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Revista Econômica, Rio de Janeiro, v 13, n 1, junho 2011 p. 37-46, Favela como montagem: compreendendo a dinâmica e heterogeneidade Emmanoel de Oliveira Boff 22 * 1.Introdução O artigo do professor Dymski procura iniciar um debate sobre vários temas importantes com relação ao tema das favelas no Brasil na atualidade. A base para esta discussão está na constatação de dois fatos: primeiro, de que a favela, hoje, não pode ser analisada como um território urbano cuja dinâmica social, econômica, política e cultural é homogênea. Ou seja, há inúmeras diferenças tanto dentro das favelas quanto entre as favelas, e tais diferenças se multiplicam por todo o território nacional. Em segundo lugar, deve-se constatar que a favela não se define apenas negativamente, como território de carências diversas. Na primeira metade do século passado, a definição de favela como lugar de carência trazia como corolário que a favela deveria, em algum momento, ser erradicada e seus habitantes transferidos para outras áreas como, por exemplo, Parques Proletários (BURGOS, 1998). Neste sentido, quando Dymski se propõe a analisar dez modos possíveis de enxergar a favela, sua contribuição vai ao encontro do reconhecimento da não-homogeneidade do fenômeno da favela na atualidade. Também contempla o fato de que não se pode simplesmente tentar erradicar as favelas da cidade hoje, tanto pela sua extensão quanto pelo seu enraizamento cultural, social e econômico dentro das cidades. Assim, a questão, atualmente, passa a ser de como realizar um processo de integração da favela ao resto da cidade com o passar do tempo. Desta forma, reconhecendo, ao menos como hipótese de trabalho, a especificidade da favela dentro do tecido urbano, este comentário vai sugerir um arcabouço teórico para que se possa compreender sua heterogeneidade interna e sua especificidade com relação ao resto da cidade, bem como as favelas mudam com o tempo. A partir deste arcabouço, talvez se possa compreender as diferentes possibilidades de integrar a favela à *22*Professor Adjunto da Faculdade de Economia da UFF. Endereço para correspondência: Rua Tiradentes, 17, Ingá, Niterói. Cep. 24210-510. Email: [email protected].

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Favela como montagem: compreendendo a dinâmica e heterogeneidade

Emmanoel de Oliveira Boff22*

1.Introdução

O artigo do professor Dymski procura iniciar um debate sobre vários temas importantes com relação ao tema das favelas no Brasil na atualidade. A base para esta discussão está na constatação de dois fatos: primeiro, de que a favela, hoje, não pode ser analisada como um território urbano cuja dinâmica social, econômica, política e cultural é homogênea. Ou seja, há inúmeras diferenças tanto dentro das favelas quanto entre as favelas, e tais diferenças se multiplicam por todo o território nacional. Em segundo lugar, deve-se constatar que a favela não se define apenas negativamente, como território de carências diversas. Na primeira metade do século passado, a definição de favela como lugar de carência trazia como corolário que a favela deveria, em algum momento, ser erradicada e seus habitantes transferidos para outras áreas como, por exemplo, Parques Proletários (BURGOS, 1998). Neste sentido, quando Dymski se propõe a analisar dez modos possíveis de enxergar a favela, sua contribuição vai ao encontro do reconhecimento da não-homogeneidade do fenômeno da favela na atualidade. Também contempla o fato de que não se pode simplesmente tentar erradicar as favelas da cidade hoje, tanto pela sua extensão quanto pelo seu enraizamento cultural, social e econômico dentro das cidades. Assim, a questão, atualmente, passa a ser de como realizar um processo de integração da favela ao resto da cidade com o passar do tempo. Desta forma, reconhecendo, ao menos como hipótese de trabalho, a especificidade da favela dentro do tecido urbano, este comentário vai sugerir um arcabouço teórico para que se possa compreender sua heterogeneidade interna e sua especificidade com relação ao resto da cidade, bem como as favelas mudam com o tempo. A partir deste arcabouço, talvez se possa compreender as diferentes possibilidades de integrar a favela à *22*Professor Adjunto da Faculdade de Economia da UFF. Endereço para correspondência: Rua Tiradentes, 17, Ingá, Niterói. Cep. 24210-510. Email: [email protected].

