itacoatiara vol. 3 n. 2

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ARTIGOS | RESENHAS | LITERATURA | ENTREVISTA | ENSAIO FOTOGRÁFICO | JOVEM COLABORADOR Uma Revista Online de Cultura ITACOATIARA VOL.3 - N.2 | DEZEMBRO - 2012 ISSN 2237- 9282 UM PROJETO DO NÚCLEO ARIANO SUASSUNA DE ESTUDOS BRASILEIROS - UFPE

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ARTIGOS | RESENHAS | LITERATURA | ENTREVISTA | ENSAIO FOTOGRÁFICO | JOVEM COLABORADOR

Uma Revista Online de CulturaITACOATIARA

VOL.3 - N.2 | DEZEMBRO - 2012ISSN 2237- 9282

UM PROJETO DO NÚCLEO ARIANO SUASSUNA DE ESTUDOS BRASILEIROS - UFPE

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Maria Aparecida Lopes Nogueira | Profª do Departamento de Antropologia

e Museologia e da Pós-Graduação em Antropologia da UFPE/ Coordenadora

do Núcleo Ariano Suassuna de Estudos Brasileiros.

Normando Jorge de Albuquerque Melo | Coordenador de Gestão de Políticas

e Projetos Sociais do Núcleo Ariano Suassuna de Estudos Brasileiros

Maria das Graças Vanderlei da Costa | Profª do Instituto Federal

de Pernambuco; NASEB/UFPE

Fabiana de Oliveira Lima | NASEB/UFPE

Thiago de Oliveira Sales | NASEB/UFPE

Arnaldo Saraiva | Universidade do Porto

Carlos Newton Junior | UFPE

Edgard de Assis de Carvalho | PUC/SP

Fátima Branquinho | PPG-MA/UERJ

Heloísa Arcoverde de Morais | Prefeitura da Cidade do Recife – Gerência

de Literatura

Idelette Muzart Fonseca dos Santos | Universidade de Nanterre/Paris/França

Jesana Batista | UNIT/ SE

Lourival Holanda Barros | Depto. de Letras/UFPE

Luis Assunção |Dept. de Antropologia/UFRN

Marcelo Burgos Pimentel dos Santos | PUC/SP

Roberto Mauto Cortez Mota | PPGA/UFPE

Daniele Pereira da Silva

Danielle N Vilela Alves

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sumário CARTA DO EDITOR...................3

JOVEM COLABORADOR Felicidade Clandestina: uma análise do conto..................5 Sheysiane Taynan G. F. da Silva

Carne Viva: como processos de significação humanos alteram padrões de relacionamentos entre indivíduos, sociedade e meio ambiente? ...................14 Bruno Mesquita Soares de Araújo

ARTIGOS: Trajetos Míticos do Corpo na História da Arte..................32 Eduardo Romero Lopes Barbosa Reflexões Sobre os Problemas Ambientais Vivenciados na Atualidade e o Papel da Educação.....47 Fátima Kzam Damaceno

Sobre a Qualidade da Democracia: uma revisão de literatura.............88 Fernando Augusto Semente Lima

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ENTREVISTA: Nós somos praga: diálogos com Dedé..................114 Thiago de Oliveira Sales

ENSAIO FOTOGRÁFICO:

A Graça Que É Sobreviver.............127 Fotografia de Lídia Marques Texto de Thiago de Oliveira Sales

LITERATURA:

Poesias de Frederico Spencer..........131 A máquina, o homem e seu tempo Códigos de barra Oportunidades

Crônica de Inaê Elias Magno...........134

Melhor não ver

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carta do editor

Com muita alegria vem ao nosso dispor o terceiro volume, segundo número da Revista Itacoatiara. Logo na sua abertura, a seção Jovens Colaboradores traz frescor para o trajeto científico em dois textos de temas distantes entre si e que despertam grande interesse para refletirmos e conhecermos mais sobre alguns conflitos cotidianos. O primeiro, elaborado por Sheysiane Taynan da Silva, intitula-se “Felicidade Clandestina” e analisa a narrativa do conto homônimo de Clarice Lispector. Nesta obra, a escritora apresenta o prazer da leitura como sinônimo de felicidade. Tal prazer temos ao ler a análise desenvolvida em um texto leve, claro e curioso, debruçando-se sobre as personagens e suas posturas diante da leitura/felicidade. Na sequência, o jovem colaborador, Bruno Mesquita, apresenta-nos o texto “Carne Viva”, cujo tema é desenvolvido a partir da reflexão e análise crítica sobre a produção e o consumo da carne - principalmente de origem bovina – e sua relação com as ideias de sustentabilidade – destacando os aspectos socioeconômicos inerentes a mesma. O texto incita a ampliação do debate: origem do consumo da carne, desenvolvimento dos seus métodos de produção e conceitos de uma sociedade sustentável. Assim, desvela um universo pouco visitado, embora de grande importância para repensarmos nossos anseios de bem-estar individual e coletivo.

Nossa segunda seção é composta por três artigos, partes de um conjunto multidisciplinar, muito embora, comunguem a ideia de pensarmos sob nova ótica temas que parecem resolutos. O primeiro artigo, “Trajetos Míticos do Corpo na História da Arte”, escrito por Eduardo Romero, conta-nos uma parte das várias representações do corpo, em algumas culturas, ao longo do tempo. A partir da leitura desse texto, podemos reconhecer dicotomias religiosas e culturais que reforçaram ou dirimiram as diferenças entre corpo e espírito. A trajetória mostra como os sentidos atribuídos ao corpo alternam-se, contrapõem-se e se completam desde a Antiguidade Grega até a Body Art.

Em sequência, Fátima Kzam Damasceno traz-nos “Reflexões sobre os Problemas Ambientais vivenciados na Atualidade e o Papel da Educação” e nos possibilita pensar como a contenda sobre a problemática ambiental pode ser beneficiada com princípios educativos baseados numa compreensão dialógica da relação sujeito-objeto. Nesse sentido,

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apresenta a referida relação como propulsora/facilitadora do entendimento da natureza como parte do humano, o que pode vir a amenizar muitos dos problemas ambientais. O último artigo desse conjunto, “Sobre a Qualidade da Democracia: uma revisão de literatura”, elaborado por Fernando Semente Lima, apresenta uma discussão densa sobre a performance democrática em diferentes modelos de governo. Dada a heterogeneidade cultural de países democráticos, como poderemos mensurar qualitativamente a democracia?

A seção subsequente deste volume traz uma entrevista realizada por Thiago Sales, “Nós somos praga: diálogos com Dedé”, cujo desenvolvimento aborda, de maneira inusitada, uma série de temas – entre os quais, uma abordagem etológica das sociedades - que se entrecruzam com a experiência e sabedoria de um dedetizador profissional. Logo após nossa entrevista, temos o ensaio fotográfico de Lídia Marques, “A Graça que é Sobreviver”, onde uma breve coleção de fotografias apresenta a crueza do real na sua poética irrelevância. Finalizando este volume, a seção de Literatura oferece três poesias de Frederico Spencer: “A máquina, o homem e seu tempo”, “Códigos de barra” e “Oportunidades”. Trata-se de poesias urbanas, delicadas e intensas, como lamentos reflexivos de um olhar hesitante entre o urbano e o cotidiano. Além da crônica “Melhor não ver”, de Inaê Elias Magno. Sob dados precisos, a autora constrói um quadro impressionista onde a concretude das informações dispostas se coaduna com uma narrativa de cores indefinidas.

Podemos então entender que este exemplar da Itacoatiara convida-nos a pensar eventos corriqueiros sob um prisma diverso. É momento de experimentar o novo, o que se conjuga com a finalização deste ano. Novas maneiras de refletir necessitam de abertura e desprendimento do modo já cansado de se pensar as coisas. Assim, desejamos que o leitor aprecie abrir novas “janelas”.

Recife, 11 de dezembro de 2012. Fabiana de Oliveira Lima

Editora

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JOVEM COLABORADOR:

Felicidade Clandestina: uma análise do conto

Sheysiane Taynan G. F. da Silva

Carne Viva: como processos de significação humanos alteram padrões de relacionamentos entre indivíduos, sociedade e meio ambiente?

Bruno Mesquita Soares de Araújo

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JOVEM COLABORADOR | FELICIDADE CLANDESTINA: UMA ANÁLISE DO CONTO| SHEYSIANE TAYNAN G. F. DA SILVA

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Felicidade Clandestina: uma Análise do Conto

Sheysiane Taynan G. F. da Silva

Graduanda do sexto período do curso de Letras da Universidade Federal de Pernambuco. Bolsista de monitoria acadêmica da disciplina de Latim. Em formação em licenciatura plena e bacharelado.

Resumo

O presente artigo visa analisar os principais elementos da narrativa literária, entre eles: a ação narrativa, tempo e espaço, personagens, foco narrativo e por fim, será feita uma conclusão urdida a uma breve análise crítica do conto a fim de esclarecer aspectos mais profundos que, até então, não tenham sido solucionados, na intenção de favorecer a interpretação do leitor.

Palavras chave: felicidade, Clarice Lispector, conto, menina.

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O conto que será analisado é intitulado Felicidade Clandestina e se encontra no livro homônimo da autora Clarice Lispector, lançado no ano de 1971, que reúne ao total 25 contos com temáticas que narram a relação de personagens com os animais, a presença do inesperado no cotidiano previsível, a relação com o outro e a aprendizagem da escrita ficcional. Os contos são narrados em primeira pessoa - por ser um livro mais autobiográfico de Clarice - onde transparece momentos de sua infância, euforias das descobertas e frustrações, dentre outros sentimentos diversos. 1. A ação narrativa.

O conto Felicidade Clandestina da autora Clarice Lispector narra a história de uma menina que tem como objeto de sua felicidade a posse de um livro. Como não possui recursos financeiros para tal aquisição a menina vive a intensa espera do livro, prometido por outra, que aproveita da situação para subjugar a menina. Até o dia que a espera chega ao fim, graças à descoberta da mãe da possuidora do livro que o entrega sem prazo de volta o objeto tão ansiado. A menina, que esperançosamente aguardava, descobre então a felicidade ao possuir o livro em mãos, saboreando lentamente o prazer de ter o livro.

As personagens do livro não são nomeadas, o que permite o processo da catarse e a identificação do leitor que se envolve com o enredo do conto. Para facilitar a identificação das personagens neste trabalho, será usado como referência personagem 1; para a filha do dono da livraria, possuidora do livro e personagem 2; para a narradora- personagem, que está a espera do livro.

A temática principal do conto está expressa no título: Felicidade Clandestina. A felicidade para a personagem 2 está contida no simples prazer de possuir o livro, apesar de ser uma felicidade passageira ou ilegal, a busca dessa felicidade caracteriza o motivo da narração. Segundo as palavras dessa personagem: “A felicidade sempre iria ser clandestina para mim” (Lispector, 1971). Ela descreve a felicidade como clandestina por causa da emoção que sente ao receber um objeto que de fato, nunca seria seu, mas que lhe “embriagava” a alma. O conceito de mimese se aplica a ordem de apresentação da narrativa, que constitui uma trama, baseada no autor que se utiliza livremente de fatos diversos para compor sua narrativa.

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O conto, segundo alguns estudiosos, é um texto autobiográfico de Clarice Lispector. A autora transpõe para a personagem 2 a paixão pela leitura e por outro lado mostra a desvalorização, praticada pela personagem 1 que, mesmo tendo fácil acesso à literatura não desfruta desse sentimento. Percebe-se claramente essa situação no seguinte trecho: “Mas possuía o que qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria. Pouco aproveitava” (Lispector, 1971). Observa-se também uma alusão a Monteiro Lobato, que escreveu e estimulou a literatura infantil. O livro citado no conto e tão cobiçado pela personagem 2 é um livro de sua autoria: As Reinações de Narizinho.

A estrutura do conto Felicidade Clandestina, caracteriza-se por tratar de uma narrativa ficcional curta, com espaço, tempo e personagens reduzidos.

Clarice é uma autora que muito ousou em relação à narração. Sua narrativa normalmente não possui início, meio e fim sendo centrada na imaginação da personagem aliada ao fluxo de consciência e/ou epifania. Observamos o fluxo de consciência na personagem 2 com a utilização do discurso indireto livre logo no início do conto, exemplificado no seguinte trecho: “Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era pura vingança, chupando balas com barulho. Como essa menina devia nos odiar” . (Lispector, 1971) Notamos que o pensamento da menina é descrito sem que haja uma referência clara no texto, podendo passar despercebida na ausência de uma leitura mais atenta.

A complicação da narrativa se dá no momento em que a personagem 1 decide emprestar o livro a personagem 2. Exercendo a partir daí uma “tortura chinesa” (Lispector, 1971) sobre a menina. O clímax da narrativa, momento de maior tensão no conto, ocorre quando a mãe da personagem 1 aparece na história, causando a mudança de rumo da narrativa, ela interfere na história proporcionando a felicidade da personagem 2 e interrompendo a vingança da personagem 1.

O desenlace narrativo é representado pelo alcance da felicidade da personagem 2 quando ela consegue, finalmente, receber o livro e por tempo indeterminado que é, para ela, “tudo o que uma pessoa, grande ou pequena, pode ter a ousadia de querer” (Lispector, 1971). A passagem expressa o amor e a importância da atividade literária na vida de uma menina. Era esta, a porta de entrada para um mundo de fantasias e maravilhas que não eram conhecidas no seu dia-a-dia. O conto termina com uma frase que representa uma alegoria da felicidade clandestina para a menina: “Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher

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com o seu amante” (Lispector, 1971). Essa frase sintetiza o paradoxo do desejo pela busca do prazer e o medo do oculto que envolve uma paixão.

2. O tempo e o espaço na narrativa.

O tempo e o espaço na narrativa são influenciados pelo fluxo de consciência da personagem, característica comum à autora. O tempo obedece às lembranças sucessivas da narradora, em alguns momentos ela antecipa fatos que revelam o que se desenvolverá ao longo da narrativa. Observa-se a presença de termos que indicam as marcas temporais, por exemplo: no dia seguinte, diariamente, até que um dia. No entanto a narradora não consegue mensurar durante quanto tempo a personagem 1 consegue exercer sua vingança. A impressão deixada é que se transcorre um longo período, pois para a narradora cada segundo longe do objeto desejado seria uma eternidade. Em dado momento ela cita: “dias seguintes seriam mais tarde a minha vida inteira” (Lispector, 1971) relatando hiperbolicamente sua espera. Porém o fato dessas marcas temporais se referirem a dias, revela-nos que essa espera foi relativamente curta, de no máximo, algumas semanas. A sensação imensurável de tempo aparece também quando a menina recebe o livro, ela não percebe o tempo passar entre a casa da menina e a sua, pois agora pode ficar o tempo que desejar com o livro. No final do conto a menina se transfigura em uma mulher, remetendo a passagem de tempo com o amadurecimento da personagem. Esta passagem de tempo configura-se por perduração, que é a passagem de tempo psicológica, não pode ser demarcada no texto, pois é algo subjetivo.

O espaço físico é a cidade de Recife que é detectado logo no início da narrativa, lugar onde a autora Clarice Lispector foi criada na infância. “Ainda por cima era de paisagem do Recife mesmo, onde morávamos, com suas pontes mais do que vistas” (Lispector, 1971). O ambiente, que alude ao espaço carregado de significados ou espaço social, é percebido no discurso da narradora ao mencionar que a personagem 1 morava numa casa e não em um sobrado, que era um tipo de residência popular bastante comum no início da urbanização, ela também não autoriza a entrada da personagem 2 a casa, por esta ser pobre. A narradora cita que vai literalmente correndo a casa da outra personagem, o que mostra-nos a proximidade entre as residências das personagens: “No dia seguinte fui à sua casa, literalmente correndo. Ela não morava num sobrado como eu, e sim numa casa. Não me mandou entrar” (Lispector, 1971).

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3. As personagens na ficção.

As personagens do século XX avançam bastante em relação aos modelos propostos por Aristóteles e Horácio. As personagens seguiam paradigmas pré-estabelecidos limitando-se a reprodução do ser humano que traziam consigo situações características arrematadas no final por um preceito de cunho moral. Com o decorrer do tempo as personagens ganham foco nas narrativas. Apresenta-se ao leitor o universo psicológico, social, político, de diferentes tipos de personagens dentro do possível verossímil, mas exibindo toda a complexidade do ser humano. As narrativas de Clarice Lispector seguem a linha de autores como Virgínia Woolf, Franz Kafka e James Joyce, que muito inovaram em suas obras, adentrando no universo psicológico das personagens. As características físicas são um elo para alcançar as características psicológicas das personagens.

O conto Felicidade Clandestina é iniciado com a descrição física da personagem 1 e apresentação de sua personalidade. Percebe-se o contraste físico e social entre as personagens, sendo a primeira marcada por ser “gorda, baixa e de cabelos excessivamente crespos, meio arruivados” (Lispector, 1971) e de condições financeiras mais elevadas. A personagem 2 é inserida inicialmente dentro de um grupo de garotas, pois refere-se a “nós” na apresentação da narrativa. O que indica que havia um vínculo de amizade entre essas personagens que, provavelmente, se conheciam da escola ou moravam no mesmo bairro. Essas são descritas como: “imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, de cabelos livres” (Lispector, 1971), motivo do ódio e das maldades da personagem 1.

No conto Felicidade Clandestina são apresentadas três personagens. As personagens principais participam ativamente do enredo da narrativa, presentes no desenvolvimento da trama. Há ainda uma personagem secundária, sem tanta participação, mas que exerce um papel decisivo. A personagem protagonista é a menina que narra o conto e está à espera do livro. É uma espécie de heroína do enredo, está em primeiro plano e é através dela que conhecemos os elementos da narrativa. A menina que concebe a vingança e a “tortura” psicológica na protagonista é a antagonista. Ela representa uma vilã do conto, criando obstáculos para a realização felicidade da protagonista. Estas representam as personagens principais do conto. A personagem

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secundária sem tanto destaque no conto, aparece uma só vez, mas desempenha um papel significativo, é a personagem auxiliar ou árbitro. Ela é a mãe da antagonista e aparece no conto para resolução da narrativa.

Quanto a ações que praticam na narrativa, as personagens principais podem ser divididas em planas e esféricas, ou redondas, segundo a definição de Forster. A antagonista é definida sob o critério de personagem plana, desde o início da narrativa é descrito seu caráter de vilã, que não evolui ao longo do conto. Enquanto a protagonista é uma personagem esférica. Ela aparece timidamente no início do conto como uma personagem passiva que sofrerá gradativamente os efeitos da vingança, aceitando a humilhação pela qual é submetida na esperança de receber o livro. A personagem reacenderá na narrativa ao ter a posse do livro. O sentimento de felicidade expande a personagem evoluindo na narrativa e adquirindo outra conotação, ela agora é mais que uma menina com um livro, ela é uma mulher com seu amante.

4. O foco narrativo.

O narrador cumpre importante função na narrativa. Pode aparecer em 1° pessoa e participar como observador ou personagem. É uma criação do autor e depende do foco que o autor decide empregar a sua narrativa. Por isso pode aparecer tipos diversos de narrador.

No conto é apresentada a narrativa em primeira pessoa pelo ponto de vista da protagonista (autodiegético). A menina que aguarda o livro nos conta a história oferecendo primeiro a descrição da personagem 1, para permitir ao leitor formar uma opinião da personagem. Essa descrição física e psicológica da antagonista pode influenciar o leitor na sua interpretação, pois o ponto de vista oferecido é de apenas uma personagem e esta enfatiza as características físicas e morais que atribuem uma carga negativa a antagonista.

A protagonista dialoga com o leitor através da utilização de interrogações e respostas para situar o leitor no enredo do conto, por exemplo:

“Entendem? Valia mais do que me dar o livro: "pelo tempo que eu quisesse" é tudo o que uma pessoa, grande ou pequena, pode ter a ousadia de querer. Como contar o que se seguiu?”(Lispector, 1971).

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De certa forma, a protagonista incita o leitor a participar do conto e seguir o rumo da narrativa.

O foco da narrativa encontra-se na felicidade da protagonista. Toda a trama se desenvolve em torno da busca dessa felicidade, apesar dos obstáculos que a personagem encontra no caminho. O encontro com a felicidade para a menina se torna algo clandestino. Porque o sentimento de felicidade não lhe é próprio, a instabilidade da posse do objeto lhe enche de felicidade, mas pode desaparecer a qualquer momento. A protagonista desfruta delicadamente de cada momento com o livro, pois como ela descreve: “era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o” (Lispector, 1971).

5. A felicidade clandestina.

O conto de Clarice Lispector nos traz outra perspectiva de felicidade que é vivida por uma menina, a clandestinidade. Essa característica de ilegalidade representa uma oposição ao que é o sentimento de felicidade, mas no conto alia-se a todas as dualidades pela qual vive a protagonista.

Em Felicidade Clandestina observa-se a reificação do livro para uma menina, o livro era mais que um simples objeto era a realização de sua felicidade. Antes mesmo de receber em mãos o livro, a possibilidade de tê-lo proporcionava verdadeiros momentos de êxtase a protagonista. Sua esperança era tão intensa que mesmo diante da recusa da personagem 1, ela permanecia impávida. Mas a dificuldade em recebê-lo começa aos poucos a desanimar e entristecer a personagem 2. Seu cansaço é percebido nas suas olheiras que se formam, provavelmente devido às noites sem dormir na ânsia de receber o livro. Quando finalmente a protagonista consegue ter em mãos aquele que seria o motivo de sua felicidade, e por tempo indeterminado, conseguimos perceber como se expressa essa felicidade clandestina.

A felicidade não era um sentimento presente facilmente na vida da protagonista, que era uma menina pobre e convivia com as dificuldades de uma vida simples. O fato de não poder comprar o livro demonstra essa situação, por isso a protagonista aceita a humilhação em busca do objeto desejado.

Ser feliz para a protagonista era algo ilegal e oculto. O sentimento de felicidade se misturava ao perigo, a ambição, o desejo pelo proibido e até a humilhação pela qual se submetia. Após receber o livro, ela cria

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diversas dificuldades para “surpreender-se” com o sentimento de felicidade. Em certo momento narra: “Eu vivia no ar... Havia orgulho e pudor em mim.” (Lispector, 1971). Esse orgulho era a realização do sentimento, motivado pelo objeto possuído, e o pudor estava presente porque a menina sentia “vergonha” de estar feliz com algo que não era seu, essa felicidade podia acabar a qualquer instante.

O conto termina com uma frase que conota o valor clandestino da

felicidade para a protagonista: “era uma mulher com seu amante”, demonstra também a permanência da clandestinidade em sua vida, que como ela já havia presumido, a felicidade sempre estaria presente de modo ilegal em sua vida, em pequenas “doses” de perigo. É a metáfora do perigo causado pela imensidão de desejo. O sentimento é vivido ocultamente, às escondidas, mas causa um êxtase de prazer. Torna-se um ciclo vicioso para a personagem, por mais que ela tente escapar está cada vez mais envolvida nesta trama.

É assim que Clarice nos apresenta a felicidade. A trama do conto nos deixa fascinados, inclusive por expressar a paixão pela atividade literária na vida de uma criança. Essa felicidade clandestina aparece para nós leitores de Clarice. A autora consegue nos fazer experimentar a felicidade de ler e se envolver com o enredo de suas histórias que nos deixa “em êxtase puríssimo” (Lispector, 1971) e a clandestinidade por saber que aquilo não é real, é apenas fruto de uma autora espetacular que consegue penetrar profundamente nas estranhezas do ser humano.

Clarice tem a capacidade de nos deixar assim: como uma mulher com seu amante ou uma criança descobrindo o mundo. Na verdade, somos todos personagens seus em busca de nossa felicidade clandestina.

REFERÊNCIAS BILIOGRÁFICAS BRAIT, Beth. A personagem. 8. ed. São Paulo: Ática, 2009 GANCHO, Cândida Vilares. Como analisar narrativas. 7. ed. São Paulo: Ática, 1999 LISPECTOR, Clarice. Felicidade Clandestina. Rio de Janeiro: Rocco, 1971.

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JOVEM COLABORADOR | CARNE VIVA: COMO PROCESSOS DE SIGNIFICAÇÃO HUMANOS ALTERAM PADRÕES DE RELACIONAMENTOS ENTRE INDIVÍDUOS, SOCIEDADE E MEIO AMBIENTE? | BRUNO MESQUITA SOARES DE ARAÚJO

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Carne Viva: como processos de significação humanos alteram padrões de relacionamentos entre indivíduos, sociedade e meio ambiente?

Bruno Mesquita Soares de Araújo

Graduando em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e Relações Internacionais pela Faculdade Damas de Instrução Cristã. Atualmente trabalha na Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco (FUNDARPE) como pesquisador do Inventário Nacional de Referências Culturais (IRNC) do Maracatu de Baque Solto.

Resumo

Atualmente, com o aumento da renda per capita na maioria dos países em desenvolvimento, torna-se possível a emergência de outros setores da economia, diminuindo a relevância da agropecuária no PIB destes países. Abrindo possibilidades de parcerias em nações onde a pauta de exportações converge para o agrobusiness. Portanto, países agroexportadores tornam-se a força centrípeta deste ramo da economia, criando novas demandas e provocando reações distintas entre as partes envolvidas. Aliado às manifestações dos diversos segmentos sociais em

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JOVEM COLABORADOR | CARNE VIVA: COMO PROCESSOS DE SIGNIFICAÇÃO HUMANOS ALTERAM PADRÕES DE RELACIONAMENTOS ENTRE INDIVÍDUOS, SOCIEDADE E MEIO AMBIENTE? | BRUNO MESQUITA SOARES DE ARAÚJO

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torno deste embate surgem entraves como os limites do crescimento. Cabendo este coevo trabalho a tentativa de analisar tal contexto por via dos conflitos locais partindo do estudo de caso: o mercado de carne bovina brasileiro.

Palavras Chave: Economia, Globalização, Desenvolvimentismo, Cultura e Sustentabilidade.

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JOVEM COLABORADOR | CARNE VIVA: COMO PROCESSOS DE SIGNIFICAÇÃO HUMANOS ALTERAM PADRÕES DE RELACIONAMENTOS ENTRE INDIVÍDUOS, SOCIEDADE E MEIO AMBIENTE? | BRUNO MESQUITA SOARES DE ARAÚJO

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Introdução “Isso de querer ser exatamente aquilo que a gente é ainda vai nos levar além”

Paulo Leminski1

O presente artigo versará sobre a atual demanda e produção de carne bovina internacional, com foco no mercado agroexportador brasileiro, tendo como base os recentes estudos do Ministério do Desenvolvimento, Ministério da Agricultura, Embrapa e FAO2. Para tanto, tal intento consiste em trazer à luz, através da miscelânea entre percepções científicas aparentemente distintas, uma reflexão crítica a partir das hodiernas perspectivas econômicas e a discussão em voga sobre sustentabilidade e limites de crescimento. Tentando não somente abarcar os pontos de vista tecnocientíficos, mas interagindo com as demais formas de saber, na ressalva de não cometer o deslize de conferir primazia a um dado discurso em tempos de reorganização estrutural das forças que compõe o quadro político internacional3. Posto que, o discurso atual repousa-se na sacralização da racionalidade científica, onde por meio da institucionalização desta, que se caracteriza por ser transcendente e separada, exterior e anterior aos sujeitos sociais, reduz os indivíduos a objetos sociopolíticos manipuláveis (Foucault, 1970). Talvez já se tenha chegado a hora, parafraseando Chauí (1980) de cometer a heresia: ciência é o ópio do povo. Portanto, as formas de perceber a realidade devem acatar tanto as concepções de ordem material como as de ordem cultural, constituindo esta última um importante fator de significação da primeira. Como diria M. Sahlins (2003): “A produção econômica, tanto do ponto de vista das técnicas de trabalho quanto da determinação de o quê e quanto produzir, possui marcos culturais, já que o uso (ou consumo) é função das escolhas feitas a partir de uma codificação que é cultural”.

1 O haicai de Paulo Leminski (1987) nos faz refletir acerca dos processos inevitáveis de transformação existente no cenário político internacional de hoje e como tais processos demandam novas maneiras de lidar com a realidade; algo que será discutido ao longo do artigo. 2 Food Agricultural Organization. Órgão responsável pelo balanço regular e controle da segurança alimentar das Nações Unidas. 3 Para um maior aprofundamento das questões relativo à transição política internacional em macrossistema Elementos de Política Internacional de Thales Castro. Abordando ainda a temática por um viés economicista ainda recomenda-se Sociedade em Redes de Marcel Castells Prós e Contras da Globalização e David Held.

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Assim sendo, o trabalho foi pensado em quatro etapas. Na primeira o tema é apresentado seguindo uma abordagem culturalista que analisa o consumo de carne através das demandas existentes na sociedade, trazendo como marco referencial as transformações simbólicas decorrente do aumento no consumo de carne bovina. Na segunda pretendem-se pontuar os caminhos atuais da produção econômica internacional de carnes e seus impactos, a partir do ponto de vista macroeconômico. Na terceira é discutida a importância do Brasil em tal contexto tendo como ponto de partida a revisão do novo código florestal. E por último, na conclusão, procuro inferir a imbricação presentemente erigida sobre a atual produção de alimentos e as implicações de ordem político e socioambientais para as relações internacionais. 1. A Cultura e os Alimentos A carne em diversas situações é uma constante na refeição diária da humanidade há tempos. Não se sabe ao certo de que forma esta dieta tornou-se um hábito na maioria dos cardápios no mundo. A literatura afirma que a proteína animal entrou na alimentação dos seres humanos por necessidade natural - em tempos de escassez - como complemento:

“É indiscutível o recurso vegetal, mas ninguém me convence que fosse o inicial e longamente o único regime alimentar, pelos vestígios que esses indiscutíveis caçadores tiveram a gentileza de deixar para a verificação contemporânea. E a procura aventurosa e heroica da caça positivavam a deficiência da dieta vegetal, unitária e anterior. No Brasil, essa herança cultural foi herdada pelos portugueses, pois, os índios comiam viandas e peixes; e os escravos tubérculos” (Cascudo 2004 p. 484 - 514).

