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RAÍZES DA MISÉRIA NO BRASIL: da senzala à favela Marcos Costa Lima 1 1. Introdução Abordar a questão das Raízes da Miséria no Brasil exige, necessariamente, todo um esforço de pesquisa, de leitura e re-leitura de certas obras clássicas brasileiras, seja da Sociologia, da Economia ou de nossa literatura, que tornam este esforço uma tarefa quase impossível numa vintena de páginas. Este é o primeiro desafio. O segundo desafio, vem do sábio conselho de Machado de Assis: “se não tens força nem originalidade para renovar um assunto gasto, melhor é que te cales e te retires”. Há muita gente que já escreveu, ao menos tangencialmente, sobre a matéria, muito embora permaneça uma temática de extrema atualidade, para não dizer de urgência, quando sabemos que o nosso País, verdadeiro campeão de crescimento econômico em termos mundiais, no Século XX, não pode caminhar de forma tranqüila e gradual para o futuro, com o aprofundamento da pobreza e das disparidades regionais e de renda: somos também recordistas em termos de injustiças sociais. A estrutura deste trabalho tem 3 momentos articulados: no primeiro deles, apresento elementos centrais da reflexão do economista indiano Amartya Sen, que tem toda uma obra dedicada ao fenômeno da fome e da pobreza, e um conceito- chave, do entitlement ou da habilitação 2 que permite articular , por exemplo, a escravidão com a pobreza. Ainda, algumas conceituações que nos ajudam a identificam a pobreza de uma forma mais abrangente, que não apenas identificando-a com uma restrição de ordem econômica. Em segundo lugar, busco identificar as origens da miséria no Brasil, relacionando-a com o período Colonial – mais 1 Professor Dr. do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política; coordenador do Núcleo de Estudos Estratégicos NEST- da UFPE/Recife- Brasil. 2 Alguns autores preferem na tradução portuguesa, o termo entitulação ou ainda direito 1

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RAÍZES DA MISÉRIA NO BRASIL: da senzala à favela

Marcos Costa Lima1

1. Introdução

Abordar a questão das Raízes da Miséria no Brasil exige, necessariamente, todo um esforço de pesquisa, de leitura e re-leitura de certas obras clássicas brasileiras, seja da Sociologia, da Economia ou de nossa literatura, que tornam este esforço uma tarefa quase impossível numa vintena de páginas. Este é o primeiro desafio.

O segundo desafio, vem do sábio conselho de Machado de Assis: “se não tens força nem originalidade para renovar um assunto gasto, melhor é que te cales e te retires”. Há muita gente que já escreveu, ao menos tangencialmente, sobre a matéria, muito embora permaneça uma temática de extrema atualidade, para não dizer de urgência, quando sabemos que o nosso País, verdadeiro campeão de crescimento econômico em termos mundiais, no Século XX, não pode caminhar de forma tranqüila e gradual para o futuro, com o aprofundamento da pobreza e das disparidades regionais e de renda: somos também recordistas em termos de injustiças sociais.

A estrutura deste trabalho tem 3 momentos articulados: no primeiro deles, apresento elementos centrais da reflexão do economista indiano Amartya Sen, que tem toda uma obra dedicada ao fenômeno da fome e da pobreza, e um conceito-chave, do entitlement ou da habilitação2 que permite articular , por exemplo, a escravidão com a pobreza. Ainda, algumas conceituações que nos ajudam a identificam a pobreza de uma forma mais abrangente, que não apenas identificando-a com uma restrição de ordem econômica.

Em segundo lugar, busco identificar as origens da miséria no Brasil, relacionando-a com o período Colonial – mais especificamente com o tratamento dado aos índios e negros, que vão formar, no processo de miscigenação, as classes despossuídas e pobres entre nós – articulado com um sistema patrimonialista e conservador, baseado no latifúndio, que impregna o imaginário e a cultura do País até os dias de hoje.

O terceiro momento, da permanência e aprofundamento da miséria brasileira, já num contexto de economia mundializada, onde as tensões entre o nacional e o internacional são, não apenas mais visíveis, mas talvez, mais difíceis de serem superadas. A divisão internacional do trabalho e o controle acrescido das grandes corporações internacionais sobre o mercado mundial, têm operado no sentido da manutenção do papel dos países periféricos enquanto exportadores de commodities, por um lado, e receptores de empresas multinacionais modernas, com escala de produção limitada aos mercados internos destes países, por outro, resultando numa inclusão perversa, que

1 Professor Dr. do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política; coordenador do Núcleo de Estudos Estratégicos NEST- da UFPE/Recife- Brasil.2 Alguns autores preferem na tradução portuguesa, o termo entitulação ou ainda direito

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reproduz as desigualdades sociais, obstaculiza avanços tecnológicos, fragiliza opções de bem estar social .

2. A Superação da Pobreza

O economista indiano e Prêmio Nobel da economia em 1998, Amartya Sen (1989;1999,2000) , construiu uma obra fundamental para o entendimento da pobreza mundial e indicou alternativas para sua superação. Dentre as definições de pobreza, talvez a mais contundente e consistente esteja ancorada em suas reflexões ético-filosóficas. Ao entender que a economia teve duas origens diferentes, uma vinculada à ética e a outra vinculada à engenharia, a primeira vinculada ao pensamento Aristotélico. Em a Ética de Nicômaco, o filósofo grego associa o tema da economia a aos fins humanos. Sendo para ele a Política a “arte mestra”, ela teria que utilizar-se das demais ciências, incluindo aí a economia e, como a Política legisla sobre o que devemos ou não fazer, a sua finalidade seria o bem para o homem:” A vida empenhada no ganho é uma vida imposta, e evidentemente a riqueza não é o bem que buscamos, sendo ela apenas útil e no interesse de outra coisa “. Mas diz ainda o pensador grego que “ainda que valha a pena atingir esse fim para um homem apenas, é mais admirável e mais divino atingi-lo para uma nação ou para cidades-Estados ( Sen,1999;:19:20).

A segunda vertente, a da engenharia, caracteriza-se pelas questões sobretudo logísticas em vez dos fins supremos, sendo pragmática, instrumental. Para Amartya Sen, a primeira vertente perdeu terreno e examinando-se “as proporções das ênfases nas publicações da economia moderna, é difícil não notar a aversão às análises normativas profundas e o descaso pela influência das considerações éticas sobre a caracterização do comportamento humano real ( idem,p.23).

Além de considerar que a maioria dos economistas apresentava uma visão estreita da obra Smithiana, fundamental como fundamentação da teoria econômica, Sen argumenta que justamente a sobrevalorização do auto-interesse na concepção do autor de Teoria dos Sentimentos Morais evidencia uma das principais deficiências da Econômica contemporânea.

Um outro filósofo importante na construção da arquitetura do economista indiano foi Kant, que em sua Fundamentação da Metafísica dos Costumes, considerava e afirmava que o ser humano representava um fim em si mesmo, e que não deveria ser tido como meio para outros fins. Este princípio, torna-se fundamental em diversos contextos, seja na análise da pobreza, seja na formulação das políticas públicas e do planejamento governamental.

Amartya Sen aponta uma contradição no fato de serem os homens ao mesmo tempo agentes, beneficiários e juizes do progresso ou do desenvolvimento e, da mesma forma serem direta ou indiretamente os meios primários de toda produção (SEN, 1997, : 311). Este duplo lugar dos seres humanos gera confusão entre fins e meios, seja no desenho de políticas públicas, seja na orquestração do planejamento. O progresso, em geral, passa a ser atribuído à produção e à prosperidade; a equação inverte-se com as pessoas tornando-se

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meios e a eficiência econômica passando a finalidade última, tudo isto baseado na falsa premissa de que, tendo-se a primeira, ou seja, a prosperidade, então dar-se-ia a segunda, o bem estar das pessoas. A história econômica tentou demonstrar, e o Brasil é um triste laboratório desta experiência, que um amplo aumento da produção e o crescimento econômico como critérios de progresso e desenvolvimento, ter-se-ia o bem estar das pessoas (Costa Lima ;Britto Leite, 2000).

“O problema talvez carecesse de interesse prático se a prosperidade econômica se relacionasse estreitamente – numa correspondência aproximada de um para um – ao enriquecimento de vida das pessoas. Se tal fosse o caso, a busca da prosperidade econômica como um fim em si , embora errada no plano dos princípios, seria inseparável da busca da prosperidade como meio para enriquecimento da vida das pessoas. Mas aquela correspondência estreita não se verifica. Países com alto PIBs per capita podem apresentar índices espantosamente baixos de qualidade de vida, como mortalidade prematura para a maioria da população, alta morbidade evitável, alta taxa de analfabetismo e assim por diante”( SEN,1997,:314).

O conceito da efetivação ou habilitação (entitlement) criado por Sen , tem alta relevância 3. Os elementos constitutivos da vida são entendidos como combinações de varias habilitações . A relação destas habilitações é tanto maior quanto maiores forem as possibilidades de um sistema social. Existem habilitações tidas como elementares, como por exemplo: evitar a morte precoce, alimentar-se adequadamente, ter direito de transitar, ou até efetivações mais complexas, como desenvolver o auto respeito, a auto-estima, participar da vida comunitária, de forma ampla, entre outras.

O fenômeno da fome relaciona-se não só à produção de alimentos e a expansão agrícola, mas também ao funcionamento de toda uma economia – e até mesmo mais amplamente, com a ação das disposições políticas e sociais que podem influenciar, direta ou indiretamente, o potencial das pessoas para adquirir alimentos e obter saúde e nutrição. Houve ocasiões na Índia onde morreram milhares de pessoas de fome, quando havia uma safra e estoques de alimentos capazes de evitar a tragédia (Sen , 2000 p.190).

