experiências em contexto: a experimentação numa perspectiva sócio-cultural-histórica

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Universidade de São PauloExperiências em contexto: A experimentação numa perspectiva sócio-cultural-históricaJuliano CamilloSÃO PAULO 2011Universidade de São PauloInstituto de Física Instituto de Química Instituto de Biociências Faculdade de EducaçãoEXPERIÊNCIAS EM CONTEXTO: A EXPERIMENTAÇÃO NUMA PERSPECTIVA SÓCIOCULTURAL-HISTÓRICA Juliano CamilloOrientador: Prof. Dr. Cristiano Rodrigues de Mattos Dissertação de mestrado apresentada ao Instituto de Física, ao Instituto de Química,

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Universidade de So Paulo

Experincias em contexto: A experimentao numa perspectiva scio-cultural-histrica

Juliano Camillo

SO PAULO 2011

Universidade de So PauloInstituto de Fsica Instituto de Qumica Instituto de Biocincias Faculdade de Educao

EXPERINCIAS EM CONTEXTO: A EXPERIMENTAO NUMA PERSPECTIVA SCIOCULTURAL-HISTRICA Juliano CamilloOrientador: Prof. Dr. Cristiano Rodrigues de Mattos Dissertao de mestrado apresentada ao Instituto de Fsica, ao Instituto de Qumica, ao Instituto de Biocincias e a Faculdade de Educao da Universidade de So Paulo, para a obteno do ttulo de Mestre em Ensino de Cincias - Fsica.

Banca Examinadora: Prof. Dr. Cristiano Rodrigues de Mattos (IF-USP/orientador) Prof. Dr. Alberto Villani (IF-USP) Prof. Dr. Demtrio Delizoicov (UFSC)

SO PAULO 2011

AUTORIZO A REPRODUO PARCIAL DESTE TRABALHO, PARA FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE. A REPRODUO COMERCIAL, EM TODO OU EM PARTE, POR QUALQUER MEIO, SOMENTE PERMITIDA COM EXPRESSA AUTORIZAO ESCRITA DO AUTOR.

FICHA CATALOGRFICA Preparada pelo Servio de Biblioteca e Informao do Instituto de Fsica da Universidade de So PauloCamillo, Juliano Experincias em contexto: a experimentao numa perspectiva scio-cultural-histrica . So Paulo, 2011. Dissertao (Mestrado) Universidade de So Paulo. Faculdade de Educao, Instituto de Fsica, Instituto de Qumica e Instituto de Biocincias Orientador: Prof. Dr. Cristiano Rodrigues de Mattos rea de Concentrao: Ensino de Fsica Unitermos: 1. Fsica Estudo e Ensino; 2. Experimentao; 3. Teoria da Atividade; 4. Materialismo Dialtico. USP/IF/SBI-038/2011

Aos meus pais, Jos Antonio e Nisabel. minha av, Apparecida.

Agradecimentos

Muitas vezes somente no final que paramos para agradecer. Ou que paramos para pensar a quem devemos agradecer formalmente. Penso que, talvez, o agradecimento devesse ser contnuo, ser feito no dia-a-dia da caminhada; mas nem sempre o fazemos, pelo menos no explicitamente; seja pelo tempo, pelo orgulho, pelo esquecimento, por achar que no preciso... por isso que um espao como este necessrio. aqui que fazemos explcita, pelo menos um pouco, nossa gratido queles, que mesmo no silncio e no no reconhecimento imediato, estiveram presentes, sempre crendo que seria possvel estar onde estamos. Agradeo aos meus pais, pelas primeiras palavras e pelos primeiros passos. Pelo apoio em todos os momentos da minha vida. Por acreditarem na educao. Luciana, minha irm. v Cida e ao v Carlos (em memria), v Emma e ao v Joanim (em memria). Ao tio Mauro. Aline, pelo amor, pelo carinho, pela compreenso nos momentos de ausncia e que, sempre acreditando em mim, me apoiou nos bons e maus momentos. Aos amigos Guilherme, Gillioli, Cludio, Daniel, Euller, Tiago Assis, Tiago Giraldi, Fbio Assis, Joo, Fbio Rodella, Machado, com os quais pude discutir etapas importantes da minha vida e deste trabalho. Ao professor Andr Koch Torres de Assis, que me ensinou que necessrio sempre questionar. Ao professor Henrique Csar da Silva que me proporcionou muitos questionamentos. Ao professor Joo Marson e professora Lcia, pelo estmulo para ser professor. professora Fernanda Liberali e ao professor Alberto Villani pelas valiosas contribuies no exame de qualificao. Aos amigos do ECCo, Andr, Francisco, Luciani, Jackelini, Esdras, Ortega, Dbora, Teresa, Leonardo e especialmente ao Felipe. Aos companheiros nesta

caminhada do mestrado, Adriel e Carla. Talita, pelo apoio na minha chegada a So Paulo. A todos os companheiros do corredor de ensino. CAPES, pelo apoio financeiro. queles alunos que mostraram que o caminho por mim escolhido no foi em vo, que me mostraram que a mudana possvel. Ao Cristiano, por ter acreditado em mim e me permitido encontrar uma pergunta vital e segui-la. Pelas conversas, cafs, almoos, os que tivemos e que ainda no tivemos. Pela amizade. Por ter me proporcionado muito mais que um ttulo de mestre. A voc, leitor, que no deixar este trabalho esquecido e o tornar fruto de crticas e de possveis dilogos.

RESUMOCAMILLO, Juliano. Experincias em contexto: a experimentao numa perspectiva scio-cultural-histrica. 2011. 175 p. Dissertao (Mestrado em Ensino de Cincias Ensino de Fsica) Instituto de Fsica, Faculdade de Educao, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2011.

Este trabalho tem como objetivo principal analisar as atividades experimentais como recurso de ensino-aprendizagem, com base na Teoria da atividade. As atividades experimentais tm sido apontadas por muitos professores e pesquisadores como responsvel por diminuir as dificuldades e proporcionar uma aprendizagem mais prazerosa. Porm, pesquisas ainda no mostraram de maneira clara qual a relao entre a realizao de atividades deste tipo e a aprendizagem. Diante da diversidade de sentidos atribudos atividade experimental buscamos entender como este tipo de atividade tem sido concebida. Este panorama geral nos permite entender o grande nmero de abordagens que se pode conseguir com este recurso. Com isso, evidenciamos problemas que tm sido associados a realizao de atividades experimentais, os quais exploramos, sob a perspectiva cultural-histrica, suas origens. Nesta perspectiva, entendemos que a Fsica uma manifestao da atividade do homem no mundo, isto , no pode ser compreendida de maneira descontextualizada, fora das prticas humanas. Dessa forma, a educao deve proporcionar aos sujeitos a imerso nas prticas culturais j estabelecidas e fornecer a ele instrumentos de mediao, inclusive os da cincia, para que atue no mundo de maneira consciente. A atividade experimental, como parte dessa produo cultural, s adquire sentidos quando mergulhada em uma prxis, onde sujeitos compreendem seu papel na atividade, quando compartilham certos instrumentos mediadores comuns que os faro ter acesso ao mesmo objeto, ou seja, participar de uma mesma atividade. Como fruto desta atividade, aps um processo de significao e ressignificao, de reconhecimento dos contextos de validade dos instrumentos mediadores, os sujeitos, de posse destes instrumentos, tem chance de atuar em outros contextos dando novos significados a sua vivncia.

Palavras-chave: Experincia, experimentao, materialismo dialtico, Teoria da Atividade.

ABSTRACTCAMILLO, Juliano. Experiences in context: experimentation in a socio-culturalhistorical perspective. 2011. 175 p. Dissertation (Master in Science Education Physics Education) Institute of Physics, Faculty of Education, University of So Paulo, So Paulo, 2011.

The main objective of this work is to analyze the experimental activities as tools for teaching and learning based on Activity Theory. The experimental activities have been pointed out by many teachers and researchers as responsible for reducing the difficulties and provide a more enjoyable learning. However, researches do not show clearly what is the relationship between perform such activities and learning. Facing the diversity of meanings attributed to the experimental activity we initially review the literature about the ways this type of activity has been designed. This overview allows us to understand the numerous approaches that can be achieved with this resource. Then, we highlight problems that have been associated with the use of experiments and we explore them from the cultural-historical perspective. From this point of view, we understand that physics is a manifestation of human activity in the world, i.e. cannot be understood decontextualized from the human practices. Thus, education should provide subjects immersion in the cultural practices already established and providing mediation tools, including science, to act consciously in the world. The experimental activity, as part of cultural production, only acquires meaning when imbibed into a practice where subjects understand their role in the activity, they share common mediating tools that will provide access to the same object, or part of the same activity. As a result of this activity, after a process of meaning and reinterpretation, the recognition of the contexts of validity of the mediators instruments, the subjects in possession of these instruments have a chance to perform in other contexts, giving new meaning to their living situation.

Keywords: Experience, experimentation, dialectic materialism, Activity Theory.

Sumrio1. INTRODUO .......................................................................................................... 15 1.1 1.2 1.3 2. Os caminhos deste trabalho ............................................................................ 15 O nascimento deste projeto de pesquisa: uma pergunta vital ....................... 16 O problema de pesquisa .................................................................................. 19

SOBRE A FORMAO DO SER HUMANO ................................................................. 23 2.1 2.2 2.3 2.4 2.5 2.6 O ser humano e o trabalho: uma perspectiva marxista .................................. 25 A formao social da mente e a mediao por artefatos culturais ................. 27 Os signos, a linguagem e os conceitos ............................................................. 35 A estrutura da Atividade Humana Leontiev e Engestrm ............................ 44 A atividade humano-genrica e a atividade cotidiana .................................... 48 Uma pequena sntese ...................................................................................... 54

3.

