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Otfried Hõffe Immanuel Kant Tradução CHRISTIAN VIKTOR HAMM VALERIO ROHDEN Martins Fontes São Paulo 2005 II. O QUE POSSO SABER? A CCA DA O PU 4. O PROGRAMA DE UMA CRíTICA TRANSCENDENTAL DA RAZÃO 4.1 - O campo de batalha da metafísica ("Prefácio" à primeira edição) Kant denomina a ciência fundamental filosófica, por ele projetada, de filosofia transcendental. Para diferen- ciá-la da filosofia transcendental medieval, pode-se falar de filosofia transcendental crítica. Kant a desenvolve pri- meiro com referência à razão como faculdade de conheci- mento. Esta ele chama também de razão teórica ou espe- culativa, à diferença da razão prática, ou seja, da faculdade de desejar. Por isso a primeira crítica pode ser chamada mais exatamente "crítica da razão especulativa pura" (B I). O fato de Kant renunciar ao adjetivo adicional indi- ca que ele, ao redigir esta obra, estava pensando somente numa única crítica da razão. nda que às vezes a argumentação tome um cami- nho sinuoso nos seus pormenores, a Crítica da zão pu

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Page 1: Otfried Hõffe CRÍTICA RAZÃO PURA Immanuel Kant · Immanuel Kant Tradução CHRISTIAN ... imparcialmente as possibilidades de um conhecimento puro da razão, ... ke derivou os conceitos

Otfried Hõffe

Immanuel Kant

Tradução CHRISTIAN VIKTOR HAMM

VALERIO ROHDEN

Martins Fontes São Paulo 2005

II. O QUE POSSO SABER? A CRÍTICA DA RAZÃO PURA

4. O PROGRAMA DE UMA CRíTICA TRANSCENDENTAL DA RAZÃO

4.1 - O campo de batalha da metafísica ("Prefácio" à primeira edição)

Kant denomina a ciência fundamental filosófica, por ele projetada, de filosofia transcendental. Para diferen­ciá-la da filosofia transcendental medieval, pode-se falar de filosofia transcendental crítica. Kant a desenvolve pri­meiro com referência à razão como faculdade de conheci­mento. Esta ele chama também de razão teórica ou espe­culativa, à diferença da razão prática, ou seja, da faculdade de desejar. Por isso a primeira crítica pode ser chamada mais exatamente "crítica da razão especulativa pura" (B XXII). O fato de Kant renunciar ao adjetivo adicional in di­ca que ele, ao redigir esta obra, estava pensando somente numa única crítica da razão.

Ainda que às vezes a argumentação tome um cami­nho sinuoso nos seus pormenores, a Crítica da razão pura

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é, no seu conjunto, uma obra bem composta. O "prefá­cio" à primeira edição expõe, num tom dramático, a trá­gica situação em que se encontra a razão humana, uma situação que exige a sua própria crítica, determinando as investigações seguintes e encontrando seu desenlace so­mente depois de uma grande volta na segunda parte, a saber, na "Dialética".

Sem explicações prolixas Kant nos confronta com a condição precária da metafísica, a qual aparece como ne­cessária e ao mesmo tempo impossível. Pois impõem-se à razão humana certas questões que não podem ser rejei­tadas, mas tampouco podem ser respondidas (A VII). Tais questões não podem ser rejeitadas porque a razão busca, ante a variedade de observações e experiências, certos prin­cípios gerais que revelem essa variedade, não como um caos, senão como um todo estruturado, como coesão e unidade. Já as ciências naturais procuram por tais princí­pios, que elas unificam em teorias gerais. A metafísica não quer outra coisa a não ser continuar perguntando até o final, em vez de parar a meio caminho. A interrogação se completa com certos princípios que não estão já condi­cionados por outros; os princípios últimos são incondicio­nais. Enquanto a razão se mantiver na experiência, sem­pre vai encontrar condições cada vez mais remotas, mas nunca algo incondicionado. Para poder, apesar disso, pôr fim à interrogação, a razão "recorre a princípios ... que transcendem toda experiência possível, mas que parecem, não obstante, tão insuspeitos que até o senso comum consente com eles" (A VIII). Parece que o último funda­mento da experiência se encontra além de toda a expe­riência. Por isso sua investigação se chama metafísica, li­teralmente: além (meta) da física, da natureza.

A tentativa de obter conhecimentos independente­mente da experiência precipita a razão "em escuridão e

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contradições" (ibid.). Por um lado, mostrará Kant mais tar­de, há boas razões para afirmar que o mundo tem um co­meço, que Deus existe, que a vontade é livre e a alma é imortal; por outro lado, podemos também encontrar boas razões para afirmar o contrário, assim como que não é possível dizer qual é a posição certa. Como os princípios afirmados devem formar a base da experiência, parece na­tural verificá-los na experiência. Mas esta não pode ser o critério, já que os princípios metafísicos estão, por defi­nição, além de toda experiência. Aquilo que constitui a metafísica, a saber, o transcender da experiência, é tam­bém a razão de que ela seja impossível como ciência. Não são obstáculos externos que se opõem à metafísica. É sua própria natureza, ou seja, o conhecimento independen­te da experiência ou conhecimento puro da razão, que a estorva; assim, a metafísica se toma campo primordial de disputas intermináveis (A VIII).

A primeira das partes litigantes constitui a metafísi­ca racionalista, representada na época moderna por no­mes como Descartes, Espinosa, Malebranche e Leibniz, entre outros. Kant pensa, todavia, primeiro na metafísica escolar de Wolff, que nesta época prevalece nas cátedras universitárias. Wolff considera a experiência como fonte genuína de conhecimento, mas acredita, porém, na possi­bilidade de conhecer algo sobre a realidade com o mero pensar (razão pura). Kant toma os racionalistas por dog­máticos e despóticos porque impõem ao homem deter­minadas suposições básicas sem crítica prévia da razão, por exemplo, que a alma é de natureza simples e imortal, que o mundo tem um começo e Deus existe.

As controvérsias entre os dogmáticos fazem com que a metafísica acabe em anarquia, e como segunda parte li­tigante aparecem os céticos, que minam "os fundamentos

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de todo o conhecimento . . . em uma ignorância artificial" (B 451) e "liquida(m) sumariamente toda a metafísica" (B XXXVI). Mas eles não podem impedir que os dogmáticos continuem sempre retomando a palavra. Para Kant, é John Locke (1632 -1704) que em tempos recentes fez a tentativa de pôr fim a todas as disputas mediante uma "fisiologia" (teoria da natureza, literalmente) "do entendimento hu­mano" (A IX). John Locke, que rejeita no An Essay concer­ning Human Understanding [Ensaio acerca do entendimen­to humano, 1690] a doutrina cartesiana das idéias e princí­pios inatos, representa o empirismo, doutrina que funda­menta em última instância todo conhecimento em uma experiência interna ou externa, negando assim qualquer possibilidade de um conhecimento extra-empírico. Já que David Hume, o filósofo cujo ceticismo despertou Kant do "sono dogmático" (cf. capítulo 3 .1), também pertence aos empiristas (cf. B 127 s.), Kant entenderá, na "Dialética transcendental", a luta pela metafísica como uma disputa entre o racionalismo e o empirismo.

As controvérsias entre os dogmáticos, os céticos e os empiristas levam àquela indiferença que, se não elimina as perguntas da metafísica, ao menos as exclui do campo de uma filosofia que pretenda ser científica. Esta é a posição de um iluminismo vulgar que trata com desprezo a me­tafísica, outrora "rainha de todas as ciências" (A VIII s.) . Mas a indiferença em relação à metafísica, diz Kant, não pode ser mantida; porque "aqueles pretensos indiferentis­tas . . . , na medida em que pensam realmente alguma coi­sa", recaem "inevitavelmente em afirmações metafísicas" (A X). Com efeito, fazem enunciados sobre os últimos prin­cípios, sobre o fundamento empírico ou supra-empírico do conhecimento, tomam partido na disputa - contradi­zendo-se - e renovam o campo de batalha da metafísica.

O QUE POSSO SABER? A CRíTICA DA RAZÃO PURA

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Figura 6. Crítica da razão pura. Folha de rosto da primeira edição.

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Kant não se esquiva das perguntas da metafísica nem adere a uma das partes litigantes. Segue a única via, ain­da inexplorada, que libera realmente a metafísica de sua situação aporética: o estabelecimento de um tribunal. Em lugar da guerra aparece o processo judicial, que examina imparcialmente as possibilidades de um conhecimento puro da razão, ratifica as aspirações legítimas e rejeita as pretensões sem fundamento. Um exame dessa natureza, que envolve discernimento e justificação, se chama, no sentido original do termo, "crítica" (em grego krinein: dis­tinguir, julgar, levar ante o tribunal) . O título kantiano de "Crítica" não significa uma condenação da razão pura, se­não uma "determinação tanto das fontes, como da exten­são e dos limites dela, porém tudo a partir de princípios" (A XII) . (Encontramos as primeiras tentativas de uma crí­tica na pergunta, primeiro de Locke, depois de Hume, sobre a capacidade humana de conhecimento.)

Uma vez que todo conhecimento independente da ex­periência não pode ter, por definição, o seu fundamento na experiência, precisa ser investigada a possibilidade de um conhecimento puro da razão pela própria razão pura. No tribunal que Kant instaura para resolver o caso " dog­matismo contra empirismo e ceticismo", é a razão pura que se julga a si mesma. A Crítica da razão pura é o auto­exame e a autolegitimação da razão independente da ex­periência.

É na autocrítica que a razão manifesta o seu poder; mas este poder serve para sua autolimitação. Na primeira parte da Crítica, na Estética e na Analítica, encontra-se o código que contém um primeiro juízo sobre a disputa em torpo da metafísica: em contraposição ao empirismo exis­tem fundamentos independentes da experiência, e por isso um conhecimento rigorosamente universal e necessário; porém este conhecimento se limita, contrariamente ao ra-

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cionalismo, ao âmbito da experiência possível. Logo, na segunda parte, na Dialética, o processo é levado a cabo formalmente é decidido de forma definitiva. Com rela­ção a objetos além de toda a experiência, a razão se mos­tra sem consistência. Assim que ela se move somente no âmbito de seus próprios conceitos, incorre em contradi­ções. Kant recusa tanto o empirismo como o racionalis­mo; existem idéias puras da razão - mas meramente como princípios regulativos a serviço da experiência.