As pessoas passam fome quando não conseguem estabelecer sua habilitação sobre uma quantidade adequada de alimentos. Mas o que determina, em última instância a habilitação de uma família? Isto depende de várias influências distintas:

3 Também conhecido como enfoque da intitulação ou dos direitos. Para participar da distribuição da renda social é necessário estar habilitado por títulos de propriedade, pela inserção qualificada no sistema produtivo, pelo comércio, trabalho conta-própria, herança. Cada elo na cadeia das relações de efetivação legitima um conjunto de propriedades(títulos), em relação a outros.

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1º Dotação: A propriedade de recursos produtivos e de riqueza que têm um preço no mercado. Para boa parte da humanidade, a única dotação significativa é a força de trabalho, que por sua vez apresenta um grau variado de qualificação e experiência;

2º Possibilidades de produção e seu uso:

As possibilidades de produção são determinadas pela tecnologia disponível e são influenciadas pelo conhecimento disponível, pelo potencial das pessoas para organizar seus conhecimentos e dar-lhes uso efetivo;

3º Terra: (uso direto);

4º Forma salário: (depende do emprego e das taxas salariais praticadas);

5º Condições de troca: (podem mudar dramaticamente): tornando-se fundamental atentar para a operação dos mercados de trabalho. As fomes coletivas muitas vezes são decorrentes de drásticas alterações nos preços relativos de produtos, provocados por : Seca, inundação, déficit geral de empregos, etc.

Para Amartya Sen, o sistema de avaliação do bem-estar baseado apenas em posse de mercadorias, necessidades básicas de alimento, roupa, moradia, ou em critérios de utilidade são imperfeitos em diversos sentidos. A noção utilitarista de valor percebe o valor apenas enquanto utilidade individual, de prazer, satisfação dos desejos, em suma, em valores apenas subjetivos que podem enganar, ao se tornarem incapazes de refletir a real privação de uma pessoa. Um mendigo, criança ou adulto, por exemplo, habituado à pobreza, pode não se dar conta de estar mal, pois há tantos em situação mais precária. É freqüente que a privação continuada faz reduzir os desejos pessoais, a ambição, gerando apatia, acomodação, resignação. É neste sentido que o pesquisador do IPEA, Marcelo Néri, registra um “núcleo duro” da pobreza que não mais reage e só pode ser beneficiado por transferência de renda pura e simples.

As medidas usuais de renda e de riqueza não refletem as flagrantes desigualdades existentes no interior da pobreza, não capta as efetivações. Um exemplo claro é o nível de escolaridade das mulheres em áreas de pobreza. Sabe-se que estas mulheres não apenas têm mais habilidades para enfrentar dificuldades como a de criar seus filhos, pois estão, na maior parte do tempo em contato com eles e têm maior responsabilidade na educação dos mesmos . Pesquisas sobre pobreza no meio urbano têm indicado que os trabalhadores do setor informal mais qualificados, e portanto de melhores condições, são

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oriundos de famílias onde a mãe tinha maior escolaridade. Uma família pobre X pode ter renda familiar per capita mais alta que uma família Y, mas a qualidade ambiental da moradia da família Y pode ser melhor, reduzindo o efeito diferencial de renda da família X. O desenvolvimento do setor educação deve ter uma relação basilar com o enfoque da capacidade.

A pobreza mundial se concentra hoje, de forma acentuada, em duas regiões do mundo: Sul da Ásia e África Sub-Saariana. Aí se encontram os mais baixos níveis de renda per capita mundial, mas, segundo Sen essa perspectiva “não nos dá uma idéia adequada da natureza e do teor de suas respectivas privações, e tampouco de sua pobreza comparativa”(ibidem, p.122).

No ano de 1991, em cinqüenta e dois (52) países mundiais, a expectativa de vida ao nascer era inferior a 60 anos e esses países conjugavam uma população de 1,69 bilhão de pessoas. Só a Índia possui mais da metade da população desses 52 países. Há prevalência da subnutrição na Índia em comparação com a África. Mas isto acontece apesar do fato de a Índia ser auto-suficiente em alimentos e a África, não. Na África, por sua vez, a mortalidade infantil e a expectativa de vida são maiores do que na Índia, o que se explica quando levamos em consideração: 1) as guerras intestinas prolongadas; 2) as Fomes Coletivas; 3) a desordem política; 4) as crises econômicas freqüentes; 5) a persistência do analfabetismo endêmico.

Se incluirmos no exemplo comparativo o caso dos Estados Unidos da América3, Sen argumenta que um problema racial-étnico, pode ter conseqüências dramáticas na vida de um país. Quando compara a situação dos afro-americanos com os habitantes de Kerala, na Índia, os primeiros podem ser considerados ricos, mas se a medida comparativa for a expectativa de vida ao nascer, os indianos podem dizer que têm maior qualidade de vida que os primeiros, pois vivem mais, sobretudo porque nos EUA, em face da violência que acomete os jovens entre os 15 e 25 anos faz infletir a curva de longevidade média. E perguntamos: Há indicador social mais relevante que a própria vida humana? Ou ainda, como indaga o economista : “Renda é o espaço certo para fazer tais comparações ? E quanto à capacidade básica de viver até uma idade madura, sem sucumbir à morte prematura?” (ibidem p.11)

Em seu famoso estudo sobre pobreza, em York, no Reino Unido, Rowtree4

(1901) definiu o estado de “pobreza primária” como aquela que atinge as famílias com ganhos insuficientes para obter as necessidades mínimas para a manutenção da eficiência física mínima. Não estranha que as considerações biológicas relatadas como requisitos básicos à sobrevivência ou para a eficiência do trabalho, vieram a se tornar os elementos mais freqüentes na definição da pobreza. Este critério passou a ser dominante nas pesquisas realizadas pelo Banco Mundial, pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento, entre outras agências internacionais, foi finalmente substituído, em 1990, pelo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), que

3 “Mais de 40 milhões de pessoas não dispõem de nenhum tipo de cobertura médica ou seguro de saúde nos Estados Unidos” (ibidem, p.120). 4 Poverty: A Study of Town Life. London: Mamillan

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inclui um maior número de variáveis5, como uma tentativa de agregar dimensões sociais às classificações de países que levavam em conta apenas o crescimento econômico, aumento da renda per capita e produto nacional bruto. Pela nova equivalência, países com renda per capita semelhante ou a mesma podem ter classificações bastante diferenciadas se avaliadas pelo IDH , a exemplo do Vietnã e da Guiné , com renda per capita em torno de US$ 1.600. Quando confrontados aos demais indicadores, a colocação do Vietnã em termos de IDH fica na 108ª posição mundial, enquanto a Guiné cai para 162ª posição. Isto se justifica porque a taxa de analfabetismo do Vietnã é quase nula e a expectativa de vida do país é de 65 anos de idade, quando a Guiné tem 60% da população analfabeta e a expectativa de vida não passa dos 50 anos.

Foi estudando os diversos processo de combate a pobreza e a fome e mesmo de fome coletiva ao longo da história da humanidade, que Amartya Sen foi construindo sua teoria, refinando seus instrumentos, apreendendo a profunda diversidade dos casos., a exemplo dos estados da Índia de Kerala e Punjab: o primeiro, em que pesem os baixos níveis de crescimento econômico, teve um ritmo de redução da pobreza mais acentuado do que qualquer outro Estado da Índia, por ter baseado suas políticas públicas na expansão da educação básica, serviços de saúde e distribuição eqüitativa das terras, que resultaram em êxito na redução da miséria. Já o Punjab, reduziram a pobreza de renda por meio de elevado crescimento econômico, mas nada comparável aos resultados do primeiro.

O economista indiano argumenta que a redução da pobreza de renda não pode, em si, ser a motivação suprema das políticas de combate à pobreza. Os economistas, para ele, em sua grande maioria dão excessiva importância à desigualdade em uma esfera muito restrita: o fator renda; em detrimento das privações relacionadas às variáveis como desemprego, doença, baixo nível de instrução e alto nível de exclusão social (ibidem p.131). E introduz três questões importantes para o conjunto das habilitações:

A Desigualdade entre os Sexos. O fenômeno da “missing women”, quer dizer, a excessiva mortalidade e as taxas de sobrevivência artificialmente mais baixas para mulheres em muitas partes do mundo, ocasionadas por fatores de ordem cultural, onde as mulheres se vêem privadas de um conjunto de direitos.

A importância da democracia. A primeira vista, a fome, claramente é o mais tocante aspecto da pobreza e portanto, como está sempre correlacionada a renda, a força da necessidade econômica em países do 3º Mundo aparece mais forte do que as liberdades políticas e os direitos civis.

A pobreza e a fome impelem os seres humanos de correrem riscos terríveis. Não é difícil pensar que concentrar-se na democracia e na liberdade política pode parecer um luxo que um país pobre “não pode se dar (ibidem ,p.174).

5 Os indicadores de pobreza que compõem o IDH: Renda+Educação +Expectativa de Vida

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A Conferência de Viena sobre Os Direitos Humanos (1993) afirmou a preponderância do “direito econômico ” sobre os demais direitos, acompanhou o argumento retórico segundo o qual deve-se eliminar a pobreza e a miséria em primeiro lugar, para em seguida garantir a liberdade política e os direitos civis .