A EXPERINCIA, A EXPERIMENTAO E O CONHECIMENTO .................................. 56 3.1 3.2 3.3 3.4 3.5 A experincia no senso comum e na Filosofia ................................................. 56 A experincia-experimentao na Fsica ......................................................... 64 A produo do conhecimento no Materialismo Dialtico ............................... 82 A Fsica como Atividade Humana .................................................................... 85 A experincia na perspectiva scio-cultural-histrica ..................................... 90

4.

A EXPERIMENTAO NO ENSINO DE FSICA ........................................................... 93 4.1 Os sentidos atribudos a experimentao como recurso de ensinoaprendizagem ............................................................................................................. 93 4.2 Os velhos problemas ........................................................................................ 99

5.

NOVA LUZ SOBRE VELHOS PROBLEMAS ............................................................... 106 5.1 5.2 5.3 Revisitando os velhos problemas atribudos experimentao ................... 106 Exemplos Anlise de Alguns Episdios ....................................................... 127 A experimentao na perspectiva scio-cultural-histrica ........................... 150

6. 7. 8.

CONSIDERAES FINAIS ........................................................................................ 161 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ............................................................................. 164 ANEXOS ................................................................................................................. 171

Lista de FigurasFigura 1: Circuito eltrico simples. ................................................................................. 17 Figura 2: O que os alunos enxergavam. ......................................................................... 18 Figura 3: Gnero Humano e o processo de humanizao ............................................. 26 Figura 4: Relao direta .................................................................................................. 30 Figura 5: Relao mediada ............................................................................................. 30 Figura 6: Representao mais tradicional da mediao................................................. 31 Figura 7: A estrutura da atividade proposta por Leontiev. ............................................ 46 Figura 8: Atividade humana Engestrm (1987) ........................................................... 48 Figura 9: Dois sistemas de atividades distintos interagindo .......................................... 48 Figura 10: Bunge Referncia real e experimental ....................................................... 79 Figura 11: Teorias de apoio ao experimento.................................................................. 80 Figura 12: A experincia - Objetivao e Subjetivao .................................................. 92 Figura 13: Esquema de anlise das atividades experimentais ..................................... 103 Figura 14: Diferentes nveis hierrquicos da mediao ............................................... 109 Figura 15: A complexificao da mediao e as lacunas de diversas ordens .............. 109 Figura 16: Diferentes instrumentos, diferentes objetos .............................................. 111 Figura 17: O movimento de sntese dialtica. Professor e aluno numa intersubjetividade caminhando para instrumentos-objetos qualitativamente novos. 112 Figura 18: Diferentes instrumentos, diferentes objetos forma complexificada. ...... 113 Figura 19: Operaes - Aes Atividade .................................................................... 114 Figura 20: Apropriao alienada de um conceito ........................................................ 119 Figura 21: Eletroscpio ................................................................................................. 140

P g i n a | 15

1. INTRODUO

1.1

Os caminhos deste trabalho

Escrever este texto significa fazer uma grande reflexo da caminhada at aqui. o momento de olhar para trs, de repensar, de ressignificar todo o processo que se materializa, parcialmente, neste texto. o momento de uma tomada de conscincia em um nvel mais profundo das escolhas, erros e acertos, angstias e alegrias que este perodo me proporcionou. Descrever a trajetria at aqui tem o papel de explicitar ao menos um pouco, a posio de onde falo, quais so os lugares nos quais estes enunciados se constituem e me constituem. Este texto registra, como uma fotografia, um instante no continuum espao-tempo fsico e cultural-histrico da minha caminhada como ser humano no mundo, como professor, como estudante de mestrado... Posies que assumo e outras que ainda assumirei diante do mundo e da sociedade, posies que se renovam e se mantm a cada novo passo, a cada nova interao com tudo o que me cerca; posies marcadas pela vivncia do constante repensar, discutir, negociar, compartilhar, ser... Em outras palavras, j no mais possvel que este trabalho seja de mim separado. O meu interesse pelas coisas e o seu funcionamento remonta aos tempos em que minha memria no alcana completamente. preciso recorrer memria de outrem para resgatar certas coisas do passado e no deixar que elas se apaguem. Gostava de conhecer os objetos, de desmont-los, gostava de inventar brinquedos e fazer projetos mirabolantes que jamais saram do papel no significa que nunca ganharam realidade; bastavam alguns poucos materiais ou alguma curiosidade apresentada que para mim a diverso era garantida. Nos tempos do colgio gostava de estudar, de saber novas coisas, todas as reas sempre me interessaram. Um ponto importante da minha caminhada escolar foi o Ensino Mdio, quando a paixo pela educao aparece. Dedicava-me a ensinar os

16 | P g i n a colegas, a fazer grupos de estudos, surgiram at aulas particulares. Aquilo que era feito nas horas vagas e inicialmente sem muito sentido foi ganhando corpo e a percepo de que este era um caminho de valor para mim foi crescendo, ao final do Ensino Mdio a deciso estava tomada: eu seria professor, e de Fsica! Voc est louco, menino?. Foi algo que escutei uma infinidade de vezes, porm a tal loucura aos olhos dos outros me proporcionou muitas coisas boas. E na prtica desta profisso e no desejo de poder ter a sala de aula como objeto mais aprofundado de estudo que este projeto de pesquisa tem seu incio.

1.2

O nascimento deste projeto de pesquisa: uma pergunta vital

O ttulo que dou a esta seo no meu, mas tambm no o deixa de ser; apropriei-me dele. Uma pergunta vital quem ensina a buscar o Prof. Cristiano, sempre insistindo que as coisas que pesquisamos devem ter conexes com nossas vidas, para que assim, mesmo diante das dificuldades que a pesquisa ou vida nos traz possamos avanar com nimo e paixo. A citao que segue foi tantas e oportunas vezes citada pelo Cristiano, e na resposta do sbio poeta dirigida ao jovem que procura um motivo para escrever encontramos onde a pergunta vital reside, onde devemos buscar o motivo de escrever, de pesquisar e de ensinar:

O senhor est olhando para fora, e justamente o que menos deveria fazer neste momento. Ningum o pode aconselhar ou ajudar, ningum. No h seno um caminho. Procure entrar em si mesmo. Investigue o motivo que o manda escrever; examine se estende suas razes pelos recantos mais profundos de sua alma; confesse a si mesmo: morreria, se lhe fosse vedado escrever? Isto acima de tudo: pergunte a si mesmo na hora mais tranquila de sua noite: Sou mesmo forado a escrever?. Escave dentro de si uma resposta profunda. Se for afirmativa, se puder contestar quela pergunta severa por um forte e simples sou, ento construa a sua vida de

P g i n a | 17 acordo com esta necessidade. Sua vida, at em sua hora mais indiferente e andina, dever tornar-se o sinal e o testemunho de tal presso. Aproxime-se ento da natureza. Depois procure, como se fosse o primeiro homem, dizer o que v, vive, ama e perde. Cartas a um jovem poeta Rilke

Ainda durante o curso de graduao, a Licenciatura em Fsica, na Universidade Estadual de Campinas UNICAMP, minha carreira como professor de Fsica tem seu incio. Assumi as aulas de uma turma de Terceiro Ano do Ensino Mdio que outro professor, por falta de tempo, havia deixado, em um colgio da rede particular de ensino da cidade de Jaguarina, interior do estado de So Paulo. O assunto a ser ensinado era Eletrodinmica - corrente eltrica, diferena de potencial eltrico, resistncia eltrica, capacitores etc. Os alunos j haviam estudado grande parte deste contedo e a mim caberia dar continuao ao processo e ensinlos sobre capacitores eltricos. Preparando-me para encarar o problema de ensinar tal contedo dedico-me a elaborar uma estratgia de ensino que envolvia uma montagem experimental. A minha ideia era genial, montaria um circuito eltrico com voltmetro, ampermetro, resistor e capacitor e mostraria a eles o comportamento deste ltimo. Mostraria que a corrente eltrica flui pelo circuito enquanto o capacitor no est completamente carregado, mostraria que a corrente cessa quando a carga est completa.

Figura 1: Circuito eltrico simples.1

1

Imagem retirada de [http://electricalengineeringforbeginners.blogspot.com/2009/08/what-is-electriccircuit.html].

18 | P g i n a Enfim chegada a hora da concretizao da minha genial estratgia, era hora da aula sobre capacitores por meio da experimentao. Estava ali diante de todos, claro e evidente, a corrente eltrica que ora aumenta ora diminui. Os ponteiros do multmetro explicitavam, a quem quisesse ver, tudo o que eu queria mostrar aos alunos. A eles cabia perceber o evidente e estabelecer relaes com o que eu dizia, com o que a teoria dizia. Estava tudo perfeito, a minha carreira de professor seria um sucesso dali em diante, bastava uma montagem experimental auto-evidente, simples, clara e objetiva, que todo o processo educacional e o Ensino de Fsica, em especial, estariam resolvidos. Minutos depois uma aluna timidamente diz: Professor, no me leve a mal, mas no estou enxergando nada do que o senhor est dizendo. - Como assim no est enxergando nada? Est claro, evidente!

Figura 2: O que os alunos enxergavam .

2

2

Imagem retirada de [http://toda-kinta.blogspot.com/2010/07/imagens-engracadas-gambiarra-defios.html].

P g i n a | 19 Eu no disse isso, mas foi o que pensei... Pensei que o problema era s com ela e que uma nova explicao seria suficiente para que ela tambm enxergasse o que eu estava vendo atravs da minha montagem experimental, com um pouco de pacincia eu conseguiria fazer com que a menina se juntasse aos que naturalmente enxergam corrente eltrica. Mas no; bastou o singelo desabafo da menina para que o caos se instaurasse. Aquilo que era to evidente s era visto por mim. Ningum enxergava corrente eltrica, potencial eltrico, resistncia eltrica. Joguem o professor e sua parafernlia eltrica pela janela! Nascia ento, naquele momento, uma pergunta, ainda tmida, sem pretenses de tornar-se maior e assumir um lugar em um trabalho de mestrado, mas que efervesceu em diversos momentos novamente Por que a atividade experimental no to evidente quanto eu esperava? Por que os alunos no enxergavam aquilo que para mim era to claro?