Contudo, vale salientar que nem todas as culturas possuem o hábito de comer carne, como na Índia. Nem tampouco há unanimidade no consumo entre os variados tipos de carne, havendo distinção entre animais sagrados, domésticos ou de abate conforme a cultura nela estabelecida (Mintz, 2001, p. 37). Seja qual for o ritual ou a tradição estabelecida no consumo de alimentos, a carne tornou-se um dos principais componentes da refeição em muitos lugares, atingindo aos

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poucos um status social, considerado um bem de luxo (Mintz, 2001, p. 37). A segunda metade do século XX ficou marcada por crescentes modificações na alimentação que tiveram lugar tanto nos países desenvolvidos quanto em desenvolvimento. Como o aumento demográfico reforçou a demanda por alimentos e, como tem conduzido a uma intensificação das atividades agrícolas e agropecuárias, foi sendo criadas, paulatinamente, organizações internacionais de regulamentação da produção como: a FAO, a OMC, a HSNU etc. O resultado foi um aumento considerável na diversificação das atividades agropecuárias, como também o acirramento das grandes corporações com vistas à ampliação de suas receitas; além do combate à fome incentivada por tais organismos (Andrade, 2003). No Brasil, por exemplo, com o advento da crise econômica dos anos 70 – a retração da economia aliada ao sobrecarregamento do Estado de bem-estar social – procedeu-se a uma maior diversificação da produção de carnes no setor interno por falta da demanda externa (Mazzali, 2000). Antes envolvida estritamente com a produção de carne bovina, a pecuária teve que diversificar em decorrência do aumento da competitividade dessa época, alimentada, neste mesmo período, pelo crescimento da produtividade nascida com a mecanização do campo. Daí que surgem nos cardápios dos brasileiros as carnes das mais variadas fontes animais: caprina, equino, aves, peixes e até a soja – esta última elevada ao status de carne (Mazzali, 2000). Provocando um acelerado processo de desmatamento e substituição de propriedades rurais em prol do extrativismo animal. Lembramos-nos do caso dos seringueiros do Acre, onde a transformação dos seringais em pastagens, estimulada pelos incentivos do Estado, ameaçava as condições de trabalho e modo de vida das populações que lá viviam da coleta de borracha e castanha (Medeiros, 2010, p. 128). Evidenciando, desta forma, tanto o impacto ambiental quanto o social provocado pela substituição de uma cultura agrícola a outra em determinados contextos. Aos poucos, percebe-se por vez, que com a criação de um mercado internacional de alimentos, gerenciado por organismos supranacionais, muito dos padrões de produção considerados parte de uma tradição local acabam sendo dirimidos e ou adaptados ao boom do comércio mundial de alimentos (Mintz, 2001):

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Entretanto, a despeito dessas grandes mudanças, é verdade que as últimas duas décadas assistiram a uma difusão sem precedentes de novos alimentos e novos sistemas de distribuição em todo o globo. A invasão da Ásia pela fast food norte-americana é um importante exemplo dessa mudança (Watson, 1997). [...] assim como houve, inversamente, uma grande e rápida difusão de restaurantes familiares asiáticos nos Estados Unidos (Mintz, 2001).

Com isso, novos padrões de alimentação estão interferindo nós hábitos culturais de países tradicionais como a China, inclusive, muitas vezes, os alimentos, principalmente a carne, passam a serem consumidos em demasia, por diferentes contextos e classes sociais. Revelando, por outro lado, que certos valores acabam sendo agregados ao fim principal de um alimento:

[...] Aumentos consideráveis no consumo de proteína animal, o uso crescente de alimentos preparados, o aparecimento da categoria "comida de criança" e outras inovações sugerem que a dieta da China está realmente mudando. Isso ocorre porque forças maiores estão operando e não simplesmente porque "o gosto" das pessoas está mudando (Mintz, 2001, P. 34). [...] Na China, por exemplo, comer no McDonalds é sinal de mobilidade ascendente e de amor pelos filhos. Onde quer que o McDonalds se instale na Ásia, as pessoas parecem admirar a iluminação feérica, os banheiros limpos, o serviço rápido, a liberdade de escolha e o entretenimento oferecido às crianças. Mas também se percebe que eles gostam mais dessas coisas do que propriamente da comida (idem). [...] Uma pequena história cotidiana pode ilustrar a maneira pela qual um lugar, como o McDonalds, se transforma em um espaço onde se acumulam valores mais importantes do que os que normalmente seriam creditados a uma refeição rápida: uma senhora que não se dá bem com a nora espera no McDonalds por seu neto a caminho da escola de manhã e lhe compra um sanduíche. A lanchonete passa a ser, então, o ponto de encontro dos dois. Neste caso, podemos também inferir como esse tipo de lugar oferece aos clientes uma oportunidade de se identificar com o poder norte-americano (Yan, 1997, p. 49).

Como abordado por Bourdieu (1974), as representações culturais têm certa influência nas práticas de consumo dos indivíduos por legitimarem modos de socialização e posicionarem os indivíduos de acordo com critérios e padrões pré-estabelecidos. Haja vista que tais representações culturais só podem estar predispostas sob o ponto de

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vista humano, conferindo assim um papel determinante sobre as formas pelas quais os indivíduos humanos percebem os animais4. Alterando dinâmicas de produções manifestas, assim como, tecendo novos arranjos econômicos. Desse modo, a práxis social em relação aos alimentos é tanto parte de um discurso cultural que condiciona o consumo dos indivíduos através das opções de escolhas permitidas com o mercado global de alimentos, como ao mesmo tempo ela é ressignificada e relocada a novas formas de relação que ditam regras de condutas alimentares, com consequências culturais e naturais nem sempre previstas. Tornando o Estado um ator de extrema importância no reordenamento das esferas produtivas em coadunância com a dinâmica social global e de suas necessidades alimentares, haja vista que a fundamentação básica do Estado, hoje, converge ao que se convencionou denominar Estado Democrático de Direito5. 2. Perspectivas atuais sobre o mercado global de carne bovina Definido em termos econômicos como produtos de primeira necessidade a comida atua como importante ator na arena das transações comerciais no mundo (Douglas apud Isherwood, 2006 p. 55-57). Despontando no cenário econômico internacional seja pela salvaguarda dos direitos humanos quanto à distribuição e segurança alimentar dos países, seja pela sua importância como variável econômica, tornando-se de grande valia para países agrícolas e daqueles que deles se abastecem (Belik, 2001). No entanto, observa-se hoje a insurgência do debate sobre economia verde6, onde novas modalidades de produção são estimuladas, como por exemplo, a produção familiar. Permitindo o entendimento de que a proteção ao meio ambiente e o equilíbrio da vida devem estar em sintonia com as políticas econômicas. Contudo, admitir um suposto de economia aberta não implica abandonar toda e qualquer referência à autossuficiência produtiva e aderir, incondicionalmente, ao enforque da autocapacidade, como sugere tal

4 Disponível o banco de dados da FAO: <http://www.fao.org/docrep/010/a0701e/a0701e00.HTM>. 5 Para um detalhamento a respeito do que vem a ser o Estado Democrático de Direito, ler Tércio Sampaio, capítulo introdutório. 6 Sobre a origem do termo recomenda-se ler Scott Cato, M. (2009). Green Economics. Earthscan, London.

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dilema (Maluf, 2000). Trata-se de reconhecer o papel estratégico cumprido pela produção doméstica de alimentos, e de atribuir um papel definido, porém, realista às trocas internacionais, no tocante o abastecimento alimentar em simultâneo à busca por estabelecer novas formas de regulação da mesma.

“Contrastar as noções de autossuficiência na produção de alimentos (food self-sufficiency) e de autocapacidade na obtenção de alimentos (food self-reliance) é um procedimento relevante e oportuno pelo que ele contribui ao esclarecimento: (a) do papel dos mercados em geral, e do mercado internacional em particular, para a segurança alimentar, (b) na inserção do sistema alimentar nos processos econômicos e sociais de cada país, e (c) das opções de políticas públicas voltadas a assegurar o direito à alimentação. É comum contrapor estas noções no plano nacional (produção doméstica versus importações), havendo também uma tradução para o nível das unidades familiares rurais (produção mercantil versus produção para autoconsumo); mais raramente, fala-se em autossuficiência das regiões que compõe os países” (Maluf, 2000 p. 50).

2.1. Perspectivas Atuais e os Impactos Ambientais

No entanto, é nesse mesmo debate sobre sustentabilidade que evidencia a contradição da produção de carnes. Segundo alguns estudos, a produção de carnes provoca impactos profundos à saúde, à produção de produtos agrícolas, além de ser custosa e inviável ao meio ambiente e ao desenvolvimento de uma economia limpa e sustentável (Medeiros, 1995; Bacellar, 2007; Fonseca, 2000). Aliado a isto persiste a fomentação de uma indústria midiática que estimula a produção e o consumo, humanizando os animais, associando eventos sociais à carne, não havendo qualquer referência quanto à qualidade e o processamento dos produtos nas propagandas, sendo de real importância para a saúde pública do país (idem).

[...] Analisando o principio biológico do homem, somos um dos pouquíssimos primatas que se alimentam de carne. Ainda assim, sabemos que o homem é um animal onívoro, e, essa vantagem retira a necessidade desenfreada de comer carne. [...] Pelo alto preço da carne frente aos vegetais, pode-se deduzir que ela não é à base da alimentação humana, principalmente em países como o Brasil, onde a maioria da população é de baixa renda (Bacellar, 2007). [...] A atividade de criação de animais de corte desvia grande parte da produção de alimentos, que poderia ser destinada ao consumo humano,

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para fabricação de ração animal. [...] Depois do extrativismo da madeira, a principal causa de desmatamento de florestas e matas é a criação de pastos para a pecuária. [...] Devido às rações enriquecidas com grãos, para que os animais ganhem peso, ocorre um grande aumento de flatulências do boi, liberando gases como o metano e óxido nitroso, que são dez vezes mais poluentes que o gás CO2. [...] A produção de animais de corte consome uma grande quantidade de água (idem). [...] Observando o ponto de vista humanístico, relacionado aos direitos dos animais, a crueldade do processo de abate é algo repugnante. Para diminuir custos, a maioria dos abatedouros ainda utiliza métodos primitivos de abate. A forma de criação também é algo deplorável. [...] Vivem em ambientes escuros e confinados sem espaço de locomoção, com um prato de ração enriquecida de hormônios, desenvolvendo doenças, como stress, comportamentos disfuncionais, como agressividade e canibalismo. Neste ponto, os animais perdem a sua essência como seres vivos e passam à categoria de produtos da indústria alimentícia (Andrade, 2003).

Todavia, a produção de carne bovina só tende a aumentar nos próximos anos, em grande parte, conforme dados do MDIC7, em consequência do aumento da demanda e das transformações ocorridas com os padrões de alimentação no planeta. A primeira se explica por dois motivos centrais: aumento da população e a crescente urbanização deste, o que representa a diminuição da população rural e de sua população ativa na agropecuária. A segunda, devido ao processo anteriormente descrito: internacionalização dos mercados e das opções de escolha. Com o aumento da renda e da diversificação da economia, fatores potencializados pelo processo de urbanização, os hábitos de consumo tornam-se condicionados no sentido da diversificação e sofisticação.

7 Dados disponíveis no site do Ministério do Desenvolvimento (http://www.mdic.gov.br/sistemas_web/aprendex/cooperativismo/index/conteudo/id/306).

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Além disto, com o crescimento da renda per capita, as pessoas passam a demandar outros tipos de bens além dos alimentos, uma vez que a quantidade consumida de alimentos já está em um patamar desejado pela população que possui um nível elevado de renda (Schultz, 1951). Havendo a constatação mundial de que a participação da agropecuária no produto interno bruto dos países tem diminuído ao longo do tempo, em decorrência do aquecimento de outros setores da economia, no Brasil, entretanto, tem aumentado em 65,5% desde os anos de 1993. E este crescimento atípico se da em parte pelo aumento da produtividade na agropecuária, aumento da relação de preços agrícolas e preços industriais e aumento da relação de preços recebidos e pagos pela agropecuária (Brugnaro apud Bacha, 2004).

País Peso Escala 2000 2012 Alemanha U.S dollars Renda per

Capita 23.019,52 42.625,00

Argentina U.S. dollars Renda per Capita

7.733,03 11.453,00

Brasil U.S. dollars Renda per Capita

3.761,51 12.455,30

Chile U.S. dollars Renda per Capita

5.174,31 15.463,01

China U.S. dollars Renda per Capita

945,60 5.808,57

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Estados Unidos

U.S dollars Renda per Capita

35.251, 92 49.601,41

Índia U.S. dollars Renda per Capita

465,07 1.454,65

Japão U.S dollars Renda per Capita

37.313,08 46.972,60

México U.S. dollars Renda per Capita

6.858,80 10.514,47

Rússia U.S. dollars Renda per Capita

1.775,13 14.246,31

* Fonte: IMF (International Monetary Fund, 2012)

3. A Importância do Brasil no Mercado Internacional de Carnes

Diante deste quadro atual de aumento na demanda e produção de carne bovina, o Brasil ocupa o primeiro lugar entre os países exportadores e o segundo em produção in natura8, tornado-se o principal ator deste segmento na América Latina e no mundo (Ver Figuras abaixo). Segundo dados da USDA/FAS9 o Brasil ao lado dos EUA, China e União Europeia somam 75% da produção mundial de carne bovina in Natura, quase 34 milhões de toneladas dos 46 milhões da soma total de produção10. Tendo este aumentado em 2,4% sua participação no PIB do país nos últimos dois anos11. Fornecendo ainda uma reflexão a respeito do ritmo de crescimento acelerado das economias emergentes como a China, o Brasil e a Índia que, somado o aumento da renda per capita ao grande manancial de população dispostos a consumir, explica-se o fortalecimento de suas economias (MDIC). Ainda sobre o mercado de carnes no Brasil, segundo Barros (1999) tal sucesso advém dos ganhos de produtividade dos fatores produtivos (proporcionado pelas inovações tecnológicas), do crescimento do estoque de capital (principalmente de tratores) e do uso de insumos promovidos 8 A expressão In Natura é utilizada para descrever que a exportação ou comercialização de origem vegetal ou animal são consumidos em seu estado natural. Definição disponível em: <http://www.agripoint.com.br/default.asp?actA=2&noticiaID=49274> 9 United States Departament of Agriculture – Foreign Agricultural Service. 10 Dados disponíveis em: <http://rehagro.com.br/plus/modulos/noticias/ler.php?cdnoticia=2069>. 11 Informação disponível em: <http://www.ruralcentro.com.br/noticias/54596/pib-da-agropecuaria-cresce-4-e-atinge-recorde-historico-em-2011>

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pelo grande investimento realizado na agropecuária brasileira até 1986, tanto na forma de pesquisa e extensão rural como na concessão de crédito rural subsidiado. Assim, dada à relevância deste setor no país e no mundo torna-se necessário tornar tal produção consoante aos novos paradigmas sustentáveis. Sobretudo pela emergência de novos preceitos advindos de uma recente consciência dos limites de crescimento12, intensificado recentemente no país após a celeuma sobre a revisão do Código Florestal Brasileiro. Tal código foi sancionado no país em 1965, com intuito de estabelecer os limites do uso da propriedade rural e garantir a preservação da vegetação nativa. Contudo, foi requerido por volta de 1999, através da bancada ruralista (proprietários rurais) na Câmara dos Deputados, uma reforma do Código Florestal em tramitação até os dias atuais (Sparovek, Barretto, Klug, Papp, Lino 2011). Na tentativa de eliminar barreiras ao seu desenvolvimento, a ação dos ruralistas em modificar e flexibilizar tal lei reflete sua ascenção na economia brasileira. Porém, a polêmica nascida com a revisão do código florestal brasileiro sobreveio através da diminuição das áreas de proteção ambiental (APP) (de 30 metros para 15 nas margens ciliares), da isenção dos proprietários rurais das sanções e multas previstas na lei em vigor, além da dispensa do registro da Reseva Legal em módulo fiscais de até quatro módulos (SBPC, 2011). Em paralelo, a questão mais defendida pela oposição (os Ambientalistas) afirma que o Novo Código não respeitará as diferenciações de cada região, além de ser prejudicial à soberania do país na Amazônia e sua preservação, haja vista que é foco de constante internacionalização por parte de órgãos supranacionais, ONGs e alguns países. “Manter um sistema simples e transparente para todos (reserva legal em cada propriedade) em vez de um complexo sistema de compromissos entre propriedades para manter equivalências em outros lugares, ajudaria a garantir o cumprimento da lei” (Fearside, 2000). Portanto, o conflito erigido com o estimulo à revisão do código florestal brasileiro cada vez mais evidencia o problema atual da

12 O termo é título do primeiro relatório elaborado pelo Clube de Roma em 1972, grupo cujo sua principal intenção é reunir pessoas ilustres em prol de discutir assuntos relacionados à política internacional, economia, meio ambiente e desenvolvimento sustentável. Maiores informações em: <http://www.clubofrome.org/>

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humanidade centrada na dicotomia cultura versus economia, mais especificamente, os modo de produção. As atuais projeções da pecuária no país, a partir da controvérsia estabelecida entre ruralistas e ambientalistas, concentram-se no contraste entre uma cultura baseada no crescimento exponencial de produção e os limites desencadeados pelos processos de consciência dos modos de produzir. Ou seja, parece haver uma nova polaridade de forças surgindo como quando o iluminismo do século XVII evidenciou a incongruência entre fé e razão (Mello apud Costa, 1999). Se por um lado, o discurso sobre produzir de forma sustentável pressiona a reorganização das estruturas de produção mundial e repensam os limites desta, por outro, a ideia de que o desenvolvimento deve ser a meta principal dos países torna a expansão da economia um ato imprescindível destes. Não obstante, boa parte dos céticos considerarem que o processo de globalização da economia seja algo limitado (por ser diverso) e regional (por ser mais bem visualizado através dos processos de integração econômica regional), as estatísticas conforme analisadas aqui demonstram um processo continuo de crescimento econômico, ativado pela atuação de seus respectivos órgãos internacionais de controle; frutos deste intenso fluxo de trocas comerciais entre nações (Held apud McGrew 2001; Castro 2009). Além disso, parte deste relacionamento de trocas é facilitado e permitido pelo desenvolvimento das tecnologias da informação: redes sociais, telefone móvel, internet, televisão etc. E, as consequências de ordem cultural nem sempre são pacíficas e de fácil resolução (CASTELLS, 2007). Conclusão Portanto, a prática de consumo está envolvida por uma série de fatores que acabam por condicionar as práticas de alimentação no mundo (a competição capitalista, o status, a globalização, a distribuição, a segurança alimentar, o meio ambiente etc.). E entender a produção de carne vista como produto de primeira necessidade básica, é necessária para esclarecer problemas no tocante à distribuição e segurança alimentar, a saúde pública, os conflitos de terra, como também a busca por criar uma economia limpa e sustentável. Além de fornecer parâmetros comparativos para resolução de conflitos sociais, políticos, religiosos e econômicos. No entanto, na revisão de literatura disponível

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pouco se tem abordado, e muito, por falta de um real estudo sobre a interação simbólica da carne e a sociedade, focando mais a análise de consumo por via das análises econômicas e não culturais. E entender de que forma o consumo está ou não atrelado a uma determinada cultura ou modo de produção se faz necessário, pois, estas variáveis podem somar-se às desigualdades sociais existentes, principalmente, tratando-se deste processo de homogeneização das esferas produtivas. Assim como a primavera árabe e o conflito em Darfur o mercado de carnes no Brasil são apenas pequenos pontos factuais de uma imensa rede de interconexões surgida dentro de um processo de interdependência complexa13 cada vez mais acentuada. Onde o discurso democrático aliado ao processo de internacionalização da economia promove um acirramento político entre sociedades, indivíduos e meio ambiente. Como uma não está separada da outra, parte do imaginário social de cada entrara em choque por meio do discurso de economia sustentável e os fatores de ordem político nela contidos. Na melhor das hipóteses pensar que ciclos de harmonia e caos é uma constante na história da humanidade, a crise dos modos de produção atual talvez nos leve a criar mecanismos de paz e cooperação. Pois como diria Heidegger: a falta de sentido para a existência humana transforma o caminho desta em uma busca incessante por uma autenticidade do ser. E o ser aqui é o estar político, é o ser sem elo material exterior em sua procura infinita por uma razão econômica, política e social de ser14.

REFERÊNCIAS BILIOGRÁFICAS ANDRADE, Francisco Carlos Gomes de. 2003. Pecuária: respostas simplistas para problemas complexos. Disponível em: [http://www.cpafac.embrapa.br/chefias/cna/artigos/pecsimplista.htm].

13 A interdependência complexa tornou-se um paradigma recorrente na literatura das relações internacionais com o fim da URSS e o Consenso de Washington em 1989. Para maiores informações ler o Capítulo V do livro Elementos de Política Internacional de Thales Castro. 14 A categoria filosófica autenticidade, lançada por Heidegger em 1957 pode ser mais bem compreendida a partir da leitura do livro Identidade e Diferença de Martin Heidegger.

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ARTIGOS:

Trajetos Míticos do Corpo

na História da Arte

Eduardo Romero Lopes Barbosa

Reflexões Sobre os Problemas Ambientais Vivenciados na Atualidade e o Papel da Educação Fátima Kzam Damaceno

Sobre a Qualidade da Democracia: uma revisão de literatura Fernando Augusto Semente Lima

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Trajetos Míticos do Corpo na História da Arte

Eduardo Romero Lopes Barbosa Doutorando em Antropologia – PPGA/UFPE. Professor do curso de Design – Centro Acadêmico do Agreste – CAA/UFPE.

Resumo

O texto a seguir trata de maneira sucinta a trajetória do Corpo na História da Arte Ocidental, considerando que o Corpo sempre ocupou um espaço privilegiado na representação artística tendo seus sentidos e significados modificados de acordo com os contextos culturais e sócio-históricos. A trajetória mítica proposta tem por fundamento aprofundar os questionamentos do pensamento Ocidental que orientou os sentidos simbólicos da noção de Corpo que se refletem nas obras de arte. Essa comunicação é fruto das pesquisas de doutoramento empreendidas no Núcleo Interdisciplinar de Estudos do Imaginário - UFPE.

Palavras-chave: Corpo, História da Arte, Antropologia do Imaginário.

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Introdução

Trata-se de uma obviedade salientar que, desde muito, o Corpo é tema privilegiado na História da Arte Ocidental. Temos a exemplo disto, as observações e discussões realizadas sobre as ações simbólicas das pinturas de caçadores do Paleolítico eternizadas nas paredes de cavernas e grutas já exaustivamente debatidas.

Contudo, desde os primórdios da cultura humana o Corpo se impõe com grande força enquanto representação visual e, principalmente, em grande variedade de sentidos e finalidades. Sem dúvida, o simbolismo do Corpo é tão rico que sua reprodução surge em todas as culturas e de maneiras surpreendentes.

Para o Ocidente, o Corpo sempre foi um tabu. Ora nobre receptáculo do espírito, ora elemento condutor que leva aos perigos do submundo dos desejos carnais, o Corpo e seus sentidos simbólicos foi eternizado em seus contextos sócio-históricos pela Arte através de artistas que não só conheciam suas possibilidades plásticas, mas, sobretudo, de sua potência simbólica. Se traçarmos uma breve retrospectiva sobre os discursos míticos que se consolidam na Arte através do Corpo e ainda que as discussões da dualidade entre corpo e espírito estejam sempre presente, perceberemos a potência simbólica do Corpo em diferentes momentos da cultura Ocidental. O Corpo mítico e a representação humana na Grécia Antiga

A Grécia na Antiguidade deu importante atenção ao Corpo e sua narrativa mítica é expressiva neste sentido. A natureza é constantemente reivindicada nos mitos gregos, onde podemos apreciar passagens com personagens zoomórficos (homens e animais) em constante metamorfose. Contudo, o pensamento filosófico grego marca de certa maneira a separação do corpo humano como extensão da natureza, ou melhor, de sua animalidade, e nesse sentido, irá prevalecer gradativamente à idéia do corpo-máquina associada à noção de que o Corpo se molda e se reconstitui a partir da Cultura.

As noções que se esboçam no pensamento filosófico grego acima sublinhado, partem da separação do discurso racional empreendidos pelos filósofos em relação aos acontecimentos míticos. Esse fato é um importante desdobramento do princípio do sistema de oposição binário-pitagórico que leva os discursos sobre o Corpo a um duplo sentido: por um lado, o Corpo é apenas o meio que através dos sentidos informa a Alma – tendência que persiste no pensamento grego e, por outro, o

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Corpo visto mais tarde pelos cristãos como lascivamente modelado e idealizado, ou seja, um fim em si mesmo.

Segundo M. Godelier (1973) fica claro quais as razões que levaram os filósofos da antiguidade Grega a repudiar os Mitos que explicavam o Cosmos e a natureza humana. Uma das razões seria o desenvolvimento da Geometria que apontava para um sistema matemático do universo que poderia explicá-lo sem a “analogia do Mito”. Outro motivo seria a nova organização social baseada na Polis, um modelo que substituiu a Natureza pela cidade:

Foi através deste duplo processo, que levava ao declínio parcial do pensamento mítico na “física” jônica e na “política” dos “cidadãos” gregos, que nasce a filosofia e se inaugurou, no principio do século VI, na Jônia, um novo modelo de reflexão de imenso efeito. Chegamos assim ao limiar de um problema fundamental para a inteligência da história humana, o da natureza exata do pensamento filosófico, da sua diferença especifica em relação ao pensamento mítico e das suas condições históricas de aparecimento (Godelier, 1973, p. 371).

Aqui não nos cabe aprofundar as discussões e tensões, assim como as relações entre o pensamento mítico e filosófico, contudo, a representação do Corpo na Arte evidentemente não ficou de fora deste contexto. A complexa relação entre a representação do Corpo, a filosofia e o pensamento mítica grego pode ser apreciada na nova atitude que o Ocidente passou a sustentar como herança do raciocínio socrático:

Ao descobrir que a natureza estava, para além de suas formas visíveis, organizadas segundo as relações necessárias de uma ordem matemática, o pensamento grego tinha rompido local e parcialmente a rede de causalidades intencionais e de representação analógicas extraídas da percepção, através dos quais, em parte, os velhos mitos gregos “explicavam” a origem e a natureza do cosmos. Foi este novo conteúdo dos conhecimentos “físicos” e das relações “políticas” que veio obrigar o pensamento a opor-se a si próprio, a repelir e a rejeitar antigos modos de pensar para os substituir por outros que correspondiam melhor ao novo campo da experiência humana (Godelier, 1973, p. 371).

Considerando o que acima foi dito, um exemplo relevante da visão dicotômica do Corpo no pensamento filosófico em ascensão na Antiguidade Grega imbricada as narrativas míticas é a representação de Afrodite, deusa da beleza sensual e do amor carnal.

Duas narrativas se apresentam quanto ao nascimento de Afrodite: uma mais antiga relata ser ela a filha de Urano (deus do Céu), gerada no

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momento em que seu pai foi castrado pelo filho Cronos (divindade suprema da segunda geração de deuses); outra, mencionada por Homero, diz que Afrodite é descendente de Zeus com Dione (deusas das Ninfas). Os mitos informam o grande poder de sedução da deusa, inclusive entre os deuses do Olimpo que passaram a disputá-la, embora fosse casada com Hefesto (deus do fogo e da metalurgia), sendo, quase sempre, a representação de Afrodite ligada às tentações da beleza sexual do corpo.

Entretanto, a filosofia grega por volta do século V a.C. passou a considerá-la duas deusas distintas, a Afrodite Uraniana e a Afrodite Pandemos. A Uraniana nascida do esperma do pai que espumou sobre o mar após a castração é a Afrodite celeste, pois Urano como citado acima, é o deus dos Céus. A Afrodite Pandemos filha de Zeus é a “comum de todos os povos”. Assim, a Uraniana representa o amor celestial e incorpóreo, enquanto que a Pandemos, a do amor comum e carnal.

No culto a Afrodite, a duas deusas eram invocadas simultaneamente e isso de certa maneira fez com que sua imagem fosse associada à frivolidade e a promiscuidade sexual, pois o sexo com prostitutas e escravas era um meio de adoração a Deusa. A condenação ao culto de Afrodite parte do medo humano frente à natureza incontrolável dos aspectos regidos pela Deusa, ou melhor, o amor (espiritual) e o sexo (corporal).

A separação entre o Corpo e o Espírito (virtudes) é fundamerntal na compreensão da estatuária grega, pois o Corpo é invocado por sua beleza ideal que não está ligada a natureza. O corpo humano da natureza é a matéria que envelhece e morre, que é assimetrica e sujeita a imperfeições. Os corpos belos e jovens dos atletas no Pathernon são a imagem sensível do ideal mais elevado do homem e o nu revela os valores espirituais dos deuses, onde o Belo não está no corpo pois é transcendente.

Tratava-se de um grande desafio para os artistas do período clássico grego representar a dicotomia do Corpo proposto pelo pensamento filosófico nascente. Era preciso um alto grau de verossimilhança em cada mínima parte do corpo esculpido associado a ilusão de estar vendo um Corpo vivo que inspira as qualidades das divindades, como atesta Gombrich: “Deviam representar a “atividade da alma”, observando minunciosamente o modo como “os sentimentos afetam o corpo em ação”” (1999, p.94). O resultado da sintonia fina entre o Corpo e as qualidades da “Alma” é uma representação corporal idealizada, pois não há corpo tão perfeito, belo e simétrico como encontrada na estatuária grega. Uma

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conquista que os séculos de investigação e estudos sobre o Corpo se concretiza nas mãos dos artistas gregos:

Na geração que se seguiu à de Praxíteles, em fins do século IV (...), os artistas descobriram meios para animar as feições sem lhes destruir a beleza. Mais que isso: aprenderam como captar a atividade da alma de um indíviduo ou o caráter peculiar de uma fisionomia, e como fazer retratos na acepção atual da palavra (Gombrich, 1999, p. 106).

