Deus como sendo a fonte da

bondade. Entre os povos primitivos, a matéria sobrepõe-se ao espírito; eles

se entregam aos instintos animais e por isso são geralmente cruéis, pois o

senso moral ainda não se encontra desenvolvido.

Depois, os homens primitivos deviam crer naturalmente que uma

criatura animada teria muito mais valor aos olhos de Deus do que um corpo

material. Foi isso que os levou a imolar primeiramente animais e mais tarde

criaturas humanas, pois, segundo sua falsa crença, pensavam que o valor do

sacrifício estava em relação com a importância da vítima.

Na vida material, como geralmente a levais, se ofereceis um presente

a alguém, escolheis sempre o de um valor tanto maior, quanto mais amizade

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e consideração quereis testemunhar à pessoa. O mesmo deviam fazer os

homens ignorantes, com relação a Deus.

669-a. Assim, os sacrifícios de animais teriam precedido os huma-

nos?

– Não há dúvida quanto a isso.

669-b. Segundo esta explicação, os sacrifícios humanos não se origi-

naram de um sentimento de crueldade?

– Não, mas de uma falsa concepção do que seria agradável a Deus.

Vede Abraão.

Com o tempo, os homens passaram a. cometer abusos, imolando os

inimigos, até mesmo os inimigos pessoais. De resto, Deus jamais exigiu sa-

crifícios, nem de animais, nem de homens. Ele não pode ser honrado com a

destruição inútil de sua própria criatura.

670. Poderiam os sacrifícios humanos, realizados com intenção pie-

dosa, ter algumas vezes agradado a Deus?

– Não, jamais; mas Deus julga a intenção. Os homens, sendo igno-

rantes, podiam crer que praticavam ato louvável ao imolar um de seus seme-

lhantes. Nesse caso, Deus atentaria para o pensamento e não para o fato. Os

homens, ao progredirem, deviam reconhecer o erro e reprovar esses sacrifí-

cios, que não mais seriam admissíveis para espíritos esclarecidos; e digo es-

clarecidos, porque os Espíritos estavam então envolvidos pelo véu material.

Mas, pelo livre arbítrio, poderiam ter uma percepção de sua origem e sua fi-

nalidade. Muitos já compreendiam por intuição o mal que faziam, e só o

praticavam para satisfazer suas paixões.

671. Que devemos pensar das chamadas guerras santas? O sentimen-

to que leva os povos fanáticos a exterminar o mais possível os que não parti-

lham de suas crenças, com o fim de agradar a Deus, não teria a mesma ori-

gem dos que antigamente provocaram os sacrifícios humanos?

– Esses povos são impulsionados pelos maus Espíritos. Fazendo a

guerra aos seus semelhantes, vão contra Deus, que manda o homem amar o

próximo como a si mesmo.

Todas as religiões, ou antes, todos os povos adoram um mesmo

Deus, quer sob este ou aquele nome. Como promover uma guerra de exter-

mínio, porque a religião de um é diferente ou não atingiu ainda o progresso

religioso dos povos esclarecidos? Os povos são escusáveis por não crerem

na palavra daquele que estava animado pelo Espírito de Deus e fora enviado

por Ele, sobretudo quando não o viram e não testemunharam os seus atos; e

como quereis que eles creiam nessa palavra de paz, quando os procurais de

espada em punho? Eles devem esclarecer-se, e devemos procurar fazê-los

conhecer a sua doutrina pela persuasão e a doçura, e não pela força e o san-

gue. A maioria de vós não acredita nas nossas comunicações com certos

mortais; por que quereis então que os estranhos acreditem nas vossas pala-

vras, quando os vossos atos desmentem a doutrina que pregais?

672. A oferenda dos frutos da terra teriam mais mérito aos olhos de

Deus que o sacrifício dos animais?

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– Já vos respondi ao dizer que Deus julgaria a intenção, e que o fato

em si teria pouca importância para Ele. Seria evidentemente mais agradável

a Deus a oferenda de frutos da terra que a do sangue das vítimas.

Como vos dissemos e repetimos sempre, a prece dita do fundo do co-

ração é cem vezes mais agradável a Deus que todas as oferendas que lhe pu-

désseis fazer. Repito que a intenção é tudo, e o fato, nada.

673. Não haveria um meio de tornar essas oferendas mais agradáveis

a Deus, consagrando-as ao amparo dos que não têm sequer o necessário? E,

nesse caso, o sacrifício dos animais, realizado com uma finalidade útil, não

seria mais meritório que o sacrifício abusivo que não servia para nada ou

não aproveitaria senão aos que de nada precisavam? Não haveria algo de re-

almente piedoso em se consagrar aos pobres as primícias dos bens da terra

que Deus nos concede?

– Deus abençoa sempre os que praticam o bem; amparar os pobres e

os aflitos é o melhor meio de homenageá-lo. Já vos disse, por isso mesmo,

que Deus desaprova as cerimônias que fazeis para as vossas preces, pois há

muito dinheiro que poderia ser empregado mais utilmente. O homem que se

prende à exterioridade e não ao coração é um espírito de vista estreita; julgai

se Deus deve importar-se mais com a forma do que com o fundo.

*

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O EVANGELHO SEGUNDO O ESPIRITISMO

ALLAN KARDEC

CAPITULO XIX

A FÉ QUE TRANSPORTA MONTANHAS

PODER DA FÉ - A FÉ RELIGIOSA - CONDIÇÃO DE FÉ INA-

BALÁVEL - PARÁBOLA DA FIGUEIRA SECA - INSTRUÇÕES DOS

ESPÍRITOS: FÉ, MÁE DA ESPERANÇA E DA CARIDADE - A FÉ DI-

VINA E A FÉ HUMANA

PODER DA FÉ

1. E depois que veio para onde estava a gente, chegou a ele um homem que, posto

de joelhos, lhe dizia: Senhor, tem compaixão de meu filho que é lunático e padece muito:

porque muitas vezes cai no fogo, e muitas na água. E tenho-o apresentado a teus discípulos,

e eles o não puderam curar. E respondendo Jesus, disse: Oh! Geração incrédula e perversa,

até quando hei de estar convosco, até quando vos hei de sofrer? Trazei-mo cá. E Jesus o a-

bençoou, e saiu dele o demônio, e desde àquela hora ficou o moço curado. Então lhe disse-

ram: Por que não pudemos nós lançá-lo fora? Jesus lhes disse: Por causa da vossa pouca fé.

Porque na verdade vos digo que, se tiverdes fé como um grão de mostarda, direis a este

monte: Passa daqui para acolá, e ele há de passar, e nada vos será impossível. (Mateus,

XVII:14-19).

2. É certo que, no bom sentido, a confiança nas próprias forças torna-

nos capazes de realizar coisas materiais que não podemos fazer, quando du-

vidamos de nós mesmos. Mas, então, é somente no seu sentido moral que

devemos entender estas palavras. As montanhas - que a fé transporta são as

dificuldades, as resistências, a má vontade, em uma palavra, que encontra-

mos entre os homens, mesmo quando se trata das melhores coisas. Os pre-

conceitos da rotina, o interesse material, o egoísmo, a cegueira do fanatis-

mo, as paixões orgulhosas são outras tantas montanhas que atravancam o

caminho dos que trabalham para o progresso da humanidade. A fé robusta

confere a perseverança, a energia e os recursos necessários para a vitória so-

bre os obstáculos, tanto nas pequenas quanto nas grandes coisas. A fé vaci-

lante produz a incerteza, a hesitação, de que se aproveitam os adversários

que devemos combater; ela nem sequer procura os meio de vencer, porque

não crê na possibilidade de vitória.

3. Noutra acepção, considera-se fé a confiança que se deposita na re-

alização de determinada coisa, a certeza de atingir um objetivo. Nesse caso,

ela confere uma espécie de lucidez, que faz antever pelo pensamento os fins

que se tem em vista e os meios de atingi-los, de maneira que aquele que a

possui avança, por assim dizer, infalivelmente. Num e noutro caso, ela pode

fazer que se realizem grandes coisas.

A fé sincera e verdadeira é sempre calma. Confere a paciência que

sabe esperar, porque estando apoiada na inteligência e na compreensão das

coisas, tem a certeza de chegar ao fim. A fé insegura sente a sua própria fra-

queza, e quando estimulada pelo interesse torna-se furiosa e acredita poder

suprir a força com a violência. A calma na luta é sempre um sinal de força e

de confiança, enquanto a violência, pelo contrário, é prova de fraqueza e de

falta de confiança em si mesmo.

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4. Necessário guardar-se de confundir a fé com a presunção. A ver-

dadeira fé se alia à humildade. Aquele que a possui deposita a sua confiança

em Deus, mais do que em si mesmo, pois sabe que, simples instrumento da

vontade de Deus, nada pode sem Ele. É por isso que os Bons Espíritos vêm

em seu auxílio. A presunção é menos fé do que orgulho, e o orgulho é sem-

pre castigado cedo ou tarde, pela decepção e os malogros que lhes são infli-

gidos.

5. O poder da fé tem aplicação direta e especial na ação magnética.

Graças a ela, o homem age sobre o fluido, agente universal, modifica-lhe as

qualidades e lhe dá impulso por assim dizer irresistível. Eis porque aquele

que alia, a um grande poder fluídico normal, uma fé ardente, pode operar,

unicamente pela sua vontade, dirigia para o bem, esses estranhos fenômenos

de cura e de outra natureza que antigamente eram considerados prodígios, e

que entretanto não passam de conseqüências de uma lei natural. Essa a razão

porque Jesus disse aos seus apóstolos: se não conseguistes curar, foi por

causa de vossa pouca fé.

A FÉ RELIGIOSA. CONDIÇÃO DA FÉ INABALÁVEL.

6. No seu aspecto religioso, a fé é a crença nos dogmas particulares

que constituem as diferentes religiões, e todas elas têm os seus artigos de fé.

Nesse sentido, a fé pode ser raciocinada ou cega. A fé cega nada examina,

aceitando sem controle o falso e o verdadeiro, e a cada passo se choca com a

evidência da razão. Levada ao excesso, produz o fanatismo. Quando a fé se

firma no erro, cedo ou tarde desmorona. Aquela que tem a verdade por base

é a única que tem o futuro assegurado, porque nada deve temer do progresso

do conhecimento, já que o verdadeiro na obscuridade, também o é à plena

luz. Cada religião pretende estar na posse exclusiva da verdade, mas preco-

nizar a fé cega sobre uma questão de crença é confessar a impotência para

demonstrar que se está com a razão.

7. Vulgarmente se diz que a fé não se prescreve, o que leva muitas

pessoas a alegarem que não são culpadas de não terem fé. Não há dúvida

que a fé não pode ser prescrita, ou o que é ainda mais justo: não pode ser

imposta. Não, a fé não se prescreve, mas se adquire, e não há ninguém que

esteja impedido de possuí-la, mesmo entre os mais refratários. Falamos das

verdades espirituais fundamentais, e não desta ou daquela crença particular.

Não é a fé que deve procurar essas pessoas, mas elas que devem procurá-la,

e se o fizerem com sinceridade a encontrarão. Podeis estar certos de que a-

queles que dizem: "Não queríamos nada melhor do que crer, mas não o po-

demos fazer", apenas o dizem com os lábios, e não com o coração, pois ao

mesmo tempo que o dizem, fecham os ouvidos. As provas, entretanto, a-

bundam ao seu redor. Por que, pois, se recusam a ver? Nuns, é a indiferença;

noutros, o medo de serem forçados a mudar de hábitos; e na maior parte, o

orgulho que se recusa a reconhecer um poder superior, porque teria de incli-

nar-se diante dele.

Para algumas pessoas, a fé parece de alguma forma inata: basta uma

faísca para desenvolvê-la. Essa facilidade para assimilar as verdades espíri-

tas é sinal evidente de progresso anterior. Para outras, ao contrário, é com

dificuldade que elas são assimiladas, sinal também evidente de uma nature-

za em atraso. As primeiras já creram e compreenderam, e trazem ao renas-

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cer, a intuição do que sabiam. Sua educação já foi realizada. As segundas

ainda têm tudo para aprender: sua educação está por fazer. Mas ela se fará, e

se não puder terminar nesta existência, terminará numa outra.

A resistência do incrédulo, convenhamos, quase sempre se deve me-

nos a ele do que à maneira pela qual lhe apresentam as coisas. A fé necessita

de uma base, e essa base é a perfeita compreensão daquilo em que se deve

crer. Para crer, não basta ver, é necessário sobretudo compreender. A fé ce-

ga não é mais deste século. (Kardec referia-se ao século passado, XIX, de maneira que

a sua afirmação é hoje ainda mais adequada. Nota do Tradutor.)

É precisamente o dogma da fé cega que hoje em dia produz o maior

número de incrédulos. Porque ela quer impor-se, exigindo a abdicação de

uma das mais preciosas prerrogativas do homem: a que se constitui do ra-

ciocínio e do livre-arbítrio. É contra essa fé, sobretudo, que se levanta o in-

crédulo, o que mostra a verdade de que a fé não se impõe. Não admitindo

provas, ela deixa no espírito um vazio, de que nasce a dúvida.

A fé raciocinada, que se apóia nos fatos e na lógica, não deixa ne-

nhuma obscuridade: crê-se, porque se tem a certeza, e só se está certo quan-

do se compreendeu. Eis porque ela não se dobra: porque só é inabalável a fé

que pode enfrentar a razão face a face, em todas as épocas da Humanidade.

É a esse resultado que o Espiritismo conduz, triunfando assim da in-

credulidade, todas as vezes em que não encontrar a oposição sistemática e

interessada.

