revista scintilla - vol. 6, n. 3 especial

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SCINTILLA REVISTA DE FILOSOFIA E MÍSTICA MEDIEVAL ISSN 1806-6526 Scintilla, Curitiba, volume especial, n. 6.3 2009 Instituto de Filosofia São Boaventura - IFSB Sociedade Brasileira de Filosofia Medieval - SBFM Curitiba PR 2009

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Page 1: Revista Scintilla - Vol. 6, n. 3 Especial

SCINTILLA

REVISTA DE FILOSOFIA E MÍSTICA MEDIEVAL

ISSN 1806-6526

Scintilla, Curitiba, volume especial, n. 6.3 2009

Instituto de Filosofia São Boaventura - IFSB

Sociedade Brasileira de Filosofia Medieval - SBFM

Curitiba PR

2009

Page 2: Revista Scintilla - Vol. 6, n. 3 Especial

Copyright © 2004 by autores

Qualquer parte desta publicação pode ser reproduzida, desde que citada a fonte.

FAE - Centro Universitário Franciscano do Paraná

IFSB – Instituto de Filosofia São Boaventura

SBFM – Sociedade Brasileira de Filosofia Medieval

Instituto mantido pela Associação Franciscana de Ensino Senhor Bom Jesus (AFESBJ)

Rua 24 de maio, 135 – 80230-080 Curitiba PR

E-mail: [email protected] ou [email protected]

Reitor: Nelson José Hillesheim

Pró-reitor acadêmico: André Luis Gontijo Resende

Pró-reitor administrativo: Paulo Arns da Cunha

Diretor: Vicente Keller

Editor: Dr. Enio Paulo Giachini

a) Comissão editorial

Dr. Emanuel Carneiro Leão, UFRJ

Dr. Orlando Bernardi, IFAN

Dr. Luiz Alberto de Boni, PUCRS

Dr. José Antônio Camargo Rodrigues de Souza, UFG

Dr. João Eduardo Pinto Basto Lupi, UFSC

Dr. Carlos Arthur R. do Nascimento (PUC-SP)

Dr. Francisco Bertelloni (Univ. Nacional da Argentina)

Dr. Gregorio Piaia (Univ. di Padova – Italia)

Dr. Marcos Roberto Nunes Costa (UNICAP)

Dr. Rafael Ramón Guerrero (Unv. Complutense – España)

Dra. Márcia Sá Cavalcante Schuback, Södertörns University College

Estocolmo (Suécia)

Dr. Ulrich Steiner, FFSB

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Dr. Jaime Spengler, FFSB

Dr. João Mannes, FFSB

b) Conselho editorial

Dr. Vagner Sassi, FFSB

Dr. Marco Aurélio Fernandes, IFITEG

Dra. Glória Ferreira Ribeiro, UFSJR

Dr. Jamil Ibrahim Iskandar, PUC-PR

Dr. Joel Alves de Souza, UFPR

Dr. Gilvan Luiz Fogel, UFRJ

Dr. Hermógenes Harada

Revisão e editoração: Enio Paulo Giachini

Diagramação: Sheila Roque

Capa: Luzia Sanches

Catalogação na fonte

_____________________________________________________________

Scintilla – revista de filosofia e mística medieval. Curitiba: Instituto de Filosofia São

Boaventura, Sociedade Brasileira de Filosofia Medieval, Centro Universitário

Franciscano, v.1, n.1, 2004-

Semestral

ISSN 1806-6526

1. Filosofia - Periódicos 2. Medievalística – Periódicos.

3. Mística – Periódicos.

CDD (20. ed.) 105

189

189.5

____________________________________________________________

Page 4: Revista Scintilla - Vol. 6, n. 3 Especial

Sumário

EDITORIAL

Fr. Guido M. Scheidt

ARTIGOS

Estudar filosofia, um nada!?

Hermógenes Harada

A vigência do poético na regência do virtual

Emmanuel Carneiro Leão

Pensamento, elemento, transcendência

Gilvan Fogel

Cristianismo e Budismo no pensamento originário

Leonardo Boff

Imensidão e asubjetividade

Márcia Sá Cavalcante Schuback

Eckhart e a superação da metafísica

Sérgio Mário Wrublevski

Alguém me tocou!

Arcângelo Buzzi

Da necessidade do desnecessário

Frei Marcos Aurélio Fernandes, ofm.

Fontes franciscanas e formação

Fr. Dorvalino Fassini

Da inacessibilidade e da jovialidade

D. Fr. Leonardo Ulrich Steiner

A superação no primado da vontade

Denise Quintão

TRADUÇÕES

Zen e o começo

Eiko Hanaoka (-Kawamura)

O boi e seu pastor

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Editorial

A revista Scintilla surgiu com a finalidade de “ser uma centelha de luz, cintilação a

iluminar nossa busca comum no intelecto e no espírito”. Assim está impresso na

contracapa.

Este número é especial, tentando cumprir a mesma finalidade. Queremos homenagear

Frei Hermogenes Harada, hoje com seus 80 anos de vida em plena atividade na arte de

pensar e iluminar os passos, tanto de religiosos como de leigos.

Como expressa o titulo, Scintilla, foram muitas faíscas se transformando em clareira, no

caminho de tantas pessoas que conviveram ou estiveram ao seu lado, meditando,

refletindo o modo de vida de Francisco de Assis.

Aprendemos a sentir o pensamento medieval como algo novo e atual para o tempo de

hoje.

Nós frades tivemos a graça de tê-lo em sala de aula, no tempo de formação teológica e

filosófica. A filosofia, que para alguns parecia abstrata e fora do alcance de quem

procura uma formação adequada para a nossa realidade, torna-se comum na vida de

todo ser humano. E não só, ela se manifesta como um caminho no bem fazer o bem,

neste espaço da vida que Deus nos dá.

Dois exemplos nos ajudam a compreender a ousadia de semelhante homenagem.

Primeiro segue a história Zen: O primeiro é o de “um lutador chamado O-nami, que

significa Grandes Ondas, que reflete totalmente o significado do imenso valor da

meditação. O-Nami era possuidor de grande força e conhecia todos os segredos do judô.

Quando treinava em particular era capaz de derrotar a todos, inclusive seu mestre. Mas

em público, até mesmo um principiante o vencia. Procurou então um mestre Zen para

aconselhá-lo. O mestre morava num pequeno templo nas vizinhanças. ‘Grandes Ondas

é teu nome’, falou o mestre. ‘Permanece no templo esta noite. Medita sobre o teu nome.

Imagina o oceano’. O-nami sentou-se em meditação tentando imaginar-se como as

ondas. Gradualmente começou a sentir-se mais e mais como elas. E começou a chocar-

se com as rochas destruindo-as. Depois foi aos poucos invadindo a terra e levando tudo

de roldão com sua força. Destruiu o próprio templo em que estava. O Buda no altar foi

levado. No meio dos vasos de flores. Antes da madrugada nada mais restava na

consciência de O-nami a não ser o ir e vir de um oceano imenso.

Quando o instrutor chegou pela manhã, O-nami, imóvel sorria. O mestre despertou-o

com um vigoroso toque no ombro e lhe disse: ‘Agora nada mais pode te perturbar’.

Naquele mesmo dia O-nami se transformou no maior lutador do Japão1.

Quem foi discípulo de Frei Hermogenes Harada, e soube seguir suas orientações,

descobriu dentro de si a força necessária para o bem viver.

Um segundo exemplo é o da pesca: Um pescador ensinou-nos a caminhar na escuridão

sem o uso de luz artificial (lanterna). Tínhamos que caminhar de madrugada ao longo da

1 MERTON, T. Zen e as aves de rapina. São Paulo: Ed. Cultrix, 1968, p. 18.

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praia para alcançar uma pedra dentro do mar e dali lançar o anzol antes do nascer do sol.

Há uma qualidade de peixe, o “Sargo”que vem à tona antes do amanhecer.

O pescador mostrou como no estourar das ondas surgem faíscas que indicam o

caminho. A espuma cristalina brilha na escuridão.

Algo semelhante aprendemos no estudo, durante o tempo de formação. Não há

obstáculo que impeça o avanço na conquista do saber.

“Grandes Ondas é teu nome”. Desperta a força que surge de dentro e te tornarás o maior

lutador.

Curitiba, abril de 2009,

Fr. Guido Moacir Scheidt

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Artigos

Estudar filosofia, um nada!?

Hermógenes Harada

Resumo: No início do curso superior da filosofia, todos que iniciamos o estudo

experimentamos ansiedade, receio, dúvida, enfim, inquietações e interrogações que

precedem o começo de quaisquer empreendimentos de porte maior. No entanto, para

além ou aquém desse tipo usual e geral de inquietações e temores, surgem na disciplina

do ensino e aprendizagem da filosofia dúvidas e inquietações todo-próprias acerca do

próprio ser da filosofia, que poderíamos chamar de estranheza do saber chamado

filosofia. Esse estranhamento pela coisa ela mesma da Filosofia está no início do estudo,

aumenta na medida em que nos adentramos cada vez mais no país da filosofia, e nos faz

perder o caminho para dentro do desconhecido intransitado, cuja paisagem do fundo nos

evoca uma afinidade que sabe à disposição para e por fecunda jovialidade do ser do

nada. A seguinte reflexão, num modo de se aviar assaz desajeitado e inexperiente, tenta

ensaiar alguns passos inseguros nas trilhas dessa paisagem.

Introdução

A referência da interrogação do título é ambígua. Diz respeito ao estudar? À filosofia?

E/ou ao estudar filosofia?

Ambigüidade no começo de um curso superior não é bem vinda. Ela é tida, ora como

titubeio, indecisão, dúvida, insegurança, ora como astenia, falta de ânimo intrépido.

Essa constatação, porém, nada diz, se não se mostra em que consiste o objeto da

inquietação expressa nesses termos. Ele é múltiplo. Mas, geralmente na prática, se pensa

no que se pode resumir mais ou menos na pergunta: o que faço com esse tipo de

conhecimento, com sua graduação, seu diploma, na e para a realização do projeto da

vida, individual, social, pública, que busco para o futuro?

Quem assim aborda o começo dos seus estudos superiores já está bastante motivado no

seu projeto de vida, sabe o que quer ser na vida, e por isso, escolheu esta determinada

disciplina científica como meio para alcançar o objetivo, colocado como projeto do seu

futuro.

Nas disciplinas que não são Filosofia, a inquietação presente nos termos acima

mencionados, expressando a preocupação inerente ao começo de todo e qualquer curso,

em relação à matéria disciplinar, não se refere em primeiro lugar nem principalmente à

validade da disciplina e à sua utilidade, à sua cientificidade e positividade, mas sim à

condição da possibilidade subjetiva da consecução, da realização do objetivo do seu

projeto da vida futura.

A interrogação do título desse pequeno artigo se coloca na situação, vivida por quem

quer estudar uma disciplina científico-acadêmica no nível de graduação e pós-

graduação, dentro da perspectiva do objetivo de um projeto de vida. Mas a interrogação

que expressa insegurança e o receio no começo de um curso universitário, acima

relacionados à condição da possibilidade subjetiva da realização do objetivo do seu

projeto da vida futura, é algo comum e geral a quaisquer iniciativas e empreendimentos

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da vida humana. Como tal, não é propriamente do interesse desse artigo que quer se

concentrar especificamente no estudo da filosofia.

Diferentemente das outras disciplinas universitárias das ciências positivas, aqui no

estudo da Filosofia, situado dentro da ambigüidade geral da inquietação inicial de todo e

qualquer estudo superior, surge e se intensifica uma implicância estranha que vem da

própria Filosofia, cuja manha somente aparece depois de se ter andado um bom trecho.

É que, na Filosofia, interrogação, titubeio, indecisão, dúvida e insegurança, em suma, o

sentimento da ambigüidade atinge a própria Filosofia, enquanto disciplina, na sua

estranheza.

No estudo da Filosofia, começa-se com estranheza da disciplina. Estranheza aumenta na

medida em que com ela nos familiarizamos; e se consuma num estranho nada. Nada

saber, nada poder, nada ser. Daí a exclamação da interrogação: Estudar filosofia, um

nada!?

I - Filosofia, uma estranha “disciplina”

Por que chamamos a matéria de um saber científico, no ensino e na aprendizagem, de

disciplina? A resposta parece óbvia: é porque o ensino e a aprendizagem de um saber

científico exigem e pressupõem empenho e desempenho bem disciplinados. A aquisição

do saber científico é um trabalho, bem organizado, positivo e construtivo, de um todo

sistemático, coerente e fundamentado numa exatidão lógica, altamente racional. Trata-

se pois, de impostação humana afinada à objetividade da certeza e controle. Essa

imposição da objetividade da certeza coordena, comanda a praxe do ensino e da

aprendizagem; e se chama disciplina. O oposto da disciplina é a indisciplina, desordem,

anarquia, o acaso, subjetivismo, o irracionalismo, o contraditório, a alógica, a

assistemática.

Mas todas essas significações já fixadas da disciplina e do seu oposto já são derivações

defasadas do sentido simples, uno e imediato, mais próximo da origem da palavra

disciplina que diz propriamente: a dinâmica, o élan do aprender.

É que a palavra disciplina vem do verbo latino discere (disco, didici, discitum, discere).

Discere significa aprender, saber, estudar; conhecer, tomar conhecimento, se informar.

Assim colocada, a disciplina filosófica não tem nada de estranho. Estranho, porém, é

não estranharmos essa maneira de considerar a Filosofia como uma disciplina do

aprender, saber, estudar, conhecer, tomar conhecimento, se informar da impostação

humana afinada à objetividade. É que a Filosofia é uma das atividades humanas, que

juntamente com a arte e a religião, possuem a maior implicação e implicância com a

criatividade e a liberdade humana. Assim, o seu ensino, a sua aprendizagem, a maneira

de se estruturar e se constituir em conjunto de conhecimentos possuem o seu caminho e

o seu modo de ser todo próprio. Podemos, por conseguinte, supor que a sua disciplina, i.

é, a dinâmica, o élan do aprender possui características todo especiais. Com outras

palavras, o verbo discere na disciplina chamada filosofia se nos apresenta como ação,

cujo modo de ser deve ser observado com precisão. Com outras palavras, o ser ativo,

estudioso, inteligente, empenhado e competente na disciplina Filosofia tem razões que a

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efetividade e afetividade da racionalidade, da objetividade e do seu oposto, da

subjetividade desconhecem2.

1. Aprender na filosofia é ativo, passivo, reflexivo?

Seja em que língua for, na compreensão do modo de ser dos verbos, é de grande

importância observar o significado das modalidades das suas vozes.

Segundo o Aurélio, num verbo, voz significa gramaticalmente: “Aspecto ou forma com

que um verbo indica a ação como praticada pelo sujeito (voz ativa), ou por ele

recebida (voz passiva), ou simultaneamente praticada e recebida por ele (voz reflexa

ou média)”. Sem entrar em detalhes especializados na sintaxe gramatical dessas vozes,

observemos o seguinte: a classificação das ações humanas em ativas, passivas e

reflexivas pressupõe a compreensão da ação humana dentro do esquema: homem, como

sujeito e agente da ação, tendo como o término da intenção da ação, o objeto.

Usualmente a respeito das ações humanas, delas, como já foi acima mencionado,

distinguimos a fonte donde e onde se dá a ação, a saber, o sujeito. O homem é sujeito e

agente das ações humanas. Como tais as ações humanas se realizam ora como ações

ativas (= o sujeito agente atua sobre); como ações passivas (= o sujeito sofre a atuação

de outro sujeito sobre ele); e..., também como ações reflexivas. O adjetivo re-flexivo

significa que na ação ativa do sujeito, se dá reviravolta na direção, de tal sorte que a

ação ativa que vai sobre um objeto para fora do sujeito, se vira para o próprio sujeito,

fazendo-o objeto da própria ação ativa, sofrendo-a. É como se o sujeito fosse atingido

pela ação ativa de outro sujeito, portanto, se tornasse sujeito da ação passiva. Só que a

ação ativa da qual se torna receptor, provém do próprio sujeito, enquanto agente da sua

ação ativa. É o que diz o Aurélio: a voz reflexiva é ação simultaneamente praticada e

recebida por sujeito. Só que aqui, o advérbio simultaneamente recebe uma acepção

inexata, pois não é possível que ao mesmo tempo se dêem ação ativa e passiva no

sentido preciso e rigoroso em igual tempo, pois há sempre uma prioridade temporal da

ação ativa sobre a ação passiva. Isto significa que na divisão das ações humanas em

ativa, passiva e reflexiva, a ação humana é considerada preferencialmente a partir da

ação ativa, da atuação. A dinâmica verdadeira é a atuação, é representada pela ação

ativa.

Outra classificação da ação do verbo é em verbo transitivo e intransitivo. No transitivo a

atuação da ação do sujeito transita, passa para o objeto, in-flui na coisa do objeto, mas

propriamente não retorna ao sujeito. No intransitivo, a atuação da ação não transita do

sujeito ao objeto, mas permanece, fica no sujeito e agente da ação. Por isso, no verbo

intransitivo não encontramos objeto. Aparentemente, o que na classificação anterior

denominamos de reflexivo seria um variante do intransitivo e que designamos também

como sendo uma atuação reduplicativa. A atuação da ação sai do sujeito para o objeto,

mas retorna ao ou sobre o sujeito, se reduplicando. É o que é expresso no verbo se

perfazer. No entanto, se bem observarmos, considerar sem mais a atuação intransitiva

com a reduplicativa ou reflexiva pode nos induzir a imprecisão, a saber, a de equiparar a

classificação da atuação da ação do verbo em voz ativa, passiva, reflexiva à do verbo

transitivo e intransitivo. Essa equiparação é possibilitada por uma pressuposição ou pré-

conceito tacitamente admitido em geral de que a atuação excelente e propriamente dita

2 Pedimos perdão a Pascal por esse modo banal e boçal de parafrasear o seu profundo pensamento. Cf.

PASCAL, Blaise, Pensées (Pensamentos), edição Lafume, n. 423; edição Brunschvicg, n. 277.

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da ação é a voz ativa; e que a passiva é uma não ação. A classificação do verbo em

transitivo e intransitivo – e este como variante do reflexivo no sentido do reduplicativo

– conserva em si ainda de algum modo no intransitivo o que é insinuado na assim

chamada voz medial.

Depois dessa observação acerca da classificação da atuação da ação do verbo, lancemos

a modo de “chutação”, aqui assinalada com empáfia como hipótese especulativa, a

seguinte colocação:

Voz média não significa propriamente voz que fica entre ativa e passiva, digamos,

assim meio a meio, mas referente ao “médium”. Daí medial. Médium aqui é latim e

significa: permeio, ambiência, o modo de ser que dá o todo na sua concreção de

pregnância, a entonação, a tonalidade, o colorido. Outra insinuação do médium é

humor, atmosfera, sabor no uso da expressão “este pão sabe a panetone”. É o quê ou o

como, dito na palavra presença. É a ência do pré. O termo pré indica antecedência.

Ência, vigência, essência, ser. Vejamos de alguma forma a dinâmica da estruturação do

ser dessa antecedência. Tentemos, pois, atentar essa transcendência imanente, o a priori

que é, em tudo e a tudo que é e não é; que se torna e deixa de ser, em sendo, cada vez a

seu modo ente e não ente em concreção, em crescimento coincidente, cada vez diferente

na auto-identidade da sua dia-ferênia.

A nossa reflexão hipotética se limita apenas a dizer que o próprio do empenho e

desempenho do estudo da Filosofia é, para quem ensina e quem aprende, adentrar a

disciplina, i. é, o élan da dinâmica do mover-se na ação medial3.

2. Parábola e seu plágio

Para de alguma forma poder dizer isso, recorramos a um trecho da conferência,

intitulada Supervisão e orientação na área dos meios pictóricos e sua ordenação

espacial4 de Paul Klee, quando ele fala desse “tipo” de “coisa”, ilustrando-o com a

imagem de uma árvore. Essa ilustração de Klee é uma parábola. Pará bola é uma

palavra lançada a alguém, um projétil que lhe passa bem a lente, quase o atingindo por

um triz, no seu âmago, acordando-o para o que lhe subjazia oculto como seu ser. O

comentário que aqui segue depois do texto citado de Klee é plágio. Plágio é uma cópia

mal feita da parábola bem dita que atinge e cordializa o essencial da causa da

comunicação, i. é, da linguagem. Por ser cópia mal feita, não possui a força da chamada

da pro-vocação vital, e assim se esvai em blá-blá formal. É nesse sentido que se diz: não

diz coisa com coisa.

3 Dito de modo exagerado, o verbo discere, independente de sua forma gramatical, é no seu ser uma ação

medial. E, radicalizando a exageração, todas as ações humanas, originariamente, antes de ser ativas,

passivas e reflexivas, substancialmente, essencialmente são simplesmente mediais. Cf. A conclusão dessa

reflexão.

4 KLEE, Paul. Übersicht und Orientierung auf dem Gebiet der bildnerischen Mittel und ihre räumliche

Ordnung, conferência pronunciada aos 26.01.1924, por ocasião de uma exposição de quadros, na

Sociedade artística de Jena. O texto foi publicado pela primeira vez em 1945, sob o título Paul Klee, Über

die moderne Kunst (Sobre a Arte Moderna), editora Bentell, Bern. On modern art, tradução de Douglas

Cooper, Bentell, Bern, 1945.

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Antes, porém, de citar o trecho de Klee, como introdução ao que segue, apenas ouçamos

o que o poeta pensador alemão, do século XVIII, Johann Peter Hebel5 diz acerca do ser

humano, do que é o seu próprio, a saber, da existência:

3. Parábola

“Nós somos plantas, que – o possamos gostar ou não de confessar – devemos subir, da

terra, com as raízes, para poder florescer no éter e trazer frutos”6.

Diz Klee:

Deixai que use uma comparação, a comparação da árvore. O artista se ocupou com esse mundo

de multifária configuração e se arranjo, – é o que queremos supor - bem de certa maneira ali

dentro, de todo, silenciosamente.

Ele ali está tão bem orientado que pode ordenar a fuga dos fenômenos e das experiências. A essa

orientação nas coisas da natureza e da vida, a essa ordenação cifrada em enigmas múltiplos e

ramificados eu gostaria de comparar à raiz da árvore.

Daí fluem ao artista as seivas para irem, através dele e através do seu olho. Assim, o artista está

no lugar do tronco.

Pressionado e movido pela força daquele fluxo, ele conduz adiante o intuído para dentro da obra.

Como a copa da árvore, visivelmente se desdobra temporal e espacialmente para todos os lados,

assim acontece também com a obra.

A ninguém há de ocorrer idéia de exigir da árvore que ela forme a copa exatamente como a raiz.

Todo mundo há de compreender que não pode haver nenhum espelhamento reflexo exato entre

em baixo e em cima. É claro que as diferentes funções em diferentes dimensões elementares

devem temporalizar vivas declinações diferenciais.

Entrementes, no entanto, quer se vetar justamente ao artista essas pictoricamente já necessárias

declinações que se afastam dos protótipos. Foi-se tão longe no zelo, a ponto de acusar o artista de

impotência e de falsificação intencionada.

E ele, no entanto, no lugar a ele indicado junto do tronco não faz outra coisa do que recolher o

que vem da profundeza e conduzi-lo adiante. Nem servir, nem dominar, apenas mediar.

Ele, pois, ocupa uma posição modesta, verdadeiramente. E ele mesmo não é a beleza da copa, ela

só passou através dele.

(...)

Gostaria, agora, de considerar a dimensão do objeto num novo sentido para si e ali tentar mostrar

como o artista vem muitas vezes a uma tal deformação aparentemente arbitrária da forma natural

do aparecer.

Por sua vez, ele não dá a essas formas naturais do aparecer a importância obrigatória como o

fazem os muitos realistas que exercem crítica. Ele não se sente tão ligado a essas realidades,

porque ele não vê nessas formas terminais a essência do processo natural da criação. Pois para

ele há mais interesse nas forças que formam do que nas formas terminais. Sem o querer, seja ele

5 (1760-1826) pastor protestante, poeta-pensador e educador.

6 HEBEL, Johan Peter, Obras, editadas por Wilhelm Altweg, Editora Atlantis, Zurique e Frigurgo i. Br.,

1940, volume III, p. 314.

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talvez, justamente, filósofo. E se não faz como os otimistas que explicam este mundo como de

todos os mundos, o melhor e se também não quer dizer que esse nosso mundo circundante seja

ruim demais para tomá-lo por exemplo, diz ele, no entanto assim:

O mundo, nessa sua configuração formada, não é o único de todos os mundos!

Assim, o artista olha as coisas que a natureza formou e lhe faz desfilar diante dos seus olhos com

mirada penetrante.

Quanto mais profundamente mira, tanto mais facilmente ele consegue distender os pontos de

vista, de hoje para ontem. Tanto mais lhe impregna no lugar de uma figura pronta da natureza, a

figura somente ela essencial da criação como a gênese.

Então, se permite também o pensamento de que a criação hoje mal poderia estar concluída, e

com isso, estende aquela ação criativa do mundo, de trás para frente, dando duração à gênese.

Ele avança ainda mais.

Diz para si, ficando desse lado: Esse mundo apareceu diferente e ele há de aparecer diferente.

Tendendo para além, porém, pensa: Nas outras estrelas se pode ter vindo, de novo, a formas de

todo diferentes.

Tal mobilidade nos caminhos naturais da criação é uma boa escola de formas.

Ela consegue mover a quem cria, do seu fundo, e ele mesmo já móvel, há de cuidar da liberdade

do desenvolvimento para seus próprios caminhos de configuração.

A partir dessa impostação a gente deve ter como a seu favor, quando o artista esclarece o

presente estágio do mundo do fenômeno que lhe diz respeito, como casualmente bloqueado,

bloqueado temporal e localmente. Como demasiadamente delimitado em contraposição ao

intuído profundamente e sentido vivamente por ele.

E não é verdade que, já o relativamente pequeno passo do olhar através do microscópio faz

desfilar diante dos olhos figuras, que nós todos haveríamos de declarar como fantásticas e

exacerbadas, se, sem pegar o pivô da coisa, as víssemos de todo por acaso em algum lugar?

Senhor X, porém, ao dar de cara com uma cópia de tal figura, haveria, numa revista sensacional,

de clamar indignado: isto seriam formas naturais? Isto é, sim, o pior dos comércios de arte!

Portanto, o artista, pois, se ocupa com microscópio? História? Paleontologia?

Apenas a modo de comparação, apenas no sentido da mobilidade. E não no sentido da

possibilidade de um domínio do controle científico da fidelidade à natureza!

Apenas no sentido da liberdade!

No sentido de uma liberdade que não conduz a determinadas fases de desenvolvimento, que uma

vez na natureza foram assim exatamente ou hão de ser ou que em outras estrelas (um dia talvez

uma vez constatáveis) poderiam ser justamente assim, mas no sentido de uma liberdade, que

apenas exige o seu direito de ser igualmente assim móvel, como o é a grande natureza.

Do exemplar para o arquétipo!

Arrogante seria o artista que aqui, logo fica metido em algum canto. Chamados, porém, são os

artistas que hoje penetram até a uma certa proximidade daquele fundo misterioso, onde a lei

originária alimenta os desenvolvimentos.

Lá, onde o órgão central de toda a mobilidade espaço-temporal, chame-se ele cérebro ou coração

da criação, ocasiona todas as funções. Quem como artista não gostaria de morar lá?

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No seio da natureza, no fundo da origem da criação, onde a chave do mistério para tudo jaz

guardada?

Mas não todos devem para lá! Cada qual deve-se mover ali, aonde a batida do seu coração acena.

Assim no seu tempo, nossos antípodas de ontem, os impressionistas tinham plena razão, em

morar junto dos rebentos da raiz, junto do cerrado-chão dos fenômenos cotidianos. O pulsar do

nosso coração, no entanto, nos empurra para baixo, profundamente para baixo, para o fundo

abissal.

O que então cresce do impulso desse fundo, chame-se ele como quiser, sonho, idéia, fantasia é

de todo para se tomar a sério, se ele se liga sem reserva à configuração com os meios pictóricos

adequados.

Então, aquelas coisas curiosas tornam-se realidades, realidades da arte, que levam a vida um

tanto mais adiante do que parece medianamente. Porque elas não reproduzem só o visto, mais ou

menos de modo bem temperamental, mas fazem visível o intuído na intimidade oculta (geheim).

II - Filosofar é ser medial

Filosofia é filosofar. Filosofar é ser. Ser é medial.

A seguir, tentemos a modo de plágio, comentar o texto-parábola de Klee. E isto com a

expectativa de que se estabeleça de algum modo a seqüência acima formulada,

explicando a atuação da ação do verbo na voz medial.

1. Sujeito-ato-objeto na existência artística

O mundo da arte é comparado ao mundo natural, da árvore. O mundo da arte se

constitui de artista, de sua ação criativa e de produtos dessa ação, de obras ou objetos

artísticos e de tudo quanto se refere a eles. A relação entre os elementos constitutivos do

mundo da arte se estrutura no esquema sujeito-ato-objeto. Em Klee esses elementos, na

comparação, se dão da seguinte maneira: o artista; este se ocupa e se arranja; com o

mundo de multifária configuração. E ali, no mundo de multifária configuração, o

artista está bem orientado e ordena a fuga dos fenômenos e das experiências. Essa

orientação nas coisas da natureza e da vida, essa ordenação cifrada em enigmas

múltiplos e ramificados Klee compara à raiz da árvore.

a) Sujeito

Na maneira corriqueira de usar o esquema acima mencionado sujeito-ato-objeto, o que

aqui Klee compara à raiz da árvore, a saber, orientação e ordenação, é colocado dentro

do sujeito, na sua mente, como atos que classificam e ordenam os objetos ali ocorrentes

diante e ao redor do sujeito-homem. Essa colocação considera no fundo o próprio

sujeito homem como raiz e passa por cima do que Klee acentua com insistência: que o

artista é tronco, ele é apenas passagem. Klee não fala nem do sujeito nem das suas

ações. Fala do artista. O artista, de todo e em concreto, é o ente cujo ser é existência.

Aqui, ser é responsabilidade por e para ser cada vez, na absoluta liberdade de ter que ser

como mundo: artista é ab-soluta ocupação, a soltura livre por e para a prenhez de

cuidado da con-creção e con-creação como mundo de multifária configuração; e se

perfaz na in-sistência dessa ação. Ali se dá a realização da realidade arte: o artista se

ocupa e se arranja, se justifica, torna-se real a partir e dentro da possibilidade

denominada arte: está em casa, está adentrado no âmago, no imo da vigência, no todo da

possibilidade de ser: é ser-no-mundo.

Page 14: Revista Scintilla - Vol. 6, n. 3 Especial

Essa pré-sença antecedente não antecede nem sucede, mas qual discreta diligência

retraída entoa, compenetrada num silêncio claro, tudo que é e não é, tudo que antecede e

sucede. Assim, de antemão, a priori, sem antecedência e sem seqüência se dá um quê

todo próprio, que penetra, impregna, recolhe e dá volume, consistência, densidade ao

todo da possibilidade de ser, e faz ver tudo a partir e dentro, sob o esplendor, i. é, sub

specie, do ser arte. Em vez desse modo enrolado e indiferenciado de dizer, Klee fala

com cuidado e discrição de orientação nas coisas da natureza e da vida. Essa

orientação que ele compara à raiz da árvore aparece como ordenação, cifrada em

enigmas múltiplos e ramificados. Dessa orientação, dessa raiz fluem ao artista as seivas

para irem, através dele e através do seu olho. (...) Pressionado e movido pela força

daquele fluxo, ele conduz adiante o intuído para dentro da obra. É nesse processo da

gênese da obra que Klee coloca o artista como passagem, na tarefa de ser passagem:

Assim, o artista está no lugar do tronco.

Por conseguinte, o artista não é nem sujeito, nem agente da obra. E ele, no entanto, no

lugar a ele indicado junto do tronco, não faz outra coisa do que recolher o que vem da

profundeza e conduzi-lo adiante. Nem servir, nem dominar, apenas mediar.

Ele, pois, ocupa uma posição modesta, verdadeiramente. E ele mesmo não é a beleza

da copa, esta só passou através dele.

Trata-se, pois, da mediação, do modo de ser do médium, da ação medial. Mediação, o

perfazer-se na e como mediação, ser médium do permeio não é ao modo da atuação

ativa, passiva, reflexiva, não é nem objetiva nem subjetiva, é apenas surgir, crescer e

consumar-se como obra. É o nada silencioso e retraído, sempre cuidadoso e diligente,

onipresente em todos os momentos da gênese da obra de arte, em se tornando, em

sendo, cada vez novo e de novo. E o mundo da obra que surge, é como a copa da árvore:

visivelmente se desdobra temporal e espacialmente para todos os lados. (...) Todo o

mundo há de compreender que não pode haver nenhum espelhamento reflexo exato

entre em baixo e em cima. É claro que as diferentes funções em diferentes dimensões

elementares devem temporalizar vivas declinações diferenciais.

São a orientação, a fonte, a raiz de onde fluem inspiração e toques da atuação medial da

ação de mediar, que ordenam as diferentes funções em diferentes dimensões

elementares e que devem temporalizar vivas declinações diferenciais nas obras; por sua

vez atuam cifrados em enigmas múltiplos e ramificados, constituindo a “lógica” da arte

na sua criatividade.

Resumindo o que Klee nos disse até agora, temos o seguinte:

● orientação (na raiz das raízes) → ● ordenação (raízes) → abre-se em:

inspirações e toques da ordenação, codificados em enigmas múltiplos e

ramificados

{ ∞ o artista (tronco): mediação, passagem, atuação da ação medial ∞ }

● o mundo das obras de Arte, de multifária configuração na fuga dos fenômenos

e das experiências da existência artística (a copa, os galhos).

Page 15: Revista Scintilla - Vol. 6, n. 3 Especial

b) Objeto:

Para nós, hodiernos, as obras da ação criativo-medial da mediação artística são

consideradas como efeitos, causados pelo homem-sujeito, i. é, sub-stância de

sustentabilidade e agenciamento da produtividade estética. Assim, obras são o conjunto

de objetos, de diversos tipos, mas todos referidos à interpelação produtiva do

agenciamento desse sistema objetivo da estética.

O mundo das obras de arte, de multifária configuração na fuga dos fenômenos e das

experiências artísticas, orientado e ordenado pela atuação da ação medial da artista-

mediação não é objeto. Não são soma de objetos do sistema, mas estruturações

concretas de eclosões, crescimentos e consumações da possibilidade de ser na natureza

e vida. São, antes, diferentes funções da dinâmica de ordenação sob o toque da

orientação proveniente das profundezas da possibilidade de ser, que temporalizam e se

fazem visíveis em diferentes dimensões elementares, como vivas declinações

diferenciais. A linguagem, i. é, o modo de vir a si, o tornar-se, o destinar-se no tempo e

no espaço, portanto, a epocalidade dessa estruturação é o mundo e sua mundidade.

Assim, mundidade não pode ser compreendida plenamente na lógica da objetividade,

correlativamente também não na da subjetividade.

Assim, na sua Confissão criativa7, diz Klee: Arte não reproduz o visível, mas faz visível.

Mas faz visível o que?

Ao considerar a dimensão do objeto num novo sentido para si, a saber, como mundo, e

ao nos convidar a ver a obra de arte, não como esse e aquele objeto ali ocorrente, mas

como forma terminal de todo um movimento da vigência e da dinâmica de formação

criativa, enquanto realização da realidade inesgotável da possibilidade da arte, Klee

responde a essa pergunta: Arte faz visível a existência artística como trilha do retorno à

origem da força formativa do mundo das estruturações artísticas. Nesse sentido, no

inter-esse da existência artística, o artista não dá a essas formas naturais do aparecer a

importância obrigatória como o fazem os muitos realistas que exercem crítica. Ele não

se sente tão ligado a essas realidades, porque ele não vê nessas formas terminais a

essência do processo natural da criação. Pois para ele há mais interesse nas forças que

formam do que nas formas terminais.

(...) Assim sendo, o mundo, nessa sua configuração formada, não é o único de todos os

mundos! A mira da aberta na existência artística quanto mais profundamente ela mira,

tanto mais facilmente consegue distender os pontos de vista, de hoje ali ocorrente para

ontem, para a estruturação da origem, tanto mais, em vez de ficar parada no lugar de

uma figura pronta da natureza e/ou da vida, impregna as configurações das formas

terminais com a vigência da força abissal da possibilidade, “nadificando”-as com a

plenitude da entificação finita, em cuja possibilidade onipresente reflui, aliás, como

forma sem forma, somente ela essencial da criação como o gênese, crescimento e

consumação.

Essa mira, a visão translúcida, situada no mundo das formas terminais, vai por assim

dizer atravessando camadas de formas terminadas, fixadas como pressuposições,

7 Klee, Paul, Schöpferische Konfession, publicada pela primeira vez em “Tribüne der Kunst und Zeit”,

editada por Kasmir Edschmid, na editora Erich Reiss, Berlim, 1920.

Page 16: Revista Scintilla - Vol. 6, n. 3 Especial

classificações e padronizações do que se fez na e da natureza, do que se fez na e da

vida; vai subindo e adentrando a modo de contracorrente o fluxo da força formadora,

em retorno ao toque inicial da origem e agiliza a prontidão da aberta do ex-sistir

artístico numa mobilidade cada vez mais disposta, generosa e livre. Essa mobilidade

livre consegue mover a quem cria a vitalidade da contenção a partir do seu fundo; e ele

mesmo, uma vez vitalizado e já móvel, há de cuidar da liberdade do desenvolvimento

para seus próprios caminhos de configuração, seguindo os ductos da ordenação e da

orientação que vem da raiz, cuja origem é abismo insondável e inesgotável da

possibilidade de ser.

Portanto, se o artista, enquanto ex-sistência artística, é tronco que é passagem, não faz

outra coisa do que recolher o que vem do abismo da profundeza e o conduz adiante; se

ele nem serve, nem domina, mas apenas media; se ele, verdadeiramente, pois, ocupa

uma posição modesta de ser medial; e assim, se ele mesmo não é a beleza da copa, que

só passa através dele; então, nesse nada de função medianeira, ele apenas deixa ser ● a

orientação (raiz das raízes) que conduz ● a ordenação (raízes); esta por sua vez se abre

em inspirações e toques da ordenação, codificados em enigmas múltiplos e ramificados;

e deixa eclodir o mundo das obras de arte, de multifária configuração na fuga dos

fenômenos e das experiências da existência artística (a copa, os galhos). Ora, se é

assim, então esse movimento, essa mobilidade, representada estaticamente como

seqüência ocorrente de fundamentos, a modo de causa e efeito, a modo meta-físico não

é compreendida adequadamente. A terra na qual se assenta a raiz se adentrando nela é

considerada como um ente absoluto, imutável, perene, um Ser, que causa e dá o

fundamento absoluto a outros entes, representados na comparação como partes

componentes da árvore como: raiz das raízes, raízes, tronco, galhos principais, galhada,

folhagem e flores e frutos, portanto, como a copa. E tudo isso, numa hierarquia de

causas e fundamentos como camadas de entidade fixa em diferentes níveis de

excelência do ser. A comparação da árvore, se a olharmos externamente como partes de

um todo, pode nos induzir a essa maneira defasada de entender a comparação de Klee.

Ao passo que a precisão, a simplicidade certeira da sua exposição concreta da

estruturação da origem da e na existência artística, da e na obra de arte, nos apresenta a

con-juntura da dinâmica de estruturação, na qual todos os elementos se referem à

origem, i. é, ao toque do abismo insondável e inesgotável da possibilidade de ser, em

multifárias funções do mesmo, na mobilidade e na liberdade da soltura ab-soluta da e na

vigência da criatividade.

Tudo isso quer dizer: o artista, cujo ser é existência artística, com diligente preocupação,

cuida de tudo, tudo se lhe torna função e referência da busca da criatividade, de tal

modo de tudo que se pergunta: o artista, pois, se ocupa com microscópio? História?

Paleontologia? Química? Psicologia, Sociologia etc., etc. ?

Responde Klee: apenas a modo de comparação, apenas no sentido da mobilidade. E

não no sentido da possibilidade de um domínio do controle científico da fidelidade à

natureza, portanto, da objetividade. Mas então, essencialmente, radicalmente, em que

modo, em que sentido?

Apenas no sentido da liberdade! No sentido de uma liberdade, que não conduz a determinadas

fases de desenvolvimento, que uma vez na natureza foram assim exatamente ou hão de ser ou

que em outras estrelas (um dia talvez uma vez constatáveis) poderiam ser justamente assim, mas

no sentido de uma liberdade, que apenas exige o seu direito de ser igualmente assim móvel,

como o é a grande natureza.

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Do exemplar para o arquétipo!

Arrogante seria o artista que aqui, logo fica metido em algum canto. Chamados, porém, são os

artistas que hoje penetram até certa proximidade daquele fundo misterioso, onde a lei originária

alimenta os desenvolvimentos.

Lá, onde o órgão central de toda a mobilidade espaço-temporal, chame-se ele cérebro ou coração

da criação, ocasiona todas as funções. Quem como artista não gostaria de morar lá?

No seio da natureza, no fundo da origem da criação, onde a chave do mistério para tudo jaz

guardada?

Mas, não todos devem para lá! Cada qual deve-se mover ali, aonde a batida do seu coração

acena.

Assim no seu tempo, nossos antípodas de ontem, os impressionistas tinham plena razão, em

morar junto dos rebentos da raiz, junto do cerrado-chão dos fenômenos cotidianos. O pulsar do

nosso coração, no entanto, nos empurra para baixo, profundamente para baixo, para o fundo

abissal.

O que então cresce do impulso desse fundo, chame-se ele como quiser, sonho, idéia, fantasia é

de todo para se tomar a sério, se ele se liga sem reserva à configuração com os meios pictóricos

adequados.

Então, aquelas coisas curiosas tornam-se realidades, realidades da arte, que levam a vida um

tanto mais adiante do que parece medianamente. Porque elas não reproduzem só o visto, mais ou

menos de modo bem temperamental, mas fazem visível o intuído na intimidade oculta, na qual

sempre já estamos e sempre de novo vamos estar como em casa (Geheim)8.

2. Mas de que estamos falando? Da arte ou da filosofia?

Sem dúvida alguma, da filosofia. Estamos perguntando, a atuação da ação chamada

Filosofia, seu ensino e sua busca, a dinâmica do trabalho, do empenho e desempenho

do aprender a Filosofia, portanto, a disciplina filosófica é a modo medial?

Mas então para quê toda essa fala da arte e da sua gênese? Filosofia não pertence à

dimensão racional do homem, à sua mais alta excelência (metafísica) para uns, para

outros, à época histórica do passado, mas que serviu para despertar a humanidade da

irracionalidade (da superstição, da religião) e nos fez evoluir para a excelência suprema

do saber racional, a saber, das ciências modernas? E a arte por sua vez não pertence à

dimensão irracional do sentimento, da emoção e intuição do coração, portanto à área da

subjetividade, oposta à da objetividade?

A justificativa para ilustrar a estruturação interna do estudo da filosofia através das

palavras de Klee, que fala da essência da arte, nós a recebemos do próprio Klee, quando

ele ao caracterizar o inter-esse do artista diz: ele não se sente tão ligado a essas

realidades, porque ele não vê nessas formas terminais a essência do processo natural

da criação. Pois para ele há mais interesse nas forças que formam do que nas formas

terminais. Sem o querer, seja ele talvez, justamente, filósofo.

8 Em alemão o prefixo Ge conota ajuntamento, recolhimento, densificação. Heim significa lar, em casa.

Geheim, Geheimnis, significa mistério, o per-meio, o toque mais próximo a nós mesmos do que nós a nós

mesmos.

Page 18: Revista Scintilla - Vol. 6, n. 3 Especial

Segundo a afirmação de Klee, o inter-esse essencial do artista, a saber, o de ir à origem

da sua dinâmica criativa, portanto, o retorno ao toque inicial donde atua a força

formadora das formas terminais ocorrentes como do mundo já ali constituído da arte

seria o mesmo do filósofo: nisso de buscar na origem, na sua gênese o abismo da

possibilidade de ser, nisso sem o querer seja ele talvez, justamente, filósofo. Há

portanto, entre filosofia e arte uma afinidade de fundo. E talvez possamos acrescentar: e

também há a mesma afinidade de fundo com a religião. Isso, admitindo-se como

hipótese inicial que entre inúmeras atividades que preocupam a humanidade, há três

verbos, i. é, ações, a saber, poetar, pensar e crer, em cujo seio ainda se contém o

frêmito de grande saudade e indigência pela plena soltura da ab-soluta liberdade. Poetar

é vigor de origem que vem à fala na arte e quando defasada se instaura como estética;

Pensar é vigor da origem que vem à fala na filosofia e quando defasada se instaura

como ideologia; e crer é vigor da origem que vem à fala na Fé e quando defasada se

instaura como religião. Trata-se de totalidades, de mundos cuja mundidade são

diferentes, mas que possuem afinidade de fundo, cuja identidade, não mais pode ser

compreendida como generalidade, comunidade, igualdade, significados esses,

agenciados nos termos usados como óbvios na estética, na ideologia, e na religião. A

sensibilidade pelo sentido do ser de todos esses termos, somente começa a tornar-se

busca, questão, quando o ser da arte, o ser da filosofia e o ser da fé, não mais é

considerado como uma das atividades entre outras atividades dos nossos afazeres, mas

como o destinar-se historial da própria autonomia, como existência. Poetar, pensar e

crer, existência artística, existência filosófica e existência crente, sua identidade e

diferença é um tema que extrapola a finitude de nosso ensaio, se não o abordarmos com

um novo cuidado, discrição e ânimo próprio. Por isso, aqui deixemos apenas

mencionada a questão, para nos justificarmos porque citamos um longo texto de Klee

para refletir acerca do ser do estudo da filosofia.

III – Um nada?!

Depois de todo esse blá blá que não disse coisa com coisa por ser plágio, enrolados e

emaranhados, voltemos ao problema do começo, onde constatamos como fato a

seguinte situação: em todo o começo do estudo, principalmente quando se trata de

adquirir, dominar e gerenciar o saber superior como um excelente instrumento para uma

determinada meta a ser alcançada. Nessa perspectiva, tudo quanto não possui o modo de

ser da mira (cf. do fuzil), clara e distinta, exata e certeira é tido por inseguro, duvidoso,

defasado, interferência a ser eliminada da busca de objetivo e objetividade na meta.

Esse modo de interpelação produtiva cria uma consciência do poder e eficiência, que se

faz necessária cada vez mais, na medida em que tal intencionalidade fascina e impregna

o agir, julgar e ver no usufruto de tudo transformar, tudo produzir, tudo processar para

criar um novo mundo, isento de dor, sofrimento, fraqueza, titubeio, de ambigüidades e

incertezas, isento de tudo isso que acena para a diferença de fundo. Toda e qualquer

instituição de ensino, aprendizagem e pesquisa, na medida em que não apenas funciona

correta-politicamente, seguindo os padrões e as medidas impostas pela publicidade do

poder dominante, um dia vai ter que colocar questões que tocam o fundo, a raiz de toda

e qualquer posição fundamental das nossas impostações disciplinares das matérias do

ensino, aprendizagem e pesquisa do saber, não em referência à excelência e ao valor da

medida e do critério que ali operam como óbvios, mas enquanto o sentido do ser do

todo que ali se constituiu como mundo estabelecido, a partir da mobilidade e da

liberdade de um toque da possibilidade de ser. Repetindo, nesse ânimo da busca de

aprofundamento ou do retorno pela origem, pela gênese in-tuitiva, para dentro do

abismo insondável da possibilidade de ser, Filosofia e Arte são afins. O artista e o

Page 19: Revista Scintilla - Vol. 6, n. 3 Especial

filósofo, no toque do poetar e do pensar, são animais de fundo. Seu existir é conter-se,

manter-se, é ser aberta do fundo abissal, suspenso ao e no nada. Esse nada não nadifica,

apenas entifica, até mesmo a nadificação. É a imensidão, profundidade, a

magnanimidade, livre, solta, generosa, serva e moça, cada vez ali jovial, disposta,

apenas disposta, sem nada poder, sem nada querer, sem nada saber, sem nada ser e/ou

não ser, a não ser pré-sença. Pré-sença alegre no cuidado finito, recatada e diligente em

tudo recolhendo e acolhendo sob a sombra da sua ab-soluta soltura da mobilidade e

liberdade da possibilidade agraciante, ou melhor agradecida. Os entes no seu todo, seja

o que e como for, nascem, crescem e se realizam através da humanidade, como eclosões

do mundo e sua mundidade. E a existência, na fiel sistência no ex; é a grata e agraciada

mira da maravilha, do instante da passagem livre da reviravolta do e para a

possibilidade de ser e não ser, é a privilegiada filha da liberdade abissal e vivificante do

Nada inominável.

Conclusão

Insatisfeitos, concluamos esse plágio, perguntando: o que tem a ver tudo isso com a

ambigüidade no começo do estudo da disciplina chamada filosofia e as vozes ativa,

passiva, reflexiva ou média ou medial do verbo?

Talvez as inúmeras inquietações encontradas no começo do estudo, i.é, do zelo e

empenho do ensino, aprendizagem e pesquisa da Filosofia – para além ou aquém de

todas e quaisquer inquietações, apresentadas pelo começo de quaisquer ações em geral

de qualquer empreendimento humano –, dirigidas desde o começo ao próprio ser da

Filosofia, não tenham algo a ver, ou melhor, tudo a ver com o Nada Inominável que nos

visita em todas as vicissitudes da existência, em tudo que é e não é, em tudo que se

torna e se consuma, em tudo que prospera e definha, cada vez, sempre, no começo, no

meio e no fim, a cada instante como sentido do ser? E assim ao vir de encontro, nos

visitando, se retrai e se esconde, nos atraindo sempre de novo para dentro de um

permeio, de uma ambiência, re-cordando um sabor, uma entoação, uma afinação de

fundo longínquo, nos envolvendo, nos impregnando com a proximidade, com satisfação

in-quieta de estar em toda parte, em casa?

Mas e a voz medial?

Não é assim que na medida em que nos enredamos nas inúmeras e variegadas trilhas da

Filosofia, começamos a perceber que o que im-porta é ficarmos intrigados cada vez

mais e sempre de novo com o verbo ser?9 Pois, seja qual for a interpretação que dermos

a esse verbo, seja em que escola e corrente de Filosofia, o ser sopra sob mil e mil

tonalidades em todos os verbos do nosso falar, seja na voz ativa, na passiva, na

reflexiva. E assim, em suma, ser é a ação de fundo, a ação onipresente em todas as

atuações de todas as nossas ações e não ações. Não será por isso que as trilhas da

disciplina filosófica, seja qual for o modo de ser de suas sendas, mais cedo ou mais

tarde, se perdem na clareira do in-transitado, denominado questão do sentido do ser?

E..., o que os antigos denominavam de medial, que hoje defasado, restou como voz

reflexiva do verbo, não seria propriamente o modo da possibilidade de ser que é o modo

9 A designação outrora dada ao verbo ser era verbo substantivo. Talvez em vez de sub-stantivo possamos

dizer pré-sencial?

Page 20: Revista Scintilla - Vol. 6, n. 3 Especial

originário, elementar e primeiro de todas as ações, paixões, recepções e reações

reflexivas, portanto, a potência, a possibilidade dada de antemão, a priori, como

entoação do Nada, onipresente, retraído no pudor e na continência da plena liberdade da

sua jovialidade? Antes de e em todas as possíveis e atuais variantes de entidades,

silencioso, modesto e discreto é o nada, antes e depois, dentro e fora do ser e nada, de

tudo e nada, em sendo o constante sustento da ocorrência do simplesmente dado, de tal

modo simples que se é, antes e sem precisar dizer que ser e pensar é o mesmo. A

correspondência da existência filosófica, do empenho e zelo, do estudo da e para a

disciplina Filosofia não seria retornar a ser sempre em repetição in-sistente o silêncio do

nada, a voz medial, o permeio de todas as coisas, das que são e não são? Ser assim

nascituros de todo a cada momento no corre-corre das atividades, atuações, das

passividades e depressões, e das suas reações, no afã dos nossos afazeres, e sempre de

novo dar reviravolta de retorno para e na disposição da soltura, na liberdade da

existência por e para o abismo inesgotável de ser filhos e filhas do Nada, não seria isso

o que os bem antigos gregos do início denominavam de Physis; a partir da qual um

Heráclito, tiritando de frio no inverno, encostado no forno aquecido da queima do pão,

convidou aos visitantes ávidos do infinito na busca do extra ordinário a entrar no recinto

do permeio da banal simplicidade que se engraçou com a gratidão da finitude ab-soluta,

dizendo: Também aqui, pois, estão os deuses presentes10

? E isso porque, como diz de

novo Heráclito: A physis ama o retraimento11

.

Não é bom, ontem, hoje e amanhã, poder sempre de novo implicar com a pergunta:

Estudar filosofia, um nada?

10 Cf. ARISTÓTELES, De part. anim. A5. 645 a 17: einai gar kaì entautha theous.

11 Fragmento 123: Physis kryptesthai philei (Cf. HERÁCLITO. Os pensadores originários. Petrópolis:

Vozes, 1991, p. 90).

Page 21: Revista Scintilla - Vol. 6, n. 3 Especial

A vigência do poético na regência do virtual

Para Frei Hermógenes Harada, pelos oitenta anos de vida!

Emmanuel Carneiro Leão

Hoje em dia todos somos pós-modernos. Pós-modernos, vivemos na e da baixa

modernidade. Baixa modernidade é a conjugação de três ordens de transformação em

detrimento da criatividade na história: a financeira, a genética, a virtual. Nesta baixa,

impõe-se, cada vez mais, uma divinização do homem e uma humanização do sentido.

Trata-se de uma imposição negativa: a desordem prevalece sobre a ordem. Desordem é

o império da violência transformada em solução universal para qualquer problema, em

satisfação universal de qualquer interesse. A força do direito já não é a justiça. Restou

apenas o direito da força. A vida perdeu todos os acentos transcendentes e vai sendo

sacrificada aos poderes da morte. Chega-se ao cúmulo de se reconhecer na teoria e na

prática que a vida é um direito relativo, em contraste com a personalidade, direito

absoluto, como se fosse possível vida humana, tanto em ato como em potência, sem

personalidade e vice-versa. Até bem pouco, só podia morrer ou não morrer o inanimado.

Hoje, não. A engenharia genética, a nanotecnologia, a automação e a robotização

acenam com e para uma imortalidade inanimada. Por outro lado, retornam as questões

de princípio por toda parte. Até ontem, não era possível transplante de cérebro, só era

possível transplantar os outros órgãos do corpo. Hoje, não. A clonagem é do espírito.

Está em jogo toda a gravidade da hominização. Parodiando Vergílio (Eneida, I, 33),

deve-se dizer hoje em dia: é de tanta mole criar gente humana que o peso se tornou

infinito.

Uma época histórica é uma caminhada que trabalha na construção de um caminho de

feitos para fatos, de cenas para encontros ou desencontros, de cenários para realizações.

A internet é um fenômeno virtual e poético, ao mesmo tempo. E é como tal que instala e

define nossa baixa modernidade. No artifício da virtualidade, técnicas de processamento

da imagem e do som, do movimento e da composição, da simultaneidade e da

onipresença se transubstanciam em criação poética. Esta união transubstancial

transfigura técnica em poesia, criando obras de arte virtuais. Uma tal transubstanciação

não se dá sem pensamento. Por isso pensar a unidade de técnica e arte, realizando-se na

internet, levanta questões sobre o lugar e a função do poético numa época de regência

do virtual.

Vigência e regência não são duas condições separadas na história do homem de hoje.

Formam um processo ontológico só, o processo de estruturação em que o real se está

realizando. Na vigência do poético rege o virtual, assim como na regência do virtual já

vige o poético. Quando se dão, nenhum dos dois se dá sem o outro, embora ambos

aconteçam sempre um no outro, um com o outro, um pelo outro. É que, em sua

recíproca constituição, está em causa a linguagem, tanto nas línguas da tradição, como

nas línguas da técnica. Pois, na força da linguagem, poesia e técnica jogam, no campo

da história, o desafio da criação, embora em níveis diferentes. Se a cultura do poético e

a cultura do virtual surgem e pertencem a uma mesma tradição histórica, as suas línguas

respectivas sofrem dificuldades radicais – i.é, dificuldades radicadas na própria essência

de cada uma – para compreender os envios de ser e para lidar com as provocações de

realizar-se na história de hoje, em tudo que é e está sendo, em tudo que não é, nem está

sendo no mundo atual.

Page 22: Revista Scintilla - Vol. 6, n. 3 Especial

Urge, então, afundar a questão de nossa época. Mas afundar em que sentido? – Quando

se diz, o navio afundou, entende-se logo que o navio foi a pique, que desceu, na vertical,

para o fundo do mar. Pois bem, quando se fala em afundar a técnica, quer-se dizer que

se deve ir direto para o fundo da técnica. Mas é um fundo estranho este fundo da

técnica, pois se dá tanto na superfície quanto no profundo, como em qualquer lugar em

que a técnica esteja. Pois não se trata de técnica apenas. Trata-se de qualquer coisa,

igual e diferente da técnica. Assim afundar a questão de nossa época equivale a afundar

as línguas e as técnicas da convivência atual. Se, no virtual e como virtual, a técnica nos

domina de alto a baixo, numa regência, sem volta nem reserva, é por já se ter apoderado

e haver controlado todas as nossas línguas. Na tendência de seus vetores, já não sobra

espaço para nenhuma outra sintaxe, já não resta nenhuma outra semântica, já não nos

fica nenhum outro encontro que não esteja logicamente controlado. Está dominado, está

tudo dominado.

Nessas condições, “só resta mesmo a saga do caminho”, na formulação lapidar de

Parmênides, onde se poderá seguir os vestígios e investigar no nada da ausência o

sentido de todo e qualquer domínio. O que, por sua vez, supõe que se aceite a

dominação da técnica em toda sua extensão e profundidade, para se poder interrogá-la

sobre o que ainda se poderá ser e dizer na técnica da técnica e com a técnica, mas não

além ou aquém da técnica. Pois, neste último caso, prevaleceria a ilusão de se poder

pular a própria sombra e arrancar-se de um pântano pelos próprios cabelos, separando

conhecer de pensar, ciência de saber e técnica de ser.

Na vigência do poético, chega-nos uma linguagem que as línguas da tradição e as

línguas do virtual não conseguem nem abafar nem controlar. É que, na regência do

virtual, o descontrole ainda resta. Mas trata-se de um descontrole essencial, o

descontrole salvador, pois exige de nós, homens da técnica, uma atenção desdobrada

para a gravidade sorrateira de um perigo que não somente nos ameaça com a

possibilidade de uma destruição física, como também nos poderá advertir para a

originalidade de todas as coisas, salvando a essência inventiva de nossa humanidade das

repetições monótonas e sem surpresas de uma estéril replicação.