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cidade e se questionar sua identidade. Em particular, este comentário analisará com mais atenção o décimo modo de enxergar a favela proposto por Dymski. Entende-se aqui que este décimo modo de ver a favela capta aspectos centrais da heterogeneidade e da dinâmica de integração deste tipo de agrupamento urbano brasileiro, tão característico de nossas grandes cidades.

2. Agrupando Nove dos Dez Modos de Ver a Favela em Diferentes Perfis Dymski observa logo no início do seu artigo que definir a favela é um trabalho árduo, exatamente pela sua heterogeneidade e pelo fato de as favelas mudarem com o passar do tempo. Além do mais, a favela pode ser vista de formas diferentes pelos diversos habitantes da cidade, como os próprios moradores, jornalistas, pesquisadores, funcionários públicos diversos, membros de ONGs, policiais etc. Daí surge o primeiro conjunto de temas de discussão proposto por Dymski: teria a favela uma dinâmica de econômico-política com relação ao resto da cidade? Valeria a pena analisar favelas como pequenas “macroeconomias” abertas? Qual é a relação da favela com o resto da cidade? Responder a perguntas sobre a heterogeneidade e os processos de transformações por que passam as favelas no tempo demanda trabalho empírico. É exatamente com o arcabouço teórico para futuras realizações de trabalhos empíricos que este comentário gostaria de contribuir. Como foi dito na Introdução, vamos partir da hipótese de que as favelas têm especificidade própria com relação ao resto da cidade. Esta especificidade se daria, como Souza e Silva entre outros (2009: 96-7) colocam, em quatro perfis que marcam diferenças da favela com relação ao resto da cidade: o perfil sociopolítico (onde se verifica a incompletude de políticas e ações do Estado), socioeconômico (onde se verifica a ausência de mercados formais), sócio-urbanístico (onde se verifica a existência de edificações autoconstruídas e sem obediência aos padrões urbanos normativos do Estado) e sociocultural (onde se verifica grande porcentagem de negros e descendentes de indígenas, com identidades plurais e universos simbólicos próprios). Estes diferentes perfis marcam a diferença das favelas com o resto do tecido urbano e justificariam, em princípio, uma investigação específica da economia política das favelas. Afinal, nada garante, por exemplo, que uma política pública homogênea para toda a cidade tenha impacto similar em áreas

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formais e nas favelas. Deste modo, um estudo específico da economia política das favelas seria importante para que se pudesse verificar a efetividade de políticas públicas nestas áreas. Mas e quanto às diferenças dentro das próprias favelas, ou seja, e quanto à sua heterogeneidade interna? As primeiras nove visões propostas por Dymski podem nos ajudar a analisar estas diferenças internas das favelas concretas. Segundo Dymski, pode-se analisar as favelas:

1. ao modo de um economista neoclássico, como uma região delimitada de um mapa. Esta região possui habitantes que escolhem sua moradia com base em sua restrição orçamentária e suas preferências;2. como uma paisagem romântica, de casas de diferentes formas e cores sobre um morro pitoresco com vista para o mar;3. como um acidente histórico, quando o próprio desenvolvimento não-planejado da cidade fez com que pessoas se assentassem nas regiões que hoje são favelas sem atenção do poder público;4. como um ralo de recursos comuns, já que, através de “gatos”, as favelas drenariam recursos como água e luz do resto da cidade;5. como uma terra-sem-lei, sem a presença do Estado e dominada por traficantes e milícias;6. como lugar onde o “jeitinho” brasileiro para resolver problemas comuns sem recursos adequados é mais evidente;7. como reserva de trabalho barato para o resto da cidade;8. como zona potencial de empreendedorismo; e finalmente, 9. como um reservatório cultural.

Como essas nove visões permitem que estudemos a heterogeneidade interna das favelas concretas? Por exemplo, enquanto uma favela como o Vidigal ou a Rocinha, no Rio, possam ser vistas romanticamente (visão 2), isto pode não ocorrer em Capão Redondo, em São Paulo. Do mesmo modo, favelas recentemente pacificadas no Rio podem deixar de ser vistas como terra-sem-lei (visão 5), ao passo que favelas da Baixada Fluminense que veem o aumento do tráfico podem começar a ser vistas assim. Deste modo, a classificação de Dymski permite que categorizemos visões que estão mais presentes dentro de certas favelas concretas e menos em outras. Também nos permite categorizar a dinâmica de como essas visões sobre favelas concretas mudam.