PARÁBOLA DA FIGUEIRA QUE SECOU

8. E ao outro dia, como saíssem de Betânia, teve fome. E tendo visto ao longe uma

figueira, foi lá a ver se acharia nela alguma coisa; quando chegou a ela, nada achou, senão

folhas, porque não era tempo de figos. E falando-lhe, disse: Nunca jamais coma alguém fru-

to de ti para sempre. E no outro dia pela manhã, ao passarem pela figueira, viram que ela

estava seca até as raízes. Então, lembrando Pedro, disse para Jesus: Olha, Mestre, como se-

cou a figueira que tu amaldiçoaste. E respondendo Jesus, lhe disse:Tende fé em Deus. Em

verdade vos afirmo que todo o que disser a este monte:Tira-te, e lança-te ao mar, e isto sem

hesitar seu coração, mas tendo fé de que tudo o que disser sucederá, ele o verá cumprir as-

sim. (Marcos, XI: 12-14 e 20-23).

9. A figueira seca é o símbolo das pessoas que apenas aparentam o

bem, mas na realidade nada produzem de bom: dos oradores que possuem

mais brilho do que solidez, dotados do verniz das palavras de maneira que

estas agradam aos ouvidos; mas, quando as analisamos, nada revelam de

substancial para o coração; e, quando as acabamos de ouvir, perguntamos

que proveito tivemos.

É também o símbolo de todas as pessoas que podem ser úteis e não o

são; de todas as utopias, de todos os sistemas vazios, de todas as doutrinas

sem bases sólidas. O que falta, na maioria das vezes, é a verdadeira fé, a fé

realmente fecunda, a fé que comove as fibras do coração, em uma palavra, a

fé que transporta montanhas. São árvores frondosas, mas sem frutos, e é por

isso que Jesus as condena à esterilidade, pois dia virá em que ficarão secas

até às raízes. Isso quer dizer que todos os sistemas, todas as doutrinas que

não produziram nenhum bem para a humanidade, serão reduzidas a nada; e

que todos os homens voluntariamente inúteis, que não se utilizaram dos re-

cursos de que estavam dotados, serão tratados como a figueira seca.

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10. Os médiuns são os intérpretes dos Espíritos. Suprem o organismo

material que falta a estes, para nos transmitirem as suas instruções. Eis por-

que são dotados de faculdades para esse fim. Nestes tempos de renovação

social, desempenham uma missão especial: são como árvores que devem

dispensar o alimento espiritual aos seus irmãos. Por isso, multiplicam-se, de

maneira a que o alimento seja abundante. Espalham-se por toda parte, em

todos os países, em todas as classes sociais, entre os ricos e os pobres, os

grandes e os pequenos, a fim de que em parte alguma haja deserdados, e pa-

ra provar aos homens que todos são chamados. Mas se eles desviam de seu

fim providencial a faculdade preciosa que lhes foi concedida, se a colocam a

serviço de coisas fúteis e prejudiciais, ou dos interesses mundanos; se, em

vez de frutos salutares, dão maus frutos; se recusam-se a torná-la proveitosa

para os outros; se nem mesmo para si tiram os proveitos da melhoria pró-

pria, então assemelham-se à figueira estéril. Deus, então, lhes retirará um

dom que se tornou inútil entre as suas mãos: a semente que não souberam

semear; e os deixarão cair como presas dos maus Espíritos.

INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS

FÉ, MÃE DA ESPERANÇA E DA CARIDADE

• José •

Espírito Protetor, Bordeaux, 1862

11. A fé, para ser proveitosa, deve ser ativa; não pode adormecer.

Mãe de todas as virtudes que conduzem a Deus, deve velar atentamente pelo

desenvolvimento das suas próprias filhas.

A esperança e a caridade são uma conseqüência da fé. Essas três vir-

tudes formam uma trindade inseparável. Não é a fé que sustenta a esperança

de vermos cumpridas as promessas do senhor; porque, se não tivermos fé,

que esperaremos? Não é a fé que nos dá o amor? Pois, se não tiverdes fé,

que reconhecimento tereis, e, por conseguinte, que amor?

A fé, divina inspiração de Deus, desperta todos os sentimentos que

conduzem o homem ao bem: é a base da regeneração. É, pois, necessário,

que essa base seja forte e durável, pois se a menor dúvida puder abalá-la,

que será do edifício que construístes sobre ela? Erguei, portanto, esse edifí-

cio, sobre alicerces inabaláveis. Que a vossa fé seja mais forte que os sofis-

mas e as zombarias dos incrédulos, pois a fé que não desafia o ridículo dos

homens, não é a verdadeira fé.

A fé sincera é dominadora e contagiosa. Comunica-se aos não a pos-

suíam, e nem mesmo desejariam possuí-la; encontra palavras persuasivas,

que penetram na alma, enquanto a fé aparente só tem palavra sonoras, que

produzem o frio e a indiferença. Pregai pelo exemplo da vossa fé, para

transmiti-la aos homens; pregai pelo exemplo das vossas obras, para que ve-

jam o mérito da fé; pregai pela vossa inabalável esperança, para que vejam a

confiança que fortifica e estimula a enfrentar todas as vicissitudes da vida.

Tende, portanto, a verdadeira fé, na plenitude da sua beleza e da sua

bondade, na sua pureza e na sua racionalidade. Não aceiteis a fé sem com-

provação, essa filha cega da cegueira. Amai a Deus, mas sabei porque o a-

mais. Crede nas suas promessas, mas sabei porque o fazeis. Segui os nossos

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conselhos, mas conscientes dos fins que vos propomos e dos meios que vos

indicamos para atingi-los. Crede e esperai, sem fraquejar: os milagres são

produzidos pela fé.

A FÉ DIVINA E A FÉ HUMANA

• Um Espírito Protetor •

Paris, 1863

12. A fé é o sentimento inato, no homem, da sua destinação. É a

consciência das prodigiosas faculdades que traz em germe no íntimo, a prin-

cípio em estado latente, mas que ele deve fazer germinar e crescer, através

da sua vontade ativa.

Até o presente, a fé só foi compreendida no seu sentido religioso,

porque o Cristo a revelou como poderosa alavanca, e porque nele só viram

um chefe de religião. Mas o Cristo, que realizou verdadeiros milagres, mos-

trou, por esses mesmos milagres, quanto pode o homem que tem fé, ou seja,

que tem a vontade de querer e a certeza de que essa vontade pode realizar-se

a si mesma. Os apóstolos, com o seu exemplo, também não fizeram mila-

gres? Ora, o que eram esses milagres, senão os efeitos naturais de uma causa

desconhecida dos homens de então, mas hoje em grande parte explicada, e

que será completamente compreendida pelo estudo do Espiritismo e do

Magnetismo?

A fé é humana ou divina, segundo a aplicação que o homem der às

suas faculdades, em relação às necessidades terrenas ou às suas aspirações

celestes e futuras. O homem de gênio, que persegue a realização de um

grande empreendimento, triunfa se tem fé, porque sente em si mesmo que

pode e deve triunfar, e essa certeza íntima lhe dá uma extraordinária força.

O homem de bem que, crendo no seu futuro celeste, quer preencher a sua

vida com nobres e belas ações, tira da sua fé, da certeza da felicidade que o

espera, a força necessária, e ainda nesse caso se realizam os milagres da ca-

ridade, do sacrifício e da abnegação. E, por fim, não há más inclinações que,

com a fé, não possam ser vencidas.

O magnetismo é uma das maiores provas do poder da fé, quando

posta em ação. É pela fé que ele cura e produz esses fenômenos estranhos

que, antigamente, foram qualificados de milagres.

Eu vos repito: a fé é humana e divina. Se todas as criaturas encarna-

das estivessem suficientemente persuadidas da força que trazem consigo, e

se quisessem por a sua vontade a serviço dessa força, seriam capazes de rea-

lizar o que até hoje chamais de prodígios, e que é simplesmente o desenvol-

vimento das faculdades humanas.

*

CAPITULO XXVII

PEDI E OBTEREIS

CONDIÇÕES DA PRECE - EFICÁCIA DA PRECE - AÇÃO DA

PRECE. TRANSMISSÃO DO PENSAMENTO - PRECES INTELIGÍVEIS

- DA PRECE PELOS MORTOS E PELOS ESPÍRITOS SOFREDORES -

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INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS: MODO DE ORAR - VENTURA DA

PRECE

CONDIÇÕES DA PRECE

1. E quando orais, não haveis de ser como os hipócritas, que gostam de orar em pé

nas sinagogas, e nos cantos das ruas, para serem vistos dos homens; em verdade vos digo,

que eles já receberam a sua recompensa. Mas tu, quando orares, entra no teu aposento, e fe-

chada a porta, ora a teu Pai em secreto; e teu Pai, que vê o que se passa em secreto, te dará a

paga. E quando orais não faleis muito, como os gentios; pois cuidam que pelo seu muito fa-

lar serão ouvidos. Não queirais portanto parecer-vos com eles; porque vosso Pai sabe o que

vos é necessário, primeiro que vós lho peçais. (MATEUS, VI: 5-8).

2. Mas quando vos puserdes em oração, se tendes alguma coisa contra alguém,

perdoai-lhe, para que também vosso Pai, que está nos Céus, vos perdoe os vossos pecados.

Porque se vós não perdoardes, também vosso Pai, que está nos céus, vos não há de perdoar

vossos pecados. (MARCOS, Xl: 25-26).

3. E propôs também esta parábola a uns que confiavam em si mesmos, como se

fossem justos, e desprezavam os outros: Subiram dois homens ao templo, a fazer oração:

um fariseu e outro publicano. O fariseu, posto em pé, orava lá no seu interior desta forma:

Graças te dou, meu Deus, porque não sou como os demais homens, que são uns ladrões,

uns injustos, uns adúlteros, como é também este publicano; jejuo duas vezes na semana,

pago o dízimo de tudo o que tenho. O publicano, pelo contrário, posto lá de longe, não ou-

sava nem ainda levantar os olhos ao céu, mas batia no peito, dizendo: Meu Deus, sê propí-

cio a mim, pecador. Digo-vos que este voltou justificado para a sua casa, e não o outro;

porque todo o que se exalta será humilhado, e todo o que se humilha será exaltado. (LU-

CAS, XVIII: 9-14).

4. As condições da prece foram claramente definidas por Jesus.

Quando orardes, diz ele, não vos coloqueis em evidência, mas orai em se-

creto. Não fingi orar demasiado, porque não será pelas muitas palavras que

sereis atendidos, mas pela sinceridade delas. Antes de orar, se tiverdes qual-

quer coisa contra alguém, perdoai-lhe, porque a prece não poderia ser agra-

dável a Deus, se não partisse de um coração purificado de todo sentimento

contrário à caridade. Orai, enfim, com humildade como o publicano, e não

com orgulho, como o fariseu. Examinai os vossos defeitos, e não as vossas

qualidades, e se vos comparardes aos outros, procurai o que existe de mau

em vós. (Ver cap. X, n°7 e 8).

EFICÁCIA DA PRECE

5. Por isso vos digo: todas as coisas que vós pedirdes orando, crede que as haveis

de ter, e que assim vos sucederão. (MARCOS, XI: 24).

6. Há pessoas que contestam a eficácia da prece, entendendo que,

por conhecer Deus as nossas necessidades, é desnecessário expô-las a Ele.

Acrescentam ainda que, tudo se encadeando no universo através de leis e-

ternas, nossos votos não podem modificar os desígnios de Deus.

Há leis naturais e imutáveis, sem dúvida, que Deus não pode anular

segundo os caprichos de cada um. Mas daí a acreditar que todas as circuns-

tâncias da vida estejam submetidas à fatalidade, a distância é grande. Se as-

sim fosse, o homem seria apenas um instrumento passivo, sem livre-arbítrio

e sem iniciativa. Nessa hipótese, só lhe caberia curvar a fronte ante os gol-

pes do destino, sem procurar evitá-los e não deveria esquivar-se dos perigos.

Deus não lhe deu o entendimento e a inteligência para que não os utilizasse,

a vontade para não querer, a atividade para cair na inação. O homem sendo

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livre de agir, num ou outro sentido, seus atos têm, para ele mesmo e para os

outros, conseqüências subordinadas às suas decisões. Em virtude da sua ini-

ciativa, há, portanto, acontecimentos que escapam forçosamente à fatalida-

de, e que nem por isso destroem a harmonia das leis universais, da mesma

maneira que o avanço ou o atraso dos ponteiros de um relógio não destrói a

lei do movimento, que regula o mecanismo do aparelho. Deus pode, pois,

atender a certos pedidos sem derrogar a imutabilidade das leis que regem o

conjunto, dependendo sempre o atendimento da Sua vontade.

7. Será ilógico concluir-se, desta máxima: "Aquilo que pedirdes pela

prece vos será dado", que basta pedir para obter, e injusto acusar a Provi-

dência se ela não atender a todos os pedidos que lhe fazem, porque ela sabe

melhor do que nós o que nos convém. Assim procede o pai prudente, que

recusa ao filho o que lhe seria prejudicial. O homem, geralmente, só vê o

presente; mas, se o sofrimento é útil para a sua felicidade futura, Deus o

deixará sofrer, como o cirurgião deixa o doente sofrer a operação que deve

curá-lo.

O que Deus lhe concederá, se pedir com confiança, é a coragem, a

paciência e a resignação. E o que ainda lhe concederá, são os meios de se li-

vrar das dificuldades, com a ajuda da idéia que lhe serão sugeridas pelos

Bons Espíritos, de maneira que lhe restará o mérito da ação. Deus assiste

aos que se ajudam a si mesmos, segundo a máxima: "Ajuda-te e o céu te a-

judará", e não aos que tudo esperam do socorro alheio, sem usar as próprias

faculdades. Mas, na maioria das vezes, preferimos ser socorridos por um mi-

lagre, sem nada fazermos. (Ver cap. XXV, n° 1 e segs.).