Com o advento do virtual, põe-se em jogo uma atenção para a experiência do Nada no

próprio seio de uma abundância sem limites, mas monótona, porque monocórdia. A

humanização funcional do poder absoluto do virtual é uma caixa preta de Pandora: uma

gigantesca armação, uma propaganda enganosa, em nível transcendental, sobre o modo

próprio de ser de nossa existência. Pois, criando uma aparência em contrário, leva-nos

para a forma mais perfeita de escravidão, uma escravidão não apenas inconsciente,

como sobretudo nesciente, aquela escravidão que nos promete uma libertação total,

desde que renunciemos operativamente à condição radical de sermos sempre fim e

nunca meio, na formulação paradigmática de Kant. A taumaturgia do virtual mostra,

então, a face oculta da técnica, sua essência originária, a com-posição universal que a

realidade cumpre em todo novo real.

Na regência do virtual e com ela, a realidade é provocada a fazer o real apenas

disponível e a tornar operativa toda energia de realização. Trata-se de um acontecimento

pretensamente originário, embora inaparente, porque escondido em sua intenção de

absoluto. Longe de ser um simples serviço prestado à humanidade, o virtual é, antes,

uma força que põe a humanidade do homem a seu próprio serviço. Pois não somente

arrasta todos os homens e convoca cada um de nós para uma ordem que nos assoberba e

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nos esmaga a singularidade, como substitui pela repetição a originariedade de nossa

missão ontológica, que, única e original, nunca poderá ser replicada nem repetida.

Para se compreender o virtual em toda a extensão de seu sentido, há-de se penetrar em

sua função histórico-ontológica no mundo de hoje. Mas, para tanto, deve-se descobrir-

lhe o modo de ser metafísico que a tradição do Ocidente veio construindo, ao longo das

épocas, desde a interpretação de Techne, como Episteme. Pensada em sua dinâmica

especificamente grega, toda Techne e toda Episteme são Aletheia, toda técnica é pro-

dução. Ora, pro-duzir é con-duzir, no sentido de levar um real à disponibilidade de sua

serventia, num conjunto de relações e torná-lo, assim, acessível em sua vigência. O

problema desta con-dução está todo na proveniência de seu vigor. O homem não pro-

duz, em toda sua verticalidade, a con-dução, nem por invenção isolada, nem por

espontaneidade gerativa. O homem apenas pertence ao processo de pro-dução com a

força de seu esforço de pre-sença. Na técnica, portanto, a pre-sença do homem é um

revelador fotográfico, que deixa aparecer o ser de tudo que toca com seu trabalho. Na

técnica, o homem é sempre Midas e nunca criador do ser daquilo que é e está sendo,

junto com sua pré-sença.

A essência do virtual não está nem na virtuose nem, muito menos, na eficiência de um

fazer técnico. E por quê? – Porque a essência da técnica não é técnica. A essência da

técnica não pode ser produzida tecnicamente, só pode mesmo ser pensada, e pensada,

afundando-se a própria técnica, cujo vigor ontológico a metafísica da tradição não

soube, porque não pôde dizer e nem a técnica do virtual sabe e pode fazê-lo.

Quase todas as análises do virtual se concentram hoje na referência à ciência. A técnica

seria a ciência aplicada ao fazer. Ora, o virtual é superação sistemática e operativa da

separação entre ciência e técnica, pela suspensão real da diferença entre teoria e prática,

entre conhecer e fazer, entre instrumentação e explicação. O instrumental técnico

determina o conhecimento científico a ponto de reinar entre ambos uma relação de

indeterminação, que, em última instância, reduz o cientificamente real, o real da e para a

ciência, ao tecnicamente operativo, ao que a técnica pode operar e fazer. A automação, a

retroalimentação, a robotização não constituem apenas resultados técnicos da aplicação

da ciência. A regência do virtual nos veio demonstrar o nível, o grau e o ponto em que a

técnica revela sua estrutura de fundo, reconduzindo toda linguagem a um sistema de

traços e nivelando todo sinal, signo ou símbolo a meros bits e levando a comunicação a

deixar de ser vínculos de diferenciação para vir a ser simples códigos de barra, jogo de

unidades informacionais. No controle retroativo do circuito virtual, o reino da técnica

mergulha inteiramente na com-posição das possibilidades de calcular e reivindica para

si todo o homem, em todo homem.

O nexo entre a regência do virtual e a vigência do poético não é uma conexão

extrínseca, nem relativa a determinados níveis de vinculação. Trata-se de com-

pertinência na própria dinâmica do diferenciar-se das diferenças. Se o virtual dá provas

de virtuosidade em nível combinatório e, na globalização da Internet, se estende numa

escala planetária, a linguagem do poético, vigente nas poesias de todas as coisas, se

configura num perfil originário de surpresas, justamente no funcionamento do virtual e,

com base na própria língua da técnica. As línguas virtuais falam de muitas coisas,

podem falar mesmo de tudo, só não podem dizer tudo de nada, justamente por e para

não poderem errar e falhar. Entretanto, porque não se pode dizer tudo, nem de tudo nem

de nada, não significa que não se possa mostrar nada de tudo. Para poder dizer, todo

dizer resguarda em si o que não pode ser dito, não, porém, como reserva irracional e sim

Page 24: Revista Scintilla - Vol. 6, n. 3 Especial

como amostragem portentosa da própria impossibilidade de dizer. O indizível constitui

a condição de possibilidade de todo e qualquer dizer. No indizível e como indizível, a

vigência do poético se mostra por toda parte, protegido e cultivado pela linguagem,

sempre em silêncio a fim de deixar as línguas falarem.

Escondido no coração do virtual descobre-se, portanto, o mistério da linguagem, que

não necessita de pronuncia para viger. O retraimento da linguagem é a linguagem do

mistério em doação nos empenhos de ser e nos desempenhos de realizar-se. Por e para

perfazer a força de qualquer dizer, a linguagem tem de retirar-se das falas e, ao fazê-lo,

abre espaço e deixa lugar para o sentido correr pelos discursos das línguas. Desde o

Tractatus Logico-Philosophicus de 1922, Wittgenstein não se cansa de repetir que os

limites do dizer apontam para os limites do mundo, mas não da vida, de vez que a

linguagem sempre mostra o que o discurso não pode dizer. Este mostrar recolhe em si

toda a impossibilidade de dizer das línguas. Por isso é que, num esboço para

Mnemosine, Hoelderlin, o poeta da poesia, nos remete para a dinâmica do esquecimento

no âmago da própria memória:

Ein Zeichen sind wir deutungslos,

Schmerzlos sind wir und haben fast

Die Sprache in der Fremde verloren!

Somos um sinal sem sentido,

Insensíveis à dor, quase per-

demos a língua no estrangeiro.

Dar-se ao retirar-se, arrebatar consigo, quando se afasta, é também a vigência do poético

na regência do virtual. Tal como a da técnica, a essência do poético não provém de um

ato que o homem possa praticar de moto próprio. Pois é sempre o poético que cria o ato

dos poetas e cumpre no poema o modo de ser da poesia. É o poético que já sempre

institui a possibilidade de o poeta praticar ato poético e exercer num poema a dinâmica

de ser e consumar-se da poesia. Na Pre-sença de ser homem de todo homem, apresenta-

se e se ausenta o jogo recíproco de atração e retração entre terra e mundo, entre vida e

morte no curso temporal das peripécias históricas de ser no tempo. Pois ser e tempo são

reciprocamente tempo e ser no desempenho doador de qualquer real. Este sentido, a

vigência não dita da linguagem e a regência não técnica do virtual encontram na

identidade entre o legado e o negado pela tradição. Na famosa formulação de

Heidegger, “tradição não é mera transmissão. Tradição é Bewahrung und Verwahrung,

é preservação e mobilização das forças criadoras do princípio em sempre novas

possibilidades de cumprimento ontológico a partir do desgaste dos discursos já

decorridos e dos percursos já percorridos.

Se a tradição metafísica evoluiu na pós-modernidade para o domínio total da técnica, a

dominação em causa não se esgota com dominar. Nenhuma dominação domina seu

próprio elã de dominar. Se no virtual a técnica atinge sua plenitude metafísica na

tendência para a vontade de poder numa vontade de vontade (i.é, numa vontade

inesgotável de querer sempre mais poder), o pensamento é, então, encaminhado pelo

advento gracioso do poético, i.é, de um destino ambíguo, técnico e não técnico, que hoje

se dá, como virtual, na medida que e enquanto se retira, como poético.

O grau superlativo de poder, porém, não instala apenas progresso e dominação, cria

também regresso e servidão. Na Fenomenologia do Espírito, Hegel chamou esta

ambivalência de dialética do Senhor e do Escravo. Todo auge inclui perda de cadência e

Page 25: Revista Scintilla - Vol. 6, n. 3 Especial

se faz de-cadência. Se tudo é poder, a dominação está em crise. Onipotência implica

sempre impotência, tanto em sentido reativo, como em sentido criativo. Existe uma

dinâmica de provocação na impotência. Com o virtual, opera também uma virada que

está fora da alternativa de negativo e positivo. O não útil pode significar simples falta,

uma carência do devido e esperado e, então, é o inútil, que vive na e da dependência

daquilo de que carece. Mas há também um não útil que se constitui, que age e opera

fora e dentro da diferença de útil e inútil. É, então, a graça que não decorre nem de força

nem de poder, que não provém nem de mérito nem de conquista, mas da gratuidade de

pura doação. É neste sentido gracioso de pura doação, que, na regência do virtual, o

poético acontece, como a gratuidade do que não é nem útil, nem inútil.

Na China Imemorial, Dsi-Gung atravessava a região do Rio Han, quando encontrou um ancião

todo ocupado em irrigar sua leira. Entre o poço e os leirões tinha rasgado veios no chão para

fazer chegar água às plantas. Com grande esforço, descia e subia o poço com um balde nas mãos.

E apesar de todo o trabalho, só muito pouca água escorria pelos regos.

Dsi-Gung teve pena do velho. Aproximou-se e disse: há um meio fácil de fazer correr muita água

com pouca fadiga por muitos regos em pouco tempo. Assim pouco esforço rende grandes

resultados. O ancião parou e perguntou: e qual seria este meio?

Dsi-Gung respondeu: a técnica, ora! Instalam-se no poço bombas de sucção e se tem água a

rodo!

O velho olhou para Dsi-Gung e respondeu: sempre escutei a vida dizer que, para usar da técnica,

é preciso um coração técnico. E quem tem no peito um coração técnico, perde a inocência da

vida. E, sem inocência, não há nem vida nem morte, somente a secura do útil e inútil. E quem

vive nos tremores do útil e do inútil, não se encontra com o mistério da realidade. Não é que

despreze a utilidade e inutilidade da técnica. É que ainda não me foi dado relacionar-me, na

técnica, com a graça de criação da terra!

É esta graça do inesperado que hoje na regência do virtual se espera que nos aconteça

com a e na vigência do poético.

Rio de Janeiro, 2008

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Pensamento, elemento, transcendência

Gilvan Fogel

Para o mestre, o grande mestre, que acena,

acena e convida para o sagrado –

Hermógenes Harada.

1. No § 7 de Ser e Tempo, lê-se: “O ser e a estrutura de ser acham-se acima de qualquer

ente e de toda determinação ôntica possível de um ente. O ser é o transcendens pura e

simplesmente. A transcendência do ser da presença é privilegiada porque nela reside a

possibilidade e a necessidade da individuação mais radical”1. Em Sobre o Humanismo

Heidegger fala de “ser como o elemento do pensar” e ainda dirá que o pensamento

“chega sempre ao fim, quando se afasta de seu elemento”2.

Temos, pois: ser como transcendência e ser como elemento – elemento do pensar. À

medida que ser se determina como transcendência e também como elemento temos que

transcendência, de algum modo, fala igualmente elemento. É isso que, inicialmente,

queremos compreender. Num segundo momento, buscar-se-á caracterizar pensamento,

ou seja, o que é, como é pensar e pensar desde seu elemento próprio, a saber, ser,

transcendência.

2. Elemento, aqui, não quer dizer um indivíduo ou uma pessoa, p. ex., integrante de um

determinado grupo – João é integrante (elemento) deste grupo de estudos. Nesta

direção, elemento também não é uma parte ou uma unidade constituinte de um algo ou

todo qualquer, p. ex., se digo que esta página é um elemento deste caderno. Não é, pois,

elemento no sentido de indivíduo, unidade, seja de um conjunto ou de um subconjunto

qualquer. Também não quer dizer “primeiras noções” ou “rudimentos”, se digo, no

plural, “os elementos da gramática, da metafísica ou do futebol”.

Aqui, elemento é preciso entender, antes, na direção de meio, de medium, como, p. ex.,

ao dizer que a água é o elemento (meio) do peixe, a floresta é o elemento (meio) do

selvagem, a cidade é o elemento (meio) do citadino ou, numa formulação talvez

obscura, digo que a terra é o elemento (meio) do homem.

Mas, dizendo meio, medium, o que diz realmente elemento?

Meio, por seu lado, não diz metade, ponto intermediário ou eqüidistante entre os

extremos de dois ou diversos pontos. Portanto, meio não está se referindo ao centro,

quando falo, p. ex., o meio (centro) da circunferência ou da sala. Não é o espaço-

extensão, como se fora coisa física, continente dos muitos conteúdos que ele poderia

encerrar. Antes, meio, enquanto elemento, se refere a uma situação de permeio, quando

digo, p. ex., o homem no meio da multidão, no meio da borrasca, no meio da tormenta.

Aqui, meio não fala do centro geométrico ou geográfico da multidão, não é o epicentro

da tormenta ou do terremoto, mas no meio, aqui, significa todo permeado, perpassado,

1 Cf. HEIDEGGER, M. Ser e tempo. Petrópolis/Bragança Paulista: Vozes/Edusf, 2006, p. 78, Trad. M.C.

Schuback.

2 Cf. HEIDEGGER, M. Sobre o humanismo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967, p. 27, trad. E.C. Leão.

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atravessado ou varado por multidão, por borrasca ou por tormenta. Meio, assim, evoca

ambiente, situação, circunstância e, neste sentido, fala de medium.

Falando situação, circunstância ou medium, meio fala de inserimento ou inserção e,

então, circularidade, círculo. Círculo, pelo menos desde Heráclito, é a imagem, a

plástica para dizer e mostrar algo que não é e não tem imagem alguma, contorno ou

plástica alguma, a saber, esta situação ou circun-stância da vida, da existência humana

de ser sob a forma de inserimento, de inserção, isto é, de repente, súbita ou i-

mediatamente ver-se lançado, jogado, p. ex., na vida, no elemento-vida — no ser. Isto é,

portanto, o medium, o elemento do ou no viver, do ou no existir. Mas tentemos ver isso

mais de perto ainda e, então, descrever, formular melhor.

3. Elemento, falando meio ou medium, caracterizando-se como inserimento ou inserção,

define um modo de ser interessado, isto é, um modo de ser, o do homem, da vida

humana, que se mostra ser sempre já desde dentro (inter) de um determinado modo de

ser (esse), a saber, ser sempre já desde um elemento ou medium, pois um modo possível

de ser, um interesse qualquer no ou do viver, é como o elemento se dá ou se concretiza.

A formulação “sempre já” fala anterioridade, isto é, uma dimensão prévia que, quando a

gente se dá conta, ela sempre já se deu ou se instaurou, caracterizando assim a inserção

(i.é, a estrutura circular) e, por outro lado, a própria dimensão de transcendência, pois se

revela uma dimensão ou um modo de ser que sempre já ultra-passou, sobre-passou ou

trans-cendeu ao homem ou a qualquer poder seu de decisão. Esta anterioridade,

portanto, aponta para um modo de ser arcaico, originário, que, p. ex., a modernidade o

disse sob a forma do “a priori”. Aqui, no entanto, não se trata de nenhuma antecipação

subjetiva ou subjetivo-transcendental. E isto porque esta anterioridade, falando de

interesse ou de elemento da/na vida, do/no acontecimento-homem, é o que se pode

caracterizar como relação arcaico-originária, na qual a estrutura subjetivo-objetivo não

é, não pode ser medida ou critério. A relação arcaico-originária, i. é, interesse ou

elemento, é o absoluto. E isso quer dizer: toda fala de subjetivo-objetivo já é fala a

partir deste elemento ou desta relação arcaico-originária sempre já acontecida, aberta,

instaurada.

Por relação arcaico-originária entende-se o ser um para o outro, p. ex., o homem para o

mundo ou para as coisas, não à maneira de pólos ou termos, os relata, uma vez que

estes aparecem sempre como tardios ou epigonais. Em outras palavras, estes aparecem e

se dão porque o interesse, o elemento ou a relação arcaico-originária sempre já se

instaurou ou aconteceu como o horizonte absoluto de toda possibilidade (de ser), de

toda possibilitação. O elemento, a transcendência, é o verdadeiro, o autêntico “a partir

de”, fundo de instauração ou de possibilitação de toda e qualquer coisa, de toda e

qualquer realidade. Nesta direção, dirá Heidegger: “O elemento é verdadeiramente o

que pode, o poderoso: o poder”3. Voltaremos a isso, mais adiante.

Importante, porém, é que não cabe entender elemento como se fora uma super-

substância, um super-sujeito, um super-homem proposto ou anteposto, à maneira de um

primeiro numa ordem cronológica, a todo e qualquer suceder, acontecer. Elemento,

portanto, não é uma super- ou proto-causa. Não é nada como Deus, no sentido de “causa

prima” ou “causa sui”. A idéia de súbito, de i-mediato ou de salto, que perfaz círculo ou

3 Cf. HEIDEGGER, M. op. cit., p. 28.

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inserção, exclui a representação de um tal sujeito ou substância. Elemento é o poder,

mas nenhuma causa, nenhum sujeito. Como, então?

4. É próprio do homem – melhor, o próprio do homem é ser aberto para vida, ou seja,

para transcendência (interesse, elemento). No entanto, este aberto para, esta abertura,

precisa ser bem entendido(a).

Ao se falar isso, habitualmente, entende-se, subentende-se ou imagina-se o homem

como já um algo, já como um dado ou um algo já constituído, p. ex., um eu, uma

consciência, uma pessoa, um indivíduo, uma alma ou um espírito, enfim, já um sujeito,

que, então, se abre, isto é, se volta, se interessa pelas coisas da vida, pelo mundo, pelo

ao redor, pela situação ou circunstância. Assim pensando, caracteriza-se este abrir-se ou

voltar-se para como intenção ou intencionalidade, volição ou ato de vontade, como

espontaneidade ou naturalidade. Qualquer que seja ou como quer que seja uma destas

formas, destas caracterizações, ao assim pensar ou imaginar, já penso homem e (+)

mundo, homem e (+) coisas, homem e (+) situação ou circunstância, como se estes

fossem dois pólos, termos ou sujeitos. O fato é que, assim pensando, mal-entende-se ou

desentende-se tudo.

Este aberto para diz algo desconcertante, paradoxal. Nessa formulação (O homem é

aberto para), é preciso poder ver o homem como um “ente” que, antes de tudo, não é

“ente” nenhum. Ou seja, é preciso poder ver, conceber, o homem não sendo, imediata

ou originariamente, coisa ou algo nenhum, já dado ou constituído, a saber, não sendo de

imediato nenhuma alma, ou eu, ou consciência, ou espírito, ou pessoa, ou mesmo o

contrário de tudo isso, como se fosse corpo”, base física, bio-fisiológica, ou uma certa

matéria, ou energia ou sabe-se lá o quê.

Não sendo nada disso, o homem, imediata ou originariamente, mostra-se como se fora

um oco, um vazio (de ser, de determinação), isto é, um ser nada ou coisa nenhuma, que,

no entanto, se caracteriza como aptidão, pura aptidão ou disposição, na verdade, pré-

disposição para. Esta aptidão, a abertura para, mostra-se, pois, como disposição ou pré-

disposição a ser tocado ou tomado (afetado) por... algum modo possível de ser de vida,

algum verbo no/do viver ou existir, e que se determinará como elemento,

transcendência, ou seja, o que sempre já se oferece a vir sobre ou sobrevir ao homem,

assim determinando-o e possibilitando-o e, por isso e neste sentido, dirigindo-o,

orientando-o, gerando-o, à medida que o pré-dispõe a vir a ser um homem, este ou

aquele homem em particular ou determinadamente.

Ver isso, sentir isso, i. é, ver ou sentir este ser tocado e tomado por este acontecimento

da/na vida (o dar-se inaugurador de transcendência) é experimentar transcendência,

melhor, é ser na experiência da experiência de transcendência, ou seja, na experiência

de vida, na evidência (pois experiência é, funda evidência) de ser como e desde o que

ultra-passa, trans-passa e sobre-passa ao homem – a mim, particular e especialmente,

por exemplo. Neste sentido de ultrapassar e sobrepassar, assim tomando e apropriando,

é que é preciso entender a afirmação, segundo a qual elemento ou transcendência

sobrevém ao homem, isto é, vem-lhe sobre, tomando-o todo, apropriando-se

inteiramente dele. Isto marca igualmente a natureza de afeto da transcendência, de toda

transcendência ou elemento possível. Transcendência, pois, define-se como o

acontecimento arcaico, que é afecção. O homem vive, existe, é, porque pega vida, pega

existência, à medida que é pegado por um modo de ser transcendente. Portanto, os

afetos, isto é, os verbos do/no viver ou existir humano, são ou têm todos, cada qual por

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si mesmo, a forma, a estrutura de transcendência. Cada qual é o modo como cada vez

transcendência se dá ou se realiza – i. é, se concretiza ou faz-se aparecer, retraindo-se ou

dissimulando-se justo no que aparece, como aparece e porque aparece.

5. Transcendência, o elemento, tem o caráter do abrupto, do súbito ou do i-mediato.

Justo por ser súbito ou imediato é transcendente. Súbito ou imediato, por sua vez, fala

igualmente de salto e salto, porque salto, fala de círculo ou de circularidade, isto é, de

inserção. E inserção significa: quando se vê, quando se dá conta, já se vê, já se dá conta

dentro, inserido, isto é, desde ou a partir do elemento, de transcendência. Por isso, toda

fala, toda ação ou atividade, todo e qualquer fazer-se ou vir a ser, toda e qualquer

história, já o é de, do elemento; de, da transcendência, a qual como que se serve do

homem, de um homem, o usa para aparecer ou concretizar-se. O homem, só o homem é

usável por elemento, por transcendência. Elemento, transcendência usa o homem para

aparecer, para concretizar-se. Não se ouça neste para um finalismo, uma intenção, um

propósito. Melhor é dizer-se: o homem é usado e, então, acontece, concretiza-se

transcendência. Neste acontecer ou concretizar-se ouçamos também: acontece,

concretiza-se e, no mesmo ato retrai-se, dissimula-se nisso ou naquilo, como isso ou

como aquilo, deste ou daquele outro modo e que é sempre o isso ou o modo, segundo o

qual aparece ou se concretiza.

Tentemos mostrar isso. Busquemos um exemplo, no qual se evidencie toda esta

estrutura. Vejamos como se dá a dimensão, a perspectiva ou o interesse escrever, por

exemplo.

A primeira observação a se fazer diz respeito ao sentido de escrever enquanto e como

dimensão, perspectiva ou interesse. Não quer dizer escrever enquanto o exercício

mecânico, próprio de todo e qualquer tipo alfabetizado, todo e qualquer cidadão letrado,

que conhece e domina as regras da escrita, i. é, conhece e reproduz com fluência os

caracteres ou grafemas, conhece e domina as regras da sintaxe e da gramática, assim

como as de ortografia, tudo isso aprendido na escola e que, no dia-a-dia da vida, tal tipo

ou cidadão preenche formulários, cupons, formula e encaminha requerimentos e

petições com grande desembaraço e competência. Não.

Escrever, enquanto dimensão, perspectiva ou interesse da/na vida, se refere ao modo de

ser, segundo o qual se evidencia e se impõe que o escrever, isto é, o dizer, isto é, a

palavra poética, é princípio de realidade. Por palavra poética não se entende a palavra

extraída do corpo de algum poema ou incluída num poema bem ritmado e rimado.

Também nada sentimental ou meloso. Palavra poética, de poiesis, é a palavra que

realmente diz, mostra, faz visível alguma coisa. É isso mesmo a sua característica como

princípio de realidade, ou seja, uma dinâmica desde a qual e como a qual realidade se

realiza, se faz realidade, aparece ou se faz visível, como dissemos. Em suma, escrever,

assim, aqui e agora, refere-se a um modo de ser que se faz ou se mostra como poética,

como um necessário e possível princípio de realidade. Aquele que assim experimenta o

escrever, o dizer, este vive no domínio, no âmbito do sem-nome, mas que é o domínio

ou o âmbito do nomeável, isto é, do poder e precisar nomear, dar nome, dizer para ser,

para vir a ser. Assim sendo, é preciso ver-ouvir escrever, p. ex., desde Dostoievski,

Flaubert, Guimarães Rosa, Cabral de Melo Neto...

Entremos, pois, nisso, quer dizer, nesta estrutura, neste modo de ser ou nesta

experiência.

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De cara, começa não sendo o comum e ordinário dizer “eu escrevo”. Pois visto desde

transcendência, “eu”, o “eu-escritor” não é o sujeito (causa) da ação escrever. Na

verdade, mais apropriado seria dizer que o eu-escritor é resultado do escrever, é ação ou

obra do escrever e, portanto, não é ou há antes do escrever, não pré- ou sub-existe ao

escrever como um sujeito ou causa do escrever. O eu, o eu-escritor só há, só pode haver

porque ele é feito pelo escrever, por obra e graça ou graças ao escrever. Neste sentido,

pois, “eu escrevo” só é possível já a partir ou já desde o escrever. Portanto, o escrever

sempre já se deu, sempre já se abriu, aconteceu ou instaurou como uma possibilidade-

necessidade da/na vida, do/no existir e, então, se é levado a dizer: escrever, antes,

parece ser ele o sujeito, a substância. Isso, no entanto, é uma mera inversão do esquema

sujeito-objeto, sujeito-predicado. O erro, o vício, é este esquema que aparece, então,

como um critério ou uma medida inoportuna para dar conta de ou para medir o

fenômeno em questão, a saber, o modo de ser de transcendência.

6. Heidegger escreve:

O elemento é aquilo a partir do qual o pensamento pode ser pensamento. O elemento é o

propriamente poderoso (“Vermögende”): o poder (“das Vermögen”). Ele se apega ao

pensamento e assim o conduz à sua essência ... O pensamento é – isso significa: o ser se apegou,

num destino histórico, à sua essência. Apegar-se a uma coisa ou pessoa em sua essência, quer

dizer: amá-la, querê-la (“mögen”). Pensando este querer mais originariamente, ele quer dizer:

dar, presentear a essência. Este querer (“mögen”) é a autêntica essência do poder (“Vermögen”),

que não somente pode realizar isso ou aquilo, mas também deixa uma coisa vigorar (viger,

“wesen”) em sua pro-veniência (“Her-kunft”), isto é, deixa que ela seja. O poder do querer é

aquilo em cuja força uma coisa pode propriamente ser. Este poder (“Vermögen”) é o autêntico

possível (“das Mögliche”), a saber, aquilo cuja essência se funda no querer. A partir deste querer

(“mögen”), o ser quer, torna possível (“vermag”) o pensar. Aquele (o ser) possibilita este (o

pensar). O ser como o querer-poderoso (“das Vermögend-Mögende”) é o possível (“das Mög-

liche”). O ser, como elemento, é a força silenciosa do poder que quer, isto é, do possível4.

Temos aqui uma difícil passagem que, falando de ser, pensar, elemento, essência, fala

principalmente da relação ou, melhor, da articulação e implicação entre/de querer e

poder. Heidegger serve-se da correspondência na língua alemã entre querer-amar-gostar

(“mögen”) e poder (“Vermögen”), assim como também a derivação de possível e

possibilidade (“möglich” e “Möglichkeit”). Esta correspondência diz mais que uma

mera correspondência ou uma mera relação, no sentido de alguma fortuita aproximação

ou alguma ligação lógico-formal. Correspondência, aqui, fala de uma experiência na ou

da linguagem, a qual ata como que num mesmo fenômeno querer-amar e poder-

possibilitar. Trata-se de uma experiência originária ou de fundação-atamento, cujo teor

precisa ser explicitado. O fato é que Heidegger, a partir do sentido originário, fundador,

de “mögen” (querer, amar, gostar) determina o modo próprio de ser ou a essência de

poder, possibilidade e possível (“Vermögen”, “Möglichkeit” e “das Mögliche”). É

preciso entender como, neste sentido, nesta experiência originária, querer é poder.

“Mögen” diz querer e amar (gostar) no mesmo sentido que também nós empregamos, às

vezes, os verbos querer e amar (gostar) em sentidos correspondentes de apegar-se,

tomar apego, afeiçoar-se. Digo, p. ex., “quero (isto é, amo, gosto) muito esta coisa, esta

ou aquela pessoa”. É justo este o exemplo dado por Heidegger, quando diz: “Apegar-se

a uma coisa ou pessoa na sua essência, quer dizer: amá-la, querê-la”. E, vimos,

4 Cf. HEIDEGGER, M. op. cit., p. 29/30.

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31

Heidegger continua: “Este querer-amar (“mögen”), pensado mais originariamente, quer

dizer: dar, presentear essência”. Como isso?

Por essência não cabe entender um algo, alguma coisa por trás, sub- ou pré-existente e

que seria, p. ex., a causa desta ou daquela coisa. Não é um núcleo dentro, o caroço,

formando o em-si da coisa. Essência é a própria dinâmica de algo fazer-se ou tornar-se

algo, a dinâmica ou a força a partir da qual e como a qual algo vem a ser este algo que é

e tal qual é – sempre uma escandalosa superfície. Vê-se ou tem-se realmente algo

quando conseguimos nos transpor à sua essência, isto é, à sua proveniência, origem ou

gênese. Então, partilhamos a coisa na sua gênese, na sua nascividade. Participamos,

pois, de seu ser ou modo de ser e, assim, co-nascemos com ela.

A partir de agora, tentemos entender como que, originária ou essencialmente pensado,

querer-amar significa poder e, por isso, dar ou presentear essência, isto é, doar,

presentear a passagem para o próprio movimento-gênese de algo.

Querer, do latim “quaero”, significa buscar, procurar, andar à cata ou em busca de e,

nessa direção, ainda aspirar a e desejar.

Assim sendo, i. é, entendendo querer como busca e procura, tentemos não entender

querer como um ato volitivo, no sentido de um ato de uma faculdade, a vontade, a

vontade consciente. Querer, assim, seria um ato ou uma decisão consciente, deliberada,

de um sujeito ou de uma consciência autônoma que, então, querendo, impõe sua

vontade, isto é, seu modo próprio de ser. Impõe, quer dizer, faz valer seu querer, sua

vontade, a partir do poder maior, mais forte, mesmo autoritário, mandão e despótico do

seu querer. Tudo fica achatado e nivelado ao poder deste querer. Isso é uma maneira de

se entender o “querer é poder”. Mas não é, provavelmente, neste sentido que o texto

citado fala, sub-fala que “querer é poder” ou que “o poder é o querer”.

Considerando querer (“quaero”) como buscar ou pro-curar, é preciso que se entenda

esta busca, esta pro-cura como um entregar-se, um abandonar-se todo ou um doar-se

inteiro à própria busca, à própria pro-cura. Esta entrega ou doação à busca estará em

estreita e imediata relação com escuta. Tal doação, tal entrega, se dará, se fará a partir

de escuta, como imperativo de escuta e nisso residirá o presentear-se de essência. Por

outro lado, por escuta, aqui, entende-se justamente e tão-só este ato de entrega, de

doação à coisa buscada, procurada ou querida.

Por ora, no entanto, tenhamos somente a boa vontade de se entender este quero, esta

vontade, como a entrega ou a doação de corpo e alma, isto é, todo ou inteiro à própria

busca, à própria procura. Este é um doar-se e entregar-se ao que ultra-passa, ao que

sobre-passa, ao que trans-cende o próprio querer ou, melhor, ao próprio sujeito que

quer, que busca, tornando-se aquele que assim busca permeável, como que à mercê da

própria coisa ou objeto buscado, quer dizer, na verdade, movido, promovido pela

própria coisa que lhe transcende – portanto, por transcendência. E é dessa maneira,

como entrega e doação, fazendo-se escuta ou obediência, que o querer se faz o poder, ou

seja, amar ou gostar é, então, dar, presentear essência, deixar essencializar. Assim, pois,

é preciso entender a fala de deixar algo vigorar, viger, isto é, ser e impor-se em sua

própria proveniência, em sua própria gênese, e que constitui propriamente o fazer-se

essência da essência ou essencializar-se.

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Portanto, nesta entrega ou abandono à coisa buscada, querida, há um deixar ser a

própria coisa, um consentir ou permitir que ela, desde ela mesma, venha a ser o que é.

Nisso, como já dito, reside o dar, o presentear a própria essência desde e como o querer,

a saber, desde e como o buscar que é entrega e abandono à busca, à coisa mesma. E isso

é poder, nisso reside o poder que, tal como o querer, que não é afã e ânsia incontida,

encerra muito, tudo de doçura, de candura, e não pode ser visto como o arrogante,

petulante e autoritário, para não dizer bazofeiro, “eu quero!” de um sujeito, de uma

vontade-faculdade-autônoma, que impinge seu poder, antes, sua coação e sua

subjugação de mais forte e de “poder mais”, sempre achatando, nivelando e igualando

tudo ao seu poder-querer mais forte, mais capaz de coação e de subjugação. E isso, a

saber, doçura e candura, porque, aquele que quer como entrega e doação, precisa se

fazer fraco, melhor, frágil, permeável, para assim poder ser tocado, tomado e, então,

levado, guiado ou determinado pela própria coisa e, desse modo, fazê-la (deixá-la) vir à

sua própria essência, ou seja, ao seu modo próprio de ser ou de fazer-se, pois isto, quer

dizer, vir a ser e fazer-se no que é e como é, é o sentido próprio de essência, de

essencializar-se. Ser desde sua própria proveniência, desde sua própria gênese.

7. “O poder do querer é aquilo em cuja força uma coisa pode propriamente ser. Esse

poder (“Vermögen”) é o autêntico possível, a saber, aquilo cuja essência se funda no

querer.”

Entendido o querer desde busca ou procura e estes como doação e entrega ao buscado

ou procurado e esta doação ou entrega, por sua vez, como escuta ou obediência (um

seguir ou acompanhar) à própria coisa – assim entendido, pois, este “poder do querer” é,

na verdade, poder nenhum, ou seja, é um autêntico poder não poder. Isso é, melhor,

nisso está todo o poder, tal como o poder da criança (lembrar Nietzsche). Neste poder

não poder, nesta forma ou modo de ser criança, está o deixar ser, isto é, deixar,

consentir que a própria coisa (o buscado, o procurado, o querido) seja o que é ou que

venha a ser o que propriamente é. “Deixar”, “deixar ser”, não é largar apática e

desinteressadamente. Este “deixar” não pode ser compreendido desde apatia,

indiferença, passividade. Em outros termos, “deixar” não pode ser entendido como coisa

passiva como contraste ou reação à atividade impulsiva ou frenética de um fazer

voluntarioso, ativo. Aqui, ativo ou passivo, ativo versus passivo, não é medida para se

entender este deixar ser. Antes, aqui, medida é só a escuta e a entrega à escuta na escuta

– participação vital. Assim, neste sentido, este querer, que é o poder, é o possível, quer

dizer, o que possibilita, à medida que deixa ser, a própria essência, a própria

proveniência ou gênese da própria coisa, o próprio fazer-se ou vir-a-ser-coisa de coisa.

Sim, este querer, este poder, doa, presenteia essência, pois é graças ou por graça (por

doação) do poder deste querer que algo é, pode ser o que é. Poder, portanto, não é

entendido como estruturação, ou seja, como constituição, modelagem e estes como

coação e subjugação de um fraco (o constituído, uma coisa, um objeto, o passivo) por

um mais forte (o constituinte, o sujeito autônomo, o ativo).

Não. Poder diz: desde entrega e escuta (o querer!), possibilitar, possibilitação e isto, por

seu lado, quer dizer: liberação de possibilidade ou de poder ser. Isso, justamente isso é

força, a “força silenciosa”, ou seja, retraída, porém presente, e que, então, se faz a única

e a só realidade. A vida da coisa ou a coisa-vida.

8. Continua Heidegger:

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“... O pensamento é pensamento do ser. O genitivo exprime duas coisas. O pensamento é do ser

enquanto, provocado pelo ser em sua propriedade, pertence ao ser. O pensamento é ainda

pensamento do ser enquanto, pertencendo ao ser, ausculta o ser. Enquanto, auscultando, pertence

ao ser, o pensamento é de acordo com a pro-veniência de sua essência”5.

Pensar, aqui, não pode ser entendido como poder, i. é, uma faculdade, de representação.

Não é, igualmente, um poder ou uma faculdade de formular ou de inventar conceitos e,

ao mesmo tempo, o poder ou a capacidade de amarrar, de organizar logicamente estes

conceitos ou representações. Também não diz respeito ao produto ou ao conteúdo da

atividade ou da capacidade (faculdade) de pensar lógico-conceitual e

representativamente.

Seguindo a citação, pensar se dá desde, a partir de escuta e como escuta. Mais: ausculta.

A escuta, sobretudo a escuta lhe dá pertencimento. Pertencimento à medida que,

escutando, o pensar é apropriado por ser e, então, se faz pensamento do ser.

Já caracterizamos esta escuta a partir da busca e da entrega ao buscado, i. é, ao querido.

Ser levado, conduzido pelo próprio buscado, esta entrega e seguimento ou obediência –

isso constitui a escuta. Assim, escuta é pertencimento ou participação, ou seja, um

tomar parte em ... o escutado, buscado, querido. Este pertencimento ou participação

passa a ser a própria textura, a própria consistência ou constituição do pensar, do

pensamento.

Esta escuta, participação ou pertencimento faz com que pensamento seja “de acordo ou

segundo a proveniência, isto é, a gênese, de sua essência”. Em outros termos, desde tal

pertencimento, pensamento e o buscado ou querido se fazem co-naturais, isto é,

consangüíneos. Pensar, assim, como já se disse, não é estruturar, constituir, objetivar,

mas tão-só testemunhar, ou seja, tão-só dizer e assim celebrar e aquiescer a própria

gênese de seu pertencimento, de sua participação. É isso propriamente o “deixar ser”.

Pensar, assim, é, desde e como escuta, falar, dizer, mostrar e então celebrar o elemento,

pois em última ou primeiríssima instância, é desde e como participação e dizer do

elemento (do ser) que gênese se faz, se dá ou acontece.

Elemento, ser, é o transcendente, constitui-se como transcendência.

9. Transcendência não se refere ao objetivo, ao fora, ao externo, como o que se opõe ao

subjetivo, ao dentro, ao interno, que seria a imanência. Mais uma vez: o súbito, a

imediatidade ou o salto, enfim, o círculo, que instaura vida, existência, exclui a

possibilidade da fala de subjetivo x objetivo, de interno x externo e, nesta direção, de

imanente x transcendente. Mas como? Por quê?

O homem, como se fora um algo já constituído, não passa, não salta para o

transcendente, como se um dentro (i. é, um sujeito, um eu, uma alma, uma consciência)

passasse, saltasse para um fora (o objeto, as coisas, o mundo). Não. O salto, o

acontecimento transcendente, i. é, que ultrapassa, sobrepassa e sobrevém o (ao) homem,

o qual define o modo de ser transcendência, é o fato de o homem, enquanto “a realidade

da liberdade como possibilidade para a possibilidade” (Kierkegaard), de repente,

subitamente ser tocado e tomado pelo acontecimento mundo, i. é, vida, existência, que

evidentemente o ultrapassa, o transcende. A evidência é dada pela experiência arcaica.

5 Idem. op. cit. p. 28/9.

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Experiência (afeto, “páthos”) é evidência. Dito de outro modo: em sendo “a realidade da

liberdade como possibilidade para possibilidade”, transcendência é propriamente o dar-

se, o acontecer do fato, de repente, que há, que é, que dá-se ou que faz-se ser, isto é,

mundo, sentido-mundo, ou seja, a experiência vida, existência. Tal acontecimento, em

sobrevindo ao homem, dele apodera-se ou apropria-se, fazendo, melhor, possibilitando

que ele venha a ser o ente, i. é, a possibilidade que é.

Este proto-acontecimento (Ürphänomen), que constitui o homem essencialmente, ou

seja, em sua permanente gênese, atravessando-o ou perpassando-o todo, e que, por ser

assim súbito, ou seja, salto, pode-se ou deve-se também denominar absoluto, no sentido

que é um acontecimento que não se refere a nada, absolutamente nada fora, além ou

aquém – enfim, este proto-acontecimento, que constitui o homem essencial ou

medularmente, é como que anterior ao próprio homem. E é este acontecimento que se

denomina propriamente transcendência. Pleonástica ou redundantemente: absoluta

transcendência.

10. Imediatamente, subitamente dá-se, faz-se, é e há. Este modo de ser, a imediatidade

ou subitaneidade, marca ou define transcendência. Transcendência é a circunscrição ou

o âmbito subitamente aberto, instaurado, e que é o lugar, a hora – é isso o âmbito – do

homem, i. é, da vida, da existência. O salto nele mesmo já é transcendência. E é

transcendência à medida que é pura gratuidade, puro acontecimento, ou seja, pura

doação. É graça e de graça. Dá-se, faz-se, acontece e sempre já se deu, sempre já se

fez, sempre já aconteceu desde nada, por nada, para nada. O divino, o sagrado, o

extraordinário é não ser, não ter, não precisar ser ou ter nenhum começo, nenhum

princípio, nenhuma causa: gratuidade, abissalidade – pura transcendência.

Cheio deste acontecimento, completamente tocado e atravessado por este modo de ser, a

saber, transcendência, o poeta exclama e, então, abre e pontua toda a poética de Sonetos

a Orfeu: Uma árvore irrompeu. Ó pura irrupção! Ó pura emergência! Ó pura

transcendência!6

Este “puro”, que estamos usando e abusando, diz: só, tão-só. Só, tão-só gratuidade,

doação. Só, tão-só abissalmente e, então, gratuitamente, absolutamente. Salto, inserção

– círculo. Dá-se, faz-se, é elemento. Puro elemento.

Este mesmo acontecimento é celebrado, esta mesma experiência é dita e festejada,

quando se lê, quando se ouve:

E, ao descobrir, no meio da mata, um angelim que atira para cima cinqüenta metros de tronco e

fronde, quem não terá ímpeto de criar um vocativo absurdo e bradá-lo – ó colossalidade! – na

direção da altura?7

Ó pura emergência! Ó colossalidade! “Pura”, isto é, não outra coisa que só e tão-só

irrupção gratuita, gratuita emergência e instauração ou fundação. Só, tão-só, isto é, por

nada, graças a nada e para nada. De nenhum lugar, para nenhum lugar. Sem porquê, sem

para quê. Pura gratuidade, doação. Milagre. ...! O começo, o acontecimento

6 “Ein Baum stieg. O reine Übersteigung!” Cf. RILKE, R.M. Die Sonette an Orpheus, Franckfurt: Insel

Velag, 1976, p. 51.

7 Cf. ROSA, J. G. “São Marcos”, em: Sagarana. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1978, p. 238.

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transcendente, enfim, transcendência é exclamação, vocativo, pura exclamação, puro

vocativo – chamado, apelo, convocação. ! É. Há.

Encerrando, ouçamos ainda João Guimarães Rosa:

“Reporto-me ao transcendente. Tudo, aliás, é a ponta de um mistério. Inclusive, os fatos. Ou a

ausência deles. Duvida? Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo”8.

Petrópolis, 25/05/2008.

8 Cf. ROSA, J. G. “O espelho”, em: Primeiras estórias. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora,

1981, p. 61.

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Cristianismo e budismo no pensamento originário

Leonardo Boff*

Este pequeno texto quer homenagear o modo de pensar de Frei Hermógenes Harada. O

que tem marcado sua trajetória intelectual foi tentar sempre de novo ver todas as

realidades e todos os eventos a partir daquilo que chamamos de “pensamento

originário”.

Pelo pensamento originário se procura alcançar aquele nível de profundidade para além

do qual não se pode mais ir. Por isso termina no nobre silêncio. Mas para chegar lá,

precisa-se percorrer um tormentoso caminho, feito de muitas palavras. Esse silêncio não

significa que não se tem mais nada a dizer. Pode-se dizer muitas coisas. Mas elas

terminam por não dizer o que se quer dizer. Por isso é um silêncio nobre e reverente.

O pensamento originário não é propriamente um pensamento, mas a origem do

pensamento. Vale dizer, aquele transfundo a partir do qual tudo é englobado, do qual

tudo se faz emergência e transparência. Costuma-se chamar a isso de “Última

Realidade”. Sobre a “Última Realidade”, não podemos, a rigor, dizer nada, nem o ser

nem o não-ser. Ela está para além das determinações de existência e não-existência, pois

é em si mesma inefável (apofatismo ôntico) não só para nós, humanos, no tempo, mas

para si mesma por toda a eternidade.

Se lhe afirmamos o ser, significa que ela é pensável e comunicável e então pertence à

ordem das manifestações. Logo, não é a “Última Realidade”. Apenas revelações dela.

Se lhe negamos o ser, pareceria que então se liquidaria o problema. Mas podemos

simplesmente negar-lhe o ser? Na verdade, ela está para além de nossas determinações

de ser e de não-ser. Podemos, entretanto, dizer: é mas para além de nossas

determinações de ser-e-de-não-ser, como afirmação e negação de um e de outro. Ela é

mas de forma totalmente inapreensível por quem quer que seja. Se fosse apreensível,

cairia sob o domínio de nossa compreensão e não seria a “Última Realidade”.

Místicos e pensadores radicais como o Mestre Eckhart, Buda e Wittgenstein colocaram

esta questão. Todos terminam no nobre silêncio. Não é por nenhum motivo pessoal ou

ligado à natureza humana. Os três recusam a falar por uma exigência da “Última

Realidade”. Porque tudo o que dizem não diz a “Última Realidade”. Lembremos o

testemunho de Wittgenstein do Tractatus logico-philosophicus: “para o inexprimível

não há linguagem; mas ele se mostra; é o místico” (6,52). Mas sobre o místico não se

pode falar. Por isso completa: “sobre o que não se pode falar, devemos calar” (Tractatus

7). Por esta razão, todos eles não falam da “Última Realidade”. Apenas apontam o

caminho que leva a ela. E esse caminho desemboca no silêncio reverente.

Queremos exemplificar esta questão radical à luz do Budismo e do Cristianismo, porque

ambos alimentaram e iluminaram a vida e o pensamento de Harada.

Há duas formas básicas de se estudar a relação entre o Budismo e o Cristianismo. A

primeira os toma como dados já constituídos, corpos histórico-sociais. O estudo de

ambos visa mostrar as diferenças, as discrepâncias e as semelhanças.

* Leonardo Boff, teólogo, olim frater e sempre franciscano.

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Um segundo modo, procura entender o Budismo e o Cristianismo a partir do

pensamento radical, como resultado de um processo mais profundo. O dado então é um

feito. Sua realidade é uma realiz-ação. Budismo e Cristianismo são revelações da

“Última Realidade”, força anterior que continuamente está atuando na história e mesmo

no universo e que encontrou neles uma das formas possíveis de emergência. Budismo e

Cristianismo não encontram em si as razões de ser. Ambos remetem a esta Realidade

mais profunda. Eles não explicam. Antes, precisam ser explicados. Este caminho é o do

pensamento originário, presente nos pensadores radicais do Oriente e do Ocidente.

Um sutra da antiga sabedoria da Índia nos ilustra o que queremos dizer: “O que faz o

pensamento pensar não pode ser pensado”. Quer dizer, o pensamento vive de uma

energia que permite ao pensamento irromper; ela é sempre subjacente ao pensamento;

por isso não pode ser pensada, pois é condição do pensar. É semelhante ao olho que

tudo vê mas que não pode ver a si mesmo.

Algo semelhante ocorre com o Cristianismo e o Budismo. Eles vivem de algo que vem

antes deles. Nascem de uma Energia, feita experiência existencial, que possui a natureza

do inominável e do indecifrável. Pois estas são as características do Mistério e da

“Última Realidade” que está para além de qualquer realidade. Budismo e Cristianismo

são diferentes maneiras de re-agir e dar expressão concreta ao Mistério e à “Última

Realidade”

Talvez a nova cosmologia nos sirva de metáfora do que significa esta Realidade que

ousamos chamar de Última. Diz-se que todos procedemos do big bang, aquele

pontozinho, infinitamente pequeno mas grávido de energia, de matéria e de informação

que há 13,7 bilhões de anos explodiu e se expandiu, gerando todo o universo e a cada

um de nós. Mas antes dele, consoante cosmólogos contemporâneos, havia o “vácuo

quântico”, aquele transfundo repleto de energia de onde tudo vem e para onde tudo

retorna. Ele é chamado também de “abismo alimentador de todo ser”. Enquanto tal, ele

é ainda discernível pela ciência. Ele é o antes de tudo o que existe.

Mas o que havia antes do antes? A rigor não pode ser o nada, porque do nada não vem

nada. Deveria haver uma “Última Realidade” que deu início a tudo a partir da qual o

universo se constituiu. Esse antes do antes possui as características do indecifrável e do

inominável, quer dizer do Mistério e da “Última Realidade”.

Ora, as religiões e os caminhos espirituais chamam a esta Energia ou “Última

Realidade” de Tao, de Buda, de Alá, de Olorum, de Shiva, de Javé, de Cristo, de Deus.

Budismo e cristianismo surgiram a partir da experiência desta “Última Realidade”. Ela é

experimentada como uma Presença ou um Vazio que irradia, que fascina, que arrebata

até o êxtase. É uma vantagem evolutiva do ser humano o fato de poder captar esta

Presença ou esse Vazio que se anuncia no inteiro universo e em cada ser.

No Budismo se fala do princípio Buddha ou de budidade (buddhata). Ela se encontra em

cada ser. O Cristianismo fala da cristidade, do “princípio Cristo” (Col 1,18) e do Cristo

que “é tudo em todas as coisas” (Col 3,11). É o crístico presente em cada ente criado.

Quando um zen-budista pergunta pela natureza de Buda, não está perguntando por

dados históricos de sua vida ou por doutrinas, mas pela “Última Realidade” intemporal

e eterna, presente em cada ser e que encontrou uma expressão culminante na figura

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histórica de Sidarta Gautama. Quando um cristão pergunta, num sentido radical, pelo

Cristo, quer saber da “Última Realidade” ou do Mistério que está presente em todos os

seres e que encontrou uma expressão histórica em Jesus de Nazaré.

Mergulhar nessa realidade é chegar à suprema bem-aventurança (nirvana) pelo caminho

da iluminação (satori) ou ao reino de Deus pelo caminho da identificação com Cristo

(“não sou eu que vivo é Cristo que vive em mim”: Gl 2,20). O objetivo de cada coisa e

de cada pessoa é comungar e fundir-se com essa “Última Realidade” (“a amada no

amado transformada”, de São João da Cruz).

Ela sempre está aí na sua gratuidade. O que nos cabe é invocá-la, preparar-nos e abrir-

nos para que ela chegue até nós. Daí a necessidade da disciplina e dos vários caminhos

espirituais. Eles não produzem a iluminação e a experiência de não-dualidade com

Cristo. Apenas criam espaço para que ela emirja e irradie.

Tanto o Budismo quanto o Cristianismo sabem da decadência da condição humana, na

forma de sofrimento (Budismo) ou na forma de pecado (Cristianismo). Ela demanda

libertação, seja pelo completo despojamento (Budismo) seja pela real conversão

(Cristianismo). Esvaziando totalmente a mente, permitimos que a “Última Realidade”

emirja em nós como experiência no silêncio. Então percebemos que ela é a essência de

cada ser. O cristão se propõe unir-se radicalmente a Cristo e verá sua irradiação em

todos os seres, criados nele e por ele (Col 1,16), perceberá Deus, tudo em todas as

coisas (1Cor 15,28).

Para o Budismo é fundamental a com-paixão (karuna) para que ninguém tenha que

sofrer sozinho. O bodhisattwa, aquele que chegou à iluminação, renuncia entrar no

nirvana para renascer e ser solidário com cada ser que sofre, seja um ser humano, um

animal ferido ou um galho quebrado. Para o Cristianismo é fundamental o amor

incondicional até com o inimigo e a com-paixão irrestrita para com o caído na estrada.

A energia da budidade fez Gautama se transformar em Buda (iluminado), assim a

energia da cristidade ou do crístico fez que Jesus de Nazaré se tornasse o Cristo

(Ungido). Essas energias, na verdade, são uma única energia: a “Última Realidade” ou

no dialeto judeu-cristão o Deus-Energia ou o Spiritus Creator agindo e se revelando nas

coisas e nas pessoas dentro da história, resgatando-a e elevando-a até a si para uma

suprema realização no mergulho do Mistério e da “Última Realidade”.

Ter persistido nesta linha de pensamento radical, ao longo de toda uma vida, ter

animado a confrades e percorrerem esse caminho árduo mas bem-aventurado, é o mérito

de Frei Hermógenes Harada. De certa forma ele uniu Oriente com Ocidente e fez do

zen-Budismo um caminho para o Cristianimo e do Cristianismo uma senda para o zen-

Budismo. Ambos, Budismo e Cristianismo, testemunham para a humanidade a mesma

coisa, a “Última Realidade” ou o Mistério a quem Harada, na santidade do pensamento,

procurou servir com grande humildade e comovente jovialidade.

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Imensidão e asubjetividade*

Márcia Sá Cavalcante Schuback

“Mas, então, como é possível ver, captar, afetar-ser, ou melhor, ser

tocado sem representar, sem objetivar, sem nada de intermédio, assim

direta e simplesmente? Não há resposta para essa pergunta a não ser:

em sendo simples e imediatamente ver, captar, afetar-se, ser tocado.

Pois aqui ver, captar, afetar-se, ser tocado não é outra coisa do que

de imediato e simplesmente ser presente, prejacente a seu modo,

como ente denominado homem, na pregnância da imensidão,

profundidade e vigência da prejacência”1.

Fala-se hoje muito de “diferença”. Diferenças culturais, diferenças pessoais, diferença

metafísica, diferença ontológica, diferenças de visão de mundo e, assim, por diante. A

filosofia tem tematizado problemas de intersubjetividade, intercorporalidade e

interculturalidade, discutindo mais e mais caminhos possíveis de diálogo entre o si-

mesmo e o outro, entre diferentes tradições de pensamento, entre Ocidente e Oriente.

Quanto mais se interroga sobre modos de acessar diferenças, mais descobre-se, porém,

que as diferenças estão mais misturadas e identificadas com um padrão europeu-

ocidental de ser do que se espera. A diferença entre experiências culturais misturadas

(como nas culturas ocidentalizadas e colonizadas) indicam a complexidade dessas

questões, pois em jogo estão mecanismos de identificação e desidentificação, de

projeções e introjeções que colocam em dúvida a própria noção de diferença como

diferença autônoma e separada, como diferença “em si”. Na bonita novela Kusamakura,

Natsume Soseki, considerado o pai da moderna novela japonesa, faz aparecer a

dificuldade de se pensar e trazer à palavra a questão da diferença, pois como ele diz

“como uma coisa se mostra, isso depende de como se a vê”2.

Como pensar a diferença permitindo que seja o que é: diferença, o que não se deixa

reduzir a ou deduzir de um outro do que ela mesma? Com essa questão gostaria de

esboçar e, assim ensaiar, minha homenagem a Frei Hermógenes e, com ela, expressar

minha gratidão por tudo que com ele venho, sempre e de novo, aprendendo – a vida do

pensamento.

Diferença aparece de início como o longe do nosso perto. Diferenças estão longe, no

sentido de que não conseguimos reconhê-las como algo pertencente ao nosso campo de

visão. O que pertence ao nosso campo de visão está perto de nós, existindo como meio e

paisagem, um pano de fundo sempre presente e que não chama a nossa atenção. O que

está perto de nós parece comum e habitual. É o que também chamamos de familiar e

doméstico. Encontrar o que se acha distante de nosso campo de visão – ou bem nós – ou

seja, quem vê – precisa movimentar-se ou bem o que se vê deve mover-se. Ou bem

* Esse texto é a versão em língua portuguesa e em parte alterada da conferência apresentada em Tóquio,

novembro de 2008, “Immensity and Asubjectivity”, no 9 encontro anual da Sociedade Japonesa de

Fenomenologia. Ambas as versões foram dedicadas a Frei Hermógenes.

1 HARADA, Frei Hermógenes, OFM. Comentário “especulativo” acerca da objetivação, in: Scintilla.

Revista de filosofia e mistica medieval, vol. 2, n.2 – Curitiba, jul/dez, 2005, p. 273-297.

2 SOSEKI, Natsume. Kusamakura. Penguin Books, 2008.

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somos que nós que devemos nos deslocar ou bem a coisa longe de nós deve fazê-lo.

Essas condições não são apenas físicas ou corpóreas, mas igualmente “espirituais”.

Quando nos deslocamos para um lugar e um tempo distantes, seja viajando no tempo da

memória e da fantasia, seja no tempo real, levamos a nós mesmos nesse deslocamento.

Levamos o nosso perto para esse longe. Levamos conosco o que somos. Somos nossas

memórias e nossos sonhos, somos o nosso saber e o nosso não-saber, somos nosso

passado e o nosso futuro – somos não apenas o que somos mas também o que não

somos. Tudo isso levamos conosco quando nos movimentamos para além de nós

mesmos rumo a um lugar e um tempo distantes. Movendo-nos para além de nós

mesmos e alcançando esse longe, o que antes era longe aparece como perto, embora

numa maneira nova e significantemente inesperada. Aparece como estranho. O estranho

é o longe ficando perto de nós. O estranho é o longe adentrando nosso campo de visão.

Nesse momento, o longe passa a referir-se ao que, antes, estava perto de nós, a ele

relatando-se no modo de uma tendência a tornar-se um “como se” fosse perto de nós.

Adentrando nosso campo de visão, o longe adentra a tendência de identificar-se com o

nosso perto. Vemos então esse novo perto como um novo relacionado à antiga

proximidade. Comparamos. Vemos esse perto como um duplo, como uma reduplicação.

Viajar é fazer a experiência desse duplo no jogo de perto e longe, de proximidades e

distâncias.

Viajar é uma experiência que não acontece apenas quando partimos para países e terras

distantes. É, até um certo ponto, o que sempre acontece quando “vemos” algo diferente.

Ver coisas diferentes é fazer a experiência de uma viagem tendo lugar na visão. É o que

permite que também possamos ver coisas que sempre estiveram perto de nós como algo

diferente. Isso acontece quando tomamos distância e o que antes era perto vira longe.

Isso acontece, por exemplo, quando alguma coisa já sempre presente passa a nos

chamar atenção. De repente, ela se torna estranha. Aqui, o que era perto aparece como o

que já era distante sem que o percebéssemos como tal. Aparece então como

proximidade, tornando-se heterogêneo relativamente ao que antes era presença não

observada. O longe de nós pode tornar-se próximo e aparecer como se fosse nosso.

