crítica à estética de kant

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    QUEM TEM RAZO, KANT OU STENDHAL?UMA REFLEXO SOBRE A CRTICA DENIETZSCHE ESTTICA DE KANT*

    Joo Constncio**

    [email protected]

    RESUMOO artigo uma reexo sobre o modo como, na Genealogiada Moral, Nietzsche repensa o problema esttico a partir da oposio entrea concepo kantiana do belo como predicado de um juzo desinteressadoe a concepo stendhaliana do belo como efeito de uma cristalizao euma promessa de felicidade. A chave do pensamento de Nietzsche neste

    contexto est no conceito de embriaguez (Rausch), por um lado, comotermo-chave para designar a pr-condio siolgica da arte, mas, poroutro, como um processo de espiritualizao dos instintos ou das pulses queas interioriza e intensica. Esta espiritualizao distingue-se da contemplaodesinteressada porque no nos des-afecta e porque , em grande medida, umaespiritualizao da sexualidade, mas no deixa, por isso, de implicar umareavaliao dos valores e uma ampliao do horizonte do humano. por issoque a arte pode ser pensada como um contra-movimento que arma a vida

    e combate o ideal asctico e o niilismo europeu.Palavras-chave Arte, juzo esttico, cristalizao, espiritualizao,

    niilismo.

    KRITERION, Belo Horizonte, n 128, Dez./2013, p. 475-495

    * Todas as tradues so da responsabilidade do autor. No caso da Genealogia da Moral, cita-se atraduo de Jos Justo, mas com modificaes: NIETZSCHE, F. Para a Genealogia da Moral. Lisboa:Relgio dgua, 2000. Na citao de obras de Nietzsche, usam-se as abreviaturas da revista CadernosNietzsche.

    ** Departamento de Filosofia/ Faculdade de Cincias Sociais e Humanas/ Universidade Nova de Lisboa.Artigo recebido em 12/07/2013 e aprovado em 22/11/2013.

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    477QUEM TEM RAZO, KANT OU STENDHAL?

    acontece com a famosa denio kantiana do belo. Belo, diz Kant, o que agradadesinteressadamente. Desinteressadamente! Compare-se com esta denio umaoutra, dada por um verdadeiro espectador e artista, Stendhal, que a certa alturachama ao belo une promesse de bonheur. Ao menos aqui recusa-see elimina-seprecisamente a nica coisa que Kant destaca no estado esttico: le dsintressement.Quem tem razo, Kant ou Stendhal? (GM III 6)

    Se pensarmos o espectador como espectador interessado e se pensarmoso seu interesse no belo a partir da ptica do artista, i.e. da ptica da criaodo belo, chegamos denio do belo como uma promessa de felicidade. Oque signica esta ideia de uma promessa de felicidade?

    A chave est obviamente no famoso conceito de cristalizao, criadopor Stendhal:

    Aquilo a que chamo cristalizao a operao do esprito que em tudo o que se lheapresenta descobre que o objecto amado tem novas perfeies. [...]

    Este fenmeno, a que me permito chamar cristalizao, provm da natureza, que nosordena que tenhamos prazer e faz subir o sangue para o crebro com o sentimentode que os prazeres aumentam com as perfeies do objecto amado, e com a ideia:ela minha.1

    O amor-paixo depende fundamentalmente desta operao do esprito

    que descobre em todos os acontecimentos e circunstncias (mesmo naquelas

    que, de outro modo, seriam consideradas negativas) sinais de novas perfeiesdo objecto amado. A sua intensidade depende no tanto da admirao, daesperana e da proximidade que geram a primeira cristalizao quantoda dvida e da distncia, que resultam da segunda cristalizao. Nesta, oesprito oscila entre o sim, ela ama-me e o ser que ela me ama?, mas aimaginao forma um tal sentimento das perfeies do objecto amado, i.e.da sua beleza, que essa dvida tem sempre como pano de fundo a certeza:ela vai proporcionar-me prazeres que s ela em todo o mundo me podeproporcionar.2 neste sentido que o belo uma promessa de felicidade:

    o belo s se manifesta num objecto que, de uma forma ou de outra, se tornouum objecto amado, e s se manifesta nele na medida em que ele se constituicomo promessa, como signo de uma felicidade por vir, como um sinal deprazeres que se imagina s poderem vir a ser proporcionados por esse objecto-amado (pelas suas supostas perfeies), e por nada mais.

    1 Stendhal, 1980 (1822), p. 31 (captulo II). A definio do belo como promessa de felicidade ocorre na

    pgina 59 desta edio, captulo XVII.2 Cf. Stendhal, 1980 (1822), pp. 30-33 (captulo II).

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    Stendhal um dos poucos autores sobre os quais Nietzsche se pronunciade forma sempre positiva, e poucos conceitos parecem ter despertado neleuma admirao to incondicional como o de amour-passion.3 De facto, ainterpretao do amor-paixo como cristalizao tem imediatamente uma

    srie de implicaes anti-schopenhauerianas e, em ltima anlise, anti-niilistas que so particularmente apelativas para Nietzsche. Podemos, talvez,sistematiz-las da seguinte forma:

    1. O conceito de cristalizao faz depender a beleza do amor, at do amor-paixo, e est portanto nos antpodas da concepo do belo como objecto deuma contemplao desinteressada.

    2. O conceito de cristalizao permite pensar o belo artstico e a prpriaarte a partir da experincia do amor-paixo e do sentimento de que a mulheramada bela. No fundo, identica as duas experincias: do ponto de vistapsicolgico (ou sio-psicolgico), a arte em tudo semelhante ao amor-paixo, o amor-paixo em tudo semelhante experincia da contemplaoe da criao artsticas.

    3. O conceito de cristalizao permite pensar o desejo como uma formade prazer: se o desejo uma falta, isso no implica, ao contrrio do quesustenta Schopenhauer (e, por exemplo, a personagem Scrates no Grgiasde Plato), que o desejo seja dor. Na prpria dvida e na distncia, oapaixonado tem o mais intenso dos prazeres ao imaginar as perfeies

    do objecto amado e ao antecipar os prazeres nicos (ou a felicidade) queelas prometem. Quer na arte, quer no amor-paixo, o desejo j prazer ou, na terminologia de Nietzsche, em si mesmo uma forma de Rausch, deembriaguez, intoxicao, xtase.