8. Tomemos um exemplo. Um homem está perdido num deserto; so-

fre horrivelmente de sede; sente-se desfalecer e deixa-se cair ao chão. Ora,

pedindo a ajuda de Deus, e espera; mas nenhum anjo vem lhe dar de beber.

No entanto, um Bom Espírito lhe sugere o pensamento de levantar-se e se-

guir determinada direção. Então, por um impulso instintivo, reúne suas for-

ças, levanta-se e avança ao acaso. Chegando a uma elevação do terreno,

descobre ao longe um regato, e com isso a coragem. Se tiver fé, exclamará:

"Graças, meu Deus, pelo pensamento que me inspiraste e pela força que me

deste". Se não tiver fé, dirá: "Que boa idéia tive eu! Que sorte eu tive, de

tomar o caminho da direita e não o da esquerda; o acaso, algumas vezes, nos

ajuda de fato! Quanto me felicito pela minha coragem e por não me haver

deixado abater!"

Mas, perguntarão, por que o Bom Espírito não lhe disse claramente:

"Siga este caminho, e no fim encontrarás o que necessitas"? Por que não se

mostrou a ele, para guiá-lo e sustentá-lo no seu abatimento? Dessa maneira

o teria convencido da intervenção da Providência. Primeiramente, para lhe

ensinar que é necessário ajudar-se a si mesmo e usar as próprias forças. De-

pois, porque, pela incerteza, Deus põe à prova a confiança e a submissão à

sua vontade.

Esse homem estava na situação da criança que, ao cair, vendo al-

guém, põe-se a gritar e espera que a levantem; mas, se não vê ninguém, es-

força-se e levanta-se sozinha.

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Se o anjo que acompanhou a Tobias lhe houvesse dito: "Fui enviado

por Deus para te guiar na viagem e te preservar de todo perigo", Tobias não

teria nenhum mérito. Foi por isso que o anjo só se deu a conhecer na volta.

AÇÃO DA PRECE. TRANSMISSÃO DO PENSAMENTO

9. A prece é uma invocação: por ela nos pomos em relação mental

com o ser a que nos dirigimos. Ela pode ter por objeto um pedido, um agra-

decimento ou um louvor. Podemos orar por nós mesmos ou pelos outros,

pelos vivos ou pelos mortos. As preces dirigidas a Deus são ouvidas pelos

Espíritos encarregados da execução dos seus desígnios; as que são dirigidas

aos Bons Espíritos vão também para Deus. Quando oramos para outros se-

res, e não para Deus, aqueles nos servem apenas de intermediários, de inter-

cessores, porque nada pode ser feito sem a vontade de Deus.

10. O Espiritismo nos faz compreender a ação da prece, ao explicar a

forma de transmissão do pensamento, seja quando o ser a quem oramos a-

tende ao nosso apelo, seja quando o nosso pensamento eleva-se a ele. Para

se compreender o que ocorre nesse caso, é necessário imaginar todos os se-

res, encarnados e desencarnados, mergulhados no fluido universal que pre-

enche o espaço, assim como na Terra estamos envolvidos pela atmosfera.

Esse fluido é impulsionado pela vontade, pois é o veículo do pensamento,

como o ar é o veículo do som, com diferença de que as vibrações do ar são

circunscritas, enquanto as do fluido universal se ampliam ao infinito. Quan-

do, pois, o pensamento se dirige para algum ser, na Terra ou no espaço, de

encarnado para desencarnado, ou vice-versa, uma corrente fluídica se esta-

belece de um a outro, transmitindo o pensamento, como o ar transmite o

som.

A energia da corrente está na razão direta da energia do pensamento

e da vontade. É assim que a prece é ouvida pelos Espíritos onde quer que e-

les se encontrem; é assim que os Espíritos se comunicam entre si, que nos

transmitem as suas inspirações, e que as relações se estabelecem à distância,

entre os próprios encarnados.

Esta explicação se dirige, sobretudo, aos que não compreendem a u-

tilidade da prece puramente mística. Não tem por fim materializar a prece,

mas tornar compreensíveis os seus efeitos, ao mostrar que ela pode exercer a

ação direta e positiva. Nem por isso está menos sujeita à vontade de Deus,

juiz supremo em todas as coisas, e único que pode dar eficácia à sua ação.

11. Pela prece, o homem atrai o concurso dos Bons Espíritos, que o

vêm sustentar nas suas boas resoluções e inspirar-lhe bons pensamentos. Ele

adquire assim a força moral necessária para vencer as dificuldades e voltar

ao caminho reto, quando dele se afastou; e assim também pode desviar de si

os males que atrairia pelas suas próprias faltas. Um homem, por exemplo,

sente a sua saúde arruinada pelos excessos que cometeu, e arrasta, até o fim

dos seus dias, uma vida de sofrimentos. Tem o direito de queixar-se, se não

conseguir a cura? Não, porque poderia encontrar na prece a força para resis-

tir às tentações.

12. Se dividirmos os males da vida em duas categorias, sendo uma a

dos que o homem não pode evitar, e outra a das tribulações que ele mesmo

provoca, por sua incúria e pelos seus excessos (Ver cap. V, n° 4), veremos

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que esta última é muito mais numerosa que a primeira. Torna-se, pois, evi-

dente que o homem é o autor da maioria das suas aflições, e que poderia

poupar-se, se agisse sempre com sabedoria e prudência.

É certo, também, que essas misérias resultam das nossas infrações às

leis de Deus, e que, se as observássemos rigorosamente, seríamos perfeita-

mente felizes. Se não ultrapassássemos os limites do necessário, na satisfa-

ção das nossas exigências vitais, não sofreríamos as doenças que são provo-

cadas pelos excessos, e as vicissitudes decorrentes dessas doenças. Se limi-

tássemos as nossas ambições, não temeríamos a ruína. Se não quiséssemos

subir mais alto do que podemos, não recearíamos a queda. Se fossemos hu-

mildes, não sofreríamos as decepções do orgulho abatido. Se praticássemos

a lei de caridade, não seríamos maledicentes, nem invejosos, nem ciumen-

tos, e evitaríamos as querelas e as dissensões. Se não fizéssemos nenhum

mal a ninguém, não teríamos de temer as vinganças, e assim por diante.

Admitamos que o homem nada pudesse fazer contra os outros males;

que todas as preces fossem inúteis para livrar-se deles; já não seria muito,

poder afastar todos os que decorrem da sua própria conduta? Pois bem: nes-

te caso concebe-se facilmente a ação da prece, que tem por fim atrair a ins-

piração salutar dos Bons Espíritos, pedir-lhes a força necessária para resis-

tirmos aos maus pensamentos, cuja execução pode nos ser funesta. E, para

nos atenderem nisto, não é o mal que eles afastam de nós, mas é a nós que

eles afastam de pensamento que nos pode causar o mal: não embaraçam em

nada os desígnios de Deus, nem suspendem o curso das leis naturais, mas é

a nós que impedem de infringirmos as leis, ao orientarem o nosso livre-

arbítrio. Mas o fazem sem o percebermos, de maneira oculta para não preju-

dicarem a nossa vontade. O homem se encontra então na posição de quem

solicita bons conselhos e os segue, mas conservando a liberdade de segui-

los ou não. Deus quer que assim seja para que ele tenha a responsabilidade

dos seus atos e para lhe deixar o mérito da escolha entre o bem e o mal. É

isso o que o homem sempre receberá se pedir com fervor, e a que se poderá,

sobretudo, aplicar estas palavras: "Pedi e obtereis".

A eficácia da prece, mesmo reduzida a essas proporções, não daria

imenso resultado? Estava reservado ao Espiritismo provar a sua ação, pela

revelação das relações entre o mundo corpóreo e mundo espiritual. Mas não

se limitam a isso os seus efeitos. A prece é recomendada por todos os Espí-

ritos. Renunciar a ela é ignorar a bondade de Deus; é rejeitar para si mesmo

a Sua assistência; e para os outros, o bem que se poderia fazer.

13. Ao atender o pedido que lhe é dirigido, Deus tem freqüentemente

em vista recompensar a intenção, o devotamento e a fé daquele que ora. Eis

porque a prece do homem de bem tem mais merecimento aos olhos de Deus,

e sempre maior eficácia. Porque o homem vicioso e mau não pode orar com

o fervor e confiança que só o sentimento da verdadeira piedade pode dar. Do

coração do egoísta, daquele que só ora com os lábios, não poderiam sair

mais do que palavras, e nunca os impulsos da caridade, que dão à prece toda

a sua força. Compreende-se isso tão bem que, instintivamente, preferimos

recomendar-nos às preces daqueles cuja conduta nos parece que deve agra-

dar a Deus, pois que são mais bem executadas.

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14. Se a prece exerce uma espécie de ação magnética, podemos su-

por que o seu efeito estivesse subordinado à potência fluídica. Entretanto,

não é assim. Desde que os Espíritos exercem esta ação sobre os homens, e-

les suprem, quando necessário, a insuficiência daquele que ora, seja através

de uma ação direta em seu nome, seja ao lhe conferirem momentaneamente

uma força excepcional, quando ele for julgado digno desse benefício, ou

quando isso possa ser útil.

O homem que não se julga suficientemente bom para exercer uma

influência salutar, não deve deixar de orar por outro, por pensar que não é

digno de ser ouvido. A consciência de sua inferioridade é uma prova de hu-

mildade, sempre agradável a Deus, que leva em conta a sua intenção carido-

sa. Seu fervor e sua confiança em Deus constituem o primeiro passo do seu

retorno ao bem, que os Bons Espíritos se sentem felizes de estimular. A pre-

ce que é repelida é a do orgulhoso, que só tem fé no seu poder e nos seus

méritos, e julga poder substituir-se à vontade do Eterno.

15. O poder da prece está no pensamento, e não depende nem das pa-

lavras, nem do lugar, nem do momento em que é feita. Pode-se, pois, orar

em qualquer lugar e a qualquer hora, a sós ou em conjunto. A influência do

lugar ou do tempo depende das circunstâncias que possam favorecer o reco-

lhimento. A prece em comum tem ação mais poderosa, quando todos os que

a fazem se associam de coração num mesmo pensamento e têm a mesma fi-

nalidade, porque então é como se muitos clamassem juntos e em uníssono.

Mas que importaria estarem reunidos em grande número, se cada qual agisse

isoladamente e por sua própria conta? Cem pessoas reunidas podem orar

como egoístas, enquanto duas ou três, ligadas por uma aspiração comum,

orarão como verdadeiros irmãos em Deus, e sua prece terá mais força do

que a daquelas cem. (Ver cap. XXVIII, n° 4 e 5).

PRECES INTELIGÍVEIS

16. Se eu, pois, não entender o que significam as palavras, serei um bárbaro para

aquele a quem falo; e o que fala, sê-lo-á para mim do mesmo modo. Porque se eu orar nu-

ma língua estrangeira, verdade é que o meu espírito ora, mas o meu entendimento fica sem

fruto. Mas se louvares com o espírito, o que ocupa o lugar do simples povo como dirá A-

mém sobre a tua bênção, visto não entender ele o que tu dizes? Verdade é que tu dás bem as

graças, mas o outro não é edificado. (S. PAULO, l Cor., XIV: 11, 14, 16-17).

17. A prece só tem valor pelo pensamento que a informa. Ora, é im-

possível ligar um pensamento àquilo que não se compreende, pois o que não

se compreende não pode tocar o coração. Para a grande maioria, as preces

numa língua desconhecida não passam de mistura de palavras que nada di-

zem ao espírito. Para que a prece toque o coração é necessário que cada pa-

lavra revele uma idéia, e se não a compreendermos, ela não pode revelar ne-

nhuma. Podemos repeti-la como simples fórmula, cuja virtude estará apenas

no menor ou maior número das repetições. Muitos oram por dever, alguns,

mesmo, para seguir o costume; eis porque eles se julgam quites com o de-

ver, depois de uma prece repetida por certo número de vezes e segundo de-

terminada ordem. Mas Deus lê no íntimo dos corações; perscruta o nosso

pensamento e a nossa sinceridade; e considerá-lo mais sensível à forma do

que ao fundo seria rebaixá-lo. (Ver cap. XXVIII, n° 2).

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DA PRECE PELOS MORTOS E PELOS ESPÍRITOS SOFRE-

DORES

18. Os Espíritos sofredores reclamam preces, e essas lhe são de utili-

dade, pois ao verem que são lembrados, sentem-se menos abandonados e

menos infelizes. Mas a prece tem sobre eles uma ação mais direta: reergue-

lhes a coragem, excita-lhes o desejo de se elevarem, pelo arrependimento e

pela reparação, e pode desviá-los do pensamento do mal. É nesse sentido

que ela pode não somente aliviar, mas abreviar-lhes os sofrimentos. (Ver O

Céu e o Inferno, IIª parte: Exemplos).

19. Algumas pessoas não admitem a prece pelos mortos, porque a-

creditam que a alma só tem uma alternativa: ser salva ou condenada às pe-

nas eternas. Num e noutro caso, portanto, a prece seria inútil. Sem discutir o

valor dessa crença, admitamos por um instante a realidade das penas eternas

e irremissíveis, e que as nossas preces sejam impotentes para interrompê-las.