Mesmo o mais próximo de nós pode tornar-se tão distante que aparece como nossa

própria estranheza, como o estranho de nós mesmos. Essas experiências são muito

simples e banais, sendo parte constante de todo viajar. Por serem simples e banais, delas

nos esquecemos rapidamente não obstante permanecerem dentro de nós na estranha luz

turva e no embaçamento iluminado que aderem aos nossos olhos ao chegarmos no lugar

do longe, onde diferenças têm lugar. Quando diferenças têm lugar e nos vemos cativos

do jogo entre perto e longe, nossa visão torna-se turva e embaçada.

Essas impressões tão corriqueiras, bem distantes de uma expressão e explicação técnicas

da filosofia, referem-se à visão de coisas. Podemos transpor essas impressões banais

para a visão de pedras e animais, de pessoas, culturas e mundos, ou seja, para a visão de

qualquer coisa que se possa considerar coisa intramundana. A bem dizer, essas

impressões cotidianas falam de um procedimento comparativo que opera quando

identificamos algo como algo. Num certo sentido, toda identificação em jogo quando

dizemos, por exemplo, “isso é uma flor” já sempre realizou um certo grau de

comparação, pois traz algo distante para um certo grau de proximidade. No enunciado

dêitico – “isso é a uma flor”, trazemos o “isso” para a proximidade da “flor”, dizemos

sem dizer que isso é como flores. E se dizemos em seguida que “flor é planta”, fazemos

também algo similar. Dizemos que a flor é como toda outra planta. É uma tal

semelhança que nos torna capazes de dizer que essa flor é como uma outra e até mesmo

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que ela é mais ou menos como as outras flores ou como qualquer outra coisa. É até

mesmo uma tal semelhança que nos torna possível dizer que essa flor é mais (flor ou

bela) do que uma outra e ainda que ela é a mais (flor ou bela) do que qualquer outra.

O que assim descrevemos corresponde ao que podemos chamar, valendo-nos de uma

expressão de Edmund Husserl, de “exame ou consideração comparativa” (vergleichende

Betrachtung) ao nível da senso-percepção. Numas notas de 1929, intituladas

Experiência e julgamento (Erfahrung und Urteil)3, Husserl mostrou como essas

considerações comparativas, tão comuns no nosso dia-a-dia e chegando mesmo a

constituir nossas percepções mais imediatas das coisas, estão longe de serem neutras.

Não comparamos coisas simplesmente porque uma se acha ao lado da outra.

Comparação é um ato interessado, um ato que ocorre quando alguma coisa chama e

provoca a nossa atenção. As coisas precisam dar-se para a consciência. Esse dar-se das

coisas corresponde ao interesse, à “intenção”, ao afeto, como preferia dizer Nietzsche,

que nos motiva a voltar nossa atenção para o que se dá à visão, à escuta, etc. Coisas não

são, portanto, “dados”, mas doações, ou seja, o que aparece, o que se dà a ver, a ouvir, a

sentir. São um aparecer. Com isso se diz que as coisas encontram-se inicialmente como

que dissolvidas num fundo, ele mesmo “atemático”, ou seja, que ainda não nos chama a

atenção, que ainda não se tornou um “tema”. Esse fundo é o mundo que, de início,

aparece ele mesmo como um meio e paisagem “naturais”, ou seja, como o que não

chama atenção por estar por demais próximo de nós. Excitação e interesse articulam a

possibilidade de encavar ou extrair desse fundo mundano atemático, não enfocado e

próximo, o que se dá. Passando de uma doação à outra e depois voltando à anterior,

torna-se possível, com base nesse fundo atemático – o mundo - reconhecer uma

igualdade ou semelhança, ou seja, comparar. O verbo comparar, do latim comparo,

significa literalmente trazer uma coisa para a proximidade da outra, para um conjunto

enquanto um duplo ou um par. Passando de A para B, de flor para flor e depois

voltando de B para a lembrança de A, o que é próprio a B parece perder sua força

(passa) ao mesmo tempo em que o que é próprio a A parece tornar-se mais vivo.

Quando os contornos de B se esvanecem ao voltar a atenção para A, os contornos de A

parecem avivar-se, como se tivessem sido redesenhados, reforçados. Nesse reforço de

um certo traço já presente no primeiro reconhecimento, dá-se uma duplicação que

constitui uma unidade sem, no entanto, perder o fato de ser um duplo. Por isso dizemos

isso é como aquilo. Esses contornos perdem as suas distâncias, tornando-se tão

próximos que são quase como um e o mesmo. Em atos comparativos, onde aparece

semelhança e não tanto igualdade, acontece o mesmo tipo de “operação” à exceção de

que a distância entre as duas visões fica ela mesma mais visível. Nessa distância, os dois

não formam um duplo, como no primeiro caso, mas um par. O contrário da semelhança

é heterogeneidade, seguindo ainda a terminologia de Husserl. Heterogeneidade é uma

dessemelhança que aparece ela mesma sob a forma de uma luta (Widerstreit) de

opostos. Em suas análises do que seja uma consideração comparativa, Husserl insiste

sobre dois aspectos significativos para a questão em aberto, que aqui nos orienta. O

primeiro é de que, enquanto relação de identidade e diferença, atos comparativos

formam sentido num movimento de distância para proximidade, ou seja, numa

aproximação. O que traduzimos inicialmente por “consideração” deve ser entendido

literalmente como uma aproximação comparativa. O segundo é que não comparamos

coisas apenas por se encontrarem uma junto da outra mas porque nós, por assim dizer,

buscamos um fundo comum, porque temos um interesse, uma motivação ou afeto que

3 HUSSERL, E. Erfahrung und Urteil. Hamburgo: Claasen & Goverts, 1948.

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pede essa busca. O que aqui está sendo buscado é o comum das diferenças, o fundo

comum, o termo de comparação, o parâmetro de unidade. Husserl não discute, todavia,

como esse interesse por buscar o “comum”, essa tendência para identificar diferenças

(reduplicando-as ou fazendo pares) está relacionado com o movimento da distância para

a proximidade, ou seja, com o aproximar-se.

Essas análises da consideração (ou aproximação) comparativa referem-se a uma análise

dos mecanismos da nossa senso-percepção que toma os olhos e a visão como parâmetro

e base de todo perceber. Essa experiência visual-perceptiva das coisas é, de há muito e,

ainda mais intensamente na fenomenologia de Husserl, um parâmetro central para a

análise de como a subjetividade humana percebe a alteridade de outras subjetividades

não como coisas diferentes mas como uma outra vida subjetiva e consciente. Admite-se,

aqui, a diferença entre uma diferença percebida (diferença entre o sujeito da percepção e

as coisas percebidas) e uma diferença vivida (em que o sujeito da percepção percebe

outros sujeitos percebendo coisas e sujeitos) . Essas compartilham, porém, a estrutura

comparativa pela qual o distante é trazido para uma proximidade, aparecendo como um

duplo ou um par (Paarung). Aparecendo como duplo ou par, no sentido de ser como

“eu”, o outro, a diferença vivida mostra sua alteridade em relação a mim, sem misturar

sua alteridade com minha mesmidade ou subjetividade. Pensando assim, Husserl

considera que o “outro”, no sentido de uma outra vida consciente, só se deixa perceber

como outro mediante analogia, ou seja, comparativamente. A estrutura analógica ou

comparativa da experiência da alteridade de uma outra vida humana permite, assim,

tanto reconhecer a alteridade do outro (sua comparabilidade) como reconhecer a

impossibilidade de uma vida colocar-se no lugar de uma outra (sua incomparabilidade).

Isso significa que o outro nunca pode ser realmente conhecido mas somente re-

conhecido mediante analogia, uma vez que uma vida não é capaz de “entrar” numa

outra vida. O outro só se deixa conhecer empaticamente e, nesse sentido, re-conhecer.

Esse (re)-conhecimento empático implica que tenhamos de primeiro “sentir” nosso

movimento para o outro a fim de alcançar o outro na sua alteridade.

No mesmo ano em que Husserl desenvolve essas reflexões sobre o que chamou de

“consideração (aproximação) comparativa” (vergleichende Betrachtung), Heidegger dá

um curso sobre os Conceitos fundamentais da metafísica – mundo, finitude, solidão4.

Nesses cursos, Heidegger discute as teses do homem como “formador de mundo”, do

animal como “pobre de mundo” e da pedra como “sem mundo”. Essas teses são, como

Heidegger bem as precisa, teses “provisórias”, cuja articulação estrutura o que também

chamou de “consideração comparativa” (vergleichende Betrachtung). A vida humana é,

para Heidegger, antes de “consciente”, vida fáctica, uma vida que apenas vive e existe

como vida formadora de mundo. Assim, compreender como uma vida humana pode

compreender ou a si mesma ou outra vida e, a seguir, uma outra vida humana significa

compreender como é possível compreensão de mundo. Compreender diferenças aparece

aqui essencialmente relacionado com o modo de ser do homem, o modo em que existir

humanamente é ser uma vida desde, dentro e para o mundo. Pois é somente desde

mundo que a existência humana vem ao mundo e somente desde mundo que também

pode sair do mundo.

4 HEIDEGGER, M. GA 29/30. Die Grundbegriffe der Metaphysik. Welt-Endlichkeit-Einsamkeit. Ed. F.v.

von Hermann. Frankfurt a.M.: Vittorio Klostermann, 1983.

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A questão de como conhecer o outro e sua alteridade não se funda primeiramente no

problema de como uma vida subjetiva e consciente conhece outra vida subjetiva e

consciente. A questão que Heidegger formula é como a vida humana em sua facticidade

de ser como formadora de mundo pode compreender a totalidade inteira do mundo,

enquanto um ser e não ser de uma só vez. É a partir de uma compreensão da totalidade

inteira de mundo que a existência humana pode relatar-se tanto ao que é como ao que

não é, em si e para além de si e compreender-se a si mesma como formadora de mundo.

Relatar-se à alteridade, a diferenças não é algo que a existência humana experiencie

primeiramente em relação a outros seres mas primariamente como o que caracteriza o

seu próprio ser. Existir significa ser em si mesmo fora e para além de si. Significa ek-

sistir, ser como espaço e tempo ek-státicos à medida que, de uma só vez, é e não é a

totalidade inteira do mundo. Existindo ek-staticamente, a existência humana – a

presença – Da-sein – existe não como algo fechado em si mesmo tal uma cápsula, mas

como abertura (= ser-no-mundo é compreensão de mundo). Aparecendo em sua vida

fáctica como um desencobrindo-se (mais do que como desencobrimento), a existência

humana possui uma outra acessibilidade a diferenças e alteridade do que algo que

existiria fechada e inteiramente imanente em si mesmo. É a partir dessa disposição

“existencial” que se pode questionar a estrutura analógica e comparativa da consciência

da alteridade e diferença tal como entrevista por Husserl. É que para comparar é preciso

partir da pressuposição de que alteridade ou diferença é imanente nela mesma. Discutir

a possibilidade ou impossibilidade de um conhecimento de outra subjetividade definida

como consciência no sentido da possibilidade ou impossibilidade de uma transposição

para o espaço e o tempo do “outro” só é possível pressupondo-se que a vida humana

fáctica é a vida de uma consciência subjetiva. Heidegger diz, no curso acima

mencionado, que “o conceito de uma transposição de si mesmo […] contém um erro

fundamental precisamente por negligenciar o momento mais decisivo numa

autotransposição”5. Esquece o momento positivo de transpor a si mesmo, o momento

positivo em que a existência humana torna-se capaz de transpor-se a si mesma não para

um outro mas para um outro de si mesmo e só assim ver-se capaz de caminhar-ao-

longo-com o outro, permanecendo outro com relação a ele”6. Em seu momento positivo,

transportar a si mesmo (auto-transposição) é transportar-se a si mesmo, é o transpor-se

de si e do si mesmo para um outro de si. É ir além do si-mesmo em si mesmo e, assim,

“outrar-se”, como disse Fernando Pessoa, em caminhando ao longo com o outro. O que

aqui se descreve não é um viajar para o longe a fim de se adentrar a distância do outro,

mas o aproximar-se da distância, do “entre” constitutivo do si mesmo. Lendo com

cuidado as obras de Heidegger, pode-se dizer que o próprio desse movimento é a

transposição paradoxal de si mesmo para um si mesmo liberado do si mesmo, somente

de onde torna-se possível um caminhar ao longo com o outro. Em lugar de comparação,

no sentido de apreender o ser semelhante ou dessemelhante do outro fora de si mesmo,

o que aqui se define é o modo humano demasiado humano de acesso ao outro desde a

possibilidade de se caminhar-ao-longo-com-o-outro. Caminhando-ao-longo-com-o-

outro, torna-se possível corresponder ao outro. Embora usando a mesma expressão de

Husserl, “consideração comparativa” (vergleichende Betrachtung), nesses parágrafos

sobre o método discutidos no curso já citado (GA 29/30), Heidegger nos mostra uma

compreensão muito distinta. Ele descreve a “consideração comparativa” como um

5 Idem, § 49, p. 297.

6 Id. ibidem.

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poder-caminhar-ao-longo-com-o-outro, como um corresponder. Ele faz aparecer assim

que a correspondência constitui o fundamento existencial dos atos comparativos.

O momento positivo de autotransposição, da transposição de si mesmo para além de si

em si mesmo, que possibilita o caminhar ao longo com outros, funda-se no modo

humano de ser existência, no modo de ek-sistir como formação de mundo. Sendo

fáctica, ou seja, existindo como mundo, a existência humana existe espelhando o modo

como mundo é mundo, o modo como mundo mundaniza em tudo que a existência

humana é e não é. As discussões de Heidegger sobre “consideração comparativa” são

significativas porque a apresentam como um outro método ou caminho para se conceber

filosoficamente a mundanidade de mundo, o ser mundo de mundo. No sentido de poder-

caminhar-ao-longo-com, ou seja, de corresponder, a consideração comparativa é um

outro método do que o “modo histórico” e o “modo cotidiano”, que Heidegger seguiu

por exemplo em Ser e tempo7. Para o propósito de nossa discussão, chamemos de

“modo correspondente” o método de consideração comparativa. Heidegger não nega os

métodos precedentes. Ele ainda sugere que devem haver outros métodos ou modos de

consideração de como mundo é mundo, ou seja, o modo como “mundo mundaniza”8. O

modo correspondente mostra, todavia, o modo espelhante-especulativo de ser-presença,

Da-zu-sein, da estrutura da transcendência ek-stática que caracteriza a existência

humana fáctica como ser-no-mundo. Heidegger mostra aqui, em que sentido, pre-sença,

Da-sein, não pode ser entendida como a vida de uma consciência subjetiva mas como

um desencobrindo (espelhante-especulativo). Pre-sença, Da-sein é fundamentalmente a-

subjetiva por ser como mundo, por ser como espelhamento-especulativo da totalidade

inteira de mundo. “… em todos os comportamentos e relações damo-nos conta de nos

relatar a cada vez a partir do “como um todo inteiro”, por mais cotidiano e restrito que

possa ser esse relatar-se”9. Da-sein é pro-jeção, Entwurf, não no sentido de um

planejamento para ações futuras ou de um acolhimento do futuro em ações presentes ao

relacioná-las ao passado. É Entwurf , projeção entendida como “brilho da luz

adentrando o possível possibilitador” [Lichtblick ins Mögliche-Ermöglichende] como

Heidegger formula ao referir-se à concepção schelligniana da vida humana como

Lichtblick des Seyns, como uma vida que é a luz de ser olhando-se para si mesma e,

nesse reflexo, fazendo aparecer a vida do homem como o seu espelho. No final desse

curso de 29/30, no § 76 da versão publicada, podemos seguir os pensamentos crípticos

de Heidegger sobre a presença, Dasein, como projeção espelhante e espelho projetivo

da luz de ser, onde pre-sença, Da-sein, define-se como sendo um “como a totalidade

inteira de mundo” não sendo a totalidade do mundo. Aqui, o como correspondente de

Dasein – como o todo do mundo – é compreendido como um “entre irruptivo”10

,

“ausente no sentido fundamental – de nunca ser simplesmente dado, sendo ausente em

sua essência, sendo essencialmente um em indo embora (wegwest), removido para um

ter sido e futuro essenciais –, ausentando-se por nunca ser dado, não obstante existindo

7 Id. Ibidem.

8 Idem, p. 264.

9 Idem, p. 525.

10 Idem, ”Das ’als’ ist die Bezeichnung für das Strukturmoment jenes ursprünglich einbrechenden

’Zwischen’, p. 531.

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nessa sua ausência essencial”11

, como “transposição para o possível”. No sentido de

projeção espelhante e de espelhamento projetivo, de ”entre irruptivo”, pre-sença, Da-

sein significa o vir à luz irruptivo da asubjetividade da vida humana. Presença, Dasein é

como clareado (gelichted) , uma concepção muito distinta do conceito de existência

humana como vida de uma consciência subjetiva e de sua busca teleológica de

esclarecimento (Aufklärung)12

. É em termos de um pensamento da clareira, Lichtung,

que Heidegger formula o seu distanciamento da fenomenologia transcendental de

Husserl e propõe uma fenomenologia tautológica do inaparente13

. Não subjetividade

mas clareira (Lichtung) é o modo de Heidegger conceber ser como acontecimento e

acontecer. Clareira, Lichtung, diz em termos asubjetivos o “dá-se”, Es gibt, de um há e

não de um estar-aí “para mim”.

Como projeção espelhante e espelhamento projetivo da totalidade inteira do mundo, ou

seja, de como mundo mundaniza, pre-sença, Dasein é essencialmente a-subjetiva.

Heidegger não usa o termo asubjetividade. Esse é um termo do fenomenólogo tcheco

Jan Patŏcka. Gostaria, no entanto, de valer-me dessa expressão também relativamente a

Heidegger como um modo possível de compreender o ser-como da pre-sença, de Da-

sein enquanto um espelhamento-especulativo da totalidade inteira do mundo sobre o

“entre”, essencialmente ausência, constitutivo da presença, Dasein. O termo “a-

subjetivo” deve ser tomado no sentido de uma tensão com a subjetividade, de um entre

ser e não-ser. Como projeção espelhante e espelhamento projetivo da totalidade inteira

de mundo (de como mundo mundaniza), pre-sença, Da-sein é de, uma vez, ser e não-

ser. Por isso pode ser também chamada, como Eugen Fink chegou a sugerir, crux

ontologica, entrecruzamento de ser e não-ser, fragmento da luminosidade própria do ser.

Mundo mundaniza, die Welt weltet, no modo a-subjetivo de um raio de trovão, raio de

luz repentina. Mostra a si mesmo negativamente na projeção espelhante-especulativa da

pre-sença humana. É por isso que, para Heidegger, o mundo enquanto acontecimento-

raio da totalidade inteira pode apenas aparecer como o todo de ser enquanto mundo,

concebido como totalidade de entes, retrai-se e encobre-se. A irrupção do sentido de

mundo como totalidade inteira quando o mundo como totalidade de entes (ou coisas)

perde seu sentido, espelha o nada pulsante do mundo. Na conferência O que é

metafísica?, de 1929, Heidegger discute o nada pulsante do mundo como o modo em

11 Id. p. 531: ”Der Mensch ist im Übergang entrückt und daher wesenhaft (’abwesend’). Abwesend im

grundsätzlichen Sinne – nicht und nie vorhanden, sondern abwesend, indem er wegwest in die

Gewesenheit und in die Zukunft, ab-wesend und nie vorhanden, aber in der Ab-wesenheit existent.

Versetzt ins Mögliche…”.

12 Cf. HEIDEGGER, M e FINK, E. Heraklit, p. 200-201.

”Wenn Sie ’Bewusstsein’ auch noch als Titel für die Transzendentalphilosophie und den absoluten

Idealismus nehmen, so it mit dem Titel ’Dasein’ eine andere Position bezogen worden. Diese andere

Position wird oft übersehen oder nicht genügend beachtet. Wenn man von ”Sein und Zeit” spricht, denkt

man zunächst an das ’Man’ oder an die ’Angst’. Beginnen wir bei dem Titel ’Bewusstsein’. Ist es nicht

eigentlich ein merkwürdiges Wort? – Fink: Bewssutsein ist eigentlich auf die Sache bezogen. Sofern die

Sache vorgestellt ist, ist sie ein bewusstes Sein und nicht ein wissendes Sein. Wir aber meinen mit

Bewusstsein den Vollzug des Wissens…”

13 Cf. as discussões de Heidegger sobre as diferenças entre a fenomenologia transcendental de Husserl e

sua fenomenologia do inaparente em ‘Welche Aufgabe bleibt dem Denken am Ende der Phlosophie noch

vorbehalten?’ in Das Ende der Philosophie und die Aufgabe des Denkens, Zur Sache des Denkens,

Tübingen: Max Niemeyer, 1976, p. 66-80. Para uma definição da fenomenologia do inaparente, cf. Vier

Seminare, Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, p. 135.

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que o mundo dá a si mesmo como totalidade que raia como luz repentina enquanto a

existência perde o sentido de coisidade, des-encobrindo-se a si como “guardiã do nada”

(Platzhalter des Nichts), que Heidegger também chamou de “pastor do ser” (Hirt des

Seins).

Aparecer em desaparecendo é o modo como o mundo mundaniza. Esse modo é o modo

da verdade, o modo aleteológico da mundanidade do mundo. Aparecer em

desaparecendo é o modo como mundo é finitude e não infinitude. Finitude ou modo

aleteológico do aparecer de mundo – dar-se em retraindo-se – define mundo como luta –

Streit – com terra-natureza, com physis. Essa concepção da totalidade inteira de mundo

é essencialmente distinta da concepção husserliana de mundo como horizonte infinito,

no sentido de um mais e mais, além e além, característico das buscas de

apreensibilidade que constituem a consciência. Enquanto Husserl compreende mundo

como horizonte e horizonte como um mais e mais, adiante e adiante de um infinito

matemático inerente aos movimentos da consciência apreensiva e definidora, Heidegger

compreende mundo como finitude no sentido aleteológico de aparecer em

desaparecendo. Finitude de mundo não significa um horizonte que possui um fim mas a

experiência profunda de imensidão. Imensidão é, assim, a experiência que mais se opõe

à idéia de infinito14

. Se quisermos compreender o que Heidegger quer dizer ao definir

Da-sein, pre-sença como “ser-no-mundo é compreensão de ser”, é preciso caminhar ao

longo com Heidegger em suas discussões sobre a luta entre terra e mundo, entre physis

(terra-natureza) e mundo. É com base nessas discussões que o sentido de uma

fenomenologia a-subjetiva do inaparente pode ficar mais claro. A expressão mundo

mundaniza, die Welt weltet, é em sua figura etimológica a estrutura aleteológica do

aparecer de mundo como mundo, no desaparecer de mundo como conjunto de coisas –

distanciando-se filosoficamente do sentido da totalidade de mundo enquanto correlato

de uma subjetividade transcendental.

Em seu evento transcendental, pode-se então dizer que o mundo aparece mais como

cósmico do que como secularizado, ou seja, como mundo para sujeitos humanos. O

termo “cósmico” é um vestígio heraclítico que percorre todo o pensamento de

Heidegger, explicitando-se sobremaneira em suas discussões sobre a luta aleteológica

do mundo com a terra e sobre a quadratura de céu, terra, imortais e mortais. Cósmico é

um termo heraclítico para nomear a imensidão do mundo. Em sua estrutura aleteológica

de aparecer em desaparecendo, mundo é imensidão no sentido de jogo de luz e sombra,

de céu e terra, de solo e abismo, de deuses e mortais. Como pre-sença, como um em si

ek-stático, isto é, fora e além de si dentro de si, a vida humana fáctica espelha esse jogo

da imensidão do mundo em seu modo de ser, de uma só vez, o mesmo e o contrário do

mundo- raio de uma luz repentina. Pre-sença espelha o mundo como tensão de

contrários, como entrecruzamento de ser e não-ser em tudo que é e não é, que pode ser e

pode não ser. Como projeção espelhante e espelhamento projetivo da imensidão do

mundo, pre-sença é co-incidência de ser e não-ser. Paul Valéry descreveu, certa vez,

essa estranha coincidência de ser e não-ser na existência humana com as seguintes

palavras: ”Dou um passo para a varanda…/ Entro no palco do meu olhar. Minha

14 Sobre a crítica ao conceito husserliano de mundo como horizonte infinito elaborada por Eugen Fink,

cf.: WALTON, Roberto. “Worldliness in Husserl’s Late Manscripts on the Constitution of Time”. Veritas.

Revista de fenomenologia, Porto Alegre, vol. 51, n. 3, 2006, 142-145. SEPP, Hans Rainer, ”Totalhorizont-

Zeitspielraum. Übergäng in Husserls und Finks Bestimmung von Welt” und Yoshihiro Nitta, “Der

Weltanfang und die Rolle des Menschen als Medium”, in: BÖHMER, A. (ed.), Eugen Fink. Würzburg:

Königshausen & Neumann, 2006.

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presença sente-se tanto o mesmo como o oposto da totalidade desse mundo raiante que

quer convencer minha presença de que ele a envolve. Aqui pode-se ver todo o choque

entre céu e terra”15

.

Pre-sença, Da-sein, significa o hífen claro-escuro, o “entre” em que ser e não-ser

coincidem. O hífen claro-escuro ou “entre” é imagem da imensidão do mundo, do

aparecer de si no próprio desaparecer. Esse pensamento claro-escuro à base de uma

fenomenologia a-subjetiva do inaparente apresenta uma perspectiva cósmica desde a

qual um pensamento do mundo descobre seu fundo. Como compreender, porém, que a

imensidão do mundo espelha-se na presença humana, incidindo sobre o entre que lhe

constitui da presença, sobre o entre que o homem ele mesmo é? Esse espelhamento-

especulativo fica mais claro se considerarmos, seguindo uma inspiração de Eugen Fink,

a presença humana como um entre a luz diurna e a obscuridade noturna, entre visões

diurnas e compreensões noturnas. Nas visões diurnas da presença, coisas aparecem

como não sendo a presença, como o que se encontra fora do homem para o homem. Sob

a perspectiva da luz diurna, a presença conhece mediante um princípio de diferenciação,

assumindo que coisas a serem conhecidas não são o ser que as conhece. Todavia,

afirmando a si como não sendo o que está sendo visto, apreendido, pensado, a presença

afirma a si mesma como não-sendo (isso ou aquilo). Presença é, no entanto, não

somente existência à luz do dia mas igualmente existência na obscuridade da noite,

existência na não-diferenciação. Presença é uma existência autodiferenciadora e, ao

mesmo tempo, não-diferenciada, enquanto existência na natureza, na vida. É existência

que conhece tanto através determinações diurnas como através de não-diferenciações

noturnas, através da vigília e do sono. Como “entre”, presença é ambos de uma só vez,

como as escadas de Paul Klee, descendo e subindo ao mesmo tempo e de uma só vez,

como as raízes de suas árvores que descem para o fundo da terra ao mesmo tempo em

que seus galhos elevam-se para a amplidão do céu. Isso significa que, em conhecendo

comparativamente mediante autodiferenciação (sob a luz diurna da consciência que diz

“eu não sou o que conheço”), a presença humana, paradoxalmente, corresponde, não

conhecendo, à não-diferenciação noturna (fazendo a experiência que “eu sou o que não

conheço” – o imenso do mundo e da vida). Separando a si mesma de cada coisa no

mundo, presença, estranha e paradoxalmente, corresponde à não-diferenciação noturna

da totalidade inteira do mundo. Nessa estranha tensão de contrários, presença não

aparece nem como o mesmo e nem como o oposto da imensidão do mundo. Aparece

como o seu não-outro, non-aliud, valendo-nos de uma expressão de Nicolau de Cusa.

Como não-outro da imensidão do mundo, presença descobre um outro sentido de

distância e proximidade, não limitado pelas fronteiras do si-mesmo. Nesse ponto, pode

aparecer a possibilidade de dar tempo e lugar para a luz clara-obscura do “entre”, a

partir de onde diferenças não aparecem nem como comparabilidade e nem como

incomparabilidade mas como não-alteridade. Encontrar o outro como não-outro é

possível num modo correspondente, num caminhar-ao-longo-com-outros que, mais do

que ver e ouvir os outros, significa ver e ouvir a imensidão do fazer-se mundo no outro.

Nas suas discussões sobre as condições existenciais ou vivas para um acesso à

alteridade do outro, Heidegger nos alerta com relação aos atos comparativos. Foi o que

também fez Goethe quando disse, no Divã oeste-leste:

15 VALÉRY, Paul. Alphabet. Paris: Le livre de Poche, 1997, p. 73: ”Je fais un pas sur la terrasse…/J’entre

en scène dans mon regard. Ma présence se sent l’égale et l’opposée de tout ce monde lumineux qui veut

la convaincre qu’il l’environne. Voici le choc entier de la terre et du ciel”.

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Comparando, todo mundo tece muito facilmente julgamentos. Todavia, quando levadas longe

demais, as semelhanças desaparecem e os julgamentos comparativos, quanto mais

cuidadosamente os examinamos, mais tornam-se inconvenientes.

[”Jedermann erleichtert sich durch Vergleichung das Urtheil, aber man erschwert sich’s auch:

denn wenn ein Gleichniss, zu weit durchgeführt, hinkt, so wird ein vergleichendes Urtheil immer

unpassender, je genauer man es betrachtet”]16

.

Caminhando-ao-longo-com-o-modo-correspondente, esboçado por Heidegger para

aceder à outridade enquanto outridade e, assim, seguindo ainda os conselhos de Goethe,

podemos encontrar algumas aberturas para tornar possível um encontro e uma conversa

entre tradições filosóficas diversas, como a fenomenologia no Ocidente e a filosofia

japonesa e oriental. Esses caminhos não se confundem com a tentativa de, por exemplo,

descobrir japonesismos no Ocidente e o ocidentalismo do Japão e nem com a proposta

de tratar essas tradições como duas experiências paralelas que só podem ser examinadas

comparativamente. Filosofia mostra-se hoje em cada mais e mais comparativa e menos

e menos co-respondente e co-responsiva ao acontecer da imensidão do mundo na

existência. No mais das vezes, o que fazemos em filosofia hoje é comparar filósofos

diferentes, quer na mesma tradição quer em tradições diversas; comparamos diferentes

períodos num mesmo filósofo, ocupando dias exaustivos com colóquios e simpósios,

tornando-nos mais e mais historiadores ou turistas de idéias e conceitos. Embora esse

tipo de exame e consideração comparativos possa ter um valor técnico para o estudo da

filosofia, ele tem-se tornado mais e mais opressor e superficial. Isso se mostra ainda

mais problemático quando distâncias e proximidades entre tradições de pensamentos

mostram-se mais e mais undimensionalizadas e globalizadas, num mundo ditado por

exigências tecnológicas de uso, consumo e vivências. Nunca falamos tanto de diferença

como hoje. Ao mesmo tempo, nunca estivemos tão distantes da possibilidade de

experienciar diferenças em seu movimento diferenciador. Mas talvez seja justamente

essa a hora certa para refletir sobre o que significa encontrar diferenças num mundo que

se torna a cada instante mais e unidimensionalizado e nivelado. Deve ser essa a hora

certa para questionar o modo comparativo como único acesso à alteridade de qualquer

outro. Escutando o modo correspondente e co-responsivo entrevisto por Heidegger,

podemos nos tornar atentos para a urgência de aprender a caminhar ao longo com a

outridade. Nesse aprendizado, temos de deixar para trás tanto o que nos é mais próximo

e o que está mais distante de nós, caminhando-ao-longo-com-o-“entre”de nós mesmos”,

em que tanto somos como não somos nós mesmos. Esse é um momento de ser não ser.

Porque esse entre é o que deve irromper durante o caminhar ao longo com o outro, ele

exige uma paciente deconstrução de nossos preconceitos e expectativas, de nossa

vontade de poder e de saber, ou seja, de nossa vontade de comparação. Isso exige um

des-aprender as considerações comparativas, algo muito difícil de se realizar. Pois

corresponder não é simplesmente negar, lógica e formalmente, a comparação mas des-

aprender considerações comparativas encontrando, nesse des-aprendizado, a

possibilidade de escutar a sublime não-alteridade da imensidão do mundo que constitui

a outridade do outro. Des-aprendendo a comparar, pode-se descobrir o modo

correspondente no seu significado essencialmente filosófico. Parece-me que a impressão

causada em Daisetz Suzuki pela doutrina das correspondências do visionário sueco

Emmanuel Swedenborg está relacionada a essa necessidade de des-aprender a comparar

para se aprender a corresponder. Talvez por isso Suzuki tenha chamado Swedenborg o

16 GOETHE. West-East Divan, Deustcher Klassiker Verlag. 2000.

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49

Buddha do Norte.17

Nesse sentido, ainda podemos repensar a poética das

correspondências proposta por Baudelaire ao pensar o homem moderno como um exílio

de si mesmo. Trata-se assim de insistir sobre a intuição de que encontrar e pensar

diferenças, o outro em sua outridade, exige um caminhar ao longo com o entre

diferenças como condição para o irromper da outridade no si mesmo. É o modo de ”ser

simples”. Esse caminho ou modo correspondente, modo de ser simples e, em sendo

simples, ver, captar, afetar e ser tocado, é aquele contado por Chuang Tzu na bonita

estória A alegria dos Peixes18

. Vendo a alegria dos peixes ao caminhar-ao-longo-com-o-

entre-nós, talvez possamos descobrir como diferença, como outridade, espelha a

imensidão do mundo aparecendo assim como o seu não-outro. Talvez assim possamos

descobrir um modo de pensar junto com o que se nos dá a pensar. Talvez seja esse o

modo em que a vida encontra formas de viver e morrer no esplendor da simplicidade de

ser desde e para a imensidão do mundo.

Janeiro de 2009.

17 SUZUKI, D. T. Swedenborg. Buddha of the North. Swedenborg Foundation, 1996.

18 MERTON, Thomas. A via de Chuang Tzu. Petrópolis: Vozes, 2002.

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Eckhart e a superação da metafísica

Sérgio Mário Wrublevski

Pensar radicalmente a questão da metafísica tem se mostrado um dos grandes desafios

intelectuais do nosso tempo. Ao longo de 25 séculos, as diversas formas de pôr e de

repropor criticamente a questão no-lo atestam. Se a crítica à metafísica se avoluma nos

últimos trezentos anos, apontando para a inexorabilidade de tal questionamento crítico,

como uma passagem decisiva para todo questionamento filosófico-espiritual essencial

do nosso tempo, cada vez mais torna-se clara a importância de compreender a questão

ela mesma na sua envergadura, no seu enraizamento histórico, nas diversas alternativas

e pseudo-alternativas. A superação da metafísica não consiste, obviamente, num querer

fixar-se num sistema filosófico ou desvencilhar-se de algum, e sim num responsabilizar-

se, aqui, agora, no contexto histórico em que vivemos, em colocar a questão da unidade

e da verdade no seu caráter fundamental e suficiente em sua fundamentação, a partir e

nos questionamentos múltiplos e singulares da existência histórica do homem. Sem este

sentido da verdade se manifestando em toda a sua exigência a partir e para a experiência

humana, nós, homens, estaríamos desprovidos do bem mais importante, e tudo o mais

perderia o seu significado. Nesse cipoal de dificuldades que uma autêntica superação da

metafísica hoje significa, pode, desde o início, ajudar uma imagem que Heidegger,

depois de ter se ocupado durante décadas com este questionamento nos sugere: A

superação da metafísica não poderá ser uma experiência ingênua de superação,

liquidação de um sistema construído por algum gênio do pensar. Ela é antes uma

experiência de convalescença de uma atitude doentia no espírito, que nos fica clara

apenas quando aprendemos a superá-la1. Também o segundo Wittgenstein nos lembra

da tarefa autêntica do pensar como superação de diversas doenças que nós mesmos

teremos que aprender a superar para dispormos de saúde vigorosa, própria do vigor de

espírito do homem.

A crítica da metafísica exige inicialmente que tenhamos presente a estrutura

fundamental e típica do questionamento conhecido com este nome, “metafísica”, bem

como os tipos mais característicos de metafísica, com os quais se dá a possibilidade de

confronto e de superação.

A – Origem e significado do termo “metafísica”

Como já é de amplo conhecimento histórico, o termo “metafísica” provavelmente foi

usado pela primeira vez pelo editor das obras de Aristóteles, Andrônico de Rodes no 1º

século a. C. Nessa edição Andrônico usa a divisão da filosofia, comum no tempo do

helenismo, em lógica, física e ética, e coloca 14 cadernos de Aristóteles, que não se

encaixam em nenhuma destas três disciplinas, “depois das questões de física” (meta ta

physiká), por tratar-se de questões afins àquelas tratadas na obra “Física” (Ta physiká),

mas também diversas destas. Nessa edição tais questões não são colocadas apenas

depois da questões de física, mas também depois de um livro sobre o céu (De caelo),

sobre a geração e corrupção (De generatione et corruptione), sobre questões

1 Cf. Em vez de “superação” (Uberwindung), Heidegger sugere a palavra “Verwindung”, que pode se

traduzida por “superação” no sentido de uma convalescença. HEIDEGGER, M., Prólogo de “O que é isto

– a metafísica (1927)”, bem como “Superação da metafísica” (1935).

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meteorológicas (Meteorologica), sobre questões acerca da alma (De anima), e obras de

biologia e zoologia.

Essa tese de um significado apenas locativo da preposição “metá” (depois das obras de

física) não explica por que tal obra teria sido colocada justamente depois das obras de

física. Historicamente há, inclusive, uma probabilidade, não de todo isenta de dúvidas,

de ter havido uma edição do 3º século a. C., com o título Metaphysikà, formada de 10

livros.

Uma primeira tentativa de explicar o título metafísica com um significado não apenas

locativo-editorial foi realizado por Alexandre de Afrodisia (II-III século d. C). Segundo

este comentador de Aristóteles, este último teria chamado de metafísica a ciência

denominada “sabedoria”, que seria também uma “ciência teológica”, porque está depois

da física, segundo a ordem relativa a nós2. Alexandre usa aqui uma famosa distinção

feita por Aristóteles entre as coisas que são anteriores “por natureza”, i.é, por si,

absolutamente (ou seja, os princípios e as causas, porque são a condição de

inteligibilidade das outras coisas), e as coisas que são anteriores “para nós” (ou seja, as

realidades sensíveis, porque são acessíveis primeiramente à nossa experiência sensível).

Por isto a regra metodológica a ser seguida parte daquelas coisas anteriores para nós,

para alcançar aquelas anteriores por natureza, ou, dito de outro modo, parte do mundo

da experiência para alcançar as causas primeiras3. Aqui se esboça um entendimento do

“metá” que não significa um “depois” meramente locativo, e sim uma anterioridade de

princípio, apreendida no que é mais próximo a nós (no médium da experiência

sensível), e para além dele (através de uma inteligibilidade manifesta em si mesma

como elucidação da experiência sensível)4. Aqui entendia-se a “física” como uma

episteme voltada para seu objeto, ou seja, para a natureza (physis), que é uma realidade

apreensível pela sensibilidade humana, e é objeto da experiência. A física precede a

metafísica, enquanto esta última tem por objeto as causas primeiras, que são realidades

supra-sensíveis.

Para Alexandre, metafísica, no sentido de Aristóteles, é a ciência do ente, na medida em

que ela não tematiza um determinado ente (on ti) ou somente uma parte do mesmo

como as demais ciências, mas o “ente como tal”, e é ao mesmo tempo teologia, na

medida em que na investigação dos primeiros princípios e causas deste ente não se pode

regredir infinitamente. Assim, a natureza deste “ente como tal” pode aqui, então, ser

melhor caracterizada. Para Alexandre fica claro ser o conceito aristotélico do ente como

tal orientado exclusivamente pelo ser das coisas naturais, i.é, pela existência atual de

tais coisas fora do nosso pensar. Com isto Alexandre tira conclusões do que, em

Aristóteles, é apenas uma orientação: de que o ente como tal é o ser substancial de uma

essência.

2 Metaph. 171, 5-7.

3 Anal. Pr. II 23, 68 b 33 ss; Anal. Post. I 2, 71 33 ss; Top. V, 4, 141 b 3 ss; Phys. I 1, 184 a 16 ss; Phys. I

5, 188 b 30 ss; Metaph. V 11, 1018 b 30 ss; Metaph. VII 3, 1029 b 3 ss: Eth. Nic. I 2, 1095 b 2 ss.

4 Na preposição meta (depois de) pode ainda ressoar o antigo significado de ser “entre” (messos, messa).

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Os filósofos neo-platônicos (III séc. d. C.), baseados numa passagem em que Aristóteles

chama a ciência investigada de “ciência teológica”5, interpretaram-na como uma ciência

que vem depois do físico, entendido o “meta” no sentido de “sobre” ou “para além de”.

Baseados em passagens de Aristóteles6, eles identificam a metafísica como uma ciência

teológico-ontológica: a metafísica, porque estuda as realidades primeiras, é chamada de

teologia, mas, uma vez que as realidades primeiras são as únicas capazes de explicar o

ser na sua totalidade, a metafísica é uma ciência que estuda o “ser enquanto ser”; é,

pois, como a própria expressão “ser enquanto ser” diz, universal, voltada à totalidade do

ser. Dito de outra maneira: Porque a metafísica se ocupa do “ser enquanto ser”, isto é,

do puro ser, ela se volta, antes de tudo, ao ser que é ser antes de todos os seres, i.é, ao

ser exemplar, supremo. Enquanto ciência que busca as causas primeiras e últimas do

ente enquanto ente, tem a ver com o ser do ente, ou seja com o divino.

Resumindo essa tradição, podemos reconhecer ter Aristóteles desenvolvido um conceito

de metafísica como ciência que vem “depois” da física no sentido de que esta

investigação se movimenta a partir das realidades mais próximas a nós, i.é, a partir da

experiência sensível, para buscar as causas primeiras. Somente depois de termos

constatado que as causas primeiras são anteriores às causas da física, podemos concluir

ser a metafísica uma ciência da realidade supra-sensível. Mas uma vez que a física é

subsumida pela metafísica, esta, além de ciência do supra-sensível, é também ciência da

totalidade do real, pois as causas primeiras, para serem verdadeiramente primeiras,

devem ser causas da totalidade. Existe, portanto, em Aristóteles uma coincidência entre

a metafísica como ciência da totalidade do real, i.é, do “ente enquanto ente”, e a

metafísica como ciência do supra-sensível, i.é do divino, chamada por Aristóteles de

“teologia”. Isto não significa que o ente enquanto ente coincida com Deus, pois o

sentido no qual o ente enquanto ente é objeto da metafísica é bem diverso do sentido no

qual Deus é objeto da metafísica. O ente enquanto ente é objeto da metafísica no sentido

do qual se buscam os princípios e as causas primeiras7; Deus é objeto da metafísica no

sentido de que é uma das causas primeiras do ente enquanto ente8. Causas (aitiai) no

sentido aristotélico não são alavancas de um movimento mas momentos de

responsabilização por uma questão.

Esta duplicidade de significados do termo metafísica tornou possível usar o termo para

indicar seja uma doutrina acerca da totalidade do real, entendendo-se aqui a busca das

causas primeiras e últimas do mundo da experiência, do que é e está sendo, seja uma

doutrina focada no supra-sensível, que busca, em contraposição à experiência sensível, a

esfera da realidade que é como condição de possibilidade da esfera sensível.

Até agora não nos fica claro de onde provém filosoficamente a necessidade desta

duplicidade de significados que o conceito “metafísica” recebeu em Aristóteles. Trata-

se de uma compreensão genuína do pensamento de Aristóteles ou do pensamento

helenista ou neo-platônico? Qual a evidência dessas duas direções de investigação, e

que questionamento mais radical elas intencionam realizar?

5 Metaph. VI 1, 1026 a 19.

6 Metaph. VI 1, 1026, III, 1.

7 Metaph. IV, 1003 a 31-32.

8 Metaph. I 2, 983 a 8-9.

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B - Enraizamento histórico da metafísica aristotélica

Essa duplicidade de significados da investigação filosófica, sempre a partir de uma

interpretação de Aristóteles, inaugurou uma tradição de indagação filosófica que haverá

de estruturar a coluna vertebral do pensamento filosófico chamado “metafísica” durante

séculos, em suas múltiplas tentativas de re-proposta, superação e transformação. Antes,

no entanto, de sondar um confronto com esta tradição posterior, talvez seja oportuno

trazer aqui alguns elementos da tradição anterior, a partir da qual a tradição metafísica,

sob o viés aristotélico, se constituiu. Nessa relação de identidade e diferença com outras

propostas acerca da questão fundamental da filosofia, talvez possa ficar mais clara a

questão fundamental nas suas possibilidades e limites, mas também em relação ao

tempo em que a questão como tal se coloca.

No tempo inaugural do pensamento filosófico podemos brevemente recordar aqui a

direção do pensar de Heráclito e de Parmênides.

Para Heráclito todas as coisas se co-pertencem, e se interpenetram permanentemente.

Elas necessitam de uma força de integração que se dá como caminho de comunhão e

contraposição, unidade a partir da diferenciação, e, a partir da diferenciação novas

possibilidades de unidade. A unidade de integração dos opostos dá-se como caminho

positivo de ser, e negativo de não-ser, expansão ascendente e retraimento descendente.

O sentido positivo de ser por ele mesmo não é alcançável a partir de fora dele mesmo,

seja como derivação dos opostos, sejam como indução a partir do não-ser. Se o caminho

do ser vier a se unilateralizar, perde paulatinamente sua força de estruturar um sentido

de renovação do mundo. É, pois, nessa acolhida instantânea e cada vez inesperada de

um sentido positivo, mediatizado pelo não-ser que se dá o salto para a possibilidade de

integração com o oposto, e que encontra possibilidade de crescimento no próprio

retraimento e desintegração9.

Também em Parmênides encontramos o pensar como um caminho descrito como um

vôo intempestivo, no qual o pensador deverá integrar o caminho do ser com o não-

caminho do não ser. “É somente ser, não-ser não é”. Este caminho de integração não

conduz apenas para cima, como fluência positiva de integração. Deverá se confrontar

também com o caminho para baixo, como desintegração, iniqüidade, escuridão,

retraimento, sem desfigurar-se numa formalização abstrata do caminho do ser, nem

sucumbir a uma racionalização insidiosa do caminho do não-ser. Trata-se de um

caminho que conduz através dos seus múltiplos níveis do pensamento da unidade

sempre mais profundamente para o confronto com a negatividade, diluição e

retraimento em toda a sua multiplicidade. O caminho positivo de integração entre Ser e

não-ser reúne em si esta multiplicidade, a conduz para a identidade do puro ser e a

entrega de novo para o âmbito, no qual a questão da unidade tem sempre menos valor.

Por fim surge o mundo do homem cotidiano que dispõe tão-somente de uma infinidade

de entidades.

Na passagem do pensamento originário de Heráclito e Parmênides para o pensamento

clássico da metafísica aristotélica, Platão costuma ser lido como o iniciador do

formalismo metafísico posterior. Esquece-se muito apressadamente que Platão foi

discípulo dos heraclitianos, e que Aristóteles talvez já articule os gonzos da planície do

9 HERÁCLITO, fragm. 60: “Caminho: para cima, para baixo, um e o mesmo”.

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pensamento do helenismo grego e latino. Apresentar a diferença qualitativa entre o

pensamento de Platão e o aproveitamento histórico que Aristóteles realizou com a

ressonância do pensamento de seu mestre é um dos grandes desafios ainda por serem

realizados.

No centro e ápice da reflexão acerca da essência da cidadania (justiça) seja como tarefa

social-política, seja como tarefa individual-social de cada cidadão, Platão reflete acerca

da gênese do pensar em relação com as diversas formas de saber, sejam elas realizações

de um saber do uso e vida (sócio-político), seja de um saber dianoético (científico).

Cada vez trata-se de um âmbito investigado segundo sua ordem interior. Esta ordem

interior não se mostra sem trabalho da experiência humana de competência, mas

também não é derivada de uma apreensão empírica. Esta ordem interior à coisa diz

propriamente a natureza, a essência de uma coisa. Onde se fundamenta esta essência?

O saber de um certo âmbito de competência humana é um saber com seu próprio

médium de evidências. Ele surge como um olho para determinadas “vidências”, as

quais, encadeadas umas com as outras, formam uma dinâmica de responsabilização pela

evidenciação como um todo. Uma tal e-videnciação busca ser uma responsabilização

última e plena pelo “sendo”, como um âmbito de ser, i.é, pelo “sendo” na sua

fundamentação última, definitiva. Se todo o saber está sempre referido ao seu

fundamento, à sua causa (aitia), Platão vê o princípio do bem como uma possibilidade

ontológica anterior tanto ao saber na sua evidenciação como anterior ao fundamento ou

causa do saber em questão.

Esta atinência do bem10

diz então atinência a uma originariedade do saber, anterior a

toda instrumentalização e fundamentação. O princípio do bem encadeia, assim, a

originariedade e nascividade do conhecimento como uma totalidade, colocando numa

consonância a experiência sensível e a configuração inteligível, de tal modo que na

figuração originária o homem vê uma esfera para além da realidade, não na direção de

uma derivação e sim da originariedade. Neste sentido a filosofia de Platão é uma

filosofia da idealidade originária, porque nela são concebidas idéias originárias, segundo

as quais a realidade terá de se conformar. É a realidade “figurativa” que funda a

apreensão sensível da realidade. Trata-se de uma dimensão originária e de uma

dimensão derivada, ambas oriundas do processo genético do conhecimento entendido

como co-nascimento criativo do homem com o real e do real com o homem.

Essa essencialização do conhecimento entendida como positividade de ser a partir do

não-saber numa evidenciação cada vez bem encadeada de cada ordem, repercutindo em

outras ordenações, tematiza a gênese complexa, cada vez livre e originária do

conhecimento e nada tem a ver com uma articulação de mundos orientada por um logos

geral como se a questão da gênese de cada saber e do conhecimento como um todo

pudesse ser reduzida à articulação de ordens e à conservação de uma lógica pré-

determinante de tudo.

Aristóteles nos diz que a grande questão do pensamento filosófico de todos os tempos é

colocar adequadamente a questão do “ser em todo o sendo”. Ser para Aristóteles não

deve ser entendido aqui no sentido de um ser particular, como por ex. a substância. Ser

significa antes o manifestar-se do ser no sendo de modo a ser vigência do essencial. Este

10 Eksis tou agathou (Rep. 509 a5).

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é o sentido originário da palavra grega ousia. Ser significa, então, tudo do qual se pode

dizer que “é”, ou que “era” ou que “será”, desde que manifestando-se como vigência de

ser para um determinado sendo. Falando disto ao qual é atribuído o ser, se pode dizer

que isto é o “sendo” (on), entendendo com este termo, justamente, isto que é. Nem o ser

nem o sendo são propriamente. O ser é propriamente o que faz ser o sendo na sua

essência. Isto é tematizar “o ser enquanto ser”, enquanto manifestação “como tal”

(aplws), por si mesma (katháutò), isto é, sem ulteriores qualificações.

O ser enquanto ser não deve ser compreendido, portanto, como uma doutrina em si

mesma, mas como o modo de tematizar o ser de tudo o que é, “enquanto ser”, de tal

modo que a experiência humana seja pleno ser. Tematizar a experiência na sua

totalidade, i.é, a experiência integral, significa tematizar tudo o que é “enquanto ser”,

não como uma sua parte, como o fazem as ciências particulares, mas na sua inteireza11

.

Cada ciência revela o sendo sob um certo aspecto. Cada aspecto, ou cada “parte” da

experiência é algo que é, é um sendo, mas tematizar o sendo enquanto sendo, i.é, sem

ulteriores qualificações, significa tematizar todo o sendo, em qualquer aspecto, do qual

se possa dizer que é, ou seja, que antes de tudo manifeste o ser de todos os sendos. Com

a expressão “sendo enquanto sendo” se aponta não somente para isto que todos os

sendos têm em comum, mas a todos os seus aspectos, seja aqueles que eles têm em

comum, seja aqueles em virtude dos quais eles se distinguem um do outro. Que o sendo

enquanto sendo para Aristóteles compreenda a experiência, e portanto não seja um tipo

particular de sendo, vale também para o sendo por excelência, i.é, para Deus.

C - A superação da metafísica em Eckhart

Embora a unidade estabelecida por Aristóteles entre a metafísica entendida como

ciência do ente enquanto ente e entendida, ao mesmo tempo, como teologia racional,

tenha se mantido no âmbito da tradição neo-platônica, seja no âmbito da Escolástica

Medieval (como também seja na sua versão árabe e judia), Mestre Eckhart pode ser

considerado um dos mais audazes críticos e inovadores desta forma de interrogação

fundamental para a humanidade ocidental. Eckhart inovou resistindo à forma como a

metafísica clássica que o aristotelismo, igualado historicamente ao platonismo, tinha

passado para a tradição filosófica-teológica ocidental. Eckhart realizou esta resistência

crítica, relendo mais rigorosamente Platão, descobrindo a inovação que o pensamento

de Dionísio Aeropagita significava. Mas foi no confronto com Tomás de Aquino,

representante maior da escolástica dominicana de viés aristotélico, que Eckhart trabalha

a superação desta forma de metafísica.

Como é bastante conhecido, Tomás se apropria da tradição da filosofia, ou seja, da

metafísica como “scientia divina”, ciência de Deus, e o faz de tal modo que, mesmo sem

desenvolvê-la sistematicamente, consegue fazer dela algo original e próprio. Sua

metafísica está embutida na sua obra principal “Summa Theologica”.

Enquanto as diversas ciências pressupõem de seu objeto que ele é e o que ele é, pertence

à metafísica mostrar que seu objeto é, e o que ele é. Para isto Tomás desenvolve uma

análise reflexiva natural do conhecimento, na qual a divisão dos conhecimentos e

ciências será clarificada a partir da metafísica ou filosofia primeira. No contexto dessa

tarefa Tomás distingue uma hierarquia de ordens que a razão pode reconhecer e criar.

11 Katholou (Met. IV I, 1003 a 21-26).

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Antes de tudo, a razão distingue uma ordem existente nas coisas naturais, objeto de uma

ciência especulativa, que, seguindo os passos de Aristóteles, Tomás chama de “filosofia

natural” (Ta physiká). Logo após, em segundo lugar, a razão distingue uma ordem a ser

instaurada no próprio ato da razão e nas suas concepções articuladas no médium

lingüístico. Com esta ordem tem a ver a “filosofia racional”, articulada através da

lógica, dialética e retórica. Também a matemática é colocada como tendo o modo da

“filosofia racional”, na medida em que cria ordens tendo como objeto o ser objetivo.

Uma terceira ordem racional surge entendida como o âmbito dos atos fundados na

vontade livre. Este tipo de ordem racional deve ser apresentado pela “razão prática” e

pela “filosofia moral”. A razão na leitura das coisas externas distingue ainda uma quarta

ordem que se dá como a ordem na produção de artefatos.

Assim, consequentemente dentro de sua tradição reflexiva, Tomás entende a metafísica

como pertencente à “filosofia natural”. Para além do âmbito dos entes naturais, ele

constata a existência de outros âmbitos e outras espécies de ser, como por ex., o

conceito “nada”, que é “algo apreendido pela razão” e como tal é “sendo” (S. Th. I,

16,3,2). Deste modo, conclui Tomás, pode-se constatar ser o objeto da metafísica o ente

como tal, abrangente de suas partes e de seus âmbitos parciais. Como última e primeira

filosofia, a metafísica não somente pressupõe as demais ciências, mas também as inclui

em si e é ela que julga não somente os princípios mas também as conclusões das demais

ciências. Ela é fundamento primeiro e último do saber humano, e por isto foi chamada

de “sabedoria” (S. Th. I/II, 57, 2, 1). Assim Tomás reconhece ter reconduzido o ente

enquanto “algo que é”, através de seus princípios de essência e ser, ao ser existente

divino. Permanece manifesta a mesma duplicidade do conceito de metafísica

característico da metafísica aristotélica.

A partir dessa pequena amostragem, podemos reconhecer Tomás de Aquino, como

também seu mestre Alberto Magno, como grandes sistematizadores da metafísica

aristotélico-platônica. Como mestre da Ordem Dominicana, Eckhart não podia não

confrontar-se com tais sistematizações, mas se empenha em superar uma tal concepção

racionalista e formal, propondo uma concepção e uma nova e mais radical experiência

da verdade, que, à primeira vista, surpreende tanto os homens escolásticos como os

homens modernos.

Na concepção eckhartiana o homem não é mais entendido como uma substância,

formada de um princípio formal referido a uma materialidade, nem Deus é o último

motor imóvel, último fundamento de um sistema analógico de modos de ser e existir,

nem o mundo é interpretado em contraposição a um outro mundo no além. No

cristianismo histórico a desvalorização teológica da era atual e da vida entendida numa

distância que o próprio Deus cria recebe sua interpretação a partir de motivos

apocalípticos judaicos, gnósticos e neo-platônicos como uma vida que será realizada

somente no além (no “reino de Deus”, no “céu”, ou depois da morte). O modo como a

relação de transcendência e imanência de Deus é pensada – de uma absoluta

incomensurabilidade até a identidade (ipsum esse) – prefigura a valorização positiva do

mundo como de uma criação divina e também a sua desvalorização como lugar do

pecado e do abandono de Deus. Aqui aparece tanto a tendência de um desprezo cristão e

fuga do mundo como de uma responsabilização pelo mundo, podendo decair inclusive

num devocionalismo para com o mundo, num “mundanismo”. As tradições do conceito

pejorativo de mundo se desenvolvem de um lado como dialética de distância e

estranheza de mundo, e de outro lado com proximidade e confiança no mundo. Já o

quarto evangelho se distingue por desenvolver a tensão entre Deus do amor e Deus

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distante do mundo; a situação do crente num mundo hostil ao mundo da fé se dá

marcada por uma dialética de mundo originário e próximo e perda de mundo, concreção

transformadora do mundo sem ser do mundo e sem julgar a “liberdade do mundo”.

Na concepção eckhartiana homem, Deus e mundo surgem originariamente numa mesma

gênese fundamental e universal. Deus e homem não são entendidos como duas

entidades separadas e contrapostas: uma no além, outra no aquém. O homem só surge

da unidade com Deus e Deus só é através da unidade com o homem. Central para

Eckhart é o pensamento de que a realidade verdadeira do homem é e só pode ser

apreendida na realidade eterna do uno, e isto significa para além e numa unidade

anterior à realidade do homem e à realidade eterna de Deus. A explicação do homem

enquanto criatura finita, contingente, exige a colocação de Deus como infinito,

necessário, e esta oposição e separação não diz a gênese do homem e de Deus a partir da

e na radical unicidade do uno. Enquanto entendermos Deus como a meta mais elevada,

as criaturas têm sua riqueza e distinção a partir de diferentes comparações analógicas e

fundadas no ente mais elevado. Nesse processo de identidade e diferenciação “Deus” é

apenas o valor mais alto da escala de comparação analógica.