    4. O conceito de cristalizao permite pensar o belo como uma projeco,no fundo como o efeito da representao das perfeies que a imaginaodo apaixonado (ou, no caso da arte, a imaginao do artista primeiro, aimaginao do espectador depois) projecta no objecto amado. (Veremosadiante que o belo para Nietzsche uma projeco no sentido de umantropomorfsmo que projectamos nas coisas e que nos devolve uma imagemda nossa prpria perfeio).

    5. Na verdade, o conceito de cristalizao antecipa a ideia de que acontemplao do espectador um acto criativo e deve ser pensada do pontode vista do artista como criador. Mesmo a primeira cristalizao no resultade uma percepo passiva, mas j de uma operao do esprito em que a

    3 Cf., por exemplo, BM 260.

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    imaginao est activa e, de forma espontnea e sem inteno consciente,no s destaca como aumentadeterminadas propriedades do objecto amado cristaliza-as, transformando-as em perfeies deste objecto. No nicopasso em que Nietzsche usa o termo cristalizao uma nota pstuma de

    1880-1881 , pe em relevo precisamente este aspecto, perguntando-se se acristalizao implica uma determinada forma de mentira (o auto-engano) ede criao de erros: Mas quando deixamos as nossas paixes crescer, comisso cresce tambm, como sabemos, a cristalizao: ou seja, tornamo-nosdesonestos e entregamo-nos livremente ao erro? (KSA 9. 391, 8[40]).

    6. Por m, e na sequncia do ponto anterior, o conceito de cristalizaopermite pensar um fenmeno que crucial para Nietzsche, e que jreferimos no captulo 3: a espiritualizao (Vergeistigung), sublimao(Sublimieren),ou renamento (Verfeinerung) das pulses, e em particularda pulso sexual. O processo de surgimento do amor-paixo um tpicoprocesso de espiritualizao, quer nos casos em que principia apenas comum primeiro olhar, quer nos casos em que corresponde, por exemplo, auma progressiva transformao de um amor-prazer, de um amor fsico,ou de um amor-vaidade. A espiritualizao de uma pulso, no sentidonietzschiano do termo, algo totalmente diferente do que Schopenhauerdescreve como a passagem do interesse ao desinteresse ( impessoalidade,

    imparcialidade e universalidade). A espiritualizao nietzschiana um

    processo de interiorizao, e no de des-afectao. Uma pulso torna-se maisespiritual quando , por assim dizer, refeita por uma multiplicidade de actos

    de imaginao e conceptualizao que a intensicam. Por um lado, a nossarelao com o objecto torna-se mais distante pois mediada por imagens econceitos que se formam em novos afectos, bem como em novos sentimentos,volies e pensamentos conscientes , mas, por outro, torna-se mais intensa,num certo sentido mais prxima pois tudo acontece como se o esprito seestivesse a apropriar do objecto da pulso, a interioriz-lo. O que de todono acontece que a pulso seja temporria ou permanentemente erradicada(como supostamente acontece na passagem do interesse ao desinteresse,bem como em certas concepes da sublimao do desejo). ainda ela que espiritualizada, so osseusafectos inconscientes e sentimentos conscientesque se intensicam e oseu objecto que interiorizado. Pode, de facto, falar-se aqui de uma intensicao do desejo portanto do contrrio do que seriaa erradicao do desejo implicada na contemplao desinteressada.

    Embora, como dissemos, Nietzsche s use o termocristalizao numanota pstuma, so muitos os passos em que pensa a arte a partir do fenmeno

    da cristalizao. Assim , sobretudo, no Crepsculo dos dolose em diversas

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    notas de 1887 e 1888, onde a embriaguez (Rausch) se torna o termo-chavepara designar a pr-condio siolgica (CI Incurses 8) da arte e de toda acriao e contemplao esttica e artstica. A embriaguez, defende Nietzsche,tem muitas formas (h, por exemplo, a embriaguez da festa, da competio,

    da vitria, dos narcticos, da crueldade ou da vontade), mas a principal (amais antiga e mais originria) a embriaguez da excitao sexual (CIIncurses 8). Em todas as suas formas, a embriaguez torna possvel a arteporque um idealizar, uma pulso para tornar perfeito, um processosio-psicolgico de cristalizao de perfeies:

    O essencial na embriaguez o sentimento de intensicao da fora e dopreenchimento. Com este sentimento damo-nos s coisas, obrigamo-lasa tomarem-nos, violentamo-las, chama-se a este processo idealizar. Libertemo-nos aqui deum preconceito: o idealizar noconsiste, como geralmente se cr, em subtrair oueliminar o que pequeno, o acessrio. O decisivo , antes, um tremendo pr emdestaquedas caractersticas principais, de tal forma que as outras desaparecem. (CIIncurses 8)

    Neste estado, o nosso preenchimento faz que tudo aumente: o que vemos, o quequeremos, vmo-lo inchado, repleto, forte, sobrecarregado de fora. O ser humano quese encontra neste estado transforma as coisas, at que o seu poder se acha espelhadonelas, at que elas se tornam reexos da sua perfeio. Este ter detransformar emperfeito a arte. Mesmo tudo aquilo que o ser humano no se torna, apesar disso,um prazer que ele tem consigo mesmo; na arte, o ser humano desfruta de si mesmocomo perfeio. (CI Incurses 9)

    Aqui, torna-se clara pelo menos uma parte do que Nietzsche quer dizerquando critica as teorias estticas que pensam a arte do ponto de vista doespectador e no do artista. S se pensarmos do ponto de vista da sio-psicologia do criador perceberemos realmente que a arte este tornar-perfeito, idealizar, violentar as coisas de forma a destacar nelas determinadasperfeies e fazer surgir o sentimento de que elas so belas. Esse ponto devista , ao mesmo tempo, o ponto de vista do apaixonado e da sua embriaguez

    um ponto de vista no qual o prprio desejar j o mais intenso dos prazeresporque, ao projectar no objecto-amado todas as perfeies e ao antecipar afelicidade que estas prometem, permite quele que assim deseja desfrutar desi mesmocomo perfeio.

    As notas pstumas sublinham a natureza eminentemente sexualdesta embriaguez, no fundo o facto de a arte e o amour-passion seremespiritualizaes da pulso sexual. Eis dois exemplos:

    [...] os artistas, quando so bons, tm uma disposio forte (tambm de corpo),

    excessiva, so animais de fora, sensuais; sem um sobreaquecimento do sistemasexual um Rafael impensvel... [...]