1.3

O problema de pesquisa

Quando este problema toma corpo e torna-se um projeto de pesquisa de mestrado surge inevitavelmente a pergunta: para onde esta investigao deveria apontar? Para os alunos, para o professor ou para o tipo de experimento realizado? Eram inquietaes iniciais, possveis perguntas de investigao, mas que certamente ficariam aqum da complexidade e da beleza que este problema de pesquisa posteriormente veio manifestar. Estava comeando a ficar claro que no seria possvel desvincular professor, aluno e experimento na anlise. Especulava que talvez existisse para este problema uma luz em um referencial terico que abarcasse a histria de vida do aluno, ou de maneira geral, a constituio histrica dos objetos, indivduos e suas relaes, neste caso especfico na sala de aula3.

3

Tal especulao deve-se a uma disciplina que cursei com o Prof. Henrique Csar Dias da Silva na UNICAMP antes de ingressar no mestrado, e que aprofundava questes como ideologia, constituio histrica da linguagem e dos sujeitos.

20 | P g i n a Da especulao inicial passei certeza de poder apoiar-me em uma perspectiva scio-cultural-histrica, fundamentando a anlise nos trabalhos de Vigotski e Leontiev, assim como de seus seguidores4, com as bases em Marx e o seu materialismo dialtico. Considero um desafio bastante grande colocar a totalidade das reflexes que venho desenvolvendo em uma estrutura linear como a apresentada aqui. Este trabalho constitui-se de reflexes tericas e exemplos que suportam determinadas afirmaes na construo de uma resposta a seguinte pergunta de pesquisa: Qual o sentido da experimentao dentro da perspectiva da Teoria da atividade Scio- Cultural-Histrica? Buscamos, assim, analisar o papel da experimentao como recurso de ensinoaprendizagem de cincias e entender de que maneira este tipo de atividade pode ser concebida. Desta maneira, perguntas menores nos pareceram fundamentais de serem respondidas a fim de compor a grande resposta da nossa pergunta de pesquisa. So elas: Quais so os sentidos atribudos experincia e experimentao? Como professores e pesquisadores tm concebido a experimentao como recurso de ensino-aprendizagem de cincias? Por que a experimentao no gera tantos frutos quanto se acredita? Quais os tpicos problemas relacionados experimentao? possvel fundamentar as origens tais problemas na perspectiva scio-culturalhistrica da Teoria da Atividade? possvel sugerir caminhos para a experimentao ao final deste trabalho? E, com base nestes questionamentos construmos nosso trabalho. Os captulos que se seguem so respostas a estes questionamentos principais e tambm outros que nos foram suscitados.4

O meu contato com a perspectiva scio-cultural-histrica inicia-se em maio de 2009 quando passo a ter o professor Cristiano como orientador e a fazer parte do grupo de pesquisa por ele formado, o ECCO.

P g i n a | 21 Num primeiro momento, no segundo captulo, apresentamos aquilo que tem sido chamada de Teoria da Atividade Scio-Cultural-Histrica, que foi norteadora das nossas leituras e anlises que nos propomos fazer aqui. Inicialmente elencamos alguns pressupostos fundamentais desta perspectiva e depois, no quinto captulo, aprofundamos determinadas questes mais especficas no que diz respeito ao processo de ensino-aprendizagem de Cincias/Fsica por meio da experimentao. Este referencial terico capaz de olhar para a questo da formao do gnero humano e os produtos de sua atividade sem, no entanto, recorrer a uma teoria no qual ele seja tratado como um ser puramente psicolgico ou puramente biolgico. Sob uma perspectiva marxista de anlise buscamos entender o processo pelo qual o ser humano torna-se membro do gnero humano, ou seja, quando deixa de ser uma espcie e passa a ser capaz de agir conscientemente sobre o mundo e sobre si mesmo, quando se torna capaz de objetivar sua atividade por meio da linguagem em suas diversas manifestaes: arte, Fsica, teatro etc. Esta reflexo vem dar suporte aos questionamentos iniciais sobre a constituio histrica dos sujeitos, objetos e das relaes entre eles. De posse do arcabouo terico que nos orienta, caminhamos para o terceiro captulo, no qual buscamos alguns dos sentidos atribudos experincia. Este captulo constitui-se do terreno no qual estamos adentrando, o terreno dos sentidos e significados j estabelecidos. Trazemos algumas concepes de experincia do campo da filosofia e do senso comum experincia de uma maneira bastante ampla. Fechando os limites, focamos nos sentidos que a experincia adquire no campo da Cincia, em especial na Fsica. Trazemos, sobretudo concepes distorcidas acerca dos cientistas e do processo de construo do conhecimento cientfico, as quais buscamos superar lanando mo da perspectiva que tem sido chamada de Nova Filosofia da Cincia e, tambm, do Materialismo Histrico Dialtico, com o quais buscamos fazer uma sntese destas concepes e elucidar uma viso mais coerente acerca da produo do conhecimento cientfico. Por fim, ainda no terceiro captulo, e de posse destes vrios sentidos, buscamos caminhos para se pensar a Fsica como uma Atividade Humana (ou um conjunto delas) e a experincia na perspectiva sciocultural-histrica.

22 | P g i n a Na continuao, e ainda nos faltando os sentidos atribudos experimentao como recurso de ensino-aprendizagem de cincias, trazemos o captulo 4, no qual tais sentidos so apresentados. Buscamos entender como as atividades experimentais tm sido concebidas por professores e pesquisadores e como esto (se esto) sendo utilizadas. Apontamos, sobretudo, os tpicos problemas associados realizao de tais atividades apontados pela literatura especfica. E por fim, no captulo 5, possivelmente a parte mais importante deste trabalho, alguns dos tpicos problemas, sobretudo aqueles que dizem respeito aos processos de ensino-aprendizagem, so revisitados e analisados sob a perspectiva scio-culturalhistrica da Teoria da Atividade. Buscamos fundamentar as origens de tais problemas sob esta perspectiva e, com o objetivo de ilustrar e dar suporte a algumas de nossas proposies, trazemos exemplos (pequenos episdios) que analisamos. Este captulo visa sintetizar o trabalho desenvolvido e sugerir caminhos para se melhorar o processo de ensino-aprendizagem via experimentao e no s por meio dela. Assim, esperamos ter respondido os questionamentos, pelo menos grande parte deles, que nos foram suscitados antes do incio do projeto e tambm durante sua realizao.

P g i n a | 23

2. SOBRE A FORMAO DO SER HUMANOHow many roads must a man walk down, Before you call him a man? (Blowin' In The Wind, Bob Dylan)

Este projeto de pesquisa nasce, como j exposto aqui, de um problema bastante especfico o de um episdio em sala de aula de cincias em que a experimentao era central na produo de sentidos e, por si s, ficou aqum da complexidade deste processo. Tnhamos ento, desde o incio do amadurecimento do problema de pesquisa, hipteses de que a constituio social, histrica e cultural dos participantes e suas relaes desempenhavam um papel central para entender os processos de ensino-aprendizagem e as relaes sujeito-objeto que a experimentao proporciona. Com o objetivo de fortalecer e fundamentar esta hiptese, trazemos este captulo que constitui uma reflexo acerca da constituio social, histrica e cultural do homem, da sua atividade no mundo e dos produtos objetivados nesta/por esta atividade. Nossa proposta lanar mo de um instrumento de anlise que permite enxergar o ser humano em uma concepo mais ampla e que transcende o indivduo particular, que o coloca numa perspectiva dialtica e histrica o de um ser humano que capaz de agir sobre o mundo e sobre si mesmo; que aprende, que ensina, que valora, que se emociona... Os aspectos puramente biolgicos da existncia humana so transcendidos e subordinados aos processos sociais, culturais e histricos. O ser humano mais que um ser biolgico adaptando-se ao mundo e a mente humana, mais do que um conjunto de processos intrapsquicos individuais que visam dar sustentao a este processo de adaptao. Quando tratarmos de processos mentais, cognitivos e lingusticos, estes deixaro de ser unicamente pertencentes ao indivduo como resultado do processo de desenvolvimento particular, mas processos que se constituem pela relao com o mundo no outro e pelo outro. Apontamos, sobretudo, que por meio da sua atividade que o ser humano se constitui como um ser prxico.

24 | P g i n a Este captulo tem, sobretudo, o papel de mostrar o olhar orientador de nossas leituras e do nosso estudo, o olhar que permitiu que questionamentos fossem feitos com maior propriedade. Por hora, apresentaremos alguns pressupostos fundamentais deste recorte terico e adiante, nos demais captulos, aprofundaremos algumas questes. No incio deste captulo apresentamos, de maneira bem geral, a concepo marxista de ser humano. Esta introduo ao pensamento marxista nos importante, pois o referencial em que estamos nos apoiando possui suas bases em tais pressupostos. Dadas as bases marxistas, nos aprofundamos, assim, nos autores da perspectiva que tem sido conhecida como Teoria da Atividade scio-cultural-histrica, nos quais buscamos especificidades da formao do sujeito particular por meio da atividade ou das atividades que continuamente se estabelecem entre os seres humanos. neste sentido que estamos buscando entender os processos de ensinoaprendizagem de uma maneira mais ampla, que no repousa somente em habilidades cognitivas individuais. Buscamos, sobretudo, compreender os processos de ensinoaprendizagem de fsica como caminhos para se atribuir novos sentidos ao mundo. Apontamos que o grande arcabouo que estamos articulando apoia-se, em sua maioria, nos trabalhos de Vigotski, Bakhtin, Leontiev e Engestrm; outros autores so buscados para dar suporte ao nosso entendimento desta perspectiva. Alm de tais autores, apresentamos ainda, no com o mesmo peso que aqueles apresentam para nossa anlise, alguns pressupostos da Teoria do Cotidiano de Agnes Heller. Entendemos que esta autora vem ajudar-nos a compreender certos compromissos aos quais os sujeitos continuamente se filiam diante do mundo e que acabam por cristalizar-se em absolutos, impedindo que reconheam e apropriem-se da totalidade das produes humanas.