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Como no caso de Souza e Silva, as nove visões de Dymski mostram ainda como as favelas podem se distinguir do resto da cidade. Na verdade, podemos tentativamente agrupar os nove modos de ver a favela de Dymski em três dos perfis sugeridos por Souza e Silva: no perfil sociopolítico, por exemplo, podemos inserir as visões 3 e 5; no perfil sociocultural podemos pôr as visões 2, 6 e 9, ao passo que no perfil socioeconômico podemos colocar as visões 1, 4, 7 e 8. O objetivo de fazer este agrupamento não é diminuir o detalhamento da análise de Dymski, mas facilitar sua organização, tanto para fins de pesquisa como para fins eventuais de política pública. Resta-nos agora saber como poderíamos, efetivamente, realizar pesquisas em favelas tendo por base os perfis delineados por Souza e Silva e as visões de Dymski. Para falar especificamente de um arcabouço teórico de pesquisa, teremos que introduzir a décima visão de favela proposta por Dymski.

3. Favela Como Comunidade em Processo de Formação. Com base na experiência norte-americana com as “inner cities” desde os anos 1960 e com a recente ênfase dadas pelos governos brasileiros à erradicação da miséria, Dymski propõe o diálogo entre pesquisadores das favelas, poder público e membros de grupos e associações das favelas. Este diálogo não esteve presente no passado, particularmente nos EUA, e esta ausência teria impedido uma melhora substantiva na resolução dos problemas das “inner cities” norte-americanas. De modo análogo, as discussões sobre os problemas das favelas brasileiras requerem participação da academia, de atores do setor público e de membros das favelas. É com base nesta experiência passada dos EUA e do momento favorável à erradicação da miséria no Brasil que Dymski propõe uma décima visão para as favelas. Na sua décima visão, Dymski sugere que a favela é uma comunidade em processo de formação (“a community in the process of becoming”). Esta definição permite captar a heterogeneidade e as mudanças que a favela atravessa, além de caracterizá-la especificamente como comunidade. Para que precisemos melhor a análise e o arcabouço teórico que proporemos, precisamos antes definir duas noções com mais precisão: a noção de comunidade e a noção de processo de formação. Não há espaço aqui para que discutamos o conceito de comunidade

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com profundidade.23 Para fins deste comentário, adotaremos a definição proposta por Sodré (2007), baseado na análise de Esposito do conceito etimológico da palavra comunidade (communitas). Para Sodré, a comunidade não trata simplesmente da interação social, mas da criação de vínculos entre os membros de um grupo. Estes vínculos envolvem a partilha simbólica de uma origem e um destino comuns. Nas palavras de Sodré: “O ser-em-comum da communitas , como diz Esposito, diz respeito à partilha de uma realização, e não a comunidade de uma substância. Em outras palavras, comunidade não é o mero estar-junto num território, como numa aldeia, num bairro ou num gueto, e sim um compartilhamento (ou uma troca) relativo a uma tarefa, um munus, implícito na obrigação originária que se tem para com o Outro. Os indivíduos diferenciam-se e identificam-se dentro da dinâmica vinculativa, o reconhecimento e o acatamento desta dívida simbólica”. (2007: 8) Pode-se concordar com Sodré quando ele afirma que esta vinculação imaginária entre os indivíduos está “além de qualquer racionalismo instrumental ou de qualquer funcionalidade societária”. Ou seja, em princípio, a vinculação que une os membros de um grupo não está sujeita (embora não exclua) a uma funcionalidade societária (p. ex., criar mais vínculos empregatícios formais com a função de aumentar a renda per capita da população das favelas) ou a um racionalismo instrumental (p. ex., formalizar e racionalizar a produção informal da favela para gerar mais impostos, eficiência e menores custos de produção). O que está em jogo na comunidade é a criação destes vínculos simbólicos que unem os indivíduos de um grupo num processo de identificação e diferenciação dos indivíduos. Este processo envolve ainda o reconhecimento de uma origem comum e a realização de um destino comum. Deste modo, podemos compreender a favela como um local privilegiado para a possível construção destes vínculos imaginários com relação a uma origem e fins comuns que caracterizam a noção de comunidade adotada aqui. Com relação à noção de processo de formação, pode-se adaptar para a pesquisa em favelas a ideia de Deleuze e Guattari (1995 [1980]), retrabalhada 23 No Brasil, o livro e Raquel Paiva, “O Espírito Comum: Comunidade, Mídia e Globalismo” (2003) fornece, em sua parte 2, um histórico do conceito e também leituras possíveis do conceito de comunidade hoje. A coletânea também organizada por Raquel Paiva, “O Retorno da Comunidade: Os Novos Caminhos do Social” (2007) contém artigos aprofundando as discussões sobre o conceito de comunidade delineados no livro anterior. Na Europa, o livro de Roberto Esposito, “Communitas: Orígen y Destino de la Comunidad” (2003 [1998]) trabalha o conceito de comunidade a partir de uma análise etimológica da palavra “comunidade”.