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    os artistas no devem ver as coisas como elas so, mas de forma mais cheia, maissimples, mais forte: para tal, tm de ter no corpo uma forma de eterna juventude eprimavera, uma forma de embriaguez habitual. (KSA 13. 293, 14[117])

    [...]para a gnese da arte. Aquele tornar-perfeito, ver-como-perfeito, que prpriode um sistema cerebral sobrecarregado de foras sexuais (a noite passada com a

    amada, as mais pequenas casualidades transguradas, a vida uma sucesso de coisassublimes, a infelicidade dos amantes infelizes considerada como a coisa maisimportante de todas): por outro lado, tudo o que perfeito e belocomo lembranainconsciente desse estado de paixo e do seu modo de ver cada perfeio, toda abeleza das coisas evoca por contiguity a felicidade afrodisaca.Fisiologicamente: oinstinto criador do artista e a distribuio do smen pelo seu sangue... O anseio porarte e beleza um anseio indirecto pelos xtases da pulso sexual, que esta comunicaao crebro. O mundo tornado perfeito, atravs do amor... (KSA 12. 325-326, 8[1])

    No Crepsculo dos dolos, esta relao entre a sexualidade e a arte

    tornada explcita de diversas formas. Uma delas a reformulao da oposioStendhal contra Kant como uma oposio entre Plato e Schopenhauer.Nesta oposio, Plato est do lado de Nietzsche e Stendhal pois, ao contrriode Schopenhauer (e de Kant), concebe a beleza como o objecto de eros. Nospassos a que me rero (CI Incurses 21-23), Nietzsche comea por criticarSchopenhauer por ter usado todas as contra-instncias da desvalorizaoniilista da vida para defender justamente esta desvalorizao (CI Incurses21). Entre essas contra-instncias (ou entre as grandes auto-armaes davontade de viver, as formas de exuberncia da vida), conta-se a beleza,que Schopenhauer interpretou como uma ponte para a negao da vida eda vontade, como uma possibilidade de salvao ou redeno do foco davontade, da sexualidade na beleza, ele v a pulso reprodutora negada...(CI Incurses 22). Tudo na natureza contradiz esta tese: na natureza, asexualidade e a beleza so inseparveis. Mas tambm Plato contradiz essatese, nomeadamente ao defender que s h beleza quando h erose que todaa beleza , portanto, um estmulo procriao (CI Incurses 22).4A prprialosoa, segundo Plato, no fundo um concurso ertico (CI Incurses

    23). Uma das falhas da modernidade a incapacidade de perceber esteconceito de erose a ligao entre a beleza e fenmenos como a procriao,a reproduo ou a gravidez. por isso que os pensadores modernos, comoKant ou Schopenhauer, mas tambm os poetas modernos, como Goethe, nopodem perceber o sentido mais profundo da religiosidade grega, que via o deusDioniso como sendo o smbolosexual e interpretava, no s a embriaguez

    4 Nietzsche refere-se aqui ao Banquete de Plato e famosa definio de erosno apenas como um

    desejo e uma atraco pelo belo, mas como um desejo deprocriar no belo (to/koj e)n kal%, Banquete,206b).

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    dionisaca, mas tambm a prpria vida luz dos mistrios da sexualidade(CI Antigos 4).5

    Ao promover esta espcie de regresso ao erosplatnico e embriaguezdionisaca, Nietzsche mostra a que ponto radical a sua inteno de romper

    no s com a esttica schopenhaueriana, mas tambm com a esttica kantiana.Por ter pensado o belo apenas a partir do ponto de vista do espectador epor no ter podido reconhecer na experincia do espectador uma experinciapessoalgrande, um factopessoalgrande, uma enorme quantidade de vivncias,de desejos, de surpresas, de encantamentos singulares e intensos, no plano dobelo (GM III 6), Kant fez do juzo esttico o cerne da experincia estticae interpretou esse juzo como sendo fundamentalmente um juzo crtico,um juzo dotado da imparcialidade, impessoalidade e universalidade tpicasda avaliao crtica e da perspectiva cientca: Kant pensava que estava aconceder uma honra arte ao destacar e colocar em primeiro plano comopredicados do belo aqueles predicados que so a honra do conhecimento: aimpessoalidade e a validade universal (GM III 6).

    Para Nietzsche, pelo contrrio, no s a experincia esttica tem o carcterprofundamente pessoal de um amor-paixo, como radica na mais bsica daspulses e intensica (em vez de suprimir) o mais bsico dos afectos.

    Mas no devemos dar razo a Kant? No ogostoque est em causa naexperincia esttica, e no devemos entender o gosto esttico como a faculdade

    que nos permite fazer uma avaliao ou apreciao (Beurteilung) do belo, dofeio e do sublime? Como negar que essa apreciao s possa ser expressa ecomunicada num juzo? E, sobretudo, como negar que, no que respeita arte,o valor deste juzo depender sempre do seu grau de esprito crtico, portantodo seu grau de imparcialidade, impessoalidade e universalidade? Se umapessoa nos comunica apenas a sua reaco afectiva a uma obra de arte, se nosfala apenas da forma como esta a afectou pessoalmente ou se se refere suabeleza como um efeito emocional imediato, no temos qualquer motivo paravalorizar o seu juzo como juzo esttico. O seu juzo estar ao mesmo nvelde outros juzos em que exprimimos um agrado ou desagrado sensorial, porexemplo em relao ao sabor de um alimento ou ao cheiro de um perfume. Noesperamos de um juzo esttico que ele seja um veredicto denitivo formuladocom conceitos cienticamente vericveis, mas esperamos, pelo menos, queele seja uma crtica (inteiramente positiva, inteiramente negativa ou mista)que possa pretender ser comunicada a outrem e aceite por outrem e que

    5 Sobre a relao entre filosofia e erosem Nietzsche, cf. Pippin, 2010, pp. 13-21passim.

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    portanto no assente numa emoo apenas pessoal, pois esta incomunicvelpor denio. Dizer que o anseio por arte e beleza um anseio indirectopelos xtases da pulso sexual, que esta comunica ao crebro, no , ao invs,a forma mais grosseira e redutora de entender a experincia esttica? Fazer

    equivaler a experincia esttica experincia do amor-paixo no elimina adimenso crtica da experincia esttica, de tal forma que o efeito da obra dearte passa a ser apenas algo que o espectador ou sente ou no sente? Devemos,de facto, envolver o erosplatnico na experincia esttica ou prefervel quepreservemos a concepo kantiana do juzo esttico como uma avaliaocrtica?6

    O esplio de Nietzsche contm muitas notas com base nas quais sepoderia reconstruir uma teoria do juzo esttico alternativa de Kant, e talvezse possa dizer que essa teoria est pressuposta em alguns passos cruciais daobra publicada. Vejamos em que consiste esta teoria e de que modo ela podeajudar a esclarecer a oposio Stendhal contra Kant.