P g i n a | 25

2.1

O ser humano e o trabalho: uma perspectiva marxistaDiante daquilo que acabamos de expor, alguns questionamentos se fazem

pertinentes: O que o ser humano? Quais so suas especificidades? Como se constitui o gnero humano? Que mundo este do qual estamos falando? Os seres vivos, de maneira geral, so influenciados pelo meio sua volta. Os animais, ao interagirem com aquilo que os cerca, sempre o fazem de maneira a se adaptar ou saciar necessidades biolgicas, como alimentao, sobrevivncia, reproduo, e, para isto, dispem de recursos que so prprios da sua espcie, como garras especiais, dentes adaptados, colorao especfica que permite a camuflagem etc. Mesmo os animais que constroem coisas, como as abelhas, aranhas e aves, quando o fazem lanando mo de uma habilidade herdada da sua espcie, no de uma faculdade mental adquirida pelo indivduo particular ao longo do seu desenvolvimento ontogentico. Marx (1983) comenta sobre o trabalho das aranhas, que, ao tecerem suas teias, o fazem como um habilidoso tecelo ou as abelhas que constroem suas caixas suspensas e so capazes de envergonhar um arquiteto habilidoso; porm, a diferena entre uma abelha e o pior dos arquitetos que desde o incio este ltimo j tinha em sua mente o resultado final de sua obra. O homem, ao contrrio destes animais, capaz de agir conscientemente sobre o meio que o cerca. Os animais so capazes de modificar o meio sua volta, porm o fazem de maneira muito restrita. Em determinado momento do seu desenvolvimento filogentico, o ser humano adquiriu faculdades (biolgicas, psicolgicas etc.) para operar sobre o meio sua volta e transforma-lo, realizar aquilo que conhecemos como trabalho e, ao fazer isso, modifica tambm as suas prprias condies de existncia e cria novas necessidades que no mais as de sobrevivncia e adaptao. o trabalho, para Marx, que diferencia a atividade animal da atividade humana; o animal age para satisfazer suas necessidades, o ser humano, ao contrrio, age para produzir meios de satisfazer suas necessidades (MARX & ENGELS, 2005). O ser humano ao produzir e modificar o mundo que o cerca, produz historicidade (PINO, 2000).

26 | P g i n a Neste caminho de transformao do mundo e de si mesmo, o ser humano passa a ser mais do que uma espcie biolgica; na sua experincia no mundo e ao agir sobre ele, subordina sua evoluo biolgica, determinante nas demais espcies, a uma evoluo de outro tipo a cultural. No significa dizer que a evoluo biolgica no desempenha mais nenhum papel, que as necessidades biolgicas j no se fazem presentes, mas que estas j no so as principais para a constituio do gnero humano. Neste sentido, no podemos em falar de mundo sem falar do homem e a sua ao. O mundo como o conhecemos ou como temos acesso a ele - resultado da atividade humana passada; os produtos objetivados em atividade de outras geraes passam a constituir o mundo dos novos indivduos, que da mesma maneira o construiro-transformaro. neste sentido que os indivduos ao se apropriarem e darem sentido as coisas do mundo vo se constituindo como sujeitos do gnero humano, vo alcanando todas as potencialidades que no estavam presentes na espcie humana antes da sua evoluo cultural. a relao do sujeito com o mundo e com o outro, pela cultura, que o conduz a esta evoluo e o constitui como ser humano no sentido lato do termo. Podemos dizer que existe um processo chamado humanizao, que leva os indivduos da espcie humana a adentrarem no gnero humano.

Figura 3: Gnero Humano e o processo de humanizao

Nos pargrafos que acabamos de apresentar, esto brevemente descritas as bases marxistas da natureza do gnero humano. Marx, no entanto, no nos fornece as particularidades do processo de humanizao ou da apropriao da experincia humana objetivada. Ele lana uma grande base, mas coube a outros estudiosos o posterior desenvolvimento de uma teoria, que apoiada nessa grande perspectiva, conseguisse contemplar os complexos processos da formao da mente e analisar a atividade humana de maneira mais cuidadosa. Segundo Vigostki:

P g i n a | 27

...o que, sim, pode ser buscado nos mestres do marxismo no a soluo da questo, e nem mesmo uma hiptese de trabalho (porque essas so obtidas sobre a base da prpria cincia), mas o mtodo de construo. No quero receber de lambuja, pescando aqui e ali algumas citaes, o que a psique, o que desejo aprender na globalidade do mtodo de Marx como se constri a cincia, como enfocar a anlise da psique (VIGOTSKI, 1927/1996, p. 395).

para estes aspectos que voltaremos nossa ateno a partir de agora. De que maneira o tal mtodo marxista, o materialismo histrico e dialtico capaz de proporcionar um olhar para a formao do gnero humano.

2.2

A formao social da mente e a mediao por artefatos culturais

Strangers passing in the street By chance two separate glances meet And I am you and what I see is me And do I take you by the hand And lead you through the land And help me understand the best I can Echoes Pink Floyd

Vigotski em seu manuscrito Psicologia humana concreta (VIGOTSKI, 1929/2000) afirma que o ser humano um conjunto de relaes sociais incorporadas em um indivduo. Nesta afirmao, aparentemente simples e passvel de diversas interpretaes se no conhecidas as bases na qual est enunciada, est contida uma tese fundamental de toda a obra de Vigotski, com apoio em Marx - a da formao social da mente humana. A tese que o homem se constitui na sua relao com o mundo que o cerca, mundo de relaes sociais, histricas e culturais.

28 | P g i n a Esta tese, na qual nos apoiamos para falar dos processos mentais do ser humano, descrita pela lei gentica geral do desenvolvimento cultural de Vigotski, que afirma que as funes psicolgicas so, num primeiro momento, relaes entre sujeitos, no plano intermental, e s posteriormente intramental. Os processos mentais superiores, como o pensamento verbal, a memria, a lgica e a ateno seletiva, so gerados nas interaes sociais (VIGOTSKI, 2001). Nesta perspectiva devemos deslocar nossa ateno do indivduo isolado para o meio social e para as prticas culturais em que est inserido, somente assim conseguiremos um completo entendimento do funcionamento mental deste indivduo (WERTSCH & TULVISTE, 2002). Wertsh (1985) destaca, na obra de Vigotski, trs domnios genticos no qual esta anlise pode ser feita, o filogentico, ontogentico e microgentico. No filogentico, a anlise est voltada para o desenvolvimento do homem como espcie; o domnio ontogentico est relacionado com o desenvolvimento e a histria do indivduo, com o conjunto das suas experincias particulares; no terceiro domnio, o microgentico, dedica-se s interaes mais especficas em que os indivduos esto envolvidos. Em qualquer nvel de anlise, no se pode esquecer que todos estes domnios esto imbricados. Partindo da tese de que a ao do homem sempre mediada5, Vigotski (2001) distingue os dois tipos de instrumentos, os tcnicos e os psicolgicos, porm dedica grande parte da sua ateno aos instrumentos psicolgicos, como a linguagem. Ressaltamos que no existe uma dicotomia entre os instrumentos tcnicos e os psicolgicos, muito menos entre instrumentos de ao e de pensamento. Os instrumentos so artefatos produzidos culturalmente, uma vez que no so dados pela natureza, e carregam consigo marcas das geraes humanas passadas e sua atividade, marcas culturais que remetem as relaes existentes quando da produo ou significao destes artefatos. Leontiev faz uma anlise dessa caracterstica:

5

Para Marx, uma das especificidades da ao humana a de ser mediada, em outras palavras, o ser humano age sempre por meio de instrumentos mediadores. Esta noo de mediao fundamental para Vigostki.

P g i n a | 29 O mundo real, imediato, do homem, que mais do que tudo determina sua vida, um mundo transformado e criado pela atividade humana. Todavia, ele no dado imediatamente ao indivduo, enquanto mundo de objetos sociais, de objeto encarnando aptides humanas formadas no decurso do desenvolvimento da prtica scio-histrica enquanto tal apresenta-se a cada individuo como um problema a resolver. isto que explica que quando se colocam objetos da cultura material humana na gaiola de um animal, se bem que eles no percam evidentemente qualquer das suas propriedades fsicas, torna-se impossvel manifestaes das

propriedades especficas que estes tem para o homem; eles aparecem como simples objetos de adaptao ou de equilbrio, isto , como elemento do meio natural do animal. (LEONTIEV, 2004, p. 178)

O que Leontiev est apontando que mesmo artefatos tcnicos carregam marcas da cultura humana e da atividade da qual so originados. Uma chave de fenda, por exemplo, um artefato carregado de significado cultural, desta maneira, aquele que queira utilizar desta ferramenta precisa conhecer, ao menos, algum detalhe da atividade para qual esta ferramenta foi concebida ou ela simplesmente servir como um pedao de metal e adquirir uma funo totalmente diversa daquela de apertar parafusos. Outro aspecto importante dos instrumentos mediadores que eles alteram por completo o fluxo ou a dinmica da atividade, que antes era realizada sem mediao ou com outro instrumento mediador, seja tcnico ou psicolgico. Nas sociedades primitivas, por exemplo, a introduo da pedra lascada, como ferramenta, promove alteraes significativas no mecanismo de caa e alimentao, modificando assim as condies de vida dos seres humanos, ocasionando, inclusive, outras necessidades, como a de buscar novas ferramentas, como a pedra polida.