Aqui também é de grande descortino a interpretação do Prêmio Nobel, quando considera fundamental a observação das amplas interelações que têm lugar entre as liberdades políticas e a compreensão e satisfação de necessidades econômicas. Estas relações não são apenas instrumentais. As liberdades políticas podem ter o papel decisivo de fornecer incentivos e informações na solução de necessidades econômicas acentuadas, mas, além disso, têm um valor construtivo, na medida em que a conceituação de necessidades econômicas depende crucialmente de discussões e debates públicos abertos, cuja garantia requer que se faça questão, que se ressalte a liberdade política e os direitos civis básicos (ibidem,175).

A preeminência geral dos direitos polïticos e civis básicos, exerceriam assim três papéis essenciais :

1. importância direta para a vida humana;2. papel instrumental: aumenta o grau em que as pessoas são ouvidas

quando expressam ou defendem suas reivindicações de atenção e necessidade políticas;

3. papel construtivo na conceituação de “necessidades”. Os direitos políticos, incluindo a liberdade de expressão e discussão, são não apenas centrais na indução de respostas sociais às necessidades econômicas, mas também para a conceituação e definição das próprias necessidades econômicas.

“A resposta do governo ao sofrimento intenso do povo freqüentemente depende da pressão exercida sobre esse governo, e é nisso que o exercício dos direitos políticos importa (votar, criticar, protestar, etc”( ibidem, 181)

O desafio maior aqui, é fazer a democracia funcionar para as pessoas comuns; é desenvolver e fortalecer um sistema democrático sem o qual o processo de desenvolvimento e de ampliação das oportunidades estará, necessariamente, comprometido.

“Uma concepção adequada de desenvolvimento deve ir muito além da acumulação de riqueza e do crescimento do Produto Nacional Bruto e de outras variáveis relacionadas à renda. Sem desconsiderar a importância do crescimento econômico, precisamos enxergar muito além dêle” (SEN, 2000).

Concluo aqui a primeira parte deste trabalho, informando sobre um artigo da socióloga brasileira Elisa Reis, que em um amplo projeto de pesquisa comparativa recente – Brasil, Bangladesh e África do Sul, aponta para um elemento de grande relevância para os estudos sobre a pobreza e as desigualdades, no caso, a percepção que têm as elites sobre o assunto. A questão se destaca quando sabemos que tanto a formulação quanto a

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implementação de políticas sociais é, insofismavelmente, uma atribuição das elites ( Reis, 2000).

Sem entrar em maiores detalhes, a pesquisadora da UFRJ conclui que as elites brasileiras identificam a crise social do país como derivada fortemente das desigualdades sociais, que se constituem, para eles, no mais sério desafio para a ordem democrática brasileira. Se a identificação dos maiores problemas nacionais é comum, uma das formas de resolvê-los seria através dos investimentos públicos em educação. A escola criaria oportunidades de mobilidade social. As elites brasileiras também não fazem alusão às políticas explícitas de distribuição de renda e riqueza e tampouco estão favoráveis a políticas de discriminação positivas em favor de determinadas minorias.

Quando questionados sobre as políticas prioritárias no combate às desigualdades, os quatro segmentos selecionados – políticos, burocráticos, empresariais e sindicais, a reforma agrária aparece em primeiro lugar, sendo pouco representativa apenas entre os empresários. A segunda prioridade estaria na eficiência dos serviços públicos e, em terceiro, o controle do crescimento populacional.

Sobre as razões que atribuem as explicações para o fracasso das Políticas Sociais, alegam principalmente o mau planejamento e execução, a falta de vontade política e o uso político dessas políticas. É no mínimo curioso que consideram possível transformar a realidade através da ação política, não obstante, se eximem da responsabilidade coletiva e atribuem a origem e formação das “mazelas” ao Estado, num mecanismo de transferência quase absoluto de responsabilidades. A conclusão da autora aponta um aparente paradoxo na percepção das elites brasileiras. Alegam uma forte sensibilidade para as desigualdades, mas ao mesmo tempo resistem a qualquer proposta distributivista. Defendem a Reforma Agrária muito mais como mecanismo de esvaziamento das pressões urbanas e dilaceramento do tecido social. Temem as ameaças à ordem e à segurança individual. “Diferentemente das elites européias”, que perceberam vantagens na coletivização de soluções a problemas sociais- “nossas elites não incluem a erradicação da pobreza e a redução das desigualdades entre os seus interesses de fato ( Reis,idem,p.149).

2. A Violência do Sistema Colonial

2.1 Os Índios

“Pontos de vista sentimentais,que consideram injustas e imorais as caçadas

movidas aos bugres, são inoportunos”Trecho do jornal Der Urwaldsbote, de Blumenau – Santa Catarina6

6 In: Emílio Willens (1980), A aculturação dos alemães no Brasil. São Paulo: Cia Editora nacional, p.83

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Ao tratar da crise do antigo sistema colonial no Brasil, Fernando Novais, nos fala também sobre a gama variada de situações de colonizações européias, das suas atipicidades, reconhecendo os “mecanismos profundos do processo” (1995:; 57:116).

A riqueza, no receituário mercantilista estava identificada com o montante de metal nobre capaz de se tornar moeda e os lucros, por sua vez, eram gerados no processo de circulação de mercadorias. A partir deste entendimento decorria a formulação da doutrina da balança comercial favorável, a ser realizada através das barreiras tarifárias, estímulo a exportação de manufaturados, por um lado, e à importação de produtos primários, por outro.

O mercantilismo visava o desenvolvimento nacional como um todo e nisso as colônias representavam uma retaguarda econômica para as metrópoles, garantia a auto-suficiência metropolitana, objetivo maior do sistema. Neste sentido é lapidar a expressão de Marx, na Miséria da Filosofia, quando afirma em 1846: “Foi a escravatura que deu o seu valor às colônias. Foram as colônias que criaram o comércio mundial, e é o comércio mundial a condição da grande indústria.

É sabido que a implantação do sistema colonial fazia-se concomitante a um radical processo de expropriação camponesa, que levou à indagação de Karl Polanyi: “ Que moinho satânico foi esse, que triturou os homens transformando-os em massa? (...) O tecido social estava sendo destruído; aldeias abandonadas e ruínas de moradias humanas testemunhavam a ferocidade da revolução (...) depredando suas cidades, dizimando sua população, transformando seu solo sobrecarregado em poeira, atormentando seu povo e transformando-o de homens e mulheres decentes numa malta de mendigos e ladrões “( 2000; 51:53).

O veículo da Revolução Industrial, a indústria lanígera e têxtil, esteve diretamente articulada, imbrincada com as políticas dos “cercamientos” no interior da Inglaterra e, com o processo colonial, no exterior, que em sua dinâmica conformam o “sistema”. Nesse sentido é importante nunca esquecer que as duas figuras são partes complementares do mesmo processo de acumulação primitiva de capital que originou o capitalismo moderno.

Em a “Grande Transformação”, obra magistral de Karl Polanyi, e um dos livros mais fecundos sobre a formação do capitalismo mais exatamente no capítulo intitulado Speenhamland, 1795 7, Karl Polanyi analisa a resistência inconsciente da sociedade inglesa do Século XVIII às tentativas de transformá-la em mero apêndice de mercado. No período mais ativo da revolução Industrial – 1795/1834 – o mercado de trabalho estava impedido, bloqueado pela chamada Lei Speenhamland. Na Inglaterra, desde 1662 já havia sido estabelecido o Decreto de Domicílio ou – Act of Settlement – que estabelecia a servidão paroquial, que impedia a livre movimentação do trabalhador, que ficava confinado ao seu lugar de origem, inviabilizando desta forma a constituição de um mercado de trabalho nacional.

7 Sistema de Abonos

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Quando em 1795 o Decreto de Domicílio começou a ser flexibilizado, surgiu justamente no lugar o “sistema de abonos” ou de aditamento aos salários, acrescentando-lhes um valor que flutuava segundo ao preço do pão, o que garantia aos pobres, independente de seus proventos, uma renda mínima. Esta lei introduziu uma inovação social e econômica que nada mais representava do que o ‘direito de viver’, que perdurou até 1834, quando foi abolida e substituída pela Poor Law Amendment Act. Esta mudança foi assim entendida por Polanyi: “ Se durante a vigência da Speehamland cuidava-se do povo como de animais não muito preciosos, agora esperava-se que ele se cuidasse sozinho, com todas as desvantagens para ele” (op.cit :105).

Esta foi, em resumo, a luta pela consolidação do proletariado e do laissez-faire na Inglaterra, enquanto nas Colônias mantinha-se o sistema escravista. A violência da expropriação camponesa, que deu lugar ao proletariado urbano futuro, foi tamanha, que grandes massas trabalhadoras mais pareciam “espectros de um pesadelo, do que seres humanos” (op.cit:126). Este empobrecimento também deu lugar às políticas de emigração, que foram povoar as Américas, a Austrália e a Nova Zelândia.

Existe na historiografia brasileira um livro pouco conhecido, um livro magnífico, sobre a História Social nos Sertões do Brasil, que explicita, como poucos trabalhos, a violência e a desrazão perpetrada pelos colonizadores, desfazendo equívocos da historiografia oficial, que buscou pintar um quadro harmonioso de nosso passado colonial, de “congraçamento de raças”; da existência de um suposto “temperamento conciliador“ , que teria forjado no brasileiro, um espírito pacífico, igualitário, não racista. Entre Árvores e esquecimentos, de Victor Leonardi (1996), demonstra as diversas tonalidades dos preconceitos e imagens negativas de nossos primeiros historiadores com relação aos indígenas: Varnhagen (1854); Affonso Taunay; Rocha Pombo; Oliveira Viana (1920)8 entre outros, que justificaram e defenderam a violência e o tratamento dado aos indígenas.