No decorrer do auto-exame, a razão rejeita o raciona­lismo porque o pensamento puro não é capaz de conhecer a realidade. Porém, a razão rejeita também o empirismo. É verdade que Kant admite que todo conhecimento come­ça com a experiência; mas não resulta disso, como supõe o empirismo, que o conhecimento provenha exclusivamen­te da experiência. Pelo contrário, mesmo o conhecimento empírico se mostra impossível sem fontes independen­tes da experiência.

Uma forma básica do conhecimento empírico consis­te na conexão de dois eventos, como causa e efeito. Loc­ke derivou os conceitos de causa e efeito da experiência, admitindo, contudo, a possibilidade de um conhecimen­to além da experiência. Kant considera isso um " devaneio" (B 127); certos supostos fundamentais da experiência, como o princípio de causalidade ("todas as transformações sucedem conforme ao princípio de causa e efeito"), não são produto da experiência, nem possibilitam um conhe­cimento além da experiência. Mas os supostos fundamen­tais também não nascem do hábito (psicológico), como acredita Hume (ibid. ). Eles são universalmente válidos, de modo que Kant finalmente, em contraposição ao ceticismo, acha possível um conhecimento objetivo. Demonstrando a existência de certas condições da experiência não em­píricas e, portanto, universalmente válidas, Kant mostra

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que a metafísica é possível, mas, em contraposição ao ra­cionalismo, somente como teoria da experiência, e não como uma ciência que transcende o âmbito da experiên­cia; e, à diferença do empirismo, não como teoria empí­rica, senão como teoria transcendental da experiência (cf. cap. 4 .5) .

Convencido da importância histórica de sua crítica da razão, Kant fala orgulhosamente da " erradicação de to­dos os erros" (AXII). Ele acredita ter especificado as ques­tões, " com base em princípios e de forma completa" (ibid. ) afirmando ousadamente "que não deve haver um só pro­blema metafísico que não tenha sido solucionado aqui ou para cuja solução não se tenha fornecido ao menos a chave" (A XIII) . Esta pretensão de Kant parece, pelo me­nos, exagerada. A idéia de que "nada resta à posteriori­dade senão a sistematização de tudo em forma didática" (A XX) é desmentida não só pela história da filosofia posterior a Kant, como também pelo desenvolvimento do pensamento do próprio Kant até seu Opus postumum. No entanto, não resta nenhuma dúvida : o programa kan­tiano de uma crítica da razão e seus elementos principais, como a virada copernicana para o sujeito transcendental e a ligação entre teoria do conhecimento e teoria do ob­jeto, a demonstração de elementos apriorísticos em todo conhecimento e a distinção entre fenômeno e coisa em si, causaram uma profunda reforma da P rimeira Filoso­fia, que tradicionalmente é chamada metafísica .

4.2 A revolução copernicana ("Prefácio" à segunda edição)

À diferença do primeiro P refácio, no qual Kant ainda precisa chamar a atenção do leitor, o P refácio à segunda

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edição deixa transparecer a serenidade de um autor que está seguro do caráter revolucionário de suas idéias. Kant integrou os Prolegômenos à sua Crítica alcançando assim, em algumas partes, uma clareza maior. Como os proble­mas aparecem em geral mais distintamente na segunda edição, a seguinte exposição basear-se-á nela. A idéia prin­cipal é a revolução copernicana do pensamento.

Kant pretende levar a metafísica "ao caminho segu­ro de uma ciência" (BVII) . Por isso ela não pode cada vez recomeçar, mas deve avançar. Fazer progressos só é pos­sível quando se procede conforme a um plano e se se­guem metas e quando os especialistas na matéria con­cordam no que se refere à forma do procedimento. Mas na metafísica não existe um consenso sobre o método; por isso, ela não pode esperar nenhum progresso, apesar do esforço de dois mil anos. Na Crítica da razão pura Kant pretende fornecer esse novo método. O escrito ainda não contém a metafísica como ciência, mas sim o seu pressu­posto necessário; ele é um "tratado do método" (B XXII) .

A exemplo de três disciplinas universalmente reco­nhecidas até hoje como ciências, a lógica, a matemática e a ciência natural, Kant mostra como se descobre o ca­minho seguro da ciência . O caso mais simples é o da ló­gica . Visto que ela investiga nada mais que as "regras for­mais de todo o pensamento" (B IX), ela seguiu "desde os tempos mais remotos" (B VIII), nomeadamente desde Aristóteles, o caminho seguro da ciência . Como nela o entendimento " só se ocupa de si mesmo e de sua forma", a lógica é simplesmente o "vestíbulo das ciências" (B IX) e desempenha na crítica da razão o papel de padrão ne­gativo para as ciências reais.

As ciências reais também se ocupam de objetos. Após uma fase de " andar às cegas", elas encontram o caminho

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seguro da ciência "graças à intuição feliz de um só ho­mem". Essa intuição fundadora da ciência consiste em uma "revolução no modo de pensar" (B )([). No caso da matemática, esta revolução aconteceu já na Antiguidade e consiste numa idéia que se pratica em toda demonstração geométrica : para os fins da ciência, não basta ver simples­mente uma figura geométrica ou meramente perseguir seu conceito; é preciso construí-la a priori segundo conceitos próprios (B XI s.). Esta idéia tem graves conseqüências: de uma coisa só se pode saber com certeza aquilo que se co­locou no seu conceito; só mediante um pensar e um cons­truir criativos toma-se possível o conhecimento científico. Porém, aquilo que se coloca no objeto não pode proceder dos nossos preconceitos pessoais; do contrário, tratar-se-ia de ocorrências arbitrárias mas não de um conhecimento objetivo. A matemática como ciência se deve então a uma condição aparentemente impossível: um suposto subjetivo que, no entanto, é objetivamente válido.

Na ciência natural, Kant descobre a mesma estrutura básica. Para se tomar ciência, também a física necessita de "uma revolução do seu modo de pensar" (B XIII). Esta consiste na idéia proposta pelo filósofo britânico Bacon (1561-1626), mas só realizada nos experimentos de Ga­lilei e de Torricelli, de que a razão só conhece da nature­za "o que ela mesma produz segundo o seu projeto" . Como confirmam os cientistas modernos em sua prática e em sua teoria, eles não desempenham ante a natureza o papel "de um aluno que se deixa ditar tudo o que o professor quer, mas sim o de um juiz nomeado que abri­ga as testemunhas a responder às perguntas que ele lhes propõe" (ibid.).

Para que também a metafísica alcance finalmente a dignidade de uma ciência, Kant propõe que ela faça igual-

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mente uma revolução em seu modo de pensar, uma re­volução que coloque, como no caso da matemática e da ciência natural, o sujeito cognoscente numa relação cria­dora com o objeto. Kant entende sua proposta como uma hipótese, como um experimento da razão que só pode se justificar pelo seu próprio sucesso. Sua filosofia trans­cendental não pretende de modo algum, como se objeta freqüentemente, ser uma teoria infalível, o que significa­ria contradizer a condição mínima da epistemologia atual, ou seja, o postulado de falibilidade. Só que a refutação dos projetos transcendentais de pensamento não é pos­sível com os recursos das ciências empíricas. Por tratar-se de experimentos da razão, só podem validar-se por meio da razão ou, porém, fracassar ante ela .

O experimento da razão confirma-se em duas etapas. Por um lado, acredita Kant, sua proposta permite funda­mentar a objetividade da matemática e da ciência natu­ral (matemática); isto ocorre na "Estética transcendental" e na "Analítica transcendental" . A Crítica da razão pura contém em suas duas primeiras partes uma teoria filosó­fica da matemática e da ciência natural matemática . Em oposição a algumas tendências do neokantismo, que re­duzem a primeira crítica da razão a uma mera "teoria da experiência" (Cohen, 1924), o escrito tem mais uma par­te, a "Dialética transcendental". Nesta última, Kant mos­tra que no modo tradicional de pensar o objeto da meta­física, o incondicionado, "não pode ser pensado sem con­tradição" (B XX) . Em contrapartida, com o novo modo de pensar, as contradições (antinomias) desaparecem. Nis­so reside a contraprova em favor da revolução no modo de pensar: a razão se reconcilia consigo mesma, de modo que o experimento pode ser considerado bem-sucedido e a proposta verdadeira e fundada.

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Kant compara sua proposta com a descoberta do as­trônomo Copérnico; o experimento da razão tornou-se, por isso, célebre como " revolução copernicana". Kant vê a importância histórica de Copérnico não na refutação de uma teoria astronômica tradicional. Copérnico faz algo muito mais fundamental: ele supera a perspectiva de uma consciência natural, evidenciando o caráter ilusório da idéia da rotação do Sol em torno da Terra, encontrando a verdade, antes, numa nova posição, não mais natural, do sujeito ante seu objeto, ou seja, ante o movimento do Sol e dos planetas. De modo semelhante, na Crítica da razão pura, Kant pretende apresentar mais que uma mera re­futação de teorias metafísicas. Ele supera não apenas o racionalismo, o empirismo e o ceticismo; funda, sobretu­do, uma nova posição do sujeito em relação à objetivida­de. O conhecimento não deve mais regular-se pelo obje­to, mas sim o objeto pelo nosso conhecimento (B XVI).

Esta exigência pode parecer absurda à consciência natural. Pois fala -se, em contraposição a um conhecimen­to subjetivo, de um conhecimento objetivo somente onde se vêem as coisas como são em si, portanto, independen­tes do sujeito. A revolução kantiana do modo de pensar exige que a razão humana se livre desta sua perspectiva natural limitada, ou seja, do realismo gnosiológico. Kant afirma que a necessidade e a universalidade que perten­cem ao conhecimento objetivo não nascem, como nós costumamos pensar, dos objetos, mas se devem ao sujei­to cognoscente. Não obstante, Kant não quer dizer que o conhecimento objetivo depende da constituição empí­rica do sujeito, da estrutura do cérebro, da filogênese e das experiências sociais do homem. Tal afirmação seria até absurda para Kant. O que é investigado são as condições do conhecimento objetivo que independem da experiên-

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cia, condições estas que se encontram na constituição pré­empírica do sujeito.