    II

    Nietzsche concorda com Kant em que os nossos juzos estticos sojuzos de gosto. Mas, por outro lado, introduz a ideia de que: a) h juzosinstintivos e devemos distingui-los dos juzos intelectuais; b) os juzos de

    gosto so primariamente instintivos; e c) quando os juzos de gosto se tornamintelectuais, dependem ainda (ou so contnuos com) juzos instintivos. Numanota pstuma de 1887, por exemplo, Nietzsche diz o seguinte:

    Aesthetica. Sobre a gnese do beloe dofeio. Aquilo que nos repugna instintivamente,esteticamente, o que se comprovou ser prejudicial, perigoso, digno de desconanano curso da mais longa experincia do ser humano: o instinto esttico (por exemplo,no asco) que subitamente se exprime contm umjuzo. Nessa medida o belopertence categoria geral dos valores biolgicos do til, benco, intensicador da vida: oque nos d o sentimento do belo uma multiplicidade de estmulos que, distncia,

    nos lembram de, e provocam associaes com, coisas e estados teis [...]. (KSA 12.554, 10[167])

    O sentimento de que algo belo deriva, portanto, do instinto, mas tema forma de um juzo. Podemos chamar-lhe, de facto, um juzo instintivo(Instinkt-Urtheil, KSA 12. 554, 10[167]). Numa nota de 1881, Nietzscheexplica o que entende por esta ligao entre instinto, juzo e gosto: Falo

    6 Sobre toda esta questo, cf. Nehamas, 2007.

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    de instintoquando um qualquer juzo(ou o gostono seu nvel mais baixo) incorporado, de tal forma que ele agora se estimula espontaneamente asi prprio e j no precisa de esperar por outros estmulos (KSA 9. 505,11[164]).

    Os instintos so o produto da mais longa experincia da espcie humana,so o que a espcie incorporou na sua evoluo ao longo do tempo. Algunsinstintos so automatismos que resultam de experincias pessoais, masmesmo esses devem ser vistos como desenvolvimentos de pulses, afectos,sensaes e memrias que se foram formando no curso do tempo-profundo daevoluo da espcie.7Os instintos j no precisam de esperar por estmulosporque so, no fundo, pulses que se tornaram permanentemente activas, queconstantemente procuram e encontram satisfao em estmulos e, portanto,se estimulam a si prprias. E a razo por que os instintos tm a forma de

    juzos que, nesta sua permanente actividade, dizem sim e no soarmaes e negaes: avaliam umas coisas como prejudiciais, perigosas,dignas de desconana e outras como teis, bencas, intensicadorasda vida. Dito de outro modo, os instintos so juzos porque os afectos e ossentimentos que necessariamente acompanham a sua actividade armam ounegam. Por exemplo: [...] a dor [] um juzo (um juzo negativo) na sua formamais tosca[,] o prazer uma armao (KSA 12. 256, 7[3]). Quer isto dizerque os instintos so juzos porque criam valores, modicam outros valores,

    funcionam como avaliaes ou apreciaes, tais como x belo ou x feio. Assim, o gosto no seu nvel mais baixo no seno um conjuntode juzos instintivos que discriminam e avaliam segundo o valor belo (ouo que til, benco, intensicador da vida) e o valor feio (ou o que prejudicial, perigoso, digno de desconana).

    Porm, como bvio, os juzos instintivos no so o nico tipo de juzoque existe. Na mesma nota de 1887 acima citada, Nietzsche estabelece oseguinte contraste entre juzos instintivos e juzos intelectuais:

    Todos os juzos instintivos tm vistas curtas no que respeita cadeia deconsequncias: aconselham sobre o que fazer primeiro. O entendimento essencialmente um aparelho de inibio contra a reaco imediata ao juzoinstintivo: ele retarda, continua a reectir, v a cadeia de consequncias at maislonge e durante mais tempo.

    Os juzos de beleza e fealdade tm vistas curtas tm sempre o entendimentocontra si : mas sopersuasivosno grau mais elevado: apelam aos nossos instintos

    7 Cf., por exemplo, KSA 11. 175, 26[94], KSA 13. 329, 14[144], AC 57. Sobre este conceito de instinto, cf.

    Lupo, 2006, p. 75f.; sobre a distino entre juzos instintivos e juzos intelectuais, cf. Lupo, 2012, pp. 179-195.

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    no ponto em que eles decidem mais depressa e dizem o seu sim e no, antesde oentendimento poder usar da palavra. (KSA 12. 554-555, 10[167])

    Porque os instintos so automatismos, ajuzam muito depressa efazem-nos agir antes de avaliarmos de forma consciente e racional as suasavaliaes; o entendimento (ou o intelecto, no fundo a razo consciente) precisamente um aparelho de inibio que nos permite distanciarmo-nosdo que percepcionamos, reavaliarmos as nossas avaliaes mais imediatas eponderarmos as consequncias das nossas aces. Os juzos instintivos so,na verdade, algo que sempre j aconteceu quando tomamos conscincia deles,ao passo que os juzos intelectuais (ou sapientes) so processos conscientes,que levam o seu tempo. Dado que tm esta natureza, chegam muitas vezestarde demais, isto , j depois de termos agido em conformidade com um sim

    ou um no instintivo. Mas no deixam por isso de ser os nossos melhoresjuzos: a sua lentido torna-os superiores do ponto de vista cognitivo.

