integrais do movimento e sistemas conservativos com

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Integrais do movimento e sistemas conservativos com grau de liberdade A existência de funções em fase invariantes para o movimento, chamadas integrais primeiras ou constantes do movimento, é extremamente importante tanto do ponto de vista físico como do ponto de vista do tratamento matemático de um sistema dinâmico. Definição 1.3 Dado um sistema , uma função diz-se uma constante do movimento ou uma integral primeira para o fluxo associado se se tem para todo o e para qualquer solução . Portanto, o valor de uma integral primeira mantém-se constante ao longo do movimento, embora dependa, como é óbvio, da condição inicial escolhida. Dito de outra maneira, as superfície de nível definidas por , que são hipersuperfícies em , são invariantes para o movimento, e portanto estão formadas por órbitas do sistema. Em geral, dada uma função em fase ou variável dinâmica , a sua variação temporal ao longo de uma trajectória vem dada por onde utilizámos a regra de derivação da função composta. Dada uma variável dinâmica e um campo de vectores , podemos associar-lhe uma nova variável dinâmica, , dada por chamada derivada de Lie de em relação ao campo , cujo significado é o de associar a cada ponto do espaço de fases a derivada direccional de nesse ponto segundo o vector tangente à órbita que passa por esse ponto. Em termos desta nomenclatura, podemos dizer que uma variável dinâmica é uma integral primeira do campo se e se a derivada de Lie . O exemplo mais simples de sistema que possui uma integral primeira é o de uma partícula em movimento unidimensional sob a acção de uma força que não depende da

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Integrais do movimento e sistemas conservativos com grau de liberdade

A existência de funções em fase invariantes para o movimento, chamadas integrais primeiras ou constantes do movimento, é extremamente importante tanto do ponto de vista físico como do ponto de vista do tratamento matemático de um sistema dinâmico.

Definição 1.3 Dado um sistema , uma função diz-se uma constante do movimento ou uma integral primeira para o fluxo associado se se tem

para todo o e para qualquer solução . Portanto, o valor de uma integral primeira mantém-se constante ao longo do movimento, embora dependa, como é óbvio, da condição inicial escolhida. Dito de outra

maneira, as superfície de nível definidas por , que são

hipersuperfícies em , são invariantes para o movimento, e portanto estão formadas por órbitas do sistema. Em geral, dada uma função em fase ou variável

dinâmica , a sua variação temporal ao longo de uma trajectória vem dada por

onde utilizámos a regra de derivação da função composta. Dada uma variável dinâmica

e um campo de vectores , podemos associar-lhe uma nova

variável dinâmica, , dada por

chamada derivada de Lie de em relação ao campo , cujo significado é o de associar

a cada ponto do espaço de fases a derivada direccional de nesse ponto segundo o vector tangente à órbita que passa por esse ponto. Em termos desta nomenclatura,

podemos dizer que uma variável dinâmica é uma integral primeira do campo se e

só se a derivada de Lie . O exemplo mais simples de sistema que possui uma integral primeira é o de uma partícula em movimento unidimensional sob a acção de uma força que não depende da

velocidade nem do tempo. Nesse caso, a equação de Newton é da forma

, com para uma certa função . Multiplicando ambos

os membros por e integrando vem

Neste caso portanto, como em qualquer caso de partículas sujeitas a forças puramente posicionais que derivam de um potencial, a energia é uma integral primária. Em termos

da derivada de Lie teremos , e

Estes sistemas para os quais a energia é uma integral primeira chamam-se conservativos e constituem uma classe muito particular. O oscilador harmónico e o pêndulo são dois exemplos desta classe. Mas a existência de uma integral primeira é uma propriedade muito restritiva. Consideremos por exemplo o oscilador amortecido. Vimos já qual era o aspecto qualitativo do retrato de fase deste sistema. Suponhamos que tinha uma integral

primeira . Então, seria constante sobre cada órbita. Uma órbita dada, qualquer,

tende para a origem . Então, por continuidade, teria que assumir sobre a órbita

escolhida o valor que toma na origem. Mas como a órbita em questão é

arbitrária, concluimos que terá que ser constante em todo o plano. Portanto, a única integral primeira para o oscilador amortecido é a função constante em todo o plano, que é trivialmente integral primeira de qualquer órbita. Este exemplo mostra que a existência de pontos de equilíbrio ou órbitas periódicas assimptóticamente estáveis é incompatível com a existência de integrais primeiras não triviais. Portanto, a existência de constantes do movimento, tenham elas ou não o significado físico de uma energia, é uma propriedade muito restritiva. Uma constante do movimento é um caso particular de uma função de Liapounov, conceito introduzido na tentativa de formular critérios de estabilidade de pontos de equilíbrio.