A revolução copernicana de Kant significa que os objetos do conhecimento objetivo não aparecem por si mesmos, mas eles devem ser trazidos à luz pelo sujeito (transcendental). Por isso eles não podem mais ser con­siderados como coisas que existem em si, mas como fe­nômenos. Com a mudança do fundamento da objetivida­de, a teoria do objeto, a ontologia, passa a depender de uma teoria do sujeito, de modo que não pode mais ha­ver uma ontologia autônoma. O mesmo vale para a teoria do conhecimento. O substancial da Crítica da razão pura consiste na interligação de ambos os lados; uma teoria filosófica do ente, ou seja, daquilo que um objeto é obje­tivamente, só pode ser elaborada, segundo Kant, como teoria do conhecimento do ente, e uma teoria do conhe­cimento apenas como determinação do conceito da ob­jetividade do objeto.

4.3 A metafísica como ciência, ou sobre a possibilidade de juízos sintéticos

a priori ("Introdução")

Kant explica o modo específico do saber da metafí­sica, isto é, o conhecimento puro da razão, e também o caráter do saber da matemática e da ciência pura da na­tureza mediante uma dupla divisão disjuntiva : 1) os co­nhecimentos são válidos ou a priori ou a posteriori; 2) os juízos são ou sintéticos ou analíticos. A relevância gno­siológica e epistemológica dessas duas distinções não tem diminuído até hoje. No entanto, as definições de Kant não se mostram mais suficientemente exatas, e a procura de

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conceitos precisos dá lugar a dificuldades que fizeram com que pragmatistas como M. G. White e Quine colo­cassem em dúvida a utilidade de tais conceitos.

A priori - a posteriori

Primeiro Kant assume, como se fosse natural, apo­sição do empirismo, seguindo a crítica de Locke referen� te às idéias inatas de Descartes e afirmando que, pelo menos segundo o tempo, "todo nosso conhecimento co­meça com a experiência" (B 1). É certo que também ra­cionalistas como Leibniz ou Wolff não teriam dúvida em afirmar com Kant que não é possível conhecimento al­gum sem "objetos que afetem nossos sentidos e em par­te produzam por si próprios representações, em parte ponham em movimento a nossa atividade do conheci­mento" (ibíd. ). Mas o início no tempo - é isso que Locke não vê (cf. XVIII 14)- não significa a origem reat da pri­mazia temporal não se segue que não exista outra fonte de conhecimento fora da experiência . Por isso, o empiris­mo que sustenta esta exclusividade incorre em uma ge­neralização inadmissível. A hipótese de que "mesmo o nosso conhecimento de experiência seja um composto do que recebemos por meio de impressões e do que o nosso próprio poder de conhecimento (apenas provoca­do por impressões sensíveis) fornece de si mesmo" (B 1) é, segundo Kant, também compatível com a primazia tem­poral da experiência e merece por isso uma investigação mais detalhada. Com esta hipótese Kant propõe uma mediação entre o empirismo de Locke e o racionalismo de Descartes.

O conhecimento que tem sua origem na experiência Kant chama-o de a posteríori ("posterior", por se basear em impressões sensíveis); e o conhecimento que é inde-

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pendente de toda impressão dos sentidos chama-se a priori ("anterior", porque sua fundamentação independe de qualquer experiência) . De acordo com a crítica ao em­pirismo e o programa de um conhecimento puro da ra­zão, Kant se interessa por aqueles conhecimentos que são puramente a priori, já que " a eles não se mescla nada de empírico" e se realizam não só "independentemente desta ou daquela experiência, mas de modo absolutamen­te independente de toda a experiência" (B 3) .

Para distinguir entre o conhecimento puramente apriorístico e o conhecimento empírico, Kant indica duas características que já foram introduzidas por P latão e Aris­tóteles (p. ex., nos Segundos analíticos, cap. I 2) a fim de discernir o verdadeiro saber (episteme: ciência) da mera opinião (doxa): a necessidade rigorosa, em virtude da qual algo não pode ser outra coisa do que ela é, e a generali­dade absoluta que "não permite nenhuma exceção como possível" (B 4) . Como a experiência somente comprova fatos, mas não a impossibilidade de poder ser outra coisa nem a impossibilidade de uma exceção, a generalidade absoluta e a necessidade rigorosa são, de fato, as carac­terísticas do a priori puro.

Analítico - sintético

O primeiro par conceitual " a priori- a posteríorí" dis­tingue os conhecimentos, segundo sua origem, em conhe­cimentos da razão ou da experiência. O segundo par con­ceitual, "analítico - sintético", responde à pergunta acerca do que decide a verdade de um juízo: "O fundamento le­gítimo da ligação entre sujeito e predicado se encontra no sujeito ou fora dele?" Ainda q�e algumas explicações de Kant possam causar um mal-entendido psicológico, Kant não entende por "juízos" os processos psicológicos

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do ato de julgar, mas - de modo lógico - enunciados ou afirmações, a saber, aquela ligação (síntese) de represen­tações que pretende validade objetiva. Para Kant os juízos ... ·

lingüisticamente têm a estrutura de sujeito e pn:�diéádo, a partir da qual surge a definição de juízos analíticos e sintéticos. No entanto, como existem juízos que não pos­suem estrutura de sujeito-predicado, a definição kantia­na teria que ser ampliada.

Kant designa como analíticos todos os juízos cujo pre­dicado está contido ocultamente no conceito do sujeito (B 10) . Assim ele considera como analiticamente verda­deira a afirmação de que todos os corpos são extensos, porque se pode verificar independentemente de toda ex­periência pela mera análise do sujeito "corpo" que este contém em si o predicado " extenso" . Sobre a verdade de proposições analíticas decidem unicamente os conceitos do sujeito e do predicado, assim como o princípio de contradição (B 12), que Kant considera como princípio de toda a lógica formal (cf. B 189 ss.) . Segundo Leibniz, proposições analíticas são verdadeiras em todos os mun­dos possíveis, segundo Kant sua negação implica uma contradição. No entanto, para M. G. White e W.V. O. Qui­ne, ambas as explicações não resolvem o problema, já que os conceitos de "mundo possível" e de "autocontra­dição" precisam por sua vez ser explicados. Mas até essa crítica é controversa.

Para Kant, "analiticamente verdadeiro" não tem o mesmo significado que "verdadeiro por definição", uma vez que ele considera a definição exata e completa como uma condição mais rigorosa; juízos analíticos podem ser formados com conceitos cuja definição exata e completa (ainda) não se conhece. Juízos analíticos podem versar sobre objetos que pertencem ao mundo da experiência e

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podem afirmar, por exemplo, que todo "Schimmel" [cavalo branco] é branco, que nenhum solteiro é casado, ou - com Kant (B 192) - que um homem inculto não é culto. Po­rém, a verdade do conteúdo afirmado não se decide pela experiência, mas unicamente com a ajuda de leis lógicas elementares, pressupondo as regras semânticas daquela língua em que a afirmação é formulada. Ainda que as re­gras semânticas constituam fatos empíricos e possam va­riar, os juízos analíticos são, segundo Kant, necessaria­mente verdadeiros. Pois a analiticidade não se refere a regras semânticas, mas- uma vez pressupostas as regras semânticas- somente à relação entre o conceito do su­jeito e o conceito do predicado. Se as regras semânticas mudam e, por exemplo, se " Schimmel" não significa mais "cavalo branco", então não teríamos mais um juízo ana­lítico, apesar de usarmos o mesmo termo.

Sintéticos são todos os juízos não-analíticos, ou seja, todas aquelas afirmações cuja verdade - supostas as re­gras semânticas da linguagem - não pode ser encontra­da unicamente com a ajuda do princípio de contradição, ou, mais geralmente, com a ajuda das leis lógicas. Juízos analíticos só explicam o sujeito através do predicado; juí­zos sintéticos, ao contrário, ampliam o conhecimento acerca do sujeito.

A dupla distinção "analítico - sintético" e "a priori -a posteriori" permite ao todo quatro possibilidades de combinação: (1) juízos analíticos a priori; (2) juízos ana­líticos a posteriori; (3) juízos sintéticos a priori e (4) juízos sintéticos a posteriori. Duas destas, a saber, (1) e (4), não são problemáticas, enquanto uma terceira possibilidade (2) é descartada. Juízos analíticos são válidos a priori por seu próprio conceito (1), por isso não pode haver juízos analíticos a posteriori (2) . O fato de que a ampliação (sin-

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tética) do conhecimento humano se dá pela experiência é óbvio para nós e não oferece nenhuma dificuldade; os juízos empíricos ( 4) são sempre sintéticos .. (1311);' seu fundamento é constituído pela experiência.

À diferença dos juízos analíticos a posteriori, os juí­zos sintéticos a priori (3) são possíveis conceitualmente. A questão se essa possibilidade conceitual pode realizar­se, isto é, se há de fato juízos sintéticos a priori e, portanto, a ampliação do conhecimento anterior a toda a experiên­cia, esta questão decide sobre a possibilidade da metafísi­ca como ciência . Pois, à diferença da lógica, a metafísica deve ampliar o conhecimento humano; seus enunciados são sintéticos. Como a metafísica consiste em um conhe­cimento puro da razão, ela carece da legitimação pela ex­periência; seus juízos são válidos a priori. Assim a per ­gunta fundamental da Crítica da razão pura é: "Como são possíveis juízos sintéticos a priori?" Esta pergunta é ao mesmo tempo a " questão vital" da filosofia . Da resposta dependem, com efeito, a possibilidade da existência de um objeto próprio de investigação para a filosofia e a pos­sibilidade de um conhecimento genuinamente filosófico, diferente do conhecimento nas ciências analíticas e em­píricas.

À primeira vista um conhecimento independente da experiência e ao mesmo tempo sintético parece insólito e, por isso, bastante remota a possibilidade de uma filo­sofia autônoma. No entanto, as possibilidades aumentam consideravelmente se não só na metafísica mas também em todas as ciências teóricas ocorrem, como Kant afir­ma, juízos sintéticos a priori. Neste caso, o conhecimen­to da metafísica não ficaria fora do "continuum das ciên­cias". Na sua primeira fase, o empirismo lógico (Schlick, Carnap, Reichenbach) afirmará que já o conceito de um

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conhecimento sintético a priori é contraditório, pois a ló­gica e a experiência são as únicas fontes de conhecimento. Porém, mais tarde ele admitirá que as ciências empíricas contêm proposições, a saber, proposições nomológicas, que podem ser apenas confirmadas ou falsificadas pela experiência, mas não fundamentadas por ela.