    O passo que acabmos de citar sugere tambm que todos os juzosinstintivos so juzos estticos (i.e. juzos de gosto), e todos os juzos estticosso juzos instintivos. Os nossos juzos estticos so sempre os que tm vistasmais curtas, os nossos piores juzos? H certamente aqui um mistrio. Primeiroporque Nietzsche apresenta muitas vezes os juzos instintivos como aquelesque, por terem atrs de si uma longa histria na evoluo da espcie, garantem

    o funcionamento normal e saudvel do organismo, e os juzos intelectuais,racionais e conscientes como juzos superciais, que tendem a ser inibitivosa ponto de porem em risco o prprio funcionamento do organismo.8Depoisporque na obra de Nietzsche abundam os juzos estticos intelectuais, longosraciocnios e elaboraes crticas sobre mltiplas obras de arte e os artistasque as criaram. evidente que h juzos estticos que so intelectuais, juzosque resultam do uso desse aparelho de inibio que trava as avaliaes maisimediatas e que as reavalia. Se o gosto no seu nvel mais baixo instintivo,isso no exclui de forma alguma que o gosto seja tambm algo que se educa,

    algo que se transforma com a reexo e a acumulao de experinciasdiferentes algo sobre o qual o entendimento tem, portanto, inuncia. Porque razo sugere ento Nietzsche que todos os juzos estticos so instintivos?

    Podemos, talvez, comear a tentar responder a esta pergunta seconsiderarmos o facto de, nos passos aqui em causa, Nietzsche procurar dars palavras belo e feio o sentido mais lato possvel. A identicao entrejuzos instintivos e juzos estticos pretende fazer do belo e do feio os

    8 Cf., por exemplo, GC 11, AC 14, KSA 13. 310, 14[118].

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    valores mais bsicos da nossa vida pulsional, e pretende fazer do gosto anossa forma mais bsica de nos relacionarmos connosco mesmos e com omundo. Numa outra nota de 1881, Nietzsche escreve o seguinte: Os juzosestticos (o gosto, mal-estar, asco etc.) constituem a base das tbuas de valor

    [ou tbuas de bens, Gtertafel]. Estas, por sua vez, so a base dos juzosmorais (KSA 9. 471, 11[78]).9

    O que encontramos aqui novamente a ideia de um continuum, quedetermina que estados psicolgicos mais complexos sejam superfcies,espelhos, instrumentos, signos, sintomas de outros estados psicolgicos maissimples, sendo os primeiros, em regra, estados instintivos e inconscientese os segundos, estados conscientes que envolvem conceptualizao esimbolizao. Os juzos estticos, no seu nvel mais elementar, so reacesimediatas reaces de mal-estar, asco, mas tambm de prazer, agrado, etc..Podemos dizer tambm que so o mesmo que manifestaes de um gostoainda meramente instintivo, ou armaes e negaes que, de forma imediatae instintiva, avaliam umas coisas como prejudiciais, perigosas, dignas dedesconana e outras como teis, bencas, intensicadoras da vida.Todas as tbuas de valor so desenvolvimentosdestas avaliaes mais bsicas,instintivas. Portanto, mesmo os valores mais complexos e supostamente maiselevados os valores morais so ainda desenvolvimentos de avaliaesinstintivas sobre o que , no sentido mais lato do termo, belo ou feio. Ou,

    dito de outro modo, os valores morais so superfcies, espelhos, instrumentos,signos, sintomas de valores estticos. Quando se apresentam como algo vlidoem si, continuam a ser, na verdade, uma questo de gosto, simplesmente deum gosto mascarado por conceptualizaes e simbolizaes cuja reicaogera a iluso de um em si, a iluso de uma absoluta independncia emrelao a avaliaes estticas instintivas.

    Isto permite concluir j que no se trata, para Nietzsche, de reduzir oesttico ao instintivo, mas de defender que toda a complexicao, todo odesenvolvimento conceptual e simblico do instintivo sempre ainda esttico.A sua ideia no que no haja juzos estticos intelectuais, mas sim que estesjuzos so desenvolvimentos conceptuais e simblicos de outros juzos maisbsicos. Tanto assim que at os juzos morais so tambm desenvolvimentosdestes juzos mais bsicos (e, neste sentido, os juzos estticos intelectuais socomo os juzos morais).

    9 Cf. tambm, por exemplo, KSA 9. 481, 11[112].

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    Assim se esclarece tambm por que razo Nietzsche parece fazer avaliaescontraditrias do valor dos juzos instintivos e dos juzos intelectuais.Os juzos intelectuais so, no fundo, juzos instintivos que se tornaramintelectuais, e dependem sempre ainda (ou so sempre ainda contnuos

    com) dos juzos instintivos a partir dos quais se desenvolveram. Assim, someramente inibitivos e chegam a pr em risco o funcionamento normal doorganismo apenas quando as conceptualizaes neles envolvidas entram emtenso com os juzos instintivos a partir dos quais se desenvolveram ouseja, quando h uma espcie de curto-circuito no continuum e isto os impedede serem incorporados (GC 11). Em contrapartida, a sua superioridadecognitiva aproveitada, e no desperdiada, quando a sua aco inibidoralogra integrar-se na aco dos juzos instintivos pr-existentes i.e. quandoela transforma a constelao de instintos que a sustenta e, por m, o seucontedo se torna ele prprio instintivo e inconsciente (ou incorporado).

    Isto no signica, porm, que seja benca a incorporao de todos osjuzos intelectuais. Os mais bsicos de entre os juzos instintivos, aquelesque fazem o gosto no seu nvel mais baixo, resultam da longa evoluoda espcie e so, por isso, formas de proteco, preservao, armao daespcie. Correspondem quilo a que Schopenhauer chama a vontade deviver, cujo foco, como sabemos, a sexualidade, o instinto reprodutor. Ora,sendo assim, os juzos intelectuais que entram em curto-circuito com esses

    juzos instintivos mais bsicos so juzos que pem em risco a vontade deviver criam o tipo de conito e contradio interna que promove a negaoda vida, e a que Nietzsche chama dcadence. Aqui o risco no est tanto noefeito perturbador da sua no-incorporao quanto na sua incorporao. esta incorporao que cria o tipo de organizao instintiva, pulsional e afectivaa que se pode chamar decadente, negadora, auto-lesiva o tipo que determinaque um ser humano possa escolher epreferiraquilo que o prejudica enquantoespcime e enquanto indivduo (AC 6).