Embora o artista grego tenham atingido alto nível técnico na representação do real, para o pensamento iconoclasta que emerge da filosofia platônica/aristotélica, o artista plástico é um impostor, pois ele apenas imita a aparência das coisas sem conhecer suas verdades e o que as explica:

A imagem, conclui Platão, pode se parecer com a coisa representada, mas não tem sua realidade. É uma imitação de superfície, uma mera iluão de ótica, que fascina apenas as crianças e os tolos, os destituídos de razão. O pintor, portanto, produz um simulacro [eidolon, de onde deriva a nossa palavra ídolo], ou seja, uma representação falsa, uma representação do que não existe ou do que não é verdade, engodo, imagem [eikon] destituída de realidade, como as visões do sonho e do delírio, as sombras projetas no chão ou os reflexos na água (Machado, 2001, pp. 9-10).

Figura 1: À esquerda a Afrodite também conhecida como “Vênus de Milo”, original em mármore esculpida por Alexandre, filho de Menides, cerca de 150 a 100 a.C. À direita o Doríforo, cópia romana do original em bronze atribuído ao escultor Policleto, cerca de 440 a.C. Segundo Gombrich “Muitas das famosas obras de arte clássica que foram admiradas em épocas recentes como representativas de criaturas humanas perfeitas são cópias ou variantes de estátuas produzidas em meados do século IV a.C” (1999, p.105). Ainda que muitas obras do período clássico grego que chegaram até nossos dias sejam cópias romanas do período helenístico, o imaginário contemporâneo de ideal de Corpo perfeito ainda traz essa influência.

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Nos fins do período Helenístico por volta de 100 a.C., os artistas gradativamente perdem os antigos vínculos que tinham com os mitos e ritos que anteriormente eram a força propulsora de suas criações.

A representação do Corpo dá lugar a paisagem e as cenas cotidianas. Isso será recrudescido pela tomada da Grécia pelo Imprério Romano, pois a cultura romana apesar de se apropriar do panteão mítico Grego, era prosaica e não davam a mesma importância aos cultos dos deuses.

Mesmo com a condenação imposta aos artistas pelo pensamento filosófico, as representações gregas deste período é um dos pilares da visualidade do Corpo no Ocidente que irá se desdobrar no idealismo do Renascimento europeu e, posteriormente, de maneira transgressora, na Arte Contemporânea a partir da Performance. “A casa é o Corpo”: Tecidos, músculos, ossos e sangue O rico sentido simbólico dado ao Corpo durante a Idade Média contrasta gradativamente com o avanço da escolástica enquanto pensamento que prevalecerá nas universidades e que abrirá as portas para o pensamento iluminista. Esse reflexo pode ser facilmente apreciado no fim do período Gótico, principalmente na Pintura, quando o grandioso dá lugar aos pequenos detalhes, ou seja, quando o interesse dos artistas se desloca das monomentais esculturas feitas para as catedrais góticas para a observação minunciosa da Natureza.

A esse fenômeno está atrelado a necessidade da volta da representação fiel do Homem e da Natureza – um sentido de volta aos príncipios da Arte grega que gradativamente se distanciou do ideal medieval que evitou a relação com o real (luz, sombra, volume e proporção nos corpos). Batizado de estilo Internacional1, esse fenômeno rapidamente irá contaminar os artistas e dará um novo rumo a representação do Corpo, ainda que sob forte influência cristã que julga o Corpo um receptáculo do sopro divino. O artista que deu concretude a mudança que alia o Corpo humano ao Corpo divino foi Giotto do Bondone (c. 1267-1337). Ainda sob forte influência gótica e, principalmente das obras de arte bizantinas, Giotto trouxe para o plano humano as míticas passagens bíblicas:

1 O termo estilo Internacional utilizado pelos historiadores é uma referência a concepção ainda na época vigente (século XIV) de que planeta Terra era plano e só compreendia a Europa.

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Giotto preferiu seguir os conselhos dos frades pregadores que exortavam os fiéis a visualizar mentalmente, quando liam a Bíblia e as lendas dos Santos, como teria sido a cena da fuga para o Egito da família de um carpinteiro ou a do Senhor sendo pregado na cruz. Não descansou enquanto não reformulou tudo isso em seu pensamento: como se portaria um homem, como agiria, como se impressionaria, se participasse de tais eventos? Mais do que isso: como se apresentaria aos nosso olhos tais gestos em movimentos? (Gombrich, 1999, p. 202).

Os afrescos de Giotto parecem esculturas que respiram. São antes de tudo, protagonistas das passagens míticas cristãs que agora são vividas por seres humanos em carne e osso. O estilo imposto por Giotto afina-se com o Humanismo que floresce pela Europa; a necessidade do Homem de enteder a si mesmo em sua vida cotidiana, de dar respostas concretas aos fenômenos naturais e ainda, a ambição de dominar tais fenômenos.

Como é sabido, o pensamento renascentista europeu é uma idéia distorcida de que a Arte, as Ciências e o Conhecimento atingiram o nível máximo no período clássico grego e que se obscureceu pela Idade das Trevas.

Figura 2: A Lamentação de Cristo, c. 1305. Os afrescos de Giotto assustavam os observadores da época que estavam acostumados com as representações anti-naturalistas da Idade Média. Os corpos pareciam ser reais.

Na representação visual, especificamente na Pintura, a busca por representar a realidade com fidelidade afastou a riqueza, a diversidade e os excessos simbólicos dos ícones da Idade Média e tambérm, qualquer elemento decorativo que pudesse fazer referência a algo sobrenatural.

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A busca por efeitos de ilusão do real na pintura (Trompe l´oil) irá, nos séculos XIV, XV e XVI, revelar gerações de gênios tais como Fra Angelico (1387-1455) Jan van Eyck (1390?-1441), Andrea Mantegna (1431-1506), Piero della Francesca (1416?-1492), Sandro Botticelli (1446-1510), Andrea del Verrocchio (1435-1488), Leonardo Da Vinci (1452-1519), Domenico Ghirlandaio (1449-1494), Miguel Ângelo Buonarroti (1475-1564), Rafael (1483-1520), Giovanni Bellini (1431?-1516) entre outros.

Os mitos cristãos são presença forte nos temas desses pintores, pois trata-se de referendar os dons divinos herdados pelo Homem através do talento individual. Nos séculos supracitados esse sentimento era forte especialmente na Itália de onde emergiu o pensamento renascentista influenciado entre outros fatores, pelo aquecimento do comércio e das inovações tecnólogicas impulsionada pelas grandes navegações.

Nos países onde verificamos o renascimento tardio, a exemplo dos países Baixos e Alemanha, a ênfase na Pintura será maior em relação aos fatos cotidianos e a exploração da forma e seus efeitos ilusórios do que aos temas ligados as passagens religiosa da cristandade. Podemos verificar isso nas obras de pintores como Jan van Eyck e Albrecht Dürer (1471-1528). As novas técnicas de pintura tais como a tinta a óleo, a sistematização da perspectiva e a criação da tela causou tamanho impactos nos pintores que podemos facilmente perceber em suas obras como a realidade informa suas criações e que, antes de tudo, para representar o Corpo era preciso conhecê-lo por dentro.

O Corpo que até a Idade Média era inviolável por sua qualidade divina, passa a ser dissecado, estudado, desmistificado. O interesse pelo Corpo era comum a Arte e a Ciência e a confluência entre essas áreas do conhecimento foi no Renascimento profícua.

Da Vinci é o exemplo mais contudente dessa relação dialógica, pois a partir da observação cujo fim era a representação visual, afirma: “(...) “O sol não se move”, o que prova ter Leonardo antecipado as teorias de Copérnico que mais tarde colocariam Galileu em sérios apuros” (Gombrich, 1999, p.294).

Ainda,

A exploração da natureza era para ele (Da Vinci), em primeiro lugar e acima de tudo, um meio de adquirir conhecimentos sobre o mundo vísivel – conhecimentos de que necessitaria para a sua arte. Pensava que, ao colocá-la numa base científica, poderia transformar a sua

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amada arte da pintura de um ofício humilde numa atividade nobre e prestigiosisa (Idem, 1999, p.294).2

Devemos levar em consideração de que Leonardo Da Vinci não desejava apenas dar status científico a Arte mas também trazer humanidade à nascente Ciência de cunho filosófico/racionalista e ainda, afastar a influência do pensamento vigilante e sufocante da igreja cristã. Nesse sentido, temos o exemplo do médico Andreas Vesalius de Bruxelas (1514-1564) que no clássico De Humani Corporis Fabrica (1543) une a investigação científica em detalhadas dissecações do Corpo representadas em magníficas xilogravuras produzidas sob a orientação do pintor Ticiano (1473-1490) onde a Ciência serve a Arte e vice-versa3.

Contudo é preciso salientar que neste momento o Corpo é despido de sua sacralidade e torna-se objeto da Arte e da Ciência. Não se trata de encarar o Corpo como intermeio da espiritualidade e da corporicidade, mas entendê-lo como entidade biológica humana que como outros elementos naturais envelhece, perece diante das enfermidades e tomba diante da morte. A reivindicação por parte de artistas/cientistas de desvelar os mistérios do Corpo que antes estavam velados pela sacralidade mítica divina os coloca como prometeus que roubam dos deuses - a exemplo do fogo - os segredos mais íntimos da vida humana.

2 Como E.H. Gombrich deixa claro nesta citação, o artista sofre uma desvalorização histórica que vem do pensamento platônico. Na Idade Média e parte do Renascimento, os artistas não gozavam do status e reconhecimento que se irá verificar no Modernismo. Entretanto, a Arte continuará a ser encarada por parte do pensamento acadêmico como delírio, sonho, devaneio, e nunca como um conhecimento subjetivado da realidade. 3 Segundo Viviane Matesco: “Na medicina, a postura de observação e experimentação introduzida por Vesálio revoluciona a tradição de subordinação a um texto filosófico-religioso. Contra o olhar medieval, Vesálio instaura os direitos da observação – daí utilizar técnicas de representação dos pintores para fazer desenhos após dissecações (...) Os “escorchados” nas ilustrações de Vesálio representam esqueletos como se estivessem vivos, cheios de vigor; ao desvincular o morto de seu corpo, permitem a constituição da anatomia, excluindo a morte de seu campo. O corpo como representação passa agora a ser assimilado a processos objetivos; longe do espectro da morte, edifica-se um saber” (2009, p. 29).

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Figura 3: De Humani Corporis Fabrica, 1543, Andreas Vesalius de Bruxelas. Segundo David Le Breton: “Desde Vesalius, a representação médica do corpo não é mais solidária de uma visão simultânea do homem” (2003, p. 18).

Assim, o Renascimento sob a influência humanista impulsionou os artistas a buscarem a partir da observação minunciosa dos fenômenos naturais as suas causas e efeitos, assim como registraram cuidadosamente essas observações, os processos de criação e concepções de técnicas. Trata-se de investir no assalto ao sopro divino mítico para entendê-lo e sistematizá-lo, e nesse caso, o Corpo mereceu atenção especial como podemos apreciar nos escritos dos desenhos de Leonardo Da Vinci, como relata Gombrich: “Leonardo explorou os segredos do corpo humano, dissecando mais de trinta cadáveres. Foi um dos primeiros a se aprofundar nos mistérios do crescimento da criança no ventre materno (...)” (1999, p. 294). O Corpo despojado de sua aura mítica nas representações pictóricas e escultórica dos artistas a partir do Renascimento se tornará concepção obrigatória nas escolas de Arte, principalmente no período Neoclássico (séculos XVIII e XIX). Não só a Arte, mas também a Ciência verá o Corpo como um objeto ou se quisermos, como uma máquina que deve ser minunciosamente dissecada e reproduzida com perfeição em suas mínimas partes e esse ideal tornou-se mais forte com os avanções da tecnociência que investe em próteses corporais perfeitas, clones de embriões, reproduções de órgãos e o retardamento do envelhecimento.

Embora a Ciência venha se desenvolvendo a passos largos com a idéia de superar o Corpo biológico no século XX, o Corpo na Pintura irá sofrer uma deformação em sua representação que é fruto da influência do Barroco, da Arte Oriental e africana, pois a representação do europeu branco como tipo biológico universal não mais presta contas a multiplicidade dos tipos humanos.

Mais tarde, a distorção do Corpo humano se torna significativa e múltipla na Arte Moderna onde cada tendência desse período apresentou soluções representativas diversas. Contudo, até então, há uma separação entre o Corpo do artista e o Corpo representado na Pintura ou Escultura.

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Na segunda metade do século XX o Corpo na Arte ganha um novo status, pois os artistas passam a questionar a separação entre o sujeito e o objeto e consequentemente a distância que separa o artista e sua obra. Assim, a Body Art e a Performance surgem como uma possibilidade de diluir as fronteiras que separam o sujeito/artista e o objeto/obra proporcionando outras possibilidades de vivenciar o Corpo como obra de Arte.

Os ritos do Corpo desencarnado: a síntese sujeito/objeto/artista/obra

Historicamente, a Body Art e a Performance estão ligadas as ações realizadas por tendências das vanguardas européias do início do século XX como as serenatas futuristas e as apresentações agressivas e sarcásticas feitas pelos dadaístas e pelos surrealistas. A Body Art entendida como tendência da Arte Contemporânea se limita as décadas de 1960 e 1970 e está pautada em utilizar o Corpo do artista e seus fluídos como obra de Arte.

As ações do Body Art geralmente são bastante violentas, chocantes e flertam diretamente com o sadomasoquismo, pois esses artistas se mutilam e se escarificam em público. O mais notável grupo de artistas dessa tendência é conhecido como Grupo de Viena e foi composto por Günter Brus (1938 -), Otto Mühl (1925 -), Arnulf Rainer (1929 -), Hemann Nitsch (1938 -) e Rudolf Schwarzkogler (1940 – 1969). Os Accionistas de Viena, como também eram chamados, foram proibidos de se apresentarem em grande parte da Europa Ocidental por conta da violência de suas ações.

Nitsch um dos integrantes do grupo foi preso na Áustria e na Grã-Bretanha e Schwarzkogler morreu aos 29 anos por não resistir aos feridos em uma de suas apresentações. Mais tarde, a Body Art vai agrupar diversas tendências internas mais amplas que posteriormente irá se caracterizar como ações performáticas ou Performance. Hoje vários estilos de comportamento massificado, incluindo a Moda, se utilizam do termo Body Art para justificar ações que incluem o fetiche do Corpo4

4 Entre outros casos temos os exemplos do Scarification, escarificação ou scar – como é conhecida no Brasil –, que é uma modalidade de modificação corporal permanente feita a partir de cicatrizes realizadas na pele com bisturis em cortes rasos; da Tatuagem (também referida como tattoo) ou dermopigmentação, forma muito popular e antiga de inscrição corporal onde desenhos permanentes são feito na pele humana que, tecnicamente, são uma aplicação subcutânea obtida através da introdução de pigmentos por agulhas, e por fim, a Suspensão Corporal onde se suspende o corpo do praticante a partir de ganchos feitos por perfurações temporárias na pele abertas pouco antes de ocorrer a ação de ficar suspenso.

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Figura 4: À esquerda, Rudolf Schwarzkogler e suas ações públicas de mutilação. Na imagem à direita, obra de Günter Brus, Transfusion, 1967.

Assim, as ações performáticas ou simplesmente Performance, está ligada as tendências das Artes Visuais datada a partir de 1962 que buscam desfetichizar o corpo humano através de ações públicas, eliminando toda a exaltação à sua beleza aparente e trazê-lo à sua função mais elementar, ou seja, ao de instrumento biológico perecível.

Como citado anteriormente, historicamente desde a Antiguidade Grega, a Arte enaltece as qualidades plásticas do Corpo idealizado anatomicamente que se desdobra numa rica iconografia secular. No sentido de questionar a contemplação do Corpo como ideal de beleza, os artistas performáticos investigam as possibilidades corporais através de suas qualidades gestuais levadas ao extremo da resistência e energia física, assim como na busca pelo desvelamento dos tabus (pudores e inibições) sexuais e seu poder de perversidade, muitas vezes utilizando fluídos corpóreos (urina, saliva, esperma, fezes e sangue menstrual) como elementos expressivos.

Percebemos que a Performance proporciona aos artistas que a utilizam como meio expressivo, não mais uma relação artista/obra, ou melhor, sujeito/objeto, mas uma ação promíscua onde o próprio artista é a obra e que as fronteiras entre o sujeito e o objeto são dialógicas, concorrentes e complementares (MORIN, 1990). Na verdade, a Performance como meio de expressão artística, questiona simultaneamente a natureza do Corpo físico como uma proposta artística que se legitima na Cultura. Ao retomar práticas míticas e rituais (escarificações, pantomima, inscrições no corpo) que estão no próprio fundamento da Arte, da Magia e da Religião de inúmeras culturas (Lévi-Strauss, 2003), a Performance e suas ações por vezes violentas, questionam as fronteiras entre a Natureza e a Cultura, pensam o Homem

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simultaneamente como um corpo biológico e um meio artístico expressivo de comportamentos.

Por fim, no caso da Performance, o público é confrontado não com a reprodução de hábitos cotidianos como em um jogo de espelhos, mas o artista como obra expondo uma realidade não encenada e literal que envolvem questionamentos sobre a alienação do corpo físico ou confrontando-o com os interditos culturais. Ou melhor, o artista e seu Corpo são o próprio canal de comunicação (emissor) que dispensa contextos narrativos. Assim, ao agir como sujeito e objeto artístico, o artista expõe o imaginário do Corpo e seus reflexos culturais em confronto com o público.

Ao mesmo tempo em que a Performance dispensa os contextos narrativos, trabalha com todos os canais de percepção – fator privilegiado na contaminação com outras linguagens artísticas – e isso a diferencia em relação a Pintura, por exemplo. Enquanto o artista performático coloca em evidência todos os canais de percepção de seu corpo, produz significados simbólicos que ao dispensar o texto narrativo teatral, se utiliza dos gestos (pantomima) que remetem aos códigos culturais estabelecidos e enraizados que são repetidos pela tradição cultural (Mauss, 1974).

Considerações Finais O objetivo dessa comunicação foi traçar brevemente a complexidade das relações da representação do Corpo na História da Arte no Ocidente pautando-se pontualmente no contexto socio-histórico da estatuária clássica grega, nas pesquisas artístico-científicas do Renascimento europeu e na Arte Contemporânea a partir da Performance.

A trajetória mítica proposta neste texto tem como proposta aprofundar os questionamentos dos fundamentos do pensamento Ocidental que orientou os sentidos simbólicos da noção de Corpo e que se reflete nas obras de arte.

Nesse sentido, percebe-se a gradativa separação entre o corpo ideal e o corpo biológico na Grécia antiga, a consolidação dessa separação sob o pretexto do corpo como receptáculo do espírito na mitologia cristão no Renascimento e por fim, o reencontro mítico-ritual entre sujeito/objeto ou artista/obra na linguagem contemporânea da Performance.

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Reflexões Sobre os Problemas Ambientais Vivenciados na Atualidade e o Papel da Educação

Fátima Kzam Damaceno de Lacerda Graduada em Licenciada em Química e Engenharia Química (UERJ). Mestrado em Tecnologia de Processos Bioquímicos (EQ/UFRJ). Doutorado em Meio Ambiente (PPGMA/UERJ). Atualmente é Professora do Departamento de Processo Bioquímicos do Instituto de Química da UERJ e Diretora de tutoria do CEDERJ.

Resumo Este trabalho utiliza o conceito de rede sociotécnica, tal qual proposto por Bruno Latour, para analisar o papel da educação na ampliação da consciência ambiental com vistas a superação dos problemas ambientais vivenciados na atualidade. A relação sujeito-objeto na Educação e os coletivos envolvidos na Educação Ambiental são discutidos numa perspectiva de não modernidade. A Educação Ambiental nos cursos de formação de professores é problematizada e a realização de uma Ecologia Política é defendida como forma de desmanchar a fronteira artificial entre a ciência e a política.

Palavras-chave: Educação Ambiental, Rede Sociotécnica, Ecologia Política, Formação docente.

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Celebração de bodas da razão com o coração Para que a gente escreve, se não é para juntar nossos pedacinhos? Desde que entramos

na escola ou na igreja, a educação nos esquarteja: nos ensina a divorciar a alma do corpo e a razão do coração.

Sábios doutores de Ética e Moral serão os pescadores das costas colombianas, que inventaram a palavra sentipensador para definir a linguagem que diz a verdade.

(Eduardo Galeano, 2003, p. 119)

O presente artigo pretende relacionar a racionalidade proposta

pela ciência tal como a conhecemos hoje com a “crise paradigmática” da contemporaneidade, a fim de aprofundar as reflexões sobre os motivos que levaram o ser humano a mergulhar nos problemas ambientais vivenciados na atualidade. O fundamento que possibilita atribuir parte da responsabilidade pelos problemas ambientais à racionalidade hegemônica caracteriza o campo da antropologia das ciências e das técnicas que assume a indissociabilidade entre o epistemológico e o político, noção-chave para a construção desse trabalho. Neste sentido, as possibilidades de modificações desta realidade através da educação formal são analisadas utilizando o conceito de rede sociotécnica como entendido por Bruno Latour. Serão analisados os diferentes enfoques da relação sujeito-objeto na educação e discutidos os conceitos de multi/inter/transdisciplinaridade e transversalidade, bem como o papel da universidade na construção de uma educação ambiental efetivamente transformadora da consciência, para então problematizar a relação entre a educação ambiental e os cursos de formação de professores.

1. A crise da racionalidade e os limites da ciência “moderna”:

moderno quem? A ciência dita moderna foi alicerçada por princípios fundamentais do pensamento clássico no qual as palavras-chave são legislar, disjuntar e reduzir. Sendo assim, a história do pensamento ocidental foi comandada pelo paradigma de disjunção, ou seja, da separação com o intuito de conhecer todas as partes para melhor entender o todo e, por fim, formular uma lei geral que desse conta da explicação, previsão, e controle dos fenômenos observados. Desta forma, o conhecimento foi então atribuído ao aprofundamento do conhecimento das partes. Nesta perspectiva, percebendo o real organizado segundo uma essência

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racional, a modernidade1 concebeu o conhecimento privilegiando a ideia de especialização, organizando e parcelando o saber em disciplinas. Além disso, estabeleceu uma hierarquia entre as ciências, de acordo com o nível de cientificidade, conferindo maior importância àquelas que utilizassem o ferramental matemático. Com efeito, separou-se o sujeito do conhecimento do objeto conhecido, com o intuito de suprimir as subjetividades e de atingir a neutralidade e a razão lógica. É importante salientar ainda que a ciência moderna, além de alicerçada no dualismo sujeito/objeto, foi construída baseada em tantos outros dualismos – razão/emoção, corpo/mente, certo/errado, ser humano/natureza – este último, supostamente, um dos grandes responsáveis pelos problemas ambientais profundos vivenciados em nível planetário, onde prevalecem as ideias utilitaristas e o antropocentrismo2. Sobre este assunto, Morin (1996) enfatiza que, em nossos dias, triunfa sobre a Terra a falsa racionalidade, ou seja, a racionalização abstrata e unidimensional. A inteligência parcelada, compartimentada, mecanicista, disjuntiva, reducionista tende a quebrar o complexo do mundo em fragmentos disjuntos, fracionando os problemas, separando aquilo que está unido, unidimensionalizando o que é multidimensional e, portanto, dando origem, segundo o autor, à crise paradigmática da contemporaneidade. Para Morin, a própria razão científica assinala os limites da racionalidade, já que não dá mais conta de resolver os problemas que se apresentam, e isso pode ser comprovado com a introdução do conceito da incerteza na termodinâmica, na física quântica e na cosmofísica – a chamada primeira revolução científica –, e com o advento da revolução sistêmica nas ciências da terra e na ciência ecológica – tida como a segunda revolução científica (Morin e Moigne, 1 O conceito de modernidade, tal qual aqui se apresenta, acompanha as ideias de Harvey (1992, p.

19) que, ao citar outros autores, relaciona-o ao positivismo, ao tecnocentrismo, ao racionalismo, à crença no progresso linear, nas verdades absolutas, no planejamento racional de ordens sociais ideais e à padronização do conhecimento e da produção. Podemos ressaltar também o pensamento de Bauman (2001) que apresenta a fluidez como característica intrínseca da modernidade e das relações chamadas modernas. Cabe salientar também que alguns autores, como Bruno Latour, questionam a ideia de uma separação entre sujeito-objeto, entre natureza-sociedade, proposta pelo pensamento moderno, e defende que, na realidade, esta separação nunca ocorreu. Seu posicionamento baseia-se na noção segundo a qual a distinção entre o que é o sujeito e o objeto, a natureza e a cultura, conceito e contexto, fatos científicos e valores sociais pode ser superada a partir de uma investigação sobre a natureza do conhecimento científico. Cf. Latour (1994, 2001, 2004). É nesta linha que iremos desenvolver nosso trabalho.

2 Conforme apontado na Nota 1, a relação estabelecida aqui não é evidente. Trata-se da tradução/operacionalização/concretização da concepção de ciência adotada – que se encontra em um nível epistemológico/conceitual/cognitivo – em ações cotidianas constituidoras da realidade, isto é, em determinado contexto/ cultura/ sociedade, tal como apresentado por Latour op.cit.

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2000, p. 206). Tais acontecimentos evocam o desapego das certezas constituídas, reflexões sobre a natureza do conhecimento e a comunhão de diversos saberes. No entanto, apesar das evidências, a forma hegemônica de racionalidade continua sendo utilizada para justificar estratégias embasadas em explicações científicas de duvidosa imparcialidade, elaboradas por governantes e grupos que possuem o poder decisório. Para discutir esta questão não podemos deixar de ressaltar que o ideário do paradigma moderno hegemônico3 está relacionado com um modelo de sociedade que envolve projetos de poder e de dominação, elaborados e conduzidos por grandes aglomerados transnacionais, acentuando o quadro de problemas apresentados pelos países “periféricos”, não só do ponto de vista econômico e social como também ambiental. Neste contexto, no processo de desenvolvimento brasileiro, o modelo racionalista trouxe e continua trazendo profundas implicações ambientais para o país, ampliando as desigualdades sociais, a exclusão, a pobreza e a fome. Exige-se, portanto, rever nossa concepção da natureza e de nossas relações com ela, lembrando que vivemos num tempo em que as ciências ainda reivindicam uma neutralidade impossível frente às vicissitudes sociais, políticas, econômicas e ambientais. Para Morin (1996) a “crise paradigmática” da contemporaneidade se traduzirá numa revolução de pensamento, uma revolução muito difícil, lenta e múltipla, mas que poderá ajudar na superação da tendência dominante em nossa sociedade de privilegiar, nas decisões políticas, o pensamento econômico e técnico. Para o autor, é urgente a elaboração de um pensamento complexo que compreenda a multidimensionalidade das questões políticas. (Morin, 2002). Mais do que compreender a multiplicidade das questões políticas, pretendemos aqui defender a noção presente em Latour (1994) sobre a indissociabilidade entre fazer ciência e fazer política, conceitos e contextos, fatos científicos e valores: “Se existe algo que somos incapazes de fazer […] é uma revolução, quer seja na ciência, na técnica, em política ou filosofia.” uma vez que na nossa prática de mediação diária sempre misturamos épocas, gêneros e

3 Morin (1997, p. 21) conceitua “paradigmas” como estruturas de pensamento que de modo

inconsciente comandam nosso discurso. Alguns autores utilizam a expressão “hegemônicos”, “universais” ou “totalizantes” para se referir aos paradigmas da sociedade ocidental moderna (Harvey, 1992). Para Latour (1994, pp. 40-44) a invencibilidade da Constituição moderna e, portanto, a sua hegemonia, está calcada na invisibilidade do trabalho de mediação que constrói os híbridos: ela permite a proliferação dos híbridos e ao mesmo tempo nega a sua existência, detendo desta forma todas as fontes de poder.

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pensamentos (Latour, 1994, p. 69). Portanto, diferente de Morin, não acreditamos nas rupturas radicais, as chamadas revoluções, “que formam engrenagens irreversíveis para impedir-nos, para sempre, de voltar atrás.” (Latour, 1994, p. 71). Com efeito, precisamos, não só para o Brasil, mas para todo o planeta, de um modelo de desenvolvimento calcado na sustentabilidade4, na resiliência e no inter-relacionamento de tudo com tudo, modelo este que certamente não poderá ser atingido através, apenas, da racionalidade científica. No entanto, questionamos, tal qual Latour: “de onde vem a impressão tão moderna de viver um tempo novo que rompe com o passado?” (Latour, 1994, p. 71). Em Brandão (2005), discutem-se os desdobramentos, no campo da educação, da crise do modelo de ciência fundamentado nos conceitos de causalidade e determinação, e fecundado na ideia de uma verdade científica definitiva. Para a autora, a crise dos paradigmas, longe de desarmar os profissionais da educação, proporciona “melhores condições de lidar com os limites e as possibilidades do conhecimento.” (Brandão, 2005, p. 8). E ainda: Cada vez mais fica evidente a incomensurabilidade dos problemas humanos e sociais decorrentes da complexidade das relações que os homens estabelecem entre si e com a própria natureza. Cresce entre os pesquisadores a consciência de quanto mais conhecimento se acumula, mais conhecimento se tem da profundidade da nossa ignorância. A cada passo à frente, nos diferentes campos do conhecimento, inúmeras “verdades” são questionadas, revistas e corrigidas levantando outras questões, e motivando mais conhecimento. O que antes se julgava conhecer reaparece, sob novas lentes, graças a esta permanente inquietação dos homens a respeito da natureza e da sociedade. (Brandão, 2005, p. 7). Para Latour, tal inquietação se fortalece na medida em que não se pode mais esconder a existência dos híbridos5. Essa é a essência do

4 Ressaltamos aqui o conceito de sustentabilidade proposto por Diegues (1992), que se contrapõe à

concepção dominante de “desenvolvimento sustentável”, na medida em que sugere a autonomia de cada localidade (sociedades sustentáveis) ao invés da submissão às diretrizes globais. Como bem aponta Leff (1999, p. 123, apud Dib-Ferreira, 2010) “o discurso do desenvolvimento sustentável não é homogêneo. Pelo contrário, expressa estratégias conflitantes que respondem a visões e interesses diferenciados.”