Segundo Kant, o caráter sintético a priori da geome­tria e, em geral, da matemática se fundamenta sobretu­do nos princípios como, por exemplo, que a linha reta é a distância mais curta entre dois pontos (B 16) . Mesmo que os teoremas matemáticos possam ser deduzidos dos princípios de modo puramente lógico e tenham, portanto, aspecto lógico, eles somente são válidos sob o pressu­posto dos princípios sintéticos, motivo pelo qual Kant afir ­ma que "juízos matemáticos são em geral sintéticos" (B 14) . No caso da ciência natural (física), apenas os seus prin­cípios possuem caráter sintético a priori. Como exemplos Kant cita elementos da física clássica : o princípio da con­servação da matéria e o princípio da igualdade de ação e reação, isto é, o terceiro axioma de Newton (B 17 s.) .

Como a matemática e a ciência natural devem a sua validade objetiva a elementos independentes da experiên­cia, a pergunta fundamental da Crítica sobre a possibili­dade de juízos sintéticos a priori divide-se, primeiro, nas duas perguntas específicas: como são possíveis 1) a ma­temática pura e 2) a ciência natural pura . A elas se acres­centa, como pergunta básica, 3) como é possível a meta­física como ciência. Kant responde às duas primeiras perguntas na estética transcendental e na analítica trans­cendental. A primeira parte da Crítica oferece, pois, uma epistemologia da matemática e da ciência natural, mas não no sentido de uma teoria empírico-analítica, mas de uma crítica da razão. Aliás, a Crítica desenvolve uma teoria de

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ciências não filosóficas exclusivamente para a matemática e a ciência natural matemática . Pois, para Kant, são uni­camente estas ciências que representam exemplos indu­bitáveis de conhecimento objetivo. As ciências da histó­ria, da literatura e as ciências sociais não são tomadas em consideração. Isso não tem a ver apenas com o fato de que estas estavam pouco desenvolvidas na época de Kant. Kant possui um conceito muito rigoroso de ciência que não abarca tudo o que se entende hoje por ela . A "ciên­cia autêntica" exige que a sua certeza seja apodítica (neces­sária); "conhecimento que pode conter certeza meramen­te empírica é apenas um saber em sentido impróprio" (MAN, IV 468) . Na Crítica, Kant afirma que aquele mun­do real, que consideramos objetivo em oposição a todos os mundos fictícios ou subjetivos, coincide com o mun­do da matemática e da ciência natural matemática .

Sem dúvida, uma das razões fundamentais do enor­me sucesso e da influência duradoura da Crítica da razão pura deve-se a esta dupla circunstância: primeiro, Kant não só reconhece a primazia do saber da matemática e da ciência natural matemática, mas também o fundamenta filosoficamente; e, segundo, desvenda no decorrer da fun­damentação até alguns elementos e condições da mate­mática e da física que não provêm das ciências específi­cas, mas, ao contrário, são sempre já pressupostos por elas. Assim, a tarefa secular que a filosofia assume com o nascimento da ciência natural matemática encontra uma solução satisfatória para ambas as partes: para o impul­so investigador das ciências específicas autônomas, que recusam toda determinação por parte da filosofia; e para o legado metafísico da filosofia, que determinou a histó­ria do espírito do Ocidente desde os gregos, com a sua pretensão a "verdades eternas".

O QUE POSSO SABER? A CRÍTICA DA RAZÃO PURA 53

No entanto, a fundamentação filosófica da investi­gação científica autônoma não representa para Kant um fim em si. Os matemáticos, cientistas da natureza e teó­ricos da ciência, que se ocupam do estudo da Crítica da razão pura, às vezes não vêem que, na verdade, a inten­ção de Kant é saber - e esta é a terceira e principal per­gunta - como é possível a metafísica como ciência . A in­vestigação dos elementos sintéticos a priori da matemá­tica e da ciência natural pura fornece a base para isso. As condições que possibilitam a única objetividade inques­tionável, a objetividade da matemática e da ciência natu­ral pura, são as que decidem sobre a possibilidade de um conhecimento objetivo também fora da experiência, ou seja, sobre a possibilidade da metafísica como ciência . Na segunda parte da Crítica, na dialética transcendental, Kant aborda esta questão. Também neste contexto ele se ocupa de uma "realidade", isto é, da "metafísica como disposição natural", a qual possui, não obstante, no âm­bito do conhecimento, uma predisposição à auto-ilusão. A razão humana crê que pode conhecer objetos além de toda experiência . Porém, todas as tentativas de respon­der às "perguntas naturais" sobre o começo do mundo, sobre a existência de Deus etc. levam a razão a contradi­ções. Tais questões só podem ser resolvidas se se reco­nhece o resultado da revolução copernicana, a saber, a distinção entre fenômeno e coisa em si, e se limita o co­nhecimento objetivo ao âmbito da experiência possível.

4.4 A matemática contém juízos sintéticos a priori?

Já Leibniz acreditara que a matemática pode ser fun­damentada só a partir de definições e do princípio de

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contradição (Nouveaux essais sur l'entendement humain [Novo ensaio sobre o entendimento humano], livro IV, cap. VII) e que ela é, portanto, uma ciência analítica. Na pesquisa mais recente, a crítica ao caráter sintético a prio­ri da matemática é quase uma opinião comum. Foram sobretudo o matemático e filósofo Gottlob Frege (1848-1925) e o matemático David Hilbert (1862-1943) que de­fenderam o caráter analítico da matemática, Frege com a prova de que o conceito de número e, através dele, os con­ceitos fundamentais da aritmética podem ser definidos in­contestavelmente com recursos meramente lógicos (Grund­lagen der Arithmetik [Fundamentos da aritmética], 1884), e Hilbert, por meio da axiomatização da aritmética e da geometria. Os filósofos e matemáticos A N. Whitehead (1861-1947) e B. Russell (1872-1970), na sua obra Principia Mathematica, e o filósofo Rudolf Carnap (1891-1970) fi­zeram com que a tese do caráter analítico da matemáti­ca se incorporasse à filosofia analítica e ficasse, desde en­tão, quase incontestada.

De outro lado, Albert Einstein (1879-1955), à luz do desenvolvimento da geometria não euclidiana e de sua aplicação na teoria geral da relatividade, afirmou que até os axiomas da geometria são proposições empíricas, ao passo que o físico Henri Poincaré (1854-1912) os consi­dera como convenções; em ambos os casos os axiomas perdem seu caráter apriorístico. Assim, os matemáticos e os filósofos negam o caráter sintético da matemática, e os físicos seu caráter a priori.

Ao contrário do que se poderia supor, ambas as ver­tentes são compatíveis entre si. É preciso, no entanto, distinguir entre a geometria matemática (pura) e a geo­metria física (aplicada) . Neste caso, a geometria matemá­tica pode ser válida a priori, mas só porque ela é analítica.

O QUE POSSO SABER? A CRÍTICA DA RAZÃO PURA 55

A geometria física passa a ser, ao contrário, um sistema de hipóteses empiricamente verificáveis sobre as pro­priedades do espaço físico. Ela é tida como sintética, mas só porque se funda na experiência e, portanto, renuncia à sua pretensão apriorística. Tanto a geometria matemá­tica como também a geometria física perdem seu caráter de conhecimentos sintéticos a priori, de modo que a con­cepção de Kant parece hoje "completamente errada".

Como Kant tem em vista a matemática pura, a tese do caráter empírico da geometria aplicada não o atinge. Mas também a afirmação do caráter analítico da mate­mática pura não é tão indiscutivelmente clara como o su­pôs a filosofia analítica durante muito tempo. Essa posição é contestada já por duas importantes correntes matemá­ticas: a escola intuicionista do holandês L. E. J. Brouwer (1881-1966) e a concepção construtivista (operativa) de Paul Lorenzen (Eínführung in die operative Logik und Ma­thematik, 1955) ou de E. Bishop (The Foundations oJCons­tructíve Mathematics, 1967) . Mesmo entre filósofos que se sentem ligados ao pensamento analítico, como, por exem­plo, J. Hintikka ou, já anteriormente, E. W. Beth e, seguindo a ambos, Brittan (caps. 2-3), o caráter analítico da mate­mática é considerado com ceticismo. O argumento prin­cipal de Hintikka é este: pertencem à matemática intui­ções e representações individuais; ambas não pertencem à lógica, assim como a matemática não é exclusivamen­te analítica. Segundo K. Lambert e C. Parsons (cf. Brittan, 56 ss.), entre os axiomas da geometria há enunciados exis­tenciais (como, por exemplo, "há pelo menos dois pon­tos"); mas os enunciados existenciais não pertencem às verdades lógicas, que segundo Leibniz são válidas em todos os mundos possíveis; os enunciados existenciais da matemática não são válidos "em todos os mundos pos-

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síveis", mas somente em todos os mundos "realme/te possíveis". /

Segundo Brittan (69 ss.), a analiticidade da geome­tria pura pode ser entendida em três aspectos, porém nenhum deles é convincente. Em um primeiro sentido, a geometria pura pode ser considerada como analítica, porque o contrário dos enunciados geométricos seria au­tocontraditório. Mas este não é o caso, já que o axioma das paralelas, por exemplo, é discutível, de modo que re­sultam descartadas apenas as proposições da geometria euclidiana, não de toda geometria; é fundada, pelo contrá­rio, uma nova geometria, não euclidiana. (Corresponden­temente, há duas teorias de conjuntos, cada uma delas livre de contradições.) Em um segundo sentido, a geome­tria pura é analítica porque suas proposições só podem ser deduzidas com a ajuda de definições e da lógica. A geometria seria então uma verdade puramente lógica e teria que valer para todos os mundos possíveis; na reali­dade, porém, isso não é assim na geometria euclidiana. Em outras palavras: se as proposições da geometria fos­sem verdadeiras no sentido puramente lógico, então te­riam que sê-lo em todas as interpretações; na realidade, em algumas interpretações de constantes não lógicas, encontramos proposições geométricas como verdadeiras e outras como falsas. Finalmente, pode-se considerar a geometria pura como um conjunto de proposições não interpretadas, quer dizer, não se pode falar de pontos, li­nhas e superfícies, mas de P's, S's, B's etc., isto é, de con­ceitos elementares de uma teoria axiomatizada (no sen­tido de Hilbert). Neste contexto, uma proposição é tomada como analítica porque não está interpretada e é, por­tanto, "vazia" e "sem conteúdo", e a geometria matemá­tica se converte em uma ciência analítica, já que ela não

O QUE POSSO SABER? A CRÍTICA DA RAZÃO PURA 57

afirma nenhum conteúdo. Brittan tem objetado que neste caso se está confundindo uma distinção, a saber, aquela entre proposições não interpretadas e proposições inter­pretadas, com um argumento. No entanto, mais impor­tante é a objeção de que as proposições não interpreta­das não constituem ainda uma geometria, uma vez que não tratam de conceitos e relações espaciais. Só a inter­pretação espacial (interpretação de primeiro grau) dos axiomas faz de um conjunto de proposições não inter­pretadas uma geometria, enquanto a interpretação (de segundo grau) da geometria matemática leva a uma geo­metria física.