Capistrano de Abreu foi lúcida distinção, ao criticar a violência do sistema: a cobiça dos colonos, governadores venais, legisladores incoerentes que fundaram os alicerces da sociedade brasileira que foram assentados “sobre sangue, com sangue se foi amassando e ligando o edifício “( Leonardi,p.32).

Analisando a influência positivista no Brasil, já no final do século, XIX, com relação aos indígenas, Victor Leonardi entende que estes pensadores, ao alimentar uma filosofia do progresso, reforçavam a idéia de que os índios representavam um anacronismo, no que foram imitados posteriormente por Gilberto Freyre, que ao defender a construção da Transamazônica, propõe a nacionalização dos indígenas (op.cit.p 34).

A questão indígena não aparece na Constituição de 1891, a primeira constituição republicana do País; repetindo, Constituição de 1824, sequer menciona a questão dos direitos indígenas.

8 Oliveira Vianna em Populações Meridionais do Brasil chegou a dizer que: “ ( o índio) cuja inteligência não parece superior à do negro, embora ambos pertençam a um tipo inferior, não se civiliza porque desdenha e, mesmo, repugna nossa civilização”.(p.285).

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Victor Leonardi introduz em nossa historiografia um outro elemento fundamental, qual seja, o de que não tivemos, no Brasil, relatos equivalentes aos dos Quéchuas do Peru do séc.XVI, que expuseram a violência e truculência de Pizarro e Almagro, nas cidades de Cuzco, Quito entre outras. Para o historiador da UNB, os livros didáticos brasileiros falseiam nosso passado colonial, quando os índios aparecem a princípio como exóticos ou hostis e logo desaparecem de cena. O autor passa a recompor a colonização no Nordeste brasileiro, trazendo evidências das verdadeiras chacinas que foram perpetradas pelos colonizadores. A oligarquia rural nordestina foi se constituindo, em larga medida, pela usurpação de terras indígenas9. A ocupação dos territórios da Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará foi lenta, muito em razão da resistência dos índios, o estabelecimento das fazendas de gado neste último Estado só se concretizando a partir de 1690.

Relatos de Frei Vicente do Salvador contam da matança de 2.400 indígenas em três combates sucessivos para a ocupação do território de Sergipe entre o Rio São Francisco e o Rio Real. Deste conflito foram aprisionados 4.000 índios. Aí viviam, sobretudo, os Tupinambá e os Kiriri.

Das “Bandeiras”, no território paulista, resultou a escravização de 100.000 índios, que foram exportados para as demais capitanias do Brasil. Este genocídio cometido ao longo de nossa história também lança seus efeitos sobre a cultura, quando no dizer do etnólogo Antonio Houaiss, “à época do descobrimento tínhamos no Brasil cerca de mil culturas lingüisticamente relevantes. Restam 140”. (idem, p. 55).

Um traço distintivo da política de apresamento dos índios para o trabalho forçado, no período colonial e imperial se dá no Século XX, quando foi acalmada a “sede” de braços para a lavoura, ocasionada pela vinda dos emigrantes europeus, à exceção do Centro-Oeste e do Amazonas, onde o aquele trabalho ainda era fundamental: a questão indígena converteu-se, essencialmente, numa questão de terras.

Num belo capítulo intitulado As últimas fronteiras do planeta, Leonardi expõe a continuidade do processo de extermínio e ocupação de terras indígenas, já em pleno século XXI, agora não mais como ação colonial, mas como políticas públicas e projetos estatais, promovidos pelo governo nacional autoritário: i) o extermínio dos Nambikwara, entre 1968 e 1971, quando estes índios perdem a posse de sua reserva do Guaporé – entregue a enormes projetos agropecuários – e são forçosamente deslocados para uma imensa área inóspita nos Parecis. Em 1908, as estimativas de Rondon indicavam uma população de 20.000 Nambikwara. Em 1980, restaram 650; ii) outro episódio de extrema violência oficial, a história da construção da Hidroelétrica de Balbina, que inundaria as terras dos Waimiri/Atroari em 1988. No início daquele século, esta tribo indígena representava 6.000 índios. Após sucessivos massacres, ao longo do século XX, a população caíra para 3.000 pessoas em

9 Choco, Pankararú,Cariri, Sukurú , Fulnió, Caripó, Jaicó, Tupiná, Massacará, Pimenteira, Amoipira, fizeram resist6encia prolongoda para não cederem suas terras.

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1968 e, quando a BR-174 cortou as suas terras, não eram mais que 1.000 (idem, 99:117).

O Presidente Médice criara a reserva Waimiri/Atroari em 1971 com cerca de um milhão e seiscentos mil hectares (1,6 milhão ha), o que já representava uma redução de 75% do território tradicional desses índios, tendo em vista a construção da BR-174. Em seguida, descobriu-se ricas jazidas de cassiterita , justamente na área onde os índios haviam se agregado. O presidente Figueiredo, finalmente, desmembrou 526 mil hectares para permitir a mineração do poderoso grupo Paranapanema e a implantação da hidrelétrica de Balbina. O resultado é que hoje, restam não mais que 600 Waimiri/Atroari. Há um significativo número de episódios terríveis quanto estes, que permanecem no esquecimento .

A violência que durante séculos foi praticada contra os índios e ainda se pratica, ampliou-se para o conjunto das populações pobres da Amazônia e do Pantanal: ribeirinhos, pescadores, seringueiros, castanheiros10, pequenos proprietários, posseiros, constantemente assassinados por “capangas” de ricos latifundiários, políticos de expressão, com expressiva conivência dos poderes municipais, estaduais e federais. Essa história pregressa é atual, revela a força do Mito Fundador em nosso País-paraíso, solução imaginária para a superação de conflitos e contradições que não conseguem ser resolvidos na vida real. O país de gente sensual, alegre, não violenta e abençoada por Deus é a imagem que cisma em permanecer, mas que já não cabe, por ser desmentida a todo instante. “Isso explica um dos componentes principais de nosso mito-fundador, qual seja, a afirmação de que a história do Brasil foi e é feita sem sangue, pois todos os acontecimentos políticos não parecem provir da sociedade e de suas lutas, mas diretamente do Estado, por decretos: capitanias hereditárias, governos gerais, Independência, Abolição, República. Donde também uma outra curiosa conseqüência: os momentos sangrentos dessa história são considerados meras conspirações (“inconfidências”) ou fanatismo popular atrasado (Praieira, Canudos, Contestado, Pedra Bonita, Farroupilhas, MST). Chauí, 2000, :11).

2.2 A Escravidão11

“Dizem que em 1970 negro vai virar macaco”Marchinha de carnaval do final dos anos sessenta

Embora Lúcio de Azevedo12 afirmasse que “ao açúcar se deve o desenvolvimento da escravatura no seio da civilização moderna”, bem como o senador Silveira Martins13 disse no Senado – “ O Brasil é o café e o “café é o

10 Cf. José Sávio Maia (2001) A atuação das ONGs na construção de novos modos de vida dos

seringueiros de brasiléia e xapuri (1975-1995).11 “A escravidão trouxe da África ao Brasil mais de dois milhões de africanos, que , pelo interesse do senhor na produção do ventre escrava, elas favoreceu quanto pôde a fecundidade das mulheres negras; que os descendentes: que os descendentes dessa população formam pelo menos dois terços de nosso povo atual”( Nabuco;p. 102).12 In: Fernando Novais, p. 10413 Joaquim Nabuco , O Abolicionismo, p, 113

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negro” o que não deixam de apontar parte da verdade, é muito mais ao comércio colonial, ao sistema triangular de trocas que enriqueceu a Inglaterra – manufaturas, escravos, produtos tropicais, que se deve atribuir o fenômeno.

Infelizmente, no escopo desse trabalho não há espaço, nem tempo, para que me detenha na obra-prima da literatura brasileira que é O Abolicionismo, de Joaquim Nabuco, escrita em 1883. Há nela passagens admiráveis de entendimento sociológico, histórico, político e econômico da formação brasileira. Inclusive onde ancorar boa parte do esforço de estabelecimento das raízes da miséria no Brasil.14 Mesmo assim, me inclino a salientar algumas passagens por demais importantes..

Em um capítulo da mais frutífera Sociologia, sobre as conseqüências da escravidão no País e sua influência sobre o território e a população do interior, Joaquim Nabuco, argumenta, a princípio, que enquanto durou a idade do ouro do açúcar, já em decadência às vésperas da Revolução Francesa, o Norte apresentava um espetáculo que iludia a muitos. As casas, os chamados palacetes da aristocracia territorial na Bahia e no Recife, as librés dos lacaios, as liteiras, as cadeirinhas, e as carruagens nobres marcam o monopólio florescente da cana (Nabuco; p.108).