Perguntamos se, mesmo com essa hipótese, é lógico, é caridoso, é cristão,

recusar a prece pelos réprobos? Essas preces, por mais impotentes que sejam

para libertá-los, não serão para eles uma prova de piedade, que poderá mino-

rar-lhes os sofrimentos? Na Terra, quando um homem é condenado à prisão

perpétua, mesmo que não haja nenhuma esperança de obter-se a graça para

ele, é proibido a uma pessoa caridosa auxiliá-lo a carregar o peso dos gri-

lhões? Quando alguém está atacado de mal incurável, não havendo, portan-

to, nenhuma esperança de cura, deve-se abandoná-lo sem nenhum alívio.

Pensai que entre os réprobos pode estar uma pessoa que vos seja cara: um

amigo, talvez um pai, a mãe ou um filho, e só porque, segundo julgais, essa

criatura não pode ser perdoada, poderíeis recusar-lhe um copo d'água para

mitigar a sede, um bálsamo para secar-lhe as feridas? Não faríeis por ela o

que faríeis por um prisioneiro? Não lhe daríeis uma prova de amor, uma

consolação? Não, isso não seria cristão. Uma crença que endurece o coração

não pode conciliar-se com a crença num Deus que coloca, como o primeiro

de todos os deveres, o amor do próximo!

Negar a eternidade das penas não implica negar uma penalidade

temporária, mesmo porque, na sua justiça, Deus não pode confundir o mal

com o bem. Ora, nesse caso, negar a eficácia da prece seria negar a eficácia

da consolação, dos estímulos e dos bons conselhos; e isso equivaleria a ne-

gar a força que haurimos de assistência moral dos que nos amam.

20. Outros se fundam numa razão mais especial: a imutabilidade dos

desígnios divinos. Deus, dizem eles, não pode modificar as suas decisões a

pedido das criaturas, pois caso contrário nada seria estável no mundo. O

homem nada tem, portanto, de pedir a Deus, cabendo-lhes apenas submeter-

se a adorá-lo.

Há nesta idéia uma falsa interpretação da imutabilidade da lei divina,

ou melhor, ignorância da lei, no que concerne à penalidade futura. Essa lei é

revelada pelos Espíritos do Senhor, hoje que o homem já amadureceu para

compreender o que, na lei, é conforme ou contrário aos atributos divinos.

Segundo o dogma da eternidade absoluta das penas, nem os remor-

sos e o arrependimento são considerados a favor do culpado. Para ele, todo

o desejo de melhorar-se é inútil: está condenado a permanecer eternamente

no mal. Se foi condenado, entretanto, por um determinado tempo, a pena

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cessará no fim do prazo. Mas quem pode afirmar que ele terá então melho-

rado os seus sentimentos? Quem dirá que, a exemplo de muitos condenados

da Terra, ao sair da prisão, ele não será tão mau quanto antes? No primeiro

caso, seria manter sob a dor do castigo um homem que se tornara bom; no

segundo, seria agraciar àquele que continua culpado. A lei de Deus é mais

previdente: sempre justa, equitativa e misericordiosa, não fixa nenhuma du-

ração para a pena, qualquer que seja. Ela se resume assim:

21. "O homem sofre sempre a conseqüência das suas faltas; não há

uma única infração à lei de Deus, que não tenha a sua punição".

"A severidade do castigo é proporcional à gravidade da falta". A du-

ração do castigo, para qualquer falta, é indeterminada, pois fica subordinada

ao arrependimento do culpado e ao seu retorno ao bem; assim, a pena dura

tanto quanto a obstinação no mal; seria perpétua, se a obstinação o fosse; é

de curta duração, se o arrependimento vier logo".

"Desde que o culpado clame por misericórdia, Deus o ouve e lhe

concede a esperança. Mas o simples remorso não basta: é necessária a repa-

ração da falta. É por isso que o culpado se vê submetido a novas provas, nas

quais ele pode, sempre pela sua própria vontade, fazer o bem para a repara-

ção do mal anteriormente praticado".

"O homem é assim o árbitro constante da sua própria sorte. Ele pode

abreviar o seu suplício ou prolongá-lo indefinidamente. Sua felicidade ou

sua desgraça dependem da sua vontade de fazer o, bem".

Essa é a lei; lei imutável e conforme à bondade e à justiça de Deus.

O Espírito culpado e infeliz, dessa maneira, pode sempre salvar- se a

si mesmo: a lei de Deus lhe diz sob quais condições ele pode fazê-Io. O que

geralmente lhe falta é a vontade, a força e a coragem. Se, pelas nossas pre-

ces, lhe inspiramos essa vontade, se o amparamos e encorajamos; se, pelos

nossos conselhos, lhe damos as luzes que lhe faltam, em vez de solicitar a

Deus que derrogue a sua lei, tornamo-nos instrumentos da execução dessa

lei de amor e caridade, da qual ele assim nos permite participar, para darmos

nós mesmos uma prova de caridade. (Ver O Céu e o Inferno, I

parte, caps.

IV, Vil e VIII).

INSTRUÇÕES DOS ESPÍRITOS

MODO DE ORAR

• V. Monod •

Bordeaux, 1862

22. O primeiro dever de toda criatura humana, o primeiro ato que

deve assinalar o seu retorno à atividade diária, é a prece. Vós orais quase to-

dos, mas quão poucos sabem realmente orar! Que importa ao Senhor as fra-

ses que ligais maquinalmente uma às outras, porque já vos habituastes a re-

peti-las, porque é um dever que tendes de cumprir, e que vos pesa, como to-

do o dever!

A prece do cristão, do Espírita, principalmente, de qualquer culto

que seja (

Nos primeiros tempos, os adeptos do espiritismo ainda permaneciam muitas ve-

zes ligados às igrejas de que provinham. O mesmo aconteceu também com o Cristianismo

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dos primeiros tempos. N. do T.) deve ser feita no momento em que o Espírito re-

toma o jugo da carne, e deve elevar-se com humildade aos pés da Majestade

Divina, mas também com profundeza, num impulso de reconhecimento por

todos os benefícios recebidos até esse dia. E de agradecimento, ainda, pela

noite transcorrida, durante a qual lhe foi permitido, embora não guarde a

lembrança, retornar junto aos amigos e aos guias, para nesse contato haurir

novas forças e mais perseverança. Deve elevar-se humilde aos pés do Se-

nhor, pedindo pela sua fraqueza, suplicando o seu amparo, a sua indulgên-

cia, a sua misericórdia. E deve ser profunda, porque é a vossa alma que deve

elevar-se ao Criador, e que deve transfigurar-se, como Jesus no Tabor, para

chegar até Ele, branca e radiante de esperança e de amor.

Vossa prece deve encerrar o pedido das graças de que necessitais,

mas de que necessitais realmente. Inútil, portanto, pedir ao Senhor que abre-

vie as vossas provas, o que vos dê alegrias e riquezas. Pedi-lhe antes os bens

mais preciosos da paciência, da resignação e da fé. Evitai dizer, como o fa-

zem muitos dentre vós: "Não vale a pena orar, porque Deus não me atende".

O que pedis a Deus, na maioria das vezes? Já vos lembrastes de pedir a vos-

sa melhoria moral? Oh, não, tão poucas vezes! O que vos lembrais de pedir

é o sucesso para os vossos empreendimentos terrenos, e depois exclamais:

"Deus não se preocupa conosco; se o fizesse, não haveria tantas injustiças!"

Insensatos, ingratos! Se mergulhásseis no fundo da nossa consciência, quase

sempre ali encontraríeis o motivo dos males de que vos queixais. Pedi, pois,

antes de tudo, para vos tornares melhores, e vereis que torrentes de graças e

consolações se derramarão sobre vós! (Ver cap. V, n° 4).

Deveis orar incessantemente, sem para isso procurardes o vosso ora-

tório ou cairdes de joelhos nas praças públicas. A prece diária é o próprio

cumprimento dos vossos deveres, mas dos vossos deveres sem exceção, de

qualquer natureza que sejam. Não é um ato de amor para com o Senhor as-

sistirdes os vossos irmãos numa necessidade qualquer, moral ou física? Não

é um ato de reconhecimento a elevação do vosso pensamento a Ele, quando

uma felicidade vos chega, quando evitais um acidente, ou mesmo quando

uma simples contrariedade vos aflora à alma, e dizeis mentalmente: "Seja

bendito o Senhor!"? Não é um ato de contrição, quando sentis que falistes,

dizerdes humilde para o Supremo Juiz, mesmo que seja num rápido pensa-

mento: "Perdoai-me Deus meu, pois que pequei (por orgulho, por egoísmo

ou por falta de caridade); dai-me a força de não tornar a falir, e a coragem

de reparar a minha falta?”

Isto independe das preces regulares da manhã e da noite, e dos dias

consagrados, pois, como vedes a prece pode ser de todos os instantes, sem

interromper os vossos afazeres; e até, pelo contrário, assim feita, ela os san-

tifica. E não duvideis de que um só desses pensamentos, partindo do cora-

ção, é mais ouvido por vosso Pai celestial do que as longas preces repetidas

por hábito, quase sempre sem um motivo imediato, apenas porque a hora

convencional maquinalmente vos chama.

VENTURA DA PRECE

• Santo Agostinho •

Paris, 1861

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23. Vinde, todos vós que desejais crer: acorrem os Espíritos celestes,

e vêm anunciar-vos grandes coisas! Deus, meus filhos, abre os seus tesou-

ros, para vos distribuir os seus benefícios. Homens incrédulos! Se soubés-

seis como a fé beneficia o coração, e leva a alma ao arrependimento e à pre-

ce! A prece. Ah! Como são tocantes as palavras que se desprendem dos lá-

bios na hora da prece! Porque a prece é o orvalho divino, que suaviza o ex-

cessivo calor das paixões. Filha predileta da fé, leva-nos ao caminho que

conduz a Deus. No recolhimento e na solidão encontrai-vos com Deus; e pa-

ra vós o mistério se desfaz, porque Ele se revela. Apóstolos do pensamento,

a verdadeira vida se abre para vós. Vossa alma se liberta da matéria e se lan-

ça pelos mundos infinitos e etéreos, que a pobre Humanidade desconhece.

Marchai, marchai, pelos caminhos da prece, e ouvireis a voz dos An-

jos! Que harmonia! Não são mais os ruídos confusos e as vozes gritantes da

Terra. São as liras dos Arcanjos, as vozes doces e meigas dos Serafins, mais

leves que as brisas da manhã, quando brincam nas ramagens dos vossos ar-

voredos. Com que alegria então marchais! Vossa linguagem terrena não po-

derá exprimir jamais essa ventura, que vos impregna por todos os poros, tão

viva e refrescante é a fonte em que bebemos através da prece! Doces vozes,

inebriantes perfumes, que a alma ouve e aspira, quando se lança, pela prece,

a essas esferas desconhecidas e habitadas! São divinas todas as aspirações,

quando livres dos desejos carnais. Vós também, como Cristo, orai, carre-

gando a vossa cruz para o Gólgota, para o vosso Calvário. Levai-a, e senti-

reis as doces emoções que lhe passava pela alma, embora carregasse o ma-

deiro infamante. Sim, porque ele ia morrer, mas para viver a vida celestial,

na morada do Pai!

*

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APÊNDICE

EMMANUEL

Livro: Emmanuel

Psicografia de Francisco Cândido Xavier

XXVI - OS TEMPOS DO CONSOLADOR

A permissão de Deus para que nos manifestássemos ostensivamente,

entre os agrupamentos dos nossos irmãos encarnados, chegou, justamente, a

seu tempo, quando o espírito humano despido das vestes da puberdade, com

o juízo amadurecido para assimilar algo da Verdade, tateava entre vacila-

ções e incertezas, estabelecidas pela investigação da Ciência, sem conseguir

adaptar-se ao demasiado simbolismo das idéias religiosas, latentes na alma

humana, desde os tempos primevos dos trogloditas.

Justamente na época requerida, consoante as profecias do Divino

Mestre, derramou-se da sua luz sobre toda a carne, e os emissários do Alto,

segundo as suas possibilidades e aos méritos individuais, têm auxiliado a

ascensão dos conhecimentos humanos para os planos elevados da espiritua-

lidade.

A CONCEPÇÃO DA DIVINDADE

Desde as eras primárias da Civilização, a idéia de um poder superior,

interferindo nas questões mundanas, vem guiando o homem através dos seus

caminhos e a Religião sempre constituiu o maior fator da moral social, se

bem que apresentasse a divindade à semelhança do homem, em seus ensi-

namentos exotéricos.

O Cristianismo, inaugurando um novo ciclo de progresso espiritual,

renovou as concepções de Deus no seio das idéias religiosas; todavia, após a

sua propagação, várias foram as interpretações escriturísticas, dando azo a

que as facções sectaristas tentassem isoladamente, ser as suas únicas repre-

sentantes; a Igreja Católica e as numerosas seitas protestantes, nascidas do

ambiente por ela formado, têm levado longe a luta religiosa, esquecidas de

que a Providência Divina é Amor. Estabeleceram com a sua acanhada her-

menêutica os dogmas de fé, nutrindo-se das fortunas iníquas a que se refe-

rem os Evangelhos, prejudicando os necessitados e os infelizes.

A FÉ ANTE A CIÊNCIA

Mas, como o progresso não conhece obstáculos, os artigos de fé e-

quivaleram a estagnações isoladas. Se conseguiram satisfazer à Humanidade

em um período mais ou menos remoto da sua evolução, caducaram desde

que o laboratório obscureceu a sacristia.

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A Ciência desvendou ao espírito humano as perspectivas inconcebí-

veis do Infinito; o telescópio descortinou a grandeza do Universo e os novos

conhecimentos cosmogônicos demandaram outra concepção do Criador.