    III

    neste contexto que Nietzsche interpreta os juzos estticos luz dahiptese da vontade de poder. Por exemplo, numa das notas pstumas acimacitadas, Nietzsche explica o sentimento do belo, simplesmente, comosinnimo de um aumento do sentimento de poder (KSA 12. 554, 10[167]),e na nota imediatamente seguinte do mesmo caderno escreve que se ou onde juzo belo aplicado apenas uma questo de fora (de um indivduo

    ou de um povo) pois o sentimento depoderaplica o juzo belo tambm a

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    coisas e estados que o instinto da impotncia desvalorizaria como sendo apenasmerecedoras de dio, como feias. Para esclarecer esta armao, Nietzscheacrescenta um parntesis em que diz que isto belo uma armao (KSA12. 555-556, 10[168]). Quando, no Crepsculo dos dolos, explica todos os

    sentimentos estticos atravs do conceito de embriaguez (Rausch) diz, comovimos, que o essencial nesta embriaguez o sentimento de intensicaoda fora e do preenchimento (CI Incurses 8), ou seja, precisamente ocrescimento do sentimento de poder. O juzo esttico isto belo exprime,em suma, um sentimento de embriaguez que sinnimo de um crescimento dosentimento de poder sinnimo de uma armao ou satisfao da vontade depoder dos instintos mais bsicos do organismo; o juzo isto feio exprimeum sentimento depressivo que sinnimo de um sentimento de impotncia sinnimo de uma negao ou insatisfao da vontade de poder daquelesinstintos mais bsicos, em particular do instinto sexual.

    precisamente esta concepo dos juzos estticos que est em causanum dos passos mais importantes sobre todo este tema, o aforismo 19 dasIncurses de um extemporneo no Crepsculo dos dolos:

    Belo e feio. Nada mais condicionado, digamos mais limitado, do que o nossosentimento do belo. Quem o quisesse pensar desligado do prazer do ser humano noser humano perderia imediatamente o cho sob os seus ps. O belo em si umamera palavra, nem sequer chega a ser um conceito. No belo, o ser humano pe-se a

    si prprio como medida da perfeio; em casos selectos, adora-se a si prprio. Umaespcie no pode seno fazer isto: dizer sim apenas a si prpria. O seu instintomais bsico, o instinto de auto-preservao e auto-propagao,irradia ainda em taissublimidades. O ser humano acredita que o mundo sobreabundante em beleza, mas esquece-sede que ele a causa disso. Foi apenas ele quem o dotou de beleza,mas, ah!, s de uma beleza humana, demasiado humana... No fundo, o ser humanov-se espelhado nas coisas, toma por belo tudo aquilo que lhe devolve a sua imagem:o juzo belo a sua vaidade da espcie... (CI Incurses 19)

    No existe o belo em si, o belo, como j Kant havia demonstrado,

    subjectivo. Para Nietzsche, esta sua subjectividade signica, contudo, queo belo relativo espcie, s existe na medida em que o instinto maisbsico da espcie o instinto sexual como instinto de auto-preservao eauto-propagao da espcie o faz aparecer nas coisas. esse instinto queviolenta as coisas, que idealiza, que faz aparecer nas coisas (e primariamenteem outros espcimes) perfeies que geram o sentimento de que algo belo.Estepoderde idealizar e fazer aparecer perfeies o que, por m, apareceespelhado nas coisas que se sente serem belas, e isso quer dizer que taisperfeies so reexos, espelhos, imagens do sentimento da nossaperfeio,

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    da nossa beleza, do poder do instinto mais bsico da nossa espcie.10Portanto, a subjectividade do belo signica que ele um antropomorsmo,uma projeco antropomrca a vaidade da espcie. E, se assim, osjuzos estticos tm de facto vistas curtas e no h nada mais limitado do

    que o nosso sentimento do belo: as avaliaes que nos dizem que algo belo (ou feio) nunca nos levam alm de ns mesmos enquanto espcimes deuma dada espcie, nunca so mais do que espelhamentos ou reexos do nossosentimento de poder (ou de impotncia).

    Mas neste ponto-chave que devemos ter a mxima cautela interpretativa.

    Se o belo um reexo do nosso sentimento de poder enquanto espcimes,ento o sentimento do belo o sentimento armativo por excelncia aprpria armao da vida, pelo menos enquanto armao da vida daespcie. A tese de que o juzo e o sentimento do belo so apenas a vaidadeda espcie parece, primeira vista, um simples sarcasmo, mas ela identicaa fonte de todas as formas de armao da vida; e a tese de que o belo apenas uma idealizao ou uma projeco antropomrca parece reduziro belo a uma iluso, mas tambm nela se trata de identicar a actividadecriativa que torna possveis todas as formas de armao da vida. Mas noseria maximamente contraditrio que Nietzsche quisesse fazer pouco daarmao da vida e dos seus pressupostos?

    Na continuao do aforismo 19 das Incurses de um extemporneo,

    Nietzsche sugere justamente que o aforismo esconde uma espcie de segredo.Um cptico, explica Nietzsche, diria simplesmente que o belo de facto apenasum antropomorsmo e uma iluso. Mas imaginemos um juiz do gosto maiselevado: por exemplo, o deus Dioniso num dilogo com Ariane. Se Dioniso(que , por excelncia, o deus da armao da vida) ouvisse dizer que o belo apenas um iluso, puxaria as orelhas a Ariane (que representa aqui o serhumano) e diria: As tuas orelhas tm uma certa graa, Ariane: por que noso maiores? (CI Incurses 19). Precisamos, portanto, de ouvir melhor o queNietzsche quer dizer.

    IV

    Pelo menos superfcie, a posio do cptico no aforismo 19 dasIncurses de um extemporneo lembra mais um aspecto da losoa deSchopenhauer e faz pensar numa das mais estranhas contradies (ou,

    10 Cf. tambm os outros dois aforismos do Crepsculo dos dolos acima citados:CI Incurses 8 e 9.

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    pelo menos, aparentes contradies) da sua obra. Schopenhauer defende,por um lado, como vimos, que o belo s pode ser o objecto de umacontemplao desinteressada, mas, por outro, defende que o belo algo quecertos espcimes vem noutros espcimes porque o seu instinto sexual os

    programou para terem este comportamento. O belo faz parte da iluso edo delrio que a espcie plantou nos indivduos que a constituem para osconvencer a reproduzirem-se, i.e. a assegurarem a preservao da espcie. Avontade de viver a vontade da espcie, e o belo o engodo que a espcieutiliza para que os espcimes satisfaam essa vontade (e no a sua prpriavontade ou o seu interesse enquanto indivduos).11H, de facto, aqui uma puracontradio, ou Schopenhauer distingue dois sentidos de belo? Num primeirosentido, o belo seria, por assim dizer, um evento natural uma projecoantropomrca e uma iluso subjectiva induzida pelo instinto sexual ,mas, no seu sentido propriamente esttico, seria o efeito apenas cognitivo ouespiritual da contemplao da pura forma dos objectos. Esta contemplaoseria precisamente uma libertaoda suposta tirania do instinto sexual.