No sermão “Beati pauperes spiritu, quoniam ipsorum est regnum caelorum”12

, Eckhart

toma a radicalidade da pobreza evangélica como exemplar da gênese do homem na sua

possibilidade fundamental e universal. Assim, negativamente, o homem não pode viver

nem para si mesmo, nem para a verdade (de um mundo), nem para Deus. Positivamente

o homem deverá esvaziar-se de “Deus” e apreender uma verdade que é imediata fruição

eterna. Ali o homem “deve querer e desejar tão pouco como queria e desejava quando

ainda não era”.

O homem verdadeiramente pobre é aquele que “nada quer, nada sabe, nada tem”. Mas o

fim da vontade própria não pode significar conformar-se com a vontade divina, como

usualmente se entende. Quem pensa assim, constata Eckhart, não é um homem pobre,

pois já sabe em que consiste a vontade de Deus, sem entender, como diz Eckhart, nada

da verdade divina. Trata-se ainda de um eu ensimesmado, que se recolhe no seu próprio

intimismo.

O homem na sua possibilidade fundamental e universal deverá viver “de tal forma que

nem sequer sabe que não vive para si, nem para a verdade, nem para Deus” .

Assim urge distinguir duas modalidades de agenciamento do saber/conhecer:

1) O homem sabe (a partir de uma colocação construída pelo homem) que não

vive para si, para a verdade e para Deus. É o homem que sabe que não dispõe

deste saber, como finitude de uma infinitude.

2) O homem não sabe que não vive para si, nem para a verdade, nem para Deus.

Nesta segunda possibilidade não se trata de um saber acerca da carência do saber, mas

de um não-saber que é condição de possibilidade para que a captação finita se dê

imediatamente, i.é, sem a mediação fracionada do si próprio, de cada relacionamento do

mundo e da fundamentação abissal de tudo. Trata-se de uma experiência de unidade de

homem, mundo e divino que o homem experimenta como “irrupção” instantânea e

12 MESTRE ECKHART, Sermões alemães, vol. I. Petrópolis: Vozes, 2006, p. 287-292.

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infinitamente diversa de toda mediação fracionada. A integração destes 3 momentos na

unicidade é descrita por Eckhart como fruição eterna, pura receptividade do que

instantânea e absolutamente se dá e se retrai na sua imensidão. Esta pura e absoluta

receptividade se assemelha ao puro criar de Deus cada vez se dando a partir do nada

como pura gratuidade, esplendor e absoluta singularidade.

Deste modo através da teologia mística dos padres orientais e de Dionísio Aeropagita

Eckhart aprendeu a resistir ao formalismo da metafísica de viés aristotélico-boeciano-

tomasiano para redescobrir as possibilidades fundamentais e abissalmente universais da

metafísica de Platão.

Rio de Janeiro, 23/03/2009.

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Alguém me tocou!

Arcângelo Buzzi

“Antes das sementeiras há a lavra. Trata-se de desbravar um campo que

deveria permanecer desconhecido, em conseqüência da predominância

inevitável da terra metaphysica. Antes disso, trata-se de o pressentir, depois, de

encontrá-lo e, por fim, de o cultivar. Trata-se de ir lá uma primeira vez. Muitos

são ainda os caminhos desconhecidos que aí conduzem. Mas um só reservado a

cada pensador: o seu, nos sulcos do qual lhe será necessário errar num

incessante vai e vem até que, por fim, o tome como seu – sem todavia nunca

lhe pertencer – e diga o que aprende por esse caminho” (HEIDEGGER, M.,

Chemins qui ne mènent nulle part. Paris, l962, p. 174).

Naquele tempo, no episódio narrado por Lucas (Lc 8,43-48), Jesus foi recebido por uma

multidão que estava à sua espera. Em meio àquela multidão esperançosa, uma só pessoa

pressentiu e encontrou nele o saudável vigor de que ela necessitava. Mais claramente:

ela não só pressentiu e encontrou nele o vigor de que necessitava, mas apropriou-se do

próprio saudável vigor, pois Jesus disse: “Alguém me tocou! Senti que saiu de mim uma

força!” E sem resistência, concedendo, Ele se deixou apropriar da plenitude de sua força

e disse à mulher palavras de recompensa e de supremo consolo: “Filha, tua fé te curou.

Vai em paz!”

O lendário episódio narrado no evangelho de Lucas nos introduz na tarefa da fé! E na

seqüência, o texto do filósofo Heidegger, acima transcrito, nos introduz na tarefa do

pensamento! Achamos que esse preâmbulo de introdução à tarefa da fé e à tarefa do

pensamento é meio para compreender as reflexões intempestivas, em forma de

comentários, publicadas em vários livros e diferentes revistas, de nosso confrade e

amigo Hermógenes Harada, homem sensível à fé e ao pensamento.

Vamos primeiro à tentativa de clarear o que é dito da fé no episódio narrado no

evangelho de Lucas. Nesse lendário episódio, a figura de Jesus é apresentada no

“extraordinário” de uma excitante realidade. Dizemos que a figura de Jesus era assim

apresentada porque movimentava ao redor de si grandes multidões. Movimentava

multidões não apenas porque, no “extraordinário” de si, se mostrava ele próximo,

acessível e disponível, mas sobretudo porque causava nas pessoas entusiasmos por uma

porção de coisas a todos realmente necessárias, úteis e proveitosas. Jesus, porém, a

excitante realidade mobilizadora de multidões, nem sempre era merecido na verdade

dele próprio e muito menos na verdade dos entusiasmos que ele despertava.

Há, portanto, nesse lendário episódio narrado no evangelho de Lucas a presença de uma

verdadeira e eficaz realidade chamada Jesus, mobilizadora do ser humano e

correspondente às suas reais necessidades. A mulher que se aproximou e se apropriou

de Jesus, da verdadeira e eficaz realidade, correspondente à sua real necessidade, ouviu

dele as palavras de doce recompensa e supremo consolo: “Filha, tua fé te curou. Vai em

paz”! E há também, nesse lendário episódio, o relato pormenorizado da lucidez e do

fervor entusiasta que levou a mulher a aproximar-se e a apropriar-se da força dele, “pois

ela pensava: se eu ao menos tocar o manto dele, ficarei curada” (Mt 9,21).

Nenhuma outra pessoa da multidão foi igual à lucidez e ao fervor entusiasta da mulher

que pensava: “se eu ao menos tocar o manto dele, ficarei curada!” Só a ela Jesus, a

excitante realidade mobilizadora das multidões, se voltou e consentindo disse: “Alguém

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me tocou!” Nenhum outro da multidão que o esperava mereceu igual cura: o messias da

graça! Isso porque todos os outros da multidão esperavam e procuravam o messias da

lei. A predominância do messias da lei, cultivada no coração das multidões por seus

líderes, impedia que suas consciências se abrissem à pura espera do messias da graça,

esperado pelos patriarcas Abraão, Isaque, Jacó, contido nos mandamentos de Moisés

(Ex 20,1-26) e anunciado pelos profetas Isaías, Jeremias, Ezequiel, Daniel, Oséias e

muitos outros. E agora, no instante daquele tempo narrado no evangelho de Lucas, foi

visto na fé da mulher que pensava: “se eu ao menos tocar o manto dele, ficarei curada”!

Na mediação do manto, isto é, na aparência simples e humilde em que se mostrava, bem

distante do espetáculo triunfante do messias da lei, a fé transportou a mulher para o

íntimo de Jesus e o levou a proclamar a sua missão de messias da graça! Na mediação

do manto, como mais tarde na mediação da cruz, deu-se de fato o consentimento da fé: a

dádiva da misericórdia. Em outros termos, na mulher curada deu-se a fé: deu-se o

salvador, o messias da graça.

Nas modulações de sua vida, todas elas no modo do crucificado, Jesus desfez o

escândalo da cruz (Gl 5,11) e fez dela testemunho da fé (Jo 12,32): a invisível e

sobrenatural presença da misericórdia divina na crucifixão de sua encarnação no todo da

criação. “A doutrina da cruz é loucura para os que se perdem, mas poder de Deus para

os que se salvam. Consoante está escrito: “destruirei a sabedoria dos sábios e reprovarei

a prudência dos prudentes”. Onde está o sábio? Onde, o erudito? Onde, o pesquisador

das coisas do mundo? Porquanto na loucura da cruz e na sabedoria de sua pregação

aprouve Deus salvar os que crêem” (1Cor 1,18-22).

O texto do apóstolo evoca na árvore da cruz (Jo 14,6) a memória da árvore da vida

plantada no meio do jardim da criação (Gn 2,9). “Feliz de quem a ela se apega” (Pr

2,18), “a ele será dado de comer da árvore da vida que está no paraíso de Deus”(Ap

2,7)! A dificuldade de o ser humano abrir-se à fé, à pura espera do messias da graça, é

algo de inevitável desde que ele se hominizou, isto é, desde quando se apossou da árvore

do conhecimento (Gn 3,1-24), isto é, desde quando decidiu gerenciar sua existência na

perspicácia da razão, qual astuta serpente, sempre julgando o que é bom e o que é mau

para seu modo de viver. E isso tudo foi bem sinalizado no mito narrado no livro do

Gênese, onde se diz que a humanidade, ao apossar-se da árvore do conhecimento, se

afastou da verdadeira e eficaz árvore da vida, isto é, foi infiel à fé, não creu no abrigo do

Deus invisível, preferindo viver na predominância do seu conhecimento. O espinho que

incomoda a fé, porém, não é o conhecimento, mas a infidelidade ao seu testemunho. O

dever do crente é vigiar a fé mediante a oração, a exemplo de Cristo no Getsêmani, e

não mediante o conhecimento.

No episódio narrado no evangelho de Lucas, a multidão estava no impedimento de

achegar-se à fé do messias da graça, devido ao seu tradicional culto do messianismo da

lei: do claro conhecimento de como ele devia apresentar-se! A humanidade hoje, na

predominância e no cultivo da ciência, bem antes de abrir-se à sabedoria da fé, está na

dificuldade menor de abrir-se à sabedoria do pensamento que pensa o ser se realizando

em todo e qualquer sendo. E não podemos presumir que ela possa abrir-se à sabedoria

da fé sem antes abrir-se à sabedoria do pensamento. Para mostrar o quanto a

humanidade hoje está nesta dificuldade, nos valemos do texto de Heidegger acima

transcrito. E isso tudo o fazemos com aquela pretensão de compreender as

intempestivas reflexões de Hermóngenes Harada que buscam não homogeneizar mas

compactar pensamento e fé em todo conhecimento.

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Se nos ativermos aos muitos conhecimentos da teologia, da filosofia e das ciências

empíricas, propostos nas formulações da nossa civilização cristã ocidental, estaremos na

ilusão se acharmos que temos em mãos as sementeiras da terra. Nessas formas de

conhecimentos temos em mãos estruturas de conceitos e idéias, que ordenam em ídolos

os divinos do céu, que produzem objetos explorando a terra mediante a tecnologia dos

muitos saberes matemáticos da razão científica. As sementeiras da terra não surgem dos

múltiplos e diferentes conhecimentos, mas da lavra do campo.

O problema é como chegar à terra que possibilita as sementeiras, porquanto trata-se de

lavrar um campo que deveria permanecer desconhecido, em conseqüência da

predominância inevitável da terra metafísica. É dura a asserção de não podermos chegar

à lavra das sementeiras enquanto permanecermos no preponderante poder de nossos

conhecimentos, que o pensador chama de terra metafísica. Ele nos diz que é preciso ir

por outro caminho! Trata-se de pressentir o campo da lavra! Depois, trata-se de

encontrá-lo! E por fim, trata-se de o cultivar! Trata-se de ir lá uma primeira vez!

O caminho outro, que não o da terra metafísica, é a solidão em que sensíveis estamos

junto às coisas na simplicidade nativa de seu surgir, crescer, florescer e frutificar na

palpitação da terra sob a proteção do céu. No originar-se e vir a nós, essas coisas nos

falam da terra e do céu, antes de nossa lavra, antes da exploração dos conhecimentos de

teologia, de filosofia e de ciência, antes da força das máquinas à nossa disposição. Junto

às coisas pressentimos, encontramos e cultivamos a terra no cuidado das inesperadas

mudanças de seu realizar-se. Na palpitação da terra: no surgir, crescer, florescer e

frutificar de suas sementeiras, o pensamento percebe a irrupção do mistério do ser.

Tocados por este mistério do ser que se nos dá nas dádivas da terra, compreendemos o

comentário que o pensador fez do quadro de Van Gogh, Os sapatos da camponesa.

Neste comentário ele considera o caminho do pensamento, a filosofia, que pensa a

realidade se realizando em todo e qualquer sendo, igual ao da camponesa na sua lavra

do campo. Como o da camponesa, o seu lavrar o campo é sempre tenso e angustiante!

Muitos são os caminhos que ali conduzem. Mas um só reservado a cada pensador: o

seu, nos sulcos do qual lhe será necessário errar num incessante vai e vem até que, por

fim, o tome como seu e diga o que aprende por este caminho:

No rude e sólido peso do sapato está firmada a lenta e obstinada pegada através dos campos, a

lonjura dos caminhos sempre semelhantes, sob o vento frio. A pele é marcada pela terra fértil e

úmida. Sob as solas estende-se a solidão do caminho do campo que se perde no crepúsculo.

Através dos sapatos perpassa o apelo silencioso da terra, o seu dom tácito do grão maturescente,

a sua secreta recusa no árido pousio do campo invernal. Através deste produto perpassa a muda

inquietude pela segurança do pão, a alegria silenciosa de sobreviver de novo à necessidade, a

angústia do nascimento iminente, o estremecimento frente à morte que ameaça. Este produto

pertence à terra e está em abrigo no mundo da camponesa (HEIDEGGER, M., Chemins... p. 25).

Este comentário do filósofo ao quadro Os sapatos da camponesa de Van Gog (1853-

1890) nos diz que a tarefa primeira do pensamento de cada ser humano é aproximar-se

da simplicidade das coisas que surgem, crescem, florescem e frutificam na terra sob a

arcada do céu e, incorporando-se ao instante de seu surgimento, ao instante de sua

floração e frutificação e ao instante de seu declínio para o nada de seu poder, iguais a

elas aprender o caminho desconhecido de seu próprio realizar-se no mistério do ser:

O próprio carvalho assegurava que só um tal crescimento pode fundar o que dura e frutifica;

porque crescer significa: abrir-se à imensidão do céu e também lançar raízes no abscôndito da

terra; porque tudo o que é verdadeiro e autêntico somente chega à maturidade se o homem for

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simultaneamente ambas as coisas: disponível ao apelo mais alto do céu e abrigado pela proteção

da terra que oculta e produz (HEIDEGGER, M., Le Chemin de campagne, Q.III, Paris, l966, p. 11).

É fácil ver que o carvalho se enraíza na terra para abrir-se à imensidão do céu. É fácil

também adivinhar que nessa tarefa de realizar-se, o carvalho, sem saber próprio, é

intérprete da terra e do céu: deles recolhe a seiva, o vigor e o entusiasmo de seu

projetar-se. Quem se aproxima da atividade intelectual de Hermógenes Harada, de suas

intempestivas reflexões, que procuram clarear a realização do ser humano, ouve e escuta

a voz da fala do carvalho. Ele chama essa escuta intelectual e conseqüente decisão de

seguimento de hermenêutica da facticidade do ser humano em oposição à factualidade.

Facticidade é o modo de ser próprio da existência humana de achar-se sempre já situada, isto é,

aberta e constituída dentro e a partir de um “lance” da possibilidade de uma pré compreensão do

ser, que se estrutura como um todo, denominado mundo. Mundo é oposto a imundo. O terreno

baldio, selvagem e caótico, é não-mundo, a saber, imundo. Quando o homem habita a selva, ele

abre ali clareira e cria ambiente viável para a moradia e cultivo da terra. Ele transformou o

terreno baldio, imundo em mundo, em terreno cultivado (HARADA, H., Coisas, velhas e novas.

Bragança Paulista: Edusf, 2006, p. 122).

Se “indiferentes” olharmos o carvalho, não vemos nem terra nem céu! Ao aproximar-

nos do espetáculo de sua altiva presença, porém, sentimos a seiva da terra e o vigor do

céu no íntimo de sua estruturação. Se nos aproximarmos da maneira de o ser humano

estruturar sua existência no mundo, sentimos a seiva da terra e o vigor do céu na fala de

sua linguagem. Isto quer dizer, que é na lavra da fala da linguagem que disputamos a

seiva da terra e o vigor do céu, a hermenêutica da facticidade do ser humano. A

linguagem é o tesouro, a fala é a lavra desse tesouro! É, pois, nas experiências de falar a

linguagem da terra e do céu que nos ligamos ao mundo da vida. A partir dessas

considerações é fácil compreender que Hermógenes Harada tenha evocado a parábola

de Jesus sobre o reino dos céus para ilustrar o procedimento da hermenêutica da

facticidade do ser humano: “Por isso todo escriba que se torna discípulo do reino dos

céus é como o pai de família que de seu tesouro retira coisas novas e velhas” (Mt

13,52).

Igual à árvore que da terra sobe para o céu, o ser humano se enraíza na terra para se

erguer e florir no céu. O intérprete que de fato quer tornar-se discípulo do reino do céu

deve ser como pai de família, discípulo muito experimentado do mundo da vida na

terra. Na fala da linguagem da terra, do mundo dos mortais, e na fala da linguagem do

céu, do mundo dos imortais, ele compreende interpretações velhas, elaboradas pelos

antepassados e interpretações novas elaboradas por ele mesmo. Tais interpretações não

são a sabedoria nem da terra nem do céu. A sabedoria do céu (a fé cristã recomendada

por Cristo) e a sabedoria da terra (a prudência recomendada por Aristóteles, o bom

senso recomendado por Descartes, a retidão da razão prática recomendada por Kant)

não precisam de interpretações. Para lembrar que as interpretações “falham” na

indicação da sabedoria da fé e do pensamento, Hermógenes Harada as chama de

reflexões intempestivas e marginais. E nessa sua maneira de falar nos diz o quanto elas

ajudam a nos ater, deter e conter na sabedoria da vida, no próprio da jovialidade da fé e

no próprio da coragem do pensamento.

Quem de fato se afunda na sabedoria do mundo da vida (Lebenswelt), quem de fato

persiste no próprio da jovialidade da fé e no próprio da coragem do pensamento, lhe faz

bem ouvir na complexa e marginal fala das intempestivas reflexões de Hermógenes

Harada o quanto a condição humana, antes de toda interpretação, está “cordial e

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gratuitamente na plenitude abissal e insondável do mistério da anterioridade,

superioridade e profundidade do encontro de e com quem se nos doou primeiro”

(HARADA, H. Coisas, velhas e novas... op. cit. p. 10).

Para que a nossa condição humana esteja fortemente enraizada na sabedoria do mundo

da vida, e se sinta sempre “cordial e gratuitamente” animada pela jovialidade da fé e

coragem do pensamento, precisamos nós mesmos, mediante reflexões intempestivas a

exemplo das que sugere Hermógenes Harada, senão nos libertar, ao menos nos aliviar

da predominância dos muitos conhecimentos de teologia, de espiritualidade, de

filosofia, psicologia, sociologia, política e demais ciências que instruem e escravizam

nossa consciência:

O espírito ou o sopro vital que anima as almas ardentes e suas obras, hoje podemos somente

pressentir de alguma forma, de longe. Recordação de um antanho feliz ao mesmo tempo anseio

oculto de uma renovação vindoura, prestes a se anunciar do fundo, do mais profundo de nós

mesmos. Neste sentido, estamos hoje com grande saudade à margem do espírito de um texto

como de I Fioretti (HARADA, H. Em Comentando I Fioretti. Bragança Paulista: Edusf, 2003, p.

15).

E podemos acrescentar de muitos outros textos de nossa tradição cristã ocidental!

Portanto, as reflexões intempestivas de Hermógenes Harada nos aproximam, nos põem

insistentemente não só à margem dos textos da tradição, isto é, de coisas velhas, mas

também à margem de nossa situação atual, isto é, de coisas novas. À margem tem aqui o

sentido de nos abeirar da sabedoria do mundo da vida a que eles acenam e assim de nos

repatriar à verdadeira morada da condição humana. À margem é o modo de cortejar e de

abordar a coisa em questão, é o de andar ao longo, junto de, na cercania; é o modo da

aproximação de fora para dentro como uma abordagem paulatina de participação. À

margem tem portanto o sentido de nos aproximar do rio da vida, deixando-nos fascinar

de sua corrente e no murmúrio de suas águas ouvir o convite de saltar para dentro de sua

torrente.

Para nos convencer que as reflexões intempestivas à margem dos textos da tradição e de

nossa atual situação no mundo, propostas por Hermógenes Harada, aparentemente

alienadas, nos são de fato extremamente úteis, porquanto nos estimulam a praticar livres

e alegremente, por maestria própria, a hermenêutica da facticidade de nossa condição

humana, vamos recorrer a um poema do pensador chinês Chuang-Tzu (IV a. C). Neste

poema há a exemplificação do que sejam reflexões intempestivas à margem. Nele

apreciamos a acribia das reflexões intempestivas de Chunag-Tzu e de seu discípulo Hui

Tzu a respeito da alegria. Com a palavra acribia queremos dizer que no final do poema

há o reconhecimento que todo diálogo entre os dois parte de uma anterioridade que o

possibilita. A anterioridade é a sabedoria do pensamento, o lumen naturale, em que a

condição humana sempre está antes de acordar para a acribia das possíveis e diferentes

interpretações de si própria, aparentemente sem possível acordo.

Chuang-Tzu e Hui Tzu atravessavam o rio Hao pelo açude.

Disse Chuang: Veja como os peixes pulam e correm tão livremente. Isso é a sua felicidade.

Respondeu Hui: Desde que você não é um peixe como sabe o que torna os peixes felizes?

Chuang respondeu: Desde que você não é eu, como é possível que saiba que eu não sei o que

torna os peixes felizes?

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Hui argumentou: Se eu, não sendo você, não posso saber o que você sabe, daí se conclui que

você, não sendo peixe, não pode saber o que eles sabem.

Disse Chuang: Um momento: Vamos retornar à pergunta primitiva. O que você me perguntou

foi: Como você sabe o que torna os peixes felizes? Dos termos da pergunta você sabe

evidentemente que eu sei o que torna os peixes felizes. Conheço as alegrias dos peixes no rio

através de minha própria alegria, à medida que vou caminhando à beira do mesmo rio (MERTON,

T. A via de Chung-Tzu. Petrópolis: Vozes, 1989, p. 126-127).

Ao atravessar o rio Hao com Hui-Tzu, em vendo os peixes que alegres pulavam e

corriam, Chuang-Tzu disse: isto é a sua felicidade! Ao ouvir esta interpretação de

Chuang-Tzu é provável que a exemplo de Hui-zu, digamos que é pessoal, privativa e

subjetiva. No decorrer do diálogo de Chuang-Tzu com Hui-Tzu, porém, entendemos

que no olhar os peixes, Chuang-Tzu se percebe morando na mesma paisagem dos

peixes. Andando à margem do rio Hão, seus passos são tangidos pela fluência das

mesmas águas. Na participação do vigor das águas do rio Hão, que faziam os peixes

pular e correr, instante fugaz que possa ter sido, Chuang-Tzu se sentiu em igual

felicidade.

Quando uma pessoa se perde em representações e se hipnotiza na sucessão de representações e

cria todo um mundo fechado em si, pode vir a si e acordar com um estalo de dedos. Assim faz

Chuang-Tzu em relação a Hui-Tzu. Estala os dedos da realidade anterior às perguntas que

disparam para longe da questão, isto é, da busca primitiva e elementar, dizendo: Acordemos,

olhemos o que realmente é: na travessia, a caminho, ao longo do rio Hao, somos, estamos dentro

da grande paisagem do ser, como os peixes estão também imersos na vastidão, profundidade e no

abismo desse mesmo ser, dessa mesma vida que nos cerca, nos impregna, nos sustenta e nos

oferece mil e mil possibilidades de sentido e abertura de mundos. Antes de nos comunicarmos, já

estamos “comungando” na mesma vida, no mesmo ser. E se podemos perguntar o como disso ou

daquilo, é porque já estamos comungando, relacionados, participando da mesma vida. Longe de

sermos uns aos outros estranhos, alienígenas, todos nós, todas as coisas, todo o universo, desde

as “coisas” mais sublimes até as mais insignificantes, ínfimas, constituímos um mesmo sangue,

um mesmo hálito, uma família, uma fraternidade universal (HARADA, H. Em Comentando I

Fioretti, p. 26-27).

A hermenêutica da facticidade do ser humano, na terminologia de Hermógenes Harada:

a interpretação ou reflexão intempestiva, embora estando à margem, tem sempre alguma

relação com a real situação que se nos dá numa anterioridade, profundidade e enigma

indecifrável fora de nosso alcance. Podemos então dizer que a interpretação é sempre

válida desde que nos ajude a estruturar a existência humana na respectiva situação.

Validade não significa aqui imediatamente verdade, diz apenas funcionalidade no

sentido de nos relacionar à situação de modo coerente e coeso. Portanto, desde que

tenha referência à situação, nenhuma interpretação é arbitrária! Por outro lado, nenhuma

interpretação é definitiva no sentido de possuir a chave da verdade: de descobrimento

pleno e total da situação. O reconhecimento que a hermenêutica da facticidade do ser

humano é sempre uma interpretação já é início de um processo de intercâmbio com

outras possíveis hermenêuticas, numa interação de mútua crítica, provocação,

confirmação, acolhida ou rejeição, de aprofundamento e alargamento, em cuja co-

agitação cada hermenêutica é levada a tomar conhecimento cada vez mais responsável e

acurado dos seus limites, do seu nível e da sua dimensão.

A hermenêutica da facticidade do ser humano deve estar sempre no empenho de

transportar-se ao vigor da situação. Esse empenho de transportar-se ao vigor da situação

pode ter como meta liberar o ser humano ao poder de explorá-la: de organizá-la para

dela tirar proveito, lucro, prazer e maior bem-estar. E pode também ter o sentido de

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liberar o ser humano a associar-se à verdade da situação: ao encontro com o Outro,

anterior aos interesses de sua exploração. Lá, o empenho de transportar-se ao vigor da

situação se reduz à conquista de um bem exterior. Aqui, o empenho está no interesse de

liberar-se à verdade de si próprio, de merecer o encontro pessoal com o Outro. Embora

provenham do ser humano, as diferentes decisões de viver a situação nem sempre se

integram e se abraçam. No mais das vezes uma procura prevalecer sobre a outra.

As interpretações intempestivas de Hermógenes Harada, acessíveis em livros publicados

e artigos de revistas, nos ajudam a discernir esses dois modos de efetuar a existência

humana no concreto de uma situação: um modo funcional que ele chama de diferença

ôntica ou empírica proveniente da impostação das ciências e outro de modo pessoal que

ele chama de diferença ontológica ou transcendental pré-científica. Exemplo desse

modo de o ser humano personalizar-se no concreto de sua situação, na liberdade de sua

verdade e na verdade de sua liberdade, é lembrado pelo poeta Angelus Silesius (1624-

1677) quando diz: “A rosa é sem porquê. Floresce por florescer. Dela mesma nada sabe,

nem pergunta se a gente a vê.” Esses versos da rosa evocam a liberdade do ser humano

de personalizar-se, de entregar-se à gratuidade da situação, de harmonizar-se aos

diferentes degraus de sua manifestação, desde a pedra ao Divino. Para ilustrar que é a

gratuidade da situação que alenta e anima o ser humano a efetuar sua existência na

simbiose da diferença ôntica e da diferença ontológica, lembremos uma antiga parábola

asiática, que diz:

Era uma vez, na província de Saga, no interior do Japão, um velho casal que vivia com um filho,

ainda menino. Teciam à mão sandálias de palha para vender. O que ganhavam era pouco, dava

apenas para viver. O menino era obediente. A tudo dizia sim, sim, sim, sem murmurar.

Todos os dias a mãe dizia ao marido: “Ah, se ao menos nosso filho pudesse levar uma vida

melhor. Mas, ele é um idiota. A tudo obedece, sem objeção. Não tem nenhuma iniciativa”. O pai

nada dizia. Continuava trabalhando.

Um dia a mãe disse ao marido: “Vamos tentar nosso filho, para que sinta a necessidade da

iniciativa. Vamos dar-lhe uma tarefa impossível para ver se reage e diz não à nossa ordem”. O

pai nada respondeu. A mãe chamou o filho e lhe entregou três palhas e ordenou: “Vai trocar

essas palhas com três peças da seda preciosa de Kioto”. O filho disse sim e saiu de casa.

A caminho, à beira de um riacho, uma mulher lavava cebolas. Disse a mulher: “Que tens na

mão?” “Três palhas”, respondeu o menino. “Queres me dar as palhas para amarrar as cebolas em

feixe”? “É que as palhas são preciosas”, disse o menino. “Elas valem três peças de seda”. Depois

de muito negociar, o menino trocou as palhas com três cebolas e saiu cantarolando pela estrada

afora.

A caminho, à entrada de um albergue uma mulher lhe perguntou: “Não queres me dar essas

cebolas? Preciso delas para dar gosto à salada de peixe”. O menino respondeu: “É que as cebolas

são preciosas. Valem três peças de seda”. Depois de muito negociar, o menino recebeu três

garrafas de molho de soja em troca das cebolas.

Um pouco adiante , ao passar diante de uma rica moradia, correu-lhe ao encontro o senhor da

casa e pediu ao menino lhe vendesse o molho. Dizia: “Preciso com urgência do molho. Recebi

visita inesperada e não tenho mais molho em casa”. Disse o menino: “É que o molho é precioso.

Vendê-lo não posso. Só se me deres algo equivalente”. O homem era fabricante de espadas. Em

troca do molho deu-lhe uma espada. O menino pendurou a espada ao cinto e continuou a viagem.

Na cercania de Kioto, porém, a estrada se encheu de cavaleiros. Era o séqüito do príncipe de

Kioto que por ali passava numa suntuosa carruagem. Os pedestres se postavam à beira da

estrada, dando passagem ao cortejo. De repente, o olhar do príncipe caiu sobre o menino

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camponês, o único que trazia espada ao cinto. Mandou chamá-lo e perguntou: “Como carregas

uma espada, tu que és apenas camponês”?

O menino respondeu: “É que a espada vale três palhas que são garantia de três peças de seda de

Kioto”. Disse o príncipe: “O que significa isso”? E o menino contou-lhe toda a história de sua

viagem. O príncipe admirado disse ao menino camponês:

“Não é bom que uses a espada. Mas é bom receber a espada que vale três palhas do camponês”.

E pediu-lhe a espada. Em troca deu-lhe três peças de seda preciosa de sua tecelagem.

O menino retornou à casa paterna. Em casa, o pai nada disse. Apenas continuou a tecer as

sandálias de palhas.

A parábola do menino das três palhas conquistando a dignidade do menino das três

peças de seda preciosa, mostra que a hermenêutica da facticidade do ser humano se

desdobra em três momentos simultâneos: na tenacidade e na sanha da mãe, na

obediência pronta e cordial do filho, no silêncio e na serenidade do pai. Os três

momentos são de luta e de fúria, porquanto cada qual a seu modo busca atirar-se e

recolher-se no prenhe vigor vindo da respectiva situação.

O momento mãe é de luta que tem como meta libertar o ser humano das imposições que

o cercam, o comprimem e o prendem aos inexoráveis anéis da organização funcional e

operativa da situação. Ela aciona seu saber, querer e poder para ir além dos limites da

situação. Sua luta visa ultrapassar a situação, sair de seus limites, porque vê nela a

inércia e a paralisação de seu impulso e anseio de transcendência.

O momento filho é diretamente de luta por merecer a dignidade da vida humana na

transcendência da verdade e da liberdade que lhe é própria. Essa luta por merecer a

transcendência da liberdade e da verdade não se faz contra a situação nem fora dela. Sua

obediência pronta e cordial é lucidez que agarra com ambas as mãos o pouco da

possibilidade de cada situação, para neste pouco trabalhar tenaz e pacientemente na

afirmação da própria liberdade.

O afã da mãe sem a obediência cordial do filho decai facilmente num assanhamento estéril, vazio

de concreção, onde a carência, a privação do finito se exacerba sempre mais na existência

abstrata de satisfação imediata dos anseios, sem o trabalho paciente e recolhido da mediação.

A positividade cordial da obediência do filho sem o afã da mãe jamais vem a si, jamais nasce,

cresce e se firma como identidade, permanece amorfa na inércia de um deixar ser sem perfil e

caráter.

O que, porém, fecunda o momento mãe e o momento filho para a simbiose da concreção, de

onde e para onde a sanha da mãe nasce e cresce como a cordialidade do filho e a cordialidade do

filho vem a si como a transcendência criativa da mãe, é o silêncio do pai, o retraimento sereno do

nada do mistério. A sanha da mãe e a obediência do filho e o silêncio do pai são momentos

“abstratos” da estruturação da existência, do destinar-se da sua história como nascer, crescer e

consumar-se da identidade humana: da seda de Kioto (HARADA, H. Coisas velhas e novas... op.

cit. p. 177-178).

A parábola do menino das três palhas nos reenvia a uma maior compreensão do poema

de Angelus Silesius que ilustra a hermenêutica da facticidade da existência humana na

rosa sem porquê que floresce por florescer! No poema da rosa sem porquê: a mãe é a

terra, o pai é o céu, o filho, a rosa.

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Esta consumação da identidade humana como fruto sazonado de todo um processo de

crescimento, cujas vicissitudes constituem a essência de todos os perigos e sofrimentos,

de todas as dores e lutas, de vitórias e frustrações, de esperanças e utopias, de buscas e

fugas da terra dos homens... Esta consumação de plenitude de sentido do ser em quem

nos movemos e somos e existimos é sempre evocada nas reflexões intempestivas de

Hermógenes Harada, feitas à margem de textos da tradição e de situações de nosso

cotidiano, à margem de coisas, velhas e novas.

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Da necessidade do desnecessário*

Frei Marcos Aurélio Fernandes, ofm.

“Bem-aventurados os pobres no espírito, porque deles é o reino dos céus” (Mt 5,3).

“A romântica nostalgia de I Fioretti na selva de pedra das nossas vicissitudes modernas, seria apenas os

últimos ecos de uma tradição que se esvai ou alvores ainda longínquos de um Deus vindouro?” (HARADA,

Fr. H. Em comentando I Fioretti).

Advertência: o presente artigo se propõe uma meditação, com Heidegger, que parta da

necessidade do desnecessário e que acene para ele. Ela se dá no empenho de abrir um

caminho de pensamento, que se compreende como um pensamento inicial, o que

significa, também, um caminho pré-cursor. O que isto aqui quer dizer, porém, só pode

ficar claro, a partir da leitura do próprio artigo.

Comecemos, pois, esta meditação, com um diálogo do Oriente:

Hui-tzu disse a Chuang-tzu: “Você fala do desnecessário”. Chuang-tzu falou: “primeiramente

carece de alguém reconhecer o desnecessário, antes de poder falar com ele do necessário. A terra

é larga e grande, e, no entanto, o homem carece, para ficar de pé, só daquele tanto de lugar

necessário onde ele põe o pé. Porém, se, ao lado dos pés, se lhe arrancasse toda a terra, abrindo-

se-lhe um abismo, aquele tanto de lugar ainda lhe seria útil?” Hui-tzu falou: “não lhe seria mais

útil”. Falou, então, Chuang-tzu: “daí resulta com clareza a necessidade do desnecessário”1.

Hui-tzu e Chuang-tzu2 são dois chineses. Um é “sabido”, isto é, um hábil discutidor e

sagaz orador, ao mesmo tempo em que é um homem pragmático, preocupado em

instruir para aquilo que é considerado imediatamente necessário. Já o outro é sábio, pois

* Ao frei Hermógenes Harada, por ocasião de seus 80 anos, em sinal da gratidão. Agradeço tudo o que

pude e poderei vir a ser, na experiência, por graça do encontro com ele.

1 Esta versão do diálogo foi construída tendo como referência a sua menção em: HEIDEGGER, Martin.

Feldweg-Gespräche (1944/45) – Gesamtausgabe Band 77. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann,

1995, p. 239. Também foram cotejados os textos: Chuang-tzu, traducción de Carmelo Elorduy (s.l.):

Monte Avila Editores (s.d.), p. 199 (cap. 26, 7); e MERTON, Thomas. A via de Chuang-tzu. Petrópolis:

Vozes, 2002, p. 225-226.

2 Chuang-tzu (Mestre Chuang), provavelmente, viveu entre 370 e 300 a.C. Junto com Lao-tse (o Velho

Mestre), constitui uma fonte imprescindível do taoísmo. Hui-tzu ou Hui Shih (Mestre Hui) – 380-305

a.C. – era uma espécie de “sofista” chinês. Sua preocupação era com a argumentação. Era hábil na

discussão e fluente na eloqüência – um homo loquax – mas, da perspectiva da tradição que remontava a

Chuang-tsu e Lao-tse, faltava-lhe o saber próprio do caminho (Tao). No capítulo XXIII dos escritos

recolhidos sob a autoridade de Chuang-tsu ele é apresentado debaixo da seguinte luz crítica: “Shih teve

grandeza, porém lhe faltou doutrina (...) Para ele, a verdade estava em derrotar o interlocutor. Buscava ser

famoso vencendo os opositores. Por isso, não entrava em acordo com ninguém. Muito débil na virtude, se

deu a coisas em que não era muito profundo. Seus discursos eram abstrusos. Caso se julgue o talento de

Hui Shih sob o ponto de vista do céu e da terra, sua atuação não vale mais do que o cocô de um mosquito

ou um cínife. Que utilidade trouxe aos seres do mundo? Se se tivesse apertado o cinto para lograr a

plenitude de sabedoria no Um, dizendo-se a si mesmo o valor grande de sua doutrina, podia tê-lo

conseguido. Porém, Hui Shih não podia aquietar-se com isso e se esparramou incansável por todos os dez

mil seres. Assim, ao final, logrou o renome de hábil sofista. Lástima de talento o de Hui Shih! Se

desenfreou e se malogrou. Marchou progressivamente entre as coisas e nunca soube retornar. Queria calar

o eco gritando mais que ele e vencer a sombra de seu corpo correndo mais que ela! Que lástima!” (cf.

Chuang-tzu… op. cit., p. 251s (cap. 33, 10).

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sua palavra é uma concreção do silêncio e uma ressonância do recolhimento e da

quietude. O seu falar e dizer soa como uma floração de serenidade. Ele fala do

desnecessário, isto é, a partir do imediatamente desnecessário. O encontro-confronto na

linguagem do diálogo faz de ambos oponentes. Entretanto, o diálogo entre eles não

promove nenhuma inimizade. É que sua oposição dialogal torna propício o cordial e

benigno aparecimento do fundo a partir do qual eles dialogam: o desnecessário que vem

à fala na posição pensante de Chuang-tzu, quer dizer, a vigência da grandeza3,

profundidade4 e originariedade

5 do céu e da terra e a proximidade do caminho (Tao).

Em nossos dias, no ocidente, terra do ocaso, já em meio a uma noite histórica que se

tornou planetária, a proximidade do caminho6 fala ao pensamento como um apelo

distante, pois nos advém e sobrevém, silenciosamente, da lonjura do desnecessário.

3 A palavra grandeza, aqui, não designa uma quantidade. Medir a grandeza a partir da categoria da

quantidade é um sinal de falta de grandeza. Grandeza, aqui, é um modo de autodoação da totalidade e

significa, propriamente, imensidão, “catolicidade” (no sentido de ser “segundo o todo”, isto é, ser

segundo o modo de ser da grandeza). Recentemente, frei Harada, numa apostila escrita para educadores,

que se reuniam para refletir o tema da virtude, disse: “imensidão é abertura sem fronteiras, sem limites, a

grandeza generosa e magnânima que tudo comporta, tudo acolhe cordialmente. Essa catolicidade nós a

sentimos na natureza, na mãe terra, no céu aberto, mas também no coração dos pais, no carinho da

criança, na nobreza de um cavalheiro, na compassiva bondade de uma mulher, na piedade do varão etc.”

(cf. HARADA, Hermógenes. Provirtus, reflexões. Curitiba: Bom Jesus, pro-manuscripto, 2008, p. 5).

4 “A profundidade é uma totalidade que nos conduz para a imensidão abissal e íntima chamada

interioridade humana. É aqui que se abre uma inesgotável possibilidade vital de mil e mil mundos de

realizações, cheios de aventuras e venturas, como o destinar historial de cada pessoa, de cada família, de

cada povo, nação, épocas de humanidade etc.” (cf. HARADA, Hermógenes. Idem, ibidem).

5 “E juntamente com imensidão e profundidade abre-se por fim uma outra totalidade radical que

costumamos chamar de originariedade, isto é, liberdade criativa que nos acena para o abismo de

generosidade, profundidade e vitalidade inesgotável criativa da doação do amor infinito” (cf. HARADA,

Hermógenes. Idem, ibidem).

6 “Caminho” nos soa como uma experiência fundamental do oriente. O Tao-te-king é a saga do caminho

per-feito, isto é, do caminho inteiramente percorrido e consumado como caminho. No Japão esta

experiência fundamental aparece no étimo “-do”, como, por exemplo, nas palavras “Ju-dô”, caminho

suave, ou, ainda, ‘bushi-do’, o caminho da espada, o caminho do samurai, cujos ensinamentos se

recolhem no livro de Yamamoto Tsunetomo, Hagakure (“folhas ocultas” ou “oculto pelas folhas”). No

ocidente, a experiência fundamental do caminho resta uma experiência fundante, porém esquecida e

velada, sim, de certa maneira, apócrifa. O pensamento originário de Heráclito e de Parmênides emerge

como caminho (hodós). A autocompreensão da existência cristã também fala a partir da experiência do

caminho, à medida que o discipulado cristão é seguimento daquele que se fez o caminho – Jesus Cristo.

Assim também, na espiritualidade e no pensamento medieval, que culmina com a mística, o “caminho” é

decisivo. Os medievais estavam sempre “a caminho”, nas suas viagens e peregrinações (para São Tiago

de Compostela, para Jerusalém etc.). Semper in via summus, nunquam in patriam – estamos sempre a

caminho, nunca na pátria – assim ressoa a vós de Agostinho na existência medieval. O homem se torna

“homo viator”, homem caminhante. Por isso, Hildegard von Bingen escreve a obra “Scivias” – “saiba o

caminho”. Nos Fioretti, São Francisco emerge como aquele que, a caminho, ensina a frei Leão a via da

“perfeita alegria” no seguimento de Jesus Cristo, o Crucificado. Uma vez que a teologia é sempre um

saber “in via”, São Boaventura escreve o “Itinerarium mentis im Deum”. A mística de Eckhart é o

caminho do “homem nobre” e esta mística conflui para o pensamento especulativo a caminho do Não-

outro, em Nicolau de Cusa. Mesmo a ciência moderna, desde o seu ponto de partida, mantém uma

estranha pertença ao caminho, quando nela o método (metá + hodós) se torna o decisivo. Não à toa o

“Discurso do Método” é uma fonte imprescindível para o pensamento moderno. Enfim, ao chegarmos a

Nietzsche, e, assim, ao ocaso da consumação da metafísica ocidental, Zaratustra aparece, sempre a

caminho, como o porta-voz do super-homem (Übermensch), alertando que, o que há de grande no

homem, é ser ele uma passagem (Übergang).

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Nesse kairós7 acontece a erupção de um mundo mais de duas vezes milenar, cuja

destinação tomou impulso desde a Grécia dos pensadores originários e, ao mesmo

tempo, a irrupção de um novo aión8, em que se faz propício um “outro início do

pensar”9.

I. Em plena viragem dessa passagem, em 196910

, Heidegger, no discurso dos seus 80

anos de vida, saudou o seu amigo japonês Tsujimura, trazendo à fala a apatridade como

o destino do mundo contemporâneo e o emergir do que ele quis chamar de “a

civilização planetária”. Ele diz:

Há um século ela invadiu o Japão. Civilização planetária significa hoje: predominância das

ciências hipotético-dedutivas, significa predomínio e primado da economia, da política, da

técnica. Tudo o mais já não é nem mesmo supra-estrutura. É apenas mera para-estrutura toda

quebradiça.

É nesta civilização planetária que estamos. Para ela é que se dirigem as discussões do

pensamento. Entrementes a civilização planetária atingiu toda a terra. Por isso, Senhor

Tsujimura, nossa necessidade é idêntica à sua11

.

Podemos nos perguntar: que necessidade é esta? Não seria, justamente, a necessidade de

um pensar que se mostra, de imediato, como desnecessário, por não se ater e não se

restringir às recomendações do útil, sim, por se devotar, única e inteiramente à

constrição e ao constrangimento, isto é, aos apertos do questionar? O mesmo discurso

de Heidegger parece nos acenar para isto:

Dizia há pouco: a apatridade é um destino mundial na forma da civilização planetária. É como se

a civilização planetária, que o homem moderno não criou mas em que foi “destinado”, trouxesse

consigo o obscurecimento da existência humana. De fato, é o que parece. Mas seria um erro

pensar somente até aí e não ver nada mais, a saber, a possibilidade de uma virada. Mas nós não

sabemos nada do futuro. Talvez tudo finde numa grande desolação. Talvez aconteça que algum

dia o homem se enfastie dos produtos de suas pretensas produções e de repente comece a

7 Kairós significa, em Hesíodo, “o apropriado”. Do que é apropriado nos vem a “medida certa do que

convém”. E encontrar essa medida é o “decisivo”. A irrupção do instante que abre e rasga espaços de

decisão faz aparecer o kairós como o tempo-espaço propício, que traz, no seu bojo, o perigo, e, junto com

o perigo, a proximidade propícia do que salva, conforme o dito cantante de Hölderlin, evocado por

Heidegger, ao erigir o lugar da questão da técnica: “ora, onde mora o perigo / é lá que também cresce / o

que salva” (cf. HEIDEGGER, Martin. Ensaios e conferências. Tradução de Emmanuel Carneiro Leão,

Gilvan Fogel, Márcia Sá Cavalcante Schuback – Petrópolis: Vozes, 2001, p. 31).

8 Aión significa, em Homero, o mesmo que psyché. Diz o vigor que inaugura, deixa e faz acontecer o

abrir-se da existência, em sua facticidade e historicidade, como bíos. Daí significa também o distender-se

de uma idade, de uma era, de uma época e, cada vez, a estruturação de mundo que vem à tona.

9 Cf. HEIDEGGER, Martin. Beiträge zur Philosophie (Vom Ereignis). Gesammtausgabe Band 65. Frankfurt

am Main: Vittorio Klostermann, 1994, passim.

10 Há 40 anos, portanto, da aula inaugural “O que é metafísica?”, em que Heidegger “nomeou” o ser como

“nada”, por não ser nenhum ente. Enquanto a Alemanha e a Europa apenas entenderam esta preleção

como “niilismo”, um jovem estudante japonês, de nome Iuassa, traduziu o texto para a sua língua, em

1930. Heidegger recorda, em seu discurso dos 80 anos, os nomes de outros japoneses que se aproximaram

do seu “caminho” de pensamento, como os mestres Tanabe e Nishitani. Convém lembrar que essa

proximidade foi decisiva para a consolidação da chamada Escola de Kyoto.

11 HEIDEGGER, M. “O discurso dos 80 anos”. Tradução de Emmanuel Carneiro Leão. In: Revista Vozes,

ano 71, maio de 1977, n. 4, p. 332.

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questionar. Talvez também possa ocorrer que a desolação atinja tal nível que as necessidades se

nivelem a ponto de o homem já nem sentir a decadência interior e o vazio de sua existência.

Talvez possa também acontecer outra coisa. Em qualquer caso, como quer que seja ou aconteça:

nós não nos devemos queixar, temos é de nos questionar!12

.

Ora, o questionamento a que se devota o pensar se detém junto àquilo que é o mais

questionável, não meramente no sentido daquilo que é o mais incerto e discutível, isto é,

para a filosofia, o que é óbvio e admitido por todo mundo, mas no sentido daquilo que é

o mais digno de ser posto em questão pelo pensamento que se dispõe a responder e

corresponder ao apelo do “caminho”. No discurso dos 70 anos, em 1959, Heidegger

acena para esse “mais digno de ser questionado”, ao nomear “o estado cheio de mistério

em que vivemos hoje, nós homens da terra e deste tempo”13

. Neste estado, o perigo é

grave, mas, nesta gravidade, evoca a necessidade do desnecessário, a necessidade do

outro início do pensar:

A propósito do desenvolvimento extraordinário de nossa época e de toda a humanidade,

gostamos de falar em derrocada iminente e ameaçadora do homem. Contudo desejava dizer aqui

uma coisa, que não é palavra de um profeta. É apenas a suposição de um homem, que se

esforçou em refletir sobre tudo isso. Desejava dizer neste instante: não pode ser uma derrocada

do homem na terra, porque ainda estão reservadas e poupadas a plenitude e as profundezas do

querer e poder.

É a suposição, a suposição de um pensador, que também se chama de filósofo. Quem é filósofo,

é o que diz Nietzsche, o pensador, que no mais extraordinário foi sacrificado ao extraordinário:

“o filósofo é uma planta rara”, isto é, uma planta que necessita de seu próprio solo...14

.

O raro pensar do outro início nasce da grandeza da terra e nos alcança como o apelo do

caminho. Este pensar não tem a pretensão costumeira de originalidade, tão recorrente

nos modernos e pós-modernos. Se esse pensar busca uma originalidade, esta não pode

ser outra do que a originalidade apropriada ao pensar, no que ele tem de mais próprio,

ou seja, a originariedade:

A originalidade própria do pensar não está em descobrir os chamados “novos” pensamentos. A

originalidade própria do pensar está na força de se acolherem pensamentos já pensados, de se

aturar o que se acolhe, e se desenvolver o que se atura no recôndito de sua intimidade. É então

que os pensamentos alcançam por si mesmos o nível a que pertencem, o que chamo o

“originário”. É então que cresce a compreensão, de que um pensamento só é verdadeiro

pensamento, quando não necessitar ser útil nem precisar comparar-se com a utilidade. Só quando

uma paixão assim tiver despertado, é que se poderá talvez conseguir por algum tempo ater-se ao

caminho e vir a ser o que se chama de precursor. Refiro-me agora ao pre-cursor, não ao

antecessor mas a quem antecipa na antecedência, sem que se note15

.

12 HEIDEGGER, M. “O discurso dos 80 anos”. Tradução de Emmanuel Carneiro Leão. In: Revista Vozes,

ano 71, maio de 1977, n. 4, p. 333.

13 HEIDEGGER, M. “Uma palavra de agradecimento”. Tradução de Emmanuel Carneiro Leão. In: Revista

Vozes, ano 71, maio de 1977, n. 4, p. 330.

14 HEIDEGGER, M “Uma palavra de agradecimento”. Tradução de Emmanuel Carneiro Leão. In: Revista

Vozes, ano 71, maio de 1977, n. 4, p. 330s.

15 HEIDEGGER, M. “Uma palavra de agradecimento”. Tradução de Emmanuel Carneiro Leão. In: Revista

Vozes, ano 71, maio de 1977, n. 4, p. 331.

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Originário é, hoje, aquele pensamento que pode se tornar, na necessidade do

desnecessário, pre-cursor do outro início do pensar. Outro é este início, pois,

corresponde, na gratidão, ao impensado do primeiro início:

...Pois agradecer (danken) e pensar (denken) não são apenas a mesma palavra, são também a

mesma coisa. Agradecer é pensar no sentido de pensar a partir de (an-denken), um pensamento

que não remonta ao já passado (das Vergangene) mas ao vigente ainda na concentração de seu

vigor (das Gewesene), isto é, ao que recolhido ainda perdura na obra da verdade e nos determina.

E assim pensar a partir de significa também pensar os pródromos e em direção daquilo que hoje

nos constringe e constrange a nós, a nosso país, à Europa, à terra inteira16

.

O pensamento pre-cursor é um pensar que não se precipita num crescimento

intempestivo, antes, é um pensamento que sofre as demoras do questionamento, o qual

se faz investigação e, assim, aprende a saber esperar a maturação apropriada do tempo:

Saber investigar significa saber esperar, mesmo que seja durante toda uma vida. Numa época,

porém, em que só é real o que vai de pressa e se pode pegar com ambas as mãos, tem-se a

investigação por “alheada da realidade”, por algo que não vale a pena ter-se em conta de

numerário. Mas o essencializante não é o número e sim o tempo certo, isto é, o momento azado,

a duração devida. “Pois odeia /O Deus sensato/crescimento intempestivo”. Hölderlin, Do motivo

dos Titãs (IV, 218)17

.

Quem se torna, nesta paciência do questionar e investigar, um perguntador, se

assemelha a um semeador:

Como, porém, o pensador abriga a verdade do ser, senão na grave lentidão do andar de seus

passos questionadores e de sua seqüência coerente? Sem dar na vista, a modo dos passos graves,

lentos, contidos, sobre o campo solitário e sob o grande céu, o semeador mede com os pés os

sulcos da terra e no lançar do braço dimensiona e configura o espaço oculto de todo crescer e

amadurecer. Quem consegue ainda, no pensar, levar isto à con-sumação, enquanto a mais inicial

de sua força e enquanto o seu mais elevado por-vir?18

.

Sendo agradecimento e espera, o pensar cresce na maturação do kairós. Seu crescimento

é um erguer-se do humano entre o céu e a terra, conforme nos dizem as palavras de

Heidegger, em 1949, por volta dos seus 60 anos de vida:

Crescer significa abrir-se à amplidão dos céus mas também deitar raízes na escuridão da terra.

Tudo o que é maduro só chega à maturidade se o homem for, ao mesmo tempo, ambas as coisas:

disponível para o apelo do mais alto céu e abrigado na proteção da terra, que tudo sustenta19

.

A disponibilidade para morar na proximidade do alto e, ao mesmo tempo, o arraigar-se

na pertença à terra tornam o pensamento pre-cursor um pensar que se dá no modo do

abrir-se e o constituir-se do “Caminho do campo” (Feldweg). Nele ressoa o apelo do

Mesmo. Nele se dá o presentear-se do simples.

16 Id. “Uma palavra de agradecimento”. Tradução de Emmanuel Carneiro Leão. In: Revista Vozes, ano 71,

maio de 1977, n. 4, p. 330.

17 HEIDEGGER, Martin. Introdução à Metafísica (1935). Apresentação e tradução de Emmanuel Carneiro

Leão. 4ª ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1999, p. 227.

18 HEIDEGGER, Martin. Beiträge zur Philosophie (Vom Ereignis). Gesammtausgabe Band 65. Frankfurt

am Main: Vittorio Klostermann, 1994, p. 19.

19 HEIDEGGER, Martin. “O caminho do campo (1949)”. Tradução de Emmanuel Carneiro Leão. In:

Revista Vozes, ano 71, maio de 1977, n. 4, p. 326.

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O simples guarda na verdade o enigma do que permanece e é grande. De chofre surge inesperado

entre os homens e, não obstante, necessita crescer e amadurecer durante longo tempo. No

invisível do que é sempre o Mesmo, protege seus dons. O alcance e a envergadura de todas as

coisas maduras, que demoram em torno do caminho, é que instauram mundo. Como diz Eckhart,

o velho mestre de vida e leitura: no não dito de sua linguagem é que Deus é Deus20

.

O pensamento pre-cursor faz surgir homens simples, que reconhecem a necessidade do

desnecessário, isto é, que modestamente se recolhem na quietude da escuta da

linguagem do caminho:

Mas o apelo do caminho do campo só fala enquanto houver homens que, nascidos em sua

atmosfera, puderem escutá-lo. São obedientes à sua origem e não escravos de artifícios. É em

vão que o homem tenta pôr em ordem toda a terra se não escutar o apelo do caminho do campo.

O perigo iminente é ficar o homem de hoje surdo à linguagem do caminho, cabendo-lhe nos

ouvidos apenas o ruído das máquinas que se lhe afiguram, então, como a voz de Deus21

.

A linguagem do caminho é o caminho da linguagem, que, em sua originariedade, vige

como o vigor do silêncio. O silêncio é proximidade. Está-nos tão próximo que

raramente o percebemos. É tão simples e discreto, que quase nunca o notamos. O erguer

e o crescer humano já sempre dele necessitou para acontecer. É que o silêncio paira,

imenso e benigno, sobre o homem, como a proximidade distante e a distância próxima

do céu. O céu é o vigor da imensidão, a vigência da claridade, a regência da

benignidade, da serenidade e da paz. O silêncio também sustenta e abriga o humano

como a escuridão da terra, a terra profunda que, na sua humildade, no seu retraimento,

recato e pudor, se vela a si mesma, liberando e, ao mesmo tempo, protegendo e

sustentando tudo o que dela nasce, deixando tudo emergir na aberta do que vem à luz e

se manifesta.

Quando o humano se desarraiga desta sua pertença ao céu e à terra e ao silêncio como

origem essencial do caminho da linguagem, ele se dissipa e passa a vagar desnorteado,

pulando de ente em ente, através da multiplicidade útil dos seus afazeres e

divertimentos. Seu olhar, então, se embota e já não é mais capaz de ver, numa mirada

simples, o próprio simples. Acostumado, então, com a novidade sempre de novo

encantadora, mas fugaz, do pro-gresso, ele já não consegue deter-se junto ao simples,

pois esta quietude lhe provoca tédio e náusea:

E assim o homem se dissipa e erra sem caminho. Para o dissipado, o simples parece uniforme. O

uniforme causa tédio e náusea. Os entediados pela náusea só acham monotonia à sua volta. O

simples já se retirou. Sua força silenciosa sucumbiu22

.

Para o pensamento pre-cursor, homens do por-vir são aqueles que reconhecem a

necessidade do desnecessário, isto é, aqueles que conhecem o simples, como o sempre o

mesmo que se doa e se retrai no modo de ser de uma fonte inesgotável de criação, que

deixa e faz ser, a cada vez, mil e mil diferenças. Entretanto, não se tornam, hoje, raros

estes homens? Após a Segunda Guerra Mundial, depois de os homens da civilização

20 HEIDEGGER, Martin. “O caminho do campo (1949)”. Tradução de Emmanuel Carneiro Leão. In:

Revista Vozes, ano 71, maio de 1977, n. 4, p. 327.

21 HEIDEGGER, Martin. “O caminho do campo (1949)”. Tradução de Emmanuel Carneiro Leão. In:

Revista Vozes, ano 71, maio de 1977, n. 4, p. 326s.

22 HEIDEGGER, Martin. “O caminho do campo (1949)”. Tradução de Emmanuel Carneiro Leão. In:

Revista Vozes, ano 71, maio de 1977, n. 4, p. 327.