Esse luxo, segundo ele, contrastava com “as vastas regiões exploradas pela escravidão colonial” que tinham um aspecto “único de tristeza e abandono: não há nelas o consórcio do homem com a terra, as feições da habitação permanente, os sinais do crescimento natural. O passado está aí visível, não há porém, prenúncio de futuro (...) (idem,p.106). Uma excessiva concentração da vida provincial nas capitais estabelecia uma civilização de caranguejos, no sentido de não se afastar do litoral, ou quando o fazendo, sob uma forma predatória e improvisada. A fazenda ou o engenho serviam para “cavar o dinheiro que se vai gastar na cidade” . As classes médias, que segundo Nabuco, faziam a força das Nações, não existiam no País; a pequena propriedade só existia por tolerância dos senhores e, aprofundada a crise açucareira, bem como das Minas Gerais, há um fechamento do latifúndio, que passa a buscar auto-suficiência. Os senhores passam a receber mão-de-obra livre como agregados, como arrendatários ou posseiros, que irão se transmudar naquilo que Victor Nunes Leal estudou e esclareceu como sendo o fenômeno do clientelismo em Coronelismo, Enxada e Voto, ainda tão vivos neste Brasil.

Mas a pobreza e o desalento não tomavam conta só do interior e dos sertões: “A população vive em choças onde o vento e a chuva penetram, sem soalho nem vidraças, sem móveis nem conforto algum, com a rede do índio ou o estrado do negro por leito, a vasilha d’água e a panela por utensílios, e a viola suspensa ao lado da imagem. Isso é no campo; nas pequenas cidades e vilas do interior, as habitações dos pobres, dos que não têm emprego nem negócio, são pouco mais que essas miseráveis palhoças do agregado ou morador. Nas capitais de ruas elegantes e subúrbios aristocráticos, entende-se, como nos

14 A importância das reflexões lançadas por este livro, deveria torná-lo texto básico nos cursos de História do Brasil, desde o ensino fundamental, mas também leitura obrigatória dos professores das escolas públicas em todo o país.

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Afogados de Recife, às portas da cidade, o bairro da pobreza, com sua linha de cabanas que parecem, no século XIX, residências de animais, como nas calçadas mais freqüentadas da Bahia, e nas praças do Rio, ao lado da velha casa nobre, que fora de algum antigo morgado ou de algum traficante enobrecido, Vê-se o miserável e esquálido antro do africano, como a sombra grotesca dessa riqueza efêmera e do abismo que a atrai ( ibidem,:112).

Esse relato é extremamente atual, é um quadro muito fiel da condição de vida de milhões de brasileiros que vivem nas favelas espalhadas hoje, não apenas nas grandes metrópoles, mas em cidades médias, nos quatro quadrantes do País. Mas não pára aí a lucidez de Joaquim Nabuco, pois antecipa elementos de interpretação sócio-econômica da realidade que prenunciam o atualíssimo conceito de “sustentabilidade do desenvolvimento”. Ao resumir os efeitos nocivos da escravidão sobre as mentalidades e a cultura, Nabuco nos aponta enquanto traços: ” a improvidência, a rotina, a indiferença pela máquina, o mais completo desprezo pelos interesses do futuro, a ambição de tirar o maior lucro imediato com o menor trabalho possível, qualquer que seja o prejuízo das gerações futuras (ibidem;p.114).

Em todas as dimensões morais e intelectuais em que atuou no Brasil, não há , para o autor de Minha Formação, fator social que exerça a mesma extensa e profunda ação psicológica que a escravidão, que criou “um ideal de pátria grosseiro, mercenário, egoísta, retrógrado, e nesse molde fundiu durante séculos as três raças homogêneas que hoje constituem a nacionalidade brasileira” (ibidem: 103). Tudo isto “num país onde a justiça não tem meios contra os potentados”, fenômeno atualíssimo no Brasil contemporâneo, onde a impunidade das classes dominantes está acima da lei(ibidem,p.108).

Numa coletânea organizada por Celso Furtado em 1968 e hoje considerada livro clássico das Ciências Sociais brasileiras, Florestan Fernandes atualiza, em muitos de seus aspectos, a obra de Nabuco, ao tratar das relações de Raça no Brasil (Fernandes, 1968), considerando a princípio que o País vive em várias “idades histórico-sociais”, embora esse trabalho trate, principalmente, da situação do negro e do mulato na cidade de São Paulo, cidade que não se singularizava pela alta proporção de negros, ou de mestiços em sua população total, e onde a emigração européia e o início da expansão econômica do Estado estão fortemente articulados. Para Florestan, a inclusão tardia da cidade de São Paulo no núcleo da economia brasileira representou uma “desvantagem para a população negra e mestiça da mesma, tanto escrava, quanto liberta”( Fernandes; 114).

Para Florestan, o fenômeno da Abolição(1888) encontrava os negros ocupando trabalhos inferiores e indesejáveis; por outro lado, embora assumisse um caráter fortemente humanitário, o Movimento Abolicionista fazia dos negros muito mais objetos, que sujeitos, massa de manobra do movimento. “Assim, o que poderia se chamar de uma “consciência abolicionista” era antes um patrimônio dos próprios brancos”(idem;p.115). Nesse sentido, deixaram de lado medidas estruturais, como a reforma agrária, ou mesmo medidas compensatórias, que garantissem minimamente uma proteção aos escravos, forçados a trabalhar na terra, ou no serviço doméstico, sem instrução, sem

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previdência, sem auto-estima. “A escravidão despojou o negro de quase toda sua herança cultural e socializou-o tão somente para papéis sociais confinados,

nos quais se realiza o desenvolvimento da personalidade do escravo e do liberto. Como conseqüência, a Abolição projetou-o na “esfera dos homens livres”sem que ele dispusesse de recursos psicossociais e institucionais para ajustar-se à nova posição na sociedade”( Fernandes, p.117).

Florestan Fernandes nos fala, ainda, de um levantamento que havia sido realizado em São Paulo em 1893, portanto 5 anos após a Abolição; nele, verifica que as oportunidades de inserção social eram quase todas ocupadas, por brancos, sejam oriundos das antigas classes dominantes, sejam dos imigrantes. Entre 170 capitalistas recenseados, 137 eram nacionais e 33 estrangeiros; entre os proprietários, 509 eram nacionais e 231 estrangeiros. Entre as profissões técnicas, engenheiros, arquitetos, agrimensores, havia 274 nacionais contra 129 estrangeiros, mas, sobretudo, entre o pessoal da indústria, o imigrante era o agente privilegiado (ibidem,:122).

Essa forte manutenção do ex-liberto em profunda desvantagem, seja psico-social, seja econômica, resultou em fortes preconceitos e discriminação. Estabelecia-se um paralelismo direto entre cor e posição social e essa situação foi perpetuada ao longo do tempo, cristalizando-se enquanto elemento cotidiano de nossa cultura – o “sabe com quem está falando?”; “ponha-se no seu lugar!” – e para os poucos que conseguiam ascender socialmente, o “mulato de talento” ou o “negro notável” ou ainda, o “negro de alma branca”.

Em outro livro, tratando da Universidade Brasileira, o brilhante sociólogo, abordando a questão das oportunidades educacionais no ensino superior, demonstra o quanto os elementos do passado, mesmo com as modernizações havidas, podem permanecer exercendo suas influências negativas para a cultura e a sociedade: Usando dados do Censo de 1950, Fernandes (1979,:138), indicava a teia da persistência ou o “dilema racial brasileiro”:

Tabela 1 - Composição Racial da População e do Diplomados – Brasil: Bahia e São Paulo ( Censo de 1950)Grupos Étnicos Percentual

da PopulaçãoPercentagem dos Diplomados

Ensino Elementar Ensino Médio Ensino SuperiorBrancosBrasil 61,6 84,1 94,2 96,8

Bahia 30,0 54,4 82,5 88,2São Paulo 86,0 90,2 96,3 97,8

NegrosBrasil 11,0 4,2 0,6 0,2

Bahia 19,0 8,3 2,1 1,5São Paulo 8,0 4,3 0,6 0,2

MulatosBrasil 26,6 10,2 4,2 2,2

Bahia 51,0 37,1 15,2 10,1São Paulo 3,0 1,8 0,5 0,1

Fonte: Florestan Fernandes (1979),Universidade Brasileira: Reforma ou Revoluçao? São Paulo: Alfa Omega, p.138

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O objetivo aqui é menos de traçar a evolução histórica dos negros brasileiros com relação à inserção no sistema educacional do País que, sem sombra de dúvidas, correlaciona, na maioria dos casos, a posição social dos indivíduos, mas, sobretudo, sublinhar o padrão de exclusão, a manutenção do negro na escala inferior da sociedade . Esta questão, inclusive, está sendo retomada hoje, quando há projetos encaminhados ao Congresso Nacional propondo “quotas” para os negros, tanto nas universidades, quanto nos serviços públicos.

A tabela anterior evidencia, de forma clamorosa, a quase inexistência de negros e mulatos como diplomados do ensino médio e universitário. Os brancos, que em 1950 representavam 61,6 % da população brasileira, representavam 84,1% dos diplomados no ensino básico, 94,2% no ensino médio e 96,8% no ensino superior. Dos negros, que por sua vez representavam 11% da população brasileira, apenas 4,2% de seu total concluía o ensino elementar, 0,6% o médio e 0,2 o universitário. Ou ainda, dos universitários brasileiros com diploma, em 1950, 96,8% eram brancos, 0,2% negros e 2,2% mulatos.

Em 1997, uma síntese dos indicadores sociais dá conta da manutenção das desigualdades raciais no País e, ainda mais, aponta o trabalho da miscigenação, pois os negros, que representam 11% pelo Censo de 1950, representam no final dos 90 apenas 5,2%, enquanto os brancos 54,4% e os denominados “pardos”, passaram a compor 39,9% dos brasileiros. Enquanto a taxa de analfabetismo para os brancos de 15 anos ou mais era de 9,0%, para os negros atingia 22,2% e , entre os pardos, 22,2%. Já com relação aos anos de estudo de pessoas com 10 anos ou mais de idade, os brancos tinham 6,3 anos de estudo em média, os negros 4,3 anos e os pardos 4,3 anos. Considerando que os anos de estudo são fortes definidores de salário e renda, os negros e pardos permanecem com os piores indicadores sociais do país (IBGE, 1998; pp: 157:182)..