30 | P g i n a Um aspecto fundamental que o instrumento mediador no possui sentido nico de ao, ele tem a capacidade de agir sobre o indivduo que dele se apropria e utiliza, ou seja, seu efeito no ocasiona modificaes somente no objeto ou na estrutura da atividade, mas tambm no indivduo. A relao bsica da mediao consiste na introduo de um terceiro elemento na relao direta Estmulo-Resposta de qualquer ao, fazendo com esta relao no seja mais direta. Este o exemplo mais simples de mediao e para Vigotski:

O elo intermedirio nessa frmula no simplesmente um mtodo para aumentar a eficincia da operao preexistente, tampouco representa meramente um elo adicional na cadeia S-R. Na medida em que esse estmulo auxiliar possui a funo especfica de ao reversa, ele confere operao psicolgica formas qualitativamente novas e superiores, permitindo aos seres humanos, com o auxlio de estmulos extrnsecos, controlar seu prprio comportamento. O uso de signos conduz os seres humanos ao uma estrutura especifica de comportamento que se destaca do desenvolvimento biolgico e cria novas formas de processos psicolgicos enraizados na cultura. (VIGOTSKI, 2007, pg. 34)

Figura 4: Relao direta Figura 5: Relao mediada

Tomemos como exemplo a tarefa de memorizar algo; a figura 4 ilustraria esta situao sem mediao, o esforo mental para conectar um estmulo S a uma resposta R, feito diretamente, enquanto na situao ilustrada na figura 5 a relao

P g i n a | 31 substituda por outras duas, S-X e X-R; onde X um instrumento que faz a mediao, por exemplo, uma marca de caneta na mo para servir de recurso mnemnico para a memorizao.

Figura 6: Representao mais tradicional da mediao

A ateno de Vigotski, em grande parte do seu trabalho, est voltada para a linguagem como constitutiva do ser humano e analisa como seu aparecimento capaz de alterar e controlar o fluxo da atividade mental, seja no domnio filogentico, quando a espcie humana passa a simbolizar por meio da linguagem e se diferencia por completo das outras espcies, seja no domnio ontogentico, quando a criana passa a operar com a linguagem e tem a sua estrutura mental modificada em relao as operaes que realizava antes do aparecimento da linguagem. A unidade de anlise que Vigotski utiliza o significado das palavras, uma vez que o significado no interior, mas fruto de uma relao social-cultural-histrica, uma relao que antes de ser interior era exterior, alimentando uma tenso dialtica interno-externo. o significado responsvel por colocar o individual e o social em contato. Alm da linguagem, os instrumentos de mediao podem ser os sistemas de contagem, tcnicas mnemnicas, smbolos algbricos, obras de arte, esquemas, diagramas, mapas e desenhos; todos os tipos de signos convencionais (VIGOTSKI, 2007). Este contato entre o individual e social acontece, para Vigotski, na Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP), regio que consiste das potencialidades ainda no completamente maturadas:

A criana capaz de imitar uma srie de aes que ultrapassam suas prprias competncias, mas somente dentro de limites. Por meio da imitao, a criana capaz de desempenhar muito melhor quando

32 | P g i n a acompanhada e guiada por adultos do que quando deixada sozinha, e pode fazer isso com entendimento e independncia. A diferena entre o nvel de tarefas resolvidas que podem ser desempenhadas com orientao e auxilio de adultos e o nvel de tarefas resolvidas de modo independente a zona de desenvolvimento proximal (HEDEGAARD, 2002, p. 200).

na ZDP que as prticas sociais e que os instrumentos mediadores podem ser internalizados-externalizados e que os significados podem ser negociados. Uma consequncia direta disto ao ensino que ele deve estar frente do desenvolvimento real do individuo, deve operar na ZPD estimulando o desenvolvimento cognitivo dos sujeitos; a ateno do processo de ensino-aprendizagem volta-se tambm para a sua dinmica e no somente para o produto, uma vez que necessrio que os limites da ZPD sejam conhecidos desde o planejamento e tambm durante a realizao da atividade educacional. Aqui encontramos um ponto fundamental e de divergncia entre as perspectivas educacionais pautadas em Piaget e Vigotski. Para Piaget, um indivduo somente pode aprender algo se o seu desenvolvimento, no que diz respeito ao que vai ser ensinado, estiver completo6. Em outras palavras, o processo de ensinoaprendizagem deve vir associado ao desenvolvimento do sujeito, mas sempre um passo atrs; primeiro o desenvolvimento depois a aprendizagem, nunca ao contrrio. Por outro lado, Vigotski no separa desenvolvimento de processo de ensinoaprendizagem no sentido lato do termo ou mais especfico ensino formal. o processo de ensino-aprendizagem que proporciona o desenvolvimento, ou dir-se-ia que o processo de ensino-aprendizagem o prprio desenvolvimento, dialeticamente. O professor, na maioria das vezes, aquele, que na escola, desempenha o papel do parceiro capaz, que responsvel por negociar-comunicar os elementos mais elaborados da cultura humana. O parceiro mais capaz tem o papel fundamental no

6

As teorias de Piaget encontram-se fortemente baseadas numa perspectiva biolgica de indivduo. Os processos de assimilao, equilibrao e acomodao remetem aos processos adaptativos dos seres vivos em geral, analisados pela biologia.

P g i n a | 33 processo de apropriao, por parte dos alunos, da experincia humana objetivada na cultura em que est imerso. Este o processo que temos chamado de humanizao. No possvel alcanar um posto no gnero humano sem a apropriao de formas tipicamente humanas. neste sentido que:

O indivduo se forma, apropriando-se dos resultados da histria social e objetivando-se no interior dessa histria, ou seja, sua formao se realiza atravs da relao entre objetivao e apropriao. Essa relao se efetiva sempre no interior de relaes concretas com outros indivduos, que atuam como mediadores entre ele e o mundo humano, o mundo da atividade humana objetivada. A formao do indivduo , portanto, sempre um processo educativo, mesmo quando no h uma relao consciente (tanto de parte de quem se educa, quanto de parte de quem age como mediador) com o processo educativo que est se efetivando no interior de uma determinada prtica social" (DUARTE, 1993, p. 47-48).

Existem ainda outros sentidos atribudos a ZDP; ela recebe, por exemplo, uma interpretao mais social, constituindo-se da distncia entre a experincia cotidiana dos indivduos e o conhecimento cultural disponvel, fornecido geralmente pelo ensino (LAVE & WENGER, 2002). Ainda nesta perspectiva coletiva de interpretao, Engestrm define ZDP como a distncia entre as aes cotidianas dos indivduos e as novas formas histricas de atividade social que podem ser coletivamente geradas como soluo para o duplo vnculo potencialmente inserido nas aes cotidianas (ENGESTRM, 1987, P. 174). A Zona de Desenvolvimento Proximal no deve ser entendida como uma regio esttica, delimitada somente pelo desenvolvimento biolgico dos indivduos, mas como uma regio que vai dinamicamente sendo modificada a cada nova interao, a cada novo conceito aprendido ou significado negociado, a cada atividade social gerada

34 | P g i n a coletivamente, seja na interpretao que se aproxima mais da individual quanto na ZDP coletiva. Como aponta Magalhes (2009), muitos autores mantiveram sua ateno ZDP de forma dualista e interacionista, mantendo o foco somente na diferena entre o que se pode fazer sozinho e o que se pode fazer com os outros e exclusivamente nos meios pelo qual a atividade realizada. Para Vigotski, e para o materialismo histricodialtico, o mtodo (meio de realizar) ao mesmo tempo pr-requisito e produto, instrumento-e-resultado, e no algo independente da atividade produtiva. Como destacam Newman e Holzman (2002), o instrumento-e-resultado no possui um significado pr-estabelecido ou identidade social pr-fabricada que independe da atividade. Constituem-se, porm, como instrumentos somente medida que o produto vai sendo reconhecido como produto; so inseparveis e a atividade produtiva que define os dois. neste sentido que a ao humana no mundo deve ser prtico-crtica; esta a definio da prxis no materialismo histrico-dialtico: o mtodo deve ser algo praticado e no simplesmente utilizado; o mtodo no deve ser pragmtico e funcional. A ZDP, ento, no deve ser entendida como uma abstrao indissocivel da vida de quem a produz. na ZDP que a caracterstica prtico-crtica da ao humana pode desenvolver-se, levando ao desenvolvimento no seu sentido mais amplo, como concebido por Vigotski. Para Magalhes (2009):

Isto significa que as aes dos indivduos so motivadas pelas aes dos outros e produzidas a partir das aes dos outros, uma vez que todos os participantes esto envolvidos de forma colaborativa na negociao, na criao de novos significados que pressupem novas organizaes dos envolvidos e no apenas a aquisio de contedos particulares. o que Newman e Holzman (2002) afirmam sobre o conceito de desenvolvimento significar mudar totalidades em lugar de mudar particulares (MAGALHES, 2009, p. 59).

P g i n a | 35 importante salientar que a ZDP , ento, o espao compreendido entre o que os participantes so e o que esto em processo de tornar-se - a relao entre ser e tornar-se (MAGALHES, 2009, p. 59). do espao interpessoal, da interao entre indivduos e por meio da ao prtico-crtica - da prxis e de mudar totalidades - que o ser humano capaz de objetivar os signos, a linguagem, os conceitos e todos os produtos ideolgicos que sero analisados na prxima seo.

2.3

Os signos, a linguagem e os conceitos

There's a sign on the wall but she wants to be sure 'cause you know sometimes words have two meanings Stairway to Heaven - Led Zeppelin

Nesta perspectiva, apresentada at aqui, existe uma tenso dialtica entre o que interior-individual e o que exterior-social. A anlise destas tenses pode ser ampliada apoiando-nos em Bakhtin, que contribui em diversos aspectos e se entrelaa com a proposio terica desenvolvida por Vigotski na sua anlise das relaes entre pensamento e linguagem. Bakhtin chama os produtos da atividade humana de produtos ideolgicos, a linguagem um desses produtos; para ele, a palavra o modo mais puro e sensvel de relao social e o signo ideolgico por excelncia (BAKHTIN, 2006, p. 36). A um produto ideolgico creditada certa realidade; um objeto fsico como qualquer outro, porm um produto ideolgico capaz de remeter a algo externo a ele; capaz de refletir e refratar uma outra realidade (ibidem, p.29). A palavra sem ideologia deixa de ser um signo e passa a ser somente um objeto fsico, simplesmente um sinal, que pode ser reconhecido; um signo, por outro lado, pode ser descodificado. na interao entre duas conscincias individuais que os signos emergem (ibidem, p.32). Bakhtin ainda afirma que:

36 | P g i n a

Para que o objeto, pertencente a qualquer esfera da realidade, entre no horizonte social do grupo e desencadeie uma reao semitico-ideolgica, indispensvel que ele esteja ligado s condies scio-econmicas essenciais do referido grupo, que concerne de alguma maneira s bases de sua existncia material. (ibidem, p. 44).