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planetária terem se espantado com o poder destruidor da bomba atômica, através do

terror de Hiroshima e Nagasaki, o pensamento de Heidegger evocou com confiança a

presença destes homens, que sobrevivem à desolação de nosso tempo, como uma

espécie de “mutantes” da civilização planetária, cujo aparente pro-gresso é digno de ser

questionado. Desde então, urge-nos a seguinte pergunta: o que hoje denominamos de

progresso, não seria, enfim, um progressivo distanciar de nossa humanidade, vale dizer,

de nossa pertença ao céu e à terra, e ao mistério do silêncio e silêncio do mistério? Não

se confirmam, assim, as palavras que Brecht colocara na boca do Cardeal Barberini em

diálogo com Galileu Galilei?

Vós podeis, com o tempo, descobrir tudo o que é para ser descoberto, e, no entanto, o vosso

progresso será somente um pro-gredir para longe da humanidade. O abismo entre vós e ela pode

se tornar um dia tão grande, que vosso grito de júbilo sobre qualquer nova conquista e façanha

poderia ser respondido por um grito universal de pavor23

.

Entrementes, enquanto a terra é reduzida a mero palco para o espetáculo da azáfama do

desenvolvimento e os homens de nosso tempo são tomados pelo encantamento do

progresso tecnológico, raros vão se tornando aqueles que conhecem o simples:

Não há dúvida, diminui rápido o número daqueles que conhecem o simples, como uma conquista

própria de sua propriedade. Mas estes poucos serão por toda parte os que permanecerão. Pela

autoridade suave do caminho do campo, poderão sobreviver todo dia às forças e aos poderes

gigantescos da energia atômica que o cálculo do homem engenhou e fez dela os grilhões de sua

própria obra24

.

Para o pensamento pre-cursor, porém, não se trata de sair desse mundo da técnica,

recorrendo, talvez, a uma forma de vida “alternativa”. Trata-se, antes, de entrar mais

profundamente dentro deste mundo, imergindo na sua proveniência, e, por conseguinte,

em seu destino:

Sem dúvida que não poderemos saltar para fora do mundo técnico. Ele constitui uma condição

necessária da e para a existência moderna. Mas não uma condição suficiente. Pois em sua

insuficiência não atinge o horizonte a partir do qual a existência do homem poderá talvez vir a

ser libertada. É por isso que pensamento deve começar com a pergunta: o homem de hoje mora

na morada de uma reserva do alto?25

.

“Habitando poeticamente a terra”26

, vale dizer, encontrando sua morada junto à riqueza

superabundante, mas oculta, do alto, o homem se liberta para a liberdade do caminho:

O apelo do caminho do campo acorda um sentido que ama a liberdade e, no lugar oportuno,

suplantará as aflições numa última jovialidade. Esta se opõe à desordem de só trabalhar, uma

desordem que, buscada por si mesma, favorece apenas o nada negativo27

.

23 Cf. BRECHT, Bertold, “Vida de Galilei”, apud ROMBACH, H. Leben des Geistes, Freiburg/Basel/ Wien:

Herder, 1977, p. 262.

24 HEIDEGGER, Martin. “O caminho do campo (1949)”. Tradução de Emmanuel Carneiro Leão. In:

Revista Vozes, ano 71, maio de 1977, n. 4, p. 327.

25 HEIDEGGER, Martin. “A questão sobre a morada do homem! (1969)”. Tradução de Emmanuel Carneiro

Leão. In: Revista Vozes, ano 71, maio de 1977, n. 4, p. 334.

26 Cf. HEIDEGGER, Martin. Ensaios e conferências. Tradução de Emmanuel Carneiro Leão, Gilvan Fogel,

Márcia Sá Cavalcante Schuback – Petrópolis: Vozes, 2001, p. 165-181.

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Como, no entanto, se mostra esta jovialidade do pensamento pre-cursor? Não é a leveza

de sua serenidade o que os homens de hoje não conseguem suportar?

No ar do caminho do campo, variável com as estações, nasce e cresce uma jovialidade sábia,

cujo semblante muitas vezes parece carregado. Este saber jovial é a “serenidade”. Quem não a

possui, não poderá adquiri-la e quem a possui, é do caminho do campo que a tem. Em sua via, se

encontram a tormenta do inverno e o dia da colheita, em sua via se cruzam a mobilização

estimulante da primavera e o fenecer tranqüilo do outono, na sua via se surpreendem nos olhos o

lúdico da juventude e a sabedoria da maturidade. Tudo, no entanto, se jovializa numa única

harmonia, cujo eco o caminho do campo, indo e vindo, arrasta consigo.

A jovialidade sábia é uma abertura para o eterno. Sua porta gira nos gonzos que um hábil ferreiro

forjou, um dia, com os enigmas da existência28

.

A gênese do caminho do campo em que o pensamento pre-cursor abre a sua trilha, se

dá, pois, na simplicidade do recolhimento no um, em que vige a con-juntura do céu e da

terra, do humano e do divino. Nele ressoa o apelo do mesmo, a partir do qual a cada um,

na sua diferença, é restituída a sua identidade, podendo cada um viger no seu modo de

ser mais próprio, isto é, apropriado.

O sempre o mesmo provoca estranheza e liberta. O apelo do caminho do campo é agora

totalmente claro: É a alma que fala? É o mundo? É Deus?

Tudo fala da renúncia que conduz à identidade. A renúncia não tira. A renúncia dá. Dá a força

inesgotável da simplicidade. O apelo nos faz morar de novo uma origem distante, onde a terra

natal nos é restituída29

.

II. O apelo do caminho do campo nos chega, hoje, como a solicitação e a interpelação

da necessidade do desnecessário. Como nos advém e sobrevém esta necessidade?

Resposta: como o emergir de uma indigência. “Toda necessidade se enraíza em uma

indigência”30

.

Como, porém, vem à luz a indigência de nosso tempo? Qual o sentido dessa indigência?

Antes de tudo, não podemos responder a esta dupla pergunta a não ser tomando-a como

uma questão do pensamento – nunca chegamos a questioná-la de fato e a alcançar uma

sua “resposta” tomando-a como um mero problema do conhecimento. Sim, mesmo o

conhecimento historiográfico não nos ajuda nesta busca. Querer seguir este caminho

seria comportar-se como alguém que entra na lama para limpar-se da lama31

.

27 HEIDEGGER, M. “O caminho do campo (de 1949)”. Tradução de Emmanuel Carneiro Leão, in: Revista

Vozes, n. 4, 1977, p. 327.

28 HEIDEGGER, M. “O caminho do campo (de 1949)”. Tradução de Emmanuel Carneiro Leão, in: Revista

Vozes, n. 4, 1977, p. 327.

29 HEIDEGGER, M. “O caminho do campo (de 1949)”. Tradução de Emmanuel Carneiro Leão, in: Revista

Vozes, n. 4, 1977, p. 328.

30 HEIDEGGER, Martin. Beiträge zur Philosophie (Vom Ereignis). Gesammtausgabe Band 65. Frankfurt

am Main: Vittorio Klostermann, 1994, p. 45. O texto original diz: “Alle Notwendigkeit wurzelt in einer

Not”. A palavra alemã “Notwendigkeit” acena para um virar, um voltar-se (sich wenden) para a indigência

(Not).

31 Cf. Heráclito de Éfeso, fragmento 5.

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A empresa de representar e de objetivar o nosso tempo, isto é, nossa situação epocal,

talvez não seja somente impossível, mas também desnecessária e contraindicada. Parece

coisa das famosas estórias do Barão de Münchehausen, que pretendia ter-se arrancado a

si mesmo das águas, puxando-se pelos próprios cabelos. É que o próprio querer

representar a nós mesmos, em nossa situação epocal, vale dizer, o próprio querer

objetivar o tempo é uma marca de nossa própria época, que segue a tendência de querer

conhecer, para poder saber mais, para poder controlar mais, para poder dominar mais.

Dominando, pelo conhecimento, o nosso presente, pensamos poder nos assegurar mais,

em face de nosso futuro, sim, pensamos poder até mesmo prevê-lo e antecipá-lo.

Sentimos a necessidade de contar o nosso presente, para podermos calcular o nosso

futuro e, assim, graças a esse cálculo, podermos dominar os processos do porvir. Hoje,

estamos sempre controlando as informações sobre o nosso presente, a fim de projetar

conjecturas a respeito de nosso futuro. A sociedade industrial teve que se tornar

sociedade da informação e esta, por sua vez, deve poder se tornar sociedade do

conhecimento. Por sua vez, o conhecimento científico deve poder nos ajudar a projetar,

planificar e planejar o nosso futuro, em vista do aumento das possibilidades de ação do

homem e de seu domínio sobre o real.

Nessa concepção, o futuro é visado como aquilo que vem ao nosso encontro ou de

encontro a nós; é apreendido como aquilo que se aproxima de nós e chega até nós.

Nessa perspectiva, portanto, o futuro é representado como advento. O que advém, no

entanto, é apreendido apenas a partir da perspectiva da atualidade e é estimado tão

somente em função de sua expectativa. Nessa perspectiva, o futuro é tão somente a

atualidade estendida. Nesse modo de visar o futuro, por conseguinte, nós

permanecemos presos à perspectiva da atualidade e ao modo como ela, a atualidade,

lida e conta com as possibilidades do porvir32

.

Esta atitude, entretanto, em face do presente e do futuro, bem como, mais

fundamentalmente, em face do tempo e sua temporalidade, é um traço de nossa época.

Ela se imposta como uma concepção técnico-científica:

Toda mera caça ao futuro, a fim de calcular sua imagem, de tal modo que se prolongue o atual,

pensado pela metade, se move ainda na atitude do representar técnico-calculador. Todas as

tentativas de pôr o real efetivo que aí está, morfologicamente, psicologicamente, na conta de

decadência e perda, de fatalidade e catástrofe, de ocaso, são apenas uma conduta técnica. Esta

opera com o aparato da enumeração de sintomas, cuja verificação se multiplica ad infinitum e

pode ser sempre de novo variada. Estas análises da situação não notam que elas trabalham só no

sentido e no modo de cortes e recortes técnicos e assim se entregam à consciência técnica, isto é,

à representação historiográfica e técnica do acontecer, que lhe é conforme. Mas nenhum

representar historiográfico da história enquanto acontecer conduz para dentro do relacionamento

conveniente e apropriado para com o destino e absolutamente não conduz à sua proveniência

essencial no evento apropriador da verdade do ser33

.

Se não é o conhecimento científico, calculador e, em sua essência, técnico, a via que

pode nos conduzir para dentro de um relacionamento apropriado para com a nossa

destinação, então qual seria o caminho? Não será o caminho do pensamento que medita,

isto é, que pensa o sentido, a verdade do ser?

32 Cf. HEIDEGGER, Martin. Die Herkunft der Kunst und die Bestimmung des Denkens, conferência

pronunciada na Academia das Ciências e Artes de Atenas, em 4 de abril de 1967. Agora em:

Denkerfahrungen (1910-1976). Frankfurt a.M.: Vittorio Klostermann, 1983, p. 143-145.

33 HEIDEGGER, Martin. Die Technik und die Kehre. Stuttgart: Neske, 1991 (achte Auflage), p. 45-46.

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Meditar (Besinnen) é trilhar um caminho no empenho de pensar o sentido (Sinn).

Pensar, aqui, não significa o mesmo que representar, objetivar e calcular o ente, dentro

do movimento de uma pesquisa positiva. Pensar, aqui, significa questionar o que para o

conhecimento já sempre permanece inquestionado, por passar despercebido, por não dar

na vista, por já ser sempre por demais óbvio. Pensar é questionar o mais digno de ser

questionado.

O que cabe pensar mais cuidadosamente? Neste tempo a pensar, onde ele se mostra? O que mais

cabe pensar cuidadosamente mostra-se no fato de ainda não pensarmos. Insistentemente ainda

não, apesar da situação mundial tornar-se cada vez algo a se pensar mais cuidadosamente34

.

Entretanto, ouve-se dizer por toda parte: chega de pensar! É preciso agir! E isso, quanto

mais urgente é a situação em que nos encontramos, nesta “civilização planetária”.

Contudo, este imperativo é, mais uma vez, a voz de nossa própria época, que de há

muito tem privilegiado o agir, mas sem pensar a essência do próprio agir, isto é, caindo

na inessência do agir, ao interpretá-lo como um mero fazer. Assim, a ação, sem

pensamento, se torna, em sua inessência, dissipação e agitação. Daí a suspeita: “E, no

entanto... Talvez, já desde séculos, o homem vem agindo demais e pensando de

menos”35

.

A ação sem pensamento não pode reconhecer na não-ação do pensamento a sua própria

essência, isto é, a proveniência essencial de seu vigor. Entretanto, em que consiste a

essência da ação?

De há muito que ainda não se pensa, com bastante decisão, a essência do agir. Só se conhece o

agir como a produção de um efeito, cuja efetividade se avalia por sua utilidade. A essência do

agir, no entanto, está em con-sumar. Con-sumar quer dizer: conduzir uma coisa ao sumo, à

plenitude de sua essência. Levá-la a essa plenitude, producere36

.

Em que sentido, porém, é o pensar a ação primordial, já que o pensar parece “não fazer

nada”? De fato, o pensar não age, se por agir entendemos o fazer alguma coisa, o

produzir de um ente. Entretanto, o pensar age e o seu agir se dá como a consumação da

referência da existência humana ao “nada”, isto é, ao que não é nenhum ente, ao ser.

Ora, toda ação junto ao ente já sempre pressupõe a doação e a vigência do ser:

Por isso, em sentido próprio, só pode ser con-sumado o que já é. Ora, o que é, antes de tudo, é o

ser. O pensamento con-suma a referência do ser à essência do homem. Não a produz nem a

efetua. O pensamento apenas a restitui ao ser, como algo que lhe foi entregue pelo próprio ser.

Essa restituição consiste em que, no pensamento, o ser se torna linguagem. A linguagem é a casa

do ser. Em sua habitação, mora o homem. Os pensadores e poetas lhe servem de vigias. Sua

vigília é con-sumar a manifestação do ser, porquanto, por seu dizer, a tornam linguagem e a

conservam na linguagem37

.

34 HEIDEGGER, Martin. Ensaios e conferências. Tradução de Emmanuel Carneiro Leão, Gilvan Fogel,

Márcia Sá Cavalcante Schuback – Petrópolis: Vozes, 2001, p. 112.

35 HEIDEGGER, Martin. Ensaios e conferências. Tradução de Emmanuel Carneiro Leão, Gilvan Fogel,

Márcia Sá Cavalcante Schuback – Petrópolis: Vozes, 2001, p. 112.

36 HEIDEGGER, Martin. Sobre o humanismo. Introdução, tradução e notas de Emmanuel Carneiro Leão.

Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967, p. 23s.

37 HEIDEGGER, Martin. Sobre o humanismo. Introdução, tradução e notas de Emmanuel Carneiro Leão.

Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967, p. 24s.

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No cuidado de restituir ao ser a referência humana para com o próprio ser, isto é, a

linguagem, o pensamento age e age como a ação fundamental e primordial:

O pensamento não se transforma em ação por dele emanar um efeito ou por vir a ser aplicado. O

pensamento age enquanto pensa. Seu agir é de certo o que há de mais simples e elevado, por

afetar a re-ferência do ser ao homem. Toda produção se funda no ser e se dirige ao ente. O

pensamento ao contrário se deixa requisitar pelo ser a fim de proferir-lhe a verdade. O

pensamento con-suma este deixar-se38

.

A não-ação do pensar é a ação mais simples e elevada. Simples é esta ação, pois, nos

põe na proximidade do simples. Elevada é esta ação, pois nos faz morar junto do alto.

Pensando, somos reconduzidos ao “em casa” do mistério:

O que o pensamento, que, pela primeira vez, procurou expressar-se em Ser e tempo, pretende

alcançar, é algo de muito simples. Por ser simples, o ser permanece misterioso, a proximidade

calma de um vigor (Walten), que não se impõe. Essa proximidade se essencializa como a

linguagem39

.

Entretanto, em nossa época, apenas conhecemos a inessência da linguagem, à medida

que a reduzimos à mera possibilidade de expressão subjetiva e comunicação

intersubjetiva. Dissipada na tagarelice impessoal da comunicação de massa, de há muito

a linguagem é ignorada no seu vigor mais próprio. Somos convencidos, até mesmo, de

que há linguagem porque e à medida que nós falamos. Como se a linguagem fosse um

produto, dentre outros, do fazer do homem... Não será, com efeito, o contrário? Não é,

justamente, por se encontrar no medium da linguagem que é dada ao homem a

possibilidade de falar? No pensamento, o empenho do falar consiste em dizer. Dizer

significa, porém, deixar-ser a saga do próprio ser: a poesia originária da linguagem, na

qual se dá o recolhimento e oclusão do silêncio da terra e a eclosão e abertura do

discurso do mundo.

Pois bem, ao interpretarmos o pensar como representar e objetivar, o agir como fazer e

produzir e a linguagem como comunicação e expressão, e, ainda mais, o ente como

objeto e recurso e o ser como nada, torna-se patente a indigência de nossa época.

Contudo, esta indigência só é reconhecida por quem reconhece a necessidade do

desnecessário e experimenta, hoje, a possibilidade do pensar como uma possibilidade

impossível. E isso é o mais digno de se pensar: que, em nosso tempo, nos é vedado o

pensar. Cabe-nos, porém, permanecer nessa possibilidade impossível e esperar que, de

repente, talvez silenciosa e discretamente, ela se transforme na impossibilidade possível

de um outro início do pensar.

Hoje, nos é vedado pensar. De onde nos vem este impedimento, que nos constringe e

constrange, como indigência de nosso tempo?

O que maximamente a partir de si mesmo dá a pensar – o que mais cabe pensar cuidadosamente

– deve mostrar-se no fato de ainda não pensarmos. O que quer dizer isso, agora? Resposta: ainda

não atingimos propriamente o âmbito disso que, a partir de si mesmo e antes de tudo e por tudo,

“gostaria” de ser pensado. Por que ainda não atingimos tal instância? Seria, talvez, porque nós,

38 HEIDEGGER, Martin. Sobre o humanismo. Introdução, tradução e notas de Emmanuel Carneiro Leão.

Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967, p. 25.

39 HEIDEGGER, Martin. Sobre o humanismo. Introdução, tradução e notas de Emmanuel Carneiro Leão.

Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967, p. 54.

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homens, ainda não nos voltamos suficientemente para o que permanece como o que cabe pensar

cuidadosamente? Neste caso, o fato de que ainda não pensamos seria uma mera negligência por

parte do homem. Assim sendo, este mal precisaria poder ser humanamente remediado através de

medidas convenientes em relação ao homem40

.

Certo? Nossa tendência é, de fato, esta: compreender a indigência de nosso tempo como

um desatino do humano e considerar que o tomar medidas que supram a sua negligência

seja o bastante. De resto, de onde vêm estas medidas? De nossos humanismos.

Entretanto, os nossos humanismos estão tão permeados e impregnados do niilismo de

nosso destino e tão comprometidos com uma concepção do humano marcada pela

compreensão metafísica do “animal rationale” que precisam ser questionados em sua

insuficiência:

Todo humanismo ou se funda numa metafísica ou se converte a si mesmo em fundamento de

uma metafísica. Toda determinação da essência do homem, que já pressupõe, em si mesma, uma

interpretação do ente sem investigar – quer saiba quer não – a questão sobre a verdade do ser, é

metafísica. Por isso a característica própria de toda metafísica – e precisamente no tocante ao

modo em que se determina a essência do homem – é ser “humanista”. Em conseqüência, todo

humanismo permanecerá sempre metafísico. Ao determinar a humanidade do homem, o

humanismo não só não questiona a re-ferência do ser à essência do homem. Ele até impede tal

questionamento, uma vez que, devido à sua pro-veniência da metafísica, nem o conhece nem o

entende41

.

Certamente, não se trata de se ser “anti-humanista” ou “antimetafísico”. Quem é “anti-”

participa também, no modo da re-ação, daquilo contra o que ele se volta. No modo da

re-ação, ele se torna presa daquilo contra o que reage. Tanto o humanismo quanto o

anti-humanismo, tanto a metafísica quanto a anti-metafísica, participam da mesma

destinação, pela qual não nos é dado, ainda, pensar. Também não se trata de escolher

entre a alternativa do pessimismo e do otimismo, pois ambos pertencem ao modo de

valoração do real que tem suas raízes na mesma metafísica, em que vigora o não pensar,

isto é, o esquecimento da re-ferência do ser ao homem. Por isso, para nos dispormos a

alcançar o âmbito do que “gostaria” de ser pensado, mas que ainda não pensamos, o que

nos cabe não é fugir de nossa “sombra” epocal, mas é entrar mais profundamente

naquela sombra maior de onde esta nos advém. É o que nos ensina uma outra estória de

Chuang-tzu:

Havia um homem que ficava tão perturbado ao contemplar sua sombra e tão mal-humorado com

as suas próprias pegadas que achou melhor livrar-se de ambas. O método encontrado por ele foi

o da fuga, tanto de uma, como de outra.

Levantou-se e pôs-se a correr. Mas, sempre que colocava o pé no chão, aparecia outro pé,

enquanto sua sombra o acompanhava, sem a menor dificuldade.

Atribuiu o seu erro ao fato de que não estava correndo como devia. Então, pôs-se a correr, cada

vez mais, sem parar, até que caiu morto por terra.

40 HEIDEGGER, Martin. Ensaios e conferências. Tradução de Emmanuel Carneiro Leão, Gilvan Fogel,

Márcia Sá Cavalcante Schuback – Petrópolis: Vozes, 2001, p. 114.

41 HEIDEGGER, Martin. Sobre o humanismo. Introdução, tradução e notas de Emmanuel Carneiro Leão.

Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967, p. 37.

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O erro dele foi o de não ter percebido que, se apenas pisasse num lugar sombrio, a sua sombra

desapareceria e, se se sentasse ficando imóvel, não apareceriam mais as suas pegadas42

.

Entremos, portanto, na “sombra maior” da indigência de nosso tempo e compreendamos

de maneira nova o fato de ainda não pensarmos a sua proveniência:

Ainda não pensamos. Isto, porém, de modo algum se dá porque o homem não se avia

suficientemente para isso que, desde si mesmo, gostaria de ser pensado. Ainda não pensamos –

isto se deve mais ao fato de que o próprio a-se-pensar se desvia do homem e até mesmo, de há

muito, dele mantém-se desviado43

.

O ser, o mais digno de ser pensado, o pensável por excelência, o que “gostaria”

sobremaneira de ser pensado, já sempre se desviou do homem, destinando-o pelas

vicissitudes e peripécias de uma história, em que predominaria, cada vez mais, o ente e

o domínio do homem sobre o ente. É justamente no modo do des-vio que o ser se a-viou

ao homem em sua destinação, perfazendo assim o que chamamos de “história ocidental”

e, hoje, “civilização planetária”:

Mas dá-se desvio somente onde já se deu um aviar-se. Se o que cabe pensar cuidadosamente

mantém-se num desvio é porque isso se dá precisamente tão-só no interior de seu “aviar-se”, isto

é, de tal modo, que ele já deu a pensar. Em todo desvio, o a-se-pensar já se aviou para a essência

do homem. Por isso, o homem de nossa história também sempre já pensou de um modo

essencial. Ele pensou mesmo o mais profundo. Na verdade, de uma maneira estranha, o a-se-

pensar permanece sob a guarda deste pensamento. O pensamento até hoje vigente de modo

algum considera o fato e em que medida o a-se-pensar também se retrai44

.

No atual momento de nossa história, na “indigência de nosso tempo”, a re-ferência do

ser ao humano, o seu aviar-se e doar-se ao humano, se dá, de modo inexorável, no

modo do retraimento e da recusa. Este é, pois, o modo como o ser se dá a pensar, a nós,

hoje. E isso é o que mais nos dá a pensar e o que mais cabe pensar cuidadosamente:

O que mais cabe pensar cuidadosamente em nosso tempo, que tanto nos dá a pensar, revela-se no

fato de ainda não pensarmos. Ainda não pensamos porque o que cabe pensar se des-via do

homem e não porque o homem não se en-via, de maneira suficiente, a isto que cabe pensar. O

que cabe pensar desvia-se do homem. O que cabe pensar retrai-se para o homem à medida que

dele se retira. O que se retira, porém, sempre já se nos mostrou. O que se retrai no modo de um

retirar-se não desaparece. Como então saber o mínimo que seja a respeito disso que assim se

retrai? Como sequer nomeá-lo? O que se retrai recusa o encontro. Retrair-se não é, porém, um

nada. Retração é retirada e enquanto tal – acontecimento. O que se retrai pode concernir ao

homem de maneira essencial e reivindicá-lo de modo mais próprio do que algo que aí está e o

afeta. De bom grado, costuma-se tomar o que nos afeta através do real como o que constitui a

realidade do real. Mas o ser-afetado através do real pode justamente bloquear o homem em

relação a isso que lhe concerne – que lhe concerne certamente de uma maneira enigmática,

segundo a qual o concernir dele se desvia à medida que se retrai. Por isso, a retração, o retrair-se

42 MERTON, Thomas. A via de Chuang-Tzu, Petrópolis: Vozes, 2002, p. 229s.

43 HEIDEGGER, Martin. Ensaios e conferências. Tradução de Emmanuel Carneiro Leão, Gilvan Fogel,

Márcia Sá Cavalcante Schuback – Petrópolis: Vozes, 2001, p. 114.

44 HEIDEGGER, Martin. Ensaios e conferências. Tradução de Emmanuel Carneiro Leão, Gilvan Fogel,

Márcia Sá Cavalcante Schuback – Petrópolis: Vozes, 2001, p. 114.

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do que cabe pensar poderia agora, como acontecimento, ser mais presente do que tudo quanto é

mais atual45

.

A re-velação do ser através de seu retraimento e de sua recusa é o acontecimento

fundante de nossa história e do hoje de nossa “civilização planetária”. Nessa condição, o

ser só pode mesmo nos afetar como nada. E sua presença só pode mesmo viger como

ausência. Com efeito, a recusa é o modo de sua doação. O retraimento, o modo de sua

atração:

O que de nós se retrai à maneira mencionada, afasta-se para longe de nós. Mas precisamente isso

nos leva junto e, à sua maneira, nos atrai. O que se retrai parece estar absolutamente ausente.

Mas essa aparência engana. O que se retrai se faz vigente – a saber, através do fato de nos atrair,

quer percebamos agora, depois ou mesmo nunca. O que nos atrai já concedeu encontro. Tomados

pela atração da retração, já estamos no impulso para isso que nos atrai, à medida que se retrai46

.

A recusa do ser e seu retraimento como o mistério do nada, nos atrai. Seu retraimento é

a suavidade serena da autoridade do mistério: “Por ser simples, o ser permanece

misterioso, a proximidade calma de um vigor (Walten), que não se impõe”47

.

Atraídos pela retração, se-duzidos pela recusa do ser, somos hoje, então, levados para a

noite do deserto. Ao se consumar a “morte de Deus”, a entrada nessa noite se nos tornou

um destino inexorável. Desde então, nós podemos, talvez espantados, dizer como o

homem louco, isto é, o homem tres-loucado, des-locado, trans-tornado, da Gaia Ciência

(n. 125):

Como pudemos nós sugar o mar? Quem nos deu a esponja, para apagar todo o horizonte? O que

fizemos nós, quando libertamos a terra de seu sol? Para onde ela se move agora? Para onde nos

movemos nós? Para longe de todos os sóis? Não caímos contínua e progressivamente? E para

trás, para o lado, para frente, para todos os lados? Ainda existe um em cima e um embaixo? Não

erramos através de um infinito nada? Não nos sopra ao rosto o espaço vazio? Não se tornou mais

frio? Não cai a noite e sempre mais noite? Não terão de ser acendidas lanternas ao meio dia?

Ao evocar o dito poético de Hölderlin “...E para que ser poeta em tempos de penúria?”,

Heidegger acena para a indigência dessa noite:

Longo é o tempo de penúria da noite do mundo. Esta carece, primeiro, se alongar para chegar ao

seu meio mais próprio. Na meia-noite dessa noite a penúria do tempo chega ao máximo. Então, o

tempo indigente não consegue nem mesmo e não mais experimentar a sua indigência. Esta

incapacidade, através da qual mesmo a indigência do indigente cai no escuro, é a indigência pura

e simples do tempo. A indigência se torna plenamente obscura pelo fato de que ela ainda só

aparece como a carência que quer ser encoberta48

.

No meio da noite da indigência de nosso tempo, a indigência não é reconhecida

propriamente como indigência. Não é, muito menos, suportada e assumida. Não é, ainda

45 HEIDEGGER, Martin. Ensaios e conferências. Tradução de Emmanuel Carneiro Leão, Gilvan Fogel,

Márcia Sá Cavalcante Schuback – Petrópolis: Vozes, 2001, p. 116.

46 HEIDEGGER, Martin. Ensaios e conferências. Tradução de Emmanuel Carneiro Leão, Gilvan Fogel,

Márcia Sá Cavalcante Schuback – Petrópolis: Vozes, 2001, p. 116.

47 HEIDEGGER, Martin. Sobre o humanismo. Introdução, tradução e notas de Emmanuel Carneiro Leão.

Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967, p. 54.

48 HEIDEGGER, Martin. Holzwege. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1994, p. 270-271.

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menos, compreendida. No máximo é advertida como carência e miséria e julgada como

decadência. Pouco se sabe dela como da ressonância da necessidade do desnecessário,

como o que nos constringe e constrange para a necessidade das mais próprias e elevadas

possibilidades da história.

No meio dessa noite, a nossa época se caracteriza como o tempo que só conhece

problemas, mas desconhece o mais próprio questionar do pensamento, que põe a

pergunta de todas as perguntas, a questão do ser: “Na era da in-finita penúria que parte

da oculta indigência da falta de indigência, esta pergunta tem de aparecer

necessariamente como a conversa mais inútil, da qual, de resto, já se escapou a

tempo”49

.

Nem se suspeita da possibilidade de que, em nossa época, a coragem do crer coincide

com a paciência do questionar e de que aqueles que insistem e resistem nesta paciência

são radicalmente crentes, não no sentido de serem confessores de algo que retêm por

verdadeiro, mas no sentido de serem radicados na experiência da verdade do ser:

Os perguntadores deste tipo são os originária e propriamente crentes, ou seja, aqueles que,

fundamentalmente, tomam a sério a verdade mesma e não somente o verdadeiro; aqueles que

põem a decisão se a essência da verdade vige e se esta vigência carrega e conduz a nós, os que

sabem, os que crêem, os que agem, os que criam, em breve, os historiais50

.

Estes, os historiais, enquanto os que buscam, custodiam e vigiam, são aqueles que se

deixam requisitar, constringir e constranger pela necessidade mais premente: a de

guardar, no ente, a verdade do ser, a de transformar a indigência do abandono do ser

naquela necessidade do criar que restitui ao ente o ser abrigado na verdade do ser51

.

Entretanto, “somente poucos estão de pé na claridade deste raio. A maioria tem aquela

‘felicidade’ de se encontrar em algo de já dado e assim empreender, em favor do todo, o

que é seu, seguindo o útil”52

.

Nesse tempo, o empreender impõe a aparência de ser um criar, o fazer, de ser um agir, o

produzir, de ser um con-sumar: “por toda parte falta a necessidade do que cresceu, mas,

com isto, falta também a abissalidade do criativo”53

.

Entretanto, criador é aquele que pode iniciar à medida que se dispõe a deixar-ser o vigor

do início:

49 HEIDEGGER, Martin. Beiträge zur Philosophie (Vom Ereignis). Gesammtausgabe Band 65. Frankfurt

am Main: Vittorio Klostermann, 1994, p. 11.

50 HEIDEGGER, Martin. Beiträge zur Philosophie (Vom Ereignis). Gesammtausgabe Band 65. Frankfurt

am Main: Vittorio Klostermann, 1994, p. 369.

51 HEIDEGGER, Martin. Beiträge zur Philosophie (Vom Ereignis). Gesammtausgabe Band 65. Frankfurt

am Main: Vittorio Klostermann, 1994, p. 16-18.

52 HEIDEGGER, Martin. Beiträge zur Philosophie (Vom Ereignis). Gesammtausgabe Band 65. Frankfurt

am Main: Vittorio Klostermann, 1994, p. 28.

53 HEIDEGGER, Martin. Beiträge zur Philosophie (Vom Ereignis). Gesammtausgabe Band 65. Frankfurt

am Main: Vittorio Klostermann, 1994, p. 40.

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Pois o início é o oculto, a origem ainda não abusada e empreendida, que, sempre retirante e em

retraimento, do modo mais largo sempre se capta previamente e assim custodia em si o mais

elevado domínio. Este poder não desgastado da oclusão das mais ricas possibilidades do coração

(do querer afinado e sabedor do evento-apropriação) é a única salvação e superação da prova54

.

O pensamento que deixa-ser o vigor do início é o pensamento inicial. Este pensamento é

o necessário por excelência em nosso tempo:

O pensamento inicial, enquanto con-fronto entre o primeiro início, que há de ser reconquistado, e

o outro início, que há de ser desdobrado, é, a partir deste fundo, necessário; e esta necessidade

constringe e constrange o pensar para a mais ampla e aguda e resistente meditação e veta toda

fuga diante de decisões e todos os desvios.

O pensamento inicial tem a aparência da marginalidade e do inútil. E, no entanto, caso já se

queira que se pense no útil, o que é mais útil do que a salvação no ser?55

.

Tal pensamento não é imediatamente necessário, se partirmos da utilidade que se atém

ao real e efetivo do ente. Entretanto, enquanto se atém à singularidade e estranheza do

ser, ele é, de longe, a necessidade mais necessária, a mais premente:

Porque este pensamento pensa o singular e o estranho, o ser, o que, de resto, é o mais comum e o

mais corriqueiro na compreensão do ser, este pensamento permanece necessariamente raro e

estranho. Mas porque ele tem em si esta falta de utilidade, tem que, imediatamente e de antemão,

promover e afirmar aqueles que podem arar e caçar, manufaturar e dirigir, cultivar, construir e

erigir. Ele mesmo tem que saber que, em todo o tempo, vale como esforço sem recompensa56

.

Este pensamento inicial, enquanto questionar, se dispõe, na disponibilidade e prontidão

resoluta, para a meditação e para a perseverança paciente na indigência. De tal

meditação e de tal paciência surge um saber feito de renúncia, que se dispõe à longa

preparação do outro início:

Este saber se desdobra como o muito antecipador perguntar pelo ser, cuja dignidade de pergunta

constringe e constrange todo criar na indigência e erige para o ente um mundo e salva o

abandono da terra57

.

Entrar nesta indigência é reconhecer a necessidade do desnecessário. E isto é ser pobre.

Heidegger, em 27 de junho de 1945, ao final da Segunda Guerra Mundial, medita a

respeito de uma palavra de Hölderlin, que acena para o mistério desta pobreza, que é o

destino de nosso tempo: “Junto de nós, tudo se concentra no espiritual. Nós ficamos

pobres, para nos tornarmos ricos”58

.

54 HEIDEGGER, Martin. Beiträge zur Philosophie (Vom Ereignis). Gesammtausgabe Band 65. Frankfurt

am Main: Vittorio Klostermann, 1994, p. 58.

55 HEIDEGGER, Martin. Beiträge zur Philosophie (Vom Ereignis). Gesammtausgabe Band 65. Frankfurt

am Main: Vittorio Klostermann, 1994, p. 58.

56 HEIDEGGER, Martin. Beiträge zur Philosophie (Vom Ereignis). Gesammtausgabe Band 65. Frankfurt

am Main: Vittorio Klostermann, 1994, p. 59.

57 HEIDEGGER, Martin. Beiträge zur Philosophie (Vom Ereignis). Gesammtausgabe Band 65. Frankfurt

am Main: Vittorio Klostermann, 1994, p. 63.

58 HÖLDERLIN, Friedrich. Apud: Heidegger, Martin. “Die Armut”. In: Heidegger Studien, Vol. 10, 1994,

Berlim: Duncker & Humblot, p. 5.

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O espiritual, aqui, não pode ser compreendido, metafisicamente, como o imaterial. É

que esta compreensão do espiritual permanece presa ao material, dele se distinguindo e

a ele se contrapondo. Também não pode ser compreendido como o subjetivo. O

espiritual não é, per se, nem objetivo nem subjetivo. O espiritual, antes, é aquilo que

sobrepuja ou está aquém a toda relação sujeito-objeto, quer esta relação se instaure

numa perspectiva de conhecimento, quer numa perspectiva de ação, quer, ainda, numa

perspectiva dialética de ambos. O espiritual designa, pois, uma relação anterior, mais

ampla, mais alta e profunda, mais originária do que toda a relação sujeito-objeto que

possa se instaurar no relacionamento do homem com o ente. Trata-se da relação ser-

homem:

A relação elevada, na qual o homem está de pé, é a relação do ser para com o homem, de tal

modo que o ser mesmo é esta relação, que puxa para si da essência do homem, enquanto aquela

essência que está de pé nesta relação e, subsistindo nela, a custodia e a habita. No aberto desta

relação do ser para com a essência do homem, nós experimentamos o “espírito” – ele é o que

suavemente reina (das Waltende) vigorando a partir do ser e, presumivelmente, em favor do

ser59

.

Que agora tudo se concentre no espiritual, isto é, que agora se dê um recolhimento que

encontre o seu meio, o seu centro, na relação do ser com a essência do homem, isto é o

evento. Trata-se de um evento que não pode ser constatado historiograficamente como

um fato ou um conjunto de fatos observáveis, datáveis, computáveis, calculáveis. Por

isso, a palavra de Hölderlin nomeia, poeticamente, um evento oculto, “que se alonga

distante daqui em um vindouro, que só poucos, ou talvez só aquele que o diz e o pensa,

conseguem pressentir”60

.

Por graça deste evento, “nós ficamos pobres, para nos tornarmos ricos”. Mas, que

pobreza é esta? Não é outra senão a “pobreza no espírito”? O que é ser pobre? O que é

ser rico? Qual a essência da pobreza e da riqueza? Segundo a representação usual,

pobreza e riqueza, pobre e rico, se definem a partir da posse, do ter: “Pobreza é um não-

ter e, precisamente, um carecer do necessário. Riqueza é um não estar privado do

necessário, um ter além do necessário”61

.

Entretanto, esta representação usual da pobreza e da riqueza não nos ajuda a captar o

essencial, pois o essencial não se dá na dimensão do ter, e sim na dimensão do ser: “A

essência da pobreza repousa, no entanto, em um ser. Verdadeiramente ser pobre diz: ser

de tal modo, que não careçamos de nada, a não ser do desnecessário”62

.

A verdadeira pobreza consiste em não poder ser sem o desnecessário e inteira e

unicamente a ele pertencer.

59 HÖLDERLIN, Friedrich. Apud: Heidegger, Martin. “Die Armut”. In: Heidegger Studien, Vol. 10, 1994,

Berlim: Duncker & Humblot, p. 7.

60 HEIDEGGER, Martin. “Die Armut”. In: Heidegger Studien, Vol. 10, 1994, Berlim: Duncker & Humblot,

p. 8.

61 HEIDEGGER, Martin. “Die Armut”. In: Heidegger Studien, Vol. 10, 1994, Berlim: Duncker & Humblot,

p. 8.

62 HEIDEGGER, Martin. “Die Armut”. In: Heidegger Studien, Vol. 10, 1994, Berlim: Duncker & Humblot,

p. 8.

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A indigência de nossa época nos constringe e constrange para a necessidade do

desnecessário. Ela, por assim dizer, como que nos obriga a ficarmos pobres. Ao

ficarmos pobres e à medida que ficamos assim pobres, porém, nós nos tornamos ricos.

Nós nos libertamos da constrição e do constrangimento da indigência. Daí, a força

libertadora do desnecessário: “O desnecessário é aquilo que não vem da indigência, isto

é, aquilo que não vem da constrição e do constrangimento, mas sim do livre”63

.

O livre é o que permanece intocado, guardado, o que não foi alcançado pela utilização.

Somente o livre liberta. Libertar significa, aqui, poupar, no sentido de tratar com

cuidado, atenção e carinho. Com outras palavras: “deixar repousar em sua própria

essência, através do desvelo que custodia e salvaguarda”64

. Vê-se que é muito mais do

que o mero não tocar, o não-utilizar e o não explorar.

No mais próprio custodiar repousa o livre. O liberto é aquele que é deixado em seu ser e que é

protegido da constrição e do constrangimento da indigência. O libertador da liberdade, de

antemão, dá as costas à indigência ou a contorna. A liberdade é o que gira a indigência. Só na

liberdade e no seu libertar protetor reina a necessidade. (...) Somente a liberdade é, em si, a

necessidade. (...) A liberdade é a necessidade, à medida que é o que liberta, que é o necessitado

não por meio da indigência, que é o des-necessário65

.

Agora, o que é ser pobre se determina assim: “não carecer, a não ser do desnecessário –

nada mais carecer do que do livre-libertador”.

Este carecer, entretanto, tem o modo de ser do pertencer, do não poder ser a não ser na

relação com ele: “Ser pobre – isto é: carecer unicamente do desnecessário, isto é,

unicamente pertencer ao libertador, ou seja, estar de pé na relação com o libertador”66

.

Entretanto, o que é, no pensar, este livre, que é libertador? Heidegger responde:

Agora, porém, é justamente o ser, que todo ente, a cada vez e sempre de novo, deixa ser, o que é

e como é, o libertador, o que deixa cada coisa repousar em sua essência, isto é, o que a cada

coisa trata com cuidado e carinho67

.

Por graça do evento, a possibilidade impossível se transforma em impossibilidade

possível, isto é, nós ficamos pobres:

Caso a essência do homem propriamente se põe de pé na relação com o ser libertador, isto é,

caso a essência humana careça do desnecessário, então o homem se tornou pobre no sentido mais

próprio68

.

63 HEIDEGGER, Martin. “Die Armut”. In: Heidegger Studien, Vol. 10, 1994, Berlim: Duncker & Humblot,

p. 8.

64 HEIDEGGER, Martin. “Die Armut”. In: Heidegger Studien, Vol. 10, 1994, Berlim: Duncker & Humblot,

p. 8.

65 HEIDEGGER, Martin. “Die Armut”. In: Heidegger Studien, Vol. 10, 1994, Berlim: Duncker & Humblot,

p. 8s.

66 Heidegger, Martin. “Die Armut”. In: Heidegger Studien, Vol. 10, 1994, Berlim: Duncker & Humblot,

p. 9.

67 HEIDEGGER, Martin. “Die Armut”. In: Heidegger Studien, Vol. 10, 1994, Berlim: Duncker & Humblot,

p. 9.

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E isso quer dizer: o homem se centrou e se concentrou no espiritual, vale dizer, na

relação ser-homem, que é o próprio ser como evento. Na linguagem da Carta sobre o

humanismo, o homem se tornou o pastor do ser:

O homem foi “lançado” pelo próprio ser na verdade do ser, a fim de que, ec-sistindo nesse

lançamento, guarde a verdade do ser; a fim de que, na luz do ser, o ente apareça como o ente que

é. Se e como o ente aparece, se e como Deus e os deuses, a história e a natureza ingressam, se

apresentam e se ausentam da clareira do ser, isso não é o homem quem decide. O advento do

ente repousa no destino do ser. Para o homem, a questão é, se ele encontra o que é “destinado” à

sua essência, correspondente ao destino do ser. Pois é de acordo com esse destino, que, como ec-

sistente, ele tem de guardar a verdade do ser. O homem é o pastor do ser. É somente nessa

direção que pensa Ser e tempo, ao fazer, “na cura”, a experiência da existência ec-stática69

.

Ao se tornar o pastor que, em sua pobreza, cuida da verdade do ser, o homem se torna

rico. A riqueza, aqui, não é algo que se acrescenta à pobreza, como uma conseqüência

da pobreza. Ela não é, de modo algum, algo que lhe segue, como um efeito. Antes, o ser

pobre é, verdadeiramente, o ser rico:

À medida que nós, a partir da pobreza, não carecemos de nada, temos tudo, de antemão, nós

estamos na superabundância do ser, a qual super-flui, de antemão, toda premência da

indigência70

.

Ser verdadeiramente pobre é ser verdadeiramente rico: é ser e estar de pé na plenitude

do mistério fontal do ser, que se doa, discreta e humildemente, como evento-

apropriador:

Riqueza jamais é só posse; menos ainda conseqüência da posse, pois ela é sempre o seu

fundamento. Riqueza é a superfluência daquilo que garante a posse do próprio ser, em abrindo o

caminho para sua apropriação e permanecendo inesgotável na oferta da maturação para o

próprio.

Superfluência, porém, não é superfluidade que está sempre diante do saturado como o que lhe

resta. O autêntico supérfluo é o superfluir que a si mesmo superflui e assim se supera. Numa tal

superação o superfluente aflui a si mesmo de volta e experimenta que não se satisfaz a si mesmo,

porque sempre já se tem superado. Mas este jamais-se-satisfazer-a-si-mesmo por ser sempre

superante é a origem, o salto originário.

A riqueza é essencialmente fonte, em cuja proximidade, somente e então, o próprio se torna

propriedade. A fonte é o desdobramento do uno por e para a inesgotância da sua unidade. O uno

assim é o simples.

Só pode ser rico quem sabe usar livremente a riqueza e sabe antes vê-la como tal na sua essência.

Isso o pode somente quem pode ser pobre no sentido da pobreza, que não é nenhuma privação.

Pois, a privação sempre se enreda num não-ter, que gostaria de tudo ter com imediatez, com

igual imediatez, com que ela não o tem, isto é, sem a propriedade para ter. Esta privação não

brota do vigor da pobreza. A privação que quer ter não passa de indigência, que continuamente

se apega à riqueza, sem poder saber da sua verdadeira essência, sem querer assumir as condições

da sua apropriação.

68 HEIDEGGER, Martin. “Die Armut”. In: Heidegger Studien, Vol. 10, 1994, Berlim: Duncker & Humblot,

p. 9

69 HEIDEGGER, M. Sobre o humanismo, op. cit. p. 50s.

70 HEIDEGGER, Martin. “Die Armut”. In: Heidegger Studien, Vol. 10, 1994, Berlim: Duncker & Humblot,

p. 9.

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A pobreza essencial é o vigor, a coragem do simples, que só é na originariedade.

Essa pobreza admira a essência da riqueza e sabe dali a sua lei. O querer ser rico deve ir através

da superfluente superação de si. Essa via, porém, é e quer ser aprendizagem71

.

O evento-apropriador é o acontecer da união ser-homem. É amor, no sentido de que a

pobreza do homem não quer ser a não ser na carência do ser e que a riqueza do ser não

quer ser a não ser na carência do homem. A vontade do evento é o amor. Sua irradiação,

alegria. Entretanto, “a pobreza é a aflitiva alegria, de nunca ser pobre o bastante. Nesta

silenciosa inquietação repousa sua serenidade, que está acostumada a consolar-se de

toda a penúria”72

.

71 HEIDEGGER, M. Erläuterung zu Hölderlin Dichtung, p. 174 (Trad. de BUZZI, A., in: Itinerário, a clínica

do humano. Petrópolis: Vozes, 1977, p. 106-107).

72 HEIDEGGER, Martin. “Die Armut”. In: Heidegger Studien, Vol. 10, 1994, Berlim: Duncker & Humblot,

p. 10.

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Fontes franciscanas e formação

Fr. Dorvalino Fassini

Introdução

Quando em 1958, João XXIII anunciou a celebração de um novo Concílio ecumênico,

convocando toda a Igreja a uma profunda renovação através do famoso princípio voltar às

origens, todos nós franciscanos, de modo geral, vivíamos profundamente distanciados dos

textos originários como a Sagrada Escritura e as Fontes Franciscanas (FF)1.

Só pensar que, na prática, nossa formação cristã e franciscana acontecia sem nenhum contato

imediato e direto com esses escritos, hoje, causa perplexidade, ou, no mínimo, estranheza.

Imaginar que toda a formação e profissão na Ordem desde, mais ou menos, o fim do século

XIV até meados do século passado, processou-se sem jamais nós, os frades, havermos lido uma

página sequer dos Escritos de São Francisco ou das FF é estranho e quase inacreditável. Por

isso, cabia (cabe) muito bem, também à nossa Ordem, a convocação que João XXIII fazia a

toda a Igreja.

A partir de então, começou-se um belo e frutuoso trabalho de tradução, publicação e

divulgação dessas Fontes. Aos poucos, tanto na formação cristã em geral, como, também, na

formação especificamente franciscana podia-se beber diretamente do espírito originário, seja

da Sagrada Escritura, principalmente do Evangelho, bem como das FF, em especial dos

Escritos de São Francisco.

Nesse pequeno e simples estudo queremos analisar, ainda que de longe e de forma um tanto

caseira, a relação das FF com a formação franciscana, isto é, com a formação daqueles que

seguem a Forma de vida que em Francisco ganhou corpo e veio a denominar-se, simplesmente,

Vida franciscana.

Embora, hoje ninguém mais duvide de que existe profunda ligação entre ambas pergunta-se:

qual é, em que consiste ou como se dá essa relação? O que vem em primeiro lugar: as FF ou a

nossa formação? Dá para separar as duas? Caso afirmativo: quem deve servir a quem: as FF à

nossa formação ou, vice-versa, essa às FF? Ter as FF como servas de nossa Formação é

compreensível, e o fazemos freqüentemente, mas o que seria o inverso: nossa formação servir

às FF? E se não for possível separar as duas realidades, como seria ou se dá sua união? Essas

questões nos remetem a outras mais fundamentais e primárias: o que são FF, o que é e como

efetuar a formação franciscana?

Tentaremos abordar esses questionamentos perguntando, primeiramente, o que são FF, depois

sua relação com a formação e, finalmente, qual o caminho natural e próprio para fazer das FF

nossa formação.

1. Fontes franciscanas o que são?

1 Nesse artigo entendemos FF os Escritos de São Francisco, Santa Clara e demais textos de autores do século XIII

e XIV que testemunham a aventura evangélica desses santos e de companheiros seus e que se encontram, por

exemplo, nos volumes Fontes Franciscani, Santa Maria degli Angeli, Assisi, Ed. Porziuncola, 1995, Fontes

Franciscanas e Clarianas, Petrópolis, FFB-Vozes, 2004; Fontes Franciscanas, Santo André, Ed. Mensageiro de

Santo Antônio, 2005.

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Todos nós, cristãos, religiosos e franciscanos, não temos maiores dificuldades de aceitar a

existência de escritos, textos ou livros todo especiais referentes à origem de nossa vida cristã e

franciscana que costumamos chamar de textos “religiosos”, “sagrados”, “espirituais”,

“inspirados”, “revelados” ou simplesmente, hoje, de Fontes. A dificuldade está na

compreensão de seu ser, de sua natureza, e, consequentemente, da maneira justa e adequada de

portar-nos com eles.

A compreensão mais usual, hoje, é a que vem da historiografia. A historiografia, graças a seu

método crítico de discernir o autêntico do espúrio, tornou-se uma ciência de valor incalculável

na busca da verdade histórica dos fatos e ocorrências para toda a humanidade, também para a

Igreja, como, também, para a Ordem franciscana. Graças a ela eliminaram-se, por exemplo,

entre nós, diversos escritos espúrios, fantasiosos, falsamente atribuídos, muitas vezes, a São

Francisco ou a autores estranhos à autenticidade e veracidade das hoje chamadas FF2.

Segundo a historiografia, as FF são os textos que registram e testemunham a história, a vida de

São Francisco e dos primeiros franciscanos em sua dimensão factual. Para ela o valor e a

importância desses textos residem tão-somente, enquanto e na medida em que estabelecem a

verdade histórica de nossa origem franciscana, mas apenas enquanto verificável pelos critérios,

meios e recursos das ciências positivas humanas e naturais. Por isso, para a historiografia,

textos ou passagens das FF que, por exemplo, não retratam ou contradizem a verdade factual

acerca da origem da vida de Francisco ou da Ordem seráfica carecem inteiramente de valor

para o estudo do Franciscanismo e de sua espiritualidade. Além disso, e a partir dessa

compreensão, todos esses textos, mesmo quando autênticos e verídicos, sob o ponto de vista da

historiografia, constituir-se-iam apenas em valioso acervo de dados e informações acerca dos

ideais, objetivos e intenções do sujeito Francisco e dos primeiros companheiros. Tudo, enfim,

ficaria resumido às pessoas desses nossos fundadores3.

Como veremos mais adiante, nesse artigo, para nós FF são testemunhos escritos acerca de uma

nova forma de vida, nascida de uma inspiração inteiramente evangélica e manifestada

principalmente em São Francisco e seus primeiros companheiros. Como tais, esses escritos

vieram até nós como nascentes ou fontes de um vigor que transcende a história e as pessoas em

sua dimensão meramente factual e que, por isso, costumamos chamá-los de inspiração divina.

Dessa forma a inspiração divina está na raiz do evento Franciscanismo e de todas as assim

chamadas FF. Ela não é apenas anterior a esses testemunhos, mas é, também, sua possibilidade,

bem como a possibilidade do sujeito-Francisco, ou do sujeito-grupo denominado Ordem

franciscana. Esse vigor, também denominado pela tradição de inspiração franciscana, é

anterior e transcende igualmente a subjetividade dos autores desses textos com suas virtudes ou

defeitos, intenções honestas ou fraudulentas, objetivos meritórios ou desprezíveis. Pode-se e

deve-se, com razão, afirmar que não é Francisco e muito menos seus seguidores que têm o

2 Merece menção o fadigoso e não menos precioso trabalho de Kajetan Esser, frade alemão que, durante quarenta

anos, com a ajuda de outros frades, dedicou-se à pesquisa de inúmeros manuscritos com o objetivo de oferecer à

toda a Ordem uma edição crítica dos Escritos de São Francisco. Essa veio à luz em 1976 com o título Die

Opuscula des hl. Franziskus von Assisi. Neue textkritiche Edition. Grotaferrata (Romae), Editiones Collegii S.

Bonaventurae ad Claras Aquas. O grande e maior de todos os benefícios dessa edição é que oferece a todos a

possibilidade de entrar em contato com um texto isento de fantasias e de subjetivismos. Assim, por exemplo, ficou

patente que a conhecidíssima oração “Senhor fazei de mim um instrumento de vossa paz” não é de Francisco.

3 Maiores considerações acerca desse assunto o leitor pode encontrar no livro Leitura espiritual e formação

franciscana. Petrópolis,Vozes, 1996, de nossa autoria.

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carisma franciscano, mas, antes, esse é quem con-verte, tem, contém, mantém, segura, sustenta,

alimenta, forma e in-forma aqueles4.

A inspiração divina franciscana passa a ser, portanto, a realidade verdadeiramente real, a força

originária que toca e move o sentir, o pensar, o fazer e o viver dos seus autores. É a força, a

fonte originária da qual e para a qual, sempre de novo, Francisco e todos os seus seguidores se

voltam a fim de compreender sua (dela) operação e assim sempre mais e melhor a ela dispor

sua vontade, seu coração, seu entendimento e todas as suas forças.

Nascidas da inspiração divina, isto é, diretamente do encontro com o Evangelho, com Jesus

Cristo, antes do espírito da época ou dos tempos, as FF são devedoras ao espírito do Senhor e

seu santo modo de operar5. Por isso, em vez de meras e belas peças de museu a lembrar-nos

um passado maravilhoso, mas passado, elas se constituem na inspiração, na forma de vida,

sempre atual e atuante para todos quantos, movidos por esse mesmo vigor, decidem-se a seguir

os mesmos passos de Francisco. Nelas o modo de expressar-se e de descrever a realidade, a

escolha das palavras e dos exemplos, certamente, vêm profundamente marcados com as

características da época e até mesmo da boa ou má vontade de seus autores, mas o conteúdo do

sentido da vida nelas pulsante procede da fonte que os transcende. Essa última, a inspiração

originária, é, pois, o verdadeiro autor, o critério justo, a medida correta para a compreensão

desses escritos; jamais as idéias, os sentimentos, os projetos ou pensamentos do sujeito-autor

(Francisco e companheiros), e, muito menos, os pensamentos, as aspirações, os costumes

sócio-político-econômico-religiosos daquela época, a Idade Média do século XIII.

Vale aqui o que São Paulo diz em suas cartas: Asseguro-vos, irmãos, que o Evangelho pregado

por mim não é invenção humana. Não o recebi nem aprendi de ninguém, mas através de uma

revelação de Jesus Cristo6.

Ajuda-nos a compreender a natureza própria das FF o pensamento de Oscar Wilde acerca da

arte: A arte não pode ser submetida ao seu sujeito, pois, neste caso, não é arte, mas biografia,

e biografia é a malha pela qual a realidade escapa (Oscar Wilde, pensador e poeta irlandês).

Parafraseando esse pensamento, podemos dizer que as FF não podem ser submetidas ao sujeito

São Francisco, muito menos aos seus autores ou a quem quer que seja, pois neste caso tornar-

se-iam mera narração de fatos particulares das várias fases da vida de Francisco: uma simples e

4 Na Legenda dos Três Companheiros (LTC), por exemplo, os autores escrevem: Haec sunt quaedam scripta per

tres socios... de perfectione originis et fundamenti ordinis in ipso et in primis fratribus. Literalmente: Estas são

certas coisas escritas por três companheiros... acerca da perfeição da origem e do fundamento da Ordem nele

(Francisco) e nos primeiros frades. Alguns tradutores, como, por exemplo, na edição Fontes Franciscanas e

clarianas. Petrópolis, FFB-Vozes, 2004, p. 789, entendem que se trata da perfeição de Francisco e não da

perfeição da origem e do fundamento da Ordem. Por isso traduzem: Estes são alguns episódios, escritos por três

companheiros do bem-aventurado Francisco... sobre sua perfeição ... na origem da Ordem. O latim, porém, é

muito claro: de perfectione originis et fundamenti ordinis, isto é: da perfeição da origem e do fundamento da

Ordem, e não dele, Francisco.

5 Regra Bulada (RB) 10,9.

6 Gl 1,11-12.

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mera biografia, jamais uma história sagrada7, preparada, conduzida e operada pelo Senhor,

como ele mesmo atesta com nitidez e reiteradamente em seu Testamento:

O Senhor me concedeu a mim, frei Francisco começar a fazer penitência assim... o Senhor me deu tal

fé nas igrejas... o Senhor me deu e me dá tanta fé nos sacerdotes... o próprio Altíssimo me revelou que

eu deveria viver segundo a forma do santo Evangelho... 8.

É nesses textos, portanto, que os seguidores de Francisco vão encontrar os arcanos de sua

identidade, de sua vocação e missão. Pois, é neles que pulsa o vigor da verdade mais real,

verdadeira e comum, que vigora, anima e sustenta a caminhada de toda a Ordem através das

vicissitudes e relatividades do tempo, lugares e pessoas.