Desvendando, paulatinamente, as sublimes grandiosidades da natureza invi-

sível, a Ciência embriagou-se com a beleza de tão lindos mistérios e estabe-

leceu o caminho positivo para encontrar Deus, como descobrira o mundo

microbiano, ao preço de acuradas perquirições. É que a Divindade das reli-

giões vigentes era defeituosa e deformada pelos seus atributos exclusiva-

mente humanos; as igrejas estavam acorrentadas ao dogmatismo e escravi-

zadas aos interesses do mundo. A confusão estabeleceu-se. Foi quando o

Espiritismo fez sentir mais claramente a grandeza do seu ensinamento, diri-

gindo-se não só ao coração, mas igualmente ao raciocínio. O céu descerrou

um fragmento do seu mistério e a voz dos Espaços se fez ouvir.

OS ESCLARECIMENTOS DO ESPIRITISMO

Foi assim que a religião da verdade surgiu na Terra, no momento

oportuno. As Igrejas estagnadas encontravam-se no obsoletismo, incapazes

de sancionar as idéias novas, vivendo quase que exclusivamente das suas ca-

racterísticas de materialidade e do seu simbolismo, terminado o tempo de

sua necessária influência no mundo. As conquistas científicas não se coadu-

navam com o espírito dogmático, e o Espiritismo, com as suas lições magní-

ficas, alargou infinitamente a perspectiva da vida universal. Explicando e

provando que a existência não se observa somente na face da Terra opaca e

cheia de dores.

Há céus inumeráveis e inumeráveis mundos onde a vida palpita nu-

ma eterna mocidade; todos eles se encadeiam, se abraçam dentro do magne-

tismo universal, vivificados pela luz, imagem real da alma Divina, presente

em toda parte.

A carne é uma vestimenta temporária, organizada segundo a vibra-

ção espiritual, e essa mesma vibração esclarece todos os enigmas da maté-

ria.

NÓS VIVEREMOS ETERNAMENTE

A Doutrina dos Espíritos, pois, veio desvendar ao homem o panora-

ma da sua evolução e esclarecê-lo no problema das suas responsabilidades,

porque a vida não é privilégio da Terra obscura, mas a manifestação do Cri-

ador em todos os recantos do Universo.

Nós viveremos eternamente, através do Infinito e o conhecimento da

imortalidade expõe os nossos deveres de solidariedade para com todos os

seres, em nosso caminho; por esta razão, a Doutrina Espiritista é uma sínte-

se gloriosa de fraternidade e de amor. O seu grande objeto é esclarecer a in-

teligência humana.

Oxalá possam os homens compreender a excelsitude do ensinamento

dos Espíritos e aproveitar o fruto bendito das suas experiências; com o en-

tendimento esclarecido, interpretarão com fidelidade o “Amai-vos uns aos

outros”, em sua profunda significação.

Os instrutores dos planos espirituais, em que nos achamos, regozi-

jam-se com todos os triunfos da vossa ciência, porque toda conquista impor-

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ta em grande e abençoado esforço e, pelo trabalho perseverante, o homem

conhecerá todas as leis que lhe presidem ao destino.

*

XXVII - OS DOGMAS E OS PRECONCEITOS

Os maiores obstáculos, para que se propaguem no seio das socieda-

des modernas os ensinamentos salutares e proveitosos do Consolador, são

constituídos pelas imensas barreiras que lhes levantam os dogma e precon-

ceitos de todos os matizes, nas escolas científicas e facções religiosas, mili-

tantes em todas as partes do Globo.

AÇÕES PERTURBADORAS

Muitos espíritos, afeitos ao tradicionalismo intransigente e rotineiro,

são incapazes de conceber a estrada ascensional do progresso, como de fato

ela é, cheia de lições novas e crescentes resplendores; é assim que, comple-

tando as longas fileiras de retardatários, perturbam, às vezes, a paz dos que

estudam devotamente no livro maravilhoso da Vida, com as suas opiniões

disparatadas, prevalecendo-se de certas posições mundanas, abusando de

prerrogativas transitórias que lhes são outorgadas pelas fortunas iníquas.

Não conseguem, porém, mais do que estabelecer a confusão, sem

que as suas mentes egoístas tragam algo de belo, de novo ou de verdadeiro,

que aproveite ao progresso geral. Seus trabalhos se prestam unicamente às

suas experiências pessoais nos domínios do conhecimento, não conseguindo

viver na memória dos pósteros, porquanto a veneração da posteridade é uma

galeria gloriosa reservada, quase que invariavelmente, aos que passaram na

Terra perseguidos e desprezados, e que se impuseram à Humanidade ofer-

tando-lhe generosamente o fruto abençoado dos seus sacrifícios imensos e

das suas dores incontáveis.

CARACTERÍSTICAS DA SOCIEDADE MODERNA

Desalentadoras são as características da sociedade moderna, porque,

se a coletividade se orgulha dos seus progressos físicos, o homem se encon-

tra, moralmente, muito distanciado dessa evolução. Semelhante anomalia é a

conseqüência inevitável da ignorância das criaturas, com respeito à sua pró-

pria natureza, desconhecimento deplorável que as incita a todos os desvios.

Vivendo apenas entre as coisas relativas à matéria, submergem nas superfi-

cialidades prejudiciais ao seu avanço espiritual. Ignoram, quase que total-

mente, o que sejam as suas forças latentes e as suas possibilidades infinitas,

adormecendo ao canto embalador dos gozos falsos do “eu pessoal”, e apenas

os sofrimentos e as dificuldades as obrigam a despertar para a existência es-

piritual, na qual reconhecem quanta alegria dimana do exercício do Bem e

da prática da virtude, entre as santas lições da verdadeira fraternidade.

A CIÊNCIA E A RELIGIÃO

Infelizmente, se a Ciência e a Religião constituem as forças matrizes

de esclarecimento das almas, vemos uma empoleirada na negação absoluta e

a outra nas afirmações arriscadas e absurdas. A Ciência criou a academia, e

a religião sectarista criou a sacristia; uma e outra, abarrotadas de dogmas e

preconceitos, repelindo-se como pólos contrários, dentro dos seus conflitos

têm somente realizado separação em vez de união, guerra em vez de paz,

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descrença em vez de fé, arruinando as almas e afastando-as da luz da verda-

deira espiritualidade.

Entre a força de um preconceito e o atrevimento de um dogma, o es-

pírito se perturba, e, no círculo dessas vibrações antagônicas, acha-se sem

bússola no mundo das coisas subjetivas, concentrando, naturalmente, na es-

fera das coisas físicas, todas as suas preocupações.

O TRABALHO DOS INTELECTUAIS

É por essa razão que de grandes responsabilidades se investem aque-

les que se entregam na Terra aos labores espirituais sob todos os aspectos

em que se nos apresentam; grandes serviços constam de suas incumbências

e elevada conta lhes será solicitada dos seus afazeres sobre a face do plane-

ta. Dolorosas decepções os aguardam na existência de além-túmulo, quando

menosprezam as suas possibilidades para o bem comum, fazendo de suas

faculdades intelectuais objeto de mercantilismo, em troca de prebendas, as

quais, augurando-lhes um porvir de repouso egoístico na vida transitória, os

fazem estacionários e nocivos às coletividades, o que equivale a existências

de provas amargas, entre prolongadas obliterações dos seus poderes de ex-

pressão.

Não é que o artista e o pensador devam aderir a este ou àquele siste-

ma religioso, ou alistar-se sob determinada bandeira filosófica; o que se faz

mister é compreender a necessidade da tarefa de espiritualização, trabalhan-

do no edifício sublime do progresso comum, colaborando na campanha de

regeneração e de reforma dos caracteres, auxiliando todas as idéias nobres e

generosas, em qualquer templo, facção ou casta em que vicejem, espirituali-

zando as suas concepções, transformando a ação inteligente num apelo a to-

dos os espíritos para a perfeição, desvendando-lhes os segredos da beleza,

da luz, do bem, do amor, através da arte na Ciência e na Religião, em suas

manifestações mais rudimentares.

Que todos operem na difusão da verdade, quebrando a cadeia férrea

dos formalismos impostos pelas pseudo-autoridades da cátedra ou do altar,

amando a vida terrena com intensidade e devotamento, cooperando para que

se ampliem as suas condições de perfectibilidade, convencendo-se de que as

suas felicidades residem nas coisas mais simples.

*

Livro: O Consolador (Emmanuel)

(Psicografia de Francisco Cândido Xavier

CULTURA

RAZÃO

197 – Como se observa, no plano espiritual, o patrimônio da cultura

terrestre?

-Todas as expressões da cultura humana são apreciadas, na esfera in-

visível, como um repositório sagrado de esforços do homem planetário em

seus labores contínuos e respeitáveis.

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70

Todavia, é preciso encarecer que, neste “outro lado” da vida, a vossa

posição cultural é considerada como processo, não como fim, porquanto este

reside na perfeita sabedoria, síntese gloriosa da alma que se edificou a si

mesma, através de todas as oportunidades de trabalho e de estudo da exis-

tência material.

Entre a cultura terrestre e a sabedoria do espírito há singular diferen-

ça, que é preciso considerar. A primeira se modifica todos os dias e varia de

concepção nos indivíduos que se constituem seus expositores, dentro das

mais evidentes características de instabilidade; a segunda, porém, é o conhe-

cimento divino, puro e inalienável, que a alma vai armazenando no seu ca-

minho, em marcha para a vida imortal.

198 – Pode o racionalismo garantir a linha de evolução da Terra?

-Por si só, o racionalismo não pode efetuar esse esforço grandioso,

mesmo porque, todos os centros da cultura terrestre têm abusado largamente

desse conceito. Nos seus excessos, observamos uma venerável civilização

condenada a amarguradas ruínas. A razão sem o sentimento é fria e impla-

cável como os números, e os números podem ser fatores de observação e ca-

talogação da atividade, mas nunca criaram a vida. A razão é uma base indis-

pensável, mas só o sentimento cria e edifica. É por esse motivo que as con-

quistas do humanismo jamais poderão desaparecer nos processos evolutivos

da Humanidade.

199 – Poderá a Razão dispensar a Fé?

-A razão humana é ainda muito frágil e não poderá dispensar a coo-

peração da fé que a ilumina, para a solução dos grandes e sagrados proble-

mas da vida.

Em virtude da separação de ambas, nas estradas da vida, é que ob-

servamos o homem terrestre no desfiladeiro terrível da miséria e da destrui-

ção.

Pela insânia da razão, sem a luz divina da fé, a força faz as suas der-

radeiras tentativas para assenhorear-se de todas as conquistas do mundo.

Falastes demasiadamente de razão e permaneceis na guerra da des-

truição, onde só perambulam miseráveis vencidos; revelastes as mais eleva-

das demonstrações de inteligência, mas mobilizais todo o conhecimento pa-

ra o morticínio sem piedade, pregastes a paz, fabricando os canhões homici-

das; pretendestes haver solucionado os problemas sociais, intensificando a

construção das cadeias e dos prostíbulos.

Esse progresso é o da razão sem a fé, onde os homens se perdem em

luta inglória e sem-fim.

200 – Onde localizar a origem dos desvios da razão humana?

-A origem desse desequilíbrio reside na defecção do sacerdócio, nas

várias igrejas que se fundaram nas concepções do Cristianismo. Ocultando a

verdade para que prevalecessem os interesses econômicos de seus transvia-

dos expositores, as seitas religiosas operaram os desvirtuamentos da fé, fi-

xando a sua atividade, por absoluta ausência de colaboração com o raciocí-

nio, no caminho infinito de conquistas da vida.

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201 – No quadro dos valores racionais, Ciência e Filosofia se inte-

gram mutuamente, objetivando as realizações do espírito?

-Ambas se completam no campo das atividades do mundo, como

dois grandes rios que, servindo a regiões diversas na esfera da produção in-

dispensável à manutenção da vida, se reúnem em determinado ponto do ca-

minho para desaguarem, juntos, no mesmo oceano, que é o da sabedoria.

202 – No problema da investigação, há limites para aplicação dos

métodos racionalistas?

-Esses limites existem, não só para a aplicação, como também para a

observação; limites esses que são condicionados pelas forças espirituais que

presidem à evolução planetária, atendendo à conveniência e ao estado de

progresso moral das criaturas.

É por esse motivo que os limites das aplicações e das análises cha-

madas positivas sempre acompanham e seguirão sempre o curso da evolu-

ção espiritual das entidades encarnadas na Terra.

203 – Como apreciar os racionalistas que se orgulham de suas rea-

lizações terrestres, nas quais pretendem encontrar valores finais e definiti-

vos?

-Quase sempre, os que se orgulham de alguma coisa caem no egoís-

mo isolacionista que os separa do plano universal, mas, os que amam o seu

esforço nas realizações alheias ou a continuidade sagrada das obras dos ou-

tros, na sua atividade própria, jamais conservam pretensões descabidas e

nunca restringem sua esfera de evolução, porquanto as energias profundas

da espiritualidade lhes santificam os esforços sinceros, conduzindo-os aos

grandes feitos através dos elevados caminhos da inspiração.

INTELECTUALISMO

204 – A alma humana poder-se-á elevar para Deus, tão-somente

com o progresso moral, sem os valores intelectivos?

O sentimento e a sabedoria são as duas asas com que a alma se ele-

vará para a perfeição infinita.

No círculo acanhado do orbe terrestre, ambos são classificados como

adiantamento moral e adiantamento intelectual, mas, como estamos exami-

nando os valores propriamente do mundo, em particular, devemos reconhe-

cer que ambos são imprescindíveis ao progresso, sendo justo, porém, consi-

derar a superioridade do primeiro sobre o segundo, porquanto a parte inte-

lectual sem a moral pode oferecer numerosas perspectivas de queda, na re-

petição das experiências, enquanto que o avanço moral jamais será excessi-

vo, representando o núcleo mais importante das energias evolutivas.