5 Híbrido – Segundo o dicionário é um adjetivo que designa o que é “1- Originário de cruzamento de espécies diferentes” ou “2- Que se afasta das leis naturais” (Ferreira, 1980, p. 899). Para Latour a expressão é utilizada para designar a mistura entre humanos e não-humanos, naturezas e culturas, e tantas outras misturas.

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paradoxo moderno: embora o ponto central da Constituição moderna seja negar, “tornar invisível, impensável, irrepresentável o trabalho de mediação que constrói os híbridos” (Latour, 1994, p. 40), o mundo moderno pararia imediatamente de funcionar caso este trabalho fosse interrompido, uma vez que ele vive da mistura entre os objetos e os humanos, as ciências sociais e naturais, a natureza e a cultura. Mas, que mundo é esse que cabe à ciência a representação dos não-humanos, mas lhe é proibida qualquer possibilidade de apelo à política; cabe à política a representação dos cidadãos, mas lhe é proibida qualquer relação com os não-humanos produzidos e mobilizados pela ciência e pela tecnologia? (Latour, 1994, pp. 33-34). Os limites da ciência moderna, portanto, estariam expostos na medida em que percebemos que os muros, as divisões, as classificações são falsas, elas não existem e nunca existiram. Estavam presentes somente para nos dar segurança de estarmos perto das luzes: “quem não ansiou por esta aurora e não vibrou com suas promessas?” (Latour, 1994, p. 41). Neste sentido, utilizando as ideias de Latour, podemos enfim acreditar que jamais fomos modernos, e seguir em frente utilizando outra leitura de mundo. É na perspectiva de contribuir para a busca de novos caminhos, sem, no entanto nos atrelar a modelos engessantes e estanques, é que partiremos da proposta de não disjunção, ou seja, utilizaremos o enfoque da sutura de elementos para discutir o papel da educação na ampliação da consciência ambiental.

2. A educação e a ampliação da consciência ambiental

Tornou-se lugar comum o discurso sobre a necessidade de educar a fim de ampliar a consciência ambiental de estudantes, dos indivíduos, da sociedade6. Antes de nos aprofundarmos nesta discussão, uma pergunta se faz importante: A possibilidade de reestruturação de pensamentos através de uma educação formal é uma ideia trivial? O estudo, inicialmente, investiga este questionamento a partir das propostas de Edgar Morin (1997) e István Mészáros (2005), para então utilizar a antropologia das ciências e das técnicas na busca da

6 Nesta perspectiva Guimarães (2004) também aponta a necessidade de ressignificação da noção de

cidadania no campo ambiental, uma vez que a afirmação sobre a importância da educação na formação de cidadãos tornou-se um jargão frequentemente repetido nos discursos.

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compreensão das múltiplas relações existentes na educação, sejam estas visíveis ou não. Conforme apresentado, os problemas ambientais enfrentados na atualidade trazem consigo uma história de desligamento do ser humano com a natureza, de dominação do homem pelo homem, de desenvolvimento a qualquer custo e da “cultura” do lucro. As relações de compromisso com os outros homens, seres vivos e com o próprio planeta deixam de existir quando a única lógica possível é a lógica do capital. Porém, ao entrelaçar as temática da queda do muro de Berlim e, portanto, o fim do socialismo, com as primeiras conferências sobre o estado global do planeta ocorridas no “miraculoso” ano de 1989, Latour afirma que “ao tentar acabar com a exploração do homem pelo homem, o socialismo multiplicou-a indefinidamente” (Latour, 1994, p. 13) e ainda que, “ao tentar desviar a exploração do homem pelo homem para uma exploração da natureza pelo homem, o capitalismo multiplicou indefinidamente as duas.” (Latour, 1994, p. 14). Sobre esta dupla tragédia, Latour se posiciona: […] os socialismos destruíram ao mesmo tempo seus povos e seus ecossistemas, enquanto que os do Ocidente setentrional puderam salvar seus povos e algumas de suas paisagens destruindo o resto do mundo e jogando os outros povos na miséria. Dupla tragédia: os antigos socialismos pensam poder remediar seus dois problemas imitando o Oeste; este acredita ter escapado aos dois e poder, na verdade, ensinar lições enquanto deixa morrer a Terra e os homens. Acredita ser o único a conhecer o truque que permite ganhar sempre, justamente quando talvez tenha perdido tudo. (Latour, 1994, p. 14). Outros autores têm abordado em seus trabalhos a necessidade de restabelecer uma ligação entre os seres humanos entre si e com a natureza, enfatizando conceitos como os de cuidado, responsabilidade, ética, solidariedade, espiritualidade, amor (Boff, 1999; Jonas, 2006; Morin, 1998; Unger, 1991; Maturana, 1999). Neste sentido, acreditamos que estas concepções são importantes se não forem tomadas como a salvação para o naufrágio determinado pelos modernos. Chamamos a atenção aqui para o equívoco do elogio às margens e à periferia ao partir-se do pressuposto segundo o qual existe um centro totalitário comandando nossos destinos, quando, na realidade, os coletivos e as redes que lhes dão sentido são uma coisa só. (Latour, 1994).

Dentro deste contexto, a educação tem sido apontada como ferramenta imprescindível, mas não a única, para o esclarecimento da

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população com vistas à ampliação de uma consciência ambiental que possa reverter este quadro. Lima (1999, 2002), por exemplo, analisando a relação entre a educação e o meio ambiente, enfatiza a importância da educação na mudança social, tratando-a como uma, entre outras práticas sociais capazes de compor uma estratégia integrada de mudança social, e não como prática isolada ou determinante no processo de transformação das relações de poder na sociedade7. Para o autor, esta posição articula uma síntese entre as premissas defendidas pelos teóricos da “Escola Nova” (escola com poder para mudar a sociedade) e os “Reprodutivistas” (educação como reprodutora de desigualdades sociais), entendendo a educação e a escola como um espaço possível e importante de luta contra-hegemônica, mesmo que de forma limitada (Lima, 1999, p. 147). Afinal, de acordo com o argumento que nos propomos a construir neste trabalho, nenhuma atitude ou pensamento poderá contribuir para alguma mudança se não incorporar em si mesma uma crítica à concepção hegemônica de ciência. Isso significa dizer que ampliação de consciência é escolha política que está intrinsecamente relacionada à escolha epistemológica.

Então, cabe perguntar, que tipo de educação pode dar conta desta modificação de mentalidade tão necessária?

Tanto Mészáros quanto Morin, inspirados em Marx8, utilizam a ideia de que “o próprio educador precisa ser educado” para enfatizar a necessidade de uma qualificação docente que dê conta de outras perspectivas, uma vez que a educação que temos recebido em nossas escolas privilegia a compartimentalização dos saberes desvinculados de um contexto mais amplo, a memorização de conteúdos, a manutenção do status quo.

Segundo Mészáros (2005), as instituições de ensino possuem a missão de reprodução da estrutura de valores que contribui para perpetuar uma concepção de mundo baseada na sociedade mercantil e na formação de força de trabalho qualificada requerida aos anseios do capital. Para ele é mister romper com a lógica do capital na área da educação a fim de alterar o sistema de “internalização” que legitima os interesses dominantes, não havendo espaço para reparos institucionais do tipo “passo a passo”: 7 Para Latour (2001, p. 355) esta expressão “não se refere a uma entidade existente em si mesma, governada por

suas próprias leis, oposta a outras entidades como a natureza; significa o resultado de um acordo que, por razões políticas, divide artificialmente as coisas em esfera natural e esfera social”. O autor prefere utilizar a palavra “coletivo” para designar as múltiplas associações entre humanos e não humanos no seio de uma corporação. Ao longo deste trabalho utilizaremos o “coletivo” no sentido proposto pelo autor.

8 Texto original em “Teses sobre Feuerbach” de Marx, transcrito em Mészáros (2005, p. 24).

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A razão para o fracasso de todos os esforços anteriores, e que se destinavam a instituir grandes mudanças na sociedade por meio de reformas educacionais lúcidas, reconciliadas com o ponto de vista do capital, consistia - e ainda consiste - no fato de as determinações fundamentais do sistema do capital serem irreformáveis [...]. É por isso que é necessário romper com a lógica do capital se quisermos contemplar a criação de uma alternativa educacional significativamente diferente (Mészáros, 2005, pp. 26-27). Por seu turno, Morin (1998) ao analisar o papel do sujeito responsável, afirma que “por tudo isso é que atualmente não podemos confiar na educação, pois, antes de mais nada, seria necessário educar os educadores, para que estes pudessem esclarecer os alunos” (Morin, 1998, p. 75). O autor propõe a “restauração” da figura do “sujeito” atrelado à consciência da sua responsabilidade pessoal no destino comum da humanidade e praticante do “auto-exame” e da “auto-ética”. Em que pese a bela e importante definição de sujeito de Morin, esta será revista/melhor examinada na proposta educativa que vai ser enunciada aqui, uma vez que a questão epistemológica da qual falamos é política e ontológica: a concepção de ser é modificada. Para Morin, o sujeito permanece sujeito, sem considerar, como em Latour, que a inumanidade é uma parte de nossa humanidade. Então, para Mészáros é impossível uma solução educacional reconciliada com a lógica do capital. Para nós esta afirmação é tão verdadeira quanto a de que é impossível uma solução educacional reconciliada com a lógica da ciência tal qual a conhecemos, posto que o capital e a ciência são como os dois lados da mesma moeda: ambos são regidos pela mesma racionalidade. Para aprofundar tais questões, confrontaremos as ideias aqui discutidas sobre o paradigma da modernidade com a concepção de Bruno Latour (1994) de que “jamais fomos modernos”. O autor problematiza a ideia de uma separação entre sujeito-objeto, entre natureza-sociedade, utilizada pelo pensamento moderno, e propõe que, na realidade, esta separação nunca ocorreu. O seu pensamento assinala que a distinção entre o que é verdadeiro e o que é falso, entre os humanos e os não-humanos, o sujeito e o objeto, os ocidentais e os não-ocidentais, a natureza e a cultura, são construções históricas e culturais, não emergindo naturalmente dos fatos: “percebemos que nem bem os modernos separam os humanos de não humanos, nem bem os “outros” superpõem totalmente os signos e as coisas.” (Latour, 1994, p. 102).

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Portanto, se o conhecimento produzido pelas sociedades que têm a ciência como instrumento de leitura do mundo é de mesma natureza que àquele produzido pelas sociedades que não possuem tal instrumento – isto é, nenhuma delas separa a natureza da cultura – então não há razão fundada na epistemologia que justifique a hierarquia entre os saberes. Em outras palavras, se ambas as formas de conhecer a realidade são híbridas de natureza e cultura, esta forma de conceber a ciência pode se traduzir em um modo de se conceber educação em ciência (Branquinho, 2004; Branquinho e Santos, 2007).

A partir desta interpretação de Latour, pensamos na dinâmica de modificação da realidade através da educação, não como uma impossibilidade mediada pelos entraves da fragmentação imposta pela modernidade, mas como um processo estabelecido pelas diferentes interrelações entre os múltiplos produtores de conhecimento de uma rede sociotécnica na qual não se justifica uma disposição hierárquica entre tais atores. Essa concepção de educação deve considerar, por um lado, que objetos são “quase-sujeitos”, dotados de capacidade de ação, tal como sujeitos são “quase-objetos”, submetidos que estão às ações de diferentes atores da rede, humanos e não-humanos. Tal des-hierarquização dos atores abre caminho para uma educação diplomática, mais democrática.

Desta forma, as rupturas, as transformações, os rompimentos com o nosso passado são inócuos, na medida em que entendemos que não somos completamente diferentes dos “outros”, “não somos exóticos, mas sim comuns.” (Latour, 1994, p. 125). Desde sempre misturamos nossas crenças, nossos deuses, nossas paixões com os objetos técnico-científicos que inventamos nos laboratórios. As redes heterogêneas que formam os coletivos desde sempre nos ensinam que “é ainda mais difícil acreditar, sem hesitar, nas virtudes incomparáveis das revoluções políticas, médicas, científicas ou econômicas” (Latour, 1994, p. 125). Na concepção de Latour, “o reducionismo nunca foi aplicado ao mundo moderno, embora este mundo acreditasse que o estava aplicado a tudo! Nossa mitologia é exatamente a de nos imaginarmos radicalmente diferentes (...)” (Latour, 1994, p. 114).

Então, nosso suporte teórico é a noção de objeto híbrido que participa de redes sociotécnicas, por entender que “vivemos em sociedades que têm por laço social os objetos fabricados em laboratório”, (Latour, 1994, p. 27) e que estes objetos - “quase sujeitos” - compartilham conosco a fabricação da nossa própria existência.

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Nesta linha, utilizaremos os pressupostos da antropologia comparada, simétrica9, aquela que considera que o erro e a verdade possam ser tratadas da mesma forma, utilizando “as mesmas categorias, as mesmas epistemes e os mesmos interesses” (Latour, 1994, p. 94). Aquela que acredita na não separação entre as ciências sancionadas e as ciências proscritas, permitindo assim que as redes10 possam ser olhadas através de um “não-lugar”, onde seja possível vislumbrar o trabalho de mediação. Este “não-lugar” não é um lugar vazio, pois é lá que os quase-objetos, quase-sujeitos proliferam. Segundo Latour, longe de ser impossível, inalcançável, este é justamente o “terreno de todos os estudos empíricos realizados sobre as redes.” (Latour, 1994, p. 95).

Antes de abordamos as questões relativas à Educação Ambiental e suas redes, faremos uma breve descrição de como a relação sujeito-objeto tem sido interpretada/vivenciada na Educação.

3. A relação sujeito-objeto na Educação: o que é sujeito e o que é

objeto nas questões educacionais? A maneira como encaramos a educação apresenta estreita relação com o modo como vemos o mundo. Vários autores ressaltam que as relações no fazer pedagógico modificaram-se muito pouco ao longo do tempo, pois elas sempre foram pautadas em um fazer de reprodução segundo a ótica das classes dominantes e baseadas exclusivamente nos paradigmas do cientificismo/mecanicismo, acentuando assim uma visão dualista das coisas: o certo versus o errado, o claro versus o escuro, o masculino versus o feminino, a razão versus a emoção, a mente versus o corpo, o sujeito versus o objeto (Almeida, 1997; Morin, 1997; Ardoino, 2001; Brandão, 2005). Essas dicotomias são reforçadas pelo fato do conhecimento científico sobre a realidade ter obtido o estatuto de

9 Latour em seu livro “Políticas da Natureza” registra que abandonou o princípio da simetria utilizado

no “Jamais fomos modernos” no que se refere à análise do artefato da Ciência e da Política, substituindo-o por um igual respeito pelas ciências e pelas políticas. Aqui o princípio continuará a ser utilizado com a conotação original do autor.

10 Segundo Castells (1999, p. 566), redes são estruturas abertas formadas por nós interconectados capazes de se expandir de forma ilimitada. Ao analisar a revolução da tecnologia da informação na contemporaneidade, o autor afirma que “nossas sociedades estão cada vez mais estruturadas em uma oposição bipolar entre a rede e o ser”, numa lógica em que “o poder dos fluxos é mais importante que os fluxos do poder”. (Castells, 1999, p. 41 e 565). Para Latour (1994, p. 76), no entanto, é nas redes que “residem as capacidades de conectar e separar, ou seja, de produzir o espaço e o tempo” na composição dos coletivos de humanos e não humanos. É esta última visão - a rede sociotécnica – que será adotada para nortear nossas discussões.

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conhecimento verdadeiro, exatamente por tentar examinar a natureza (o objeto-em-si) separada da cultura (os homens-entre-eles): dentro do laboratório “asséptico” o conhecimento se tornou confiável (Latour e Woolgar, 1997). Dando continuidade, procuraremos problematizar a relação sujeito-objeto no que se refere às práticas pedagógicas, com ênfase na realidade brasileira, a partir de um simples questionamento: é evidente que o sujeito é sujeito e que o objeto é objeto? Nos parece que, apesar da simplicidade da pergunta, a resposta não é assim tão óbvia. Segundo Morin (1996) a noção de sujeito é extremamente controvertida e manifesta-se de forma paradoxal: é simultaneamente evidente e não evidente. Ele ainda ressalta que não podemos encontrar a menor sustentação para a noção de sujeito na ciência clássica uma vez que esta exclui sempre o observador de sua observação, já que a subjetividade seria vista como fonte de erros. Milton Santos (2004), analisando o papel e as características dos objetos ontem e hoje, concorda com Latour (1994) quando diz que atualmente vivemos num mundo de objetos, os objetos técnicos, que se apoderam do nosso cotidiano e viram objetos-atores, objetos que se transformam em sujeitos. Neste contexto, as ações do ser humano comum não poderiam escapar do mesmo destino: assim como os objetos, elas também se baseiam na ciência e na técnica, ou seja, repletas de funcionalidade e materialidade. Ao tentar resgatar a importância da convivência e do respeito nas relações educativas, Maturana (1999, p. 30) aponta que o educar ocorre todo o tempo e de maneira recíproca. Em suas palavras “Como vivermos é como educaremos, e conservaremos no viver o mundo que vivemos como educandos. E educaremos outros com nosso viver com eles, o mundo que vivermos no conviver”. Se estamos vivendo num mundo de objetos e de ações funcionais, certamente esta vivência está sendo levada para as salas de aula. Quais as implicações no processo educativo de se viver num mundo de objetos sem a consciência precisa de seu papel de sujeitos?

Assim, as diferentes visões de homem na produção do conhecimento trazem grandes implicações/reflexos nas salas de aula e no fazer pedagógico no que diz respeito à relação sujeito-objeto. A seguir, utilizaremos a perspectiva psicológica e as teorias do conhecimento para melhor entender estas influências.

Segundo Florentino e colaboradores (2003), a partir da perspectiva psicológica, quatro visões de homem poderiam ser destacadas; duas das

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quais o homem é encarado sem levar em conta as suas condições históricas e sociais (Behaviorismo e Gestaltismo); e duas outras que encaram o homem a partir da relação fundamental com o mundo e pressupõe a relação sujeito-objeto, sendo as principais contribuições as de Piaget e Vigotsky.

O behaviorismo, por exemplo, encara o homem como uma consequência das influências ou forças existentes no meio ambiente, fez parte do grupo de teorias chamado associacionismo, utilizando uma objetividade localizada no paradigma positivista, que concebe o homem como um ente a-histórico, desvinculado da realidade social. Trabalha com a hipótese de que o comportamento do homem pode ser controlado através da aplicação do método científico e, portanto, orienta-se segundo a fragmentação da unidade indissolúvel entre sujeito e objeto. Desta forma, ocupa-se do objeto, deixando o sujeito à mercê das especulações metafísicas descartando o papel da consciência e da subjetividade, enfatizando a superioridade do objeto na relação do conhecimento, ou seja: “o sujeito não é protagonista, é até esquecido ou anulado neste processo”. Assim, no behaviorismo o homem é restringido a relações materiais, sejam elas fisiológicas ou ambientais, tudo está determinado por ações e relações de causa e efeito: o sujeito é anulado pelo objeto (Barrenechea, 2003, p. 14).

A filosofia da gestalt contrapõe-se ao behaviorismo por possuir uma base epistemológica do tipo racionalista e por pressupor que todo conhecimento é anterior a experiência, sendo fruto do exercício de estruturas racionais, pré-formadas no sujeito. Se a unilateralidade do positivismo consiste em desprezar a ação do sujeito sobre o objeto, a do racionalismo consiste em desprezar a ação do objeto sobre o sujeito. A Gestalt11 privilegia o sujeito cognoscente e nega a interferência do objeto no conhecer numa postura que é e o extremo contrário do behaviorismo, portanto podemos dizer que esta desconhece o objeto e o behaviorismo, o sujeito (Florentino et al, 2003).

Num segundo grupo de teorias, denominada psicologia genética, leva-se em conta a interação homem-mundo (sujeito-objeto). Os trabalhos de Piaget levaram-no a ideia central de que o conhecimento não procede nem da experiência única dos objetos nem de uma programação inata pré-formada no sujeito, mas de construções sucessivas com elaborações constantes de estruturas novas: “Nessa ótica,

11 Cf. Rodrigues (2002).

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sujeito e objeto não se opõem, mas interagem. Há uma articulação entre consciência e o mundo. Ambos constituem uma totalidade.” (Barrenechea, 2003, p. 15). Acontecem desequilíbrios entre sujeito-objeto e para superá-los, tornam-se necessários processos de adaptação, através de duas dinâmicas: a assimilação na qual o sujeito age sobre os objetos apropriando-se das estruturas do mundo externo, e a acomodação em que o sujeito é afetado pelos objetos adaptando suas estruturas às imposições do mundo externo.

Ao analisar Vigotsky, Barrenechea (2003) afirma que: Vigotsky adota o critério marxista de que os fatores materiais e históricos determinam a formação da consciência. […] Assim o social, o meio em que o indivíduo vive, é fundamental para o seu desenvolvimento e para o aperfeiçoamento do conhecimento. Nesta ótica sujeito e objeto também estão em recíproca interação. Particularmente o trabalho e a linguagem têm uma função fundamental na socialização do indivíduo. (Barrenechea, 2003, p. 16). Nesta perspectiva o homem está inserido num contexto sócio-econômico-cultural-político, ou seja, num contexto histórico. A visão de homem que resulta do confronto e da colaboração entre estas últimas abordagens permite resgatar a unidade do conhecimento através da relação sujeito-objeto, em que se afirma, ao mesmo tempo, a objetividade do mundo e a subjetividade e a realidade concreta da vida do homem como fundamento para toda e qualquer investigação. (Palangana, 2001). Para Mizukami (1986), podemos considerar as teorias do conhecimento de acordo com três características: o primado do sujeito, o primado do objeto e a interação sujeito-objeto. O grupo denominado de empiristas considera que o conhecimento é algo que vem de fora, do meio exterior (primado do objeto), já o grupo denominado nativista, apriorista ou inatista considera que o conhecimento é algo que já está pronto no sujeito necessitando uma estimulação para que este conhecimento inato aflore (primado do sujeito). Há também o ponto de vista interacionista (interação sujeito-objeto) no qual o conhecimento é considerado como uma construção contínua em que a passagem de um nível de compreensão para o seguinte é caracterizada pela formação de novas estruturas que não existiam anteriormente no indivíduo.

Tendo em vista superar os reducionismos característicos das diferentes abordagens, a autora aponta algumas linhas pedagógicas ou principais tendências no ensino brasileiro: a abordagem tradicional, a

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abordagem comportamentalista, a abordagem humanista, a cognitivista e a sócio-cultural, além da abordagem escolanovista ou didaticista:

I. A abordagem tradicional enfatiza a transmissão de conteúdos, é uma concepção vertical que minimiza a possibilidade de cooperação entre os pares, não se preocupa com a formação do pensamento reflexivo, são reprimidos os elementos da vida emocional ou afetiva. Trata-se de uma prática cristalizada através dos tempos.

II. A abordagem comportamentalista ou behaviorista considera que o conhecimento é o resultado direto da experiência – primado do objeto – empirismo. Skinner pode ser considerado como um representante desta visão de ensino dos mais difundidos no Brasil. Trata-se de uma prática que se preocupa com os resultados experimentais do planejamento e contingências do reforço (programação, tecnologia do ensino, métodos).

III. A abordagem humanista dá ênfase ao sujeito, no Brasil destacaram-se as ideias de Carl Rogers.

IV. A abordagem cognitivista é predominantemente interacionista tendo com um dos seus principais representantes Jean Piaget, já destacado anteriormente.

V. A abordagem sócio-cultural enfatiza aspectos sócio-político-culturais, sendo a obra de Paulo Freire a mais significativa no contexto brasileiro. Nesta abordagem a ciência é explicitada com um produto histórico, a educação como um ato político, o conhecimento como transformação contínua. Paulo Freire se contrapõe a concepção “bancária” da educação como instrumento de opressão e busca transformar o objeto em sujeito, tratando a educação como prática da liberdade. (Freire, 1987).

VI. A abordagem escolanovista ou didaticista acentua a importância do aprender a aprender e utiliza pressupostos incluídos nas outras abordagens.

Portanto, definir o que é sujeito e o que é objeto nas questões educacionais nos parece tarefa difícil, mas podemos dizer que, embora o fenômeno educativo envolva múltiplas dimensões (humana, cognitiva, técnica, emocional, social, política, cultural), as diferentes interpretações do mundo podem levar a diferentes posicionamentos frente ao processo ensino-aprendizagem, privilegiando-se um ou outro aspecto do fenômeno educacional. Desta forma, diferentes posicionamentos pessoais derivam diferentes arranjos de situações ensino-aprendizagem e diferentes ações educativas em sala de aula. Isso sem falar que nós, professores, possuímos diferentes “identidades”, não somos os mesmos

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o tempo todo, o que quer dizer que, na maioria das vezes, diversas linhas teóricas coexistem, no que se refere à prática pedagógica. Também nos apropriamos dos questionamentos de Chassot (1995) e Maturana (1999): Para que educar? Para que(m) é útil o ensino? Se é para a repetição das respostas esperadas (certas?) ditadas pelo poder hegemônico, se é para exacerbar a competitividade, para a dominação do mais fraco, para a acentuação das desigualdades sociais, estamos indo pelo caminho errado. Se realmente estamos vivendo num mundo de objetos, vale lembrar, como diz Leonardo Boff (1999), que os “objetos” não são objetos em si. São feitos objetos pela razão, pois ela os isola de seu meio, os separa de outros companheiros de existência e os usa para seus interesses. Os ditos “objetos” na realidade são sujeitos que têm história, acumulam e trocam informações.

Não precisaremos então problematizar a relação sujeito-objeto, pois acreditamos, como na antropologia das ciências, que os humanos e não-humanos “podem abandonar seus restos de objetos e de sujeitos” para participarem plenamente do coletivo. (Latour, 2004, p. 135). Longe de querer ultrapassar esta contradição, ao invés da oposição sujeito/objeto, Latour utiliza a noção de colaboração da dupla humano/não-humano, cuja associação tem como característica o estado de incerteza profunda. Trata-se de associar atores sociais a outros atores sociais, colocando fim à Guerra Fria entre os objetos e os sujeitos, numa verdadeira “operação de pacificação”: “os objetos e os sujeitos não podem nunca associar-se, os humanos e os não-humanos o podem” e o fazem na composição de sua existência coletiva. (Latour, 2004, p. 143).

Por fim, como se dá a composição da existência coletiva quando nos referimos à Educação Ambiental (EA)? Ampliaremos nossa discussão mergulhando nas questões referentes à tessitura da EA e suas redes.