Tendo em vista estes argumentos, há boas razões, também segundo Frege, Hilbert e Russell, para conside­rar a matemática como ciência não analítica e a matemá­tica pura como um conhecimento sintético a priori. (Os argumentos do próprio Kant são expostos no próximo capítulo.)

Se apesar disso se considera a matemática pura como analítica, quais são as conseqüências para a Crítica da ra­zão pura? Para Kant, a tese do caráter sintético a priori da matemática é relevante em dois sentidos. Por um lado, ela deve, para a crítica da razão como teoria da metafísica, integrar uma ciência problemática no conjunto das ciên­cias reconhecidas. Para atenuar as dúvidas sobre a meta­física, Kant mostra que pelo menos o tipo de enunciado de uma metafísica científica, a saber, dos juízos sintéticos a priori, fica acima de qualquer dúvida. Esse tipo de enun­dado se encontra num âmbito que, desde a Antiguidade, ninguém tem questionado sua cientificidade, a saber, na matemática. Esta observação pode reduzir as dúvidas quanto à possibilidade de uma metafísica científica, mas não pode garantir a sua cientificidade. Ao contrário, uma

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/ metafísica científica poderia ser possível mesrr;io se não houvesse nenhum conhecimento sintético a priori em outros lugares. A resposta à pergunta crucial d� primeira Crítica, se é possível uma metafísica científica, indepen­de, portanto, do caráter sintético a príori da matemática.

Por outro lado, pode-se dizer que, para a crítica da ra­zão como teoria do conhecimento objetivo, a tese do ca­ráter sintético a príori da matemática é um motivo para procurar os pressupostos apriorísticos de todo conheci­mento. Se o conhecimento objetivo é sintético a priorí, seus pressupostos devem sê-lo também. Já que, no en­tanto, os pressupostos estão localizados em um nível mais profundo do que o próprio conhecimento, a afirmação de Kant sobre a existência de pressupostos sintéticos po­deria ser mantida mesmo sob a condição da não-valida­de da hipótese epistemológica a respeito do modo de co­nhecimento da matemática.

4.5 O conceito de transcendental

Kant chama de transcendental a investigação com a qual ele responde à tríplice pergunta sobre a possibilida­de dos juízos sintéticos a príorí. Este conceito central para a crítica da razão está exposto "parcialmente a mal-en­tendidos horríveis" (Vaihinger, I 467). Do mesmo modo que "transcendente" e "transcendência", o termo "trans­cendental" pertence ao verbo latino "transcendere", que literalmente significa "ultrapassar um limite". Se os ter­mos "transcendente" e "transcendência" sugerem um mundo além do nosso mundo da experiência, Kant refu­ta a idéia segundo a qual o " além", o mundo supra -sen­sível, seja algo objetivo para o qual possa haver um co-

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nhecimento válido no âmbito do teórico. É verdade que também na investigação transcendental de Kant se ultra­passa a experiência. Porém, o sentido desse ultrapassar se inverte. Pelo menos no início, Kant se volta para trás, não para a frente. No âmbito teórico, ele não busca um "transmundo" atrás da experiência, "muito longe" ou em "alturas etéreas", mundo esse do qual Nietzsche escar­nece como objeto da filosofia tradicional. Kant pretende desvendar as condições prévias da experiência. No lugar do conhecimento de um outro mundo, aparece o conhe­cimento originário de nosso mundo e de nosso saber ob­jetivo. Kant investiga a estrutura profunda, pré-empiri­camente válida de toda experiência, estrutura que ele -conforme ao experimento de razão da revolução coper­nicana - presume no sujeito. No "retrocesso" reflexivo, a crítica da razão procura os elementos apriorísticos que constituem a subjetividade teórica.

Com Kant, o conceito do transcendental adquiriu uma naturalidade que faz com que não se coloque mais a pergunta pela sua origem. Já no final do século XVIII se afirma que o conceito foi introduzido por Kant. Na ver­dade, já a filosofia da Idade Média conhece este conceito. Ela entende por transcendentais, ou por " transcendentia", aquelas determinações últimas do ente que ultrapassam os limites de sua divisão em espécies e gêneros e que va­lem sem restrição para tudo o que é. Tem caráter trans­cendental aquilo que já sempre pressupomos ao pensar entes como tais: ens, a entidade do ente; res; a qüididade ou objetividade; unum, a unidade e indivisibilidade inter­na; verum, a cognoscibilidade e referência ao espírito; bo­num, o caráter valioso e apetecível.

Antes de Kant existe não apenas a "filosofia trans­cendental dos antigos" (B 113), que ele próprio não co-

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.�·· ·····.

nheceu. Os metafísicos dos séculos XVII e XVIII, especial­mente Wolff e Baumgarten, falam também do " transcen­dental". Wolff emprega a expressão tanto em sua acepção antiga, primariamente ontológica, como também num sentido novo, mais gnosiológico, no contexto da " cosmo­logia transcendentalis" por ele criada. Em Baumgarten, com cuja filosofia Kant se ocupa continuadamente nas suas aulas, "transcendental" significa algo equivalente a "ne­cessário" ou " essencial"; no seu caso mal se pode falar de um transcendere, seja qual for o seu alcance (Hinske, 1968, 107) . Não é o mérito menor de Kant ter recuperado a esse conceito esvaziado - ainda que depois de um labo­rioso processo de clarificação - a dimensão da superação e também ter possibilitado, a partir de sua própria pers­pectiva, uma nova compreensão dele. Apesar de todas as vacilações, bem naturais em um conceito tão carregado de tradição, a noção já meio vaga de "transcendental" adquire em Kant novamente a força de um conceito filo­sófico. De acordo com a virada copernicana, os significa­dos ontológico e gnosiológico estão nele estreitamente entrelaçados.

Na introdução à Crítica, Kant chama de transcen­dental "todo conhecimento que em geral se ocupa não tanto com objetos, mas com o nosso modo de conhecer objetos, na medida em que este deve ser possível a prio­rí (B 25) (mas com os nossos conceitos a priorí de obje­tos: A 11 s.)" . O conhecimento transcendental é uma teoria da possibilidade do conhecimento a priorí ou, em uma palavra, uma "teoria do a priorí'' (Vaihinger, I 467) . Isso não significa, como esclarecerá Kant mais adiante, que qualquer conhecimento a priori é transcendental. Também a matemática e a ciência natural são, segundo Kant, conhecimentos a priori ou contêm tais elementos.

O QUE POSSO SABER? A CRíTICA DA RAZÃO PURA 61

Transcendental significa, na Crítica, somente aquele co­nhecimento "pelo qual conhecemos que e como certas representações (intuições ou conceitos) são aplicadas ou possíveis unicamente a príorí'' (B 80) .

Com o " que e como" Kant quer indicar a dupla tare­fa do conhecimento transcendental. Este demonstra, pri­meiro, que certas representações "não são de origem empírica" (B 81) e mostra, segundo, " a possibilidade pela qual podem, não obstante, se referir a priori a objetos da experiência" (ibid. ). Em virtude da primeira condição, to­dos os pressupostos empíricos do conhecimento huma­no, por importantes que possam ser, permanecem ex­cluídos do programa da filosofia transcendental; unica­mente o conhecimento não empírico da experiência é transcendental. Em virtude da segunda condição, as pro­posições da matemática e da ciência natural são objeto da teoria transcendental mas não fazem parte dela; cha­mam -se transcendentais aqueles pressupostos que não possuem caráter matemático nem físico, mas estão sem­pre "intervindo" quando praticamos matemática ou física.

Uma interpretação que ignore esta dupla tarefa da investigação transcendental não faria jus à idéia funda­mental da Crítica; um pensamento sistemático que não a reconheça não pode se chamar transcendental no senti­do de Kant. Em razão da dupla determinação, dividem­se tanto a estética transcendental (só na segunda edição) como a analítica transcendental dos conceitos em duas partes principais. No marco de uma abordagem ou de­dução " metafísica", são procuradas no sujeito representa­ções a priori; e na abordagem ou dedução "transcenden­tal", em sentido estrito, é mostrado como as representações a priori são imprescindíveis para qualquer conhecimento objetivo.

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Uma compreensão dos presst?póstos independentes da experiência de cada conhecimento de objetos não au­menta o conhecimento dos objetos. Por isso a crítica trans­cendental não entra em concorrência com as ciências par­ticulares, tampouco com as protociências e as teorias da ciência. As ciências particulares tentam conhecer seu ob­jeto específico; as protociências introduzem os conceitos básicos necessários; as teorias da ciência explicam a for­mação de conceitos e os métodos. À diferença delas, a crítica transcendental pergunta se é racional, ou melhor, se faz sentido pensar como possível o esforço das ciên­cias particulares em buscar um conhecimento específico de objetos e em expor as suas hipóteses a continuadas tentativas de refutação. A crítica não se ocupa das ques­tões habituais sobre o caráter verdadeiro ou falso de (sis­temas de) proposições, mas pergunta se e como pode ha­ver uma relação objetiva, isto é, verdadeira, com os obje­tos. Investiga como se pode pensar sem contradições e aporias a verdade do conhecimento objetivo, entendida como conhecimento obrigatório, geral e necessário.

A Crítica de Kant contém, em sentido transcendental, uma "lógica da verdade" (B 87) . Não procura - no sentido semântico - o significado de "verdade", nem - no senti­do pragmático - um critério para poder decidir quais (sis­temas de) proposições são verdadeiras. Num sentido mais radical, a Crítica aborda, na sua primeira parte, a possibili­dade fundamental da verdade e a questão acerca do que são, em geral, objetos objetivos que permitam enunciar uma proposição verdadeira. Com isso Kant recorre à defi­nição tradicional da verdade como adequação (correspon­dência) do pensamento ao objeto; mostra, porém, que, conforme à revolução copemicana, o objeto não é um em­si independente do sujeito, mas é constituído somente pe­las condições apriorísticas do sujeito cognoscente.