205 – Podemos ter uma idéia da extensão de nossa capacidade inte-

lectual?

-A capacidade intelectual do homem terrestre é excessivamente re-

duzida, em face dos elevados poderes da personalidade espiritual indepen-

dente dos laços da matéria.

Os elos da reencarnação fazem o papel de quebra-luz sobre todas as

conquistas anteriores do Espírito reencarnado. Nessa sombra, reside o acer-

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vo de lembranças vagas, de vocações inatas, de numerosas experiências, de

valores naturais e espontâneos, a que chamais subconsciência.

O homem comum é uma representação parcial do homem transcen-

dente, que será reintegrado nas suas aquisições do passado, depois de haver

cumprido a prova ou a missão exigidas pelas suas condições morais, no me-

canismo da justiça divina.

Aliás, a incapacidade intelectual do homem físico tem sua origem na

sua própria situação, caracterizada pela necessidade de provas amargas.

O cérebro humano é um aparelho frágil e deficiente, onde o Espírito

em queda tem de valorizar as suas realizações de trabalho.

Imaginai a caixa craniana, onde se acomodam células microscópicas,

inteiramente preocupadas com sua sede de oxigênio, sem dispensarem por

um milésimo de segundo a corrente do sangue que as irriga, a fragilidade

dos filamentos que as reúnem, cujas conexões são de cem milésimos de mi-

límetro, e tereis assim uma idéia exata da pobreza da máquina pensante de

que dispõe o sábio da Terra para as suas orgulhosas deduções, verificando

que, por sua condição de Espírito caído na luta expiatória, tudo tende a de-

monstrar ao homem do mundo a sua posição de humildade, de modo que,

em todas as condições, possa ele cultivar os valores legítimos do sentimen-

to.

206 – Como é considerada, no plano espiritual, a posição atual inte-

lectiva da Terra?

-Os valores intelectuais do planeta, nos tempos modernos, sofrem a

humilhação de todas as forças corruptoras da decadência. A atual geração,

que tantas vezes se entregou à jactância, atribuindo a si mesma as mais altas

conquistas no terreno do raciocínio positivo, operou os mais vastos desequi-

líbrios nas correntes evolutivas do orbe, com o seu injustificável divórcio do

sentimento.

Nunca os círculos educativos da Terra possuíram tanta facilidade de

amplificação, como agora, em face da evolução das artes gráficas; jamais o

livro e o jornal foram tão largamente difundidos; entretanto, a imprensa,

quase de modo geral, é órgão de escândalo para a comunidade e centro de

interesse econômico para o ambiente particular, enquanto que poucos livros

triunfam sem o bafejo da fortuna privada ou oficial, na hipótese de ventila-

rem os problemas elevados da vida.

207 – A decadência intelectual pode prejudicar o desequilíbrio do

mundo?

-Sem dúvida. E é por essa razão que observamos na paisagem políti-

co-social da Terra as aberrações, os absurdos teóricos, os extremismos ope-

rando a inversão de todos os valores.

Excessivamente preocupados com as suas extravagâncias, os missio-

nários da inteligência trocaram o seu labor junto ao espírito por um lugar de

domínio, como os sacerdotes religiosos que permutaram a luz da fé pelas

prebendas tangíveis da situação econômica. Semelhante situação operou na-

turalmente o mais alto desequilíbrio no organismo social do planeta, e, co-

mo prova real desse asserto, devemos recordar que a guerra de 1914-1918

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custou aos povos mais intelectualizados do mundo mais de cem mil bilhões

de francos, salientando-se que, com menos de centésima parte dessa impor-

tância, poderiam essas nações haver expulsado o fantasma da sífilis do cená-

rio da Terra.

208 - Há uma tarefa especializada da inteligência no orbe terrestre?

-Assim como numerosos Espíritos recebem a provação da fortuna,

do poder transitório e da autoridade, há os que recebem a incumbência sa-

grada, em lutas expiatórias ou em missões santificantes, de desenvolverem a

boa tarefa da inteligência em proveito real da coletividade.

Todavia, assim como o dinheiro e a posição de realce são ambientes

de luta, onde todo êxito espiritual se torna mais porfiado e difícil, o destaque

intelectual, muitas vezes, obscurece no mundo a visão do Espírito encarna-

do, conduzindo-o à vaidade injustificável, onde as intenções mais puras fi-

cam aniquiladas.

209 – O escritor de determinada obra será julgado pelos efeitos

produzidos pelo seu labor intelectual na Terra?

-O livro é igualmente como a semeadura. O escritor correto, sincero

e bem intencionado é o lavrador previdente que alcançará a colheita abun-

dante e a elevada retribuição das leis divinas à sua atividade. O literato fútil,

amigo da insignificância e da vaidade, é bem aquele trabalhador preguiçoso

e nulo que “semeia ventos para colher tempestades”. E o homem de inteli-

gência que vende a sua pena, a sua opinião e o seu pensamento no mercado

da calúnia, do interesse, da ambição e da maldade, é o agricultor criminoso

que humilha as possibilidades generosas da Terra, que rouba os vizinhos,

que não planta e não permite o desenvolvimento da semeadura alheia, culti-

vando espinhos e agravando responsabilidades pelas quais responderá um

dia, quando houver despido a indumentária do mundo, para comparecer ante

as verdades do Infinito.

210 – Os trabalhadores do Espiritismo devem buscar os intelectuais

para a compreensão dos seus deveres espirituais?

-Os operários da doutrina devem estar sempre bem dispostos na ofi-

cina do esclarecimento, todas as vezes que procurados pelos que desejem

cooperar sinceramente nos seus esforços. Mas provocar a atenção dos outros

no intuito de regenerá-los, quando todos nós, mesmos os desencarnados, es-

tamos em função de aperfeiçoamento e aprendizado, não parece muito justo,

porque estamos ainda com um dever essencial, que é o da edificação de nós

mesmos.

No labor da Doutrina, temos de convir que o Espiritismo é o Cristia-

nismo redivivo pelo qual precisamos fornecer o testemunho da verdade e,

dentro do nosso conceito de relatividade, todo o fundamento da verdade da

Terra está em Jesus-Cristo.

A verdade triunfa por si, sem o concurso das frágeis possibilidades

humanas. Alma alguma deverá procurá-la supondo-se elemento indispensá-

vel à sua vitória. Como seu órgão no planeta, o Espiritismo não necessita de

determinados homens para consolar e instruir as criaturas, depreendendo-se

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que os próprios intelectuais do mundo é que devem buscar, espontaneamen-

te, na fonte de conhecimentos doutrinários, o benefício de sua iluminação.

PERSONALIDADE

211 – Como compreender a noção de personalidade?

-A compreensão da personalidade, no mundo, vem sendo muito des-

viada de seus legítimos valores, pelos espíritos excêntricos, altamente preo-

cupados em se destacarem no vasto mundo das letras. Entendem muitos que

“ter personalidade” é possuir espírito de rebeldia e de contradição na palavra

sempre pronta a criticar os outros, no esquecimento de sua própria situação.

Outros entendem que o “homem de personalidade” deve sair mundo a fora,

buscando posições de notoriedade em falsos triunfos, porquanto exigem o

olvido pleno dos mais sagrados deveres do coração. Poucos se lembraram

dos bens da humildade e da renúncia, para a verdadeira edificação pessoal

do homem, porque, para a esfera da espiritualidade pura, a conquista da i-

luminação íntima vale tudo, considerando que todas as expressões da perso-

nalidade prejudicial e inquieta do homem terrestre passarão com o tempo,

quando a morte implacável houver descerrado a visão real da criatura.

212 – O homem sem grandes possibilidades intelectuais é sempre

um homem medíocre?

-O conceito de mediocridade modifica-se no plano de nossas con-

quistas universalistas, depois das transições da morte.

Aí no mundo, costumais entronizar o escritor que enganou o público,

o político que ultrajou o direito, o capitalista que se enriqueceu sem escrú-

pulos de consciência, colocados na galeria dos homens superiores. Exaltan-

do-lhes os méritos individuais com extravagâncias louvaminheiras, muito

falais em “mediocridade”, em “rebanho”, em “rotina”, em “personalidade

superior”.

Para nós, a virtude da resignação dos pais de família, criteriosos e

abnegados, no extenso rebanho de atividades rotineiras da existência terres-

tre, não se compara em grandeza com os dotes de espírito do intelectual que

gesticula desesperado de uma tribuna, sem qualquer edificação séria, ou que

se emaranha em confusões palavrosas na esfera literária, sem a preocupação

sincera de aprender com os exemplos da vida.

O trabalhador que passa a vida inteira trabalhando ao Sol no amanho

da terra, fabricando o pão saboroso da vida, tem mais valor para Deus que

os artistas de inteligência viciada, que outra coisa não fazem senão perturbar

a marcha divina das suas leis.

Vede, portanto, que a expressão de intelectualidade vale muito, mas

não pode prescindir dos valores do sentimento em sua essência sublime,

compreendendo-se afinal, que o “homem medíocre” não é o trabalhador das

lides terrestres, amoroso de suas realizações do lar e do sagrado cumprimen-

to de seus deveres, sobre cuja abnegação erigiu-se a organização maravilho-

sa do patrimônio mundano.

213 – Devemos acalentar a preocupação de adquirir os elementos

do chamado magnetismo pessoal?

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-Essa preocupação é muito nobre, mas ninguém suponha realizá-la

tão-só com a experiência da leitura de livros pertinentes ao assunto.

Não são poucos os que buscam essa literatura, desejosos de fórmulas

mágicas no caminho do menor esforço.

Todavia, o que é indispensável salientar é que nenhum estudioso po-

de conquistar simpatia sem que haja transformado o coração em manancial

de bondade espontânea e sincera. Na vida não basta saber. É imprescindível

compreender. Os livros ensinam, mas só o esforço próprio aperfeiçoa a alma

para a grande e abençoada compreensão. Esquecei a conquista fácil, a ope-

ração mecânica, injustificáveis nas edificações espirituais, e volvei a atenção

e o pensamento para o vosso próprio mundo interior. Muita coisa aí se tem a

fazer e, nesse bom trabalho, a alma se ilumina, naturalmente, aclarando o

caminho de seus irmãos.

214 – Como interpretar os impulsos daqueles que acreditam na in-

fluência dos chamados talismãs da felicidade pessoal?

-Criaturas há que, para manter sua energia espiritual sempre ativa,

precisam concentrar a atenção em algum objeto tangível, visando os estados

sugestivos indispensáveis às suas realizações, como esses crentes que não

prescindem de imagens e símbolos materiais para admitir a eficácia de suas

preces.

Ficai certos, porém, de que o talismã para a felicidade pessoal, defi-

nitiva, se constitui de um bom coração sempre afeito à harmonia, à humil-

dade e ao amor, no integral cumprimento dos desígnios de Deus.

215 – Os chamados “homens de sorte” são guiados pelos Espíritos

amigos?

-Aquilo que convencionastes apelidar “sorte” representa uma situa-

ção natural no mapa de serviços do Espírito reencarnado, sem que haja ne-

cessidade de admitirdes a intervenção do plano inviável na execução das

experiências pessoais.

A “sorte” é também uma prova de responsabilidade no mecanismo

da vida, exigindo muita compreensão da criatura que a recebe, no que se re-

fere à misericórdia divina, a fim de não desbaratar o patrimônio de possibi-

lidades sagradas que lhe foi conferido.

216 – O “amor-próprio”, o “brio”, o “caráter”, a “honra”, são ati-

tudes que a sociedade humana reclama da personalidade; como proceder

em tal caso, quando os fatos colidem com os nossos conhecimentos evangé-

licos?

-O círculo social exige semelhantes atitudes da personalidade e, con-

tudo, essa mesma sociedade ainda não soube entendê-las, senão pela pauta

das suas convenções, quando o amor-próprio, o brio, o caráter e a honra de-

veriam ser traços do aperfeiçoamento espiritual e nunca demonstrações de

egoísmo, de vaidade e orgulho, quais se manifestam, comumente, na Terra.

Quando o homem se cristianizar, compreendendo essas posições mo-

rais no seu verdadeiro prisma, não mais se verificará qualquer colisão entre

os acontecimentos da existência comum e os seus conhecimentos do Evan-

Page 76: K - KANT E KARDEC KANT E A CRÍTICA DA RAZÃO KARDEC …c3%83... · 1 José Fleurí Queiroz K - KANT E KARDEC KANT E A CRÍTICA DA RAZÃO KARDEC E A CRÍTICA DA FÉ "Fé inabalável

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gelho, porquanto o seu esforço será sempre o da cooperação sincera a favor

do reerguimento e da elevação espiritual dos semelhantes.

217 – Qual o modo mais fácil de levar a efeito a vigilância pessoal,

para evitar a queda em tentações?

-A maneira mais simples é o de cada um estabelecer um tribunal de

autocrítica, em consciência própria, procedendo para com outrem, na mesma

conduta de retidão que deseja da ação alheia para consigo próprio.

ILUMINAÇÃO

NECESSIDADE

218 – A propaganda doutrinária para a multiplicação dos prosélitos

é a necessidade imediata do Espiritismo?