4. A Educação ambiental e suas redes

Falta de água potável, buraco na camada de ozônio, desmatamento, aquecimento global, poluição atmosférica, fome: os problemas ambientais apresentados na atualidade trazem à tona a necessidade de se ampliar a discussão do assunto em todos os níveis de ensino e em todos os espaços pedagógicos formais e não-formais. A ideia da indissociabilidade entre o ser humano e o meio ambiente é uma das questões a serem ressaltadas no âmbito da educação ambiental com vistas à sensibilização e geração de mudanças de hábito frente ao

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ambiente. Esta premissa é verdadeira posto que, na concepção hegemônica de ciência, a natureza é o lugar das coisas em si. A adoção dessa concepção traduz uma postura/escolha epistemológica que é política e que, por isso, é, em parte, uma das raízes dos nossos problemas ambientais. Assim, concordamos com autores como Layrargues (2000) e Loureiro (2006) que entendem a EA não apenas como instrumento de mudança cultural ou comportamental, mas também como instrumento de transformação social para se atingir a mudança ambiental (Loureiro, 2006). No entanto, este pensamento cairá num lugar comum se não houver uma mudança ou um questionamento sobre a concepção hegemônica que se tem do que é ciência e de como fazer ciência. A gravidade desses problemas ambientais deu origem, nas últimas décadas, a um número significativo de pesquisas e propostas de trabalhos de educação ambiental no âmbito escolar, quer seja no ensino fundamental e médio, quer seja na área de formação de professores (Penteado, 1994; Pedrini, 1997; Reigota, 1999; Reigota, Possas e Ribeiro, 2003; Carvalho, 2006; Carvalho, 2010; Novicki, 2010; Cunha e Tavares Júnior, 2010) e de educadores ambientais (Guimarães, 2004). Segundo o documento elaborado na Primeira Conferência Intergovernamental sobre Educação Ambiental ou Conferência de Tbilisi (Geórgia,1977), como ficou conhecida, a Educação Ambiental tem como finalidade promover a compreensão da existência e da importância da interdependência econômica, política, social e ecológica da sociedade; proporcionar a todas as pessoas a possibilidade de adquirir conhecimentos, o sentido dos valores, o interesse ativo e as atitudes necessárias para proteger e melhorar a qualidade ambiental; induzir novas formas de hábito nos indivíduos, nos grupos sociais e na sociedade em seu conjunto, tornando-a apta a agir em busca de alternativas de soluções para os seus problemas ambientais como forma de elevação da sua qualidade de vida (Dias, 2000). Um de nossos grandes desafios é questionar o que houve de errado, então, em tudo o que se fez em mais de 30 anos, para que essas determinações sejam ainda tão necessárias e atuais. Um dos caminhos importantes para realizar esta reflexão é problematizar a divisão de poder entre as “câmaras” econômica, política, social e ecológica,

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associada ao pensamento modernista12, e que preconiza, ao mesmo tempo, a necessidade de interligá-las como forma de resolver os problemas que se apresentam. Em outras palavras, as práticas de mediação são negadas e ao mesmo tempo aclamadas como possibilidade. O enfoque de que as questões ambientais devam ser estudadas/abordadas em todas as áreas do conhecimento presentes no cotidiano escolar e não no contexto de uma disciplina, abre um leque de possibilidades inter/trans/multidisciplinares. (Grün, 1996). O estudo de Reichert (1998), por exemplo, relata uma prática pedagógica no currículo que entende a preservação da diversidade cultural como uma questão ambiental. Por seu turno, Chassot (2000) acredita que, mais do que nunca, uma das preocupações das educadoras e dos educadores é com a dimensão ambiental da educação enfatizando a necessidade de um ensino menos apolítico. Lima (1999), em diálogo com diversos autores, considera que a educação dirigida ao ambiente deve ser democrática, participativa, crítica, transformadora, dialógica, multidimensional e ética. O autor também afirma a necessidade de politizar a questão ambiental, por onde entende que passam as possíveis respostas à crise socioambiental: “[...] importa desenvolver a relação entre o meio ambiente e a cidadania, fortalecendo a consciência de que o meio ambiente é um patrimônio público comum e sua defesa um direito político de todos os cidadãos.” (Lima, 1999, p. 148). E ainda: “Assim tanto a educação quanto a questão ambiental, apesar das múltiplas dimensões que envolvem são, em nosso entendimento, questões essencialmente políticas, que comportam visões de mundo e interesses diversificados.” (Lima, 1999, p. 136). Em outro artigo, o autor supra citado ainda discute sobre a politização da questão ambiental e da educação ambiental reiterando que politizar a EA significa ampliar e consolidar a cultura democrática na sociedade. (Lima, 2002, pp. 130-137). Já para Latour, é insustentável a distinção entre ciência e política, bem como entre a natureza (os objetos em si) e a cultura (os homens entre eles). A partir deste entendimento, não haveria sentido falar em politizar a educação ou a educação ambiental, uma vez que fazem parte do mesmo coletivo. Desta forma,

12 Latour (2004) discute a repartição de poderes entre a natureza e a política utilizando a expressão

“bicamerismo”, emprestada da ciência política, para descrever os sistemas representativos com duas câmaras.

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Latour clama por uma “ecologia política13” vivenciada pela associação plena de humanos e não-humanos. Então, como realizar/operacionalizar tudo isso sem alterar o pressuposto teórico metodológico/a concepção de sujeito e de objeto das propostas pedagógicas para educação ambiental formuladas? Sobre esta concepção hegemônica, Latour (2004) defende que: Enquanto a oposição sujeito/objeto tinha por estratégia proibir toda permuta de propriedades, a dupla-humano/não-humano torna esta troca, não somente desejável, como necessária. É ela que vai permitir preencher o coletivo de seres dotados de vontade, de liberdade, de palavra e de existência reais. É o destino comum de tais seres que explicará por que a ecologia política não poderia desenvolver-se justapondo simplesmente uma ecologia a uma política. No lugar de uma ciência de objetos e de uma política de sujeitos, deveríamos dispor […] de uma ecologia política dos coletivos de humanos e não-humanos. (Latour, 2004, p. 120). Vale ainda destacar que também não há uma homogeneidade no que diz respeito ao que se compreende como “Educação Ambiental”. Sobre isso Loureiro (2006) chama a atenção para o fato de que nem todos os que fazem Educação Ambiental estão dentro de uma mesma orientação e visão de mundo, mesmo que sigam os princípios da participação, interdisciplinaridade, do respeito à diversidade biológica e cultural, já que estas categorias permitem diferentes apropriações e usos dependendo da concepção teórica, do lugar social ocupado pelos sujeitos e da compreensão de sociedade da qual se parta (Loureiro, 2006, p. 140). Novamente aqui está implícita a noção de sujeito, que ocupa um lugar social, em oposição a objeto: “o objeto e a objetividade, como também o sujeito e a subjetividade, são termos polêmicos, inventados para abreviar a política [...]” (Latour, 2004, pp. 381-382) e não reconhece, portanto, as múltiplas associações de humanos e não-humanos. Vale destacar que a ideia de diversidade biológica e cultural (aceitação e respeito, “tolerância”) não modifica as relações de inferiorização do outro14. 13 Vários autores utilizam a expressão “Ecologia Política” para descrever o cruzamento da divisa entre

a natureza e a cultura e para ressaltar o aspecto transdisciplinar da ecologia (Cf. Little, 2006). Utilizaremos aqui o conceito nos termos defendidos por Latour (2004), ou seja, sem fazer diferença entre a ecologia cientifica e a ecologia política e considerando as associações de humanos e não humanos na constituição dos coletivos.

14 De forma provocativa, Latour (2004) propõe a utilização da expressão “multinaturalismo” para designar a impossibilidade da solução tradicional imposta pelo (mono) naturalismo (“a unidade nas mãos das ciências exatas”) e o multiculturalismo (“a multiplicidade nas mãos das ciências humanas”), numa fragmentação prematura das culturas. Ver Latour, 2004, pp. 88-89.

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Assim, tal qual discutido sobre a educação no seu sentido mais amplo, também a Educação Ambiental pode assumir um papel de conservação da ordem “social” ou um papel emancipatório. Em nossa visão, este papel emancipatório só será alcançado se considerarmos que a divisão entre natureza e cultura é uma forma de se fazer política que nada tem a ver com a indissociabilidade tão preconizada. Enquanto existirem sujeitos que pensam, assentados no seu lócus social privilegiado, e objetos que são pensados, associados à natureza das coisas, não conseguiremos realizar através da educação ambiental uma crítica ao modelo hegemônico de fazer ciência, indispensável à emancipação a que se propõe. Para Lima, a Educação Ambiental conservadora possui as seguintes características (Lima, 2002, p. 127): a) Uma concepção reducionista, fragmentada e unilateral da questão ambiental, b) Uma compreensão naturalista e conservacionista da crise ambiental, c) Uma tendência a sobrevalorizar as respostas tecnológicas diante dos desafios ambientais, d) Uma leitura individualista e comportamentalista da educação e dos problemas ambientais, e) Uma abordagem despolitizada da temática ambiental, f) Uma baixa incorporação de princípios e práticas interdisciplinares, g) Uma perspectiva crítica limitada ou inexistente, h) Uma ênfase nos problemas relacionados ao consumo em relação aos ligados à produção, i) Uma separação entre as dimensões sociais e naturais da problemática ambiental, j) Uma responsabilização dos impactos ambientais a um homem genérico, descontextualizado econômica e politicamente, l) Uma banalização das noções de cidadania e participação que na prática são reduzidas a uma concepção liberal, passiva, disciplinar e tutelada. Ainda, segundo Lima, a tendência emancipatória da Educação ambiental caracteriza-se por (Lima, 2002, pp. 128-129): a) Uma compreensão complexa e multidimensional da questão ambiental, b) Uma defesa do amplo desenvolvimento das liberdades e possibilidades humanas e não-humanas, c) Uma atitude crítica diante dos desafios da crise civilizatória, d) Uma politização e publicização da problemática socioambiental,

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e) Uma associação dos argumentos técnico-científicos à orientação ética do conhecimento, de seus meios e fins, e não sua negação, f) Um entendimento da democracia como pré-requisito fundamental para a construção de uma sustentabilidade plural, g) Uma convicção de que o exercício da participação social e a defesa da cidadania são práticas indispensáveis à democracia e à emancipação socioambiental, h) Um cuidado em estimular o diálogo e a complementaridade entre as ciências e as múltiplas dimensões da realidade entre si, atentando-se para não tratar separadamente as ciências sociais e naturais, os processos de produção e consumo, os instrumentos técnicos dos princípios éticos-políticos, a percepção dos efeitos e das causas dos problemas ambientais e os interesses privados (individuais) dos interesses públicos (coletivos), entre outras possíveis, i) Uma vocação transformadora dos valores e práticas contrários ao bem-estar público.

Sauvé (2005), ao analisar as possibilidades e limitações da EA, identifica uma pluralidade de correntes de pensamentos e de práticas de educação ambiental (naturalista, conservacionista, solucionadora de problemas, sistêmica, holística, humanista, crítica, bio-regional, feminista, etc) e que podem se ligar a diversas dimensões de meio ambiente: - meio ambiente-natureza: para preservar, apreciar, respeitar, - meio ambiente-recurso: para gerir, repartir, - meio ambiente-problema: para prevenir, resolver, - meio ambiente-sistema: para compreender e decidir melhor, - meio ambiente-lugar em que se vive: para conhecer e aprimorar, - meio ambiente-biosfera: para viver junto e a longo prazo, - meio ambiente-projeto comunitário: para realizar as mudanças necessárias no seio de uma coletividade, - meio ambiente-território: para os povos indígenas, - meio ambiente-paisagem: para a interpretação dos contextos locais. Para a autora, a relação com o meio ambiente é “eminentemente contextual e culturalmente determinada” e, portanto, a educação ambiental não deve se limitar a uma ou outra dimensão do meio ambiente já que estas são complementares e deve se associar às demais dimensões da educação fundamental, particularmente a educação para a cidadania e a educação para a saúde (Sauvé, 2005, p. 319). No entanto, Sauvé (2005, p. 317) enfatiza que a Educação Ambiental não é uma

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“forma” de educação (uma “educação para...”) entre inúmeras outras. O que a torna diferenciada das outras educações? Como então trabalhá-la em sala de aula? Em suas contribuições, Dib-Ferreira (2010, p. 70), alinhado com o pensamento de Carvalho (2004) e Layrargues (2004), considera que a utilização do termo “Educações Ambientais”, no plural, seria mais adequado “para dar conta de todas as matizes teóricas e práticas da educação relacionadas ao meio ambiente”. Em seu trabalho o autor faz uma análise do fenômeno de adjetivação das educações ambientais no Brasil em dois blocos interdependentes: as abordagens empíricas da Educação Ambiental e os recortes identitários da Educação Ambiental. No primeiro bloco – abordagens empíricas – são discutidas as características da EA conservacionista; do Ecofeminsmo; da EA comportamental e da EA popular; são caracterizados também os discursos ecológico oficial e o ecológico alternativo; o ambientalismo pragmático e o ambientalismo ideológico. No segundo bloco – recortes identitários - são enfocados a Alfabetização ecológica; a Ecopedagogia; a EA crítica; a EA emancipatória; a EA transformadora; a Educação para a gestão ambiental; a Educação para o desenvolvimento sustentável; e a relação entre a Educomunicação e a Educação Ambiental. Aqui também se faz notar a necessidade de estabelecimento de fronteiras, distinguindo e separando diversas vertentes (Layrargues, 2004), tendência que Lima caracterizou como “diferenciação interna do campo da educação ambiental” (Lima, 2002, p. 119). Mas, se a educação não é única e não é neutra (Layrargues, 2004) e a Educação Ambiental também não, a adjetivação das Educações seria mesmo pertinente e necessária? Para efeito da realização do estudo aqui apresentado, apesar de nos referenciarmos à EA no singular, a entendemos como plural, mas questionamos a existência dos muros que separam as diferentes vertentes, ou, em outras palavras, duvidamos da existência de educações ambientais purificadas. Também destacamos o entendimento adotado por Latour (2004) de que é possível fazer uma “ecologia política”, termo que não faz distinção entre a ecologia científica e a ecologia política, e que tem como pressuposto que: O social não é mais composto de sujeitos, assim como a natureza não está composta de objetos. Uma vez que, graças à ecologia política, distinguimos os objetos dos não-humanos, vamos poder, igualmente, graças à ela, distinguir os humanos dos sujeitos: o sujeito era o humano

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preso na polêmica da natureza e resistindo corajosamente à objetivação pela Ciência. Queria que ele se arrancasse da natureza para exercer sua liberdade, que aprisionasse sua liberdade para reduzir-se, enfim, aos objetos da natureza. Mas imposta esta escolha aos sujeitos, o humano não teria mais que obedecer a isto. Uma vez liberados desta guerra fria, os humanos vão tomar todo um outro aspecto e, em lugar de existirem por eles mesmos, vão exibir a longa cadeia de não-humanos, sem os quais eles não saberiam fazer questão de liberdade. (Latour, 2004, pp. 94-95). Embora de diferentes maneiras, vários autores criticam as dicotomias impostas pelo pensamento moderno e que apontam “para novos aportes ecológicos na compreensão do mundo e das relações humano-não humanos.” (Carvalho e Steil, 2009, p. 82). Carvalho e Steil (2009) agrupam as contribuições de alguns destes autores (Ingold, 2000; Stengers, 2002; Haraway, 2003; Latour, 2004; Leff, 2006) no conjunto chamado de epistemologias ecológicas. Neste sentido, Branquinho (2010, s/p) afirma que os trabalhos destes pensadores têm discutido “novos modelos de relações sujeito-objeto, natureza e cultura” e “influenciado o desenvolvimento de experiências práticas e produção bibliográfica no campo da educação ambiental no Brasil realizadas, analisadas e discutidas por Carvalho (2000), Guimarães (2000), Layrargues (2004), Loureiro (2006)”. A presente pesquisa se alinha com estes trabalhos, utilizando, contudo, as contribuições da antropologia das ciências e das técnicas para pensar a educação ambiental. Ou seja, utilizamos Latour, que estabelece diálogos com Stengers, Haraway, entre outros, como nosso aporte teórico15. No nosso entendimento, esta escolha pode contribuir para uma visão de formação de educadores ambientais que vai para além da político-filosófica nos termos da educação ambiental crítica16 ou emancipatória, uma vez que estas últimas não questionam o estatuto da ciência como saber hierarquicamente superior, ou seja, não discutem a natureza da ciência, a relação sujeito-objeto, que continuam sendo sujeito e objeto tal como ela, ciência, e a modernidade - herdeira dessa concepção, expressão dessa concepção de ciência - preconizam. 15 Sobre as contribuições da antropologia das ciências e das técnicas, Latour faz uma bela discussão

abordando a etnografia das ciências (Latour e Woolgard, 1997, pp. 9-34) e a originalidade dos estudos científicos (Latour, 2001, pp. 30-37). Branquinho discorre sobre a sociologia da ciência e a construção do conhecimento científico sobre a natureza. (Branquinho, Reis e Ferreira, 2005, v.1, pp. 19-31).

16 Cf. Loureiro (2007).

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A seguir, analisaremos como acontece o agenciamento da EA nos cursos de formação de professores.

4.1 O agenciamento da Educação ambiental nos cursos de formação de professores: reflexões e questionamentos Acreditamos que os cursos de formação de professores possuem um importante papel na preparação de educadores que tendem a atuar na disseminação da educação ambiental. Mas, e como andam as propostas de EA nos cursos de licenciatura? Há uma tendência de a Educação Ambiental se concretizar como uma disciplina isolada, algumas vezes até como disciplina não obrigatória17. Mas então, qual a melhor forma de se trabalhar a educação ambiental nos cursos de formação de professores? A resposta irá depender de como a EA é proposta e vivenciada.

E o que significam as abordagens disciplinares, interdisciplinares, transdisciplinares? E a abordagem transversal? Muitos autores tem se dedicado a pesquisar estas temáticas, como Japiassu (1976), Veiga Neto (1994), Fazenda (1995), Frigotto (1995), Lopes (1999), Nicolescu (1999), Abrantes (2002), Moreno (2003), só para citar alguns, embora não exista um consenso quanto ao entendimento destes termos ou abordagens no contexto escolar e nos currículos18 de formação de professores. Logo, podemos dizer que a disciplinaridade diz respeito a um único e mesmo nível de realidade, ou melhor, a fragmentos de um único e mesmo nível de realidade. Em seu trabalho, Lopes (1999) discute o processo de disciplinarização e a noção de disciplina problematizando as questões relativas à estratificação e a compartimentalização do conhecimento. Baseada em Foucault, a autora pondera que as disciplinas podem ser consideradas como um dos fundamentos da modernidade, uma vez que estejam atreladas aos princípios de coerção no ensino e padronização da educação. No entanto, para Latour as disciplinas científicas, as “logias” e as “grafias”, podem definir-se como mecanismos complexos para “tornar os mundos capazes de escrever ou de falar, como uma alfabetização das entidades mudas.” (Latour, 2004, pp. 127-128). Nesta perspectiva, ou seja, na ótica da ecologia política, os atores-não humanos do coletivo poderiam se expressar através de suas atuações nos

17 Alguns autores analisam a EA como proposta inter/transdisciplinar na educação superior como, por exemplo,

Silveira (1997). 18 Currículo entendido aqui não como grade curricular, mas como o “espaço no qual se desdobram as experiências

de conhecimento que a escola propicia aos estudantes”. Moreira, A.F.B. Prefácio. In: Lopes (1999, p. 9).

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laboratórios: “os cientistas inventaram aparelhos de fonação que permitem aos não-humanos participar nas discussões dos humanos quando se tornam perplexos a propósito da participação das entidades novas na vida coletiva.” (Latour, 2004, pp. 128-129). Estas novas entidades podem também se expressar nas perspectiva multidisciplinar ou pluridisciplinar na qual várias disciplinas analisam a temática de estudo, cada uma com a sua visão, sua contribuição específica. No entanto, a abordagem continua inscrita da estrutura disciplinar. Já no caso da interdisciplinaridade, os métodos de uma disciplina impregnam, “contaminam” outra disciplina a fim de resolver um determinado problema. A interdisciplinaridade deu origem à novos campos de estudo (neurofisiologia, físico-química, bioquímica, geografia econômica, entre outros), criando métodos e definindo conjuntos de problemas a serem investigados. Enquanto que, para D'Ambrósio (2001), estes novos campos de estudo acabaram se transformando em disciplinas, produzindo seus próprios especialistas e revelando as mesmas limitações das disciplinas tradicionais, para Lopes (1999) - ao discutir a tensão entre a disciplinaridade e a interdisciplinaridade - esta última pode ser defendida como possibilidade de “diálogo pluridisciplinar”, numa perspectiva que exclui a noção de disciplina como controle do conhecimento19. Mas, e o que se entende por transdisciplinaridade? Basarab Nicolescu (1999) se refere a transdisciplinaridade como um novo tipo de conhecimento que diz respeito àquilo que está ao mesmo tempo entre as disciplinas, através das diferentes disciplinas e além de qualquer disciplina. É um desejo rumo a unidade do conhecimento, na qual cada especialista deve ser rigoroso na utilização da sua disciplina e tolerante com as outras, não se permitindo a mistura de diferentes racionalidades. Nas suas palavras, Embora a transdisciplinaridade não seja uma nova disciplina, nem uma hiperdisciplina, alimenta-se da pesquisa disciplinar que, por sua vez, é iluminada de maneira nova e fecunda pelo conhecimento transdisciplinar. Neste sentido, as pesquisas disciplinares e transdisciplinares não são antagonistas, mas complementares. (Nicolescu, 1999, p. 2).

19 Sobre esta noção Levy (1999) denuncia as disciplinas como organizações microterritoriais nas

universidades, essencialmente constituídas em torno das relações de poder nos locais de ensino.

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Segundo o autor, a complexidade, a lógica do terceiro incluído e os níveis de realidade20, compõem os três pilares da transdisciplinaridade e determinam a metodologia da pesquisa transdisciplinar. (Nicolescu, 1999). Por outro lado, preconiza-se que tanto as pesquisas ambientais como a educação ambiental deveriam ser vistas e vividas sob a ótica da transdiciplinaridade, uma vez que os problemas ambientais são transdisciplinares por natureza (Ritto, 2005). Mas será que é fácil ou mesmo possível utilizar o óculos da transdisciplinaridade? Ou será que sempre o utilizamos, mas negamos as nossas práticas de mediação cotidianas? Estamos presos às nossas gaiolas epistemológicas21, com medo de perder o porto seguro, as nossas certezas, sem perceber que a transdisciplinaridade – ou o trabalho de construção dos híbridos - é um convite à inclusão, uma possibilidade de conviver com as disciplinas e com as especialidades numa abordagem integrada. Neste contexto, não seria necessário apontar para uma nova visão que venha resolver os problemas substituindo as visões anteriores. A disciplinaridade está incluída na transdisciplinaridade, não é um obstáculo a ser vencido, ou melhor, nunca conseguimos separar as propriedades primeiras (o indiscutível) das propriedades segundas (as subjetividades); sempre articulamos (sem perceber) as diferentes entidades do coletivo. Logo, ao preconizar a impossibilidade de solução de problemas através da utilização da lógica específica de qualquer disciplina acadêmica, já que o mundo real é múltiplo, transdisciplinar, entendemos que qualquer pesquisa/educação ambiental que almeje realizar intervenções profícuas deverá utilizar uma visão que vá além das disciplinas de forma a permitir a produção, difusão e aplicação dos conhecimentos envolvidos de forma concomitante, e envolvendo os diferentes atuantes humanos e não-humanos. Essa mobilidade dos conhecimentos poderá ser impulsionada pelos objetos técnico-científicos, sendo praticamente impossível que estes fiquem restritos aos

20 A lógica do terceiro incluído refere-se à uma lógica formal que diz respeito, não mais à dois

termos (A e não-A), mas à três termos (A, não-A e T) que coexistem no mesmo momento do tempo. Os níveis de realidade referem-se a um conjunto de sistemas invariável que está submetido à ação de um número de leis gerais, ou seja, cada nível de realidade é orientado por uma lógica. Nenhum nível de realidade é lugar privilegiado para o entendimento dos outros níveis de realidade. Ver também Wilber (1994-95).

21 As gaiolas epistemológicas dizem respeito aos domínios de conhecimento dos especialistas. Cf. D’Ambrósio, 2004.

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muros institucionais ou organizacionais que os geraram, ou seja: múltiplos fóruns, arenas, laboratórios são agenciados a todo momento22. Neste sentido, a proposta de Latour traz em seu bojo uma importante contribuição da ecologia política para as disciplinas científicas: Quanto às disciplinas científicas, uma vez tornadas visíveis, presentes, ativas, agitadas, cessando de ser ameaçadoras, vão poder desprender este formidável potencial de pluriverso, que elas não tiveram jamais, até aqui, ocasião de desenvolver, pois que as arrasavam constantemente com a obrigação de produzir o mais rapidamente possível, objetos “da natureza”, escapando das “construções sociais”, a fim de retornar o mais depressa a reformar a sociedade pela razão indiscutível. Abrindo esta mortal tenaz da epistemologia e da sociologia, a ecologia política permite às disciplinas científicas, libertadas de sua função de epistemologia (política), multiplicar os recintos, as arenas, as instituições, os fóruns, as experiências, as provas, os laboratórios pelos quais se associam os humanos e os não-humanos, todos novamente libertados. A Ciência está morta, viva a pesquisa e vivam as ciências. (Latour, 2004, p. 95). Branquinho e Santos (2007, p. 116) se questionam “ora, se é através das disciplinas científicas ministradas em nossas escolas que tomamos conhecimento desses objetos, por que não considerar que é possível compartilhar com nossos alunos tal compreensão?” e propõem que se assumam, como educadores em ciências, a indissociabilidade entre a natureza e a sociedade produzida, ou seja, originada por esses objetos científicos e técnicos, quase-sujeitos. Nas palavras de Latour (2004): Recusando ligar a política aos humanos, aos sujeitos, à liberdade, e ligar a Ciência aos objetos, à natureza, à necessidade, descobrimos o trabalho comum das políticas como das ciências: abarcar as entidades do coletivo a fim de torná-las articuláveis e fazê-las falar. (Latour, 2004, p. 161). É a partir do entendimento de que a relação entre ciência e política pode modificar nosso modo de educar em ciência é que defendemos a necessidade de discutir estas questões nos cursos de formação de educadores em ciências.

22 Sobre a elaboração e execução de projetos de pesquisas interdisciplinares, Branquinho (2007)

reforça que, na linguagem de Latour, estes correspondem “à proliferação dos híbridos, em decorrência do trabalho de mediação ou tradução que se desenvolve a revelia dos cientistas, empenhados que estão na tarefa de purificação.” (Branquinho, 2007, p. 105).

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No que se refere à abordagem transversal, no Brasil, a elaboração dos Parâmetros Curriculares Nacionais trouxe a proposta de se trabalhar nas escolas de ensino fundamental e médio um núcleo de conteúdos (ética, pluralidade cultural, meio ambiente, saúde e orientação sexual) de forma integrada às disciplinas curriculares tradicionais (matemática, língua portuguesa, Biologia, etc.). Não obstante, ao realizar um trabalho transversal na educação pode-se manter as disciplinas curriculares tradicionais como eixo norteador do sistema educacional cabendo aos temas transversais apenas girar em torno deste eixo, como complemento secundário, ou permitir que os temas transversais constituam o centro das preocupações dos conteúdos escolares, transformando-os em eixos estruturadores da aprendizagem. (Moreno, 2003). Nesta última vertente, os temas meio ambiente e saúde estariam de tal forma associados ao currículo escolar, que já não haveria sentido falar em aula de educação ambiental ou mesmo projeto de educação ambiental: todos os professores seriam educadores ambientais. Mas os curso de formação de professores já estão trabalhando nesta perspectiva? Os professores se sentem preparados para atuar desta forma? Infelizmente, pesquisas revelam que os professores o desconhecem ou não sabem como abordar o tema Meio Ambiente de forma transversal nas diferentes disciplinas. (Novick, 2010). Neste contexto, é de extrema importância o papel da universidade, embora esta sofra severas críticas no que se refere às contradições que se estabelecem entre as suas funções e entre os objetivos desejados e alcançados23. Na área de educação, por exemplo, o conflito que se estabelece entre o racionalismo e o empirismo está sempre no cerne das discussões, principalmente quando se questiona para que e para quem educar. As críticas sobre a atuação dos teóricos, dos pesquisadores, da academia na área de educação se inflamam quando se constata que muitas das pesquisas realizadas servem apenas para encher a prateleira das bibliotecas de artigos e teses, ou seja, que estas não retornam como conhecimento e como possibilidade de melhoria no dia-a-dia da sala de aula: Apesar de reconhecermos a seriedade com que os pesquisadores brasileiros vêm produzindo uma consistente literatura no âmbito da educação, os efeitos de tais avanços pouco se refletem no interior das

23 Boaventura de Souza Santos (2005, 2006) discute as crises de hegemonia, de legitimidade e

institucional pelas quais passam a instituição universitária no mundo ocidental, caracterizada pelo autor como pautada pela ciência pós-moderna.

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escolas. Na persistente crise da educação brasileira, novos complicadores inserem variáveis, mas não se desatam antigos nós: a escola continua excludente, produzindo analfabetos, analfabetos funcionais e iletrados. Não que faltassem pesquisas de denúncia e anúncio, não que todas as intervenções realizadas pudessem ser arguidas como levianas, não que fosse vão todo o esforço despendido. Diante da extensão do desafio, já não cabe o fogo cruzado entre as instituições: governos denunciando a inoperância das universidades, universidades criticando o populismo das políticas educacionais implementadas pelo governo. Até porque a leitura atenta dos documentos produzidos pelos técnicos das secretarias municipais e estaduais de educação, bem como do próprio ministério, tem como referencial a teoria discutida e o conhecimento produzido nas universidades. (Esteban e Zaccur, 2002, p. 12). Como possibilidades de uma ressignificação no que se refere à interação entre as pesquisas em educação e a escola, têm sido citadas as propostas de formação do professor-pesquisador24 como projeto político pedagógico dos cursos de licenciatura, e a introdução da pesquisa no trabalho do próprio professor de ensino fundamental. Sobre esta última, segundo Kincheloe (1993) apud Ludke (1998): só através do esforço do professor das escolas fundamentais, a pesquisa em educação pode dar o salto sobre o gap que separa a universidade e as escolas, respondendo assim às reais necessidades que estão à espera de soluções na educação básica. (Kincheloe, 1993 apud Ludke, 1998, p. 31). No caso da educação ambiental e das pesquisas sobre EA todas estas indagações se fazem presentes, ou melhor, fazem parte do mesmo escopo de preocupações. E mais ainda: ao analisar a pesquisa brasileira que entrelaça as temáticas da formação do professor e a educação ambiental, Carvalho (2010) constatou uma falta de diálogo interno entre os pesquisadores. Para o autor: […] enquanto [nós, pesquisadores em EA] não envidarmos esforços para a ampliação do diálogo interno e com a comunidade de pesquisadores em educação corremos o risco de solitariamente construirmos um campo de conhecimento nos quais as convergências nunca são sistematizadas e as tensões nunca são evidenciadas e, por isso, nunca problematizadas. Isso pode implicar na construção de um campo de conhecimentos no qual as nossas crenças são cada vez mais reforçadas, mas as dúvidas e as perguntas são silenciadas, as tensões e os conflitos não são explicitados. 24 Para aprofundamento nesta temática, ver os trabalhos apresentados em Geraldi, Fiorentini e Pereira

(1998); Esteban e Zaccur (2002).