O QUE POSSO SABER? A CRíTICA DA RAZÃO PURA 63

A compreensão das condições pré-empíricas do co­nhecimento objetivo está ligada à compreensão de seus limites. Neste sentido, a utilidade da crítica da razão é "realmente apenas negativa com respeito à especula­ção". A crítica serve "não para a ampliação, mas apenas para a purificação da nossa razão" (B 25) .

Ainda que Kant tenha contribuído consideravel­mente para a investigação das ciências naturais no seu período pré-crítico (cf. cap. 2 .2), a Crítica não pretende mais ampliar o saber científico. Isto não significa, no en­tanto, como se costuma objetar, que ela seja "no fundo irrelevante". É certo que ela não promove diretamente o saber sobre objetos, senão o saber sobre o saber de ob­jetos. Mas, em primeiro lugar, a Crítica pode indireta­mente alcançar importância para as ciências particulares, no contexto de discussões de seus fundamentos. Ade­mais, a reflexão transcendental proporciona um conhe­cimento de segundo grau; a ciência se faz transparente a si mesma e se concebe como racional.

A idéia da ciência leva consigo a pretensão de co­nhecimento objetivo. Esta pretensão é rejeitada pelos cé­ticos, desde a Antiguidade até David Hume, como injus­tificada; eles afirmam que não há nenhum conhecimento objetivo, isto é, um conhecimento universal e necessário. Nesta situação, a crítica transcendental considera a pre­tensão de objetividade como algo condicionado, ou seja, como uma conseqüência para a qual ela busca a condi­ção ou legitimação. Caso a busca tenha sucesso, esta pre­tensão de conhecimento objetivo pode considerar-se como justificada em um duplo sentido. O fundamento de legi­timação do conhecimento (segundo Kant, as formas pu­ras da intuição, os conceitos e princípios puros) mostra, primeiro, que é possível um conhecimento objetivo e, se­gundo, no que ele consiste. Não obstante certas obscuri-

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dades, ou até talvez contradições, Kant não parte, como se afirma por exemplo no neokantismo, da idéia de que a matemática e a ciência natural representam um fato in­dubitável. Seria uma pressuposição dogmática, incom­patível com a idéia da crítica da razão. Kant parte, em vez disso, da idéia de que a ciência ou o conhecimento obje­tivo consiste em um saber universal e necessário. Logo, ele pergunta, de acordo com os céticos, se algo assim pode ser possível. Sua resposta tem dois aspectos: primeiro, é possível um conhecimento universal e necessário com base em intuições puras e conceitos e princípios puros; mas, segundo, somente como matemática e física (ciência natural universal) . Em poucas palavras: a cientificidade da matemática e da física não é premissa, mas conclusão; não é base da prova, mas seu objetivo.

Neste empreendimento, " objetividade" tem dois sen­tidos diferentes, relacionados entre si. Por um lado, " ob­jetividade" (no sentido veritativo) designa a propriedade de conhecer o mundo real e, portanto, de ser válido não só para este ou aquele sujeito, mas universal e necessa­riamente. Por outro lado, " objetividade" (no sentido refe­rencial) significa a relação do conhecimento com objetos reais, ou seja, com fatos, e não com ficções ou meros pro­dutos da imaginação. Assim, o primeiro significado pres­supõe o segundo. Só porque são sabidos os fatos dados (objetos) no conhecimento objetivo, este pode formular enunciados objetivos. Como este significado é o mais fun­damental, Kant se interessa por ele em primeiro lugar.

5 . A ESTÉTICA TRANSCENDENTAL

A estética transcendental da primeira Crítica não é uma teoria do belo ou do gosto (cf. cap. 13.2), senão uma

O QUE POSSO SABER? A CRíTICA DA RAZÃO PURA 65

ciência dos princípios da sensibilidade ou da intuição (em grego: aisthesis) a priori. Como parte da crítica transcen­dental, ela não investiga a intuição em geral, mas unica­mente suas formas puras, espaço e tempo, como fontes de conhecimento. Por isso, o fato de que certos problemas de uma teoria geral da intuição não são discutidos não pode ser imputado a Kant, mas a uma falsa expectativa.

Na sua configuração definitiva, a Estética transcen­dental tem duas partes claramente diferenciadas. Na ex­posição metafísica, Kant mostra que espaço e tempo são formas puras da intuição, na exposição transcendental, mostra que essas formas possibilitam o conhecimento sin­tético a priori. Assim, a estética transcendental oferece, por um lado, uma nova solução na disputa da filosofia moderna sobre a " essência" do espaço e do tempo e con­tém, por outro lado, a primeira parte da fundamentação kantiana da matemática e da ciência natural geral.

A possibilidade de um conhecimento a priori me­diante conceitos gerais do entendimento é algo que sem­pre foi afirmado, antes e depois de Kant. Mas a tese de que a intuição e, portanto, a sensibilidade, implica tam­bém certos elementos não empíricos e que estes são im­prescindíveis para a matemática e a física, deve ser atribuí­da unicamente a Kant. Por isso, a Estética transcenden­tal, não obstante todos os problemas que ela provoca (cf. Vaihinger, II), constitui uma das partes mais originais da primeira crítica da razão.

5.1 Os dois troncos de conhecimento: sensibilidade e entendimento

Seguindo a Baumgarten, Kant distingue entre a fa­culdade cognitiva inferior e a superior, isto é, entre a sen-

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sibilidade e o entendimento (às vezes também: a razão) no sentido amplo do termo. Paralelamente às três partes da lógica tradicional, a faculdade superior do conheci­mento articula-se em entendimento no sentido estrito ("conceitos"), faculdade de julgar ("juízos") e razão no sentido estrito ("conclusões") (cf. B 169) . A Crítica da ra­zão pura adota esta divisão. Começa com (1) a teoria da sensibilidade na Estética transcendental, seguem - den­tro da Analítica transcendental - (2) a Analítica dos con­ceitos e (3) a Analítica dos princípios; a Crítica finaliza com (4) a teoria das conclusões (da razão) na Dialética transcendental e (5) com uma Doutrina transcendental do método.

A Estética transcendental afirma que o conhecimento - considerado do ponto de vista lógico, e não psicológi­co - se deve à ação conjunta de duas fontes de conheci­mento: a sensibilidade e o entendimento. Ambas as fa­culdades têm o mesmo peso e dependem uma da outra.

(1) A relação imediata do conhecimento com os ob­jetos e o ponto de referência de todo pensamento é a in­tuição, a qual percebe um particular imediatamente. A intuição supõe um objeto dado. A única possibilidade me­diante a qual nos podem ser dados objetos reside na sen­sibilidade receptiva, ou seja, na capacidade da mente de ser afetada por objetos; é por isso que podemos ver, ou­vir, cheirar, saborear e tocar. (Kant se pronuncia mais de­talhadamente sobre a sensibilidade e sobre os cinco sen­tidos no primeiro livro da Anthropologíe in pragmatischer Hinsicht.) Somente a sensibilidade receptiva possibilita ao homem as intuições. Uma intuição ativa, espontânea e intelectual, ou seja, uma visão criadora, é algo impos­sível para o homem. A ação do objeto sobre a mente chama -se sensação; ela constitui a matéria da sensibili-

O QUE POSSO SABER? A CRÍTICA DA RAZÃO PURA 67

dade. Devido à falta do intelecto formador, o objeto da sensibilidade é o indeterminado, contudo determinável; ele representa o material do conhecimento. A sensibili­dade pressupõe como fundamento necessário a finitude de todo conhecimento humano. O homem não pode produzir os objetos do conhecimento por si mesmo, nem colocá-los ante si, como a razão infinita de Deus o pode. Ele precisa de objetos previamente dados. A descoberta que nos leva da posição pré-crítica de Kant à sua Crítica consiste na idéia de que os nossos conceitos puros do entendimento não podem prescindir da sensibilidade, isto é, que não é possível conhecer nada sem os sentidos.

(2) A mera recepção de algo dado ainda não produz nenhum conhecimento. Em um conhecimento as sensa­ções não são simplesmente reproduzidas, mas elaboradas. Para isso precisa-se de conceitos, que se devem ao enten­dimento em sentido estrito e com cuja ajuda as sensa­ções são "pensadas", isto é, reunidas e ordenadas segun­do regras.

Kant não fundamentou a suposição de que "há dois troncos do conhecimento humano" (B 29). Ele apenas supõe que sensibilidade e entendimento "talvez brotem de uma raiz comum, mas desconhecida a nós" (ibid.). A ausência de uma derivação mais profunda corresponde à intenção kantiana de uma crítica da razão que não pre­tende fornecer uma "fundamentação última" do conhe­cimento, como Descartes, o Idealismo Alemão ou Hus­serl. Mas mostra também que uma crítica da razão não constitui a última palavra da filosofia. No entanto, a tese inicial de Kant encontra uma justificação indireta pela solução bem-sucedida do problema fundamental, de es­capar das aporias do empirismo e do racionalismo me­diante uma posição nova, mediadora. Em contrapartida,

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a definição da sensação como "efeito" do objeto gera di­ficuldades internas à crítica, as quais, já segundo a opi­nião de F. H Jacobi, Fichte e Schelling, não podem ser superadas sem ir além da Crítica.

Com o reconhecimento da sensibilidade, Kant dá ra­zão ao empirismo em sua concepção fundamental de que o conhecimento humano necessita de algo previamente dado, e rejeita um racionalismo puro. Com a constatação da necessidade do entendimento, Kant dá razão à idéia do racionalismo, segundo a qual não há nenhum conhe­cimento sem o pensamento, e critica um empirismo puro; em termos modernos: Kant se manifesta contra a sepa­ração rigorosa entre linguagem de observação e lingua­gem de teoria, já que todo conhecimento, até o saber co­tidiano, contém elementos teóricos (conceituais) : "Sem sensibilidade nenhum objeto nos seria dado, e sem en­tendimento nenhum seria pensado. Pensamentos sem conteúdo são vazios, intuições sem conceitos são cegas" (B 75; cf. B 33).