2.3 O Latifúndio

Tratar direta ou indiretamente da questão do latifúndio no Brasil exige a retomada de leituras clássicas sobre a matéria, como Caio Prado Júnior (1953), Celso Furtado(1968), Francisco de Oliveira(1977), Antonio Barros Castro(1975), Moacir Palmeira(1971), Fernando Novaes (1995), Octávio Ianni (1971), Maria Sylvia de Carvalho Franco (1969) , José Sérgio Leite Lopes(1976), Alberto Passos Guimarães (1981), José de Souza Martins (1982), Raymundo Faoro (2000), para ficar apenas em alguns dos mais percucientes

Ao abordar o regime de terras no Brasil durante o Segundo Reinado, Faoro(2000) estabelece 3 sistemas legais de propriedade fundiária: a sesmaria, que perdurou até 1822; a posse, até 1850 e a venda e a concessão, após 1850. A cana-de-açúcar, a mineração e grande parte da pecuária se desenvolvem sob o regime de sesmarias, diferentemente do café que, com a sua súbita valoração, fez com que a rubiácea penetrasse em latifúndios quase inexplorados. O posseiro, o pequeno proprietário que plantava para subsistência, foi esmagado pelo novo empresário, que precisa do

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credor para implantar a safra e comprar escravos e suportar o investimento que só responde em cinco anos. Para se ter uma idéia desse movimento, no decênio de 1831-1840, os cafezais sobrepujaram o açúcar, no valor das exportações, respectivamente 43,8% e 24,0% do total exportado. E daí em diante jamais perdeu a liderança e, quando alcançado o ano de 1881, essa relação respondia por 61,5 para o café e apenas 9,9% para o açúcar. (Faoro,v.2;12).

Em seu clássico Quatro Séculos de Latifúndio, Alberto Passos Guimarães (1981) estabelece três momentos que dariam conta, pelo menos, do latifúndio até 1964: a) o período colonial, analisando os engenhos e as fazendas de gado; b) a pós-independência do País, com o latifúndio cafeeiro e c) a usina de açúcar. Para o autor, a desintegração da estrutura latifundiária teve início poucos anos depois da extinção da escravatura, sendo a sua segunda inflexão, ocasionada pela crise cafeeira entre 1929 e 1933. A partir daquele momento, teve início a sistemática substituição da lavoura pela pastagem, o que funcionou como uma tábua de salvação para o sistema da grande propriedade rural. No Estado da Bahia, por exemplo, de 1947 a 1956 a renda gerada pela pecuária se elevou de 20% para 35%. É o período da crescente presença dos frigoríficos estrangeiros, que passaram a dominar grandes extensões de terra, como o Anglo, Armour, Swift, Wilson (idem;p.188).

Entre 1950 e 1960, inicia-se lentamente a produção capitalista, com a incorporação gradual de tecnologias, aumentando o número de tratores e o uso de adubos químicos. Nesse período, o número de tratores nos estabelecimentos agropecuários passa de 8.372 para 63.493, na verdade muito pouco para a extensão agricultável do País, mas, de qualquer modo, um aumento de 7 vezes o existente, aumento esse localizado sobretudo em São Paulo e no Rio Grande do Sul, perfazendo 75% do total (ibidem:189). Entre 1947 e 1968, a participação da agricultura brasileira no total da renda interna é decrescente, passando de 31,7% para 22,7% (Oliveira1977;p.43).

Por volta dos anos 70 acirra-se o processo de desruralização da população brasileira. Em 1950 o País contava com 50 milhões de habitantes, 64% vivendo no campo; em 1980, a população atinge 119 milhões, com apenas 32% residindo no campo.

Com relação à distribuição de renda no meio rural, em 1970, os 20% mais pobres da população economicamente ativa apropriava-se de 5% da renda agrícola, e os 50% mais pobres, de pouco mais de 22%. Nos anos 80, aqueles primeiros 20% receberam menos de 4% da renda agrícola e os 50% mais pobres, 15%. Enquanto isso, em 1970 os 5% mais ricos do campo detinham 24% da renda, saltando em 1980, para 44%. Estes números expõem as profundas injustiças do campo, no Brasil.

Em 1992, o Incra revelou um total de cinco milhões de imóveis rurais no Brasil, perfazendo um total de 639 milhões de hectares. Destes, 1.219.167 imóveis com 424 milhões de hectares foram classificados como latifúndios. Tomaram-se apenas os latifúndios acima de 1.500 hectares na região Norte; de um mil hectares na região Centro-Oeste; e de 500 nas regiões Nordeste, Sudeste e

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Sul, ou seja, 24,3% das propriedades rurais no Brasil são classificadas como latifúndios, e estes monopolizam 66,3% do total das terras disponíveis.

O Censo Agrícola de 1986 revela que entre 1985 e 1996 o pessoal ocupado na agricultura teve uma redução de 23%, ao passo que o produto agregado do setor, um incremento de 30%, no mesmo período (Dias,G.L.S e Amaral, CM, 1999).

Como se sabe hoje, a segunda fase de industrialização do campo tem início nos anos 80, que novamente acelerou o movimento migratório, fazendo com que chegássemos ao fim do século XX com 80% da população brasileira vivendo no meio urbano, com implicações sociais das mais graves, ampliando-se as favelas e a violência urbana, com forte incremento do desemprego formal e explosão dos serviços informais. Esta radical e veloz expulsão camponesa deu lugar à retomada da questão da reforma agrária e ao Movimento dos Sem Terra. A desigualdade social amplia-se no campo e na cidade, mas, diferentemente dos anos 60 e 70, agora com redução do ritmo de crescimento econômico, com aumento do desemprego e sem governo “populista”.

Recentemente, Celso Furtado (1998: 29), colocou o Movimento dos Sem Terra no mesmo nível da luta dos escravos. Para o economista, o Brasil é um País que deve ser felicitado por ter um movimento como este, “que suscita no povo, nos mais pobres, o desejo de ficar na agricultura. Em nenhuma parte do mundo existe um movimento igual. É sempre o inverso: todos querem deixar a agricultura, emigrar do campo.E o MST educa o povo para mostrar que, num país onde não há criação de emprego urbano, onde se passa fome nas cidades, existe a chance de ficar no campo, trabalhando. Portanto, é um movimento que merece respeito(...) A consciência pública brasileira evoluiu no sentido de compreendera importância de resolver o problema da estrutura agrária, graças aos Sem Terra”.

3. Permanência e Aprofundamento da Miséria no Brasil

Reprodução e estigma

A Pobreza, em grande medida, é um fenômeno herdado, na qual os pobres vão reproduzindo os problemas e a pobreza dos outros. Portanto, a pobreza se reproduz, pela falta de mecanismos efetivos de mobilidade social e por uma concentração extrema da renda, que juntos têm consolidado um determinado tipo de círculo vicioso. Há muito que Celso Furtado ensina que o crescimento econômico é inepto para enfrentar o problema. Nos países europeus, onde os Estados de Bem-Estar Social implementaram políticas compensatórias sistemáticas, possibilitando que as camadas pobres viessem a alcançar progresso, ascensão social, esta situação regrediu substantivamente ao longo do século XIX. A educação sobretudo, foi o instrumento cultural que contribuiu, por excelência para desenvolver o potencial intelectual, técnico,

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profissional, cidadão e de sociabilidade das pessoas ( HERNÁNDEZ,1999). Isto não ocorreu em países da América Latina e, ainda menos no Brasil, onde os setores populares se mantêm à margem da reprodução mínima, enquanto mão-de-obra barata. Neste estudo, ficará evidenciado que no Nordeste do país, um conjunto de fatores históricos provocaram a consolidação de uma pobreza estrutural com densidade ao longo do século.

É difícil descrever com precisão qual a percepção que tem a pobreza dela mesma. Não se trata apenas do estado de carência dos meios necessários à subsistência. Muito mais que isto, os pobres se percebem muitas vezes, e suas metáforas expressam o sentido, de “doença”, de “chaga social”, de estigma. Como afirmam os próprios pobres em seu imaginário: “a pobreza se confunde com sujeira, com desânimo, com impotência, com falta de interesse”. O sentimento de impotência se revela na expressão : “quando se chega ao fundo da pobreza, se tem a sensação de se estar afogando e que se precisa de alguém para sair disto”. O pobre vê-se como alguém que , reconhecendo suas carências básicas, não está, quase sempre, em condições de superar a sua privação. Neste sentido, vale salientar, ao nível do simbólico, uma imagem que se cristaliza no Brasil, sobre a região Nordeste, muito difundida nos meios de comunicação e trabalhada no imaginário do brasileiro: uma região não rentável, onde cidades e cidadãos são em geral pobres, ignorantes, “atrasados” . Esta imagem –preconceito tem repercussões na vida social.

O estigma opera como um mecanismo de discriminação social. Reproduz a pobreza na consciência daquele que é pobre, ao gerar culpa sobre a sua condição de pobre. Ser pobre numa sociedade que valoriza o êxito econômico e a ostentação conspícua, é o pior que pode suceder a alguém. No passado, valores como a solidariedade, a decência, a honestidade, outorgavam prestígio social, mas, com o advento do mercado, perderam todo valor, porque não são susceptíveis de nenhum tipo de intercâmbio (Sennet, 1999). Portanto, ser pobre significa algo mais que uma mera condição social (Hernández, 2000,:138).