    Nietzsche no aceita que esta libertao exista. essa a sua objeco ideia de contemplao desinteressada. Mesmo a contemplao estticaaparentemente mais desinteressada ainda um anseio indirecto pelos xtasesda pulso sexual (KSA 12. 325-326, 8[1]). Mas signica isso que Nietzscheno reconhece qualquer valor passagem de um anseio directopelos xtases

    da pulso sexual a um anseio indirecto? A sua tese que estamos parasempre presos vaidade da espcie e no h qualquer possibilidade de noslibertarmosdas nossas avaliaes mais bsicas? A sua ideia a de que ouarmamos a vida da forma mais instintiva e animal, ou ento negamos a vidaporque determinados juzos intelectuais perturbam a sade animal do nossoorganismo e nos tornam decadentes?

    Temos de responder no a todas estas perguntas se nos recordarmos doque vimos acima sobre o fenmeno da espiritualizaoe da transformaodo instinto sexual em amor-paixo. Dissemos que Nietzsche entendea espiritualizao dos instintos ou das pulses como um processo deinteriorizao que as intensica. Esta espiritualizao distingue-se dacontemplao desinteressada porque no nos des-afecta. Pelo contrrio,potencia os afectos, gera embriaguez. Talvez no haja na obra de Nietzscheuma imagem mais clara do signicado desta espiritualizao das pulses do

    11 Cf. WWV II 44 (o pargrado onde Schopenhauer expe a sua famosa metafsica do amor sexual); cf.

    tambm a WWV I Anhang, 628-629, onde Schopenhauer diz concordar com a tese kantiana de que o belo subjectivo.

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    que a imagem do pathos da distncia no aforismo 257 de Para alm doBem e do Mal. Estepathos designa, em primeiro lugar, a psicologia de umadas partes de um dado tipo de relao social, nomeadamente a psicologia doaristocrata que olha de cima para os seus inferiores na escala social, cr que

    esta escala social reecte uma verdadeira diferena de valor e, por isso,senteuma enorme distncia entre si e todos aqueles que considera seus sbditose instrumentos (BM 257). O aforismo diz que este pathos social a pr-condio de um outropathos mais misterioso, umpathos da distncia apenasinterior que no tem, portanto, esse cariz social e ocorre apenas dentroda prpria alma (BM 257). Aquelepathos social sobretudo uma imagemdeste outro pathos apenas interior, e podemos abstrair aqui da discussosobre se um realmente a pr-condio do outro. A ideia fundamental quenos importa reter a de que o desenvolvimento do esprito, a espiritualizaoou sublimao das pulses e dos afectos, um processo que gera umpathosde distncia semelhante quele que o aristocrata sente em relao aos seusinferiores na escala social. Nietzsche descreve assim estepathosde distnciainterior:

    [...] um anseio que exige um alargamento sempre novo da distncia dentro daprpria alma, o desenvolvimento de estados sempre mais elevados, mais raros, maislongnquos, mais abrangentes, mais amplos, em suma: precisamente a elevaodo tipo ser humano, a contnua auto-superao do ser humano, para usar uma

    expresso moral num sentido supra-moral. (BM 257)

    A espcie humana tem esta estranha natureza. H muito que a suaevoluo passou a ser fundamentalmente a evoluo do seu esprito. ComoNietzsche bem sabia, evoluo um termo neutro, que no implica em simesmo nem progresso nem elevao. Uma espcie pode evoluir no sentido dasua expanso, mas tambm pode evoluir no sentido da sua decadncia. No casoda espcie humana, as suas possibilidades de expanso ou decadncia estono esprito a elevao do tipo ser humano, a contnua auto-superao do

    ser humano uma questo do esprito, do alargamento ou do estreitamentoda distncia dentro da prpria alma. Fisiologicamente, a evoluo da espcie sempre a evoluo das suas pulses, afectos e instintos, mas esta evoluodepende em grande medida das conceptualizaes e simbolizaes que, porum lado, emergem dessas pulses, afectos e instintos, por outro, os modicam,os reconguram, os atroam ou libertam. O tipo de conscincia que noscaracteriza um tipo de conscincia que envolve conceitos, palavras e outrossignos de comunicao (GC 354, BM 268) distingue-nos, de facto, dos

    outros animais e, em ltima anlise, distingue-nos deles porque cria distncia,isto : porque os conceitos, as palavras e os signos de comunicao que a

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    constituem tornam possvel uma constante reavaliao das nossas avaliaesmais imediatas.

    Sendo certo que, para Nietzsche, uma tal reavaliao nunca afectivaou pulsionalmente neutra (nunca desinteressada), no menos certo que

    ela ocorre e que depende em parte da conscincia sapiente. A espiritualizaodas pulses, dos afectos e dos instintos consiste nesta sua modicao pormeio da conscincia uma modicao que gera um pathos de distnciaporque implica um processo de reavaliao de outras avaliaes e, portanto,distncia em relao a estas outras avaliaes. Quando este processo gerareavaliaes que entram em curto-circuito com os instintos mais bsicos e doorigem a comportamentos auto-lesivos e negadores da vida, ele um processode dcadence; quando gera reavaliaes que, pelo contrrio, expandem osentimento de poder e intensicam a armao da vida, um processo deelevao e auto-superao do ser humano.