Uma palavra somente um signo porque no tem o seu significado esttico. Se a palavra representasse sempre a mesma coisa ela seria um sinal. a sua constante evoluo de sentidos e significados que faz com que a palavra seja um produto ideolgico. A palavra somente tem sentido quando mergulhada em uma ideologia, num contexto social especfico, os signos so polissmicos.

Os signos s emergem, decididamente, do processo de interao entre uma conscincia individual e uma outra. E a prpria conscincia individual est repleta de signos. A conscincia s se torna conscincia quando se impregna de contedo ideolgico (semitico) e, consequentemente, somente no processo de interao social. (ibidem, p.32)

Os signos, apesar de certa estabilidade de significado, adquirem tantos sentidos quantos forem os contextos especficos nos quais esto sendo utilizados. A palavra terra, por exemplo, possui um significado relativamente bem estabelecido para aqueles que falam o portugus, porm, terra para um morador sem-terra adquire um sentido bastante diverso daquele dado por um morador de uma grande cidade.

O sentido da palavra totalmente determinado por seu contexto. De fato, h tantas significaes possveis quantos contextos possveis.

P g i n a | 37 No entanto, nem por isso a palavra deixa de ser una. Ela no se desagrega em tantas palavras quantos forem os contextos nos quais ela pode se inserir. Evidentemente, essa unicidade da palavra no somente assegurada pela unicidade de sua composio fontica; h tambm uma unicidade inerente a todas as suas significaes. Como conciliar a polissemia da palavra com sua unicidade? assim que podemos formular, de modo grosseiro e elementar, o problema fundamental da semntica. Esse problema s pode ser resolvido pela dialtica. (ibidem, p. 106)

nisto que consiste a decodificao dos signos, compreender que a cada nova enunciao novas possibilidades de sentido emergem, compreender o novo contexto que surge a partir de cada interao entre interlocutores. O processo de descodificao no consiste em identificar a palavra como um sinal ou uma forma lingustica, mas compreend-la num contexto particular de enunciao (ibidem, p.93). O dilogo mediado e situado pelo contexto imediato dos interlocutores, contexto este que evolui com o dilogo. Ao enunciar, o falante o faz de uma posio nica em relao aos seus interlocutores, ele fala para algum, num contexto especfico; cada enunciao pressupe uma resposta, mesmo que distante no tempo ou no espao. Um enunciado traz consigo uma multiplicidade de vozes, ele sustentado por enunciados que vieram antes dele e carrega vozes que pertencem ao mesmo grupo social, mesma ideologia, vozes que possuem caractersticas que as fazem pertencer a conjuntos de enunciados relativamente estveis, os gneros do discurso (BAKHTIN, 1997). De cada grupo social ou de cada esfera da atividade humana emergem signos prprios, caractersticas lingusticas singulares, enunciados particulares ou gneros do discurso que os permitem comunicar, controlar a si mesmo e aos outros e agir sobre o mundo que os cerca por meio destes instrumentos mediadores processo de se constituir humano por meio da linguagem.

38 | P g i n a O ser humano, num primeiro momento, entra em contato com o mundo por meio das faculdades que lhe so dadas pela sua espcie; a evoluo cultural no transmitida pelo mesmo mecanismo biolgico da evoluo da espcie, porm vai se apropriando do mundo e dos seus sentidos e significados, muitos dos quais j estavam presentes na cultura atribudos por outrem. Para Leontiev:

A significao aquilo que num objeto ou fenmeno se descobre objetivamente num sistema de ligaes, de interaes, de relaes objetivas. A significao refletida e fixada na linguagem, o que lhe confere estabilidade (LEONTIEV, 2004, p. 100).

A significao possui estabilidade, ela a forma cristalizada da experincia humana e das prticas sociais. ao longo de sua vida que o homem apropria-se de significaes e, ao fazer isto, est assimilando a experincia humana generalizada7. A significao independe da relao individual, pois constitui-se muitas vezes de um sistema j pronto e aquilo que o sujeito assimila, ou no, est em certo grau relacionado aos sentidos pessoais que se d a tais significados. Os sentidos relacionamse relao objetiva que se reflete no crebro do homem, entre aquilo que o incita a agir e aquilo para o qual a sua ao se orienta como resultado imediato (ibidem, p. 103). Ou seja, o sentido consciente traduz a relao do motivo ao fim (ibidem). Leontiev utiliza-se do exemplo de um aluno que deve ler uma obra cientfica e do sentido que tal ao apresenta; se o motivo da leitura preparar o aluno para sua futura profisso, o sentido ser totalmente diverso daquele de ler somente para passar em um exame. Leontiev defende ainda que a significao, mesmo como fato da conscincia, no tem seu contedo objetivo perdido a significao no um algo puramente psicolgico. Aponta que as significaes no possuem existncia fora dos crebros humanos e que no existe um mundo platnico das significaes, um mundo cujos7

Estabilizada, jamais no sentido de idealizada ou de um mundo platnico de experincias humana.

P g i n a | 39 significados sejam dados independentes da atividade produtiva humana (fora da prxis). Para ele, um conceito no deixa de ser conceito quando se torna um conceito de um indivduo:

A significao, enquanto fato da conscincia individual, no perde por isso o seu contedo objetivo; no se toma de modo algum uma coisa puramente psicolgica. Naturalmente, o que eu penso, compreendo e sei do tringulo, pode no coincidir perfeitamente com a significao tringulo admitida na geometria moderna. Mas no uma oposio fundamental. As significaes no tm existncia fora dos crebros humanos concretos; no existe qualquer reino de significaes independente e comparvel ao mundo platnico das ideias. Por consequncia, no podemos opor uma significao geomtrica, lgica e, em geral, objetiva, a esta mesma significao na conscincia de um indivduo enquanto significao psicolgica particular. A diferena no entre o lgico e o psicolgico, mas entre o geral e o particular, o individual. Um conceito no deixa de ser conceito quando se torna o conceito de um indivduo. Poderia existir um conceito que no fosse o de uma pessoal? (ibidem, p. 101).

Por outro lado, quando se fala em conceitos, Vigotski entende que:

... um conceito mais do que a soma de certos vnculos associativos formados pela memria, mais do que um simples hbito mental; um ato real e complexo de pensamento que no pode ser aprendido por meio de simples memorizao,..., o conceito um ato de generalizao8. (VIGOTSKI 2001, p. 246).

8

Pazello (2011), ao analisar o conceito de generalizao em vrias reas do conhecimento e sobretudo nas obras de Vigotski, aponta que generalizao deve ser entendida como o processo de ascenso ao concreto complexificado; processo ao qual o autor tem chamado de hipercontextualizao para se

40 | P g i n a

Vigotski afirma que no momento em que uma criana aprende pela primeira vez o significado de uma palavra o processo de desenvolvimento do conceito est apenas comeando, a partir da passam a acontecer complexos processos psicolgicos que levam o conceito, de uma vaga noo, passando por uma aplicao pela criana at a sua completa assimilao (ibidem, p.350).

O resultado mais importante de todas as investigaes nesse campo a tese solidamente estabelecida segundo a qual os conceitos psicologicamente concebidos evoluem como significado das palavras. A essncia do seu desenvolvimento , em primeiro lugar, a transio de uma estrutura de generalizao a outra... (a palavra) no incio ela uma generalizao do tipo mais elementar que, medida que a criana se desenvolve, substituda por generalizaes de um tipo cada vez mais elevado, culminando o processo de formao dos verdadeiros conceitos. (ibidem, 2001, p. 246).

Vigotski faz distino entre conceitos espontneos e conceitos cientficos. Os primeiros esto enraizados nas experincias da criana e possuem baixo grau de abstrao, enquanto os cientficos so os conceitos pertencentes a sistema conceitual mais elaborado, com maior grau de abstrao ou generalidade, relacionados, por exemplo, s disciplinas escolares. A partir do final da dcada de 1950, as vises empiristas acerca da produo do conhecimento cientfico passam a ser analisadas criticamente por diversos filsofos da cincia, como Thomas Khun, com sua anlise da cincia normal e a revoluo

contrapor s concepes que tomam o processo de generalizao como descontextualizao, ou seja, que entendem que os conceitos generalizados so independentes de quaisquer contextos. O processo de hipercontextualizao constitui-se do reconhecimento cada vez mais amplo dos contextos de aplicao do conceito e no da ausncia de contextos.