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por DeLanda (2006, 2010) de montagens (assemblages). No caso específico das favelas, elas podem ser definidas como aglomerados heterogêneos compostos por uma série de componentes que se misturam (ou seja, como montagens): território, pessoas, habitações autoconstruídas, vínculos e sentimentos que existem entre as pessoas, práticas culturais, relações econômicas de produção, distribuição e troca, além de determinados tipos de carências. As montagens possuem duas características: 1. elas são entidades históricas únicas que mudam com o passar do tempo; e 2. seus componentes podem ser “desmontados” de forma a desestabilizar sua identidade. Ou, como explicam Deleuze e Guattari (op. cit., p. 30-4), as montagens podem ser estudadas segundo dois eixos:

Gráfico 1: A teoria das montagens

O gráfico acima indica que as favelas podem ser estudadas primeiramente de acordo com um eixo de materialidade-expressividade. Em outras palavras, os componentes que formam as favelas incluem materiais concretos (como habitações, pessoas, territórios, produtos) que, quando ligados e unidos na forma de montagem, podem expressar a identidade de

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favela (através dos vínculos comunitários que unem seus membros e que são expressos e codificados nas diversas associações, grupos, escolas de samba, igrejas, terreiros e outras práticas culturais). Em segundo lugar, a favela também pode ser estudada segundo um eixo de territorialização de componentes-desterritorialização de componentes. Entendida como montagem, a favela está em processo constante de formação e transformação. Ou seja, ela não é necessariamente uma entidade estável, já que seus componentes podem ser “montados” (ou territorializados) de diferentes maneiras no tempo. Se gerarem uma montagem estável, ela ganhará uma identidade que poderá ser expressa dos modos como descrevemos no parágrafo acima. Contudo, os componentes concretos que compõem uma favela também podem ser “desmontados” (ou desterritorializados), de modo que as práticas culturais, vínculos comunitários e laços que a caracterizavam a favela sofram uma descodificação. Deste modo, favelas podem ser estudadas em seus processos de formação, transformação e até de desintegração, perdendo as bases materiais e expressivas que garantiam sua identidade. A vantagem de utilizar este arcabouço teórico para estudar as favelas é que elas podem ser compreendidas como montagens de componentes heterogêneos que adquirem certa estabilidade no tempo (ou, na terminologia de Deleuze e Guattari, são territorializadas). A montagem “favela”, portanto, pode ser caracterizada como uma entidade histórica única composta de todos os componentes que listamos. Por captar o aspecto de transformação e heterogeneidade das favelas, além dos vínculos que unem os seus moradores, acredita-se que a teoria das montagens pode ser útil para estudar este tipo de aglomerado urbano brasileiro hoje em dia. Mais do que isso, esta teoria pode ajudar a vislumbrar as possibilidades de integração das favelas ao resto da cidade.

4. O estudo das favelas na prática com a teoria das montagens. Muitos estudos sobre favelas e habitações informais já foram produzidos no Brasil, mas talvez nenhum deles tenha se proposto a estudar simultânea e dinamicamente os aspectos materiais e expressivos que caracterizam as favelas (uma exceção possível são trabalhos que envolvam o conceito de sustentabilidade da Agenda 21). Com o intuito de realizar este estudo, poderíamos usar os perfis delineados por Souza e Silva na seção 1 como variáveis para realizar estudos sobre favelas.