Com a distinção de duas fontes de conhecimento interdependentes, Kant nega a idéia de Leibniz de uma diferença meramente gradual entre sensibilidade e en­tendimento. Ao contrário de Leibniz, ele não considera a intuição como um pensar imperfeito que carece de clari­dade. Na realidade, diz Kant, a intuição tem outra origem; ela provém da sensibilidade, isto é, de uma fonte inde­pendente do entendimento e imprescindível para todo conhecimento. O desconhecimento desse fato forma, se­gundo Kant, a base da metafísica leibniziana, e o escla­recimento deste desconhecimento a sua refutação.

(3) Na segunda parte da Analítica transcendental, Kant investiga, como outra faculdade cognitiva, a facul­dade do juízo, isto é, a capacidade de subsumir (conceitos do entendimento) sob regras.

O QUE POSSO SABER? A CRÍTICA DA RAZÃO PURA 69

Em todas as três faculdades, indispensáveis para o conhecimento humano, Kant encontra um elemento não­empírico: na sensibilidade, as formas puras da intuição, o espaço e o tempo; no entendimento, os conceitos puros do entendimento, as categorias; no Juízo, os esquemas transcendentais e os princípios do entendimento puro.

Sinopse das três faculdades do conhecimento

Sensibilidade Entendimento

O objeto é dado por meio de O objeto, uma multiplicidade uma afecção do ânimo. indeterminada da intuição, é

pensado, ou seja, determinado.

A capacidade do ânimo de ser afetado se chama sensibilidade (receptividade) . O efeito exer­cido pelo objeto, a matéria da sensibilidade, se chama sen­sação.

A relação com o objeto me­diante a sensação chama-se empírica (a posteriori) .

O objeto indeterminado (con­ceitualmente) de uma intuição empírica é o fenômeno.

A capacidade de determinar o objeto, ou seja, de produzir representações por si mesmo (espontaneamente), se chama entendimento, a faculdade dos conceitos (regras) .

A relação com o objeto me­diante as categorias do en­tendimento se chama pura (a priori) .

O objeto [Gegenstand] como fe­nômeno determinado pelo en­tendimento se chama objeto [Objekt] .

As formas puras da intuição são Os conceitos puros do enten-o espaço e o tempo. dimento são as categorias.

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Faculdade do juízo

O juízo é a faculdade de subsumir sob re­gras, ou seja, de discernir se algo cai ou não sob uma regra dada. As condições da possibilidade de aplicar conceitos puros do entendimento a fenômenos são determinações temporais trans­cendentais; são tanto conceituais como sensí­veis: são os esquemas transcendentais, um produto transcendental da faculdade imaginativa.

A cada categoria corresponde uma modifi­cação da intuição do tempo; por exemplo, o es­quema da substância é a permanência no tempo; o esquema da necessidade é a existência de um objeto em todo tempo.

Os juízos sintéticos, que "derivam" dos conceitos puros do entendimento, conforme às condições dos esquemas a priorí, e servem de base a todos os outros conhecimentos a priori, são os princípios do entendimento puro: para os juízos analíticos, o princípio da contradição; para os juízos sintéticos, os axiomas da intuição, as antecipações da percepção, as analogias da ex­periência (p. ex., o princípio da causalidade) e os postulados do pensamento empírico.

5.2 A exposição metafísica: o espaço e o tempo como formas a priori da intuição

A exposição metafísica do espaço e do tempo se su­cede a um duplo processo de abstração (B 36), que isola, primeiro, no complexo total do conhecimento os com­ponentes da intuição e do entendimento, e elimina de-

O QUE POSSO SABER? A CRÍTICA DA RAZÃO PURA 71

pois na intuição tudo o que pertence à sensação, isto é, cores, sons, impressões de calor etc. Restam assim as for­mas da intuição independentes de toda experiência, ou seja, as representações originárias de espaço e tempo. Essa exposição é metafísica porque revela as representa­ções originárias do espaço e do tempo, a espacialidade e a temporalidade, como intuições dadas a priori (cf. B 38) . Ela mostra, primeiro, que se trata de representações a priori e, segundo, que estas não têm caráter de conceito mas de intuição.

Sob o espaço não nos representamos apenas o es­paço intuitivo dos objetos da experiência e da ciência na­tural, mas também o espaço da ação e o espaço vivencial ou afetivo da psicologia, da arte e da literatura. De modo semelhante, distinguimos o tempo intuitivo do tempo do agir e do vivencial. Entretanto, na Estética transcendental trata-se exclusivamente do espaço intuitivo: relações de coextensão e justaposição; e do tempo intuitivo: relações de sucessão e simultaneidade. Só delas Kant afirma que possuem um ingrediente independente da experiência.

Espaço e tempo pertencem a duas esferas distintas. O espaço é a forma intuitiva do sentido externo, que nos fornece, através dos cinco sentidos, as impressões acústi­cas, óticas, gustativas . . . , enquanto o tempo pertence ao sentido interno com suas representações, inclinações e seus sentimentos. No entanto, o sentido interno tem a primazia, já que toda representação dos sentidos exter­nos é sabida pelo sujeito, sendo assim também uma repre­sentação do sentido interno. Conseqüentemente, o tem­po é a forma de toda intuição, imediatamente da interna e mediatamente também da externa. Contudo, a priori­dade do tempo não é tão ampla que faça do espaço um subgênero ou possa ser substituído por ele. Para Heidegger, a primazia do tempo é motivo de ver na Crítica da razão

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pura uma predecessora de sua própria ontologia funda­mental, apresentada sob o título Sein und Zeit [Ser e tem­po] . Com efeito, o tempo desempenha na Crítica um pa­pel muito mais importante que o espaço; como, por exemplo, na dedução transcendental das categorias e so­bretudo no capítulo do esquematismo, que Heidegger analisa minuciosamente (cf. cap. 7.1) . A prioridade do tempo explica talvez também por que na dissertação inau­gural de 1770 o tempo é abordado antes do espaço.

Kant justifica a tese de que o espaço e o tempo são formas puras da intuição com quatro argumentos. Com os dois primeiros ele mostra, contra o empirismo, que es­paço e tempo são representações apriorísticas; e com os outros dois, contra o racionalismo, que eles não possuem caráter conceitual, mas intuitivo. (No caso do tempo, um outro argumento, intermediário, já pertence à exposição transcendental; cf. B 48.)

Espaço e tempo - esse o primeiro argumento, de ca­ráter negativo - não podem derivar da experiência, já que subjazem a qualquer intuição externa ou interna. Para que eu possa perceber uma cadeira "fora de mim" e "ao lado da mesa", já pressuponho - além das representa­ções de mim mesmo, da mesa e da cadeira - a represen­tação de um "fora", isto é, de um espaço no qual a cadei­ra, a mesa e o eu empírico ocupam determinada posição entre si, sem que esse espaço seja uma propriedade da cadeira, da mesa ou do eu empírico. Entre as proprieda­des da percepção externa encontramos cores, formas e sons, mas não o espaço. Analogamente, os processos psí­quicos possuem determinadas qualidades que percebe­mos em sucessão temporal, sem que alguma destas sen­sações possua a qualidade do tempo. A este primeiro ar­gumento negativo segue outro positivo: espaço e tempo são representações necessárias. Pois podemos imaginar

O QUE POSSO SABER? A CRITICA DA RAZÃO PURA 73

um espaço e um tempo sem objetos ou sem fenômenos, mas não que o espaço e o tempo não existam. Mesmo na esfera da sensibilidade há algo que já existe "previa­mente", e não só a partir da percepção empírica. Espaço e tempo se devem à estrutura apriorística do sujeito cog­noscente.

Bennett objetou, contra o caráter apriorístico do tem­po, que é também possível supor o contrário, sem ne­nhuma contradição, a saber, um mundo não temporal, já que a proposição "todos os dados sensíveis são tempo­rais" não é analítica. Conseqüentemente, Bennett (1966, 49) não considera a temporalidade como necessária, mas apenas como não dispensável ao pensamento, embora contingente. Segundo Kant, no entanto, é necessário aqui­lo que não pode ser de outro modo (B 3) . Isso acontece com o espaço e o tempo como formas puras da intuição de todo o conhecimento humano. Pois a intuição sensí­vel capta objetos concretos que no caso da percepção ex­terna só podem ser dados como ao lado, atrás ou acima de outros objetos; e, no caso da percepção interna, só an­tes de, junto com ou depois de outros estados internos.

No segundo par de argumentos, Kant conclui, pri­meiro, da unicidade e unidade do espaço e do tempo, que estes não são conceitos (discursivos), mas intuições. Pois os conceitos se referem a exemplares independen­tes; o conceito de mesa, por exemplo, se refere a todos os exemplares de mesas, enquanto existe só o todo de um único espaço e de um tempo unitário, que contêm em si todos os espaços e tempos parciais como elementos não independentes. O segundo argumento prova o cc.ráter intuitivo mostrando que a representação de espaço é ili­mitada, enquanto um conceito pode ter uma quantidade indefinida de representações não em si, mas só sob si.

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5.3 A fundamentação transcendental da geometria

À demonstração "metafísica" de que espaço e tem­po são formas puras da intuição Kant junta uma exposi­ção transcendental bastante sucinta. Ela deve mostrar que espaço e tempo não são meras representações ("en­tes do pensamento"), mas possuem uma função consti­tutiva de objetos; pois são espaço e tempo mediante os quais se tornam possíveis os objetos de um conhecimen­to sintético a priori. Por serem espaço e tempo formas da intuição que independem da experiência, pode haver uma ciência independente da experiência, a saber, a ma­temática. A forma pura da intuição do espaço torna pos­sível a geometria, o tempo torna possível a parte a príori da teoria geral do movimento (mecânica) e, segundo os Prolegomena (§ 10; cf. KrV, B 182), devido à numeração, também a aritmética. Dessa forma, a Estética transcen­dental contém uma parte da fundamentação filosófica da matemática e da física. Mas, abstraindo de dificuldades imanentes à exposição, nem para a matemática Kant de­senvolve uma teoria completa. Pois, por um lado, Kant conclui sua fundamentação da validade objetiva da ma­temática somente com os axiomas da intuição (cf. cap. 7.3) . Por outro, uma filosofia da matemática exige muito mais que sua fundamentação transcendental.