Uma boa explicação dessa realidade originária de todas as FF, e que costumamos chamar de

espiritual ou espírito, encontramos no livro Histórias do Rabi, de Martin Buber:

Este livro pretende introduzir o leitor a uma realidade lendária. Devo denominá-la lendária, porque os

relatos que chegaram até nós e aos quais me propus dar forma adequada não são, como crônicas,

fidedignos. Remontam a pessoas entusiasmadas que, em recordações e apontamentos, preservaram

aquilo que seu entusiasmo percebeu ou acreditou ter percebido, isto é, uma porção de coisas que

realmente ocorreram, mas que somente o olhar do fervor podia apreender, como também muitas que,

da maneira como foram contadas, não aconteceram e nem podiam ter acontecido, mas que a alma

entusiástica sentiu como algo manifestamente acontecido, relatando-as, portanto, como tais. É por esta

razão que devo chamá-las de realidade: a realidade da experiência de almas ferventes, uma realidade

engendrada em total inocência, sem lugar para a invenção ou para o capricho. É que essas almas não

informavam de si mesmas, mas daquilo que sobre elas atuava. O que podemos deduzir de seu relato

não é, pois, somente um fato da psicologia, mas também da vida. Algo exaltante sucedeu e produziu o

efeito que produziu: a tradição, ao transmitir o efeito, testemunha também aquilo que o causou –

testemunha o encontro entre homens entusiasmadores e homens entusiasmados, a relação entre estes e

aqueles. Isto é lenda verdadeira e tal é a sua realidade.

Em última análise, todas as grandes religiões e movimentos religiosos visam engendrar uma vida em

entusiasmo, e precisamente num entusiasmo que nenhuma vivência pode sufocar que, portanto tem sua

origem num relacionamento ao eterno, acima e além de toda a vivência individual 9.

A colocação mais significativa dessa passagem de Buber é que os textos-fonte nasceram de

pessoas entusiasmadas e entusiasmadoras, isto é, de pessoas movidas de entusiasmo.

Entusiasmo, porém, aqui, nada tem a ver com a força anímica, oriunda da exacerbação

subjetiva da pessoa. Tem a ver, sim, com seu significado originário, atestado já no sentido

etimológico dessa palavra. De fato, entusiasmo vem da palavra grega én-theos ou én-thous e

significa cheio de Deus, ou, talvez, melhor: estar no movimento (no embalo) de Deus10

.

7 Por história sagrada entendemos, aqui, a aventura nascida e vivida, do começo ao fim, na e da dinâmica da

necessidade de responder cada vez mais dedicada e fielmente à gratuidade do encontro, da fé e do amor de quem

nos amou por primeiro. Tal resposta, Jesus descreve maravilhosamente bem no Sermão das Bem-aventuranças.

8 Testamento (T) 1;4;6;14.

9 BUBER, Martin. Histórias do Rabi. São Paulo: Editora Perspectiva, 1995, p. 19-20.

10 Belo exemplo de pessoa entusiasmada, nesse sentido de “én theous”, é São Paulo. Pelo que se sabe, São Paulo

nunca teve um encontro com Cristo no sentido histórico-físico-geográfico, no estilo de uma ocorrência registrável

pelos sentidos ou instrumentos humanos, semelhante ao que tiveram os demais Apóstolos. Nem por isso o

encontro que teve com o Senhor no caminho de Damasco é menos real, profundo, intenso, íntimo, marcante e

decisivo que aquele que os demais Apóstolos tiveram. Não fosse real, verdadeiro – como ele mesmo atesta –

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Isso significa que nesses textos temos a possibilidade de estar diante de uma realidade que não

precisa necessariamente ser real como fato e mesmo assim ser verdadeiramente real; uma

realidade que é real como experiência humana e, como tal, sumamente universal, comum e

própria do humano em todas as suas mais diversas e variadas concreções; uma realidade nada

subjetiva, fantasiosa ou particular por situar-se acima e além de toda a vivência individual uma

vez que sua origem dá-se num relacionamento que vem do eterno com o homem em forma de

visita, encontro ou toque. Mas, por não ser subjetiva não se pode concluir que seja objetiva, no

sentido de verificável a modo de objeto fisico-material-biológico.

Aproveitando as colocações de Buber poderíamos dizer que as FF em vez de serem textos

históricos, geográficos, econômicos, pastorais, doutrinários etc., são textos pertencentes ao

fenômeno religioso. Mas, fenômeno religioso, antes de fato ou ocorrência, indica tarefa,

responsabilidade, busca ou questão, como muito bem o diz Frei Hermógenes Harada nessa

passagem:

Tarefa de uma questão engajada, sincera e radical, na qual devemos abrir-nos incondicionalmente para

uma dimensão inteiramente nova. Dimensão que, à primeira vista, parece-nos vaga, indeterminada,

apenas como que indicando uma direção; não porque seja nada, um vazio, ilusão ou opiniões

particulares de mil e um diferentes enfoques e pontos de vista, mas sim, porque se trata de uma

realidade anterior a nós, abissalmente mais vasta, mais profunda e mais originária do que todas as

nossas possibilidades e medidas. Dimensão que não é, portanto, subjetiva, mas que, também, não é

objetiva, no sentido de ser passível de nossas objetivações, mesmo que essas objetivações recebam,

hoje, a conotação sagrada de cientificidade e logicidade. Uma dimensão que é real, realíssima, mais

real do que todas as nossas objetividades e subjetividades, por ser a condição da possibilidade do nosso

ser e conhecer11

.

Ora, não é essa realidade, que costumamos chamar de espírito, o “real” único e verdadeiro das

Fontes Franciscanas?!

2. Fontes franciscanas em ou nossa formação?

Como assinalamos no início desse artigo, a formação que formalmente nós, frades menores,

mais antigos, durante séculos fomos recebendo e promovendo até a década de 60 do século

passado, nada ou pouco tinha a ver com as FF. Por isso, no dizer de frei Celso Márcio Teixeira,

herdamos um franciscanismo ideologizado e híbrido12

. Um franciscanismo que proced(e)ia

muito mais de outras vertentes, como, por exemplo, do monaquismo, dos planos de

evangelização e de pastoral da Cúria romana e das Dioceses, das inúmeras declarações papais,

da ascética, da moral, do direito canônico, da teologia comum e usual da Igreja, da filosofia, da

sociologia, da psicologia etc., do que, propriamente, da experiência evangélica de Francisco.

Com isso nossa formação foi tornando-se cada vez mais vaga, diluída, ambígua, equivocada,

fragmentada, juridicista, moralista, pastoralista etc. Assim, aos poucos e hoje quase não se

percebe mais com muita clareza como ou em que nós franciscanos nos diferenciamos dos

demais religiosos ou clérigos, e, às vezes, até mesmo dos cristãos seculares. Em muitos casos o

frade menor não passa(va) de um monge ou cura de almas, um agente de pastoral ou promotor

do bem-estar social e humano, semelhante a qualquer outro sacerdote ou secular.

poderia arrogar-se o direito, o dever e a missão – como os demais – de “Apóstolo”, isto é, de testemunho de Jesus

Cristo crucificado? Como poderia testemunhar alguém que nunca tivesse encontrado?

11 Crenças, religiões, igreja e seitas: quem são? Em: Mensageiro de Santo Antônio, Santo André, 1995, p. 9-10.

12 TEIXEIRA, Frei Celso Márcio, ofm, A graça de celebrar 800 anos do Carisma Franciscano. p. 2. Artigo

publicado no site: www.franciscanos.com.br (Província da Imaculada Conceição).

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A própria formação passou a ser compreendida, em muitos casos, mais como habilitação para o

simples desempenho de ofícios, deveres e atividades do que como contínua busca e generosa

acolhida da inspiração originária de Francisco13

. O que mais importava era ter um bom gestor e

realizador de tarefas e funções, um bom defensor de conquistas doutrinárias do que

propriamente um eterno peregrino do espírito originário franciscano. Em outras palavras, ser

frade, segundo essa compreensão, seria mais iniciativa e agenciamento nosso do que operação

do Senhor. Por isso, começou-se a falar e pensar que ser franciscano era ingressar ou entrar na

Ordem e não, como Francisco, em receber benignamente e sempre de novo esta vida, esta

Ordem14

.

Nossa sorte é que a Ordem está assentada sobre a rocha firme de um carisma profunda e

limpidamente evangélico. Por isso, durante todos esses séculos de esquecimento, continuamos

sendo orientados e vivificados pela luz e pelo vigor de sua presença, pulsante e atuante através

de muitos outros vestígios ou vertentes, como, por exemplo, o burel, as sandálias, o nome, os

lugares “franciscanos”, os monumentos, as artes e pela tradição oral, principalmente, pelos

famosos I Fioretti de São Francisco.

Oriunda de muitas outras fontes, nossa formação carece(ia) de um núcleo central, um coração,

raiz ou razão que tudo interligue, oriente e vivifique. Por isso, também, tornou-se uma

formação frágil e de pouco fôlego, necessitando sempre de “novidades” e experimentos

procurados em escolas de outros carismas, outras espiritualidades ou ciências, esquecendo que

seguindo muitos caminhos nunca se chega a lugar nenhum, e, jamais, de jeito nenhum, à fonte.

Por isso, o pronome nossa, do título em nossa formação, está se referindo a toda série de

fatores, princípios, conceitos e métodos formativos esdrúxulos que, durante séculos, até os dias

de hoje, à semelhança de pó, vem se assentando e se agregando à formação originária. A essa

não restou outra saída senão retirar-se para as camadas profundas do esquecimento, quando

não do menosprezo, por ser considerada antiquada, medieval, obscurantista etc. Assim, o que

era nossa formação passou a não ser e o que não era passou a ser.

Na década de 60, do século passado, esboçou-se o início de uma reação. Movidos pelo espírito

renovador do Concílio, os franciscanos não apenas redescobriram as FF, mas também

começaram a traduzi-las e usá-las em sua formação. Começou-se a abrir os livros sagrados de

nossa vida e nossa história, buscando neles ajuda a fim de melhor conduzir essa que é a

primeira e a mais importante de todas as nossas tarefas ou missões: a formação.

Mesmo assim, a nosso ver, todo esse esforço ainda não desfez, nem transformou o caráter

híbrido, vago, e diluído de nossa formação com todas aquelas suas e demais características e

conseqüências acima mencionadas. A formação do nosso ser franciscano ainda está muito

distanciada das FF. Ou seja, de um lado temos a nossa formação e de outro as FF. Quando

muito ou apenas nos servimos de algumas de suas passagens, escolhidas a dedo, para ilustrar e

comprovar uma formação que concebemos e montamos a partir de outras origens. Não

acreditamos no que elas verdadeiramente são: a fonte, a origem de nosso vir-a-ser.

Provavelmente uma das causas dessa atitude esteja no medo que se tem hoje de tudo quanto

seja medieval. É que, preconceituosamente, sem pouca análise crítica, pensa-se que tudo o que

13 Em certos ambientes ou ocasiões, por exemplo, soa muito forte a questão: “Que franciscano queremos hoje?”

Ou: “que tipo de franciscano a ‘Igreja’, o mundo precisa, hoje?”, como se quem devesse dar as regras de nossa

formação fosse a “Igreja” e o mundo.

14 Cf. Regra Não Bulada II; T 16.

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procede da Idade média seja infantil, fantasioso, obscurantista, dogmatizado, fundamentalista,

etc.

Esse medo é real, pois sempre estamos correndo o risco de entrar para um modo deficiente de

ser franciscano; um caminho eivado de subjetivismos, onde não se segue o rigor e a seriedade

da responsabilidade de fazer o que deve ser feito até à consumação de nossa possibilidade

finita, para que o salto no desconhecido não seja facilitado e banalizado pela ausência de

conhecimento e saber bem fundamentados15

.

Tentemos compreender melhor essa questão passando a ver a relação FF-formação no início

da Ordem, isto é, como ela se dava em Francisco e companheiros.

Primeiramente devemos considerar que Francisco nunca ousou ter outro formador senão a

inspiração originária que se engendrava em seu coração, se aclarava em sua mente, se

fortalecia, florescia e amadurecia em suas atitudes temperadas sempre com firmes propósitos

de fidelidade aos inúmeros toques vindos daquela realidade que o encantava e atropelava cada

vez mais na busca de seus ideais de grandeza humana. Já no processo de sua conversão a

ninguém revelava seu segredo nem buscava conselho de ninguém nesse assunto, a não ser só a

Deus, que começara a dirigir seu caminho16

. Ao Papa, que receava aprovar-lhe a Regra, por

considerá-la demasiadamente rigorosa, e queria propor-lhe outras formas de vida, responde-lhe

que não se deve temer que morram de fome os filhos e reis do Rei eterno que, nascidos,

segundo a imagem de Cristo Rei, de uma mãe pobre, pela virtude do Espírito Santo, devem ser

gerados pelo espírito da pobreza numa Religião paupérrima17

.

Sem deter-nos em outras considerações acerca dessa passagem, notemos, porém, a insistência

de Francisco acerca do princípio originário de todo processo formador franciscano: o frade

menor é filho e rei do Rei eterno, que nasce, segundo a imagem de Cristo Rei, pela virtude do

Espírito Santo e que, por conseguinte, deve gerar-se pelo espírito da pobreza.

Ora, rei e filho do rei regem-se por nenhuma outra regência senão pela luz e pela orientação de

sua índole régia; do contrário, se devessem orientar seus passos e tomar suas decisões através

de outros princípios ou príncipes não seriam reis e muito menos filhos de reis.

Mas, a relação FF-formação em Francisco vem magistralmente descrita naquela passagem,

talvez a mais significativa de todas, que revela o primeiro encontro explícito de Francisco com

o Crucificado de São Damião, onde o autor conclui dizendo que

desde aquela hora, seu coração de tal modo ficou ferido e derretido ante a memória da Paixão do

Senhor, que sempre, enquanto viveu, levou em seu coração os estigmas do Senhor Jesus, como

posteriormente apareceu claramente pela renovação dos mesmos no seu corpo, admiravelmente

realizados e clarissimamente demonstrados18

.

15 HARADA, Frei Hermógenes, Em comentando I Fioretti, reflexões franciscanas intempestivas, Bragança Paulista:

Edusf, 2003, p. 18.

16 LTC 10, 8.

17 1B 3,10.

18 LTC 13-14.

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Francisco cresceu tanto na disposição de bem acolher essa forma (formação) de vida que,

segundo São Boaventura, o verdadeiro amor de Cristo havia-o transformado de tal maneira em

sua própria imagem que trazia consigo a imagem do crucificado19

.

Através desses dois testemunhos não é difícil de perceber aquele princípio ou método

originário de formação seguido por Nosso Senhor, nosso verdadeiro e único mestre e a Virgem

Maria, sua e nossa mãe.

De Cristo atestam os evangelistas que, desde que entrou nesse mundo até seu último suspiro,

nenhuma outra coisa procurava senão conhecer e cumprir a vontade do Pai; de sua e nossa mãe

também se assinala que vivia ruminando em seu coração todas as coisas que diziam respeito ao

Menino20

. Assim, tornou-se inevitável que também Francisco, por haver seguido à risca esse

mesmo caminho, viesse a constituir-se para todos os frades a Forma minorum o Espelho da

perfeição21

. Assim, era através dele e somente nele que os primeiros frades buscavam o fogo

que lhes aquecesse a mente, a luz que lhes iluminasse a alma e a estrela que lhes orientasse os

passos que deviam seguir no percurso da nova vida.

Após a morte do santo pai, os capítulos e os ministros gerais trataram de impedir que a imagem

viva do espírito evangélico, a Forma minorum, resplandecente e atuante em seu primeiro e

verdadeiro formador, se apagasse de suas mentes. Cuidaram, por isso, de assegurá-la para as

gerações futuras pedindo e ordenando que todos os Irmãos recolhessem e redigissem os

prodígios, os milagres bem como os fatos insignes que revelavam a inspiração originária dessa

nova Forma de vida evangélica22

. Assim, continuaria ele vivo, através de seus escritos e das

assim hoje conhecidas e denominadas FF. Por isso, seus autores insistem que todas essas coisas

foram escritas a fim de edificar os que querem imitar seus passos e manter sempre viva para os

pósteros a memória23

de tão importante, preciosa e fundamental aventura evangélica. São

Boaventura, por sua vez, assegura que, entre os diversos objetivos de sua obra, está o de fazer

com que os verdadeiros amigos da santa Pobreza sejam instruídos, pelo seu exemplo, a viver de

acordo com Jesus Cristo e a sentir, com insaciável desejo, a sede da feliz esperança24

.

Todas essas expressões, como fazer a memória, cuidar da edificação dos irmãos etc. nada tem

a ver com moralização ou doutrinação, muito menos com a busca de uma formação piegas ou

meramente formalista. Tem a ver, sim, antes e acima de tudo, com a dinâmica própria do

humano, entendida, no caso, como um contínuo vir-a-ser da existência franciscana, ou seja,

nossa formação.

Assim, os escritos do próprio seráfico pai, juntamente com as ricas e variadas legendas (FF),

constituíam-se nos primórdios da Ordem no mais significativo, senão único, manual que regia

e edificava os Irmãos. Consequentemente não havia entre eles o binômio formador x formando,

19 Cf. 1B 13,5.

20 Cf. Lc 2,51.

21 1C 90,3 atesta: Todos podem olhar no espelho de sua vida.

22 Cf. Legenda dos Três Companheiros (LTC) 1.

23 LTC 1,7; 1,12; 1Celano (1C) 1,1.

24 Legenda maior de São Boaventura (1B) 1,1.

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mestre x discípulo uma vez que todos tinham-se, pura e simplesmente, como aprendizes e

discípulos do único mestre e senhor: o espírito originário da Ordem25

.

As Legendas ou Vidas de São Francisco com seus Escritos, principalmente a Regra, foram se

constituindo em verdadeiros anúncios e testemunhos daquela Forma de vida para a qual

Francisco entregara todo seu ser, do começo até o fim de sua conversão. A Forma minorum, a

Regra viva que antes ganhara corpo e forma em Francisco agora podia ser vista, admirada,

contemplada, abraçada, recebida e seguida através desses escritos.

Infelizmente, como vimos, todo esse fervor por parte das primeiras gerações de Frades para

manter a memória da Ordem e uma formação originada pelo confronto imediato e direto, corpo

a corpo, com nossa Forma de Vida, pulsante nesses textos, durou pouco. À medida que a Regra

e as Legendas iam sendo esquecidas e cedendo lugar a outras formas de vida, vindas de fontes

estranhas ao nosso gênero de vida, a Forma minorum passou a constituir-se em mero efeito

lingüístico e cultural. Não se constituía mais em razão, nascedouro ou fonte da formação dos

Irmãos. Francisco de forma passou a ser a gloria minorum. Agora ao invés da busca e do

estudo do seguimento do espírito de sua experiência evangélica importava tê-lo como santo da

Ordem e honra dos Frades. Em vez de olhar para Francisco, os frades olham para a Igreja, com

suas cada vez mais complexas e numerosas interpretações, para as inúmeras e cada vez mais

numerosas ciências humanas, como a teologia, a filosofia, a psicologia, a sociologia etc. etc.

Agora, talvez, o leitor possa entender o título da segunda parte dessas reflexões. A maneira

como vem formulado pretende indicar duas formas ou possibilidades diferentes de

compreender e realizar a relação entre as FF e a formação. A primeira – FF em “nossa”

formação – vê e elabora uma formação que traça seus princípios, conceitos, conteúdos,

metodologias etc. a partir de inúmeras procedências, distanciada ou alheia às FF. Essas

existiriam apenas para servir, ajudar, ilustrar e orientar a formação que nós elaboramos. E,

certamente, essa foi uma das melhores conquistas que se fez e está se fazendo nessa caminhada

de quase cinqüenta anos de renovação conciliar.

Quando hoje se fala em formação franciscana, tanto inicial como permanente, é quase

inconcebível entendê-la sem o uso das FF e sem uma escolha “criteriosa” de passagens que

venham exemplificar e comprovar a formação que concebemos e empregamos. Assim, por

exemplo, é difícil que um franciscano faça seu retiro sem nada ler ou usar das FF.

Por isso não dá para dizer que nossa formação seja basicamente uma formação franciscana.

Trata-se, antes, de uma formação de franciscanos ou seja, uma formação franciscana pela

metade. E, segundo um educador cristão do século XIX, em se tratando de formação

evangélica, uma formação pela metade é pior do que nenhuma26

. Exemplificando: para um

homem é melhor permanecer solteiro do que casar e viver em contínuas infidelidades

matrimoniais.

Por isso o título da segunda parte desse estudo, em forma de pergunta, pretende lançar uma

dúvida ou questão: se essa maneira de conceber e processar a formação, colocando as FF ao

25 A ausência desses binômios não significa que se deva, hoje, eliminar os cargos ou serviços de “mestre” ou

“formador”, mas de exercê-los na dinâmica evangélica da minoridade e da fraternidade (Cf. Mt 23,1-12). Assim o

mestre mestreará não como mestre, mas como discípulo e o formador formará não como aquele que sabe, mas

como formando, isto é, como aquele que precisa sempre de novo aprender o aprender a ser discípulo.

26 Pe. Faustino Mennel, fundador das Irmãs franciscanas de Bonlanden.

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serviço dessa nossa formação, é justa, correta, saudável e adequada? Para uma formação

realmente originária basta que se tenha as FF apenas como meio, recurso, subsídio e

sustentáculo para outra formação, oriunda de outras origens? Não vale aqui o mesmo princípio

que se costuma aplicar ao Evangelho? Ou seja: São as FF que devem se adaptar à nossa

formação ou, antes, não é essa que deveria adaptar-se àquelas? Quem deve inspirar quem? Por

isso, a segunda parte desse subtítulo: As FF, nossa formação.

Aproveitamos, aqui, para ilustrar nossa reflexão, o que dizia um frade holandês que trabalhou

muitos anos na formação:

Muitos, em vez de seguir o santo, atrelam-no atrás de sua carroça, querendo que ele lhes traga

vantagem nas suas lutas, propagandas e ideologias. Em vez de proclamar Francisco seu condutor,

invertem os papéis: “São Francisco pensa como eu”; em lugar de “eu devo pensar como Francisco”

colocam o seu “eu” no lugar do mestre. Nesse caso não temos verdadeiro amor a São Francisco, mas

um egoísmo interesseiro27

.

Tentemos ver essa diferença com alguns exemplos. Uma coisa é o médico dizer: “A medicina

em minha vida” e outra, bem diferente: “A medicina, minha vida”; uma coisa é o esposo dizer:

“Maria em minha vida” e outra: “Maria, minha vida”; uma coisa é dizer: “Jesus Cristo,

Evangelho, São Francisco em minha vida” e outra dizer: “Jesus Cristo, Evangelho, São

Francisco, minha vida”.

No primeiro caso medicina, Maria, Jesus Cristo, Evangelho e São Francisco estão em nossas

mãos e ao nosso serviço, assim como o empregado ou a enxada está nas mãos e ao serviço de

seu patrão ou do agricultor. Assim, apesar da muita boa vontade em querer dar um fundamento

franciscano e seguro à nossa formação, através desses exemplos, percebe-se que as FF viraram

objeto da ação de nossa subjetividade. Já no segundo caso dá-se o contrário: o médico, o

esposo, nós é que nos colocamos nas mãos e à disposição da medicina, de Maria, de Jesus

Cristo, do Evangelho, de São Francisco e, no caso, das FF. Elas, como foram nos primórdios

da Ordem, voltariam a ser o que são: nosso primeiro e único formador.

3. Leitura espiritual, caminho da formação franciscana

Mas, como, ou o que fazer para que as FF sejam, de novo, nossa formação? Qual o caminho

que devemos seguir para que nossa formação, nossa existência franciscana, à semelhança da

água que borbulha da fonte, profluam, de novo, do sopro vital e originário do Franciscanismo,

pulsante e atuante nos textos de nossa Forma de vida?

Para responder a essa questão, precisamos, antes, recordar mais uma vez a natureza e a atuação

própria das FF.

Todos esses escritos, por conterem e re-velarem a inspiração originária da Vida franciscana,

conduzem seu leitor para a proximidade mais intensa da profundidade do Mistério divino,

fonte e origem da Vida franciscana. São textos dos quais borbulha e nos quais atua a realidade

mais profunda e radical que está para além, ou, melhor, para aquém de toda e qualquer

realidade proveniente da subjetividade do leitor, da subjetividade de quem os escreveu ou de

quem quer que seja. Por serem fontes, são o princípio, a paisagem da qual brota nosso vir-a-ser

franciscano e, consequentemente, toda a nossa formação e não meros meios, recursos para

qualquer outra formação, por mais substanciosa ou profícua que pareça.

27 WOUTERS, Frei Ildefonso, ofm, Os franciscanos no RS, Porto Alegre: Província São Francisco de Assis, 1976,

p. 14.

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Por isso, a natureza desses escritos dita também o caminho de sua leitura e estudo. Pois, como

diz um grande mestre:

Compreende melhor a Escritura, aquele que, despojado de todo espírito, procura o sentido e a verdade

da Escritura nela mesma, isto é, no espírito em que foi escrita e pronunciada: no Espírito de Deus... E

São Paulo diz: Ninguém pode conhecer e saber o que há no homem senão o espírito que está no

homem, e ninguém pode saber o que é o Espírito de Deus e o que há em Deus, senão o Espírito que é

de Deus e é Deus (1Cor 2,11). Por isso um escrito, ou uma glosa, diz muito acertadamente que

ninguém é capaz de compreender ou de ensinar o que São Paulo escreve, se não tiver o espírito em que

São Paulo falou e escreveu28

.

Formar-se partindo das FF, portanto, não é outra coisa senão despojar-se de seu (nosso) próprio

espírito e de todos os outros espíritos, venham de onde vierem, para tão só e unicamente

dispor-se ao espírito que vige e atua nas próprias Fontes. Esse empenho, trabalho ou exercício

a tradição cristã e da Ordem denominou de leitura espiritual.

O caminho da leitura espiritual pode ser vislumbrado na sétima admoestação de São Francisco:

1Diz o Apóstolo: A letra mata, mas o espírito vivifica.

2São mortos pela letra os que cobiçam saber só

as palavras, a fim de serem tidos mais sábios entre os outros e poderem adquirir grandes riquezas, para

dá-las aos parentes e amigos. 3E são mortos pela letra aqueles religiosos que não querem seguir o

espírito da letra divina, mas só cobiçam saber mais palavras e interpretá-las para os outros. 4E são

vivificados pelo espírito da letra divina os que não atribuem a si toda a letra que sabem e cobiçam

saber. Mas, pela palavra e pelo exemplo, devolvem-na ao altíssimo Senhor Deus, de quem é todo o

bem.

Segundo essa admoestação, Leitura espiritual, portanto, não se identifica em apenas e

simplesmente ler textos “espirituais”, “religiosos” ou “sagrados”. Na leitura espiritual o acento

não está na “coisa” que se lê, mas no modo, na postura ou conduta, isto é, no espírito do leitor.

Pois, como diz a Admoestação, pode-se estar na leitura procurando seguir não o espírito da

letra divina, mas tão somente a si, seus interesses, seus (pre)conceitos e saberes29

.

O próprio da leitura espiritual, o que faz uma leitura ser espiritual, ou seja, o que conduz e

orienta o leitor na leitura espiritual é a dinâmica do toque e da nobreza nascida do vigor do

encontro. Por isso, na leitura espiritual o leitor, partindo de sua total e absoluta pobreza (sine

proprio), lê mais ouvindo do que projetando, mais interrogando do que afirmando, definindo

ou formalizando, mais considerando e admirando tudo sem nada menosprezar, mesmo que algo

pareça ridículo, impossível, antiquado ou absurdo; nessa leitura tudo se pondera e se reflete na

tentativa de intuir e acolher entre as palavras, as frases e os períodos o espírito do Senhor e seu

santo modo de operar evangélico-franciscano. Trata-se, pois, de uma leitura que se faz a partir

do “dentro”, do coração do próprio texto, participando do espírito que o move e o per-faz. Em

verdade, na leitura espiritual em vez de esforçar-se para colher e ou definir o sentido da

existência franciscana, como se fosse um algo ou mesmo um ideal, a exemplo do próprio

Senhor, que em tudo seguiu a vontade do Pai; a exemplo de Nossa Senhora que passou a vida

toda ruminando as coisas referentes ao Filho; a exemplo de nosso seráfico pai que desde o

28 MESTRE ECKART, O livro da divina consolação. Petrópolis: Vozes, 1991, p. 73-74.

29 Assim, o Evangelho ou os Escritos de São Francisco, livros suma e essencialmente espirituais, podem ser lidos

e tratados como simples objetos de meu interesse historiográfico, pastoral, econômico, político, religioso,

psicológico, ascético, moralista etc. Por outro lado, um livro de conteúdo essencialmente material, como um livro

de física ou biologia, poderia ser tratado e lido espiritualmente, isto é, numa atitude de abertura para a realidade

que o transcende.

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encontro com o Crucificado até o fim viveu carregando em sua alma os estigmas da Paixão do

Senhor, o leitor esforça-se para deixar-se colher e tomar pela origem e pelo fundamento da

Ordem30

. Enfim, em vez de agente ou sujeito da leitura faz-se seu paciente, isto é, aquele que, a

exemplo do artista, sofre e padece o agir e o atuar da inspiração originária.

A outra leitura, descrita pela admoestação como letra que mata, poderíamos chamá-la de

leitura objetiva, isto é, uma leitura que se faz “de fora”, “de longe”, “sobre”, a modo de

jornalista ou de quem fica sobrevoando e descrevendo a partir de sua visão, de seus recursos e

objetivos pessoais.

Essa última leitura, diz Francisco, mata. Mata porque impede que o princípio originário do

texto nos visite e faça sua habitação em nós, que é a dinâmica e a essência de todo encontro.

Ou, como diz a própria Admoestação, porque só cobiça mais palavras para interpretá-las para

os outros. Seria semelhante a alguém que casasse com uma bela e nobre senhora somente para

proveito próprio, como, por exemplo, para subir de status e poder exibir-se perante os outros.

Nesse caso estaria “matando” a jovial alegria da gratuidade do encontro, descrito pelo Senhor

como entrar no Reino dos céus.

Leitura espiritual é, pois, exercício ou “coisa” do espírito. E espírito, para nós cristãos, é

sempre, sem mais e nem menos, eco, ressonância ou ato e atuação do ser de Deus; a pura

doação que Ele faz de si mesmo, na soltura, total, cordial e generosa da efusão do seu ser,

criando todas as criaturas, em graus de intensidade diferentes e diferenciados, participantes de

seu ser31

. Nesse sentido, leitura espiritual – formação – é, sem mais e nem menos, empenho em

ou para vir-a-ser o que já somos por graça: filhos queridos de Deus, o Pai do céu, como

Francisco gostava de proclamar32

.

Textos espirituais, portanto, só se compreendem quando lidos na dinâmica do interesse. Não

interesse no sentido usual da busca de vantagens, lucros e favores pessoais, como quando, por

exemplo, se pergunta: qual seu interesse nessa viagem?

30 Cf. LTC Rubrica. Nessa passagem os autores fazem questão de asseverar que a conversão de Francisco foi tão

admirável que permitiu que a origem e o fundamento da Ordem pudessem entrar nele e per-fazer todo seu

percurso, do começo ao fim. Quer dizer, quem pôde realizar-se plenamente, até o sumo, foi a origem e o

fundamento da Ordem e não Francisco. Esse realizou-se na realização daqueles.

31 Da Criação, uma fantasia, Frei Hermógenes Harada, em Scintilla, Revista de Filosofia e Mística medieval,

Instituto de Filosofia São Boaventura, Sociedade Brasileira de Filosofia Medieval, Curitiba, PR, p. 159

32 Nesse sentido o “texto-fonte” mais próximo é aquele que pulsa na pessoa do próprio vocacionado e do irmão.

Pois os membros da Ordem se fazem irmãos porque são dados uns aos outros como tais pelo vigor do mesmo

espírito evangélico (Cf. T 14). Assim, estão sempre sendo ungidos e formados como tais por essa única e mesma

força originária e orientados e conduzidos pela luz da mesma e única inspiração evangélica.

Belo exemplo dessa mútua e recíproca leitura (formação) vemos na vocação de Frei Bernardo, primeiro

companheiro de Francisco. Levado pelo estranhamento, durante quase dois anos esteve lendo e querendo

descobrir o “segredo” da “nova vida” de Francisco. E, na medida em que ia lendo, era “lido”, colhido e acolhido

pela inspiração originária. Por isso, quando diz a Francisco que quer viver como ele, Francisco, estava vivendo, o

faz já movido por “esse” espírito. Por outro lado, também Francisco, por estar no movimento dessa mesma

inspiração, sente a necessidade de ler de novo e melhor ainda, agora na pessoa de Bernardo, a forma de vida que

recebera do Senhor. Por isso, em vez de dar ou ensinar a Bernardo uma resposta, propõe irem até a igrejinha da

Poriciúncola a fim de lerem juntos, e de novo, o Evangelho da Pobreza de Cristo e dos Apóstolos que ele,

Francisco, já ouvira e recebera anteriormente na missa de São Matias, na mencionada igrejinha (Cf. LTC 25-29).

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Aqui se trata do interesse no sentido mais originário, que significa ir para dentro da coisa, ela

mesma, assim como se expressa o latim com as palavrinhas: inter (para dentro) e esse (ser).

Textos espirituais, portanto só se compreendem se e quando o leitor se dispuser a ir para dentro

do mistério do encontro que conduz e perfaz o texto. É como nos vitrais de uma igreja. De fora,

por cima ou de longe, nada se percebe ou se pode captar, nada encanta ou arrebata. É preciso

tirar as sandálias, despojar-se de si mesmo e entrar na catedral do mistério que conduz e perfaz

o texto; mistério que, no decorrer dos séculos, vem conduzindo, orientando, formando e in-

formando a Ordem e todos os vocacionados a essa Forma de vida. Só assim, o leitor poderá ser

tomado e arrebatado pelo encantamento do encontro com o vigor de suas imagens, figuras e

apresentações. Enfim, leitura espiritual – formação franciscana – a partir das fontes é, sem mais

e nem menos, exercitar o ver e o sentir simples e imediato na disposição de abertura ao

encontro daquela realidade, força ou espírito que um dia nos encantou ou atropelou, como

encantou e atropelou Francisco, Clara e tantos outros.

Por isso, o caminho formativo, indicado pela segunda parte do título do segundo capítulo desse

estudo Fontes Franciscanas, nossa Formação, situa-se dentro da dinâmica do sine próprio,

expresso em nossa Regra33

e ardorosamente defendido por Francisco até o fim de sua vida,

principalmente em seu Testamento. Tal caminho nada tem de pronto, definido e conhecido.

Tudo – conceitos, princípios, conteúdos, metodologia etc. – está por ser considerado, refletido,

procurado e elaborado, sempre novo e de novo por cada leitor e cada época. Assim, todo

aquele que – com ou sem letras, com cursos ou sem cursos, jovem ou velho – tocado ou

iluminado por algum raio dessa Forma de vida, se dispuser a bem ouvir, bem ler e bem acolher,

ao longo dos anos de sua vida, devota e benignamente, esses Escritos, não há dúvida que verá

um dia desabrochar e florescer também nele o corpo, o ser da existência evangélica

denominada franciscana. Ora, isso, sem mais e nem menos, pura e simplesmente, sem nada pôr

e nem tirar, não é, por acaso, Formação?!

Não há dúvida de que esse seja realmente o caminho por excelência da Formação franciscana.

Pois, se alguém quisesse conhecer profundamente o pensamento de Platão, por exemplo, ou,

melhor ainda, quisesse conhecer e viver o próprio Evangelho, o que seria melhor: ler, estudar,

pesquisar tudo o que outros estudaram, pesquisaram e proclamam ou, pura e simplesmente,

mergulhar por anos a fio, diretamente e corpo a corpo, nos textos do próprio Platão ou do

Evangelho? Evidentemente, o segundo é o melhor, senão o único e verdadeiro caminho para se

chegar ao pensamento de Platão e ao coração da boa-nova de Jesus Cristo34

.

33 Cf. RB I,2: A Regra e a Vida dos Frades menores é esta: observar o santo Evangelho de Nosso Senhor Jesus

Cristo, vivendo em obediência, “sine proprio” (literalmente: sem o próprio, geralmente traduzido por sem nada

de próprio).

34 Cf. Fontes Franciscanas em nossa Formação, uma experiência do espírito, comunicação feita por Ir. Rosa Ada

Morelli, no Congresso internacional São Francisco e as Fontes Franciscanas, promovido pelo IFAN, no Colégio

Bom Jesus, de Curitiba, de 12 a 14 de outubro de 2007.

Acerca do modo próprio de se fazer leitura espiritual, o leitor encontrará diversas orientações no livro Leitura

espiritual e formação franciscana, de nossa autoria, Vozes, 1996. Mesmo assim, vale registrar, aqui, como foi que

Francisco começou a “ler” a realidade, o espírito que começara a persegui-lo. Logo após a visita do Senhor em

forma de sonho, no caminho de Espoleto, ele retorna a Assis, isto é, para sua origem, a fim de ler e interpretar

de novo e de outra forma o sonho que tivera. Isso porque da primeira vez o fizera de modo carnal, isto é, a partir

de sua visão e de seus parâmetros. A partir de então começa a pensar diligentemente sobre a visão que tivera;

começa, também, a recolher-se em si mesmo, considerando e admirando sua força com tanta diligência que,

naquela noite, nem mais quis dormir (Cf. LTC 6).

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Mas, para retomar esse caminho originário da formação franciscana é preciso recordar que nas

FF, seguindo o Evangelho, o conceito de formação, sua metodologia, sua prática etc. pouco ou

nada têm a ver com a busca de informações, saberes, dados, conteúdos ou doutrinas, muito

menos com adestramentos ou de modelos prefixados. Tem a ver, antes, com o processo de

transformação ou conversão que nasce, cresce e amadurece a partir do vigor do encontro, da

Fé, da Entrega e do Amor. Encontro cuja dinâmica leva e conduz o vocacionado para dentro da

atmosfera da audiência diligente e da obediência única e exclusiva àquela dimensão que o toca,

visita e convoca; àquela dimensão (que para nós franciscanos brilha de modo pleno e

consumado na pessoa de Jesus Cristo, pobre e crucificado) para a qual se dispôs seguir como

seu único caminho, sua única verdade, sua única vida, e que, por isso, à semelhança do

casamento, jamais admitirá presença e interferência de terceiros35

.

Concluímos, enfim, com um exemplo em forma de pergunta. Alguém que, diária e continuamente, se

expusesse ao sol não viria, por acaso, a se aquecer e a se iluminar com o calor e a luz de seus raios? E,

para que se processe tal transformação, por acaso a pessoa precisaria saber e conhecer o que vem a ser o

sol, sua história, natureza e propriedades? O mesmo não aconteceria com o seguidor de Francisco que

se colocasse à disposição do calor e da luz dos raios iluminadores de seu espírito ressoante nas Fontes

Franciscanas? Com o tempo não veria florescer também nele, como outrora em Francisco, aquela

Forma de vida evangélica que o transformou de filho de Pedro de Bernardone em filho do Pai nosso

que está no céu?

Conclusão

As FF constituem-se no mais explícito e significativo testemunho da forma, da Regra, do

espelho da vida evangélica franciscana originária. Nelas, por elas e com elas pode-se ouvir

ressoar o ato da paixão de Jesus Cristo que comoveu Francisco, Clara e toda aquela primeira

geração de franciscanos; nelas, por elas e com elas pode-se respirar e transpirar aquele sopro

evangélico que transformou e conduziu Francisco e todos os seus seguidores de todos os

tempos. Nem sempre, porém, nós, seus seguidores, fomos fiéis à sua fidelidade. Vejamos, em

forma de resumo, como através dos tempos veio se dando nossa (in)fidelidade.

– Primeiramente a forma, a Regra de vida, o Espelho da perfeição evangélica transpiravam tão

forte e originariamente em Francisco que, enquanto ele viveu, era nele que todos os frades

encontravam sua formação. Francisco era a forma minorum.

– Logo após a morte de São Francisco os frades continuaram a pôr-se à disposição da forma de

vida evangélica de Francisco, agora através da leitura ou da escuta, principalmente da Regra,

do Testamento, mas, também dos demais textos, hoje denominados de Fontes Franciscanas.

– Essa fidelidade, porém, não durou muito tempo. A partir, mais ou menos, do século 15 até

meados do século passado os frades foram esquecendo e ignorando quase que completamente

as FF no processo de sua formação. Essa passou a beber água de outras fontes e a orientar-se

com a luz de outras inspirações.

– A partir do Vaticano segundo, celebrado em meados do século passado, inaugurou-se um

tempo de reaproximação do processo formador dos frades com as FF. Os frades começa(ra)m a

utilizar-se das FF para subsidiar e comprovar “sua” formação.

35 Cf. Fontes Franciscanas em nossa Formação, uma experiência do espírito, comunicação feita por Ir. Rosa Ada

Morelli, no Congresso internacional São Francisco e as Fontes Franciscanas, promovido pelo IFAN, no Colégio

Bom Jesus de Curitiba, de 12 a 14 de outubro de 2007.

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– Enfim, espera-se que surja um novo tempo segundo o qual, atendendo os novos sinais do

Reino dos céus, as FF sejam retomadas, novamente, como nosso primeiro senão único

formador, como Cristo e seu Evangelho eram o único formador dos Apóstolos e Francisco o

único formador de seus Irmãos. Tempo em que a atual crise da Formação nos leve a vislumbrar

a necessidade de uma viragem – conversão – no que diz respeito à essência de todo o processo

formador: passar do empenho de nossa formação para torná-la, cada vez mais e melhor e tão

somente, um puro corpo de recepção devota, diligente, benigna, humilde e atenta do espírito

originário franciscano e de seu santo modo de operar36

.

Finalmente, concluímos com uma citação de Frei Marcos Aurélio. Comentando a passagem de

2C 191-192, onde Francisco através de uma parábola exorta os Irmãos à unidade originária,

uma unidade que deve dar-se entre frades letrados e iletrados, homens de ciência e os que

sabem agradar a Deus sem a ciência, diz Frei Marcos:

Não se pode concluir que Francisco tenha aceitado a ciência como meio para a ação franciscana, mas a

conclusão mais provável seria aquela de que o letrado, ao entrar no movimento franciscano tinha que

se converter ele mesmo à forma de vida minorítica e à sua simplicidade. Os novos membros da Ordem

deviam se formar seguindo a forma de vida da Ordem e não transformar a Ordem ao seu modo de vida.

Os sábios e os letrados não deviam ter outra meta e outro método do que o de serem simples e

ignorantes37

. O sábio que se apresentava para receber o hábito da pobreza, ele convocava a renunciar,

não apenas aos bens materiais, mas também, de certa maneira, à ciência, para que, desapegado de tudo,

se oferecesse nu aos braços do Crucificado e chorasse seus pecados38

na solidão e no silêncio39

.

36 Cf. RNB cap. II que tem como título Da recepção e das vestes dos irmãos.

37 Nota do articulista: Ignorante aqui não significa abobado, mas aquele que está na dinâmica do sábio que sabe

que não sabe.

38 Nota do articulista: Mais do que pecados morais, aqui se trata de pecado religioso, isto é, de não amar Aquele

que nos amou por primeiro.

39 Fernandes Frei Marcos Aurélio, ofm, Pensadores Franciscanos, paisagens e sendas, IFAN, 2007, p. 113.

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Da inacessibilidade e da jovialidade

Leonardo Ulrich Steiner

Bispo da Prelazia de São Félix do Araguaia

“O senhor... Mire e veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas

não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre

mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior. É o que a vida me ensinou. Isso me

alegra montão.”1 Vamos mudando, transformando, responsabilizando-nos, com as

iluminações, aberturas, inspirações, que nos atingem. É graça! Iluminações, inspirações,

nascidas das trilhas, das veredas, que o espírito suscitou e suscita no coração de seus

amados. “No trilhar, as veredas levam ao seu destino os habitantes da Terra”2, abrindo-

lhes cada vez de novo paisagens ainda não visitas, não experimentadas.

Não estamos prontos, estamos sempre a caminho! Caminho que o Senhor concede e faz

fazer. Faz fazer em dialogando com o mestre e os companheiros da mesma busca. A

mesma busca que nasce do encontro!

1. Da inacessibilidade

Diz o Apóstolo: esta manifestação será realizada, a seu tempo pelo bem-aventurado e

único Soberano, o Rei dos reis e Senhor dos Senhores, o único que possui a

imortalidade, que habita numa luz inacessível, que ninguém viu nem pode ver! (1Tm

6,16).

O pivô da questão é entender que os textos espirituais, o Evangelho, só falam do

encontro. Os textos espirituais, o Evangelho não estão falando de fatos-coisas, não é

narração das histórias do passado! São Histórias de encontro!

O Pai habita numa luz inacessível, que ninguém viu nem pode ver! O Pai habita numa

luz inacessível?3 O que quer dizer que Deus habita numa luz inacessível? Não é

acessível, não é tocável, não se pode alcançar?

1 GUIMARÃES ROSA, J., Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 32a. ed.

1988, p. 16.

2 HARADA, H. em Pensadores franciscanos. Bragança Paulista: Edusf, 2007, p. 11.

3 Primeira admoestação de São Francisco: Disse o Senhor Jesus aos seus discípulos: “Eu sou o caminho,

a verdade e a vida. Ninguém chega ao Pai senão por mim. Se me reconhecêsseis, conheceríeis também o

Pai. Doravante o conheceis porque o vistes. Disse-lhe Filipe: “Senhor, mostra-nos o Pai e isto nos

basta”. Jesus respondeu-lhe: “Há tanto tempo estou convosco e não me conheceis? Filipe, quem me vê,

vê também meu Pai. (Jo 14,6-9). “O Pai habita numa luz inacessível” (1Tm 6,16), e: “O espírito é Deus”

(Jo 4,24) e “ninguém jamais viu a Deus” (Jo 1,18). Se Deus é espírito, só em espírito pode ser visto; pois

“o espírito é que dá a vida, a carne não aproveita para nada” (Jo 6,63). Mas também o Filho, sendo

igual ao Pai, não pode ser visto por alguém de modo diferente que o Pai e o Espírito Santo. Por isso são

réprobos todos aqueles que viram o Senhor Jesus Cristo em sua humanidade sem enxergá-lo segundo o

espírito e a divindade e sem crer que ele é o verdadeiro Filho de Deus. De igual modo são hoje em dia

réprobos todos aqueles que – embora vendo o sacramento do corpo de Cristo que, pelas palavras do

Senhor, se torna santamente presente sobre o altar, sob as espécies de pão e vinho, nas mãos do

sacerdote – não olham segundo o espírito e a divindade, nem crêem que se trata verdadeiramente do

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Usualmente, quando falamos de inacessível, estamos representando um lugar ou uma

coisa que está longe, bem longe ou de difícil acesso. Inacessível eram os doces que

nossa mãe fazia e escondia em cima do armário quando éramos crianças e não podíamos

alcançar; a lua até os anos sessenta; os estudos na universidade quando morávamos no

interior; o velho distante. Inacessível como contrário do acessível, do próximo, do

possível, do alcançável, tocável, do poder dominar e possuir. Acessível como poder

relacionar-se com a pessoa que na sua aparência é distante. Inacessível significa, então,

algo que por estar longe de mim ou no lugar a onde eu não consigo chegar, torna-se

impossível de ser pego, ser possuído ou ser tocado por mim, a partir de mim. Mas que

se eu tivesse uma escada ou houvesse um modo, um caminho, eu o alcançaria, eu

tocaria.

A inacessibilidade de Deus seria, então, como o ainda não possível, mas um dia

possível, pelo menos depois da morte.

Esse tipo de inacessibilidade na realidade não é o inacessível do qual fala Paulo de

Tarso e afirmado por Francisco de Assis. Esse tipo de inacessibilidade a partir de mim,

de fato, poderia ser alcançado. Só não o é de fato, por não ter no momento uma

possibilidade. Nesse caso dizemos: é inacessível. Mas quem sabe um dia agente chega

lá, se conseguirmos um dia abrir um caminho. Esse tipo de inacessível é ainda acessível

ao homem como possibilidade. O texto de 1 Timóteo está falando de outro tipo de

inacessibilidade. É a inacessibilidade do encontro.

O encontro do qual, na dimensão do espiritual, se fala da inacessibilidade, é outro do

que aquele que costumamos chamar de: encontro de jovens, encontro de família,

encontro dos presbíteros, encontro de paróquias, e assim por diante. Esses encontros são

sinais e memória do encontro do qual falam os textos espirituais.

Encontro como inacessibilidade é um modo todo próprio de abertura da pessoa humana.

Encontro como inacessibilidade não tem divisão e poderia ser descrito no encontro da

relação eu-tu. Martin Buber busca demonstrar o encontro do na fala encontro entre o tu-

eu.4 Entre o eu-tu, o encontro é sem proximidade e sem divisão. O outro é somente tu e

enche o céu e a terra. Não porque não existe nenhum outro, mas porque tudo vive na

luminosidade do tu.5 Viver na luminosidade do tu é nem mesmo pronunciar o nome tu.

corpo e do sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo. Atesta-o pessoalmente o Altíssimo quando diz: “Este é

o meu corpo e o sangue da nova Aliança” (cf. Mc 14,22); e: “Quem comer a minha carne e beber o meu

sangue terá a vida eterna” (cf. Jo 6,55). Por isso é o Espírito do Senhor, que habita nos seus fiéis, quem

recebe o santíssimo corpo e sangue do Senhor (cf. Jo 6,62). Todos aqueles que não participam desse

espírito e, no entanto, ousam comungar, “comem e bebem a sua condenação” (1Cor 11,29). Portanto, “ó

filhos dos homens, até quando tereis pesado coração?” (Sl 4,3). Por que não reconheceis a verdade

“nem credes no filho de Deus” (Jo 9,35)? Eis que ele se humilha todos os dias (Fl 2,8); tal como na hora

em que, “descendo do seu trono real” (Sb 18,5) para o seio da Virgem, vem diariamente a nós sob

aparência humilde; todos os dias, desce do seio do Pai sobre o altar, nas mãos do sacerdote. E como

apareceu aos santos apóstolos em verdadeira carne, também a nós se nos mostra hoje no pão sagrado. E

do mesmo modo que eles, enxergando sua carne, não viam senão sua carne, contemplando-o contudo

com seus olhos espirituais creram nele como no seu Senhor e Deus (Cf. Jo 20,28), assim também nós,

vendo o pão e o vinho com os nossos olhos corporais, olhemos e creiamos firmemente que está presente o

santíssimo corpo e sangue vivo e verdadeiro. E desse modo o Senhor está sempre com os seus fiéis,

conforme ele mesmo diz: “Eis que estou convosco até a consumação dos séculos” (Mt 28,20).

4 BUBER M., Io e tu, in: Il Principio dialogico e altri saggi. Milano: San Paolo, 1993.

5 Cf. BUBER, M. Io e tu, p. 64.

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O dizer, o descrever, o pintar, vem depois da experiência do encontro. O eu e o tu

apenas se encontram, apenas estão aí. Por isso, a verdadeira relação entre o eu e o tu

nasce do encontro. Não existe uma pré-compreensão. É somente encontro, onde cada

um é iluminado e ilumina o outro, dando sentido de totalidade, isto é, cria todo o

universo. No encontro não existem momentos, nem antes, nem depois. É! O antes e o

depois são a partir do encontro. Nesse sentido o encontro tem um sentido de absoluto,

sem momentos, puro movimento, puro acontecer, onde tu e eu não são o eu e o tu, mas

ao mesmo tempo não deixam de ser na diferença.

Nesse sentido, o encontro é puro toque, puro golpe, é tudo num toque, num só golpe.

No tudo, tudo é, o cada um, no que é, sem nada deixar de ser, o é, sem ainda saber que

é. E, em sendo, o homem é somente toque de encontro. E tudo é sustentado na

gratuidade do mistério do próprio toque, que se deixa tocar e se desvela numa unidade

onde tudo apenas é.

O encontro, como foi descrito, pode ainda dar a impressão de termos a possibilidade de

fazer acontecer o encontro. Na experiência cristã, encontro significa uma

impossibilidade da nossa parte: a iniciativa é de Deus, não nossa. Ao abrimos a Sagrada

Escritura nos surpreende o modo da narrativa.

No Evangelho de Lucas o primeiro encontro é o do anúncio do nascimento de João

Batista. Lá está Zacarias no exercício de suas funções oferecendo o incenso no santuário

do Senhor. E apareceu-lhe um anjo do Senhor, de pé, à direita do altar do incenso. Ao

vê-lo Zacarias se perturbou e teve medo. Mas o mensageiro lhe disse: Não tenhas

medo, Zacarias, porque foi ouvida a tua oração. Isabel, tua mulher, vai dar à luz um

filho a quem darás o nome de João (Lc 1,5-18).

E no sexto mês, o anjo Gabriel foi enviado da parte de Deus para uma cidade da

Galiléia, chamada Nazaré, a uma virgem, prometida em casamento a um homem,

chamado José da casa de Davi. O nome da virgem era Maria. Entrando, disse-lhe o

anjo: Alegra-te, cheia de graça. O Senhor é contigo. ... O anjo lhe falou: Não tenhas

medo Maria, porque encontraste graça diante de Deus. Eis que conceberas em teu seio

e darás à luz um filho e lhe darás o nome de Jesus... (Lc 1,26-34).

E poderíamos perpassar todos os evangelhos e, surpresos, poderíamos numa frase

repetir: Não fostes vós que me escolhestes, fui eu que vos escolhi. A iniciativa é sempre

de Deus que nos amou primeiro! (1Jo 4,19). Não fomos nós que amamos a Deus, mas

ele nos amou primeiro. Nisto consiste a sua inacessibilidade.

É a narrativa do encontro onde a iniciativa não está na possibilidade da pessoa. No

encontro somos encontrados, não encontramos. No encontro chegamos sem depois,

chegamos sempre tarde.

Essa impossibilidade absoluta de nós, a partir de nós mesmos nos achegarmos a ele diz

uma realidade absolutamente positiva: O Senhor nos amou antes de toda e qualquer

possibilidade nossa; que ele veio a nós a partir dele mesmo; que ele nos tocou; que ele

nos veio livremente ao e de encontro. Nenhuma possibilidade da nossa parte de

buscarmos; ele nos buscou, nos tocou, isto é, ele nos amou primeiro. A inacessibilidade

de Deus como encontro está no amor.

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O encontro, como antecipação de Deus, aparece na homilia 79 de Mestre Eckhart quando pergunta:

“Então podereis dizer: ‘Onde está este Deus a quem todas as criaturas perseguem, de quem possuem seu ser e sua vida?’ Falo com gosto da deidade, pois toda nossa bem-aventurança eflui dali – O pai diz: ‘Meu filho, vou gerar-te hoje no resplendor dos santos’ (Sl 109,3). Onde está esse Deus? ‘Eu estou detido ali na plenitude dos santos’ (Ecl 24,6) Onde está esse Deus? No Pai. Onde está esse Deus? Na eternidade. Ninguém jamais poderia ter encontrado a Deus, como diz o sábio: ‘Senhor, tu és o Deus abscôndito’ (Is 45,15) Onde está esse Deus? Exatamente como um homem que se esconde, mas aí tosse de leve e com isso denuncia a si mesmo, assim também fez Deus. Ninguém jamais poderia ter encontrado Deus; mas agora ele mesmo se denunciou”6.

A inacessibilidade como denúncia de Deus de si mesmo, é o que Nicolau de Cusa assim expressa: Deus est non aliud (Deus é não-outro)7. Isto é: Deus é tão diferente de e ao mesmo tempo não é diferente de, tão próximo de nós, tão um de nós, tão anterior a nós que dele nem sequer podemos dizer que ele é inteiramente diferente, outro que nós mesmos! Deus est non-aliud = Radical-Outro! O radical-outro diz do modo da antecipação de Deus. Não apenas toma a iniciativa, não apenas se antecipa, não apenas nos amou primeiro, mas até nos espanta o modo como ama por primeiro. Na antecipação do amor ele se fez não-outro.

O encontro, como antecipação de Deus, por ele nos ter amado primeiro vem dito por

Nicolau de Cusa como: Deus est non aliud. Deus é não-outro8. Isto é: Deus é tão

diferente de e ao mesmo tempo não é diferente de, tão próximo de nós, tão um de nós,

tão anterior a nós que dele nem sequer podemos dizer que ele é inteiramente diferente,

outro que nós mesmos! Deus est non-aliud = radical-outro! O radical outro diz do modo

da antecipação de Deus. Não apenas toma a iniciativa, não apenas se antecipa, não

apenas nos amou primeiro, mas espanta o modo como ama por primeiro. Na

antecipação do amor, ele se fez não-outro.

O não-outro é palpável, perceptível, no mistério da encarnação. Deus nascido da mulher

torna-se tão papável, tão visível, tão audível que já não falam mais profetas, mas o Filho

como nosso filho. A criança envolta em faixas e deitada numa manjedoura é o não-

outro! O menino envolto em faixa e deitado numa manjedoura é a luz que brilha nas

trevas, na escuridão da noite do medo, das incertezas humanas, dos conflitos e

desânimos. A criança envolta em faixas e deitada na manjedoura é singeleza de Deus,

simplicidade de Deus, pobreza de Deus, nobreza e ternura de Deus. O recém-nascido,

carne da nossa carne, osso dos nossos ossos, sangue do nosso sangue, é antecipação, é o

amor livre e gratuito, visibilizado no meio de nós: não-outro!

O não-outro é a inacessibilidade! Ele se tornou acessível, tão acessível a ponto de nós o

podermos chamar de Abba, o podermos pegar na mão e comer, fazer Dele o que bem

quisermos. Se assim nos é dado fazer é porque ele gratuitamente, livremente se nos deu,

6 METRE ECKHART. Sermões alemães II, tradução Enio Giachini, Bragança Paulista/Petrópolis:

Editora Universitária São Francisco/Editora Vozes, 2008, p. 103.

7 Cf. CUSA, Nicolau de. De non-aliud, Philosophisch-Theologische Schriften, Bd II, Wien, 1989.

8 Cf. NICOLAU DE CUSA, De non-aliud. Philosophisch-Theologische Schriften, Bd II, Wien, 1989.

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na nossa humanidade e fragilidade. Essa gratuidade não é nossa conquista, não é nosso

domínio, não o é porque ainda de fato não encontramos um meio de dominá-lo, mas

porque pertence à essência íntima da gratuidade da liberdade de encontro.

Inacessibilidade de Deus porque amou antes que fosse amado, desejou antes que fosse

desejado, tocou antes que fosse tocado, veio ao encontro antes que fosse percebido. E

tudo gratuitamente, sem desejo de ser correspondido, sem cobranças, sem obrigações,

sem arrependimentos, sem cobranças de ser amado, sem nada que não conotasse apenas

que livremente, gratuitamente ama.