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Ou seja, deixamos de produzir conhecimentos. (Carvalho, 2010, pp. 84-85). O que fazer? Convocar o coletivo! Acreditamos que a Ecologia Política, tal como proposta por Latour, possa trazer contribuições efetivas para a realização de uma educação ambiental como preconizada, há mais de trinta anos, na Conferência de Tbilisi. Poderíamos dizer que as práticas atuais da Universidade que a afastam dos problemas reais, dos agentes e dos ambientes onde atua, ou deveria atuar, são aquelas relacionadas, unicamente, com o modo de produção do conhecimento25 que se utiliza de organizações extremamente rígidas e hierárquicas. As práticas que a aproximam dos problemas reais são aquelas pautadas na cooperação, na parceria entre pesquisadores, movimentos sociais, comunidades populares, organizações não governamentais (ONGs), etc., ou, em outras palavras, na relação fecunda que emerge da inter-relação entre os diferentes modos de produção do conhecimento. Ou ainda, nos diferentes processos de mediação que misturam humanos e não-humanos, fatos e valores, conceito e contexto. No nosso entendimento, não há um modo de produção de conhecimento superior ao outro, mas certamente nenhum modo de produção seria capaz de trabalhar sozinho na resolução de um problema real, especialmente na área ambiental, que é o foco principal destas reflexões, pois tratar-se-ia de uma tentativa de utilização das práticas de purificação propostas pelo acordo modernista. No caso específico da universidade, o diálogo com outro repertório de saberes seria imprescindível para se atingir um novo patamar de produção de conhecimento que pudesse abraçar a indissociabilidade preconizada. Esta mudança só seria possível através da desmitificação do conhecimento científico como único conhecimento possível e legítimo, com a tomada de consciência de suas limitações, como propõe Latour. Uma estratégia viável para se atingir este novo patamar seria uma maior valorização dos trabalhos de extensão por parte da comunidade acadêmica26, colocando-os numa posição tão importante quanto os

25 Segundo Gibbons et al (1994), citado por Ritto (2005), os modos de produção de conhecimento

são as diversas formas nas quais o conhecimento é criado, distribuído e aplicado, por exemplo, nos centros de pesquisa e universidades, até as práticas desenvolvidas no trato do conhecimento tradicional.

26 Ao refletir sobre a divulgação científica e a Educação Ambiental, Santos (2010, p. 111) adverte que “cada vez mais as universidades devem pensar sobre o seu papel de realizar, além do ensino e da

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trabalhos de pesquisa e docência nos cursos de graduação e pós-graduação, bem como a valorização dos cursos de formação inicial e de formação continuada de professores que atuariam como possíveis agentes de transformações sociais. Sobre a busca de uma nova separação de poderes que não contemple a moderna distinção entre os fatos e os valores, Latour ressalta que: A natureza indiscutível, conhecida pela Ciência, definiu a ordem de importância respectiva das entidades, ordem que deve, doravante, encerrar toda discussão dos homens, entre eles, sobre o que importa fazer e sobre o que importa proteger. (Latour, 2004, p. 165).

Ao realizar uma Educação Ambiental que proponha, por exemplo, a realização de uma Agenda 2127, devolve-se ao coletivo a prerrogativa da escolha, ou seja, realiza-se uma verdadeira Ecologia Política! Muito se discute sobre a emergência da busca do conhecimento contínuo, o aprender a aprender na chamada sociedade do conhecimento28, impulsionada pelo advento das novas tecnologias da informação e comunicação (NTICs). Nagel (2002, s/p) chama a atenção para o significado latente desta ideologia, que, segundo a autora, está sendo utilizada de forma ingênua por muitos educadores que a utilizam na defesa da democratização da informação mas “esquecem-se de que o conhecimento a ser socializado dependerá dos interesses privados dos organismos que sustentam essa mesma infra-estrutura”. Neste sentido, acreditamos que uma educação que questione o estatuto da ciência como detentora das verdades sobre a realidade, tal como preconiza a antropologia das ciências, tem muito a contribuir para uma crítica consciente às modificações impostas pelo mundo globalizado. Desta

pesquisa, atividades de extensão. Mas não a extensão como via de mão única, na qual o pesquisador é considerado o único detentor do conhecimento.” Cf. Silveira, 2002.

27 A experiência da formulação de uma Agenda 21 local como ferramenta para a ação coletiva é descrita por Branquinho e Santos (2007), na qual a formulação dos problemas ambientais é compartilhada com os interessados na sua resolução, mesmo que estes não possuam um ponto de vista técnico-científico. Ver também a proposta de elaboração de planos de ação presente na cartilha do Programa de Educação ambiental, PEA. (Branquinho e Netto, 2010).

28 Segundo Nagel (2002, s/p), sociedade do conhecimento “é uma expressão empresarial dos investimentos racionalmente programados para o mundo globalizado e que incluem investimentos na construção de uma infra-estrutura relativa à informática, telecomunicações, etc.” Duarte (2001) também discute os aspectos ideológicos e ilusórios do que o autor classifica como pensamento pedagógico pós-moderno: “as pedagogias do 'aprender a aprender' e algumas ilusões da assim chamada sociedade do conhecimento”. Citado aqui pelas criticas que faz em seus livros sobre as apropriações neoliberais da teoria vigotskiana, vale ressaltar que não compartilhamos com o entendimento do autor sobre o papel do trabalho educativo na escola que, ao nosso ver, está centrado numa concepção de ciência como detentora da explicações verdadeiras sobre a realidade.

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forma, as novas relações do trabalho advindas da revolução tecnológica, a necessidade de abertura ao novo, o trabalho em equipe, o respeito às diferenças e a criatividade – demandas do mundo contemporâneo – seriam caminhos traçados através de uma educação mais crítica e democrática. Ao nos basear nestas premissas, levantamos aqui algumas questões que julgamos importantes:

− Como preparar os jovens para essas novas demandas, as quais exigem posturas emancipatórias se a escolarização, o estudo formal tem sido baseado num comportamento que privilegia a repetição, a memorização, as respostas prontas e formatadas? Como estas questões estão sendo trabalhadas nos cursos de formação de professores?

− Como dialogar com os vários modos de produção do conhecimento já que nenhum deles sozinho é suficiente ou completo para dar conta da resolução dos problemas que se apresentam no dia-a-dia, ou seja, como evitar conscientemente os processos de purificação? Como estabelecer este diálogo na educação formal, em geral, e mais especificamente na educação ambiental?

− Seria possível, levando em conta o modelo de universidade pública brasileira, trabalhar com a concepção de conhecimento pluriversitário29, como propõe Boaventura de Souza Santos (2005), sem mercantilizar as relações para geração de novos conhecimentos científicos ou sem contribuir para o crescimento do mercado de serviços universitários? Como esta situação se estabelece na área ambiental? Sem a pretensão de responder a todos estes questionamentos, poderíamos nos remeter à visão de educação que decorre da visão latouriana de mundo, ou seja, da concepção de ciência que advém da antropologia da ciência e que, sem dúvida, pode contribuir para uma revisão da prática docente. Como bem pondera Branquinho (2010), considerar os objetos como híbridos de natureza e cultura, “traz consequências para a educação em ciências e ambiental, pois modifica a

29 Segundo Santos (2005, p. 41), o conhecimento pluriversitário é um conhecimento transdisciplinar

que obriga a um diálogo com outros tipos de conhecimento onde “a sociedade deixa de ser objeto das interpelações da ciência para ser ela própria sujeita de interpelações à ciência.” Entendemos então que este conhecimento pluriversitário pode ser construído nos moldes propostos por Latour, ou seja, através de um diálogo ativo entre diferentes grupos sociais, identificando e conduzindo de forma compartilhada, o processo educacional em prol de um bem comum. (Branquinho, 2010). Esta premissa considera os saberes popular e científico como saberes de mesma natureza e abre espaço para uma educação mais democrática.

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concepção de ciência que funciona como propedêutica à elaboração de estratégias educativas”. (Branquinho, 2010, s/p). Desta forma, propomos a inserção de uma linha pedagógica VII as listadas anteriormente na descrição da proposta de Mizukami:

I. A abordagem em que a ciência não é entendida como única verdade, ao contrário, é reconhecida como um saber que não está separado de valores e que este interfere e muda a realidade, não sendo, portanto, um critério para a distinção entre as sociedades.

Tal abordagem considera que a ciência constrói objetos híbridos de natureza e cultura como qualquer outro modo de conhecer e, desta forma, valoriza o saber do “outro” como um saber de mesma natureza que o produzido pelos cientistas. Esta escolha propicia um diálogo entre os saber científico e o popular e contribui para uma Educação com uma outra base epistemológica, como bem aponta Branquinho (2005): O conhecimento científico é instrumento de exercício de poder das classes dominantes dentro e fora da sala de aula. A democratização do conhecimento científico sobre a Natureza pode contribuir para o processo de inclusão social desde que o professor integre os saberes popular e científico sobre a Natureza e a saúde em suas aulas. Essa integração contribui para o diálogo entre os dois sistemas de conhecimento por considerar que ambos produzem objetos de mesma natureza: híbridos de Natureza e cultura, que alteram as sociedades no seio das quais foram criadas. (Branquinho, 2005, p. 74).

A não separação entre natureza e cultura advinda desta concepção de ciência, e de educação em ciência, suprime a distância entre sujeito e objeto. Nesta visão, o diálogo entre o saber científico e o popular supera a ideia de que a contextualização do ensino no processo ensino-aprendizagem irá valorizar o conhecimento do aluno para então levá-lo ao conhecimento científico. Ao invés disso, o processo ensino-aprendizagem estará centrado na construção dos objetos híbridos pertencentes ao contexto das redes sociotécnicas que os produzem.

5. Considerações finais

Podemos destacar como conclusões (provisórias) deste trabalho

que utilizando como suporte teórico metodológico a noção de objeto híbrido que participa de redes sociotécnicas, apropriada da antropologia das ciências e das técnicas, é possível analisar o papel da educação na modificação dos graves problemas ambientais vivenciados na atualidade

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sob o prisma da não modernidade. Este enfoque nos permitiu identificar as tentativas de purificação realizadas ao se classificar e separar as diferentes correntes da Educação ambiental e mesmo ao propor revoluções epistemológicas que possam religar o ser humano à natureza, sem considerar que as práticas de mediação estão o tempo todo acontecendo. O discurso da religação e da emancipação só terá sentido, na prática, através da realização de uma crítica contundente à concepção hegemônica do que é ciência e de como fazer ciência, o que trará certamente reflexos nos cursos de formação de professores e, em última instância, na educação em ciências. O entendimento da rede da qual é constituída a educação ambiental e seus agenciamentos nos permitem entender os fóruns híbridos nos quais pesquisadores, políticos, educadores ambientais, estudantes, propostas curriculares, movimentos sociais, comunidades populares, ONGs e garrafas descartáveis disputam as suas posições na composição dos coletivos. Concebendo a questão política como uma escolha epistemológica e, portanto, ligada ao que se entende por ciência, entendemos que é possível fazer uma ecologia política, isto é, uma ecologia sem distinção entre o que é científico e o que é político.

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ARTIGOS | REFLEXÕES SOBRE OS PROBLEMAS AMBIENTAIS VIVENCIADOS NA ATUALIDADE E O PAPEL DA EDUCAÇÃO | FÁTIMA KZAM DAMACENO DE LACERDA

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Sobre a Qualidade da Democracia: uma revisão de literatura

Fernando Augusto Semente Lima Mestre em Ciência Política (UFPE); Bacharel em Ciências Sociais (UFPE); Licenciado em História (UPE)

Resumo Este artigo tem o objetivo de discutir a qualidade da democracia à luz de fatores que a influenciam, como a mensuração da sua qualidade, da avaliação dos mecanismos de responsabilização e de uma reflexão sobre os impactos da desigualdade na qualidade do aparato democrático. Pretende-se realizar tal discussão por meio de uma revisão autores que fornecem subsídios para reflexões acerca do bem estar da democracia, como Dahl, Powell e Lijphart. Pretende-se, com as devidas reflexões, chamar atenção para a necessidade de se pensar a democracia para além de uma dimensão estritamente minimalista. Palavras-chave: qualidade, democracia, responsabilização

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1. Introdução

A qualidade da democracia tem sido alvo de crescentes análises. Esta pode ser abordada mediante a existência de conexões entre os eleitores e políticos; qualidade da representação; inexistência de patologias como clientelismo e comportamentos rentistas; eficácia administrativa, boa governança, longevidade, existência de liberdades políticas e civis, sufrágio universal, etc. Neste artigo tenho o objetivo de tratar sobre alguns destes pontos que contribuem para a qualidade democrática. Tenho ciência da complexidade do tema e de que, toda a literatura, dificilmente pode ser abordada de maneira plenamente satisfatória em um curto espaço como o deste artigo. A despeito dessas considerações, esboço uma tentativa de tratamento, evocando os principais autores que se preocuparam em estudar a democracia e seus vários desdobramentos, além de mecanismos de mensuração de sua qualidade. Trata-se, pois, de uma revisão de literatura sobre qualidade da democracia, utilizando-se das considerações de grandes expoentes da Ciência Política, em especial do setor de política comparada. No artigo tive a preocupação de evitar ao máximo os termos em inglês, bastante comuns na literatura mais avançada da atual Ciência Política. Optei por traduzir o termo accountability ao longo do texto por responsabilização, apesar de ter mantido o termo original, em inglês, nos tópicos e subtópicos. O artigo está divido em três grandes secções, cada qual com seus subtópicos, além das considerações finais. Na primeira seção, “Como mensurar a qualidade da democracia” reflito sobre as estratégias de mensuração empíricas existentes; sobre a possível relação existente entre desenho institucional e qualidade da democracia, além de refletir sobre a existência ou não de um desenho constitucional tomado como ideal ou superior; a seguir trato do caráter randômico do processo de votação democrático e apresento e analiso formas de mensuração da congruência entre eleitores e políticos, indicador de qualidade da representação.

Na segunda seção, “Como avaliar a qualidade dos mecanismos de accountability e responsividade”, abordo a cadeia de responsividade e responsabilização; aponto fatores institucionais que afetam a responsabilização de um país e reflito sobre possíveis causas do déficit de responsabilização na América Latina; trato também do problema da responsabilização e da responsividade que permeiam o poder contramajoritário, tratando também da questão da independência do judiciário.

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Na terceira e última seção, “Democracia, Desigualdade e Pobreza”, reflito sobre a relação entre desigualdade e democracia; busco apontar como a pobreza possivelmente afeta a qualidade da representação; e abordo como o clientelismo influencia na qualidade da democracia. Após essas seções, na última parte do artigo, esboço algumas considerações finais e realizo apontamentos sobre agendas futuras.

2. Como mensurar a qualidade da democracia? 2.1 Quais os limites das estratégias de mensuração empíricas

existentes? O conceito de democracia é fulcral para se lançar qualquer mensuração sobre a qualidade da democracia. Tem-se que ter em mente que se trata de um conceito que é bastante complexo. Refletindo sobre este, Dahl lança a ideia de poliarquia, considerando sua heterogeneidade, apontando vários elementos pertencentes a estes modelos. Logo, neste ponto reflito sobre as estratégias de mensuração apontando suas limitações.

Primeiramente, Collier e Levitsky (1997) apontam que o surgimento de novas democracias despertou uma problemática conceitual. Alguns destes países possuíam atributos considerados democráticos (p.ex. eleições), mas diferenciavam-se bastante das democracias industrialmente avançadas, resultando em ambientes democráticos bastante heterogêneos (Mair, 2008). Como resultado da busca de evitar um alongamento conceitual (agregar elementos não democráticos à noção de democracia) e estabelecer diferenciações entre as democracias para captar a heterogeneidade dos modelos democráticos há o surgimento das “democracias com adjetivos” como democracia neopatrimonial democracia tutelada, etc. Surgem assim três estratégias de inovação conceitual que procuram estabelecer diferenciação e evitar alongamento conceitual (Collier e Levitsky, 1997).

Estas estratégias podem ser definidas através do uso de índices como o Freedom House e o Polity IV. O primeiro, mensura elementos como direitos políticos e liberdades civis; o segundo, tem como objetivo avaliar elementos autoritários, analisando periodicamente as possíveis mudanças de regime (Coppedge et al, 2007).

A primeira das estratégias “tornar precisa a definição de democracia” diz respeito à ideia de novas democracias serem comparadas

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a uma que seja largamente aceita como democracia. Tendo como foco os atributos procura-se evitar que países antes entendidos como democráticos, onde militares imiscuem-se na administração pública; ou há falta de garantias civis (Freedom House); inabilidade de exercer o poder; grande desigualdade social (visão tocqueviliana) Weffor (Collier e Levitsky, 1997); abuso de autoridade (Polity IV), etc, possam ser tomados como democráticos simplesmente por possuírem eleições livres.

Porém, as inovações recentes que alimentam os atributos de diferenciação podem fazer sentido para alguns pesquisadores, mas não para outros. Além desta limitação, há o risco de que esta alimentação seja desenfreada, aumentando o número de atributos. Deve-se usar o bom senso e contextualizar os cenários, mas não de forma excessiva que permita considerar elementos antes excluídos (Collier e Levitsky, 1997). Ainda, o ato de precisar o conceito demanda o uso de ferramentas empíricas que podem não captar a heterogeneidade dos contextos democráticos (Freedom House/ Polity IV).

A segunda estratégia trata da mudança do conceito abrangente relacionado à democracia. Aceita-se que a democracia pode variar de acordo com o conceito abrangente ao qual se liga em certos contextos. Mudando este, por exemplo, “governo”, “governança”, “regime” (Polity IV, buscando elementos autoritários), e “estado” pode-se criar diferenciação sem alongar o conceito de democracia. Logo, quando se trata de tomar um país como democrático, deve-se perceber a qual conceito abrangente este está ligado. Como aponta O´Donnel (id, 1997) tomando o exemplo do Brasil em 1989, pode-se ter um regime democrático, mas não um estado democrático. O limite desta estratégia é dado pela possibilidade de confusão acadêmica quando combinados múltiplos conceitos abrangentes.

Por fim, há a estratégia de subtipos de democracia. Esta adiciona um qualitativo à ideia de democracia: democracia liberal, democracia tutelada, etc. Esta se relaciona com os atributos de refinamento democrático e com conceitos abrangentes. Collier e Levitsky (1997) ao analisarem o comportamento na escada da generalidade de Sartori, segundo a qual conceitos com poucos atributos de definição resultam em aumento de casos (a lógica contrária se aplica), apontam para a necessidade de se diminuir o número de subtipos, estratégia esta que estabelece diferenciação e evita alongamento conceitual. Atente-se que há o risco de que haja generalizações não fundamentadas ao se aplicar os adjetivos.

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Como aponta Mair (2008) a partir da onda de democratização iniciada por Portugal, o ambiente democrático passou a ser dotado de uma grande complexidade e heterogeneidade. Desta maneira, as estratégias apontadas são tentativas de se definir um conceito de democracia dado o aumento dessas formas de governo.

Como colocado, os índices Freedom House e Polity IV ajudam nesta tarefa ao lançarem variáveis passiveis de comprovação empírica do caráter democrático: direitos políticos, liberdades civis, participação política, competitividade política, sufrágio. Estes índices contribuem para análise de modelos democráticos e consequentemente na definição das estratégias de inovação conceitual, mas seu uso deve ser ponderado em virtude de suas limitações. Há o risco de que estes índices não dêem conta da complexidade da grande heterogeneidade dos países democráticos, podendo não considerar todas as características das democracias. Além disso, a maioria dos indicadores pertence às dimensões de inclusividade e contestação, de Dahl (Coppedge et al, 2006). Ainda, coloca-se que os estudos de ordem quantitativa focam mais na análise da dimensão de contestação que da inclusividade, sendo esta última comumente aferida pela existência ou não de sufrágio universal (id, 2006). Some-se a isso o fato de elementos informais, presentes nas democracias, não serem objeto de mensuração dos índices supracitados.

2.2 Desenho institucional e qualidade da democracia. Existe um desenho constitucional ideal ou superior? Que consensos e dissensos existem na literatura tratada?

Nesta seção busco refletir, apresentando uma revisão de literatura,

sobre a existência ou não de um desenho constitucional superior/ideal, apontando consensos e dissensos existentes entre as posições dos autores tratados. Comecemos por Lijphart (2004) trata da sugestão de arranjos para minorar possíveis problemas decorridos de divisão social, especialmente étnica. Para isso elementos como “poder compartilhado” e “liberdade dos grupos” devem existir. O primeiro sugere que os grupos devem possuir acesso ao poder, o segundo indica que os grupos devem ter liberdade para tratar de seus próprios assuntos (Lijphart, 2004). Lijphart expõe sua predileção por sistemas proporcionais, colocando que sistemas majoritários ou sistemas mistos não são ideais para países com fortes divisões sociais e étnicas por conferirem às minorias menor

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representação. Quanto à modelo presidencialista e parlamentarista Lijphart prefere este último por sua feição consensual, em vez de uma cadeia hierarquizada como no presidencialismo. Os processos de tomada de decisão seriam mais demorados, mas de maior qualidade. Por sua vez, “Persson e Tabellini” (2004) refletem sobre como regras eleitorais e tipos de governo influenciam o resultado econômico. Estes autores, diferentemente de Lijphart, parecem preferir os modelos majoritários. Estes traduziriam melhor as preferências dos eleitores. Além disso, neste, os políticos são mais facilmente identificáveis, aumentando a responsabilização - apesar de existir a possibilidade de os políticos governarem apenas para sua base (quando de distrito único). Tem-se que a corrupção é menor quando a regra majoritária é usada, ao mesmo tempo estes autores entendem que o voto em lista é prejudicial por não ser baseado no mérito e preferem o presidencialismo ao parlamentarismo. Para eles o presidencialismo possui uma relação de delegação mais direta, além de possuir freios e contrapesos sólidos entre as instâncias do governo, um índice menor de corrupção e de impostos, consequentemente havendo menos gastos sociais, mas somente em democracias de alto padrão. No entanto, os autores colocam que regimes parlamentaristas produzem melhores resultados econômicos, embora o regime presidencialista não tenha tido resultado ruim. Dando seguimento à análise da literatura temos Gering, Thacker e Moreno (2005). Estes refletem sobre o melhor desenho constitucional, se federal ou unitário. Coloca-se que muitas das novas democracias optam por desenho constitucional federal descentralizado sem refletir sobre sua suposta superioridade. Os autores testam empiricamente o modelo e lançam sua conclusão: o desenho constitucional unitário é superior ao federal. Uma diferença posta entre os dois desenhos é que o primeiro está no topo da cadeia de poder, podendo assumir as rédeas quando necessário, enquanto no segundo há responsabilidades e poderes inatos às unidades locais, fonte de possíveis problemas como competição de toda ordem entre as unidades regionais. A competição entre as unidades regionais não favorece a expertise de competências. Outro ponto dentro do desenho constitucional é a ideia defendida pelo federalismo que a existência de pontos de veto independentes trará consenso. Estes pontos objetivam manter o status quo, e se esse for nocivo sua superação será difícil. Em um regime unitário estas questões hipoteticamente seriam superadas mediante uma retomada de delegação de poder. Seguindo, tomo as considerações de Joe Foweraker e Roman Krznaric (2002). Estes evocando Powell, afirmam que o desenho

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constitucional exerce influência no que chamam de performance democrática. Esta diz respeito à elementos como longevidade da democracia, eficácia do governo e estabilização de orientações liberais. A influência faz-se sentir sobremaneira nas relações institucionais e representação: majoritária ou proporcional. A regra majoritária produz maior responsabilização, corroborando com Persson e Tabellini, enquanto que a proporcional otimiza a representação, possibilitando representação de minorias étnicas, corroborando com Lijphart. Quanto ao tipo de governo, os autores constatam que o modelo parlamentarista é superior ao presidencialista no que toca à performance democrática. Além disso, tomam o modelo federal como melhor no que concerne a garantias institucionais e direitos. Logo, os autores buscam apontar pontos fortes dos dois modelos. No entanto, fica claro a predileção por modelos RP e parlamentarista. Por sua vez, Ackerman (2000) aponta que o desenho constitucional parlamentarista é superior ao modelo presidencial americano. O primeiro não possui um presidente e um congresso igualmente fortes sob ideal de freios e contrapesos. Há a ideia de “parlamentarismo constrangido” onde o primeiro ministro fica no governo desde que tenha apoio de uma câmara de deputados eleita democraticamente. Neste modelo o gabinete e a câmara são limitados por outras instituições, como uma suprema corte. Passo para reflexão da argumentação de McCubbins (2001). Este autor problematiza o sistema de separação de poderes, sob regime de freios e contrapesos, com grande número de atores com poder veto. Admite que existe um “impasse” devido a existência destes, causando “indecisividade”. Esta se situa entre a “decisividade”, possibilidade de fazer política; e “resolução”, poder de manter as políticas. Põe que quanto maior o número de atores com veto, mais difícil será a mudança de políticas – “decisividade” causando “impasse”, enquanto que a “resolução” se dará mais facilmente (manutenção do status quo). Tanto desenhos presidencialistas quanto parlamentaristas são suscetíveis à “indecisividade”, basta haver atores com poder de veto fazedores de política, ou um desenho constitucional que crie vários poderes de veto: federalismo, judiciário independente, etc. Ao apontar isso, McCubbins, em sua argumentação não parece externar predileção por nenhum desenho constitucional em questão, apesar de apontar que alguns colocam que o presidencialismo gera maior “impasse”. Entraves à deliberação, portanto, podem ser encontrados em todos os desenhos constitucionais.

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Por sua vez, Arato (2002) reflete sobre um desenho institucional ideal que promova responsabilização. Coloca que este modelo se assemelharia ao Westminster. Teria como característica o parlamentarismo unicameral. A regra majoritária neste sentido possibilitaria a identificação do governo pelo cidadão mais facilmente. Desconsidera-se o bicameralismo e o federalismo forte, por fomentar redes de culpa entre os atores. No entanto, o desenho institucional para que ocorra a responsabilização ideal deve rever a posição que impede que o judiciário seja eleito, para instituir avaliação destes pelo eleitorado. Portanto, a literatura põe de um lado Lijphart, Ackerman e Foweraker, contrastando com visões mais majoritárias como a de Persson e Tabellini e, de um lado, unitárias de Gerring et al. Arato e McCubbins posicionam-se numa ala mais independente. Um tratando de tipos ideais, e outro dos entraves do desenho constitucional.

2.3 O processo democrático é randômico? Como é possível então mensurar a qualidade (congruência) da representação?

O processo de eleição democrática consiste em um complexo sistema de agregação de preferências. Estas são efetivadas através da congruência entre cidadãos e representantes. Neste ponto, abordo as formas de mensuração da congruência da representação e reflito sobre a característica randômica do processo eleitoral democrático. O voto apresenta-se como o meio pelo qual os representantes são escolhidos, e como instrumento máximo de definição das preferências dos cidadãos (Powell, 2007). No entanto, o processo de votação democrática além de complexo, apresenta um paradoxo. Isto é exposto através do Teorema da Impossibilidade Geral de Arrow (Riker, 1983) segundo o qual nenhum método de agregação de preferências pode ao mesmo tempo satisfazer condições de justiça (método) e alcançar um resultado lógico. A participação dos cidadãos diria respeito às eleições no processo democrático (Powell, 2007). Para Riker (1983) os métodos de agregação de escolhas nestes processos falham em produzir uma escolha social, logo o produto da votação democrática torna-se um regime de agregação aleatório: falhas de transitividade; julgamentos dos cidadãos não importando para o resultado; impossibilidade de configurar-se uma ordem individual análoga à social, etc., afirmando sua característica randômica. Por sua vez, Powell (2007) sugere que as preferências dos cidadãos sejam consideradas no processo democrático. Adiciona que as pesquisas

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empíricas sobre agregação de preferências levam em conta a existência de ambientes institucionais favoráveis à sua consecução: p.ex. instituições que promovam participação e inclusividade, como aponta Dahl. As eleições partem a ter grande papel no processo de agregação de preferências, sobretudo a partir da análise da relação entre preferências dos eleitores e comportamento dos representantes, desenvolvida por Miller e Stokes (Powell, 2007). Powell então passa a considerar a relação que liga as preferências dos cidadãos às políticas implementadas, cujo bom funcionamento resultaria em boa representação (Powell, 2005). Logo, Powell trata então de refletir sobre a possibilidade de mensuração da congruência da representação, relacionando-a a desenhos que a tornem mais favorável, bem como a outros fatores. Primeiramente é feito uso de uma escala esquerda-direita das preferências dos cidadãos (ideológica), onde constam também as expectativas dos partidos, os quais possuem preferências melhor estruturadas (Powell, 2007; Powell e Vanberg, 2000). A partir desta, procura-se observar a posição do eleitor mediano, e em que medida os partidos aproximam-se dessa posição. A congruência entre preferências e partidos indicaria boa representação. Constata-se que os desenhos institucionais, no que toca às eleições, possuem impacto no modo como as preferências são agregadas. Logo, regras eleitorais são importantes, pois influem no grau de desproporcionalidade (Powell, 2004) e representação que sistemas sob regra majoritária e proporcional produzem. Para mensurar o impacto destas, utiliza-se o conceito de “barreira eleitoral”, o qual estabelece o número mínimo de votos para adquirir cadeiras, e da correspondência entre as medianas do eleitor e do partido na escala esquerda-direita, a qual permite que múltiplas dimensões sejam reduzidas à uma única, além de focar no ideal normativo majoritário onde eleitores e partidos possuiriam as mesmas preferências (Powell e Vanberg, 2000). Tem-se que pequenos distritos (Powell, 2004) e regras majoritárias sob “altas barreiras eleitorais” não produzem necessariamente desproporcionalidade do voto-cadeira, apesar de serem mais suscetíveis a este que modelos proporcionais (Powell e Vanberg, 2000). No entanto, é preciso que se considere o comportamento estratégico, segundo o qual os atores anteverão a existência de barreiras e afetarão o processo, permitindo que eleitores desconsiderem partidos que saibam que não conquistarão muitos votos (mais que M+1 partidos) enquanto partidos buscarão formar mais que M+1 partidos, posição de Cox (id, 2000).