A exposição transcendental do espaço conecta-se com a idéia da geometria enquanto ciência que "deter­mina sinteticamente e mesmo assim a priori as proprie­dades do espaço" (B 40) . A pergunta transcendental é de que tipo deve ser a representação do espaço para que seja possível tal conhecimento dele. A resposta de Kant tem três graus: primeiro, o espaço não pode ser um conceito, mas tem que ser uma simples intuição, já que não se po-

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dem obter proposições sintéticas a partir de meros con­ceitos. Segundo, o espaço também não pode ser uma in­tuição empírica, caso contrário a geometria não teria ca­ráter apriorístico. No terceiro argumento Kant passa, em detrimento da clareza argumentativa, da geometria pura (matemática) à geometria aplicada (física) (como em Prol., 1� parte) : uma intuição externa que precede os objetos e apesar disso os determina a priori só é possível se ela de­riva do sujeito e indica a forma de uma intuição externa.

Dos três argumentos segue-se que só o resultado da exposição metafísica do espaço, como uma forma subje­tiva, mas pura da intuição, torna compreensível a geome­tria como conhecimento sintético a priori; só porque o espaço é uma intuição a priori, torna-se possível a geome­tria pura; e porque o espaço é, além disso, a forma que devem assumir todos os objetos empíricos enquanto in­tuições nossas, torna-se possível a geometria aplicada.

No decorrer da fundamentação transcendental, Kant cita como exemplo de uma proposição necessária da geometria "o espaço só tem três dimensões" (B 41) . No contexto da intuição natural e da geometria euclidiana, a única que se conhecia na época de Kant, esta proposição é correta. Mais tarde, porém, descobriram-se geometrias não-euclidianas, das quais a de Riemann é aplicada à teoria geral da relatividade. Assim, hoje em dia a geome­tria euclidiana não é universalmente válida nem na ma­temática nem na física, e a estética transcendental de Kant, que afirma essa validade universal, parece irreme­diavelmente ultrapassada. Será que têm razão os críticos que vêem na teoria kantiana da geometria só mais um exemplo de como qualquer saber a priori, que os filóso­fos proclamam desde Platão, se desfaz com o progresso das ciências?

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Para escapar desta conseqüência fatal, Bri:icker (22) propôs distinguir dois tipos de espaço: (1) o espaço tridi­mensional euclidiano, dado intuitivamente, com o qual até toda física deve começar e que ele chama de espaço trans­cendental; (2) o espaço empírico, que os físicos adotam no decorrer de suas experiências e ao qual convertem os re­sultados alcançados no espaço transcendental. Com essa distinção Bri:icker ameniza a tese kantiana da unicidade da geometria euclidiana, conferindo a ela uma posição trans­cendental de exceção. Algo parecido faz Strawson (277 ss.) com a "geometria fenomenal" que ele desenvolve para de­fender Kant das "concepções positivistas".

A primazia transcendental da geometria euclidiana não só faz jus à representação natural do espaço. Explica também o fato de que, até hoje, se considera a geometria euclidiana tridimensional como matematicamente pos­sível e, no âmbito intermédio entre a física atômica e a as­trofísica, como empiricamente válida. Apesar disso, sur­gem graves dúvidas quanto a uma posição transcendental de exceção. Kant não fundamenta a tridimensionalidade do espaço nem na exposição metafísica nem na exposição transcendental, e no seu primeiro escrito Von der wahren Schiitzung der lebendígen Kriifte [Sobre a verdadeira ava­liação das forças vivas] (§§ 9-11) até chegou a conside­rar possíveis os espaços não-euclidianos. O caráter aprio­rístico da intuição, a que se refere a exposição transcen­dental, é abordado na exposição metafísica unicamente para a forma básica de toda intuição externa, isto é, para o mero "separado" ou "um-ao-lado-do-outro" sem ne­nhuma propriedade estrutural. Terminologicamente ela deve ser designada como " espacialidade" ou como " espa­ço em geral". A mera espacialidade ainda não é o objeto da geometria. Este objeto só surge mediante a objetivação

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da espacialidade; é mediante imaginação e posição que o matemático representa a simples forma da intuição como um objeto próprio, dotado de certas estruturas, que ele investiga no contexto da geometria pura sem recorrer à experiência. Entre o espaço como condição transcenden­tal e o espaço como objeto da geometria há uma diferen­ça insuperável . Por isso, na exposição transcendental as três dimensões do espaço não constituem, com razão, nenhum argumento em favor da possibilidade da geome­tria. São apenas um exemplo para uma proposição su­postamente apodítica; são o predicado de um enunciado geométrico, não de um enunciado transcendental. Não são os enunciados matemáticos e físicos que têm um sentido transcendental, mas somente - num grau infe­rior - suas condições que, conforme a revolução coper­nicana, repousam na " constituição" não-empírica do su­jeito cognoscente. Em virtude de sua problemática mais geral, nem a exposição metafísica nem a exposição trans­cendental do espaço estão ligadas a uma determinada geo­metria. A Crítica permanece neutra ante a alternativa pos­terior de uma " geometria euclidiana ou não-euclidiana".

Segundo a objeção mais importante contra Kant, a geometria não é uma ciência sintética, mas analítica. Pode-se opor a esta objeção, como já mencionado (cf. cap. 4.4), que toda geometria é uma ciência do espaço e, portanto, pressupõe a espacialidade. A espacialidade é, no entanto, como mostra a exposição metafísica, a forma pura da intuição externa. Não nasce da experiência nem de meros conceitos (definições) e tem, por isso, um cará­ter sintético a príorí. Em conseqüência, pode-se dizer que também a geometria, na medida em que é vista desde seu pressuposto último, a espacialidade, constitui um co­nhecimento sintético a príori, mesmo que se construa a

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geometria analiticamente (axiomaticamente); algo que, en­tretanto, é controverso entre os matemáticos (cf. cap. 4.4) .

Como a geometria investiga um objeto, o espaço, que tem como pressuposto a forma pura da intuição do sen­tido externo, a espacialidade, ela pode ser empiricamente substanciosa e fornecer o fundamento de teorias cientí­ficas sobre objetos externos. Mas dado que a estética transcendental fundamenta unicamente a espacialidade e não determinadas representações espaciais, ela não pode nem privilegiar a geometria euclidiana em relação às geometrias não-euclidianas nem declarar uma deter­minada geometria matemática o fundamento de teorias físicas. Portanto, temos que distinguir três graus: (1) a es­pacialidade transcendental, (2) o espaço matemático e (3) o espaço físico. Cada um dos graus subseqüentes de­pende do anterior, sem dele poder ser derivado. Os enun­ciados de geometrias matemáticas não podem ser fun­damentados através da filosofia transcendental; o marco geométrico de teorias físicas não depende só de conhe­cimentos matemáticos, mas também de conhecimentos empíricos; não compete de modo algum à crítica trans­cendental da razão julgar a alternativa "concepção clássi­ca (newtoniana) ou concepção relativista (einsteiniana) do espaço-tempo" .

Essa exposição crítica aqui esboçada da Estética trans­cendental de Kant tem uma quádrupla conseqüência. Em primeiro lugar, não se segue do caráter sintético a prio­ri da intuição geral do espaço que os axiomas específicos do espaço de uma geometria sejam sintéticos a priori. É verdade que se poderiam considerar as proposições da geometria matemática como sintéticas a priori no senti­do fraco, isto é, como não ligadas a um pressuposto não analítico, a saber, a espacialidade transcendental. Entre-

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tanto, esse pressuposto não tem o sentido de uma pre­missa dentro de determinada argumentação geométrica, mas é o fundamento transcendental de qualquer geome­tria. Portanto, não constitui um argumento suficiente para chamar um espaço geométrico e seus axiomas de sinté­ticos a priori num sentido estritamente epistemológico. Segundo, a geometria (matemática) pura possui, ante Kant, um caráter cognoscitivo só num sentido muito limitado. Ela não estabelece a estrutura da realidade empírica, mas oferece várias geometrias matematicamente possíveis, entre as quais a física escolhe independentemente, con­forme à experiência. Terceiro, a Estética transcendental não está ligada, nem na exposição metafísica, nem na expo­sição transcendental, à situação histórica da matemática e da física. Quarto, a fundamentação transcendental da geometria e da física, a partir das formas puras da intui­ção, não tem um voto direto nas controvérsias científicas de fundamentação. A decisão sobre a matemática axio­mática ou a matemática construtivista, assim como a de­cisão a favor ou contra a física relativista, não pode ser tomada por uma crítica da razão. Uma teoria transcen­dental é invariável relativamente às muitas mudanças na matemática ou na física.

5.4 Realidade empírica e idealidade transcendental de espaço e tempo

O caráter do espaço e do tempo é bastante controver­so na metafísica moderna (quanto ao espaço, cf. Heim­soeth, I 93-124): são eles algo objetivo e real ou algo me­ramente subjetivo e ideal (Berkeley) ? E, se são reais, eles representam substâncias (Descartes), atributos da subs-

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tância divina (Espinosa), ou uma relação das substâncias finitas (Leibniz) ? As diversas teorias levam a a porias que Kant tenta superar com sua nova solução: espaço e tem­po são algo totalmente diferente de todas as outras entida­des conhecidas; são as formas a priori da nossa intuição externa e da nossa sensação interna (humana) .

Dado que o conhecimento empírico não é possível sem sensações externas e internas, e que estas, no entan­to, não são possíveis sem espaço e tempo, as formas pu­ras da intuição possuem "realidade empírica" (B 44 com B 52) . Em contraposição ao "idealismo dogmático" do fi­lósofo e teólogo britânico G. Berkeley (1684-1753) que, segundo Kant, considera o espaço com todos os objetos como mera imaginação (B 274), para Kant, espaço e tem­po são válidos objetivamente: sem eles não pode haver objetos da intuição externa e interna e, conseqüentemen­te, nenhum conhecimento objetivo. Disso não se segue, entretanto, que espaço e tempo existam em si, ou seja, em forma de substâncias, propriedades ou relações. São, bem pelo contrário, as condições sob as quais unicamente po­dem aparecer os objetos para nós; elas possuem, diz Kant, "idealidade transcendental" (B 44 com B 52). Com essa teoria Kant refuta também a idéia de Newton do espaço como Sensorium Dei, infinito e uniforme, mostrando assim que reconhece a física dele como modelo de uma ciência exata sem adotar cegamente seus pressupostos filosóficos.