    Consideremos o caso do amor-paixo. Nietzsche diz expressamente que oamor-paixo uma espiritualizao da pulso sexual (KSA 12. 537, 10[144]).Nesta espiritualizao, o objecto em que a pulso se xa interiorizado:a imaginao pe em marcha conceptualizaes e simbolizaes que geramuma multiplicidade de sentimentos, volies e pensamentos conscientesnos quais esse objecto (por exemplo, a mulher amada) aparece como sendomuito mais do que apenas um objecto que pode satisfazer aquele que seria em

    princpio (ou que seria inicialmente) o alvo ou a meta da pulso (i.e. o actosexual). Este alvo (Ziel) , portanto, radicalmente modicado pelo processode interiorizao torna-se mais complexo, e tambm mais difuso: em vez dosimples acto sexual, ele agora a felicidade prometida pelas perfeies que secristalizam na imagem que o apaixonado faz da mulher amada. Obviamente,este um processo de interiorizao e espiritualizao porque tudo se passadentro da prpria alma, no esprito, no desenvolvimento de determinadasimagens, conceitos, palavras, sentimentos, volies e pensamentos. Estedesenvolvimento escapa ao controlo da conscincia, mas no possvel semela, e a imaginao tem aqui um papel crucial, mas apenas enquanto umtipo de imaginao que, por um lado, gera palavras e conceitos, por outro constantemente estimulada e modicada por palavras e conceitos. Sempalavras e conceitos sem a forma de conscincia humana a imaginao noteria o poder transformador que adquire na construo de um amor-paixo.Mas o que isso verdadeiramente signica que sem essa forma de conscinciano pode haver a reavaliao do valor do alvo inicialmente visado pela pulsosexual, no pode haver o desenvolvimento de estados sempre mais elevados,

    mais raros, mais longnquos, mais abrangentes, mais amplos. Estes estados

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    so umpathos interiorde distncia, e de uma distncia que, de facto, no des-afecta, mas, pelo contrrio, intensica o desejo: A magia e o mais poderosoefeito das mulheres , para falar na linguagem dos lsofos, um efeito distncia, uma actio in distans (GC 60).

    Se olharmos agora para a arte sob a ptica do artista, podemos percebernalmente o sentido e as implicaes da analogia entre o amor-paixo e acriao artstica. A tese do Crepsculo dos dolos e das notas pstumasque citmos a de que o belo sempre a vaidade da espcie e, no caso daarte, o belo artstico criado num estado de embriaguez que pressupe umsobreaquecimento do sistema sexual do artista. Mas isto no reduza criaoartstica a uma mera manifestao do poder do instinto sexual da espcie.A idealizao que resulta da criao artstica (o ter de tornar perfeito, aprojeco antropomrca de perfeies) um processo de espiritualizaosemelhante ao amor-paixo. Tal como o amor-paixo pressupe a pulsosexual, mas no se reduz a ela porque a sua espiritualizao, assim tambma criao artstica pressupe a vaidade da espcie e o sobreaquecimento dosistema sexual do artista, mas no se reduz a este sobreaquecimento porque a sua espiritualizao. Tambm a arte depende de um pathos da distnciae do desenvolvimento de estados sempre mais elevados, mais raros, maislongnquos, mais abrangentes, mais amplos. O horizonte em que ocorreo desenvolvimento destes estados sempre o da vaidade da espcie o do

    espelhamento do poder da espcie , mas esse horizonte alargado, ampliado medida que criada distncia dentro da prpria alma.O que caracteriza a arte , portanto, a capacidade (umas vezes actualizada,

    outras no) de reavaliar e, assim, de ampliar o conceito de belo, a concepoque a espcie faz (por meio dos seus espcimes, os indivduos) daquiloque til, benco, intensicador da vida e daquilo que prejudicial,perigoso, digno de desconana. As suas vistas so curtas porque nuncavo para l do horizonte dos antropomorsmos em que se joga o ser beloou feio paraa espcie ou em que se joga a vaidade da espcie , mas,em contrapartida, o seuproprium justamente o alargamento dessas vistas, apermanente reavaliao do que til, benco, intensicador da vida e doque prejudicial, perigoso, digno de desconana. A arte no se limita aimaginar, ela modica os valores (KSA 13. 299, 14[120]) , transforma-osnum processo de interiorizao, espiritualizao e alargamento da perspectivaque j, por si, uma elevao e auto-superao do ser humano (doanimal que permanece indeterminado, BM 62). O instinto sexual uminstinto que arma a vida armando a preservao e propagao da espcie

    mas a sua espiritualizao na arte arma a vida mediante um alargamento

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    e reavaliao de valores que recria a espcie e a eleva a um novo patamar dedesenvolvimento.

    esta, em ltima anlise, a grande lio de Stendhal contra a deniokantiana do belo como aquilo que agrada desinteressadamente contra o

    princpio da pura autonomia da arte, da arte pela arte. A arte satisfaz uminteresse: enquanto espiritualizao da pulso sexual e permanente recriaode uma promessa de felicidade, ela satisfaz o interesse da espcie naarmao da vida mas precisamente enquanto espiritualizao, enquantoembriaguez, enquanto anlogo do amor-paixo, enquanto eros espiritual, elasatisfaz esse interesse de um modo que modica, expande, amplia e eleva aprpria espcie e o seu interesse. Sem esta plasticidade que resulta da suanatureza espiritual, ela nunca poderia ter a complexidade que lhe permite serum contra-movimento12capaz de contribuir para a luta contra o niilismo(KSA 12. 202, 5[50], KSA 12. 306, 7[31]). Ou, nos termos da Genealogia: semtal plasticidade, a arte nunca poderia ter a complexidade que permite pens-lacomo sendo movida por uma vontade contrria do ideal asctico, umavontade na qual se exprime o ideal contrrio [ao ideal asctico] (GM III25). S esta complexidade a torna capaz de encontrar sempre novas formas eavaliaes que respondem ao niilismo e negao da vida.

    Portanto, no h dvida de que Nietzsche cr na possibilidade de noslibertarmos das nossas avaliaes mais bsicas e reconhece um enorme valor

    ao facto de, na arte, j no estar em causa um anseio directopelos xtases dapulso sexual, mas apenas um anseio indirecto. H uma terceira possibilidadeentre a sade do animal que arma a vida mediante satisfao directa dos seusinstintos e a decadncia de um animal doente que intelectualiza e curta-circuita os seus instintos. Essa terceira possibilidade est na espiritualizaodos instintos, em especial na sua espiritualizao artstica. Embora seja umaintensicao da pulso sexual, a arte vai muito para l da satisfao directada pulso sexual e tem, portanto, a plasticidade que lhe permite ser um contra-movimento que combate o niilismo, essa patologia do desejo que o cansaoe a nusea do ser humano em relao a si prprio.

    Referncias

    LUPO, L. Le Colombe dello Scettico, Riessioni di Nietzsche sulla Coscienza neglianni 1880-1888. Pisa: ETS, 2006.

    12 Cf. KSA 13. 355, 14[169], KA 13. 503, 16[51].

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