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Seguindo as considerações da posição do eleitor mediano, convencionou-se o uso de dois métodos de análise da distância de governos (Powell e Huber, 1997). Entende-se que através de modelos de mensuração como “Distância do Governo I” e “Distância do Governo II” pode-se apontar o grau de congruência entre políticos e eleitores, relativos à posição do eleitor mediano, considerações anteriores às de Powell e Vanberg (2000). Quanto mais distante do eleitor mediano é o governo, menos congruência este fornecerá. O primeiro método diz respeito à posição média de todos os partidos no governo ponderado pelo tamanho dos respectivos partidos; a “Distância do Governo II” liga-se à ideia de que a coalizão governamental é dominada pela colocação da mediana do partido dentro da escala esquerda-direita: estabelece-se que modelos de visão proporcional inesperadamente atingem melhor congruência entre eleitor e políticos se comparados à sistemas mistos e majoritários, apesar deste último propiciar responsabilização. Colocação reafirmada por Powell e Vanberg, ao identificarem que modelos de representação proporcional propiciam maior proximidade entre as medianas do eleitor e do partido.

3. Como avaliar a qualidade dos mecanismos de accountability e responsividade?

3.1 A cadeia de responsividade e accountability e sua violação

As cadeias de responsividade e responsabilização são elementos

importantes para o bem estar da democracia, influindo em sua qualidade. A seguir destrincho os termos e aponto as violações existentes.

Powell (2005) entende a responsividade como elemento de mensuração da qualidade democrática. Esta acontece quando um dado governo é induzido a responder aos desejos de seus cidadãos no que toca a políticas implementadas. Powell concebe a responsividade como uma cadeia, possuindo vários ligamentos. Esta começa com as preferências dos cidadãos, que através de estágios como voto, resultados eleitorais, formação de coalizões políticas e processos de tomada de decisões políticas e políticas públicas movem os ligamentos de “Estruturas de Escolhas” passando por “Agregação Institucional” a “Construção de Políticas”.

Powell aponta as Subversões de cada Ligamento. No primeiro, “Estrutura de Escolhas”, são elas: Controle de informação, diz respeito às dificuldades que cidadãos podem ter em conseguir informações de

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qualidade; Incoerência Partidária, onde os partidos possuem posições incoerentes quando chegam à arena política nacional e Limitações de Escolhas, quando as alternativas dos cidadãos são limitadas. Estas tornam mais hercúlea a tarefa de traduzir preferências através dos votos. No segundo ligamento, “Agregação Institucional”, tem-se estas violações: Distorção do voto-cadeira, Distorção do voto-executivo, Vencedores e Perdedores Condorcet, Mudança de Partido e Impasses de poder. A subversão mais poderosa é a da distorção do vote-cadeira, onde, de acordo com o modelo (majoritário ou proporcional) os votos não serão traduzidos em cadeiras, havendo assim uma subrepresentação de algum grupo. Soma-se o fato de que, com uma distorção do vote-cadeira, haverá um distanciamento dos partidos em relação à mediana do cidadão onde se situam as preferências, e o voto-executivo traz uma distância dos cidadãos em relação à mediana do legislativo. Logo, a agregação de preferências de partidos e cidadãos fica comprometida. O modelo proporcional, segundo Powell, também se diferencia do majoritário por possuir mais possibilidades de agregação de votos recebidos. As subversões do ligamento “Construção de Políticas” são: corrupção e constrangimentos políticos e o “bait-and-swicth”. No primeiro há um desvio de conduta por parte dos políticos buscando maximizar suas vantagens; os constrangimentos diriam respeito às promessas políticas não cumpridas e quebras de hierarquia, etc. O bait-and-switch, ato de fisgar, trata de uma falsa publicização de informações. Os políticos exporiam propostas que os eleitores quisessem. Quando eleitos, os políticos afirmariam que as propostas anteriores seriam impraticáveis por diversos motivos, “forçando” uma mudança de agenda. Já o termo responsabilização refere-se à ideia de um governo prestar conta de seus atos à sociedade. Para a corrente de responsabilização e responsividade Przeworski, Stokes e Manin (2006) atribuem papel significativo à representação refletindo sobre a necessidade de os representados acompanharem as atividades dos representantes. Esta é vista sob dois prismas: o do mandato e o da prestação de contas. No primeiro, as eleições são um meio de conferir o mando do governo para o vencedor. Dá-se quando o representante se ocupa apenas em vencer a eleição ou quando os interesses destes ligam-se aos do eleitorado. No segundo, as eleições são uma forma de tornar os governos responsáveis por suas ações. Porém, há um risco de que a cadeia seja violada, pois os eleitores não sabem com certeza quais são os desejos dos governantes bem como o conteúdo do processo político. A

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representação por prestação de contas necessitaria de informações completas para que os cidadãos fizessem uso do voto retrospectivo. Esta se daria caso os eleitores escolhessem representantes que atendessem a seus interesses ou quando o representante praticasse políticas para ser reeleito (Przeworski et al, 2006). As violações que seguem os autores convencionam chamar “rendas”- quando há mistura entre as esferas pública e privada: os políticos teriam interesses que iriam de encontro ao bem comum; estes buscariam distanciar-se das promessas; implementariam políticas de interesse privado, não cumpririam o mandato, etc. Nesse sentido o voto torna-se um instrumento para reter bons políticos ou punir aqueles que violam a cadeia de responsividade e responsabilização, já que não há nenhum dispositivo institucional que os obrigue a cumprir o conteúdo programático. Após eleitos, há o risco de os políticos distanciarem-se do eleitorado e podem se sentir livres para fazer o que quiserem. Portanto Przeworsli et al (2006) reclamam uma criatividade institucional que permita um maior acompanhamento das atividades dos representantes pelos representados, bem como uma representação plena, um governo responsivo que faça o que os cidadãos querem e refletem que é preciso ir além do voto. Subentende-se nos argumentos dos autores que a responsividade e a responsabilização andam juntas e são mecanismos de mensuração da qualidade da representação e tão logo da qualidade da democracia.

3.2 Que fatores institucionais afetam o potencial de responsabilização de um país? Quais as causas do déficit de accountability das democracias latino-americanas que apresentam patologias?

O desenho institucional tem impacto considerável no grau de

responsabilização de um país. Como afirma Melo (2007), o potencial deste varia de acordo com os arranjos institucionais existentes. Nesta seção reflito sobre estes, no modo como afetam a responsabilização, e as causas do déficit de responsabilização na América Latina. A ideia de responsabilização repousa na tradição majoritária. É entendido que governos majoritários, através do mandato, são mais identificáveis perante a população. Assim, estes agem sob vigilância constante dos cidadãos, conferindo responsabilização à relação (Powell, 2000; Melo, 2007), onde há uso do voto retrospectivo para punir ou premiar políticos. Melo coloca que há um viés majoritário nas análises de política comparada, onde o conceito de responsabilização passou a ser

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um índice de qualidade democrática, inconsistentemente estendido à análise de modelos proporcionais, os quais não possuem propósito de gerar responsabilização. Estes buscariam agregar múltiplas preferências através da fragmentação política, funcionando sob a lógica da inclusividade atingindo o ideal democrático quando as políticas empreendidas refletem a heterogeneidade do eleitorado.

Os desdobramentos institucionais, em boa parte dos modelos proporcionais, como federalismo, representação proporcional e revisão judicial, características antimajoritárias, entravam a responsabilização. O federalismo consiste em um modelo onde há vários pontos de veto – unidades subregionais, locais, etc. Semelhante à este, os mecanismos consensuais que advogam o surgimento de agências independentes também trabalham contra o ideal majoritário. Por sua vez a representação proporcional, à luz das eleições coloca que a questão da identificabilidade em ambientes proporcionais é complicada. Em modelos majoritários, quem comporá o governo é identificado no momento em que se dão as eleições; num modelo proporcional o governo poderá ser formado mediante barganhas pós-eleitorais, o que impossibilitará que o eleitor o identifique, fato necessário para que o eleitor puna ou premie o governo por seus atos. Logo, Melo coloca que há um trade off entre clareza de identificabilidade e responsabilização, do lado majoritário e representatividade e congruência representacional, do lado proporcional. Outro ponto de destaque são os mecanismos de revisão judicial. Não existem meios de fiscalização desta instância pelos cidadãos – além de esta não ser diretamente escolhida pelo voto popular (Moreno et al, 2003) e funcionar como elemento de proteção das prerrogativas das minorias, contrariando o ideal majoritário. Além disso, Moreno et al. (2003) apontam que o judiciário produz poder de veto e torna-se cada vez mais importante no cenário político, podendo limitar a ação dos políticos. Por sua vez, McCubbins e Cox (2001) colocam que quanto maior o número de atores com poder de veto, mais será a política orientada de forma privada.

Logo, Melo põe que modelos que prezem pela concentração de autoridade, em vez de fragmentação, possuem maior grau de responsabilização: modelos majoritários, com elementos como identificabilidade, voto retrospectivo e menor número de agentes no processo, são preferíveis aos modelos proporcionais na geração de responsabilização, embora estes últimos apresentem grande potencial para representação e boa governança, especialmente em sociedades divididas.

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Já Moreno et al (2003) apontam a ideia de que a responsabilização é essencialmente vertical. Para os autores, não é correto tratar de responsabilização horizontal, uma vez que esta sugere a ideia de condição de igualdade entre os atores. Põe-se que a responsabilização é uma relação hierárquica e fazem uso da teoria da delegação, utilizando-se da noção principal-agente. Tem-se que a relação de delegação reside no principal-agente (eleitor delega ao político) e a de responsabilização na de agente-principal (políticos prestam contas ao eleitor). Para tanto, são necessários meios que incentivem os atores.

Moreno et al, colocam que o desenho parlamentarista, se comparado ao presidencialista (comum na América Latina), possui melhor impacto na geração de responsabilização por promover relações hierárquicas (2003). Admite-se que no caso da América Latina, as relações principal-agente não funcionam devido a falta de incentivos moldados por arranjos institucionais eficientes. Desta forma, não há uma sintonia entre os interesses dos eleitores e os dos políticos. Assim, há uma falta de responsividade e responsabilização de um modo geral na região, resultado da existência de patologias como clientelismo, fragmentação partidária excessiva, políticos rentistas, partidos não-programáticos, etc., os quais entravam a relação de responsabilização vertical presente no modelo de Moreno et al. (2003). Além disso, reflete Melo (2007) que sistemas com regras que propiciem competição intrapartidária, com voto preferencial e de lista aberta, contribuem para o fato de políticos beneficiarem somente suas bases eleitorais em vez de aplicarem políticas programáticas, tornando a relação vertical mais fraca. Aspecto comum na América Latina.

3.3 O problema da accountability e responsividade do poder contramajoritário. A independência do judiciário: seus determinantes empíricos e o ideal democrático normativo

Como visto na seção anterior, o judiciário é entendido como mais um ponto de veto na cadeia de relações institucionais e tem conquistado cada vez mais importância nos processos políticos (Melo, 2007; Moreno et al, 2003). No entanto, o poder judiciário não é responsabilizável. Neste ponto, reflito sobre a problemática da responsabilização e responsividade do poder contramajoritário, e sobre a independência do judiciário. No ponto acima, evocando as considerações de Melo, apontei que a responsabilização repousa sob a tradição majoritária. A existência de vários pontos de veto, por acomodar maior número de interesses

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conflitantes, prejudica a responsabilização. McCubbins (2001) atentou para a questão de que múltiplos pontos de veto trazem “indecisividade”, incapacidade de implementar políticas. Como resultado, há um cenário onde as tomadas de decisão são comumente entravadas, tornando o processo decisório moroso (Cox e McCubbins, 2001). Este processo de tomada de decisão pode ser influenciado pelo poder judiciário, o qual é um ator com poder de veto que tende a limitar a ação de políticos, podendo reverter suas decisões (Moreno et al, 2003).

Esta limitação é dada através do uso de mecanismos de revisão judicial e controle de constitucionalidade, tomados como ideais normativos (Melo, 2007), especialmente em regimes presidencialistas (Moreno et al, 2003). Além disso, Melo aponta que mesmo países com desenhos majoritários adotam esta prática, conferindo ao Judiciário sua feição de ponto de veto.

Destaque-se o fato de que constituições escritas são elementos contramajoritários (Melo, 2007). Estas delegam ao poder judiciário o seu controle e costumam impor o principio de supermaiorias para emendamentos (id, 2007). Pondo que as constituições estabelecem este critério para sua mudança, acaba-se por desembocar em um impasse (McCubbins, 2001). A necessidade de se constituírem supermaiorias para emendas implica em um cenário de indecisividade, onde o status quo tende a ser mantido, sendo este um exemplo de mecanismo de inércia constitucional, ao lado, também, de exigências de ratificação (Melo, 2007).

O grande problema da responsabilização do poder judiciário diz respeito ao fato de este não ser diretamente eleito pelo voto popular. Soma-se a isso a característica discreta que possuem as ações e processos desta instância (id, 2007).

A independência do judiciário insere-se cabalmente nessa discussão. Como posto, a independência desse poder tem implicações no grau de responsabilização de um país. Já para Ferejohn (1998) a independência do judiciário visa antes de tudo, permitir que haja o chamado estado de direito, governo constitucional e uma democracia plena. A partir de suas considerações, os juízes devem estar acudidos sob uma aura de independência, a qual traz imparcialidade às decisões destes. Coloca-se assim que fatores externos passíveis de comprometer a independência dos juízes em julgar devem ser neutralizados a partir de arranjos institucionais: p.ex. tornando o cargo vitalício, aumentando seu salário, etc., também evitando que pressões privadas possam influir no ato de tomar decisões.

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No caso americano, exposto por Ferejohn, os poderes são igualmente poderosos tendo em vista evitar possíveis superposições entre estes (freios e contrapesos). Coloca-se que o poder judiciário não está livre de pressões políticas, havendo uma relação entre políticos e judiciário onde os primeiros têm o poder de criar cortes, e o presidente, no caso, pode nomear os juízes. Assim, o judiciário não é um poder “plenamente” desligado dos outros, executivo e legislativo. Isto não implica em uma relação de responsabilização entre os poderes, mas de uma relação horizontal, desprovida de caráter hierárquico (vertical) nos quais há responsabilização (modelos principal-agente) (Moreno et al, 2003). As posições de Ferejohn (1998) remetem à ideia de que há um judiciário dependente, mas com juízes independentes.

O mecanismo de revisão judicial como colocado pode ser tomado como uma patologia democrática (Melo, 2007). Este traz consigo a possibilidade de que processos sejam caracterizados por indecisividade. Waldron (2006), por sua vez, aponta que não há fortes razões pra se acreditar que o mecanismo de revisão judicial, como ideal normativo, possa ser mais eficaz na proteção de direitos do que as legislaturas democráticas, além de pôr que, considerando os resultados que esta gera pode ser tomado como democraticamente ilegítimo. Além disso, reflete que os indivíduos, mesmo tomando o direito e sua proteção como questões sérias, podem divergir sobre eles. Logo, deve haver um ambiente que permita que as múltiplas vozes sejam levadas em consideração sendo estas respeitadas. Este desacordo não é visto como algo ruim, mas põe-se que um mecanismo de revisão judicial baseado no direito normativo, tende a desconsiderá-lo, calando as vozes discordantes. No entanto, este mecanismo não é inapropriado em todas as circunstancias (Waldron, 2006). Reflita-se também que o ato de julgar dos juízes pode ser afetado pelo lado cognitivo, humano, onde preconceitos de toda sorte e outros males morais, etc., podem influir em suas decisões.

Logo, a independência do poder judiciário liga-se diretamente ao mecanismo de revisão judicial. Por sua vez, em países onde este poder é dependente suas incumbências dizem respeito tão somente à aplicação de leis. Estas posições dependerão do desenho constitucional a ser escolhido. 4. Democracia, Desigualdade e Pobreza

4.1. Como a desigualdade afeta a democracia?

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Neste ponto trato a desigualdade e de como um ambiente desigual contribui para a emergência da democracia e que tipos de desigualdades são mais suscetíveis a gerar ambientes democráticos, além de outros fatores. Kitschelt e Wilkinson (2007) relacionaram a condição de pobreza ao clientelismo, sugerindo que sociedades desiguais são mais suscetíveis a este. Já Glaeser (2006) coloca que grande desigualdade levará a construção de grandes preferências em favor de redistribuição e mostra uma correlação empírica negativa entre desigualdade e crescimento econômico. Por outro lado, Boix (2003), Acemoglu e Robinson (2006)1possuem visões distintas sobre como a desigualdade contribui para a geração de ambientes democráticos. Boix (2003) aponta que a democratização é provável quando há igualdade econômica alta e bens móveis. Nestes ambientes, as elites autocráticas temeriam menos os eventuais custos de uma redistribuição, fomentando a liberalização política, onde o eleitor mediano possuiria nível de renda similar. Ainda, a existência de bens fixos contribuiria para maior temor da elite de terem estes expropriados. Ainda sob essa lógica Glaeser (2006) menciona o fato de que as elites, em países menos igualitários, estão menos suscetíveis a compartilharem poder com os pobres por haver medo desta expropriação. Por sua vez, Acemoglu e Robinson (2006) colocam que a democratização é mais provável quando a desigualdade está em níveis regulares, enquanto regimes autocráticos são mais propensos em ambientes com níveis muito baixos ou muito altos de desigualdade. Para estes, em autocracias igualitárias há menor demanda por redistribuição, havendo poucos incentivos para implementar a liberalização política.

No entanto, refletem Ansell e Samuels (2008) que tanto Boix quanto Acemoglu e Robinson focam a democratização através do medo que as elites possuem de enfrentar os custos de uma redistribuição, onde as classes médias e pobres poderiam expropriá-los. Ansell e Samuels (2008) sugerem que a democratização não se dá por demandas redistributivas de uma elite, mas por proteção de direitos de um Estado. Assim, a emergência da democracia seria entendida através da luta entre setores econômicos e sociais pela obtenção de compromissos críveis por parte do Estado, variável desconsiderada por Boix, e Acemoglu e 1 In: ANSEL, Ben e Samuels, David e (2008) Inequality and democratization, paper presented at the 2008 Midwest Political Science Association

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Robinson (Ansell e Samuels, 2008). Logo, caso estes compromissos críveis impeçam que os bens dos diversos grupos sejam expropriados pelo Estado, ou por terceiros, se constituirá um cenário propicio à democracia. Pondo o foco na desigualdade de terra e renda, Ansell e Samuels (2008) apontam que a desigualdade distribucional de terra torna as chances de democratização menores, enquanto autocracias com grandes desigualdades de renda apresentam maiores probabilidades de democratização. Através de testes, Ansell e Samuels, identificaram que há sustentações empíricas para a posição de Boix, de que a igualdade de terra influi na democratização. Porém, indicam que a desigualdade de renda influi de maneira mais aguerrida neste processo. Nos testes sobre a ideia de U invertido, de Acemoglu e Robinson (2006) Ansell e Samuels encontraram poucas evidências de sua comprovação, no que toca a desigualdade de renda e terra.

Logo, conclui-se que a democratização não se dá quando o eleitor mediano demanda distribuição dos ricos, mas sim quando todos os eleitores podem adquirir proteções imparciais para terem garantidas suas propriedades e contratos (Ansell e Samuels, 2008). Ainda, tem-se que o desenvolvimento econômico por si só não leva à democracia, tais garantias expostas acima são necessárias de modo a propiciar distribuição das benesses do desenvolvimento. Ainda, põe-se que igualdade de terra, aliada à desigualdade de renda são elementos que despertam a demanda por compromissos críveis (id, 2008).

Assim, Ansell e Samuels inserem a variável do Estado, relacionado à desigualdade, onde a emergência desse se dá para garantir direitos de propriedade através de compromissos críveis estabelecidos entre os diversos grupos sociais. Dessa forma, a desigualdade, como apontada pelos autores, afeta esse surgimento influindo no estabelecimento de um regime democrático liberal. Ainda, merece menção a possibilidade de a desigualdade econômica afetar toda a estrutura das instituições políticas (Glaeser, 2006).

4.2 Como a pobreza afeta a qualidade da representação?

A variável renda consiste em um indicador bastante importante para mensurar a qualidade da representação. Esta influi no modo como indivíduos podem adquirir informações de políticos, bem como na suscetibilidade destes à participação em modelos de trocas clientelistas. A condição de pobreza - falta de moradia; baixa renda, baixo nível escolar, etc, - favorece o surgimento de práticas clientelistas. Assume-se

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que indivíduos nesta posição possuem necessidades mais urgentes e estão mais disponíveis a negociarem seus votos em troca de bens privados (Kitschelt e Wilkinson, 2007). A negociação desses cria um grave problema: governos clientelistas, através de partidos e políticos, que fazem uso desta manobra, acabam por desconsiderar as prerrogativas da população de baixa renda. De forma contrária o clientelismo exerce pouco apelo sobre cidadãos de maior renda (id, 2007). Soma-se a isso o fato de que em ambientes de democracias desenvolvidas, com maior índice de renda, costuma-se ter um nível educacional maior, o que contribui para a ciência de que relações clientelistas são danosas à sociedade (Kitschelt, 2000; Kitschelt e Wilkinson, 2007). Atestam também Brusco et al (2005), ao tratarem do caso argentino, apontando que não só a pobreza, mas o nível de escolaridade influi na suscetibilidade às práticas clientelistas. Além disto, estes autores põem que quanto mais pobres os cidadãos, mais terão a interpretação de que partidos representam interesses particulares. Tem-se que o desenvolvimento econômico ainda é uma medida apropriada para se mensurar a responsabilização democrática (Kitschelt e Wilkinson, 2007). Democracias pobres, se comparadas às ricas possuem maiores chances de produzirem ambientes clientelistas, menos responsabilizáveis. Já em ambientes de alto desenvolvimento, com índices de renda maiores, há maior competitividade partidária, especialmente quando dois fortes blocos partidários competem, havendo preferência por relações de conteúdo programático, a qual produz melhor responsabilização e entrava relações de patronagem (id, 2007). Corroboram Medina e Stokes (ibidem, 2007) apontando que condições de competição partidária moldam as estratégias de conexão cidadão-político (clientelistas ou programáticas). Por fim, considerando que populações de baixa renda costumam negociar seus votos (Stokes, 2007), tendo em vista a satisfação de suas necessidades e aquisição de bens diversos, a representação destas estará ameaçada, pois o ato de votar não estará conectado a uma base programática (ideológica; objetivação de bens públicos; etc.). Dessa forma, a atuação dos políticos não será fundada na representação destes, mas sim à sua permanência no poder e provimento de pequenas benesses para a população pobre, tendo as prerrogativas desses últimos reduzidas à satisfação de bens imediatos. Além disso, como coloca Brusco et al (2005) se os partidos políticos se valem da pobreza para permanecerem no poder, é possível que não tenham interesse em dizimá-la.

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4.3 Como o clientelismo influencia a qualidade da democracia?

O clientelismo apresenta-se como uma das mais comuns

patologias da democracia. Sua existência influi na qualidade democrática, principalmente por burlar o ideal de representação expresso pelo voto, evitando ligação entre cidadão e político através de conteúdos programáticos. Neste ponto reflito sobre o clientelismo e seus desdobramentos. A relação de troca clientelista é antes entendida sob a noção de principal-agente, onde os eleitores são o principal, e os políticos agentes (Kitschelt e Wilkinson, 2007). O clientelismo consiste em uma troca contingente direta, apesar de poder ser discreta, entre político e eleitor. Nesta relação, as trocas são representadas por bens, podendo estes ser tangíveis ou não, ainda variando conforme a renda do principal (Kitschelt, 2000): dinheiro, empregos, moradias, influencia política, poder, etc. A relação clientelista, deve satisfazer três condições de troca direta: previsibilidade, elasticidade e competição. Na primeira os políticos identificam desejos e respondem a estes; na segunda, eleitores mudam o voto devido a estímulos dos políticos; na terceira, partidos/políticos clientelistas competem entre si para proverem bens em troca de apoio político (Kitschelt e Wilkinson, 2007). Os políticos clientelistas distribuem bens somente àqueles que lhe prestaram apoio - impedindo um ideal democrático de provisão de bens públicos –, diferentemente da visão programática, que distribui bens de forma indireta a largos grupos e políticas públicas à todos. Tendo em vista evitar o oportunismo, políticos clientelistas desenvolvem métodos de monitoramente e fortalecimento, inexistentes nas relações de conteúdo programático. O intuito é estabelecer uma relação de dádiva, onde há sentimento de obrigatoriedade do eleitorado em seguir com a relação clientelista, por motivos até mesmo culturais, como honra (id, 2007). Em uma visão programática, esta é substituída pela identificabilidade no que concerne às posições políticas. A relação clientelista influi negativamente na qualidade da democracia por impedir que as conexões programáticas se dêem. Apesar de colocar que não se pode afirmar que a relação clientelista não produz responsabilização e responsividade (Kitschelt, 2000), a conexão programática ainda é preferível à primeira. Ainda, esta ligação não é estabelecida mediante fatores ideológicos ou históricos (id, 2000), visando tão somente à satisfação de certas camadas do eleitorado. Estas

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dispostas a trocar apoio político (votos) por bens de toda sorte. Ressalta-se que o clientelismo propicia desigualdade de renda (ibidem, 2000), principalmente quando os “clientes” são ricos, causando imobilismo no legislativo devido à venda de favores (regulação, contratos, monopólios, etc.). Ainda, esta relação impede que resoluções de problemas de escolha, através de mecanismos de deliberação coletiva, próprios de relações de conteúdo programático sejam levadas a cabo (Kitschelt e Wilkinson, 2007). Sendo assim, dada uma relação clientelista a representação fica comprometida face uma crescente despolitização do eleitorado. 5. Conclusões

A problemática da democracia apresenta-se como um desenho de pesquisa extremamente complexo. Como apontei no começo deste artigo, deve-se ter em conta a grande heterogeneidade dos países democráticos (Mair, 2008). Nosso planeta a cada dia torna-se mais interligado. Este fato contribui para que os modelos democráticos sejam largamente exportados. A crescente onda de democratização, em especial somada à moda corrente de proteção de direitos humanos como universais, além de pressões externas vem contribuindo para esse alargamento democrático. No artigo, realizei um esforço de apresentar as principais vertentes teóricas incumbidas do tratamento do tema da qualidade democrática. Na primeira parte do artigo, fica claro que há posicionamentos divergentes quanto a ideia de um desenho constitucional e institucional superiores. Lijphart (2004) aponta sua predileção por desenhos proporcionalistas e regimes parlamentaristas. A supremacia do desenho proporcional, ideia bastante difundida na academia, foi criticada por autores como Gerring et al (2005) e Persson e Tabellini (2004). Este debate apresenta-se como saudável. Ainda, as constatações de Powell e Huber (1997), ao, inseparadamente apontarem que regimes de desenho proporcionais apresentam-se como superiores no que toca à representação (proximidade ao eleitor mediano), insere-se à questão dos desenhos proporcionais versus majoritários e, neste último caso, tomava-se como hipótese a posição de que desenhos majoritários, por traduzirem “fielmente” preferências em votos, trariam maior representação, o que não se comprovou. Este debate sobre desenhos proporcionais versus majoritários parece acompanhar toda a literatura. Os fatores institucionais que afetam

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a responsabilização, expostos por Melo (2007), ao menos de modo positivo, referem-se aos elementos majoritários e concentrados, tomando características proporcionais, nalguns casos, como patologias. É interessante essa posição de desafio à majestade do proporcionalismo. Ainda, este autor ponderou sobre a ideia de que desenhos constitucionais são próprios de contextos específicos, delimitados por situações históricas únicas, cada qual com seus determinantes. A qualidade da democracia pode então ser aferida pelo grau de representação, por características democráticas “precisas” através de uma inovação conceitual, definindo parâmetros do que é ou não democrático: regimes de direitos civis e políticos, competitividade entre atores políticos, sufrágio, dentre outros. O que não posso deixar de frisar é a grande importância das considerações de Robert Dahl, com seu Poliarquia, e de Lijphart, com seus Modelos de Democracia. Certamente, estes trabalhos forneceram as bases para o desenvolvimento das considerações dos autores aqui tratados. Mesmo autores contrários a desenhos proporcionalistas não devem negar a importância de Lijphart para os debates teóricos sobre desenhos institucionais e constitucionais e sobre qualidade da democracia. Se puder ir mais além, os próprios índices de mensuração empíricos, como o Freedom House e Polity IV fazem, nada mais nada menos, do que simplificar e operacionalizar as dimensões e caracteres consentidos como democráticos por Dahl. A importância desta figura é inegável. Cabe aqui refletir um pouco sobre possíveis agendas de pesquisa dentro do tema de mensuração da qualidade democrática. Índices que pudessem trabalhar e desenvolver melhor a dimensão de inclusividade de Dahl seria uma sugestão; tentativas de criação de escores sociais ligados, sobretudo ao bem estar, unidos, para mensurar a qualidade de vida nas democracias e tomá-la como um forte indicativo de democracia, pois esta estaria associada a indicadores como participação e proteção a liberdades civis. São ideias ingênuas, mas sinceras.

A sensação, ao fim dessa jornada sobre qualidade da democracia, é que ainda há muito a se discutir, a se trabalhar, a se quantificar, a se teorizar, mas também a garantir. Refletir que o ideal democrático deve transcender as fronteiras teóricas e normativas e ser vivido de fato, através de garantias concretas, contemplando vozes antes emudecidas.

REFERÊNCIAS BILIOGRÁFICAS

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RIKER, W. (1983). Liberalism against populism: a confrontation between the theory of democracy and the theory of social choice. San Francisco, W.H. Freeman. (excerto em Dahl, et al 2003).

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ARTIGOS | SOBRE A QUALIDADE DA DEMOCRACIA: UMA REVISÃO DE LITERATURA | FERNANDO AUGUSTO LIMA

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STOKES, Susan (2007) “Is vote–buying undemocratic?” Frederic C. Schaffer, ed., Elections for Sale The causes and consequences of Vote Buying, Lynne Rienner

WALDRON, J (2003). “A Right-Based Critique of Constitutional Rights” in Robert Dahl, et al, The Democracy Sourcebook, MIT Press.