-De modo algum. A direção do Espiritismo, na sua feição do Evan-

gelho redivivo, pertence ao Cristo e seus prepostos, antes de qualquer esfor-

ço humano, precário e perecível. A necessidade imediata dos arraiais espiri-

tistas é a do conhecimento e aplicação legítima do Evangelho, da parte de

todos quantos militam nas suas fileiras, desejosos de luz e de evolução. O

trabalho de cada um na iluminação de si mesmo deve ser permanente e me-

todizado. Os fenômenos acordam o espírito adormecido na carne, mas não

fornecem as luzes interiores, somente conseguidas à custa de grande esforço

e trabalho individual. A palavra dos guias e mentores do Além ensina, mas

não pode constituir elementos definitivos de redenção, cuja obra exige de

cada um sacrifícios e renúncias santificantes, no laborioso aprendizado da

vida.

219 – Nos trabalhos espiritistas, onde poderemos encontrar a fonte

principal de ensino que nos oriente para a iluminação? Poderemos obtê-la

com as mensagens de nossos entes queridos, ou apenas com o fato de guar-

darmos o valor da crença no coração?

-Numerosos filósofos hão compendiado as teses e conclusões do Es-

piritismo no seu aspecto filosófico, científico e religioso; todavia, para a i-

luminação do íntimo, só tende no mundo o Evangelho do Senhor, que ne-

nhum roteiro doutrinário poderá ultrapassar.

Aliás, o Espiritismo em seus valores cristãos não possui finalidade

maior que a de restaurar a verdade evangélica para os corações desesperados

e descrentes do mundo.

Teorias e fenômenos inexplicáveis sempre houve no mundo. Os es-

critores e os cientistas doutrinários poderão movimentar seus conhecimentos

na construção de novos enunciados para as filosofias terrestres, mas a obra

definitiva do Espiritismo é a da edificação da consciência profunda no E-

vangelho de Jesus-Cristo.

O plano invisível poderá trazer-vos as mensagens mais comovedoras

e convincentes dos vossos bem-amados; podereis guardar os mais elevados

princípios de crença no vosso mundo impressivo. Todavia, esse é o esforço,

a realização do mecanismo doutrinário em ação, junto de vossa personalida-

de. Só o trabalho de auto-evangelização, porém, é firme e imperecível. Só o

esforço individual no Evangelho de Jesus pode iluminar, engrandecer e re-

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dimir o espírito, porquanto, depois de vossa edificação com o exemplo do

Mestre, alcançareis aquela verdade que vos fará livres.

220 – Há alguma diferença entre a crença e a iluminação?

-Todos os homens da Terra, ainda os próprios materialistas, crêem

em alguma coisa. Todavia, são muito poucos os que se iluminam. O que crê,

apenas admite; mas o que se ilumina vibra e sente. O primeiro depende dos

elementos externos, nos quais coloca o objeto a sua crença; o segundo é li-

vre das influências exteriores, porque há bastante luz no seu próprio íntimo,

de modo a vencer corajosamente nas provações a que foi conduzido no

mundo.

É por essa razão que os espiritistas sinceros devem compreender que

não basta acreditar no fenômeno ou na veracidade da comunicação com o

Além, para que os seus sagrados deveres estejam totalmente cumpridos,

pois a obrigação primordial é o esforço, o amor ao trabalho, a serenidade

nas provas da vida, o sacrifício de si mesmo, de modo a entender plenamen-

te a exemplificação de Jesus-Cristo, buscando a sua luz divina para a execu-

ção de todos os trabalhos que lhes competem no mundo.

221 – A análise pela razão pode cooperar, de modo definitivo, no

trabalho de nossa iluminação espiritual?

-É certo que o homem não pode dispensar a razão para vencer na ta-

refa confiada ao seu esforço, no círculo da vida; contudo, faz-se mister con-

siderar que essa razão vem sendo trabalhada, de muitos séculos no planeta,

pelos vícios de toda sorte.

Temos plena confirmação deste asserto no ultra-racionalismo euro-

peu, cuja avançada posição evolutiva, ainda agora, não tem vacilado entre a

paz e a guerra, entre o direito e a força, entre a ordem e a agressão.

Mais que em toda parte do orbe, a razão humana ali se elevou às

mais altas culminâncias de realização e, todavia, desequilibrada pela ausên-

cia do sentimento, ressuscita a selvageria e o crime, embora o fausto da civi-

lização.

Reconhecemos, pois, que na atualidade do orbe toda iluminação do

homem há de nascer, antes de tudo, do sentimento. O sábio desesperado do

mundo deve volver-se para Deus como a criança humilde, para cuidar dos

legítimos valores do coração, porque apenas pela reeducação sentimental,

nos bastidores do esforço próprio, se poderá esperar a desejada reforma das

criaturas.

222 – Que significa o chamado “toque da alma”, ao qual tantas ve-

zes se referem os Espíritos amigos?

-Quando a sinceridade e a boa vontade se irmanam dentro de um co-

ração, faz-se no santuário íntimo a luz espiritual para a sublime compreen-

são da verdade.

Esse é o chamado “toque da alma”; impossíveis para quantos perse-

verem na lógica convencionalista do mundo, ou nas expressões negativas

das situações provisórias da matéria, em todos os sentidos.

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223 – Há tempo determinado na vida do homem terrestre para que

se possa ele entregar, com mais probabilidades de êxito, ao trabalho de i-

luminação?

-A existência na Terra é um aprendizado excelente e constante. Não

há idades para o serviço de iluminação espiritual. Os pais têm o dever de o-

rientar a criança, desde os seus primeiros passos, no capítulo das noções e-

vangélicas, e a velhice não tem o direito de alegar o cansaço orgânico em

face desses estudos de sua necessidade própria.

É certo que as aquisições de um velho, em matéria de conhecimentos

novos, não podem ser tão fáceis como as de um jovem em função de sua

instrumentabilidade sadia, fisicamente falando; os homens mais avançados

em anos têm, contudo, a seu favor as experiências da vida, que facilitam a

compreensão e nobilitam o esforço da iluminação de si mesmos, conside-

rando que, se a velhice é a noite, a alma terá no amanhã do futuro a alvorada

brilhante de uma vida nova.

224 – As almas desencarnadas continuam igualmente no serviço da

iluminação de si próprias?

Nos planos invisíveis, o Espírito prossegue na mesma tarefa abenço-

ada de aquisição dos próprios valores, e a reencarnação no mundo tem por

objetivo principal a consecução desse esforço.

TRABALHO

225 – Como entender a salvação da alma e como conquistá-la?

-Dentro das claridades espirituais que o Consolador vem espalhando

nos bastidores religiosos e filosóficos do mundo, temos de traduzir o concei-

to de salvação por iluminação de si mesma, a caminho das mais elevadas

aquisições e realizações no Infinito.

Considerando esse aspecto real do problema de “salvação da alma”,

somos compelidos a reconhecer que, se a Providência Divina movimentou

todos os recursos indispensáveis ao progresso material do homem físico na

Terra, o Evangelho de Jesus é a dádiva suprema do Céu para a redenção do

homem espiritual, em marcha para o amor e sabedoria universais.

-Jesus é o Modelo Supremo.

O Evangelho é o roteiro para a ascensão de todos os Espíritos em lu-

ta, o aprendizado na Terra para os planos superiores do Ilimitado. De sua a-

plicação decorre a luz do espírito.

No turbilhão das tarefas de cada dia, lembrai a afirmativa do Senhor:

- “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida”. Se vos cercam as tentações de

autoridade e poder, de fortuna e inteligência, recordai ainda as suas pala-

vras: - “Ninguém pode ir ao Pai senão por mim”. E se vos sentis tocados pe-

lo sopro frio da adversidade e da dor, se estais sobrecarregados de trabalhos

no mundo, buscai ouvi-Lo sempre no imo dalma: - “Quem deseje encontrar

o Reino de Deus tome a sua cruz e siga os meus passos”.

226 – Os guias espirituais têm uma parte ativa na tarefa de nossa i-

luminação pessoal?

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-Essa colaboração apenas se verifica como no caso dos irmãos mais

velhos, ou dos amigos mais idosos nas experiências do mundo.

Os mentores do Além poderão apontar-vos os resultados dos seus

próprios esforços na Terra, ou, então, aclarar os ensinos que o homem já re-

cebeu através da misericórdia do Cristo e da benevolência dos seus envia-

dos, mas em hipótese alguma poderão afastar a alma encarnada do trabalho

que lhe compete, na curta permanência das lições do mundo.

Que dizer de um professor que decifrasse os problemas comuns para

os alunos?

Além disso, os amigos espirituais não se encontram em estado beatí-

fico. Suas atividades e deveres são maiores que os vossos. Seus problemas

novos são inúmeros e cada espírito deve buscar em si mesmo a luz necessá-

ria à visão acertada do caminho.

Trabalhai sempre. Essa é a lei para vós outros e para nós que já nos

afastamos do âmbito limitado do circulo carnal. Esforcemo-nos constante-

mente.

A palavra do guia é agradável e amiga, mas o trabalho de iluminação

pertence a cada um. Na solução dos nossos problemas, nunca esperemos pe-

los outros, porque de pensamento voltado para a fonte de sabedoria e mise-

ricórdia, que é Deus, não nos faltará, em tempo algum, a divina inspiração

de sua bondade infinita.

227 – Deus concede o favor a que chamamos graça?

-São tão grandes as expressões da misericórdia divina que nos cer-

cam o espírito, em qualquer plano da vida, que basta um olhar à natureza fí-

sica ou invisível, para sentirmos, em torno de nós, uma aluvião de graças.

O favor divino, porém, como o homem pretende receber no seu an-

tropomorfismo, não se observa no caminho da vida, pois Deus não pode as-

semelhar-se a um monarca humano, cheio de preferências pessoais ou su-

bornado por motivos de ordem inferior.

A alma, aqui ou alhures, receberá sempre de acordo com o trabalho

da edificação de si mesma. É o próprio espírito que inventa o seu inferno ou

cria as belezas do seu céu. E tal seja o seu procedimento, acelerando o pro-

cesso de evolução pelo esforço próprio, poderá Deus dispensar na Lei, em

seu favor, pois a Lei é uma só e Deus o seu Juiz Supremo e Eterno.

228 – A auto-iluminação pode ser conseguida apenas com a tarefa

de uma existência na Terra?

-Uma encarnação é como um dia de trabalho. E para que as experi-

ências se façam acompanhar de resultados positivos e proveitosos na vida,

faz-se indispensável que os dias de observação e de esforço se sucedam uns

aos outros.

No complexo das vidas diversas, o estudo prepara; todavia, somente

a aplicação sincera dos ensinamentos do Cristo pode proporcionar a paz e a

sabedoria, inerentes ao estado de plena iluminação dos redimidos.

229 – Como entender o trabalho de purificação nos ambientes do

mundo?

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-A purificação na Terra ainda é qual o lírio alvo, nascendo do lodo

das amarguras e das paixões.

Todos os Espíritos encarnados, porém, devem considerar que se en-

contram no planeta como em poderoso cadinho de acrisolamento e regene-

ração, sendo indispensável cultivar a flor da iluminação íntima, na angústia

da vida humana, no círculo da família, ou da comunidade social, através da

maior severidade para consigo mesmo e da maior tolerância com os outros,

fazendo cada qual, da sua existência, um apostolado de educação, onde o

maior beneficiado seja o seu próprio espírito.

230 – Como iniciar o trabalho de iluminação da nossa própria al-

ma?

-Esse esforço individual deve começar com o autodomínio, com a

disciplina dos sentimentos egoísticos e inferiores, com o trabalho silencioso

da criatura por exterminar as próprias paixões.

Nesse particular, não podemos prescindir do conhecimento adquirido

por outras almas que nos precederam nas lutas da Terra, com as suas experi-

ências santificantes – água pura de consolação e de esperança, que podere-

mos beber nas páginas de suas memórias ou nos testemunhos de sacrifício

que deixaram no mundo.

Todavia, o conhecimento é a porta amiga que nos conduzirá aos ra-

ciocínios mais puros, porquanto, na reforma definitiva de nosso íntimo, é

indispensável o golpe da ação própria, no sentido de modelarmos o nosso

santuário interior, na sagrada iluminação da vida.

231 – Considerando que numerosos agrupamentos espíritas se for-

mam apenas para doutrinação das entidades perturbadas, do plano invisí-

vel, quais os mais necessitados de luz: os encarnados ou os desencarnados?

-Tal necessidade é comum a uns e outros. É justo que se preste auxí-

lio fraterno aos seres perturbados e sofredores, das esferas mais próximas da

Terra; entretanto, é preciso convir que os Espíritos encarnados carecem de

maior porcentagem de iluminação evangélica que os invisíveis, mesmo por-

que, sem ela, que auxílio poderão prestar ao irmão ignorante e infeliz? A li-

ção do Senhor não nos fala do absurdo de um cego a conduzir outros cegos?

Por essa razão é que toda reunião de estudos sinceros, dentro da

Doutrina, é um elemento precioso para estabelecer o roteiro espiritual a

quantos desejem o bom caminho.

A missão da luz é revelar com verdade serena. O coração iluminado

não necessita de muitos recursos da palavra, porque na oficina da fraterni-

dade bastará o seu sentimento esclarecido no Evangelho. A grande maravi-

lha do amor é o seu profundo e divino contágio. Por esse motivo, o Espírito

encarnado, para regenerar os seus irmãos da sombra, necessita iluminar-se

primeiro.

REALIZAÇÃO

232 – Em matéria de conhecimento, onde poderemos localizar a

maior necessidade do homem?

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-Como nos tempos mais recuados das civilizações mortas, temos de

reafirmar que a maior necessidade da criatura humana ainda é a do conhe-

cimento de si mesma.

233 – Por que razão o homem da Terra tem sido tão lento na solu-

ção do problema do seu conhecimento próprio?

-Isso é explicável. Somente agora, a alma humana poderá ensimes-

mar-se o bastante para compreender as necessidades e os escaninhos da sua

personalidade espiritual.