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Tabela 1: Variáveis de estudos das favelas

Variável de Estudo Método de estudo Exemplo

Sociopolítica e sócio-urbanística (visões 3 e 5 de Dymski)

C a r t o g r á f i c o , a n á l i s e quantitativa de dados sobre habitações e infraestrutura de assentamentos precários

Marques (2007), Morais (2002)

Socioeconômica (visões 1,4,7 e 8 de Dymski)

Análise de dados sobre mercados imobiliário e financeiro nas favelas

Abramo (2001), Crocco (2010)

Sociocultural (visões 2, 6 e 9 de Dymski)

Análise dos tipos de laços sociais entre membros das favelas e de como estes são expressos

Estudos de representações sociais e de capital social em favelas

O que a tabela 1 acima exemplifica são os diversos modos possíveis de estudar favelas já produzidos ou sendo produzidos no Brasil. Tendo já sido este terreno mapeado, uma teoria das montagens da favela poderia, por exemplo, estudar de que forma a formalização dos mercados da favela vai alterando os tipos de laços sociais entre os moradores (por exemplo, enfraquece ou fortalece estes laços? A ideia de comunidade como vínculo desaparece ou não?). Pode também verificar como esta formalização vai alterando o tipo e a forma das habitações construídas das favelas. Pode investigar, por fim, como novos laços sociais mudam a representação social que a favela possui. Como dito acima, com exceção de trabalhos que envolvam o conceito de sustentabilidade sócio-econômico-ecológica da Agenda 21, este tipo de interação entre as diversas variáveis parece ser ainda um campo inexplorado de estudos. Também parece ser um campo inexplorado o estudo dos limites em que um território ocupado se torna favela ou deixa de ser favela. Por exemplo, qual a densidade média populacional, o grau de carência de infraestrutura de serviços públicos e o tipo de vínculo social entre os moradores de certo aglomerado que pode caracterizá-lo como “favela”? Com a recente implantação das Unidade de Política Pacificadoras (UPPs) em várias favelas cariocas, por exemplo, há possibilidade de uma mudança significativa na provisão de serviços públicos

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e de mercados formais nas favelas. Como mudaria a representação da favela, neste caso? Apenas a manutenção de um universo simbólico e identidades próprias serviriam para caracterizar o local como favela, ainda? E no caso, por exemplo, do centro de São Paulo, onde existem grandes populações habitando cortiços? Até que ponto a identidade de “favela” pode ser aplicada a estes locais? E na região Sul do Brasil, onde o número de assentamentos precários é menor e com menor porcentagem de negros e descendentes de índios? Há como caracterizar estes locais como favelas? Como se vê, a teoria das montagens, quando aplicada a favelas, fornece um arcabouço para que possamos fazer perguntas sobre como variam no tempo a composição material, humana e a identidade das favelas. É aí que reside o potencial de seu uso para que possamos entender a favela hoje.

5. Observações finais. Propondo 10 modos de enxergar a favela, o artigo de Dymski enfatiza o fato de que este tipo de aglomerado urbano é heterogêneo e passa por mudanças no tempo, tendo o potencial de se tornar comunidade. A contribuição que se dá aqui ao artigo de Dymski permite que se estude historicamente a heterogeneidade e a identidade das favelas. Infelizmente, não dispomos de espaço para detalhar como seria uma aplicação de uma teoria das montagens nas favelas. No entanto, espera-se que tenham ficado claras as vantagens de sua possível aplicação. Por exemplo, elas podem ajudar a tentar responder algumas perguntas que Dymski coloca no fim de seu artigo: o que significa ser membro da sociedade (ou seja, que tipo de vínculo social deve existir para caracterizar um indivíduo como membro da sociedade)? O que os membros da sociedade devem uns aos outros (ou seja, quais grupos de pessoas reconhecem que há algo de comum entre elas que motive suas ações com certa finalidade comum)? Estas perguntas talvez possam ser respondidas estudando o processo de formação comunitária das favelas. Ou, conforme o conceito de comunidade adotado neste texto, estudando a vinculação entre os membros da sociedade e como eles partilham de uma representação comum de origem e destino. A teoria do capital social e das representações sociais podem auxiliar nesta investigação. Estas teorias também podem mostrar em que medida a representação social de favela está associada à carência e a uma cultura e

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identidade próprias. Com efeito, se uma região hoje conhecida como favela ganha serviços públicos e mercados formais como o resto da cidade, ela ainda poderá ser caracterizada por favela? A cidade, como um todo, ainda a veria assim? Por fim, observa-se que a análise aqui empreendida pretende contribuir com a tentativa específica de lidar, no campo da pesquisa, com a heterogeneidade destes aglomerados urbanos específicos chamados favelas. Esta análise é ainda incipiente, e precisaria, após ser delineada, contar com o diálogo tanto com o poder público quanto com a sociedade civil para que se verifique se é factível.

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