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ENTREVISTA:

Nós Somos Praga:diálogo com Dedé

Thiago de Oliveira Sales

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ENTREVISTA | NÓS SOMOS PRAGA: DIÁLOGOS COM DEDÉ | THIAGO DE OLIVEIRA SALES

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Nós somos praga: diálogos com Dedé

Thiago de Oliveira Sales – UFPE Licenciado em História, especialista em Etnomusicologia, mestre em Antropologia, doutor em Antropologia, doutorando em Filosofia.

O castigo se faz em catástrofes e enxames. Tudo em excesso é lição: exércitos de insetos, as grandes ondas e os longos discursos repreendem não pelo conteúdo, mas sim, porque ocupam espaço – prova irrefutável de Deus a associar matéria e espírito (panteísmo grosseiro: imensa matéria desvela imensidão espiritual). Crianças abandonam cultos e missas por se sentirem enfadadas, afinal e, por vezes, os sacerdotes falam demais – estão demarcando o espaço a partir de um exercício de “extensão”: quanto mais palavras, mais poder. É as imensas patas do Leviatã, a única criatura imbatível, pois foi criada para não sentir medo. E, tragicamente, mesmo o silêncio do sábio deve aparecer em extensão – silêncio a ocupar espaço, a expulsar os chiados. Silêncio pulverizado no ar a se impregnar nas frestas das casas e dos templos.

E penso com Dedé o crescimento das cidades devidamente acompanhado de uma demissão coletiva: diversos animais foram obrigados a se retirar do “ambiente humano”. Lobos, corujas e hienas condenadas ao exílio. Entretanto, convém destacar, algumas criaturas resistiram bravamente e continuam resistindo com estratégias curiosas, são elas: os gatos, os cães, os pombos, as baratas, as formigas, os ratos e os cupins – tendo esses últimos um alcance inestimável de destruição, pois foram transportados, em conjunto com suas casas, para nossos ambientes, sendo assim, não foram expulsos, foram incluídos sem o próprio consentimento. Os cães, por sua vez, ganharam a confiança do homem oferecendo uma lealdade impensável! Ofertando um mundo sem Judas e Calabar. Gatos, imersos num estado de sensualidade noir, apresentam o ar aristocrático dos verdadeiros príncipes: aqueles que

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nada precisam. Para os “indesejados”, há exterminadores. São caçadores da minucia: eliminam aquilo que, em nossa cognição, é asqueroso e repugnante. Não caçam tigres nem leões, mas criaturas que nos parecem medonhas, irritantes. Haverá, certamente, uma coragem a entrelaçar caçadores de animais selvagens e dedetizadores? Haveria rituais semelhantes? Afinal e, se nas sociedades contemporâneas, médicos operam como xamãs, dedetizadores trabalham como caçadores?

Conheci um deles chamado Carlos André Barbosa, 38 anos, apelidado como Dedé: “Meu irmão, quando era mais novo, me chamava “Dedé”, coisa de pirralho mesmo.”. - Trabalho com dedetização há 13 anos. Antes, eu era mais office-boy, mas, fiquei desempregado e, passei um tempo como barman. Fazia as bebidas de acordo com um cardápio. As dúvidas sobre as bebidas eram resolvidas com um cardápio que ficava lá ao lado. Depois, comecei a trabalhar como ajudante de pedreiro – coisa totalmente diferente, pois sai de uma coisa mais “light” para uma coisa mais “pesada”. Então, surgiu uma oportunidade no jornal, era uma grande empresa precisando de um dedetizador. Pensei assim “vou arriscar”. Cheguei lá, fiz os testes, passei uma semana para ser aprovado, pois tive que levar documentação, fazer umas provas escritas, dentre outros detalhes. THIAGO: Há um curso para se tornar dedetizador? DEDÉ: - Aprende-se de forma prática, é um passando informação para o outro. Os antigos, ensinando os mais novos, vão passando as dicas e as informações. THIAGO: Que dicas são essas? - É assim: é ensinado que tipo de produtos o sujeito vai utilizar, depois, como é feito o preparo da calda, afinal, utilizamos produtos concentrados, sendo assim, quando chegamos aos locais determinados preparamos o produto na frente do cliente, diluindo a quantidade necessária – por exemplo, numa casa dessas, eu calculo qual é a quantidade de produto necessária. THIAGO: Um dedetizador aprende com outro mais experiente? DEDÉ:

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- É sempre assim. Um passando informação para o outro. Não existe um curso. O curso é o “oral”. Um fulano mais velho vai ensinando como se deve fazer – muito embora, claro, temos apostilas que auxiliam o aprendizado. Quem está aprendendo tem que estar atento a tudo, pois quem está ensinando também está avaliando o “interesse” do novato. Quando o aprendiz demonstra desinteresse, o mais experiente pode dizer ao encarregado: “olha, aquele novato ali não tá muito interessado, pois não prestou atenção no que eu disse”. Então, o encarregado segue mandando o novato acompanhar diversos “operadores” mais experientes até “formá-lo” como operador. Na verdade, o “aprendiz” nunca obtém todas as dicas de um único operador experiente, mas sim, através do ensinamento de vários. É quase sempre assim. THIAGO: Lembra-se de seu primeiro serviço sem a presença de um operador mais experiente? DEDÉ: - O primeiro serviço que fui sozinho, se não me engano, foi num hospital. Claro, um hospital é diferente duma padaria e duma residência, pois o hospital tem o CCIH (Comissão de Controle de Infecção Hospitalar), portanto, para diminuir as infecções na unidade tenho que saber onde eu devo aplicar e onde não devo aplicar tal produto químico – é bem mais rigoroso. Por exemplo, para eliminar formigas dentro de uma UTI não posso utilizar um determinado produto com gás, pois assim que preparamos o produto, e fazemos a pressão no recipiente, o gás vai se espalhar no local, lançando o líquido com a química para o ambiente, porém, a água logo se evapora, deixando a química espalhada por todo lado – então, em UTI, por exemplo, utilizamos o produto em gel para que isso não ocorra. O hospital é sempre mais complicado, temos que entrar em área de UTI, pediatria, e tal. Exige-se também o aparato completo para fazer o trabalho, é um ambiente muito delicado. (...) O maior perigo de infecção no hospital não é causado nem pela barata nem pelo rato, mas sim, pela formiga. É um animal pequeno, de difícil visualização, que muita gente deixa para lá – dizem as pessoas “ah! Faz bem para a vista”. Mas, a formiga, pode passar por um determinado paciente entubado com uma determinada doença, se contamina, e depois passa para diversos pacientes num ambiente. O próprio enfermeiro e os médicos não percebem, porque são pequenas e podem passar a doença de um para o outro.

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THIAGO: As pessoas têm muito medo de barata, mas, as formigas são mais perigosas que os ratos e as baratas? DEDÉ: - A formiga traz a doença e o sujeito não vê. O rato e a barata você vê, as pessoas sentem nojo. Mas, claro, temos três tipos de baratas: as americanas, aquelas que saem do esgoto e que voam. Temos também a germânica, aquelas pequenas de cozinha – mas não trazem muita doença, pois costumam permanecer num ambiente restrito, circulam pouco. E também tem aquelas de coqueiro, que parecem um “tanque de guerra”, mas que não transmitem tanta doença quanto á barata americana. Nesse sentido, parecem com o rato, que circulam em diversos ambientes. Há também três tipos de rato: o catita, aqueles que se vê correndo dentro de casa, temos o rato de esgoto, aquele que vemos na rua quando se vê aquele rato saindo do bueiro – vemos muito no centro da cidade. E o rato de telhado, o escalador, ele pode passar de uma residência para outra e pode até subir no prédio, se tiver algum locla que ele possa subir. THIAGO: Qual o mais perigoso? DEDÉ: - O rato de esgoto é o maior transmissor de doença. THIAGO: E qual o mais difícil de matar? DEDÉ: - O rato de telhado. Pois tem que saber o ponto que ele está passando para poder “iscar”, mas, torna-se difícil fazer isso quando o animal não deixa rastros. Já o rato do esgoto, como é pesado, deixa uma “gordura” por onde passa, ele vai se arrastando e deixando o rastro – vai deixando sempre um caminho por onde passa. Já o catita deixa sinais pela casa à medida que vai roendo e destruindo coisas na residência. Não quer dizer que o rato de telhado não faça isso, pois ele desce, se equilibra, entra, e o sujeito não vê – causando os mesmos tipos de estrago. THIAGO: Achas que as pessoas estão mais preocupadas com que praga hoje em dia?

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DEDÉ: - As ocorrências que mais temos hoje em dia foram formigas. Não tanto baratas, mas sim formigas – se bem que tudo isso é por época, não? Além de formiga, têm-se visto muito escorpião. Há um excesso de escorpiões na cidade, escorpião tá virado! THIAGO: O escorpião fica mais distante, não? Ou ele vai para cima do homem? DEDÉ: - O escorpião se estiver no esgoto, só sai se faltar alimento. Enquanto tiver barata, grilo, alimento, ele não sai. THIAGO: Quem come o escorpião? DEDÉ: - A galinha, a lagartixa, o pombo. THIAGO: O pombo? DEDÉ: - O pombo devora tudo. É outro transmissor de doenças, um dos que mais transmite. THIAGO: Existe dedetização para pombos? DEDÉ: - Bem, existe um controle. Normalmente, técnicas que utilizamos para afugentá-los do local. Há também, se for autorizado pelo Ministério da Saúde e pelo IBAMA, um controle com morte, nesse caso, apenas se tiver demasiada infestação – um controle baseado em extermínio. Há um “gel” para esse fim. THIAGO: Você sente pena em executar esses animais? DEDÉ: - Tenho em parte. Mas, penso nas doenças que eles transmitem.

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THIAGO: Você já foi atacado alguma vez? DEDÉ: - Num momento de displicência, quase fui atacado por escorpião e por uma cobra. Devido minha experiência, eu não abro as chamadas “portas iscas” com a chave específica. Normalmente, dou apenas um toque com o pé e a armadilha se abre. Mas, num dia em que eu estava em Muribeca fazendo um serviço, abri uma porta iscas onde havia uma Cascavel dentro. No segundo toque dado no porta iscas, a cascavel saiu – se eu aberto com a mão, ela teria me dado o bote. Daqui que eu ocorre do Muribeca até o Ceatox (Centro de Assistência Toxicológica) no Hospital da Restauração, eu poderia ter morrido. THIAGO: Algum outro colega já foi picado? DEDÉ: - Sim. Tenho colegas que já foram picados por escorpião – dizem ser uma dor insuportável, das maiores que já sentiram. Claro, se a imunidade do sujeito não estiver muito boa, uma dessas picadas pode leva-lo a óbito. THIAGO: E rato? DEDÉ: - Já houve casos de amigo que foi mordido. Mas, tomaram a vacina e não ocorreram maiores complicações – além disso, nem todo rato transmite a doença. THIAGO: Antigamente se utilizavam ratoeiras. Hoje em dia não vejo mais ratoeiras. Afinal, o que houve com as ratoeiras? DEDÉ: - Hoje se utilizam mais adesivos ao invés de ratoeiras, vou explicar por que. As pessoas dizem “Só matou um rato e não funciona mais!” Ora, isso ocorre porque um rato nunca anda só e, além disso, é um animal muito coletivo (talvez, só menos coletivo que a abelha). Numa ninhada tem um dominante – uma espécie de líder que dá ordem para os demais e que, ao mesmo tempo, está gerindo a equipe. Por exemplo: o líder envia algum

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dos subordinados para verificar um alimento, mas, os demais estão atrás observando tudo. A partir do sangue deixado na ratoeira, eles percebem existir um perigo, e assim, o dominante dá novas ordens – é por causa do sangue que eles percebem a cena. O adesivo, não deixa esse rastro. THIAGO: A barata também trabalha coletivamente? DEDÉ: - Não, a barata não. A barata trabalha menos coletivamente, inclusive, a barata pratica até o canibalismo – muito embora o rato também faça um pouco disso. Com exceção da germânica (barata de cozinha), que tem um comportamento mais coletivo. Essas, por exemplo, têm uma prática constante de levar alimentos para a ninhada. Por isso se utiliza o “gel”, ou seja, o “efeito dominó” – é uma comendo e passando o veneno para as outras. THIAGO: Você já sentiu algum abalo na saúde após trabalhar tantos anos como dedetizador? DEDÉ: - Hoje em dia os produtos da gente são controlados pela Secretaria de Saúde e Anvisa, em si, pois determinados produtos que faziam mal antigamente hoje em dia não fazem, porque existe muito controle. A Secretaria de Saúde já retirou muitos produtos do mercado que eram muito carregadas pelo operador. Claro, se houver um caso em que se tá fazendo uma dedetização e um produto bate na sua roupa e entre em contato com sua pele, o veneno será absorvido pela pele. Então, tiramos a roupa, colocamos para secar, e fazemos algum tipo exercício para transpirar e o veneno ser expelido. THIAGO: Você pratica algum exercício específico? DEDÉ: - Nossa vida já é tão corrida que nem é preciso. Na verdade, já é um exercício mexer na bomba e no pulverizador – disse Dedé apontando a bomba. A própria utilização do produto exige um exercício diário – inclusive, os antigos ensinam para os mais novos como se posicionar corretamente para fazer a pressão no pulverizador – constituído de uma haste, uma bomba, uma mangueira e um pulverizador. Claro, para além

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dessa ferramenta básica, para sair o líquido, também existe o gel – tanto para barata, como para a mosca e para formiga. THIAGO: O que um dedetizador controla, afinal? DEDÉ: - Controlamos formiga, barata, cupins, ratos, escorpião, moscas. Claro, a mosca é quase sempre esquecida, mas ela também transmite doença. Para eliminá-las, utilizamos um veneno misturado ao açúcar. Pincelamos esse veneno em determinados locais para que as moscas vejam os cristais de açúcar brilhando – esse veneno, claro, ficará seco. Assim, elas se dirigem até o produto, posam, jogam o líquido para derreter essa camada seca e, em seguida, sugam a substância. Quando fazem isso, sugam o veneno – após isso, elas demoram em média 50 segundos para morrer. Colocamos sempre esse tipo de veneno em locais altos, para que as pessoas não se intoxiquem ao tocar, sem perceber, nas superfícies onde o veneno foi aplicado. THIAGO: Lembra-se de um local onde havia um caso de praga mais grave? DEDÉ: - O caso mais grave, que me deixou espantado, foi num estabelecimento comercial infestado de baratas. Lembro-me de ter perguntado: “vocês estão servindo baratas para as pessoas?”. Não adianta colocar um veneno se a pia do sujeito está repleta de frestas, ou se, da mesma forma, há buracos enormes que permitem até um gato passar. Em pouco tempo a praga se prolifera novamente. Ademais, o cliente só pode fazer o manejo de uma área dedetizada depois de algumas horas. Caso contrário, todo o veneno aplicado é removido. THIAGO: Que animal se dá mais ao contato com o homem? Que animal é mais próximo do homem? Que animal não tem medo de homem? DEDÉ: - Ora, o rato tem medo do homem, o rato só sai se o ambiente estiver silencioso. Acho que a barata e o escorpião são, de longe, os mais corajosos, o escorpião não tá nem aí. Eles não se importam com o que está pela frente – e o escorpião, por ser uma criatura cega e se guiar pelo calor, ataca qualquer criatura que surgir no caminho. Por exemplo: a mãe

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escorpião carrega os filhotes nas costas, contudo, quando um deles cai, por ela não enxergar nada e achar que qualquer coisa é um predador, acaba matando o próprio filhote. O escorpião observa tudo embasado. Claro, a formiga já é de lei, pois anda por todo lado toda hora. De qualquer forma, para além do escorpião e da barata, a formiga é provavelmente a mais afoita – ela também interage demais com o homem. THIAGO: E o animal que não quer papo com o homem? DEDÉ: - É o rato. Ele só faz as coisas à surdina. Com exceção do catita, que é o mais afoito entre os três tipos de rato – ele passa correndo em nossa frente dentro de casa. Já o rato de esgoto só sai quando o ambiente está bem silencioso, e o rato de telhado também, só quando o ambiente está muito silencioso. THIAGO: E o cupim? DEDÉ: - O cupim só anda pelo próprio território, são bastante isolados, são andam nos próprios túneis dele. Mas também não têm medo do homem. THIAGO: E nossa sociedade? Parece mais com que sociedade dessas? - O rato é bem de grupo, a formiga também, pois vivem em colônias – tudo é muito organizado (essa que vemos andando é a chamada formiga operária, mas há lá dentro, no formigueiro, soldados protegendo a rainha, por exemplo). A abelha e o cupim também trabalham em sociedade de forma muito organizada. Penso que o homem seja mais parecido com a barata, pois elas são por si – elas comem, mas, se der para levar para ninhada, elas também levam. É como a gente, tem uns que ajuda e outros que não. Já o rato é muito organizado, muito de grupo, eles pegam o alimento e levam para ninhada. Mas a abelha é, de longe, a campeã em sociedade organizada. THIAGO: Afinal, você dialoga com vários tipos de sociedade diferente, cada uma é uma cultura. Mas fico a pensar: na cidade, há bichos que ficam distantes,

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como os falcões e corujas, mas, por outro lado, há outros bichos que se aproximam mais, insistindo em estar no mesmo espaço. Será que chamamos de praga esses “insistentes”? Esses que querem estar próximo de nós? DEDÉ: - Mas há aí uma diferença: Por que chamamos de praga? Porque ela está no ambiente e pode nos prejudicar. Mas, nós também podemos ser pragas para elas – eu não entendo a praga, mas ela pode ter o mesmo pensamento e pensar que nós somos a verdadeira praga. Afinal, nós estamos avançando para as matas, nós estamos tirando os bichos de lá, estamos desmatando, e assim, os bichos começam a vir para a cidade – estamos tirando o lugar que é deles, eles estavam ali primeiro que nós. Para eles nós somos praga – cada um que dizer que o outro é praga. Na verdade, a praga somos nós. THIAGO: Nós nos preocupamos com a leptospirose... DEDÉ: - Mas, eles precisam se defender. Nós tiramos a comida deles. Os alimentos que eles tinham, nós destruímos, aí eles voltam para a cidade para pegar. THIAGO: Ao mesmo tempo, nós construímos cidades que edificam imensos ambientes para essas “pragas”. Nossas cidades são também ambientes adequados para algumas, não? DEDÉ: - Nós temos valas, esgoto ao céu aberto, e outras coisas. Há inclusive muitos que sofrem mutação. Há venenos que não mais atingem eles, porque certas pragas criam imunidade, se adaptam ao ambiente. Muita gente ainda usa k-othrine, mas, por vezes, pensamos “o k-othrine está fraco”, contudo, o k-othrine não enfraqueceu, mas sim, as baratas sofreram mutação, se adaptaram. Quem é a praga agora? Quem é a praga? Eles ou nós? Nós também somos praga, destruímos a mata, poluímos nosso rio. Por que o ataque dos tubarões? Depois que o Porto de Suape foi feita, ocorreram os ataques. Não havia isso antes. Mas, os detritos indo para o mar, morrendo peixes, prejudicaram o ambiente deles, acabamos com a área de alimento deles – eles têm que procurar alimento. Eles trabalham em sociedade, eles ajudam um ao outro, a gente

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não. Sei que há pessoas que gostam de ajudar as outras, mas são poucas. Imagine se tivéssemos uma sociedade identifica à abelha, como seria? Eles trabalham em sociedade, eles ajudam um ao outro, a gente não. Afinal, pensando assim, quem é a praga?! THIAGO: Mas há outros bichos que vivem junto de nós e não chamamos praga, por exemplo: o cachorro e o gato. DEDÉ: - Porque esses se adaptaram aos seres humanos, e os outros não. Mas, se você olhar direitinho, o cachorro e o gato também transmitem doença! O cachorro, por exemplo, pode rasgar um sofá, trazer doença e, assim mesmo, não é uma praga. Como definir o termo “praga” hoje em dia? THIAGO: Mas a estética pesa. Dizem que cães e gatos são fofinhos e escorpiões e baratas não, correto? A ideia de praga é uma ideia estética? A doença seria uma ilusão? Uma desculpa para chama-los de praga? DEDÉ: - Criou-se um mito que a barata é um inseto nojento. Mas, afinal, se cria baratas em laboratórios – logo, ela não é nojenta, no laboratório ela não tem doença. Mas, na verdade, ela se torna nojenta porque ela está no esgoto. O ser humano não cria e, por isso, diz que é praga. Não criamos e chamamos de praga. Mas, o cachorro pode fazer a mesma coisa. As pessoas criam hamster, que é da família do rato, mas não criam outros tipos de ratos, e aí? Interessante que, na China, se come escorpião, se come cachorro, na China já observam esses animais de outra forma. Creio ser a cultura de país para país. Nossa cultura, diz que determinada coisa traz doença. THIAGO: Criamos as doenças? DEDÉ: - Criamos o mito que determinado tipo de animal são pragas. Todos trazem doença, nós mesmo passamos doença e, nesse sentido, até o ser humano seria uma praga – eu não sei o que é uma praga hoje em dia, eu posso ser considerado uma praga. A barata está tentando sobreviver, eu também estou tentando sobreviver. E, no fim, eu mato a barata porque ela é pequena – mas, nós é que dizemos que aquilo é praga. Chamamos

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praga porque não se adaptou ao ser humano, mas, não quer dizer que os que se adaptaram não tragam doenças para nós. Combatendo a praga, estou destruindo uma sociedade perfeita. Isso não mexe “muito” comigo, por ser minha função, mas, por vezes, penso “eliminei uma sociedade inteira”. E nesse ramo, como de costume, o ser humano só pensa em dinheiro – mas, a praga não, a praga só quer sobreviver. THIAGO: O cupim parece meio distante. DEDÉ: - O homem está avançando tanto com a cidade, que as pessoas desmatam para construir casas. Mas o cupim está na raiz – enquanto tiver alimento na raiz, que é a celulose, o cupim está lá. Pegamos madeira para fazer móveis, pegamos a casa deles e trazemos para próximo de nós. Quando o cupim percebe que os alimentos estão ficando escassos, criam colônias e sub colônias. Os rastros que vemos na parede é justamente a busca por alimentos, colônias tentando construir sub colônias numa busca por alimento. THIAGO: E a sobrevivência dessas colônias, há táticas específicas diante de ameaças? DEDÉ: - Os ratos, percebendo que há menos alimento, iniciam a prática do canibalismo e, da mesma forma, a rata para de reproduzir. Porém, como elas fazem isso? Todos os animais querem manter a espécie viva, penso que todos os animais pensam da mesma forma. THIAGO: Que táticas do mundo animal lhe impressionam mais? DEDÉ: - Penso serem as do rato, acho o rato muito inteligente. Claro que, como toda a espécie, peca em algumas coisas.

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ENSAIO FOTOGRÁFICO:

A Graça Que É Sobreviver

Fotografia de Lídia Marques

Texto de Thiago de Oliveira Sales

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ENSAIO FOTOGRÁFICO | A GRAÇA QUE É SOBREVIVER | LÍDIA MARQUES

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A Graça Que É Sobreviver

Lídia Marques Fotógrafa desde 2008, graduada em Filosofia. Tem o olhar voltado para imagens de contextos urbanos e seu cotidiano.

el diablo

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ENSAIO FOTOGRÁFICO | A GRAÇA QUE É SOBREVIVER | LÍDIA MARQUES

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INTIMIDADE DE UM CASAL

EXÉRCITO FELIZ

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ITACOATIARA | Uma Revista Online de Cultura | RECIFE | VOL.3 – N.2 | DEZEMBRO - 2012 | P. 127-129

ENSAIO FOTOGRÁFICO | A GRAÇA QUE É SOBREVIVER | LÍDIA MARQUES

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Por Thiago de Oliveira Sales Há um certo cinismo em Pinóquio, uma cara-de-pau própria de tudo aquilo que, ao contrário do que esperam, insiste em existir – e sobrevive pelo estranho prazer de sobreviver. O resistir é lindamente lúdico. E as coisas, quando desafiam o tempo, tomam um ar de contraversão tão gracioso. Ficam ali estancadas vendo tudo morrer. Ante esse cinismo celestial, que fica impresso nas coisas, toda cicatriz é bobagem, toda pancada é piada, toda degradação é vida. Teria de ser um texto abusado para fazer jus às fotos de Lídia Marques. São cínicas essas fotos. Porque a "reclamação", sempre sem margens, sempre randômica, ganha aqui contornos tão precisos que poderíamos falar de uma "esculturização da ranzinzisse". Imaginemos uma máquina fotográfica nas mãos de Diógenes. Enquanto as discussões se amontoam, os velhos ranços ficam ali estancados no tempo, marcando as rochas e as árvores e as coisas belas da vida – os célebres presentes e as coisas que procuramos guardar. São encontradas, depois de muito, num inesperado sorriso dum cadeado ou num amontoado de sapatos desgastados. Numa resistência expressa no acúmulo e na mesquinharia – no justo ponto para onde vão os demônios expulsos pela nobreza. Mas tudo isso é um gracioso “cansaço”. E o sujeito retorna àquela casa depois de discutir tanto lá fora. E volta cansado para os seus velhos sapatos, para sua velha segurança, para a sua vida em plenitude. Os objetos fotografados por Lídia resistem à umidade e ao esquecimento, tornam-se, portanto, viscosos e ranzinzas. Permanecem ali tagarelando discussões vencidas e falando o que querem sem se importar onde estão.

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LITERATURA:

Poesias de Frederico Spencer A máquina, o homem e seu tempo

Códigos de barra

Oportunidades

Crônica de Inaê Elias Magno Melhor não ver

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LITERATURA | POESIAS | FREDERICO SPENCER

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A máquina, o homem e o seu tempo Ao Poeta Alberto da Cunha Melo

Frederico Spencer A máquina e o tempo moem . O homem moe a máquina. E o tempo multiplica o homem, em outros que pouco tem. Como alguém se dedicou em plantar? - Palavras ao vento, das páginas sonhou descalculado o mundo sem ventanias nem moendas nem máquinas de multiplicar. Pobre do homem que nasceu; livre para pensar com seus pés de vento enquanto a cidade dorme no branco do papel da máquina a parca vida desdenhar.

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ITACOATIARA | Uma Revista Online de Cultura | RECIFE | VOL.3 – N.2 | DEZEMBRO - 2012 | P. 131-133

LITERATURA | POESIAS | FREDERICO SPENCER

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Código de barras Frederico Spencer A cidade não é o cinza, só: - onde andará o azul das manhãs? Que perdemos na multidão: as esquálidas barras do dia me fascinam com seus códigos me falam das vitrines: - penso: logo existo nos logaritmos dos códigos de barras: o alimento da minha alma pura comprando a nova calça jeans dos desejos que não são meus andando pelas ruas não lembro do amor guardado que prometi, só - os esquálidos códigos de barras nos atravessam e nos esquecemos nesta multidão: nas luzes desta cidade, ocre pulsamos com os seus luminosos: as publicidades nos falam das pluralidades que seremos um dia.

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LITERATURA | POESIAS | FREDERICO SPENCER

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Oportunidade Frederico Spencer Muito cedo chegastes menino, não te enxerguei - talvez o medo me tomou pelas mãos, o tempo hoje corroído cobra o que não se fez das tardes, restam sobre a mesa repartida as migalhas daquilo que se chamaria pão. À noite te arrastas fantasma de caliça e sal roubando as estrelas como um farol não durmo.

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LITERATURA | CRÔNICA | INAÊ ELIAS MAGNO DA SILVA

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Melhor não ver

Inaê Elias Magno

Vejo-o passar ao longe. Nem tão longe. Bangueloso, percebo. Uns dentes parcos, enegrecidos. Tinha dentes famosos, desses que fazem alcunha ao dono. Agora não. Qual nome hoje? Parecia tão calculoso do futuro. Não pretensioso, de negar deuses, destinos. Crente apenas na firmeza dos trilhos: retas imensas; pouco sinuosas e raras curvas. Era manter-se sobre eles, pronto. Descarrilara? Quando? Tempo matreiro! Dias, meses, anos. Há quanto não o vejo em linho e altivez? Fora garboso o homem. Sempre na estica. Gostava de charutos, lembro. Uns charuticos, a bem da verdade. Tinha garbo, não sobras. Mas uns papeletes de fumo que tragava com distinção entre a moldura do branco marfim. Belíssima! Onde? Geografia cruel! Tantos lugares a viver, a lembrar. Onde estávamos quando no último trago de um puro (se bem que não íssimo)? Nesta mesma cidade? Em qual esquina? Qual bar? Homem de pouco estudo, de tudo falava com folga. Bem informado, lembro. Negava preferência: futebol, política, dinheiro. Em tudo aqueles dentes imensos de lindos. Uma perfeição! Ele ali, ao largo, poucos metros de mim. Onde o garbo? Onde o linho? Onde o puro? Mula urbana. Traz uns lixos às costas. Aonde vai? Onde o sorriso? Onde o lindo marfim? Tem a cor da rua. Se olha para algo, não consigo ver. Não consigo ver. E que frio agora, de repente! Tenho vontade de sono, urgente. Aperto os olhos miúdo, vai que passa. Ele se indo. Na moldura da rua. Resto entre restos. Cor de pó. Sinto uma coisa no peito.

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LITERATURA | CRÔNICA | INAÊ ELIAS MAGNO DA SILVA

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Boca do estômago. Coisa ruim, de doer. Há de ser fome. “O menu, por favor”. Esquecido. Nem cachorro por companheiro. Melhor não ver.

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UM PROJETO DO NÚCLEO ARIANO SUASSUNA DE ESTUDOS BRASILEIROS - UFPE