A feminização da pobreza

Entre os setores sociais mais duramente afetados pela pobreza se encontram, sem sombra de dúvidas, as mulheres. Com razão se fala hoje de “feminização da pobreza”. A mulher não só está mais próxima que o homem, da pobreza, mas a ela corresponde enfrentar diariamente as situações de precariedade em que vive a família, sobretudo quando são chefes-de-família.

Segundo testemunhas de mulheres em lugar de pobreza, verifica-se o lidar constante com a insalubridade e os riscos ambientais do local de moradia, os conflitos de vizinhança, a preocupação com os filhos entrarem no caminho sem volta da marginalidade, a carência alimentar, o alcoolismo do marido, a traição do marido que constitui uma segunda residência, reduzindo o já insatisfatório rendimento. O Homem chefe de família em geral se desloca muito mais em busca da sobrevivência, passa a maior parte do tempo fora de casa e da comunidade.

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Um padrão de mudanças nas relações de gênero, contudo, tem sido identificado em áreas pobres e favelas, na medida em que têm aumentado suas responsabilidades. O processo chave que estrutura a mudança nas relações de gênero tem a ver com as transformações no mercado de trabalho (WORLD BANK, 1999). As mulheres têm sido crescentemente incorporadas ao mercado de trabalho informal e em ocupações de baixa qualificação e remuneração.

As mulheres pobres jogam um papel mais significativo do que os homens nas decisões das comunidades pobres, haja vista o número de mulheres que estão à frente das associações de moradores. Também em razão da família, a mulher pobre tende a realizar sua função econômica no espaço da comunidade, o que lhe permite, a uma só vez, trabalhar e cuidar dos filhos. Em pesquisas realizadas sobre o setor informal da economia (RANDS e LIMA, 1997) verificou-se que há uma correlação positiva nas áreas de baixa renda entre mãe mais educada e êxito profissional do filho, que no setor informal, ocupa profissões que exigem maior nível de educação formal e conhecimento técnico especializado, a exemplo dos eletricistas, mecânicos, mestres de obras.

O Aprendizado da Pobreza

Como afirma Jorge Henández ( op.cit.: 139), se aprende a ser pobre. Em sociedades sem mobilidade nem eqüidade social, estas pessoas se socializam e se acostumam a viver em estado de pobreza. Os pobres em geral são filhos de pobres. Os condicionamentos sociais, econômicos e culturais do meio são tão fortes e marcantes que deixam poucas “brechas” aos indivíduos para escaparem de suas redes ( a droga; a prostituição de luxo; o furto, são os mecanismos mais usuais de escape).

Atualmente, o trabalho mal remunerado, precário e instável constitui o fator mais importante como causador e mantenedor da pobreza, o que tem inclusive afetado segmentos importantes das chamadas classes médias no Brasil. Como pode ser tido como responsável um pobre, se lhe são negadas, cotidianamente, as possibilidades de realização pessoal ? Em pesquisa já citada (Rands e Costa Lima, 1997), muitos trabalhadores respondiam que não se sujeitariam a um emprego de carteira assinada para ganhar o mínimo, uma vez que, mesmo na informalidade e intermitência do trabalho, além de atingirem melhores rendimentos, não deviam obediência a um patrão.

O conformismo é outra das expressões da institucionalização da pobreza: “de que adianta fazer esforço se vou permanecer na mesma situação ?” O alcoolismo é freqüentemente citado, e na maioria dos casos, um sintoma, hoje não apenas presente entre homens, mas crescente entre mulheres pobres, como resposta ao fracasso e às humilhações inerentes à condição. É assinalado em grande parte das ocorrências de violência entre vizinhos, e no seio da família. Evidencia-se ainda a falta de amor próprio e a baixa estima na pobreza. É também forte limitadora das expectativas. Ensina a

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viver com pouco, a multiplicar os escassos recursos, a viver em um permanente estado de “necessidades insatisfeitas auto-controladas ou auto-reguladas (Hernández, 2000,: 140). A condição mesma de pobre, ensina culturalmente a ser pobre, a aceitar de forma quase natural o mundo em que vive, ainda que a custo do desespero e da resignação. Neste aspecto, a vinculação a um grupo religioso torna-se indispensável, muito embora as associações de Moradores sejam freqüentemente mais apontadas que as Instituições religiosas enquanto instituição onde buscam apoio.

Mudança no papel do Estado

Na década de 70, os brasileiros em geral, pobres, de classe- média e ricos, colocaram suas esperanças no progresso e na mudança social, que por sua vez dependia dos programas reformistas, dos partidos políticos e da correlação de forças existente no país. As expressões “país abençoado por Deus” e “país do futuro” são exemplares neste sentido. Atualmente, muito embora a consolidação do regime democrático, a política oficial e os políticos são visto com bastante descrédito por parte das populações mais frágeis, ressaltando-se nitidamente uma relação pragmática de “troca de favores ou de interesses”. Não que isto não ocorresse antes, pois são tradicionais no Brasil os “currais eleitorais”, sejam rurais ou urbanos”. No entanto, fatos como o baixo nível de institucionalização dos partidos, as instabilidades político-econômicas no país, a intensa migração campo-cidade do período, são elementos que cristalizaram e associaram relações de alto pragmatismo entre eleitores pobres e políticos ou partidos.

O Estado, nos níveis federal, estadual e municipal continua atuando ao nível das políticas sociais. Subsidia projetos específicos e pontuais de combate a pobreza, visando sua integração à sociedade de mercado. O subsídio pode consistir em ajudar a população carente a erguer casas15 de 30m2; em programas de pavimentação com mão-de-obra comunitária; algumas obras de drenagem e urbanização mínimas; um posto de saúde, aqui, um telefone público ali; um ponto d’água alhures; ou ainda com cursos de capacitação ou cestas alimentares. O universo de políticas compensatórias é inesgotável. Mesmo em situação de incremento do gasto social, o que não caracteriza um Estado Social, o Estado não distribui a renda. Os Programas mais arrojados para o setor são intermitentes, portanto, a função social do Estado, no Brasil, como de resto em todo o sub-continente, em matéria social se mantém ainda dentro dos marcos das definições de inspiração neoliberal, quer dizer, sem responsabilidade social integral, não caracterizado enquanto Estado de Bem-Estar Social de fato.

15 Moradia: A falta de moradias no Brasil atinge diretamente 20,2 milhões de pessoas, quase 12% dos habitantes no país, e aumenta em um ritmo mais acelerado do que o do crescimento da população. O déficit habitacional é de 6,6 milhões de unidades, o que representa quase 15 % do total de domicílios existentes, 44,9 milhões. “Déficit Habitacional no Brasil 2000 ”Fundação João Pinheiro, encomenda do BID e Presidência da República.A maior carência é registrada nas regiões urbanas ( Ranier Bragon; Folha de São Paulo, Folha Cotidiano, C1 , 20 Janeiro 2002).

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Atualmente, em decorrência desta substantiva mudança na forma de atuação do Estado, a ação política tem se subordinado aos ditames da economia, assumindo suas diretrizes e mensagens, o que influencia na relação política-clientela. À política já não se coloca a necessidade de transformar a realidade, mas sim a de assegurar e legitimar institucionalmente o funcionamento da economia. O novo papel hegemônico na política tem consistido em cuidar para que na sociedade exista compreensão e aceitação das diretrizes de mercado. Os pobres pouco esperam dos partidos e dos políticos.

Pesquisas em áreas faveladas (FIDEM, 1996a), têm demonstrado a descrença com os partidos, os políticos e o poder público , que representa menos de 1% das instituições consideradas como canais de reivindicação, como instituições que freqüentavam ou ainda como organizações que ajudam a comunidade.

Entre as Instituições freqüentadas a participação das Associações de Moradores se destaca, vindo a seguir as instituições religiosas. Quanto ao entendimento sobre instituições que ajudam a comunidade, sobressai-se a Associação de Moradores. Portanto, as associações de moradores e de vizinhança são instituições cruciais para as camadas mais pobres, representam canais de expressão de demandas comunitárias e instrumentos de apoio, tanto nos períodos de crise quanto no seu dia a dia.

Ocupação e Trabalho da Pobreza

A pobreza das décadas dos 80 e 90 no Brasil está diretamente vinculada à qualidade do emprego, e entre os pobres o sentimento de segurança está associado ao trabalho regular e estável . Muito embora a violência tenha explodido nas regiões metropolitanas do país e passe a ser assinalada, pelos favelados, como o principal problema nestas áreas, com muito maior visibilidade que o desemprego, o fenômeno pode ser explicado pelo fato de que, quando entrevistados por pesquisas, os comunitários identificam a figura do agente de governo e, sabendo não ter o governo condições de resolver, no imediato, a questão do emprego, apontam problemas que estão na alçada das políticas públicas: policiamento, iluminação- pública, posto de policial.

O problema básico do mercado de trabalho, não está no desemprego aberto mas reside principalmente no sub-emprego, na sub-utilização e sub-remuneração da mão-de-obra. A grande dimensão do setor informal, associado aos baixos salários praticados no setor formal da economia, está na raiz da grande profusão de pobres e indigentes . No caso do Brasil, a OIT indica que a proporção de assalariados sem registro, que estão excluídos da segurança social subiu de 33,6% para 43,8 % entre 1989 e 1996 ( RUIZ-TAGLE, 2000).