P g i n a | 41 cientfica9. A isto se acresce a grande aceitao das ideias de Piaget entre os pesquisadores em ensino de cincias, o que impulsionou o movimento conhecido como Mudana Conceitual ou Movimento das Concepes Alternativas, cujo lema era substituir os conceitos espontneos pelos conceitos cientficos seguindo os possveis moldes das revolues que acontecem na cincia. Os alunos trazem consigo conceitos que so frutos das suas experincias pessoais, embebidos pelo senso comum da experincia cotidiana, que na maioria das vezes chocam-se com os conceitos cientificamente aceitos. O papel do ensino seria, ento, sob este ponto de vista, fazer com que o aluno abandone as antigas ideias e passe a trabalhar com o conjunto de conceitos fornecido pela cincia. Este pressuposto da Mudana Conceitual parece falhar (GALILI & BAR, 1992; MORTIMER, 1995), pois os alunos, apesar de terem aprendido o conceito cientfico, no abandonavam as antigas concepes e somente utilizavam os conhecimentos cientficos em situaes de sala de aula. Vigotski nos d uma razo para que os conceitos cotidianos no sejam abandonados, eles esto fortemente vinculados vida do sujeito, eles percorrem um longo caminho durante o desenvolvimento do sujeito, um caminho bastante diverso daquele percorrido pelo conceito cientfico, e, apesar de possurem fraquezas, possuem muitas vantagens que os conceitos cientficos no apresentam dependendo do contexto em que sero utilizados (VIGOTSKI, 2001, p.263). Ao falar dos conceitos cientficos, Vigotski defende que:

*...+o conceito cientfico pressupe seu lugar definido no sistema de conceitos, lugar esse que determina a sua relao com outros conceitos. Marx definiu com profundidade a essncia de todo conceito cientfico: Se a forma da manifestao e a essncia da coisa coincidissem imediatamente, toda cincia seria desnecessria... Por isso o conceito cientfico pressupe necessariamente outra relao9

Adiante, no captulo 3, nos deteremos a analisar o que tem sido chamada de Nova Filosofia da Cincia da qual Kuhn um expoente; sua obra ser analisada.

42 | P g i n a com os objetos, s possvel no conceito, e esta outra relao com o objeto, contida no conceito cientifico, por sua vez pressupe necessariamente a existncia de relaes entre os conceitos, ou seja, um sistema de conceitos. (ibidem, p. 293-294)

Nesta passagem Vigotski define melhor o que pode caracterizar um conceito cientfico, a sua relao com um sistema de conceitos. Defende ainda, apoiado em Marx, que a representao do objeto e a sua essncia no coincidem, caso contrrio, toda cincia seria desnecessria. Esta citao de Marx vem reforar a ideia de que os conceitos cientficos no so construes independentes da prtica humana. Ainda segundo Vigotski (2001):

O conceito espontneo, que passou de baixo para cima por uma longa histria em seu desenvolvimento, abriu caminho para que o conceito cientfico continuasse a crescer de cima para baixo, uma vez que criou uma srie de estruturas indispensveis ao surgimento de propriedades inferiores e elementares do conceito. De igual maneira, o conceito cientfico, que percorreu certo trecho de seu caminho de cima para baixo, abriu caminho para o desenvolvimento dos conceitos espontneos, preparando de antemo uma srie de formaes estruturais indispensveis apreenso das propriedades superiores do conceito. Os conceitos cientficos crescem de cima para baixo atravs dos espontneos. Estes abrem caminho para cima atravs dos cientficos (ibidem, p. 349-350).

Desta maneira, para Vigotski, os conceitos cotidianos no s no podem ser erradicados como no devem eles desempenham um papel fundamental na construo dos conceitos cientficos e no desenvolvimento cognitivo do ser humano. Cada qual possui a sua validade e importncia.

P g i n a | 43 Diante disto surge a proposta, feita originalmente por Mortimer (1995), do Perfil Conceitual. Tal modelo nos permite entender que um conceito possui mltiplos sentidos que podem coexistir; um conceito no precisa ser substitudo por outro; por exemplo, um conceito cotidiano no substitudo por um cientfico, mas os dois passam a conviver e so utilizados dependendo do contexto que o sujeito vivencia. Estes mltiplos sentidos podem ser chamados de zonas do perfil conceitual. Por exemplo, uma pessoa pode conhecer as Leis da Termodinmica e utiliz-las com maestria na escola, em suas pesquisas, num grupo de cientistas; e pode, em outro contexto, na sua casa, por exemplo, pedir um cobertor a algum para se aquecer (ideia cotidiana) e no para evitar a troca de calor com o ambiente (ideia aceita cientificamente). O perfil conceitual composto por dimenses epistemolgicas, ontolgicas e axiolgicas (RODRIGUES & MATTOS, 2006; 2007; DALRI, 2010), que esto ligadas aos contextos de uso, logo s atividades que so subconjuntos das atividades humanas mais gerais. Neste quadro, a aprendizagem pode ser entendida como uma evoluo do perfil conceitual, que significa um reconhecimento cada vez mais complexo da utilizao dos mltiplos sentidos nos seus respectivos contextos de validade. Os conceitos, sejam os cotidianos ou cientficos, no so possudos pelos indivduos, eles so parte da cultura, os indivduos deles se apropriam para seu prprio uso ou para o propsito do seu grupo (WELLS, 2008, p.330). Os conceitos cotidianos tm sua origem nas experincias cotidianas dos indivduos mediadas pela cultura do senso comum e seus participantes. Os conceitos cientficos so frutos da cultura cientfica, da interao de seus participantes e esto presentes na vida das pessoas atravs do ensino formal, por exemplo. Para Wertsh:

A questo no se devemos comear (a anlise) com as ferramentas culturais ou com as individuais. Em vez disso, trata-se de entender a tenso fundamental e irredutvel entre esses dois aspectos da ao mediada que so analiticamente distintos mas inextricavelmente conectados na realidade. Por um lado, as

44 | P g i n a ferramentas culturais no podem desempenhar nenhum papel na ao humana se no forem apropriadas por indivduos concretos agindo em contextos especficos. Por outro lado, no podemos agir como humanos sem invocar ferramentas culturais. (WERTSCH apud DANIELS, 2002, p.25)

Quando se fala sobre conceitos como ferramentas mediadoras deve-se ter em mente que no existe um conjunto universalmente aceito delas, ou seja, um conjunto de conceitos que podem ser utilizados em qualquer situao independente do contexto e dos indivduos que participam da atividade (WELLS, 2008, p. 332). Significa dizer que mesmo os conceitos cientficos no tm validade universal absoluta. Eles tm o seu lugar de aplicao e o seu contexto de validade. Cabe ressaltar, novamente, que os conceitos cientficos no nos so dados pela natureza, mas so construes e negociaes de indivduos que participam da comunidade cientfica, no possuem o mesmo significado em todos os contextos uma vez que esto condicionados as mesmas regras de significao de todos os produtos ideolgicos, como defendido por Bakhtin (2006). a atividade humana que tais objetivaes desempenham seu papel.

2.4

A estrutura da Atividade Humana Leontiev e Engestrm

Nas sees anteriores discutimos aspectos acerca do trabalho do homem, da mediao por artefatos culturais e o papel dos signos e conceitos como instrumentos de mediao no mundo. Faz-se necessrio tambm olhar com mais calma a estrutura da atividade humana nos moldes propostos por Leontiev e posteriormente por Engestrm.

P g i n a | 45 Para Leontiev (2004), a atividade humana se estrutura a partir de necessidades, sejam elas do domnio biolgico, como saciar a fome, proteger-se do frio ou de necessidades culturais, como aprender a utilizar uma nova ferramenta para a resoluo de um determinado problema. No estamos sugerindo, em hiptese alguma, uma dicotomizao entre necessidades biolgicas e necessidades culturais, visto a complexa interconexo que elas podem apresentar saciar a fome pode constituir-se de uma necessidade puramente biolgica e primitiva, mas, por outro lado, tambm pode apresentar-se altamente imbuda de um contedo scio-histricocultural. O contnuo movimento de saciar necessidades leva ao surgimento de outras necessidades qualitativamente diferentes relacionadas s condies materiais da vida humana, a dinmica da atividade se d pelas contnuas contradies internas e externas ela que se fazem presentes. Enquanto na atividade animal existe uma fuso entre motivo (o que leva a fazer) e objeto (para onde se dirige), na atividade humana a diviso social do trabalho d sentido s aes individuais e proporciona a separao entre objeto e motivo. Esta caracterstica bem analisada por Leontiev (2004) em seu exemplo da atividade de caa realizada por um grupo humano primitivo. Ele aponta que a ao daquele individuo que espanta o animal, com o intuito de lev-lo a um local onde os outros caadores o possam apanhar, se analisada individualmente, parece contradizer o objetivo geral da atividade que capturar a presa para saciar a fome. O sentido de sua ao transcende o indivduo e repousa sobre as complexas relaes sociais entre os participantes da atividade expressas na diviso social do trabalho. Ainda segundo Leontiev, a atividade constituda de aes e operaes que em diferentes nveis coordenam-se para gerar um nvel superior na hierarquia, ou seja, as operaes (relacionadas a condies instrumentais) quando coordenadas geram aes (com fins especficos), e estas quando coordenadas compe a atividade (com seu motivo) (figura 7). No recorte analtico que fazemos, as operaes constituem-se de atividades j internalizadas (realizadas de maneira mais automtica, sem necessidade de deter-se atentamente a elas) e que do suporte e modelam as aes que se situam no nvel hierrquico superior.

46 | P g i n a

Atividade Ao Operao

Motivo Objetivo Condies instrumentais

Figura 7: A estrutura da atividade proposta por Leontiev.

O que d sentido as aes de cada individuo a relao social existente entre ele e o restante do grupo. O entendimento das aes somente pode ser feito se entendemos o motivo geral da atividade. Por exemplo, a ao do individuo que espanta o animal no levar ao objetivo de saciar a sua fome se analisada de forma independente do restante do grupo. Sua ao adquire sentido quando entendemos que o seu papel social o de espantar o animal para que aqueles que esto espreita possam captur-lo. Dalri et al. tambm nos fornecem um exemplo quando ilustram a atividade de um agricultor: *...+ O agricultor tem a necessidade de se alimentar e alimentar sua famlia uma necessidade bsica de todo o ser humano. O motivo da atividade de plantar saciar a fome. Mas para obter o alimento, ele precisa preparar a terra, plantar as sementes, cuidar da plantao at ela estar pronta para a colheita e, ento, os frutos serem preparados/beneficiados e ficarem prprios para o consumo. Essas aes (preparar a terra, lanar as sementes, etc.) no conduzem diretamente ao alimento; elas tm um fim especfico (preparar a terra deixar a terra pronta para receber as sementes) que no coincide com o motivo da atividade geral que saciar a fome. Mas, conjuntamente, essas aes realizam a atividade. Ainda temos as operaes, que realizam as aes e, estas, a atividade. No caso do agricultor, quando prepara a terra ele executa outras pequenas aes manusear o arado, por exemplo , com fins tambm especficos, as quais chamamos operaes. (Dalri et al., 2007, p. 6).