Teorema 1.1 (Liapounov) Seja um ponto singular do sistema .

Suponhamos que existe uma variável dinâmica , a que chamamos função

de Liapounov, definida numa vizinhança de e tal que:

1. , i.e., tem um mínimo em .

2. em , i.e., é não crescente ao longo das trajectórias

em .

Então o ponto é estável para tempos positivos. Se, além disso, a derivada de Lie de

fôr estritamente negativa em , então é assimptóticamente estável para tempos positivos. É desnecessária uma demonstração muito formal. De facto, o resultado é imediato se

considerarmos as curvas de nível de numa vizinhança de . A condição sobre a derivada de Lie implica que o movimento com uma certa condição inicial fica confinado à bola fechada cuja fronteira é a curva de nível que passa por esse ponto. Caso a derivada de Lie seja estritamente negativa, as órbitas são sempre transversais às curvas de nível,

e portanto as soluções tendem para . No caso do oscilador harmónico e do pêndulo, a energia é uma integral primeira e portanto uma função de Liapounov para o sistema (verifica as hipóteses do teorema no caso fraco). Vejamos que no caso do oscilador amortecido,

a energia também é uma função de Liapounov para o ponto

(verifica as hipóteses do teorema no caso forte). De facto,

onde a desigualdade vale numa vizinhança do ponto singular excepto sobre o eixo dos

. Não é portanto uma boa função de Liapounov em sentido estrito, uma vez que não

se tem em . No entanto, a versão forte do teorema de Liapounov admite uma formulação mais geral, que permite que se dê a igualdade no ponto de equilíbrio e num conjunto que não contenha nenhuma órbita. A energia é uma função de Liapounov para o oscilador amortecido neste sentido, e é verdade que é estritamente decrescente ao longo das trajectórias, excepto num conjunto discreto de instantes do tempo em que tem pontos de inflexão. Como corolário do teorema de Liapounov temos o seguinte resultado: Corolário 1.2 Dado um sistema mecânico com forças puramente posicionais,

se a energia potencial tem um mínimo isolado em , então o ponto singular

é estável (no futuro e no passado). A este último resultado chama-se habitualmente teorema de Lagrange-Dirichlet, e é bastante anterior ao teorema de Liapounov, do qual se obtém como consequência

tomando para função de Liapounov a energia total . A partir de agora e até ao fim desta secção vamos falar apenas de sistemas conservativos

e com grau de liberdade, i.e., sistemas da forma

que possuem a integral primeira da energia, . Vejamos primeiro alguns exemplos simples:

a. b. c. d. e.

Figura: Retratos de fase e gráficos da função potencial para alguns sistemas simples (vide texto). a: retrato de fases da partícula livre; b: retrato de fases do oscilador

harmónico; c: forma da função potencial do oscilador harmónico; d: retrato de

fases do repulsor harmónico; e: forma da função potencial do repulsor harmónico.

1. Partícula livre: as curvas de nível de são rectas (figura 1.2a).

2. Oscilador harmónico: a origem é um centro (figura 1.2b); as curvas de nível de

são elipses (figura 1.2c).

3. Repulsor harmónico: a origem é uma sela (figura 1.2d); as curvas de nível de são hipérboles (figura 1.2e).

Estes três exemplos são casos em que os sistemas se podem integrar explícitamente e a equação das órbitas se pode obter por eliminação do tempo a partir das equações das trajectórias. Mas sobretudo a análise destes casos faz-nos entender qual é o aspecto qualitativo do retrato de fases na vizinhança de um mínimo ou de máximo local do potencial, e qual é o processo que nos permite obter o retrato de fases a partir do gráfico do potencial. Assim, é óbvio do que vimos até agora que o retrato de fase associado a um sistema não linear com um potencial da forma indicada na figura 1.3a é do tipo esboçado na figura 1.3b.

Figura: Esboço do retrato de fases (em baixo) a partir de um potencial com a forma indicada na figura por cima. Todos estes retratos de fase são simétricos em relação ao

eixo dos . O período varia com a energia e tende para infinito quando (voltaremos a esta questão num exercício das séries).

Análogamente, para o potencial corrigido associado à coordenada radial do problema de Kepler em coordenadas polares, ver a figura 1.4.

a. b.

Figura: Esboço do potencial corrigido do problema de Kepler e do respectivo retrato de fases.