Quando se aprofunda a análise às abordagens micro-localizadas, estas questões são confirmadas. Em primeiro lugar, o baixo-nível de escolaridade tem rebatimento direto no quadro profissional e ocupacional destas

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populações. Que apresentam níveis muito baixos de qualificação, o que vem reforçar as teses sobre a reprodução da força de trabalho para populações marginais e pobres. Tanto os homens quanto as mulheres nas áreas de pobreza estão ocupadas em atividades de muito baixa qualificação:

A Centralidade da Violência

Uma questão que tem alcançado, na sociedade brasileira dos últimos dez anos, uma quase unanimidade, em termos de necessidade de enfrentamento, é a manifestação da violência. Autores os mais diversos têm destacado que o Brasil tem uma das taxas de homicídio mais altas do mundo e que a criminalidade violenta, principalmente nas grandes cidades brasileiras, apresenta uma tendência ascendente nos últimos anos (ADORNO, 1993). É necessário chamar a atenção para a complexidade da questão, quando o problema da criminalidade e sua vinculação direta e retórica com a pobreza tem significado “uma armadilha para o cientista social”( ZALUAR, 1997, :38)10. A antropóloga sublinha a necessidade de se examinar com cuidado os padrões alterados da sociabilidade e de negociação de conflitos nas favelas, onde as identidades parecem estar agora montadas rigidamente na lógica da guerra. Não é por menos que o senso comum afirma estar vivendo o país “uma guerra civil disfarçada”, quando comparam-se o número de mortes violentas em homicídios aqui e em guerras como a Bósnia ou na Tchechênia.

Uma tipologia das áreas de pobreza por nível de criminalidade ainda está por ser estabelecida. Evidentemente a criminalidade extrapola as fronteiras da moradia dos grupos e lideranças criminosas, no entanto, a convivência, seja de grupos de extermínio, seja de traficantes, interfere diretamente na vida da comunidade : o medo e o terror se instauram em alguns bairros populares onde algum tipo de poder militar se consolida; em geral as instituições encarregadas de manter a ordem e a lei estão ausentas, por receio, conivência ou associação; as organizações de vizinhança sofrem desagregação ou se esvaziam, pressionados seja por gangues, seja por grupos religiosos excludentes; as figuras paternas e maternas não mais oferecem modelos e são incapazes de controlar seus filhos. As redes de solidariedade são desfeitas.

Neste quadro, trabalham para a desagregação do tecido social elementos tão díspares como: a falta de permeabilidade urbana da área, onde um sistema de ruelas e becos estreitos, que muitas vezes mal permitem o acesso a pé; casas sem numeração, facilitam os esconderijos dos contraventores; ao promiscuidade urbana, a partir de casa exíguas, sem mínimas iluminação e ventilação, obrigando seus habitantes a estarem constantemente na rua; o nível de ruído que impede atividades de

10 Alba Zaluar, antropóloga e Prof. titular do Deptº de Ciências Sociais e do Instituto de Medicina Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, é uma das maiores autoridades brasileiras em estudos sobre a violência e a criminalidade, e tem desenvolvido pesquisas originais há mais de 15 anos que colocam o crime organizado relacionado ao tráfico de drogas como o epicentro da desestruturação das redes de solidariedade em áreas de favela no Rio de Janeiro.

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concentração e intelectivas; a ruptura das famílias e o crescente número de mulheres chefes-de-família, com as mães, numa estrutura patriarcal, sem autoridade sobre seus filhos jovens; o desemprego, o emprego de “viração” e o alcoolismo; as escolas com ensino distanciado da “vida real” destes jovens; a mídia ofertista e o imaginário da “Lei de Gérson”. Este é o “caldo de cultura”, que alicia jovens para a “fortuna fácil”, através de expedientes associados ao crime. Contudo, cabe sublinhar o caráter diferenciado introduzido pela globalização e destacada por Alba Zaluar:

“No plano mundial, o crime organizado, que tem estruturas complexas e movimenta um grande volume de dinheiro, não pode mais ser desconsiderado como uma força importante, ao lado dos Estados nacionais, igrejas, partidos políticos, empresas multinacionais(...) No Brasil, com o sistema de justiça ainda voltado para os crimes individuais e desaparelhado para investigar os meandros e grupos mais importantes do crime organizado, não temos idéia do impacto que ele hoje tem nas instituições e na sociedade” (ZALUAR, 1997,:39)11

O argumento é importante pois, não havendo modificação na compreensão do fenômeno, diz ainda a antropóloga que o “aumento do salário mínimo ou a implementação de políticas públicas que não contemplem a nova a especificidade da nova criminalidade não serão suficientes nem eficazes. Até porque frisar os altos ganhos daquilo que os favelados chamam “dinheiro fácil”é decretar o fracasso de qualquer política social, pois são raríssimos os empregos, mesmo os de classe média”, que oferecem os níveis de renda supostamente existentes no tráfico ilegal de drogas” (ZALUAR, op.cit :44).

Educação e Pobreza

Uma das estratégias centrais, hoje, no combate à pobreza, tem sido via o aperfeiçoamento do ensino fundamental, seja através da ampliação de cobertura, seja pela melhor qualificação do professorado, pela aproximação da escola com a comunidade, ou ainda pelo melhor equipamento da rede escolar. A educação assume uma prerrogativa essencial na realização da condição dos alunos pobres, funciona como um elemento poderoso na formação da identidade do sujeito.

O atual processo de globalização, através de uma radical transformação técnico-produtiva, tem tido efeitos drásticos, no aprofundamento do gap , já bastante dilatado, entre os países centrais e aqueles da periferia. A gradual substituição do modelo fordista de produção por um sistema de flexibilização especializada, encontra no Brasil, e sobretudo nas regiões Norte-Nordeste, um profundo desequilíbrio estrutural no tocante ao nível da educação formal e da qualificacação da mão-de-obra, que penaliza de forma indelével as camadas mais pobres da população. São elas que sofrem, principalmente dos

11 Ver confirmação a partir da CPI das Drogas ( Congresso Nacional) e o envolvimento de parlamentares, inclusive em Pernambuco, com o crime organizado.

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fenômenos da evasão, repetência e o absenteísmo, que constituem o mais grave problema da escola pública no Brasil.

A observação dos baixos indicadores de educação prevalecentes nos bairros e áreas pobres do país, revela o muito que se tem a fazer, sociedade e poder público, se se quiser atacar este “calcanhar de Aquiles” da realidade brasileira. Sabe-se que os investimentos neste setor são de lenta maturação e não apresentam resultados no curto prazo. A visibilidade dos bons programas educacionais são de longo ciclo, ultrapassando a dimensão de um período ou dois de governo ( 5 a 10 anos), o que torna as políticas públicas no país tão mais urgentes, uma vez que a educação replica diretamente na economia, no processo de consolidação democrática, no futuro das pessoas.

Se existem diagnósticos acertados, é ainda retórica a atuação dos governos, que proclamam prioridade aos investimentos em educação, tendo em vista a dimensão do problema. Sabe-se que a média nacional do salário do professor da rede pública era da ordem de R$ 78,00 em 1996, quando o estado de São Paulo pagava R$ 238,00. Seria fundamental elevar os gastos anuais por aluno do ensino fundamental da rede pública, R$ 260, 00 reais contra US$ 4.000 despendidos nos Estados Unidos da América em 1996.

Concluindo, pode-se afirmar que em termos de políticas públicas de combate à pobreza, os recursos são minguantes e, o que é mais grave, com o descaso ao nível da educação e da saúde e o aumento do emprego informal. Precariza-se ainda mais a mão-de-obra, cristaliza-se uma pobreza urbana que, as margens da sociedade, nos guetos das favelas, faz crescer o nível de violência e a busca por alternativas vinculadas à contravenção da droga, da venda de armamentos e dos assaltos, vitimizando principalmente menores e adolescentes, os excluídos do futuro.

Em relação aos projetos urbanos para baixa-renda, existe a necessidade de se avaliar com maior eficácia, o montante dos recursos alocados para estes fins e a baixa eficácia do que foi efetivamente realizado: a qualidade dos projetos; o viés autoritário da tecnocracia que os elabora; os aspectos tão fundamentais da manutenção; os mecanismos de controle adotados.

Há, sem sombra de dúvidas, grande soma de recursos desviados, projetos equivocados, projetos sem continuidade, obras sem qualidade, falta de controle público e social dos projetos, o que se conhece hoje na literatura especializada como accountability. São indicadores de falta de uma política convincente para a pobreza; de uso político dos recursos; da falta de mecanismos transparentes de alocação dos mesmos. Muitas vezes , mesmo encontrando espírito público em quadros de governo, vontade e compromisso com a realização dos projetos, o excesso de burocracia, as inteferências de natureza político-partidária; os momentos eleitorais, o tamanho do desafio, fazem com que os resultados sejam, em grande medida, muito pouco estruturadores.

Para além da corrupção ou do uso político dos recursos públicos, dos erros de concepção dos projetos , sobretudo a natureza “lampedusiana” das iniciativas – “mudar para permanecer no mesmo“. Por isto mesmo, uma verdadeira

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profusão de projetos de combate a probreza, tratando com teorizações sofisticadas sobre a diversidade dos aspectos que a envolvem. Não falta capacidade técnica, percebe-se; falta interesse político em acabar com a mazela, quando verificamos o montante irrisório dos recursos que são alocados para o enfrentamento deste que permanece o maior problema do país.

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