Antigamente a existência do homem resumia-se na luta com as for-

ças externas, de modo a criar uma lei de harmonia entre ele próprio e a natu-

reza terrestre.

Muitos séculos decorreram para enfrentar os perigos comuns. A or-

ganização da tribo, da família, das tradições, das experiências coletivas, exi-

giu muitos séculos de luta e de infortúnios dolorosos. A ciência das rela-

ções, o aproveitamento das forças materiais que o rodeavam, não requisita-

ram menor porção de tempo.

Agora, porém, nas culminâncias da sua evolução física, o homem

não necessitará preocupar-se, de modo tão absorvente, com a paisagem que

o cerca, razão pela qual todas as energias espirituais se mobilizam, nos tem-

pos modernos, em torno das criaturas, convocando-as ao sagrado conheci-

mento de si mesmas, dentro dos valores infinitos da vida.

234 – Que dizer dos que propugnam leis para o bem-estar social,

por processos mecânicos de aplicação sem atender à iluminação espiritual

dos indivíduos?

-Os estadistas ou condutores de multidões, que procuram agir nesse

sentido, em pouco tempo caem no desencanto de suas utopias políticas e so-

ciais.

A harmonia do mundo não virá por decretos, nem de parlamentos

que caracterizam sua ação por uma força excessivamente passageira. Não

vedes que o mecanismo das leis humanas se modifica todos os dias? Os sis-

temas de governo não desaparecem para dar lugar a outros que, por sua vez,

terão de renovar-se com o transcorrer do tempo? Na atualidade do planeta,

tendes observado a desilusão de muitos utopistas dessa natureza, que sonha-

ram com a igualdade irrestrita das criaturas, sem compreender que, receben-

do os mesmos direitos de trabalho e de aquisição perante Deus, os homens,

por suas próprias ações, são profundamente desiguais entre si, em inteligên-

cias, virtude, compreensão e moralidade.

O homem que se ilumina conquista a ordem e a harmonia para si

mesmo. E para que a coletividade realize semelhante aquisição, para o orga-

nismo social, faz-se imprescindível que todos os seus elementos compreen-

dam os sagrados deveres de auto-iluminação.

235 – Há outras fontes de conhecimento para a iluminação dos ho-

mens, além da constituída pelos ensinamentos divinos do Evangelho?

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-O mundo está repleto de elementos educativos, mormente no refe-

rente às teorias nobilitantes da vida e do homem, pelo trabalho e pela edifi-

cação das faculdades e do caráter.

Mas, em se tratando de iluminação espiritual, não existe fonte algu-

ma além da exemplificação de Jesus, no seu Evangelho de Verdade e Vida.

Os próprios filósofos que falaram na Terra, antes d’Ele, não eram

senão emissários da sua bondade e sabedoria, vindos à carne de modo a pre-

parar-lhe a luminosa passagem pelo mundo das sombras, razão por que o

modelo de Jesus é definitivo e único para a realização da luz e da verdade

em cada homem.

236 – Como interpretar a ansiedade do proselitismo espírita, em

matéria de fenomenologia, ante essa necessidade de iluminação?

-Os espiritistas sinceros devem compreender que os fenômenos a-

cordam a alma, como o choque de energias externas que faz despertar uma

pessoa adormecida; mas somente o esforço opera a edificação moral, legíti-

ma e definitiva.

É uma extravagância de conseqüências desagradáveis, atirar-se al-

guém à propaganda de uma idéia sem haver fortalecido a si mesmo na seiva

de seus princípios enobrecedores. O espiritismo não constitui uma escola de

leviandade. Identificado com a sua essência consoladora e divina, o homem

não pode acovardar-se ante a intensidade das provações e das experiências.

Grandes erros praticariam as entidades espirituais elevadas, se prometessem

aos seus amigos do mundo uma vida fácil e sem cuidados, solucionando-

lhes todos os problemas e entregando-lhes a chave de todos os estudos.

É egoísmo e insensatez provocar o plano invisível com os pequeni-

nos caprichos pessoais.

Cada estudioso desenvolva a sua capacidade de trabalho e de ilumi-

nação e não guarde para outrem o que lhe compete fazer em seu próprio be-

nefício.

O Espiritismo, sem Evangelho, pode alcançar as melhores expres-

sões de nobreza, mas não passará de atividades destinadas a modificar-se ou

desaparecer, como todos os elementos transitórios do mundo. E o espírita

que não cogitou da sua iluminação com Jesus-Cristo, pode ser um cientista e

um filósofo, com as mais elevadas aquisições intelectuais, mas estará sem

leme e sem roteiro no instante da tempestade inevitável da provação e da

experiência, porque só o sentimento divino da fé pode arrebatar o homem

das preocupações inferiores da Terra para os caminhos supremos dos pára-

mos espirituais.

237 – Existe diferença entre doutrinar e evangelizar?

-Há grande diversidade entre ambas as tarefas. Para doutrinar, basta

o conhecimento intelectual dos postulados do Espiritismo; para evangelizar

é necessária a luz do amor no íntimo. Na primeira, bastarão a leitura e o co-

nhecimento, na segunda, é preciso vibrar e sentir com o Cristo. Por estes

motivos, o doutrinador muitas vezes não é senão o canal dos ensinamentos,

mas o sincero evangelizador será sempre o reservatório da verdade, habili-

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tado a servir às necessidades de outrem, sem privar-se da fortuna espiritual

de si mesmo.

238 – Para acelerar o esforço de iluminação, a Humanidade neces-

sitará de determinadas inovações religiosas?

-Toda inovação é indispensável, mesmo porque a lição do Senhor a-

inda não foi compreendida. A cristianização das almas humanas ainda não

foi além da primeira etapa.

Alguns séculos antes de Jesus, o plano espiritual, pela boca dos pro-

fetas e dos filósofos, exortava o homem do mundo ao conhecimento de si

mesmo. O Evangelho é a luz interior dessa edificação. Ora, somente agora a

criatura terrestre prepara-se para o conhecimento próprio através da dor;

portanto, a evangelização da alma coletiva, para a nova era de concórdia e

de fraternidade, somente poderá efetuar-se, de modo geral, no terceiro milê-

nio.

É certo que o planeta já possui as suas expressões isoladas de legíti-

mo evangelismo, raras na verdade, mas consoladoras e luminosas. Essas ex-

pressões, porém, são obrigadas às mais altas realizações de renúncia em face

da ignorância e da iniqüidade do mundo. Esses apóstolos desconhecidos são

aquele “sal da Terra” e o seu esforço divino será respeitado pelas gerações

vindouras, como os símbolos vivos da iluminação espiritual com Jesus-

Cristo, bem-aventurados de seu Reino, no qual souberam perseverar até o

fim.

*

ESPIRITISMO

352 – Devemos reconhecer no Espiritismo o Cristianismo Redivivo?

-O Espiritismo evangélico é o Consolador prometido por Jesus, que,

pela voz dos seres redimidos, espalham as luzes divinas por toda a Terra,

restabelecendo a verdade e levantando o véu que cobre os ensinamentos na

sua feição de Cristianismo redivivo, a fim de que os homens despertem para

a era grandiosa da compreensão espiritual com o Cristo.

353 – O espiritismo veio ao mundo para substituir as outras cren-

ças?

-O Consolador, como Jesus, terá de afirmar igualmente: - “Eu não

vim destruir a Lei”.

O Espiritismo não pode guardar a pretensão de exterminar as outras

crenças, parcelas da verdade que a sua doutrina representa, mas, sim, traba-

lhar para transformá-las, elevando-lhes as concepções antigas para o clarão

da verdade imortalista.

A missão do Consolador tem que se verificar junto das almas e não

ao lado das gloríolas efêmeras dos triunfos materiais. Esclarecendo o erro

religioso, onde quer que se encontre, e revelando a verdadeira luz, pelos atos

e pelos ensinamentos, o espiritista sincero, enriquecendo os valores da fé,

representa o operário da regeneração do Templo do Senhor, onde os homens

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se agrupam em vários departamentos, ante altares diversos, mas onde existe

um só Mestre, que é Jesus-Cristo.

354 – Poder-se-á definir o que é ter fé?

-Ter fé é guardar no coração a luminosa certeza em Deus, certeza

que ultrapassou o âmbito da crença religiosa, fazendo o coração repousar

numa energia constante de realização divina da personalidade.

Conseguir a fé é alcançar a possibilidade de não mais dizer “eu crei-

o”, mas afirmar “eu sei”, com todos os valores da razão tocados pela luz do

sentimento. Essa fé não pode estagnar em nenhuma circunstância da vida e

sabe trabalhar sempre, intensificando a amplitude de sua iluminação, pela

dor ou pela responsabilidade, pelo esforço e pelo dever cumprido.

Traduzindo a certeza na assistência de Deus, ela exprime a confiança

que sabe enfrentar todas as lutas e problemas, com a luz divina no coração, e

significa a humildade redentora que edifica no íntimo do espírito a disposi-

ção sincera do discípulo, relativamente ao “faça-se no escravo a vontade do

Senhor”.

355 – Será fé acreditar sem raciocínio?

-Acreditar é uma expressão de crença, dentro da qual os legítimos

valores da fé se encontram embrionários.

O ato de crer em alguma coisa demanda a necessidade do sentimento

e do raciocínio, para que a alma edifique a fé em si mesma. Admitir as afir-

mativas mais estranhas, sem um exame minucioso, é caminhar para o desfi-

ladeiro do absurdo, onde os fantasmas dogmáticos conduzem as criaturas a

todos os despautérios. Mas também interferir nos problemas essenciais da

vida, sem que a razão esteja iluminada pelo sentimento, é buscar o mesmo

declive onde os fantasmas impiedosos da negação conduzem as almas a

muitos crimes.

356 – A dúvida racionada, no coração sincero, é uma base para a

fé?

-Toda dúvida que se manifesta na alma cheia de boa-vontade, que

não se precipita em definições apriorísticas dentro de sua sinceridade, ou

que não busca a malícia para contribuir em suas cogitações, é um elemento

benéfico para a alma, na marcha da inteligência e do coração rumo à luz su-

blimada da fé.

357 – É justa a preocupação dominante em muitos estudiosos do Es-

piritismo, pelas revelações do plano superior, a título de enriquecimento da

fé?

-Toda curiosidade sadia é natural. O homem, no entanto, deve com-

preender que a solução desses problemas lhe chegará naturalmente, depois

de resolvida a sua situação de devedor ante os seus semelhantes, fazendo-se,

então, credor das revelações divinas.

358 – Para os Espíritos desencarnados, que já adquiriram muitos

valores em matéria de fé, qual o melhor bem da vida humana?

-A vida humana, nas suas características de trabalho pela redenção

espiritual, apresenta muitos bens preciosos aos nossos olhos, na seqüência

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das lutas, esforços e sacrifícios de cada espírito. Para nós outros, porém, o

tesouro maior da existência terrestre reside na consciência reta e pura, ilu-

minada pela fé e edificada no cumprimento de todos os deveres mais eleva-

dos.

359 – Nas cogitações da fé, o Espírito encarnado deve restringir su-

as divagações ao limite necessário às suas experiências na Terra?

-Pelo menos, é justo que somente cogite das expressões transcenden-

tes ao seu meio, depois de realizar todo o esforço de iluminação que o mun-

do lhe pode proporcionar nos seus processos de depuração e aperfeiçoamen-

to.

360 – Qual deve ser a ação do espiritista em face dos dogmas religi-

osos?

-Os novos discípulos do Evangelho devem compreender que os

dogmas passaram. E as religiões literalistas, que os construíram, sempre o

fizeram simplesmente em obediência a disposições políticas, no governo das

massas.

Dentro das novas expressões evolutivas, porém, os espiritistas de-

vem evitar as expressões dogmáticas, compreendendo que a Doutrina é pro-

gressiva, esquivando-se a qualquer pretensão de infalibilidade, em face da

grandeza inultrapassável do Evangelho.

361 – Na propaganda da fé, é justo que os espíritas ou os médiuns

estejam preocupados em converter aos princípios da Doutrina os homens

de posição destacada no mundo, como os juízes, os médicos, os professores,

os literatos, os políticos, etc.?

-Os espiritistas cristãos devem pensar muito na iluminação de si

mesmos, antes de qualquer prurido, no intuito de converter os outros.

E, ao tratar-se dos homens destacados no convencionalismo terrestre,

esse cuidado deve ser ainda maior, porquanto há no mundo um conceito so-

berano de “força” para todas as criaturas que se encontram nos embates es-

pirituais para a obtenção dos títulos de progresso. Essa “força” viverá entre

os homens até que as almas humanas se compenetrem da necessidade do

reino de Jesus em seu coração, trabalhando por sua realização plena. Os

homens do poder temporal, com exceções, muitas vezes aceitam somente os

postulados que a “força” sanciona ou os princípios com que a mesma con-

corda. Enceguecidos temporariamente pelos véus da vaidade e da fantasia,

que a “força” lhes proporciona, faz-se mister deixá-los em liberdade nas su-

as experiências. Dia virá em que brilharão na Terra os eternos direitos da

verdade e do bem, anulando essa “força” transitória. Ainda aqui, tendes o

exemplo do Divino Mestre que, trazendo ao orbe a maior mensagem de a-

mor e vida para todos os tempos, não teve a preocupação de converter ao

Evangelho os Pilatos e os Ântipas do seu tempo.

Além do mais, o Espiritismo, na sua feição de Cristianismo redivivo,

não deve nutrir a pretensão de disputar um lugar no banquete dos Estados do

mundo, quando sabe muito bem que a sua missão divina há de cumprir-se

junto das almas, nos legítimos fundamentos do Reino de Jesus.

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*