A impossibilidade absoluta de nós, a partir de nós mesmos nos achegarmos a ele diz,

então, uma realidade absolutamente positiva: que ele nos amou antes de toda e qualquer

possibilidade nossa; que ele veio a partir dele mesmo; que ele nos tocou; que ele nos

veio livremente ao e de encontro. Isto é: que, se ele se nos tornou acessível, tão

acessível a ponto de nós o podermos chamar de Abba, é porque ele gratuitamente,

livremente se nos deu. Essa gratuidade pertence à essência íntima da gratuidade da

liberdade de encontro. Nesse sentido: a resposta que nós vamos dar a Deus, o nosso sim

do encontro é também inacessível ao próprio Deus, pois, o amor do encontro jamais

pode ser possuído, conquistado como uma coisa sobre a qual tenho a partir de mim um

poder e domínio! É inacessível, pois trata-se de doação livre de benevolência.

Diante da doação livre de benevolência, São Francisco diz: Portanto, “ó filhos dos

homens, até quando tereis pesado coração?” (Sl 4,3) (Adm 1). Como se dissesse: será

que não se percebe que a única possibilidade nossa de ver a Deus inacessível é gratidão

profunda diante desse amor humilde de Deus que vem de encontro?

Gratidão é próprio de quem se apercebe agraciado, cuidado, acolhido. Gratidão nasce

em quem foi e é amado gratuitamente. Um amor sem porque, sem para que, sem

justificativas, sem saber por que amou. Ama! Quem se apercebe de tal cuidado, de tal

graça, de não ser merecedor de tal graça e de tal acolhida, da gratuidade do amor, é

tocado pela gratidão que o não-outro suscita. A suavidade do coração-doação de livre

benevolência busca a correspondência amorosa. Correspondência como busca do

mesmo modo de amar na liberdade, na gratuidade.

Com outras palavras: a inacessibilidade num sentido rigoroso e absoluto só pode se

referir ao fenômeno de encontro de pessoas: na doação da liberdade.

Por isso atitudes como essa: prove que eu creio; quero ver como é isso; é impossível de

compreender, desânimo etc. etc... são todas atitudes de quem acha que é de sua

competência poder fazer o encontro acessível a partir de si. O encontro só é acessível na

recepção grata e humilde de amor.

Tu Senhor, palavra eterna e criadora, esperança e o esperado das nações, o implorado

por todas as gerações és agora, hoje e sempre o Emanuel, Deus conosco; palavra visível,

princípio, início, sentido de tudo o que somos e temos! Palavra não mais anunciada

pelos anjos, nem pelos profetas, mas viva e visível, audível, no meio de nós como

palavra criança. Palavra sem força, sem poder, sem grito, sem som, apenas gemido e

silêncio na criança que dorme.

Tu Senhor, palavra eterna criança, criadora de um novo céu e uma nova terra não mais

te imploramos, nem sequer te buscamos, nem mesmo te nomeamos. Silenciosamente

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108

apenas te olhamos, te admiramos, te cuidamos, te reverenciamos. Pois, como a um filho

te ouvimos e te carregamos com nossos olhos, em nossos braços, em nosso regaço.

2. Da jovialidade9

Diz o apóstolo: Embora fosse de divina condição, Cristo Jesus não se apegou

ciosamente a ser igual em natureza a Deus Pai. Porém, esvaziou-se de sua glória e

assumiu a condição de um escravo fazendo-se aos homens semelhante. Reconhecido

exteriormente como homem humilhou-se, obedecendo até à morte e até a morte

humilhante numa cruz. (Fl 2,6-11)

A cruz como jovialidade da gratuidade na finitude - O cristianismo anuncia o sentido da

cruz. Como? Pelo “mysterium paupertatis”, que é a encarnação, eucaristia e cruz de

Nosso Senhor Jesus Cristo. O rei da glória não achou coisa mais preciosa do que a

condição humana-cruz, por isso deixou tudo o que era glória, onipotência..., se fez

homem.

A pobreza “evangélica” é o sentido do ser amado, vivido, realizado e ensinado por Jesus

Cristo confirmado pela morte na cruz. Esse sentido se chama pobreza porque o seu

modo de ser pode começar a ser descrito como: “sine proprio”, sem o próprio. Costuma-

se entender esse sem o próprio como nada possuir, isto é, nada ter, nada poder, nada ser.

Essa compreensão usual deixa escapar um ponto essencial, pois “sine próprio” não diz

nada ter, nada poder, nada ser. Diz antes: tudo ter, tudo poder, tudo ser “sine próprio”,

isto é, somos tudo porque tudo recebemos; estamos na imensa fluência do Pai, somos

unos com ele; inteiramente dispostos, abertos, embalados, sustentados por, pulsando,

agindo, pensando, sentindo, sendo nele, com ele, por ele. Essa sintonia, essa união, esse

com-o-Pai, esse ser-no-Pai, é a essência, a identidade do homem, a sua grandeza, a sua

imortalidade. É a inocência originária, Adão no Paraíso, total obediência à vontade do

Pai.

A nossa dificuldade é entender com precisão esse modo de ser originário, pois o

entendemos já a partir do modo de ser onde não há mais essa obediência paradisíaca.

Entendemos esse ser-no-Pai como se fosse a realização plena do estado de onipotência,

onisciência, do bem-estar material e “espiritual” do humanismo super-homem.

Pensamos: Adão não morria, não adoecia, não precisava trabalhar, podia tudo o que

queria. Era realizado! ... E se a “coisa” fosse bem diferente? Se a realidade fosse assim

que o homem originário morria, se machucava, envelhecia, tinha que trabalhar, se não

comia tinha fome... Mas, então, onde está a sua grandeza, a sua imortalidade se ele era

mortal como qual quer um de nós? A sua grandeza, a sua imortalidade estava em ele

ser-um-com o Pai, com todo o seu entendimento, com toda sua vontade, com todas as

suas forças, com todo o seu sentimento, com todo o seu ser.

Com infinita gratidão e amor tudo recebia como graça de amor do Pai. Esse encontro

com o Pai, buscado, querido, trabalhado, acolhido e conquistado sempre de novo era a

sua imortalidade; “Sine próprio”, isto é, nada ser, nada ter, nada poder a não ser pura e

9 O presente texto tem como título original: Jesus Cristo pobre: a cruz como jovialidade da gratuidade na

finitude. Foi extraído da apostila O Seguimento de Nosso Senhor Jesus Cristo, “o modo de viver

religioso”; textos de Hermógenes Harada compilados por Fernando Manzon, bispo de Piracicaba, SP.

Com algumas pequenas modificações e as citações da Sagrada Escritura, incluímos na publicação em

agradecimento pelos 80 anos.

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109

limpidamente encontro com o Pai. Essa existência interpretava todos os seres, todos os

acontecimentos, todas as necessidades da vida e do universo, os trabalhava, os

elaborava, os transformava, os dominava, os coordenava para um mundo e uma

humanidade cada vez melhor: um novo céu e uma nova terra. Essa existência era força e

dinâmica do encontro como Pai.

Um dia, porém, o homem quis mais. O encontro com o Pai era pouco. “O que me

adianta o amor do Pai que me amou primeiro, se eu continuo morrendo, se continuo na

dependência da minha mortalidade, se não sou como deuses imortal a meu modo? Ele

não é amor? Por que me dá uma porcaria de encontro que não enche a barriga de

nenhum mortal? Que ele me faça imortal, que ele me tire da cruz da mortalidade e assim

prove que ele me ama realmente; só então acreditarei nele e o amarei”.

Foi então que a pobreza, isto é, a existência-encontro com o Pai começou a ser

desprezada como indigna do homem, como algo que deveria ser combatido, até o dia

em que Jesus Cristo carregando todas as “cruzes” (negatividades) do universo,

esmagado sob o peso de mortalidade, na cruz, gritou ao Pai que o ama

incondicionalmente.

Não é esta a identidade perdida do homem, muito querida por Deus? Não é em Jesus

Cristo, na cruz, que o homem se encontra com a sua origem mais originária: a

semelhança com Deus? Pois então se alguém quiser ser discípulo dele, está na

necessidade de negar-se a si mesmo, tomar sua cruz todos os dias e seguir o Senhor

Crucificado.

A cruz é o símbolo fundamental do viver cristão!

Símbolo aqui não significa tanto um sinal, uma indicação, mas sim o vigor de

identidade da realidade ela mesma. Como entender isso? Símbolo vem do verbo grego

syn-bállein. Syn significa: recolhimento, ajuntamento no vigor do uno, na dinâmica do

uno. Syn é a unidade interior de um movimento. A palavra bállein está na palavra

moderna ballet, balística e significa lançar. Lançar como no movimento do ballet. Os

elementos do ballet se lançam em diferentes movimentos, posições, abrem-se, fecham-

se em círculos, formando sempre de novo diversos caminhos, novas constelações de

movimento. É o movimento do lance, da jogada, o bállein.

No entanto, em tão diversas modalidades de movimento, em tantas diferenças há sempre

uma coerência que une, ordena todos esses movimentos na unidade dinâmica, precisa e

graciosa que não é nenhuma coisa, não é nenhuma norma, mas sim o vigor reinante na

totalidade do ballet: o syn. Syn é, pois, o fundamental da vida do ballet.

Nossa vida é também um ballet. Fazemos isso e aquilo. Lançamo-nos nisso e naquilo,

de vários modos, de diferentes posições... O que une todas essas diferenças na unidade

interior do fundamental da nossa vida, como seguidores de Jesus Cristo? A jovialidade

da cruz!

Jovialidade aqui não deve ser entendida como alegria do sorriso da publicidade, nem

como aquilo que se opõe a tristeza e a dor. É antes sinônimo de cordialidade.

Jovialidade vem da palavra jovial + idade. “idade” significa: a essência, a força, o vigor

de alguma coisa. Jovialidade é, pois, o vigor, a essência do ser jovial.

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110

Jovial por sua vez não deve ser entendido no sentido de um sujeito sempre sorridente,

uma espécie de bobo-alegre. Jovial vem de Jovis. Jovis é Deus, o divino. Pois Jovis é o

Deus supremo dos gregos, o Deus da força do dia.

A palavra juventude vem também de Jovis. Juventude aqui não deve ser entendida

como qualidade de uma idade biológica. Antes devemos interpretar a juventude a partir

da jovialidade. É jovem não aquele que tem idade nova, mas sim aquele que tem o vigor

de Jovis, o vigor de Deus. E nesse sentido que Deus é aquele que alegra a nossa

juventude, isto é, a vitalidade do nosso ser.

Jovialidade é, portanto, o vigor de Deus, o modo de ser específico de Deus, a qualidade

de Deus. Como é esse modo de ser de Deus, o modo de ser da jovialidade? É como a

cruz de Jesus Cristo.

Como é a cruz de Jesus Cristo? O que nos diz a cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo?

A cruz consiste na condenação da parte de Deus do próprio empenho da cruz. O

Crucificado se sente rejeitado por Deus: Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?

Mas, é nessa terrível e cruel condenação que está a jovialidade? O que se deu então na

cruz de Jesus Cristo para ser recordação, isto é, o reviver da cordialidade, participação

da jovialidade?

No momento da rejeição, Cristo nada mais tem de si, tudo nele é sem valor, a própria

autenticidade, o próprio sacrifício. Nessa total pobreza, sem direitos, sem méritos, Jesus

Cristo tenta doar-se ao Pai que o condena. Suspenso entre o céu e a terra, sem terra e

sem céu, sem Deus, ele tentando só amá-lo, gratuita, cordialmente, apenas atraído pela

afeição, sem por que, sem nada saber, só, amor: Nas tuas mãos eu entrego o meu

espírito.

Imitar assim, re-produz o modo de ser de Deus; amar assim do mesmo jeito que Deus

ama todos os seres. Deus nos ama, não porque somos bons, não porque lhe retribuímos

o bem, mas apenas, simplesmente, porque ele e bom. No instante em que Cristo imita o

Pai e o ama apesar de, por causa da condenação, Deus diz: Eis o meu filho que tem o

mesmo modo de ser do meu amor; eis o meu filho que ama como eu amo, na

jovialidade, na gratuidade, na cordialidade de ser. Eis a revelação do meu amor.

É esse amor que é a jovialidade, é esse amor que dá o ser, a vida a todas as coisas, que

tudo conserva, faz crescer, se consumar no mistério de ternura e benignidade da Vida,

que dá sentido à morte, ao sofrimento, salvando tudo como a manifestação do amor de

Deus. Essa jovialidade de amar nada exige, de nada se faz senhor, não se eleva, apenas

ama, livre, gratuitamente como a mãe ama o seu filho. Esse modo de amar é humildade

de Deus, a servidão, o servir, a submissão de Deus no amor. Por isso, Deus é o servo e o

súdito de toda humana criatura. E aquele que o imita, que tenta ser do mesmo jeito, é o

servo, o submisso, o humilde, o irmão menor de todas as coisas.

A cruz é o desabrochar da ex-sistência de Jesus Cristo, o radicalmente sem por que, sem

para quê, abertura originária como o medium da acolhida, a gratuidade. Esse medium, a

gratuidade é o medium do Pai: Eu e o Pai somos um.

Mas o que é afinal a gratuidade? Não é possível responder a essa pergunta, porque a

gratuidade não é como algo, alguma coisa. Ela só é na concreção como vigor e pudor da

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111

própria concreção: a jovialidade. Na impossibilidade de dizer o que é a gratuidade,

deixemo-nos referir ao aceno da jovialidade como o risco de dizer demais ao nada dizer.

“A rosa é sem por quê. Ela floresce ao florescer”, é o verso de Angelus Silesius.10

A

rosa aberta sem por quê no orvalho da manhã: a alegria que acolhe o coração do mortal

no frescor e na nascividade da inocência matinal. Por que a rosa e útil ao homem, por

que o homem descansa, por que se alegra na sua cercania? O mortal descansa, respira

mais livre, se alegra, renasce, porque é acolhido e recolhido no desvelamento da

inocência da natureza: no recato e na jovialidade de ser. A natureza aqui, no entanto,

não é uma região do ente em oposição ao homem. natureza é a nascividade, a liberdade

do mistério. E a própria estrutura da presença que constitui o frescor, a limpidez, a

inocência, a transparência e a graça de todas as coisas. É, a partir dessa liberdade do

mistério que é o amor, a ternura, a benignidade, o rigor, a coragem, e sinceridade:

liberdade do mistério e a jovialidade de ser.

A jovialidade é paciente, é benigna, ela não é invejosa, a jovialidade não é jactanciosa,

não se ensoberbece, não é desconte, não é interesseira, não se irrita, não guarda rancor;

não se alegra com a injustiça, mas compraz-se na verdade: tudo desculpa, tudo crê, tudo

espera, tudo tolera (1Cor 13,4-7). Isso é a jovialidade, o aceno de gratuidade, a

referência da essência do mistério que perfaz a presença de Deus: a vontade do Pai. É só

nisso que é tudo, apenas nisso que é o modo de ser de Deus, e nisso que consiste e

pobreza evangélica ou pobreza em espírito.

Se é assim, a vontade do Pai, a vigência de Deus, a pobreza evangélica é como a rosa,

sem por quê. O seu poder não é poder de dominação, mas a presença acolhedora da

gratuidade que tudo libera e vivifica na ternura, no vigor e no recato de sua jovialidade.

Por isso, ao se dar na gratuidade não humilha, não se gloria, não domina o agraciado

como doador, como superior, mas ao se dar se retrai na sua humildade com recato, qual

um servo para com o seu senhor! É a sua única “dominação” é a limpidez da sua

gratuidade na inocência nasciva, que se expõe como graça, como liberdade da doação.

A revelação do mistério dessa jovialidade do amor de Deus, e Deus do de amor, é a cruz

de Jesus Cristo. Portanto, longe de ser um “masoquismo” da passividade religiosa, a

cruz é a exposição originária do manancial da vida, na limpidez e no vigor de sua

inocência. Por ser a cruz exposição do vigor da inocência originária do mistério, ela está

disposta simplesmente ali, sem nenhuma defesa, abandonada: a liberdade da gratuidade.

E isto é o poder da autofidelidade do mistério, o poder de sua auto-identidade: ele pode

ser ele mesmo e nada mais.

A acolhida da jovialidade do mistério é ser-criatura. Ser-criatura é ser irmão de Jesus

Cristo, e saber, ser como ele, Filho do Pai, da vontade do Pai, isto é, do mistério da

gratuidade na gratuidade do mistério. É ser a partir e dentro do medium de liberdade, ter

a mesma natureza, isto é, nascividade, na qual o Pai e o Filho e a criatura são recolhidos

na referência do mistério.

É na gratuidade do mistério que tudo floresce singelo na perfeita alegria de ser: na

graça. E, na graça dessa jovialidade, a dor da Terra dos homens é acolhida como

10 Angelus Silesius, pseudônimo de Johan Schäffler que viveu de 1624 a 1677.

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112

encarnação, como ósculo de reconciliação do céu e da terra, na cruz de Nosso Senhor

Jesus Cristo.

O que é a gratuidade? Na impossibilidade de dizer o que é a gratuidade, silenciemos

dizendo na singeleza: Ela é a jovialidade, é cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo, é

pobreza evangélica.

3. Da casa da gratuidade

A palavra de Jesus no encontro e na jovialidade repercutem de modo todo próprio.

Um pai tinha dois filhos. O mais novo disse ao pai: pai dá-me a parte da herança que me cabe. E

ele repartiu a sua herança. Poucos dias depois o filho mais novo reuniu o que era seu e partiu

para um país distante, onde dissipou a sua fortuna, vivendo dissolutamente. Depois de ter

esbanjado tudo, sobreveio àquela região uma grande fome: e ele começou a passar penúria. Foi

pôr-se a serviço de um dos habitantes daquela região, que o mandou cuidar dos porcos. Desejava

fartar-se das vargens que os porcos comiam, mas nem mesmo isso lhes davam. Então caiu em si

e disse: “Quantos empregados do meu pai têm pão com fartura, e eu aqui, morrendo de fome.

Vou-me embora, vou voltar para meu pai e dizer-lhe: Pai, pequei contra Deus e contra ti; já não

mereço ser chamado teu filho. Trata-me como a um dos teus empregados”. Então ele partiu e

voltou para seu pai. Quando ainda estava longe, seu pai o avistou e sentiu compaixão. Correu-lhe

ao encontro abraçou-o e cobriu-o de beijos. O filho disse ao pai: pai pequei contra o céu e contra

ti; já não sou digno de ser chamado de teu filho. Mas o pai disse aos servos: trazei de pressa a

melhor túnica e vesti-o; colocai um anel no dedo e calçado nos pés. Trazei um novilho gordo e

matai-o; comamos e festejemos. Este meu filho estava morto e tornou a viver, estava perdido e

foi encontrado. E começaram a festa. O filho mais velho estava no campo. Ao voltar e

aproximar-se da casa ouviu a música e as danças. Chamou um dos servos e perguntou-lhe o que

estava acontecendo. Ele explicou: teu irmão voltou e teu pai mandou matar um novilho gordo,

porque o reencontrou são e salvo. Encolerizou-se e não quis entrar. Mas seu pai saiu e insistiu

com ele. Então ele respondeu ao pai: Eu trabalho para ti há tantos anos, jamais desobedeci a

qualquer ordem tua. E tu nunca me deste um cabrito para eu festejar com meus amigos. Quando

chegou este teu filho, que esbanjou teus bens com prostitutas, matas para ele o novilho cevado.

Disse-lhe o pai: Filho tu estás sempre comigo, e tudo o que é meu é teu. Mas era preciso festejar

e alegrar-nos, porque este teu irmão estava morto e tornou a viver; estava perdido e foi

encontrado (Lc 15,11-32).

Acostumamo-nos à exortação, à convocação e à conversão que o texto provoca; e,

assim, recordamos o distanciamento, o estar longe da casa, de ter esbanjado a herança

de filhos de Deus que nos cabia; diante da narrativa somos conduzidos ao retorno,

somos aqueles que no arrependimento de termos vivido dissolutamente agora voltam

para o aconchego do perdão e da misericórdia. Mas dissemos tudo da parábola ouvida?

Jesus se encontra com os pecadores e faz refeição com eles, é misericórdia para eles.

Jesus visita os pecadores e se senta à mesa com eles, se faz misericórdia. É diante dos

pecadores e dos fariseus e mestres da Lei que Jesus conta a parábola do pai que tinha

dois filhos.

A família é tudo no tempo de Jesus: lugar de trabalho e sobrevivência, fonte de

identidade, garantia de seguridade e proteção. Era muito difícil sobreviver fora da

família. Mas também era muito difícil uma família subsistir isolada das demais. As

aldeias eram formadas por famílias unidas por laços de parentesco, de vizinhança e

solidariedade. Juntos preparavam os casamentos de seus filhos, se ajudavam

mutuamente para as colheitas, para reparar os caminhos, se uniam para proteger a

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viúvas e os órfãos. Os problemas e os conflitos familiares repercutiam na aldeia. 11

Quando Jesus começa a falar, todos sabem das dificuldades, mas o pedido do filho mais

novo é imperdoável. Ao exigir a parte de sua herança, ele está declarando a morte de

seu pai, rompe a solidariedade da família e joga por terra a sua honra. Como um pai

vivo vai repartir a sua herança? Como dividir a herança colocando em perigo a

sobrevivência de sua família? O que o filho mais novo pede é uma loucura, um

disparate.

E o pai? Nada diz. Respeita o pedido descabido do filho e reparte a herança. Que tipo de

pai é esse que não impõe a sua autoridade, que não exige do filho que permaneça em

casa? Como pode aceitar a loucura do filho perdendo a própria dignidade e colocando

em perigo toda a família?

Num país distante, atingido pela fome, só, sem família, sem proteção, termina como

escravo de um pagão cuidando de porcos. A sua degradação não poderia ser maior: sem

liberdade, sem dignidade alguma, numa vida infra-humana em meio aos animais

impuros. Ao trabalhar com animais impuros, nem pode comer o que comem esses

animais impuros. A casa paterna, nesta situação, começa a receber contornos vivos e

familiares.

Toca-nos profundamente a veneranda figura do ancião que vê o filho quando ainda está

longe, distante do vilarejo e invadido de compaixão. A compaixão transformada em

corrida de encontro. Esquecendo a sua dignidade diante das outras famílias da aldeia,

abandona a casa, o recinto familiar, corre ao encontro de braços abertos e com beijos.

Não deixa que o filho permaneça prostrado a seus pés, mas o beija efusivamente

esquecido do estado de impureza em que ele se encontra. O amor não espera, corre, abre

os braços, cobre de beijos mais que o amado a sua amada, a amada ao seu amado. São

beijos conforme o Evangelho de pura compaixão, sem paixão. Uma mãe gerando

novamente o filho.

Ao voltamos nossos olhos para a cena, vemos o filho distendendo a sua vida diante do

pai; não humilhado, mas humilde. A transparência da veste do filho na pintura de

Rembrandt deixa ver a alma desejosa do coração paterno.12

Não ouve do coração

paterno nenhuma afirmação: finalmente você reconheceu, finalmente você voltou! Não!

Nada! Nenhuma palavra de interrogação, nenhum porque, nenhuma satisfação,

nenhuma cobrança, nenhum sinal de desgosto, nenhuma repreensão, nenhuma expressão

de desapontamento, nenhuma interjeição, nem mesmo qualquer coisa que pudesse

insinuar: por que fizeste isso? Não! Nada! Também não: como é bom vê-lo! Nada! Nem

mesmo diz: eu aceito a você, que bom que você voltou, eu te perdôo. Nenhuma palavra

ao filho. É que o amor não interroga, não sabe do por que, não tira satisfação, não cobra,

não repreende, não expressa desapontamento. O amor é gratuidade, é jovialidade, não

tem tempo para a interrogação.

E mesmo, porque todas as palavras seriam superficiais demais para dizer, expressar

proclamar, cantar o transbordamento do coração do velho pai. O coração cheio de

11 PAGOLA, José Antonio. Jesús, aproximación historica. Madrid: PPC, 2007, pp. 127-130.

12 BOEMANA, D. W. von, Rembrandt Gemälde. Gesamtwerk. trad. Hella Arndt, Wiesbaden: Emil

Vollmer Verlag, 1968. Rembrandt von Rijn nasceu aos 15 de julho 1606 em Leiden, Holanda e morreu

em 1669. A obra do Filho pródigo é a sua última.

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misericórdia, o coração que era só misericórdia. Ele, o velho ancião, nada diz ao filho.

No amor, na jovialidade, na gratuidade a presença, a proximidade é tudo, mesmo a

palavra chega depois.

Os beijos e abraços maternos, nascidos de entranhas, são diante de todo o povoado

sinais de acolhimento, perdão, e, ao mesmo, tempo proteção e defesa.

E nós que ainda vemos como o pai corre, como abraça e como cobre o filho de beijos,

ouvimos o silêncio próprio de Deus, onde tudo é somente acolhimento, receptividade,

vida pulsando, puro encontro, amor, gratuidade. A palavra vem depois do silêncio, do

encontro, depois do face-a-face, depois de olhos nos olhos. Só então, depois de tudo

acolhido, recolhido, tudo abraçado, tudo beijado, depois de tudo ser somente amor-

liberdade, gratuidade, rompe-se o silêncio:

Trazei depressa a melhor túnica para vestir meu filho. E colocai um anel no seu dedo e sandálias

nos pés. Trazei um novilho gordo e matai-o. Vamos fazer um banquete. Porque este meu filho

estava morto e tornou a viver: estava perdido e foi encontrado.

A melhor túnica, anel no dedo, sandálias nos pés, novilho gordo... sim, tudo para

restaurar a dignidade de filho dentro da família. A melhor túnica da casa, provavelmente

a do próprio pai;13

o anel no dedo, pois lhe confere mais uma vez a dignidade de filho; e

o calçado nos pés, porque é novamente um homem livre e não escravo. Mas também é

necessário refazer a dignidade do filho, agora na família e na aldeia. Organiza a festa,

um grande banquete para todo o povoado: matar um novilho. Matar um novilho entre a

família camponesa da Galiléia era raro e muito dispendioso. Mas a dignidade do filho, a

expressão ilimitada, infinita de contentamento, tudo vale. Tudo é celebração, das mais

nobres, das mais finas, das mais delicadas, a celebração da gratuidade. Chegou o filho

amado! Só o amor é capaz de fazer reentrar o filho na casa, na habitação da jovialidade.

E na festa mais uma vez se sente como o pai sai de si, dá de si, se doa, se presenteia, não

se resguarda, não se cuida, mas é todo cuidado, todo desvelamento, todo recepção, todo

intimidade, todo dado, doado. É só gratuidade! Tudo porque este meu filho estava morto

e tornou a viver: Estava perdido e foi encontrado.

O texto da Escritura continua e encontra o filho mais velho fora de casa. O filho mais

velho estava no campo. Ao voltar ...encolerizou-se e não quis entrar.

Infelizmente faltava o filho mais velho. Chegou à casa ao entardecer, depois de um dia

cumprindo fielmente seu trabalho. Ao ouvir a música e as danças e saber da volta do

irmão, fica desconcertado. A volta do irmão não lhe traz alegria como a seu pai, mas

ressentimento. Fica de fora, não participa da festa. Nunca tinha saído de casa como o

irmão, mas agora se sente um estranho diante da família e dos vizinhos reunidos para

acolher o irmão. Não havia se perdido num país distante, mas se encontra perdido em

seu próprio ressentimento.

Incomodado com a medida sem limites do pai em relação ao irmão, rejeita o convívio

amoroso e livre. Rejeita o amor próprio do pai e começa a reivindicar. Mora com o pai,

mas não tem a magnanimidade do pai, o coração misericordioso do pai. Os anos todos

passados na intimidade do pai não o fizeram como o pai na pulsação, na vibração de um

13 PAGOLA, J. A. Op. cit. p. 130.

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amor-livre, na gratuidade, na cordialidade; gratuidade que enche e pervade todas as

coisas e todos os momentos de encontro e desencontro.

E lá vai o pai mais uma vez! Mais uma vez deixa a casa, mais uma vez corre ao

encontro, e convida o filho para que entre na casa. Não grita, não dá ordens. Como uma

mãe, mais uma vez abraça e cobre de beijos, suplicando para que entre e participe da

festa. Abraça e beija a estreiteza, a não liberdade do filho mais velho.

O filho não se deixou tomar pela medida da desmedida da gratuidade do pai:

Eu trabalho para ti há tantos anos, jamais desobedeci a qualquer ordem tua. E tu nunca me deste

um cabrito para eu festejar com meus amigos. Quando chegou este teu filho, que esbanjou teus

bens com prostitutas, matas para ele o novilho cevado.

Uma explosão de rancor, dureza, fechamento, mesquinhez, apesar de trabalhar e

participar cotidianamente da vida do pai. Acabou não vivendo em família, na

familiaridade, não convive! Passou a vida cumprindo ordens do pai como um escravo,

mas não soube desfrutar de seu amor como filho. A sua vida de trabalho sacrificado

endureceu seu coração. Humilha o pai e denigre o irmão, denunciando a sua vida

libertina com prostitutas. Apesar de tão certinho em tudo fazer, carece da alma paterna.

Não entende a cordialidade do pai em relação ao irmão morto. Ele não sabe, como o pai,

acolher e perdoar, isto é, não ama como ama o pai, na gratuidade, na jovialidade.

E o amor-liberdade o cobre, então, de abraços e beijos, lhe fala com uma ternura

especial. O chama de teknon, que quer dizer “meu querido filho”, ou “meu menino”.

Com o coração de pai ele vê tudo diferente, pois o filho que chegou de um país distante

não é um depravado, um libertino, mas sim o filho morto que tornou à vida; não é o

desgarrado, não é o esbanjador, não é o prostituído, ele é filho! Por isso, diz: Filho, tu

estás sempre comigo, e tudo o que é meu é teu. Mas era preciso festejar e alegrar-nos,

porque este teu irmão estava morto e tornou a viver; estava perdido e foi encontrado.

Nada é para mim, tudo é para ti. Nada me pertence, tudo é teu. Eu nada tenho, tudo é

teu. Tomei do que é teu porque aquele que é teu, o teu irmão, o morto, voltou a viver;

aquele que é teu, o teu irmão, aquele que se perdera foi redescoberto. Nas palavras do

pai ecoa um silêncio que leva ao espanto, reverência e admiração! Perdemos as

palavras, e vemos o amor das entranhas, a gratuidade, a jovialidade!

A parábola não fala dos dois filhos, nos fala do Pai dos dois filhos. Não fala das

desventuras e fechamento dos dois filhos, mas da magnanimidade, da generosidade, da

nobreza, da ternura, singeleza, cordialidade, da jovialidade, gratuidade, do Pai de Nosso

Senhor Jesus Cristo. Com outras cores e gestos, o Deus amor-liberdade, sai sempre da

própria casa, ora recebendo de braços abertos, estreitando ao peito e cobrindo de beijos

o mais novo; ora saindo da casa para encontrar o mais velho, ensimesmado, e dizer:

tudo te pertence; ora reconhecendo o filho quando ainda está longe, sentindo

compaixão, correndo e estreitando-o junto a si, como se desejasse mais uma vez colocá-

lo dentro de seu próprio seio e gerá-lo qual mãe; ora saindo da casa para acordar a quem

está adormecido de sua pertença como filho.

Por mais que amássemos nossos filhos, nós não conseguiríamos ser essa explosão de

afeto, cuidado, ternura; não seríamos essa arrebentação, essa explosão tão delicada e

cuidada. Não seríamos jamais esse amor-liberdade, essa jovialidade, gratuidade! Só

Deus pode ser assim. Talvez Lucas tenha dado um pouco de vida, cor, gestos, palavras,

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para entrevemos ali o Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo: a gratuidade, a jovialidade que

nos sustenta, revigora e deixa-ser. Deixa ser na gratuidade de ser!

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A superação no primado da vontade

Denise Quintão

A afirmação de que depois de Aristóteles toda história é metafísica impõe uma

reconsideração. O que se dá a ser reconsiderado, antes de tudo, é justamente o sentido

de metafísica, pois não se pode entender esta atitude histórica, apenas a partir da

perspectiva interna, que sustenta todas as possibilidades de realização, oferecidas pela

sua própria dinâmica de constituição: isto é, não se pode entender metafísica apenas

meta-fisicamente. Toda dificuldade reside no fato de que a ambivalente compreensão

metafísica (meta-física) reduziu, ao longo de seu percurso, a ambigüidade infinitamente

plural do real numa tirania monovalente, onde tudo só pode ser na medida em que

corresponde à lógica de um princípio fundado numa razão subjetiva, privilegiando,

desta forma, apenas, a eficiência e a operatividade das realizações. Na procura

avassaladora de ser cada vez mais lógica, a metafísica deixou para trás a grandeza

inicial, na qual se desvelou, consolidando a sua atualização enquanto esquecimento da

origem.

Nesse sentido, o espírito religioso recolheu-se e tornou-se obscuro ao olhar do homem

contemporâneo. Pelo esquecimento da unidade originária1, a metafísica distingue e

discrimina, entre si, o pensamento cristão, judeu e mulçumano. Posta dessa forma, a

questão torna-se puramente lógica e, assim, tem sido enfrentada na atualidade

contemporânea. A unidade religiosa da Idade Média, vista pelo modo de ser da tecno-

ciência, fragmenta-se em abstrações, isoladas do todo. Essa atitude decorre de um longo

percurso histórico de despotencialização do espírito2 e engendra, nos homens de hoje

em dia, uma onda de ceticismo, ateísmo e fundamentalismo. Só há fé no e pelo todo.

Nenhum homem pode sentir fé pelas partes. Isto é crença, é desejo, muitas vezes

ambição, outras ingenuidade, mas nunca fé. Raimundo Lulo viajou três meses, a pé, da

Espanha para Paris a fim de assistir as aulas de Duns Escoto. Lá chegando entrou

maltrapilho na sala. No fim da aula, Raimundo Lulo permaneceu sentado, cansado da

viagem. Duns Escoto perguntou-lhe de maneira provocadora: E Deus, que parte da

gramática é? Raimundo respondeu: Deus não é parte, Deus é todo3.

Se aceitamos a unidade primordial em que as diferentes realizações medievais

emergem, pode a identidade do mundo medieval ser compreendida como cristã, de

maneira que o modo de ser judaico e mulçumano possam ser considerados

expressões da ontologia humana, originariamente cristã? Seria esta interpretação

um facismo? Bom, se entendemos o sentido da palavra “cristão” positivamente, isto é,

como um conceito regulador e definidor do real, então, para esta estrita percepção

metafísica, a noção de unidade passa a ser contraditória e impossível, a Idade Média

1 Toda unidade é e realiza a tensão entre identidade e diferença, dinâmica de desvelamento e velamento,

que Heidegger chama de esquecimento originário.

2 Constitui o modo de ser finito do espírito, a errância. A condição criativa do homem manifesta-se numa

tensão constitutiva com o seu oposto. A dificuldade, cada vez mais predominante, da realização criativa é

o que muitos filósofos contemporâneos chamam de niquilismo.

3 Se a resposta de Raimundo Lulo substancializasse a palavra todo, inserindo um artigo definido antes, “o

todo”, então, o sentido de todo não remeteria mais para a misteriosa dinâmica criadora.

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torna-se uma colcha de remendos escolásticos, e a escolha de um desses remendos, para

designar esta época histórica, se mostra como um comportamento arbitrário e

interessado, próprio do esquecimento histórico de um tipo de desenvolvimento da lógica

metafísica4. Isto não significa que o modo de ser cristão se dê na exclusão de qualquer

arbitrariedade e interesse; ao contrário, ser cristão se constitui no embate contínuo com

não ser cristão, de modo que ser cristão supera o ser cristão e o não ser cristão, enquanto

posições tomadas. Ser cristão, na perspectiva histórica da superação constitutiva do

ser, pensada no primado da vontade, almeja a identidade, a infinitude. O

enfrentamento contínuo das dificuldades, dos limites, das certezas e das dúvidas faz

aparecer, no cristão, o vigor da dignidade humana, que se expande, trazendo à

lembrança a unidade em que o ser foi concebido. Na unidade, teoria e prática não são

mais duas distinções.

todo problema é que a orientação abstrata da lógica, que, predominantemente, sustenta,

hoje, o nível da formalização do pensamento veicula através de uma aparência liberal,

na qual o senso comum, a funcionalidade, a atualidade contemporânea das realizações

se destacam como marcas de uma intelectualidade flexível e condescendente. A lógica

da metafísica, na contemporaneidade, entende as diversas realizações da religiosidade,

na Idade Média, como expressões culturais e étnicas de uma época histórica, admitindo,

em certas circunstâncias, a influência co-recíproca entre elas. A liberalidade desta

mentalidade tende a relacionar analogicamente as diferenças, excluindo das relações,

que propõe, a radicalidade de toda e qualquer identidade, ou seja, Criador não é criatura,

teologia não é filosofia, razão não é fé, nem ente é essência, nem espírito é corpo, ou

finito é infinito, substituindo identidade por igualdade. Mas idêntico não é o mesmo que

igual. Ser idêntico ao outro é ser, na diferença de si mesmo, o mesmo que o outro é,

de maneira que ser idêntico não exclui a diferença do outro. A identidade originária do

real é intuída em quase todas as épocas e civilizações, não só ocidentais, como orientais.

A dinâmica relacional da Trindade, a pericorese, fonte criadora para e da fé cristã,

realiza-se num movimento de identificação em que tudo é tudo, cada vez, na

singularidade de cada um. O Pai é o Filho e o Espírito Santo, sem deixar de ser Pai ao

ser outro. O mesmo ocorre com todas as pessoas trinitárias, o Filho e o Espírito Santo.

A dinâmica pericorética da Trindade reflete a si mesma na constituição primordial de

tudo que está sendo, isto é, mostra e oculta, nos perfis singulares5, o envio da identidade

originária. Sem a comunhão que irmana, originariamente, todos os seres, não pode

haver a irrepetibilidade de cada real e de cada realização. Uma margarida perdida à

beira da estrada que atravessa a floresta é única, guarda e segreda, na sua extraordinária

singularidade, a identidade e a diferença de todos os seres. Nela, encontramos a face dos

seres amados e o perdão dos inimigos. Pequena e frágil, é o sinal de uma vastidão

incompreensível. No acolhimento da identidade originária, as relações entre os

diferentes não se constroem por uma relativa proximidade, que, por meio de

comparações, seleciona, apenas, as diferenças adequadas a uma igualdade ideológica

4 A lógica da fenomeno-logia é um outro tipo de desenvolvimento da lógica da metafísica, enquanto

superação.

5 Singular é uma palavra da experiência comunitária, que traduz uma preocupação de dizer a

concentração do todo em cada realização. A experiência comunitária permite compreender a mística do

primado da vontade.

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entre as partes. A igualdade, de que fala a lógica da ideo-logia6, não desce fundo até

a raiz inalcançável do real, mas se compõe pela articulação abstrata de partes,

artificialmente, extraídas do ser. A proximidade na e da identidade é plena, é cheia de

infinitas e diversas possibilidades de ser, que se desvelam e se ocultam7 na unidade

totalizante do real. Hoje, a técnica, na sua compulsão simplificadora aboliu uma das

pontas dessa dicotomia metafísica, de tal maneira que só há criatura (sem Criador),

razão (sem fé), filosofia (sem teologia), ente (sem essência), corpo (sem alma) e finitude

(sem infinitude). A infinitude admitida pela ciência, não remete para o mistério da

unidade, mas se define contrapondo-se ao finito, por uma equação, e, desta forma,

chega, ao coração dos homens, desprovida de qualquer apelo do mistério, na medida em

que a pretensa exatidão de uma fórmula procura sempre desfazer a tensão ambígua e

ontologicamente constitutiva do real. A apologia do corpo, que prega a mentalidade

contemporânea, seja a da ciência, seja a da filosofia, sutilmente despreza o espírito,

reduzindo tudo a uma vida sem o mistério da tensão unificadora entre transcendência e

imanência. Assim, na ordem da lógica metafísica, filosofia cristã não é sinônimo de

filosofia medieval, uma vez que admitir isto seria desconhecer a filosofia judaica ou

árabe.

A maioria dos manuais de filosofia medieval contemporâneos, escritos fora da

preocupação ontologicamente comunitária de encontrar a identidade nas diferenças,

assume a postura lógico-científica de uma individualidade, que exclui a alteridade, na

constituição íntima e profunda de cada real8, e vê as diversas doutrinas, que nesta

época se constituíram, marcadas pela autonomia de um perfil individual. Hoje, fala-se

muito em alteridade9. No entanto, a alteridade contemporânea é ideológica e toma o

outro como um estranho, uma outra individualidade de um outro indivíduo que constitui

a individualidade de um, também, outro indivíduo. Este modo de pensar, apesar das

vestes modernas, vive, ainda, às expensas da rígida estrutura do pensamento neo-

escolástico, que já não apresenta a riqueza e a liberdade das reflexões escolásticas. Isto

é, pelo entendimento lógico, pode-se entender Averróes nele mesmo e por ele mesmo,

sem encontrar, no pensamento do filósofo árabe, a presença comum10

, e

ontologicamente constitutiva, de qualquer outra possível compreensão do real.

Entendido dessa forma particularizada, o conhecimento passa a ser interessado e

dirigido a um só aspecto da diferença. Diferença, para a lógica da metafísica, é

entendida como parte e não como dinâmica do todo, que integra, em unidade,

identidade e diferença. Vista dessa maneira, a diferença de Averróes é uma parte

6 A palavra ideologia está sendo usada no seu sentido amplo, abrangente, isto é, designa a perspectiva

parcial de toda decisão lógica que exclui a profundidade fenomenal do todo. Pode haver um outro tipo de

lógica que não seja interessada ou parcial? É o que pretende a lógica da fenomeno-logia.

7 O desvelamento e o ocultamento não são sucessivos, nem alternativos, mas simultaneamente

constitutivos de uma mesma dinâmica.

8 O texto refere-se à profundidade ontológica e pré-ontológica do todo que se realiza e se manifesta na

unidade ôntica. Não há diferença real entre ôntico, ontológico e pré-ontológico. A distinção é feita tendo

em vista o entendimento da lógica da metafísica, do modo como foi compreendida pela neo-escolástica.

9 Nessa perspectiva lógica, a alteridade aparece, hoje, como constitutiva dos conteúdos que articulam o

real. Na mensagem cristã, a alteridade, o próximo, remete para o mistério abissal da fraternidade, da

comunhão originária entre todos os seres.

10 Comum, aqui, nesse contexto, refere-se à dinâmica originária da comunhão entre os seres.

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individualizada e interessada da Idade Média, cuja compreensão não exige,

necessariamente, o estudo de outros pensadores da Idade Média cristã, da Antigüidade,

ou mesmo da contemporaneidade. Levada a finco, esta atitude pode alcançar uma idiotia

destrutiva do vigor e da vitalidade das realizações. Então, para fazer frente à

intensificação gradativa da estreiteza desse modo de conhecer, a modernidade

contemporânea imaginou aberta, para diversos conteúdos individuais e independentes

entre si, a estrutura de qualquer expressão do pensamento radical, seja a arte, seja a

música, seja a filosofia ou a poesia. Foi a experiência que a lógica metafísica fez da

abertura da obra, como resistência11

ao processo cognitivo de fragmentação abstrata do

real em conteúdos específicos, entendendo, no entanto, a força originária desta abertura,

apenas, no nível ôntico, e raramente ontológico, das realizações. Exemplo desta busca

de libertação é a teoria da obra aberta de Umberto Eco e as diversas concepções do

estruturalismo, que viam a obra de arte como uma estrutura aberta, capaz de aceitar uma

diversidade de jogos simbólicos, desde que logicamente compostos. Passou a ser quase

um crime intelectual não aceitar certos entendimentos de uma obra, em respeito à

celebrada abertura. Esta atitude reduziu gravemente o empenho de penetração no

mistério de toda obra e trouxe uma promiscuidade de pensamento inibidora do

movimento de superação. Qualquer abordagem passou a ser igualmente aceitável. Esta

é uma visão ideológica e superficial da liberdade das interpretações e da profundidade

constitutiva das realizações. Mas a abertura da obra não significa permissividade

hermenêutica. A abertura da obra se dá antes de qualquer conteúdo ou mesmo de

qualquer ontologia e, por isso, oferece, cada vez, um horizonte de compreensão do todo.

No retraimento e nas atualizações do pensamento de Averróes estão,

originariamente dispostos, os envios do pensamento radical, expressos nas

elaborações de São Tomás, Avicenas, Platão, Aristóteles e Descartes, Kant,

Husserl, Heidegger e de todo pensamento que está por vir, já dado, desde sempre,

na dinâmica de realização do real.

O movimento que integra, logicamente, as diferenças do real, conservando as partes em

seu enfoque ab-strato, exige a autonomia de uma realização diante de outra autonomia,

propiciando relações que se articulam por parataxe ou por sintaxe. Na perspectiva desta

ordem lógico-sintática, passa a ser possível, reconhecer a influência de uma realização

sobre outra (aliás, este é o fundamento da interdisciplinariedade). A síntese é sempre,

por mais profunda que seja a expectativa que a embala, uma ordem que articula

realizações individuais. A doutrina de São Tomás abre-se e acolhe a doutrina de

Averróes, seletiva e adequadamente, de tal maneira que Averróes e São Tomás se

mostram e permanecem como diferentes, enquanto a identidade se recolhe na e da

analogia para a identidade imemorial. A análise dos textos neo-escolásticos sobre a

Idade Média não admite encontrar a vigência da identidade entre a doutrina de Averróes

e a de São Tomás. Só encontram, nas obras de São Tomas, São Tomás, mesmo quando

admitem a influência de Averróes em São Tomás. Enquanto a autonomia da lógica

fecha a individualidade de cada realização, o sentido primordial e próprio de

individualidade é aberto, é comunitário, pois não há propriedade fora da comunhão de

ser todos em cada um. A propriedade é, portanto, um desprendimento, e impróprio

é o impulso de retenção e conservação, constitutivo de toda realização. Ora,

constitui o ser tanto o próprio, quanto o impróprio, de tal maneira que não há

desprendimento sem retenção, nem retenção sem desprendimento. Mas próprio e

11 A resistência é constitutiva de todo processo de realização, seja a resistência à conservação, seja a

resistência à superação.

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impróprio são, ainda, faces da identidade. A profundidade do real supera, na

simultaneidade de próprio e impróprio, as diferenças e remete para o mistério

insondável, de onde brotam inesperadas possibilidades de compreensão. Mas, até

mesmo para a lógica, seria ilógico entender o real como um “amontoado” de realizações

individuais; por isso a ordem que, entre elas, a lógica estabelece é interativa e reflete os

princípios constitutivos e organizacionais de um fundamento que estrutura e sustenta o

real, mas não é o real. Embora, a interatividade da lógica, no nível da elaboração do

pensamento, não leve em conta nenhum desprendimento, nenhuma superação e

permaneça interessada na conservação da individualidade de cada real, ela vive da

tensão que integra, na raiz do real, superação e conservação. A superação que propõe a

interatividade da lógica tem em vista a organização ôntica do real. Realiza-se de forma

individual e sucessiva e não singular e simultânea.

No entanto, com-apreender (esta dinâmica só se mostra na e pela experiência

comunitária, esquecida e lembrada no prefixo com-\) o movimento medieval como um

só desdobramento do advento, acolhendo sua realização histórica como experiência

originariamente religiosa da comunidade de uma época, cujo vigor primordial remete

para além e aquém das decisões e das escolhas de um seguimento, é o que se oferece

como possibilidade de superação dos limites, constitutivos de toda realização lógica da

metafísica. E, pode haver uma realização da metafísica que não seja lógica? A

metafísica para ser metafísica deixa aparecer, na diferença de si mesma, a não

metafísica, que se oferece como superação da própria metafísica em que surge. A não

metafísica do pensamento pré-socrático encontrava sua força de realização na metafísica

que, retraída, guardava e preparava o acontecer da história. A metafísica surge no

embate de ser e não ser metafísica. A criatividade do real não está somente naquilo que

aparece como real, mas, primordialmente, no embate gerador do real. Na metafísica

medieval, a abertura da superação se desvela e atualiza como mística.

O pensamento medieval, mesmo aquele que é elaborado a partir da lógica é,

predominantemente, místico. Para o modo de ser medieval, as diferenças são filhas de

um mesmo mistério. Trata-se, portanto, de um modo de ser que se entrega ao fluxo

contínuo de superação e desprendimento do pensamento de todas as épocas. Sempre

entendemos que os limites metafísicos não são transparentes para os medievais por

carecerem eles de “evolução”, profundidade ou avanço no pensar. Não é verdade, pois

os medievais são animados (anima, alma) pelo elã do mistério, mais do que pela

metafísica que lhes serve de solo. Guardam como desejo íntimo a imensidão livre e

abissal, na qual se encontram inteiramente mergulhados, ou como diz Santo Agostinho,

pensador místico que deu as bases da doutrina cristã, os homens não cessam nunca de

querer a liberdade infinita, onde as possibilidades se recolhem em silêncio e se projetam

como real. O grande salto que o contemporâneo herdou do medieval está, justamente,

no desafio de compreender que não se pode querer a liberdade infinita como quem quer

ter alguma coisa que ainda não tem. A liberdade infinita não se deixa apreender por

nenhum desejo de domínio, posto pela finitude do querer humano, nem se deixa

determinar por uma subjetividade, quer individual, quer coletiva12

. A liberdade infinita

instala-se em cada homem como a vontade íntima de todo homem, originária e

ontologicamente dada. A vontade que torna o homem humano não é resultado de uma

decisão subjetiva, mas advém do mistério. É que no humano do homem a semelhança

de Deus se realiza. Por isso, o empenho do homem, em tornar-se o que lhe foi dado ser,

12 O sentido de fundo que ampara a palavra “coletivo” provém de um processo de individualização.

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busca escutar, atento, aos apelos dessa estranha intimidade. Só pelo desprendimento,

pela paixão da entrega, pela obediência, o homem pode se libertar da dominação, que o

seu querer exerce sobre si. Os limites no lidar com a infinitude da vontade criadora são

postos pelos múltiplos modos como a finitude do criado se instala, sempre

inesperadamente, em cada homem. A vontade criadora faz ressoar no homem o

apelo da infinitude e doa-se como farol, que ilumina o percurso de superação e

conservação das diferenças e dos limites existenciais e históricos. Por mais firme que

seja uma decisão há sempre de se esperar pelo inesperado e crer no mistério, pois só

nesta prontidão o empenho do homem pode perseverar. O inesperado chega para todo

homem, o que espera e o que não espera. Mas somente no desprendimento dos pré-

conceitos ou das decisões pré-estabelecidas o homem se põe à espera das

transformações. Pobre de ter e haveres espirituais, a vontade de Deus pode nele ecoar.

A dificuldade em reconhecer esta aliança não torna o homem menos homem, mas

mostra como intempestiva a transformação. A cada homem é dado um tempo de ouvir e

compreender. Compreendendo, o homem se transforma. Ora, o contemporâneo é cheio

de propriedades e posses, cheio de desejos, como pode querer não querer? Como pode

não querer, nem o querer, nem o não querer? Como pode simplesmente nem querer,

nem não querer? Como pode ser tomado pelo silêncio do vazio se o alarido das coisas,

que imagina ter, se sobrepõe ao ser? As rápidas mudanças que presenciamos na

contemporaneidade são oriundas da técnica e não significam uma transformação

espiritual, que torna o homem capaz de se abrir à virada do pensamento. A vontade

humana, finita, funda-se e identifica-se, em Santo Agostinho, como posse da liberdade

infinita que Deus é. Como pode o homem contemporâneo aceitar ser ele posse da

liberdade? É que ser posse da liberdade não significa estar sob o domínio de alguma

coisa. A liberdade não é algo ou alguma coisa. Ser posse da liberdade é um movimento

originário, que deixa aparecer no perfil humano, a dinâmica comunitária da Criação que

tudo irmana. Este é o sentido de posse na famosa definição de Boécio sobre a

eternidade: A posse simultânea de todas as coisas na vida infinita de Deus. A questão se

coloca de forma premente quando procuramos pensar radicalmente os afazeres do

cotidiano: na vida do dia-a-dia de todos nós, filhos da técnica, como podemos fazer

a estranha experiência de ser a posse de Deus, uma posse sobre a qual Deus não

exerce um domínio determinador, mas simplesmente acolhe com um amor

gerador? Para a mentalidade da técnica, se ao menos posse de Deus significasse

poder, no sentido subjetivo, das decisões de conteúdo, Deus serviria para alguma

coisa. Talvez para melhorar o clima, para resolver questões internacionais ou

encontrar a cura de certas doenças. Mas, para a funcionalidade moderno-

contemporânea, Deus não serve para nada. Que sentido, então, o homem

contemporâneo encontra em gerar filhos, criar animais, cultivar o solo, possuir

propriedades? O que é ser amigo ou viver um amor? Será que tudo se resume a ter? E

ter é somente colocar alguma coisa sob domínio? Quando o ter prevalece, o homem se

desfaz facilmente da responsabilidade de ser.

Ter é ser, reúne no imediato o envio distante e religioso de ser. Ter, enquanto sentido

primordial de ser, é celebração do mistério que, continuamente, se doa nos seres,

permanecendo como vazio gerador. Ter, no sentido subjetivo de exercer um domínio,

esconde-se, no mundo da técnica, como ilusão, e se apresenta como verdade irredutível,

da qual não se pode duvidar. Ter uma propriedade é ter o registro da propriedade e isto

vale erga omnis. Ora, neste raciocínio não cabe nenhuma dúvida. Mas a verdade, em

que tudo vem a ser, não é determinante, nem determinada, não é nada, porque é tudo. O

desprendimento revela-se ao empenho de ser como a forma radical de ter, lembrança

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constante do amor que simplesmente amou, antes da diferença entre ser e ter. O

esquecimento do amor, que embala o ser, encontra no ter a autonomia de um poder

subjetivo, instância última e decisiva sobre qualquer coisa. O ter da razão, como

fundamento do ser, despreza o ser que da liberdade emana em Graça e torna tudo que

toca uma produção, sem a grandeza do mistério. A morte da natureza, a morte dos

homens pelos homens, a decadência do mundo anunciam a era do pecado contra o

espírito, contra a vontade que consagra o homem à vida eterna da liberdade. Só na

liberdade do desprendimento há encontro gerador entre os seres, a fraternidade entre

diferentes se revela, a harmonia entre os homens prevalece e a natureza resplandece: o

animal se oferece ao trabalho humano, ao afeto dos homens e se entrega como alimento

pela força amorosa da transformação. Ser posse de Deus é ser amor de Deus. Aos seres

não espirituais não é dado recusar ser posse de Deus para ser posse de Deus. Somente o

homem, para ser amor de Deus, tem de ser capaz de recusar o que desde sempre já era:

amor de Deus. Esta é a natureza espiritual da condição humana, uma natureza que se

assemelha a e reflete, no seu modo próprio de ser, a tensão entre ser e não ser, geradora

do real.

Mas que significado encontramos em Deus? Deus é sentido primordial. Nele são

concebidos todos os significados, de todas as épocas, de cada civilização, inclusive da

civilização da técnica, pois Deus também está presente na ação que tudo entorpece e

desfigura. Qualquer ação, para ser ação, encontra sua força em Deus, mesmo a ação que

mata. Sem Deus, sem a vida do mistério, não há mundo, não há homem, nem bom nem

mau. É uma ingenuidade achar que teorias científicas podem explicar o aparecimento da

vida, aqui, tomada em seu sentido amplo. No e do mistério que habita a ciência e a

técnica irrompe, de forma incompreensível, o desejo avassalador de vida e de morte que

alimenta os sonhos humanos. No mistério da técnica, também, repousa a esperança.

Toda ação transcende aquilo que faz. A ação funcional da técnica é mais do que técnica

e do que funcionalidade. A transcendência da ação, de qualquer ação, fala sempre do

mistério, do não sabido. Por isso, nenhum conceito satisfaz o empenho do homem em

atender ao apelo da vontade em seu coração. Somente, a humildade do perdão e o

abandono da caridade são capazes de lidar com o mistério, que supera qualquer decisão

ou posição, e traz paz ao coração dos homens. Nietzsche, na sua famosa oração “Ao

Deus Desconhecido”, clama por Deus, o parente incompreensível. Conhecer Deus é

servir ao desconhecido. Nesta doce sabedoria de um mistério em que tudo se gera e

de onde tudo provém está a radicalidade de ser homem.

Os medievais são antes de tudo místicos, servos do mistério e não conquistadores

do mistério. Qualquer que fosse a posição doutrinária, eram arrebatados por uma

paixão que os lançava, continua e concomitantemente, para dentro e para fora de toda e

qualquer compreensão do real. Faziam a experiência da superação da metafísica em

toda metafísica elaborada. A verdade jamais poderia ser evidente ou mesmo uma só,

mas sempre ambígua, sempre generosamente una e plural.

A ambigüidade para a lógica metafísica não é real, mas abstrata. Pensando assim, a

lógica da modernidade acaba marcando as realizações da mística como primitivas e

secundárias frente à metafísica e as reflexões da filosofia como subalternas à ideologia,

na medida em que não reconhece a recíproca e una constituição que há entre mística e

metafísica, filosofia e teologia. É justamente a rigidez discriminadora e excludente desta

interpretação lógico-metafísica que levou a contemporaneidade ao questionamento

explícito da superação da metafísica. A questão da superação da metafísica é uma

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lembrança que risca a noite escura da técnica. O questionamento que a superação,

constitutiva de qualquer real, provoca na metafísica surgiu da gravidade do

esquecimento que a própria metafísica, ao longo dos séculos, vem consolidando em

relação à unidade originária. Os medievais viviam, de diversas formas, a unidade da

mística e da metafísica, da filosofia e da teologia, do espírito e do corpo, do ente e da

essência, na medida em que o envio originário da vida se mostra e se oculta na

experiência amorosa do divino. Divino aqui não diz um processo de entificação, mas

refere-se a uma dinâmica de realização do real, onde todo ordinário se mostra

como extraordinário.

A radicalidade da pregação de Cristo se anuncia como um impulso de superação,

apontando, sempre, para a fraternidade primordial. Seja metafísico, seja místico, o

cristão tem como luz uma paixão: a caridade. A paixão da caridade revela-se como via

de superação das dificuldades, quer pessoais, quer históricas. Comunitária, a paixão da

caridade está concentrada no mandamento que Cristo nos deixou: “amar o próximo

como a si mesmo”. Não se pode amar o próximo, sem amar a Deus, nem amar a Deus,

sem amar o próximo. A lembrança desta identidade originária deve abraçar, nos mais

breves dos pensamentos, nos mais frugais dos gestos, a vida do cristão. Ser caridoso

está além da factualidade de fazer o bem, seja para o bem, seja pelo bem, seja conforme

o bem. Estas são apenas expressões do amor que Cristo é. Ser caridoso é deixar-se

colher pela vontade de Deus que habita o fundo da alma de cada homem. caridade é,

antes de tudo, a disposição infinitamente generosa de aceitar as diferenças, obedientes à

presença íntima e desconhecida da vontade de Deus em nós. O despojamento das

presunções e do orgulho, que escravizam a alma humana, permite ao homem viver

na finitude de sua humanidade a infinitude da liberdade de Deus. Santo Agostinho

alerta que a presunção e o orgulho de ser e ter, junto com a concupiscência que penetra

o vazio deixado pelas ambições de ter e ser, são as tentações que levam o espírito a uma

mortal decadência. Para o cristão, não há amor sem liberdade, não há liberdade

sem entrega radical à voz da vontade criadora. Tomados por este sentido místico

de ser, os escolásticos disputavam questões, sempre permeadas pela compreensão

amorosa de pertencerem, todos os homens, a uma só filiação. Os medievais eram

homens, o que significa que sofriam das mesmas tentações que todos os homens, de

todas as épocas. Quando se fala do espírito de uma época, no entanto, refere-se à

mentalidade, à atitude, que conduz, historicamente, as realizações, as ações e as

decisões humanas, conferindo, cada vez, um perfil singular à comunidade dos

homens.

A racionalidade moderna separa a influência filosófica dos árabes da fé teológica dos

cristãos, a despeito do maior pensador do movimento cristão, Santo Agostinho, ter

deixado como ensinamento o princípio que remete para o amor de Deus a unidade entre

fé e intelecto: fides quaerens intellectum. Essa assertiva de Santo Agostinho não

apresenta a fé como primordial ao intelecto. Na originariedade da condição

humana, fé é intelecto, é pensamento. Sem fé, o pensamento não se sustenta. A fé

de Deus13

realiza-se como intelecto. A questão que se coloca no primado da vontade,

antecede à relação de identidade nesta afirmação pensada: o que é fé de Deus? É

vontade criadora, elã amoroso que, em si, nada detém, mas que doa, de si, toda

possibilidade de ser. Pode-se imaginar um ato de amor que não seja de doação? A

13 O genitivo, aqui, tem mão dupla, tanto diz a fé que Deus é, como a fé que o homem recebe por graça de

Deus.

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vontade de Deus é amor, um amor, ao mesmo tempo, compreensível e incompreensível

para a inteligência do homem. Incompreensível porque a finitude humana nunca pode

alcançar a profundidade misteriosa desse amor. Diante do milagre da vida, não há

explicação que satisfaça as ambições de poder e a ânsia de conhecer. Compreensível na

medida em que todo homem é tocado pela vida do amor de Deus e lançado para fora de

si mesmo em atendimento ao apelo primordial da Sua vontade, que nele habita. Tudo

que é e está sendo se dá e se busca na ordem intelectível da vontade de Deus, na

harmonia do amor. O intelecto de Deus supera14

o inteligível do espírito humano e se

retrai como mistério. A superação não nega o inteligível, ao contrário, o movimento de

superação inclui aquilo que supera. Mas, a inteligência do homem, mesmo com todo

avanço da técnica, não pode explicar a plenitude intelectível de Deus, seja pelo

conhecimento, seja pelos princípios morais, pois a ordem de Deus não pode ser

traduzida em conteúdos de qualquer natureza. A ordem de Deus é puro sentido,

abertura que se instaura, cada vez, numa disposição singular, em que o ser aparece

na tensão ambígua e constitutiva de seu envio originário. No sentido, há uma

remissão cordial ao mistério que sempre se retrai em tudo que de si gera. A cordialidade

dá o tom do canto que entoa o diálogo dos homens com Deus e cuida da promessa de

permanência e conservação da aliança. O homem cordial é aquele que se dá inteiro em

cada ação, em cada pensamento, em cada atenção, em nada se poupa. Cordialidade é

totalidade, inteireza, radicalidade.

Não há vontade sem intelecto. O primado da vontade não indica uma prevalência da

vontade sobre intelecto. Deus é todo, a simultaneidade da eternidade, identidade

radical. Em Deus tudo é igualmente Deus. Por força da infinitude, não há partes, diz

Raimundo Lulo. Algo só prevalece sobre outro na fragmentação da finitude. A vontade

de Deus é identidade radical, simultaneidade de todas as coisas, sem a primazia de

uma sobre a outra. O primado da vontade pensa a identidade originária entre

Deus e o homem, na realização singular de cada um. O que constitui a condição

espiritual do homem é a infinitude nele presente. Pela infinitude da vontade livre, a

dignidade do homem mostra sua natureza divina. A vontade livre de Deus no

homem torna-o espírito semelhante ao Criador. Enquanto espírito, o homem é

sempre arrebatado pelo apelo da comunhão originária. A comunhão originária é

dinâmica radicalmente livre em que as diferenças não se realizam como limites,

mas como possibilidade de ser.

Só o ser do espírito pode sofrer crises, ainda que a crise seja de niilismo. Na crise, a

vontade de Deus ressurge em meio aos escombros trazendo a esperança e o ardor

de um novo recomeço. Isto é liberdade. Adverte Cristo que o único pecado sem

perdão seria aquele que, se possível fosse, tentasse contra a própria condição

espiritual do homem, pois seria tentar contra Deus. Se o homem pudesse deixar de

ser homem, estaria violando a semelhança com Deus, por Deus concedida. O

homem pecaria diretamente contra a própria natureza livre de Deus. A vontade de

Deus espelha-se na criação. Deus se doa, livremente, em tudo que cria. Deus é a

criatura, dirá Eckhart algumas décadas mais tarde que Duns Escoto. O primado

14 Não se pretende aqui exaurir o sentido inesgotável e misterioso da dinâmica de superação. Mas

devemos lembrar que superar não é negar ou rejeitar, mas transformar a partir do que já é. Quando se diz

que o Intelecto de Deus supera a inteligência humana é para se compreender que o Intelecto de Deus é e

não é a inteligência do homem.

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126

da vontade lembra o caminho da unidade, em que os homens reencontram, sempre

de novo, a força e o vigor de ser no todo.

Duns Escoto apresenta uma concepção do homem fundada no sentido místico do

primado da vontade. A vontade é o que de mais radical há no homem, sussurra,

continuamente, no mais fundo do coração, despertando a lembrança da união originária

e esperando que o homem atenda ao apelo do divino que traz em si mesmo. É Deus no

homem, enquanto vontade criadora, força radical de identidade, que faz com que o

homem seja homem e como homem permaneça. No chamado da vontade de Deus, o

homem se reconhece criado à semelhança15

de Deus. Ciência, técnica, ética, tudo se

torna possível a partir da transparência para o sentido que recebeu, originariamente, da

vontade de Deus. Nenhuma vontade humana pode existir fora da vontade de Deus,

nem mesmo a vontade de matar. Esta identidade, no entanto, não se sustenta em

nenhum conteúdo moral. A vontade de Deus no homem é a força da liberdade, que faz

dele um ser do espírito. A partir da vontade, inspirado por ela, o homem constrói a

compreensão moral da existência, de acordo com as possibilidades dadas em cada vez.

Não se trata, aqui, de um relativismo moral ou de uma permissividade, ao contrário, a

imitação da semelhança de Deus emerge de uma concentração fora de qualquer medida.

Quanto mais próximo da semelhança de Deus, mais o homem se esvazia de princípios,

regras e conteúdos de vida. A vontade em Duns Escoto não é apenas ontológica, mas

originária16

, pode transformar a disposição singular de cada homem, pela força

inexorável de seu toque amoroso. Se o mestre franciscano pensasse a natureza íntima da

vontade, no homem, como meramente ontológica, a força da sua condição de ser

perderia o vigor de transformação. A vontade de Deus só pode ser originária e, sendo

originária, é ontológica e ôntica.

Porque provém do mistério insondável, da identidade abissal, a vontade não pertence ao

homem, ao contrário, o homem pertence à vontade, presença divina capaz de

transformar as decisões e mudar os caminhos do espírito. A dinâmica de transformação

da vontade de Deus, no homem, não pode ser explicada pela inteligência humana como

uma troca. Mérito não é o critério. O empenho de permanência na fé já é transformação,

graça recebida. A dificuldade é que sempre se espera um resultado já previsto, pedido,

um acontecimento querido. Aceitar o primado da vontade é aceitar o desconhecido

como abrigo e moradia. Ao sentir-se recolhido pela vontade de Deus, o homem

desprende-se do seu querer, dos seus desejos, das suas vontades. Bem e mal são

escolhas de vida, mas o que habita no fundo de todos os homens é a vontade livre de

Deus, clamando-lhes a filiação em toda e qualquer situação da existência humana. Pela

presença da vontade de Deus em si, o pior dos homens morre como homem. Este é o

sentido da dignidade humana que o cristão acolhe em todo e qualquer homem.

Arrebatado por uma vontade maior que si mesmo, tudo que, diante dela, o homem pode

fazer é orar para que, por ela, seja sempre abraçado: “Senhor, eu não quero

compreender sua verdade, mas penetrar Seu Mistério” (Santo Anselmo). Por maior que

seja, a vontade do homem não pode querer o que lhe é dado querer.

15 A semelhança do homem com Deus só é possível pelo vigor da identidade radical, pois a semelhança se

constitui na tensão de identidade e diferença. A tensão geradora da unidade brota no seio da Pura

identidade, mistério de Deus.

16 Por ser originária a vontade é, também, ontológica e ôntica.

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Deus criou o mundo por sua livre vontade. A vontade de Deus é Deus, isto significa que

as criaturas foram todas criadas à imagem do criador, e o homem à sua imagem e

Semelhança, revela a sabedoria do Gênesis. Em que consiste exatamente a semelhança

que se estabelece entre homem e Deus? A semelhança se ilumina no irromper

contínuo e transformador da singularidade, sempre última, de cada homem. A

transformação não descaracteriza a concentração final de cada homem, ao contrário,

possibilita a diversidade infinita da vida e a superação dos limites. Pela força da

transformação, não há um perfil último e definitivo de cada homem. Haecceitas

não põe um ponto final no homem. Na constante conquista de si mesmo, o homem

pode mudar o rumo da sua existência.

Pensar e ser são um só, diz Parmênides, e quase dois mil anos depois Santo Anselmo.

Ao pensar a semelhança, ao se identificar com o divino, o homem está vivendo a

semelhança que recebeu de Deus, e com isto está demonstrando a existência de Deus.

Como o pensar é um empenho criativo, o homem está sempre sendo, cada vez de

maneira diferente, a semelhança que é. O cavalo se desvela, em cada singularidade

última, como cavalo, na repetição do modo de ser cavalo, por todas as gerações eqüinas,

sem conflitos, sem angústias, sem questionamentos. Por mais diferente que um cavalo

seja do outro, o seu modo de ser cavalo é marcado por uma repetição comportamental.

Os pássaros têm seus ninhos e as raposas suas tocas e isto nunca muda. Não há

inesperado para os seres não espirituais. O homem é filho do Inesperado, desvela-se

como homem pela liberdade com que enfrenta os envios do mistério. O que é o

inesperado? Para o cavalo a morte não é inesperada, nem esperada, tampouco a doença,

a tormenta ou a alegria. O Inesperado é o mistério de Deus que o homem, pela

semelhança do espírito concedida, encontra no acontecer da vida. O horizonte do

pensamento limita, cada vez, o embate entre o finito e o infinito no homem, o que faz do

modo de ser homem uma caminhada errante. Errância, aqui, diz transformação e

plenificação do que sempre já foi, no que está sendo. E, em tudo que pensa e faz, o

homem nunca se encontra totalmente em si mesmo, por isso sempre se põe em fuga, à

procura de si mesmo. A condição própria de ser homem não está nas diferentes formas

de civilização e cultura, mas na conquista contínua, livre, comunitária, histórica e

pessoal de seu modo de ser homem. O esforço do homem em atender à voz do mistério

em si, projeta e expande uma força intensa de relação, identificação e diferenciação,

tornando humano tudo que está ao seu redor. Transformando o que está à sua volta em

obra, o homem se faz homem e instala o mundo. O mundo do homem é movido pela

experiência desafiante e religiosa de ser semelhante a um mistério que não pode

conhecer. A aceitação da originariedade religiosa de ser homem é a coragem que o

ser do espírito leva consigo, na busca por si mesmo. Ao assumir a religiosidade

primordial de seu modo de ser, o homem faz a experiência da liberdade do

espírito. Compreende-se como um ser cujo destino é mistério. Ser da liberdade, liberta

o mundo, libertando-se, espiritualmente. Libertar não significa abandonar, mas amar o

amor em tudo que tem e não tem, em tudo que é e não é. Só, consigo mesmo, o homem

não tem onde colocar a cabeça, e

mais uma vez, antes de ir adiante e olhar para frente, elevo, na solidão, as mãos para ti, em quem

me refugio, a quem altares solenes consagram, no mais fundo do coração, a fim de que, todo o

tempo, minha voz me chamasse de novo. Sobre tudo arde em letras profundas as palavras: ao

Deus desconhecido. Dele eu sou, ainda que até agora me tenha entregue ao bando dos sacrílegos.

Dele eu sou – e sinto os laços, que lutam para derrubar-me, e de fato me forçam a servi-lo,

mesmo na fuga. Quero conhecer-te Desconhecido. Tu, que tocas fundo a minha alma e qual onda

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penetras em minha vida. Tu, incompreensível parente meu. Eu quero conhecer-Te, até mesmo,

servir-Te. (Oração ao Deus Desconhecido de Nietzsche, tradução Emmanuel Carneiro Leão).

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TRADUÇÕES

Zen e o começo*

Eiko Hanaoka (-Kawamura)

Na tentativa de traduzir o termo alemão “Anfang”, começo, para o japonês e

consultando um dicionário, encontraremos quatro combinações diferentes de caracteres.

Em seu dicionário Jitou, S. Shirakawa explica a etimologia da primeira opção, da

seguinte maneira: XXXX é uma combinação de dois caracteres, XXXX (vestimenta) e

XXXX (espada). O primeiro denota as regras cerimoniais que estabelecem as

indumentárias cerimoniais a serem usadas nas festividades religiosas. Outra combinação

de caracteres é XXXX, significando uma invocação ritual, encenada anualmente no

começo da estação do plantio, quando se purificam ritualmente os utensílios agrícolas.

A terceira opção traz um só caractere, sem nenhuma combinação. Era usado para

denotar uma festividade religiosa e significa, literalmente, o pescoço humano. A quarta

opção XXXX representa um jorrar e simboliza um começo primal. Essa última opção

possui ainda dois outros significados, “primeiro começo” e “causa”. Assim como arche

no grego clássico, “começo” significa em japonês o ponto cronológico primal da origem

de toda criação e o princípio de sua existência. Num contexto religioso, porém, o termo

“começo” é usado para fins purificadores e invocatórios.

A língua alemã usa a palavra “começo” em sentidos que não possuem correspondentes

em japonês. O japonês pode, sem dúvida, dizer algo assim como “o primeiro passo é o

mais difícil” ou “acaba bem o que começa bem” (que concebe o começo como parte de

um todo), como fazem os alemães. Há ainda outros exemplos, que possuem uma

qualidade mais polarizante como “ri melhor quem ri por ultimo” ou “quem planeja uma

viagem de 100 quilômetros vai sentir que 99 são a metade da distância”. A língua

japonesa não conhece, porém, o termo “Anfang” nem no sentido de começo de um

único item dentro de uma multidão e nem como o oposto à palavra “fim”. Olhando para

começo e fim num nível mais profundo, como veremos a seguir, esses dois termos são

na verdade idênticos, não estabelecendo nenhuma diferença superficial.

Seguindo essas reflexões iniciais, farei uma exposição sobre o Zen Budismo e o termo

“começo” e veremos que Zen volta-se tanto para o nosso coração e a nossa mente como

para a nossa razão e a nossa compreensão.

Tomarei a seguir “Anfang” no sentido do que é originariamente uno e indiviso.

Assumirei esse termo também na acepção de origem de todas essas coisas estranhas que

se dispersaram do uno. A explicação dessa interpretação baseia-se num texto do século

XII, escrito pelo mestre Zen chinês Kakuan. As “Dez pinturas do boi e seu pastor”

mostram plenamente como começo e fim são, em princípio, um e uno. Poder-se-ia

reformular essa expressão e chamar de começo o que foi originalmente uno; o fim seria

então o que se dispersou do uno original. É o detalhe e o todo, é tanto identidade como

diferença. O primeiro capítulo vai tratar desses conceitos.

* Extraído e traduzido do livro Zen and Christianity – From the Standpoint of Absolute Nothingness.

Kyoto: Maruzen Kyoto Publication Service Center, 2008, com a permissão da autora.

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Para dar seguimento a essa exposição, farei um resumo de como essa questão foi tratada

numa variedade de textos Zens e, na segunda seção, vou referir-me à expressão “O uno

é o múltiplo”. Buscarei depois elucidar nossa questão, usando uma seleção de poesia

escrita por monges Zen japoneses. Primeiro vou olhar um poema de Ryokan que surge

na virada do século XVIII para o XIX. Apresentarei, por fim, vários haiku de Matsuo

Bashô, poeta Zen do século XVII.

Ilustrações

Legendas

1. buscando o boi

2. vendo as pegadas do boi

3. vendo o boi

4. agarrando o boi

5. domesticando o boi

6. voltando para casa no lombo do boi

7. o boi foi esquecido, o menino pastor permanece

8. esquecendo boi e pastor

9. retornando à fonte e ao começo

10. chegando no mercado com mãos abertas de alegria

1. Discutindo o problema através das “Dez pinturas do boi e seu pastor”

As dez pinturas do boi e seu pastor do mestre Zen Kakuan são uma série de dez pinturas

acompanhadas por versos. Em sua obra, Kakuan descreve o processo para alcançar a

iluminação do verdadeiro si-mesmo de cada um. Esse verdadeiro si-mesmo (self) é

pintado nas séries de pinturas do boi e seu pastor, e a imitação do processo está

entreaberta para cada um. Trata-se de um processo evolutivo em vários estágios. Cada

pintura ilustra uma certa etapa desse processo, que permite a todo mundo tornar-se,

pouco a pouco, o seu próprio si-mesmo. Cada pintura singular ilustra claramente cada

uma das etapas.

A série começa com “a busca do boi”. Vemos um menino pastor entre árvores e

rochedos e montanhas ao longe: o menino está olhando para o boi. Embora

desconhecido para si mesmo, o menino já está olhando para o seu verdadeiro si-mesmo.

Na segunda pintura, intitulada “Vendo as pegadas”, o menino descobre e traça as

pegadas do boi. Tais traços simbolizam, no Budismo, os sutras e, no Cristianismo, a

Bíblia. A terceira pintura mostra a visão do boi. Vemos somente a parte de trás do

animal enquanto este se afasta do menino que, por sua vez, continua a sua busca, sem

dela desistir. Nessa terceira pintura, o menino, simbolizado pelo boi, descobriu seu

verdadeiro si-mesmo e começa a compreender a verdade. A quarta pintura chama-se

“Agarrando o boi”. Vemos aqui todo o animal e não apenas a sua parte traseira. Uma

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corda reúne o menino e o boi de maneira bem tensa como se o boi pudesse a qualquer

momento romper a corda e o menino não parasse de lutar para segurá-lo. Na quinta

pintura, “domesticando o boi”, vemos o boi seguindo obedientemente atrás do menino a

caminho. A corda os une sem tensão. Mas eles ainda não se tornaram um só. O menino

e seu verdadeiro si-mesmo ainda estão separados. A sexta pintura é o “voltar para casa

no lombo do boi”: o menino relaxa e toca flauta no lombo do boi, que vai seguindo

placidamente. Está a caminho de casa. Poderíamos dizer que está indo de volta para o

seu próprio começo. A sétima pintura é chamada “O boi esquecido, o menino pastor

permanece”. Na verdade, tudo o que vemos nessa pintura é o menino: ele aparece ali de

joelhos, rezando para a lua, um símbolo da iluminação. Esse é o momento em que os

espíritos se elevam e o praticante está inteiramente ciente de uma realização definida

não obstante o real perigo de tornar-se arrogante ou indiferente. Pois é agora que ele tem

de dar um passo ainda mais decisivo. Para esse passo, é necessário deixar passar todas

as conquistas conseguidas até agora, abandonar tudo para o que vinha trabalhando até

então e o que conquistou mediante a experiência religiosa. Fazendo isso, ou bem se

morre a “grande morte” ou bem se cai no abismo. Toda a caminhada só poderá

continuar quando ele der esse passo decisivo. A oitava pintura é “esquecendo boi e

pastor”. Kakuan simboliza essa etapa do processo de realização com o desenho de um

círculo vazio. Essa pintura mostra outra coisa. Nenhuma árvore, nenhuma rocha,

nenhum boi, nenhum menino, não obstante todos eles “estejam aí”. Mostrando

justamente esse único símbolo do círculo quer-se simbolizar o habitar do si-mesmo,

depois da “grande morte”, na esfera do nada absoluto. Depois da “grande morte”, tudo

se repete de novo e de novo, na abertura absolutamente infinita – e é o si-mesmo que

realiza isso ao tornar-se o seu verdadeiro si-mesmo. Duas pinturas da série simbolizam

esse processo de “repetição”. A nona pintura é assim chamada “voltando à fonte e ao

começo”. Kakuan usa a natureza para simbolizar essa etapa do processo. A décima

pintura é “chegando ao mercado com mãos abertas de alegria”. Kakuan simboliza as

condições da liberdade, mostrando o menino – ou melhor o menino tornado velho –

numa outra jornada, com uma trouxa sobre os seus ombros. Existem várias

interpretações visuais da estória de Kakuan e os detalhes podem variar um pouco. Por

exemplo, nessa versão da décima pintura, vemos um ancião, andando ao lado do

menino, ambos carregando pertences. Mas eles são uma e mesma pessoa. Aqui, várias

idades do menino aparecem simultaneamente.

O mais importante dessa narrativa é que, em qualquer uma das pinturas, seja a décima, a

quarta ou a primeira, em todas elas encontra-se a natureza do Buddha. Essa parábola

elucida meus delineamentos acima, dos sentidos da palavra “Anfang”: alguém, no ponto

de partida de uma prática religiosa ou de uma caminhada. No começo, o si-mesmo está

quase desperto (o si-mesmo como equivalente ao si-mesmo do nada) e, assim, todos os

estágios da caminhada contém esse “si-mesmo”. Nesse modo, cada pintura, cada parte

dessa parábola contém todas as outras.

Agora, se, enquanto princípio, o “Anfang” está contido em cada pintura, então o mesmo

deve ser verdadeiro para o “agora da eternidade”. Pois no Zen, o “começo” é

considerado um despertar religioso com vistas à verdadeira existência, e esse despertar

religioso, denominado “coração – Buddha” (bodhicitta) é uma expressão do “agora da

eternidade”. Tomado como “agora da eternidade”, o “começo” permanece invisível no

mundo dos fenômenos, e, não obstante, permanece resguardado em cada uma das dez

pinturas. As primeiras sete pinturas mostram o praticante à caminho de seu verdadeiro

si-mesmo nos símbolos do boi e da natureza (mesmo que o boi não apareça mais na

sétima pintura). A oitava pintura mostra um círculo simbolizando iluminação. O

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“começo” do praticante religioso no começo de sua prática, a figura do praticante, o boi

e a natureza – todos eles tornam-se aqui, originariamente, um só. Na nona pintura,

aparece o começo do despertar religioso no modo da natureza e na décima pintura no

modo do menino e do ancião, cada um respectivamente com seu verdadeiro si-mesmo.

Lin-chi, um mestre Zen chinês do século IX e conhecido no Japão como Gigen Rinzai,

comentou o tema do despertar religioso, aqui indicado, num escrito chamado, “à

caminho da iluminação, estando, ao mesmo tempo, na iluminação”. “Não estando na

iluminação”, ele disse, “e, ao mesmo tempo, não estando de modo algum a caminho da

iluminação”.

O começo do despertar religioso não foi pintado na nossa série de forma alguma numa

maneira realista. Podemos, no entanto, dizer que esse começo é tanto o “coração” (citta)

como o lado interior do praticante. Esse começo é também o “coração” como tal, o

centro da abertura absolutamente infinita, que se entreabre por todos os seus lados. E

não obstante bodhicitta permaneça invisível, está sempre presente enquanto continuar o

exercício religioso. Somente os seus modos, as suas aparências é que variam. Cada

estágio do exercício religioso é, ele mesmo e simultaneamente, um começo.

Se agora o processo do exercício religioso é, em cada etapa do desenvolvimento e

progresso, idêntico ao começo, tanto no princípio como no tempo, então também essas

dez pinturas – não obstante suas diferenças superficiais – são em princípio o mesmo.

Por isso, poderíamos dizer que a experiência do instante e da iluminação singular, bem

como outros modos de iluminação, são o resultado de uma prática ao longo de toda uma

vida. Esses dois modos são o mesmo enquanto a realização se realiza, no perdurar de

seu em realizando-se. O mesmo é verdadeiro para o Cristianismo.

Para esclarecer isso, permitam-me trazer uma citação do Zazenshin, uma parte do texto

do mestre Zen Dogen Kigen, do século XIII:

As águas são tão claras que se pode ver o fundo.

Um peixe nada ali como um peixe.

O céu é tão claro que

Um pássaro voa ali como um pássaro.

Dogen fala de um peixe que nada como um peixe e de um pássaro que voa como um

pássaro. Essa condição dos dois animais é conhecida, em sânscrito, como tathata,

significando “sendo como o ser-tal”, o modo como as coisas são. Nessa condição, o que

é e o que deveria ser estão unidos, numa abertura absoluta. Depois de abandonar o ego,

na “grande morte”, o verdadeiro si-mesmo do homem encontra-se nessa mesma

condição. Poderíamos então dizer que o começo , ou seja, o fundamento existencial de

cada si-mesmo, é como esse peixe nadando no rio, nadando em tathata, nadando no

“sendo como ser-tal” e que o começo de cada si-mesmo é como o pássaro voando nos

céus, em tathata, voando no “sendo como ser-tal”. Isso equivale, no pensamento

europeu ocidental, à idéia de que seres vivos existem tanto ingênua e naturalmente

como reflexivamente.

2. “O uno é o múltiplo” como expresso no Zen

Dissemos que o despertar religioso, bodhicitta, e que cada estágio do exercício religioso

são idênticos um ao outro. Isso significa ainda que a natureza é idêntica tanto ao começo

como ao processo do exercício. Esse fato aponta, porém, para a relação entre o uno

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originário e as realidades que dele se dispersaram ou, em outras palavras, aponta para a

questão do uno e do múltiplo. Essa é uma das questões filosóficas mais importantes. Na

Europa antiga, encontramos essa questão tratada por Heráclito, na Idade Média, por

Nicolau de Cusa. Vou discutir essa questão usando a expressão “o uno e o múltiplo”.

O terceiro patriarca, Sousan Kyochi (morto 606) escreveu em seu Shinjin-mei: “O uno é

o múltiplo e o múltiplo uno”. Para o patriarca essa era a verdade eterna (tathata).

Contudo, a compreensão do uno e do múltiplo não estava definida uniformemente. Ao

contrário, haviam diferentes interpretações, até mesmo contrárias a essa acima citada, e

o trabalho de interpretação continua até hoje. Vou referir-me a apenas dois intérpretes;

Sonin Kajitani (1914-1995) considerava que o uno era cada coisa singular e,

simultaneamente, cada coisa singular, era também o múltiplo. Sogen Omori (nascido

em 1904), declarou que os aspectos da diferença eram simultaneamente uno e

compreendeu o uno como o múltiplo, contendo dentro de si mesmo todos os diferentes

aspectos da diversidade. Um comentador posterior desse sutra, Taka Nakagawa

interpretou a expressão “o uno é o múltiplo” seguindo o sutra Hui-neng do século VI

(conhecido no Japão como Eno Roshi). Seguindo Hui-neng, Nakagawa escreveu que o

múltiplo é subitamente uno consigo mesmo e que o si-mesmo opera subitamente com o

múltiplo. Nesses exemplos, o uno ou é qualquer coisa dada (e por isso um individual)

ou, ao contrário, é o múltiplo complexo, contendo toda diversidade, ou ainda o uno é

visto como o si-mesmo individual e o todo e, portanto, tanto como item singular como o

todo da criação.

A Escola Kegon, Hua-yen em Chinês, na sua obra “Cinco modos de ensinar segundo a

classificação da escola Hua-yen” vê o uno como o si-mesmo unificado em si mesmo e o

universo como o inesgotável.

Essas várias interpretações do termo “o uno” resultam em dois modos possíveis de

observação: de acordo com o primeiro modo de interpretação, o uno é a unidade de todo

e cada individual ou o si-mesmo (o mestre zen Sonin Kajitani e Taka Nakagawa

favoreceram essa visão); na segunda possível interpretação, uno está para o um

originário. Antes de começar a praticar o Zen, pensava que o uno de “o uno é o

múltiplo” significasse o singular individual. Contudo, ao me tornar praticante, comecei

a compreender que o singular individual é simultaneamente o uno. Percebi ademais que,

enquanto começo, o coração inteiro (bodhicitta) era também o múltiplo de todas as

coisas. O uno originário (ou o coração inteiro) – visto como começo equivalente à

origem – é idêntico ao todo da criação. Ademais, o uno originário e todo o mundo não

se relacionam entre si nem como opostos e nem como polaridades, mas como

mutuamente idênticos. Sem dúvida, essa não é uma resposta suficiente à questão do que

verdadeiramente é, pois o uno originário e o mundo da multiplicidade são apenas o

dentro e o fora da mesma realidade. Olhando essa realidade apenas desde o aspecto ou

lado do mundo dos fenômenos, onde sujeito e objeto estão separados um do outro,

percebemos o mundo do múltiplo como o mundo dos fenômenos. Contudo, fazendo a

experiência do mundo num modo completamente diferente, ou seja, como abertura

infinita, pode-se fazer de todo o coração ou de todos os fenômenos de si mesmo o uno.

A humanidade vive na abertura absolutamente infinita, no modo como o mestre Zen

Gigen Rinzai descreveu no século IX. A humanidade está ou bem sempre a caminho,

sem sequer ter deixado sua casa, ou bem deixou a sua casa sem contudo nunca estar a

caminho. Na experiência da vida quotidiana, encontramo-nos, porém, no ponto em que

esses dois modos se interseccionam, no ponto onde a dimensão vertical da identidade

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original e a dimensão horizontal dos fenômenos múltiplos conectam-se uma com a outra

em todas as áreas. É nesse ponto que a abertura absolutamente infinita se entreabre. Aí,

o uno originário e todo o múltiplo do mundo dos fenômenos são um só.

Aí eles são idênticos um com o outro mesmo que, para uma observação superficial,

pareçam opostos, tal como vimos no caso das dez pinturas do pastor e o boi. Dentro

desse mundo em que sujeito e objeto estão separados um do outro, o maior problema é a

sua diferença. Já no mundo em que a separação ainda não teve lugar, a principal área de

realização é o uno das coisas, ou seja, a unidade. Não importa se o uno originário era

constituído pelo singular ou pelo todo e não importa qual desses dois é o múltiplo; tanto

o uno como o múltiplo são sempre interdependentes, pois eles se interseccionam por

toda parte. No modo da abertura absolutamente infinita, não muda nada se a unidade é

constituída pelo uno ou pelo múltiplo. No mundo da separação entre sujeito e objeto, o

termo uno (na expressão uno e múltiplo) significa coração inteiro ou o uno completo

face à multiplicidade das coisas singulares. Abertura absolutamente infinita de “tudo é

um” refere-se àquele uno que abriga o múltiplo em si mesmo.

Quando o uno da fórmula “o uno é o múltiplo” é entendido em sua simultaneidade,

aquele que o compreende existe dentro da abertura absolutamente infinita entreaberta na

intersecção das dimensões horizontais e verticais. O uno e o múltiplo são idênticos um

ao outro em cada intersecção dessas dimensões. Em outras palavras, enquanto arche, o

uno originário e o múltiplo, enquanto processo de vir a ser que se realiza dentro dos

fenômenos, são na sua base mutuamente idênticos, não obstante a sua oposição

superficial. É que, nessa instância, o começo e o processo não constituem uma oposição

polar. Cada um singular do mundo dos fenômenos veio a ser desde o começo da

identidade originária. Cronológica e fundamentalmente, é o começo que define toda

criação singular.

O uno do ser do que existe e do próprio ser pode ser visto como o operar da natureza na

criação. Esse uno originário do velado e do revelado no operar da natureza corresponde

ao uno originário acima discutido, o uno entre o começo e o todo da criação nesse

mundo, sendo possível apenas na abertura absolutamente ilimitada, que aparece em

cada experiência singular de cada e todo indivíduo. Podemos apropriar-nos desse uno

originário do começo e seu espraiar-se no mundo do devir, em nossa experiência

original, ou seja, no ponto em que si-mesmo e natureza são um com a dimensão

transcendental do passado eterno e do futuro eterno. Esse fato aparece não apenas nas

palavras faladas do Zen Budismo mas também em sua literatura. O uno do uno e

múltiplo ou do começo enquanto bodhicitta e realidade nesse mundo, encontra sua

expressão nos termos – um pouco abstratos – zen-budistas como “um é tudo”. Nesses

termos, o processo de meditação Zen encontra variadas expressões, cada uma de acordo

com o sentimento do praticante. Na literatura Zen, porém, essa identidade exprime-se

em termos menos abstratos. Esses testemunhos literários expressam o uno entre o si

mesmo e os fenômenos não apenas no modo do sentimento pessoal do praticante mas

também o uno do mundo ou da natureza. É muito mais fácil e vivo exprimir desse modo

e também de nos tornarmos parte do uno. Sutras e textos Zen budistas surgem como se

do intelecto, do sentimento e da volição do praticante. Mas igualmente resguardado

nesses textos literários encontra-se o coração ou o espírito do homem que, valendo-se

dessa caneta, encontrou a si mesmo no uno com toda a criação, de maneira que esses

textos colocam-se em palavras a partir dos sentimentos do autor.

3. Diferença e identidade do começo e de toda a criação

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135

A relação entre o começo e toda a criação no mundo dos fenômenos encontra-se

mencionada no poema do monge zen Ryokan (1758-1831):

Ao longo da água corrente do riacho da montanha, eu procurava a sua fonte. E quanto pareceu-

me que a tinha encontrado, vi-me perdido. Percebi, pela primeira vez, que um tal começo é

inalcançável. Águas límpidas jorravam por toda parte e por todo lugar que encavava com meu

bastão.

Esse poema nos fala de um homem buscando a fonte de um córrego da montanha. Justo

quando acreditara ter finalmente localizado a fonte, vê-se tomado por um grande

desapontamento. É que se descobriu compreendendo que tal fonte não existe. Por onde

fosse que tocasse com seu bastão, água fresca jorrava de todo lugar. O poema refere-se

ao começo do despertar religioso e o processo do seu exercício e prática. O poema nos

mostra que, embora não haja um começo especial ou um ponto fixo para o começo,

insiste-se sempre ainda e com empenho em buscar um ponto inicial. O correr da água

aparece por toda parte onde corre o riacho da montanha. No Zen Budismo, esse jorrar

significa o despertar religioso como bodhicitta. O jorrar simboliza ademais a

iluminação. Iluminação não é, portanto, uma meta alcançada após se ter cumprido a

última etapa. É bem mais a meta velada e resguardada dentro de cada uma das etapas do

processo que, assim como o começo, igualmente velado e abrigado em cada uma das

etapas do processo, pode ser uma espécie de iluminação capaz de servir como meta da

etapa em questão.

É, sem dúvida, um fato que a mesmidade originária do começo e da iluminação tornou-

se evidente ao longo de cada etapa do exercício religioso na vida quotidiana e que isso

significa também o eterno agora, manifesto em cada momento da vida. Olhando dessa

maneira para o nosso problema, tempo e eternidade são basicamente um só. A unidade

de tempo e eternidade aparece somente quando a humanidade vive na unidade com toda

a criação, vivendo-a com todo o seu coração e toda a sua alma. Permitam-me citar ainda

uma vez o mestre Zen Dogen.

As águas são tão claras que se pode ver o fundo.

Aqui, um peixe nada como um peixe.

O céu é tão vasto e claro.

Aqui, um pássaro voa como um pássaro.

Estamos lidando aqui com os animais em geral e com peixes e pássaros em particular.

Mas eles são um só com os seus arredores e ambientes. Cumprem o seu destino como

peixe e como pássaro. O peixe pode nadar para onde a imaginação o conduz. Para onde

for, o peixe nadará como peixe. O mesmo vale para o pássaro, enquanto um pássaro que

voa como um pássaro, indistinto de seu elemento.

Ao que nos concerne, a unidade de tempo e eternidade na abertura absolutamente

infinita aponta, por um lado, em direção a nossa existência individual e, por outro, em

direção ao nosso ser parte da humanidade – numa unidade harmoniosa com o nosso

entorno. Um haiku de Matsuo Bashô, poeta Zen do século XVII, esclarece isso de

maneira bem precisa.

Silenciosamente, a cigarra canta entre os rochedos.

A inspiração para esse poema provém de uma visita de Bashô a um templo na montanha

em maio de 1689. Lá ele ouviu o canto claro e gritante da cigarra. Nesse poema,

encontramos não apenas a imagem profunda e silenciosa do chão do tempo. Remoto,

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encontramos também o coração quieto do próprio Bashô. É como se esse coração

cantasse em uníssono com a voz clara e sem pressa da cigarra, removido da azáfama e

alarido do mundo das ocupações. O começo se entreabre como uma abertura

absolutamente infinita. E o coração de quem lê essas linhas, de início, apenas escuta.

Escuta simplesmente a unidade do canto da cigarra e do próprio Bashô. Depois, porém,

o coração do leitor começa a cantar com eles.

Nas primeiras páginas do célebre diário de viagem de Bashô Oku no hosomichi (A

estreita estrada para o norte distante), encontramos a seguinte passagem, muito

conhecida no Japão.

O tempo é um andarilho peregrino na eternidade. Aqueles que caminham indo e vindo são

também andarilhos. Os que vivem em navios e os que envelhecem polindo o distante, todos eles

estão diariamente a caminho. Vivem na casa da viagem. Os mais velhos costumam morrer nesse

estar a caminho. Há um tempo atrás, fui também convidado pelo vento, que movimenta as

nuvens, a ir-me. Fiquei vagando para lá e para cá e, enquanto derivava ao longo da costa, acabei,

no outono passado e logo após o ano ter dado a sua volta, voltando sozinho para casa a fim de

limpar as teias de aranha de minha casa à beira do rio. Havia planejado ultrapassar a barreira em

Shirakawa, sob um céu nebuloso, enlouquecido, possuído por um deus que transforma os

corações humanos em joguetes com a nossa própria vontade e convidado pelo Deus das flechas.

Por isso, encontrava-me impotente. Enxuguei as lágrimas na minha roupa, amarrei a corda do

meu chapéu de bambu, coloquei mocha nos meus pés… e, durante todo o tempo gasto nesses

afazeres, ficava pensando como seria a lua lá em Matsushima e como colocaria a casa nas mãos

de quem a cuidasse e me mudaria para a casa de campo em Sanpu.

Essa passagem provém da descrição feita por Bashô de uma de suas viagens que o levou

para Michinoku, situado no norte das ilhas do Japão. Essa viagem durou dois anos e

meio. Bashô descreve esse período como “uma jornada da eternidade para a

eternidade”. De seus companheiros de viagem conta que alguns dos que conduziam os

barcos ou cavalos passavam a sua vida em rota e muitos morriam ao longo dela. Bashô

também nos narra sobre si mesmo, sobre seus sentimentos e sobre o tempo de andança

como também sobre seus planos para voltar ao rio Sumidagawa. Conta ainda de uma

correnteza fresca, movida por poderes além dele mesmo.

Quatro dias antes da sua morte, ele escreveu o seguinte haiku:

À caminho, tomado pela doença – sonhos de viajante por entre campos secos.

Esses haikus nos mostram tanto o mundo dos fenômenos (o âmbito da viagem) como o

começo enquanto abertura absolutamente infinita, aberta para a unidade em cada passo

que ele dá. Quando esquecemos de nos ocuparmos de nós mesmos, quando nossos

corações se tornam um com toda a criação, o mundo da abertura entreabre-se para nós e

a situação de vida caracterizada por “O uno é o múltiplo” aparece, tornando-se uma

presença em nossos corações. Um outro haiku de Bashô demonstra vivamente a unidade

do seu coração com a natureza e a criação.

No ramo murcho – um corvo à luz do outono, à caminho da noite.

Bashô escreveu esse haiku aos 36 anos. Fez algumas modificações dez anos depois e o

publicou finalmente nessa forma, cinco anos antes da sua morte. Ele nos descreve uma

paisagem outonal, um corvo pousado num galho murcho, cercado de escuridão. Não se

trata, todavia, apenas de uma imagem de solidão resignada e emoldurada por coisas

cíclicas fenecendo, chegando a um fim e redescobrindo novos começos. [Essas palavras

são] também ele mesmo Bashô, sua própria forma no anoitecer da sua vida. Ele escolhe

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justamente um corvo, mesmo sem saber de sua dissolução num futuro não tão distante.

Para nós, esse haiku separa claramente as imagens da natureza e a imagem do poeta

idoso. Contudo, ambas as imagens nos tocam por causa de sua unidade. Quando o

coração do haiku toca as cordas de nossos corações e os deixa ressoar no som, então a

forma do corvo no galho seco descreve nossas próprias formas, nós mesmos. Nesse

haiku, o corvo é, sem dúvida, um corvo, e Bashô é, sem dúvida, Bashô, assim como o

leitor dessas linhas é, indubitavelmente, o leitor. Nós, leitores, nós, os que falam e

escutam, sabemos muito bem que esses três encontram-se numa unidade. Como esse

haiku toca o leitor em sua parte mais interior, a abertura absolutamente infinita haverá

de entreabrir-se justamente aí.

Com esse haiku, sabemos que a abertura absolutamente infinita se abre – simplesmente

porque um corvo é um corvo e, não obstante, o corvo é também a forma de Bashô e,

igualmente, a forma de cada um que lê esse haiku. Somente quando os três corações –

do corvo, do Bashô, do leitor encontram-se mutuamente independentes e não obstante

simultaneamente unos é que a abertura absolutamente infinita tornar-se-á aparente,

sendo o coração uno de todas as coisas e, ao mesmo tempo, o seu começo.

Conclusão

Vimos o problema do Zen Budismo e o termo “começo” a partir de vários ângulos.

Vimos como o mestre Zen Kakuan tratou esse problema, na sua série “Dez pinturas do

Boi e seu Pastor”. Vimos depois o mesmo problema num poema de Ryokan e em vários

haikus de Matsuo Bashô. Desses exemplos ficou claro que o começo desenvolve-se

dentro de si mesmo, seguindo a sabedoria do tempo e do princípio e, inversamente, que

cada fenômeno desse mundo carrega dentro de si o começo. Hoje em dia, esquecemos o

sentido de nossas ações e isso independentemente de qualquer tipo de ação. Todas as

ações provêm do começo e tornam-se aparentes no mundo dos fenômenos através de

disseminação, separação e do uno. Cada passo de nossas realidades é basicamente

idêntico ao uno originário, a esse tipo de unidade que é simultaneamente o começo e o

fim cronológico de todos os seres e igualmente o princípio de sua existência. Se

fôssemos capazes de perceber em detalhe as estruturas desse mundo, ou seja, o modo

em que esse mundo se revela e se vela, e se fôssemos capazes de viver no “aqui e

agora”, no “uno é o múltiplo”, seria bem mais fácil encontrar nortes para a solução dos

problemas do mundo em que vivemos.

Tradução de Marcia Sá Cavalcante Schuback

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O boi e seu pastor*

[Diagramadora, se possível inserir aqui 10 figuras, indico o site. Esses desenhos já

têm direitos livres. Segue os ns. abaixo e coloca ao lado as figuras – site:

http://de.wikipedia.org/wiki/Der_Ochse_und_sein_Hirte )

I – Procurando o boi

Por que e onde procurar? Afinal, o boi nunca foi perdido. Quem se perdeu de si mesmo

foi o pastor, tornando-se estranho para o seu próprio boi ao perder-se num longe

empoeirado.

As montanhas do começo ficam cada vez mais distantes. Sem se dar conta, o pastor

acha-se emaranhado em encruzilhadas. Cobiça de ganho e medo de perda ardem como

fogo em chamas e as oposições entre certo e errado, justo e injusto lançam-se umas

contra as outras como pontas de lança num campo de batalha

Poema de louvor

Sozinho no imenso, caminha o pastor,

Perdido no meio da floresta densa, ele busca o seu boi.

Montanhas ao longe, águas correndo distantes,

E o caminho misturado à vegetação infinita.

Com o corpo morto de fatiga e o coração

Desesperado, o pastor não sabe para onde ir.

No cair da tarde, só escuta as cigarras

cantando na floresta de plátanos.

2

Voltado apenas para fora, o pastor

Procura com todas as suas forças.

Sem perceber, os pés pisam o pântano

fundo e lamacento.

Quantas vezes sobre gramas perfumadas,

durante o pôr do sol,

não cantou sem porquê o Hsin-feng, o canto do pastor?

3

* A presente tradução foi feita a partir de uma versão alemã publicada sob o título Zen Geschichte aus

dem alten China. Der Ochs und sein Hirte, na tradução de Kôichi Tsujimura e Hartmut Buchner

(Pfullingen: Neske, 1958). Fizemos aqui uma tradução livre, seguindo os comentários de Daizohhutsu R.

Ohtsu que acompanham a edição alemã, mas também os de Daisetz Teitaro Suzuki, “The ten Cow-

Herding Pictures”, publicado em Essays in Zen Buddhism, (London: Rider and Company, 1970) e os da

professora Eiko Hanaoka em seu livro Zen and Christianity – From the Standpoint of Absolute

Nothingness (Kyoto: Maruen Kyoto Publication Service Center, 2008).

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Lá no começo não há pegadas. Quem

haveria de ali procurar?

Errante, chega num lugar escondido e remoto,

Na névoa densa, trepadeiras se trançam.

Ressabiado ele volta logo para casa segurando

O boi pelo nariz.

Ao mesmo tempo, o seu canto soa desencorajado

Sob as árvores à margem da água.

II - Encontrando as pegadas do boi

A leitura do sutra e a escuta da doutrina levaram o pastor a intuir alguma coisa sobre o

sentido da verdade. Ele descobriu as pegadas. Entende agora que as coisas, por mais

distintas que sejam a sua forma e o seu modo, possuem valor de ouro e que a essência

de cada coisa não é distinta da sua própria essência. Não obstante, ele não consegue

diferenciar o autêntico do inautêntico, e ainda menos o verdadeiro do não verdadeiro.

Ele ainda não consegue adentrar o portal. É apenas em sentido provisório que se pode

dizer que descobriu as pegadas.

Poema de louvor

1

À beira d’água e sob as árvores, encontram-se

Espalhadas as pegadas do que se perdeu.

A mata cresce densa e perfumada: terá o pastor

encontrado o caminho?

Por mais distante que o boi tenha ido rumo

Ao remoto de uma montanha profunda:

O seu nariz alcança o céu amplo

E nada pode escondê-lo.

2

Perto da árvore seca, à beira da falésia,

Correm muitos caminhos de errância.

Como no ninho do pássaro, recoberto de mato,

Ele circula na pequena gruta.

Perceberá ele a sua própria errância? Quando os pés,

Em busca, seguem as pegadas,

Ele então perde-se do boi, deixando-o

escapulir.

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140

3

Muitos procuram o boi, mas só poucos

o viram.

Nas montanhas ao norte ou abaixo no sul, onde o

pastor o encontrou?

Um caminho do claro e do escuro,

vai e vem sobre cada coisa.

Se o pastor encontra a si mesmo num tal caminho

então não precisa mais buscar.

III - Vendo o boi

No instante em que o pastor escuta a voz, ele corre para trás e encontra, no raio fugidio

do olhar, o começo. Os sentidos oscilantes e incertos apaziguam-se na consonância

serena com esse começo. Desvelado, o boi governa em sua totalidade cada fazer do

pastor. Ele vigora no seu modo essencial como o sal na água do mar ou como a tinta na

cor do pintor. Quando o pastor abre os olhos para o distante e olha, ele nada mais vê do

que a si mesmo.

Poema de louvor

1

Num galho ao alto, canta claro e límpido

Um rouxinol.

O sol brilha quente e doce sopra o vento.

À margem verdejam os prados.

O boi está ali inteiramente nele, não há mais lugar algum

onde possa esconder-se.

Tão magnífica é essa cabeça com chifres

em pé: que pintor saberia imitá-la?

2

Figura e voz do boi são ouvidas

e entrevistas.

O pintor do boi, Daissung, tornou-se então

Um fantástico mestre.

Sua imagem é, da cabeça ao rabo, como

O boi do coração.

Mas quando a prova fica mais severa, ele percebe

Como ainda está incompleto.

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141

3

O rosto do pastor depara-se com o nariz do boi.

Agora ele não precisa mais seguir os mugidos.

Nem branco nem azul é esse boi.

Calmo o pastor consente, permitindo-se

um doce sorriso.

Para a paisagem adorável não há pincel

ou lápis.

IV - Agarrando o boi

Hoje, o menino pastor encontrou pela primeira vez o boi, de há muito escondido na

mata selvagem.

Só que o mundo habitual e agradável dessa mata o atraía tanto para dentro que ficou

difícil segurá-lo. Ele ainda não conseguia escapar da nostalgia do bosque perfumado e

viçoso. Nele ainda persistia o tinho teimoso e a animalidade selvagem o dominava. Se o

pastor quiser trazê-lo para um ânimo calmo e autêntico, será preciso domá-lo com o

rigor do chicote.

Poema de louvor

1

Com a energia de todo o seu ser,

o menino pastor capturou por fim o boi.

Mas tanto mais selvagem era a sua vontade

Mais ingovernável era o seu poder.

O boi logo escapole, adentrando

regiões fundas e indevassáveis.

Ele logo corre para as névoas e nuvens

E quer esconder-se.

2

Segura bem a corda, não deixa o boi ir embora!

Muitos males e os mais refinados ainda não

foram superados.

Mesmo quando o pastor o puxa cuidadoso

pelo nariz com a corda,

O boi se vira de vez em quando para trás

e quer voltar para a mata.

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3

Onde os matos perfumados alcançam o céu,

O menino pastor captura o boi.

Mas ele não deve largar a mão

Da corda que segura o nariz do boi.

O caminho de volta vislumbra-se claro

Para o pastor –

Ele precisa, no entanto, parar muitas vezes com o boi

No rio azul e nas verdes montanhas.

V - Domesticando o boi

Se aparece um pensamento, então a esse segue-se inexoravelemente um outro –Infinito

um após outro. No crescer, torna-se verdadeiro; na errância, torna-se, ao contrário, não

verdadeiro. Tudo que vigora no mundo não provém do mundo mas acontece unicamente

a partir do coração em começo. Segure firme a corda e não permita nenhuma hesitação!

Poema de louvor

1

O menino pastor não pode deixar por nenhum

momento a corda e o chicote.

Senão o boi haveria de rapidamente

Perder-se no ermo empoeirado.

Se o boi for domesticado com doçura

E trazido para a sua calma,

Ele haverá de seguir o pastor

Sem corrente ou cadeia.

2

Às vezes o boi pára na montanha e

Descansa lá um bom dia.

Às vezes prossegue na via tão movimentada

que se suja da poeira dos cavalos.

Nunca se alimenta do pasto que cresce

nos campos de outros homens.

Ir e vir – ele não precisa de nenhum esforço

do pastor. O boi é que o leva com toda calma.

3

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Numa criação paciente, o boi acostumou-se

Ao pastor e tornou-se terno.

Mesmo atravessando a poeira,

Ele não se suja.

Domesticação vagarosa. Com as quedas constantes,

O menino pastor ganhou toda a sua força.

Sob as árvores, outros homens encontravam

Seu riso potente.

VI - Voltando para casa no lombo do boi

A luta já passou. Mesmo ganhos e perdas tornaram-se um nada. O pastor canta uma

canção camponesa dos lenhadores e toca na sua flauta, à maneira camponesa dos jovens

da aldeia. Ele senta-se no lombo do boi e olha o céu azul. Se alguém o chama, ele não se

vira. Se alguém o toca no braço, ele não pensa em parar.

Poema de louvor

1

O pastor volta para casa no lombo do boi,

sereno e desapegado.

Na névoa que puxa o cair da noite para o longe

Soa o canto de sua flauta.

Compasso por compasso, verso por verso, entoa

A sintonia sem fim do menino pastor.

Escutando o canto, ele não precisa mais

Dizer como vai o pastor.

2

Ele indica com a mão o lugar lá na frente

Da represa – lá encontra-se o lar.

Ele saiu do embaçado e do nevoeiro e sopra

baixinho as flautas de madeira.

Assim os campos transformam-se em cantos

da volta ao lar.

Quem consegue ouvir esse canto, não acha mais

Tão bonitas as peças do Mestre Bai-ya.

3

Sentado no boi, sem se virar, volta

para casa de coração feliz.

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Com o chapéu de bambu e as vestes de palha

adentra a névoa do anoitecer.

Passo a passo. O vento frio sopra calmo

E doce.

O boi nem olha para o mato

Enfadonho.

VII - O boi foi esquecido, o menino pastor permanece

Não existem dois Dharmas. Somente ultrapassando, o boi pode virar guia de caminho.

Ele parece um laço ou uma vara com o qual a lebre fisga um peixe. Com o pastor

acontece algo como se um ouro brilhante irrompesse de um mineral ou como se a lua,

liberando-se das nuvens, aparecesse em seu brilho. Luzia uma luz fria já antes do dia do

nascer de um mundo.

Poema de louvor

1

O pastor já voltou para casa no lombo do boi.

Não há mais nenhum boi. O pastor senta-se

sozinho, desapegado e calmo.

Dorme quieto, pois o sol vermelho escaldante

Já está bem alto no céu.

Inúteis são o chicote e a corda, jogados para lá,

Sob o teto de palha.

2

Embora o pastor tenha trazido o boi das montanhas,

Não se vê mais o boi no estábulo.

O manto de palha e o chapéu de bambu

Tornaram-se inúteis.

O pastor vive cantando e dançando, todo

Desapegado, não mais ligado a nada.

Entre céu e terra, tornou-se

Seu próprio senhor.

3

O pastor está de volta à casa, agora por toda parte

Só há o lar.

Quando se esquecem as coisas e o eu, a paz

governa durante todo o dia.

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Creia no cimo “acesso ao segredo profundo”.

Nesse cimo o homem não pertence

Mais ao mundo dos homens.

VIII - Esquecendo boi e pastor

Toda cobiça mundana foi esquecida e também todo sentido de sacralidade esvaziou-se

sem deixar pegadas. Não fique satisfeito no lugar em que mora o Budha. Passe correndo

pelo lugar em que mora o Budha. Não se pendurando em nenhum dos dois, não se pode

nunca ver o seu interior, nem mesmo quem tivesse mil olhos. A sacralidade de oferecer

flores a pássaros é somente vergonha.

Poema de louvor

1

Chicote e corda, boi e pastor tornaram-se nada,

Deixando nenhuma pegada.

Nenhuma palavra alcança ou consegue medir

o céu azul e vasto.

Como a neve poderia permanecer sob a chama

Encarnada da lareira em brasa?

Somente chegando num tal lugar é que um homem

Pode corresponder aos antigos mestres.

2

Vergonha! Eu queria salvar o mundo. Surpresa!

Não há mundo mais para se salvar.

Nenhuma palavra é capaz de dizer

Como se sente nessa situação o pastor.

Predecessores – sucessores: aqui não há

nenhum deles.

Enigma! Quem pode herdar essa verdade,

Quem pode pervertê-la?

3

Com um golpe só, o céu grande

Irrompe como tambor

Sagrado é quando o mundano desaparece sem deixar pegadas.

No não caminhado termina o caminho.

Diante do templo brilha a lua clara e sopra o vento.

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Toda água de todos os rios minam no mar imenso.

IX - Votando à fonte e ao começo

Do começo é-se puro e não há poeira. Lá pode-se ver o alternar de surgimento e

desaparecimento dos seres e habitar a calma recolhedora da não ação. Lá não se

consegue iludir-se com a imagem fugidia e enganadora do mundo e nenhum exercício é

mais necessário. As correntezas fluem azuis, as montanhas erguem-se verdes. Ele

repousa nele mesmo e olha o transformar-se das coisas.

Poema de louvor

1

De volta à fonte e ao começo, o pastor tudo realizou.

Nada é melhor do que ser sempre no lugar

Como cego e surdo.

Em sua casinha, ele se senta e não vê

Coisa nenhuma lá fora.

Sem limites flui o rio como ele flui. Vermelha

floresce a flor, como ela floresce.

2

Nunca o ato maravilhoso fica ao serviço

Do ser e do nada.

O que quer que veja e escute, não precisa mais

Da surdez e nem da cegueira.

Ontem o corvo dourado voou para o mar,

Hoje o círculo de fogo ilumina

A aurora como outrora.

3

O pastor já usou toda a força do coração e

Percorreu todos os caminhos até o fim.

Nem sequer a iluminação mais translúcida supera

A surdez e a cegueira.

Debaixo das sandálias de palha termina o caminho,

Que ele outrora já conheceu.

Nenhum pássaro canta. Flores vermelhas florescem

Em magníficos tumultos.

X - Chegando ao mercado com mãos abertas de alegria

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O enorme portal está bem fechado e mesmo o santo mais sábio não pode vê-lo. Ele já

enterrou bem fundo a sua essência iluminada e se permitiu retrair-se dos sábios de há

muito venerados. Às vezes, vem ao mercado com sua trouxa. Às vezes, volta com um

cajado para a sua casinha. Quando lhe apetece visita um bar e uma venda de peixe para

que os homens bêbados possam iluminar-se para si mesmos.

Poema de louvor

1

Com peito aberto e pés nus ele chega ao mercado.

O rosto pintado de terra, a cabeça coberta de cinzas.

Suas bochechas estão inchadas de riso potente.

Sem ocupar-se de segredos e admirações,

Ele deixa as flores florescerem.

Amigavelmente vem esse homem

De uma raça estranha.

Às vezes seu rosto mostra claramente traços

De um cavalo, às vezes, traços de um jumento.

Se balança o bastão de ferro rápido como o vento –

Portas e portais logo se abrem amplos e espaçosos.

3

O bastão de ferro cai reto do ombro sobre o rosto.

Ás vezes ele fala huno, às vezes chinês, com

Riso potente em suas bochechas.

Quando um homem compreende como encontrar-se

Consigo mesmo e permanecer desconhecido para si –

O portal para o palácio haverá de abrir-se imenso.

Tradução de Marcia Sá Cavalcante Schuback

Nota

Isto sirva de “homenagem” ao entranhável amigo Hermógenes Harada. Foi um dos

principais interlocutores que tive em minha vida, começando na Alemanha e

prolongando-se em Petrópolis. Depois, seguimos caminhos diferentes e nunca mais nos

encontramos. Mas sua inspiração continua. Lembro-me que seu professor e orientador

Heinrich Rombach me confessou um dia: Harada se situa na tradição dos grandes

filósofos do Ocidente, começando com os gregos, passando por Agostinho, pelos

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medievais, por Kant e culminando em Heidegger. Eu acredito. É uma estrela que ainda

não foi descoberta. Estas são as mais belas. E quando ver seu esplendor a Terra inteira

rejuvenesce (Leonardo Boff).

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