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neste sentido que Leontiev afirma que a conscincia no pode formar-se seno a partir da vida real, da estrutura de atividade da qual os sujeitos participam. Ele rejeita toda concepo metafsica de ser humano, que isola o individuo de sua vida real e se esfora em mostrar que a dada estrutura de atividade corresponde uma estrutura psquica que se conserva nas diferentes etapas da conscincia humana (LEONTIEV, 2004). Duarte (2002, p. 280) afirma que a Teoria da Atividade um desdobramento do esforo por construo de uma psicologia scio-histrico-cultural fundamentada na filosofia marxista e que apesar da denominao teoria da atividade ter aparecido somente nos trabalhos de Leontiev ela tambm tem sido utilizada para se referir aos trabalhos de Vigotski, como acontece na interpretao de Engestrm. Atualmente a Teoria da Atividade transcende o campo da psicologia abarcando campos como a educao, a antropologia, a sociologia do trabalho, a lingustica, a filosofia (ibidem, p. 280). A partir das consideraes de Leontiev e dada a importncia que a mediao representa para a atividade humana, Engestrm (1987) amplia a relao basilar entre sujeito e objeto mediada por instrumentos introduzindo outras relaes fundamentais, como a mediao que as regras desempenham entre sujeito e comunidade, ou ainda a mediao entre objeto e comunidade por meio da diviso social do trabalho (figura 8), dando a possibilidade de se compreender as condies em que sujeito, objeto e instrumento esto mergulhados primordiais para a anlise das aes humanas e os sentidos elas atribudos. Um desdobramento posterior da Teoria da Atividade, idealizado por Engestrm, desenvolvido como ferramenta para compreender o dilogo, as mltiplas perspectivas e as conexes de sistemas de atividades interagindo (Engstrm, 2001), sua representao est presente na figura 9. Temos ali pelo menos dois sistemas de atividades distintos postos em contato, cada um com seus sujeitos, instrumentos, regras, comunidades, divises do trabalho e objetos distintos.

48 | P g i n a

Figura 8: Atividade humana Engestrm (1987)

Figura 9: Dois sistemas de atividades distintos interagindo

2.5

A atividade humano-genrica e a atividade cotidianaEm uma perspectiva muito prxima a de Leontiev, no que diz respeito ao

desenvolvimento do psiquismo humano, Heller (2008) analisa a atividade humana e dedica grande esforo caracterizao daquilo que chama de atividade cotidiana, em contraposio atividade humano-genrica. Apesar da dupla caracterizao, no se

P g i n a | 49 pode, segundo Heller, traar uma linha divisria bem demarcada, uma muralha chinesa, entre a atividade humano-genrica e a atividade cotidiana. No se deve, ainda, na anlise proposta por Heller, tomar atividade cotidiana como sinnimo de atividade realizada diariamente, de todo dia. Atividades cotidianas, segundo Duarte (2007), esto relacionadas reproduo do indivduo singular, que pertencendo a um grupo particular do gnero humano deve apropriar-se de objetivaes como a linguagem, as regras e os costumes; processo que ocorre sem que necessariamente se tenha uma relao consciente com tais objetivaes ou com seu mecanismo de produo/reproduo; isto , so apropriaes que ocorrem de maneira espontnea, como segurar um copo ou utilizar talheres, por exemplo. No que diz respeito ao amadurecimento de um indivduo, adulto aquele que, por si s, capaz de viver a sua cotidianidade. Por outro lado, as atividades humano-genricas constituem-se nos mbitos no cotidianos da vida humana e contribuem para a manuteno/reproduo do gnero humano. So objetivaes humano-genricas a cincia, a arte, a filosofia, a moral e a poltica (DUARTE, 2007). Para Heller (2008), a vida cotidiana a vida de todo indivduo10. Ningum consegue desligar-se por completo dela, e nem por outro lado, por mais insubstancial que seja, ser completamente absorvido pela sua cotidianidade. na vida cotidiana que se participa com todos os aspectos da individualidade e personalidade humanas; nela que todos capacidades, paixes e sentidos so colocados em funcionamento e por este fato, o da heterogeneidade da vida cotidiana, que nenhum destes aspectos pode realizar-se em plenitude. Para que ocorra a elevao acima da esfera cotidiana necessrio homogeneizao, isto , dedicar-se por completo a uma nica questo e suspender qualquer outra atividade. Significa empregar a inteira individualidade humana nesta tarefa de maneira consciente e autnoma; caso contrrio, se estar ainda mergulhado na atividade cotidiana.

10

Heller utiliza aqui o termo homem. Escolhemos utilizar o termo indivduo para manter a coerncia com o restante do texto.

50 | P g i n a Diante da heterogeneidade - e das numerosas tarefas - que a vida cotidiana exige, as atividades que dela fazem parte so desempenhadas com espontaneidade. No se pode parar para refletir sobre o contedo de todas as aes, se assim fizssemos no seria possvel realizar nem uma parcela das atividades indispensveis para a produo e reproduo da vida em sociedade. No significa dizer que todas as aes cotidianas possuem o mesmo nvel de espontaneidade, nem que determinadas aes sejam sempre espontneas em quaisquer situaes, mas, que esta caracterstica uma tendncia presente em toda atividade realizada no mbito cotidiano da vida humana, juntamente com as motivaes efmeras e em constante modificao que se fazem presentes nestas atividades. Na vida cotidiana os indivduos agem com base na probabilidade. Em face s inmeras atividades que a vida cotidiana exige, no se pode - nem tampouco necessrio - ter preciso cientfica de cada ao realizada. Isto significa dizer que, na esfera da vida cotidiana, suficiente que determinada ao tenha probabilidade ou possibilidade de atingir certo objetivo; suficiente que na mdia consigamos realizar nossos objetivos sem ter que analisar meticulosamente cada ao. Ao agirmos desta maneira estamos assumindo riscos, no de maneira consciente, porm de modo imprescindvel para o cotidiano, e estamos sujeitos quilo que Heller chama de catstrofes da vida cotidiana. Na maior parte das vezes conseguimos atravessar a rua baseando-nos nas possibilidades e probabilidades de nossas aes, porm, em determinada circunstncia podemos ser atropelados, contrariando a expectativa (probabilstica) que tnhamos de chegar ao outro lado da rua. Realizar as aes com espontaneidade e com base na probabilidade aponta para o economicismo que inerente atividade cotidiana. Segundo Rossler (2004) trata-se de uma lei do menor esforo, segundo a qual as aes so realizadas buscando-se o menor dispndio de energia, de tempo e de pensamento, sem profundidade, amplitude e intensidades especiais. Outra caracterstica fundamental da atividade cotidiana unidade imediata entre pensamento e ao o pragmatismo. A atividade cotidiana no se eleva ao plano da teoria e est relacionada mais fortemente funcionalidade ou viabilidade

P g i n a | 51 imediatas das inmeras aes que visam manuteno da cotidianidade do que a compromissos tericos ou filosficos mais amplos. Elevar cada ao cotidiana ao nvel terico tornaria demasiadamente complexa a realizao de tais atividades, contrariando a espontaneidade e o economicismo inerentes s aes cotidianas. Para Heller (2004) a atividade humana somente est no domnio da prxis 11 quando humano-genrica consciente. Diante do exposto, Heller (2004) ainda destaca que a atividade cotidiana est firmemente apoiada na confiana e na f, sem, no entanto, fazer uma diferenciao rigorosa a respeito destes dois aspectos. A confiana - no nosso mtodo de conhecer a realidade, na cognoscibilidade da realidade e nos resultados obtido por outras pessoas - est mais sujeita a experincia, a moral e a teoria do que a f, que est enraizada no individual-particular. Um mdico no deve somente acreditar que determinado remdio trar a cura para seu paciente; se assim o fizer estar atuando com base na cotidianidade. J ao paciente, nas suas aes cotidianas, suficiente a f no remdio prescrito pelo mdico; porm, se questionar determinada crena que possua, baseando-se em algum mtodo de validao deste conhecimento, estar elevando-se do cotidiano em direo ao humano-genrico. Segundo Heller (2004), o pensamento cotidiano baseado na

ultrageneralizao, isto , os indivduos na sua cotidianidade agem por meio de generalizaes tradicionalmente aceitas e difundidas pelo meio social (e cotidiano) ou por generalizaes feitas a partir da sua prpria experincia. Os juzos ultrageneralizados so juzos que, por meio do critrio pragmtico o da utilidade direta ou viabilidade imediata no teorizada, no foram refutados pela prtica, juzos que de alguma maneira serviram (funcionaram) para agir ou orientar-se em um determinado conjunto de situaes na vida cotidiana. Se a ultrageneralizao em questo est apoiada na confiana, possvel abandon-la para assim se elevar ao pensamento humano-genrico, o que no ocorre caso a generalizao esteja enraizada ao afeto de f, dando origem aos pr-conceitos.

11

Mais adiante nos dedicaremos a analisar com maior profundidade a prxis.

52 | P g i n a A ultrageneralizao acarreta aquilo que Heller denomina de tratamento grosseiro do singular. As situaes que a vida nos apresenta so sempre singulares, porm, para que possamos agir de maneira rpida a fim de manter o ritmo da vida cotidiana, temos que enquadrar a situao singular em um esquema mais geral sem, no entanto, analisar com maior profundidade os aspectos singulares envolvidos. Um modo de realizar tal procedimento recorrer s analogias, ou esquemas previamente conhecidos de experincias anteriores que permitem o movimento dentro da cotidianidade. Corremos risco de ter o pensamento analgico cristalizado (fossilizado), pode ocorrer que j no prestemos ateno a nenhum fato posterior que contradiga abertamente nosso juzo provisrio, tanto podemos nos manter submetidos fora das nossas prprias tipificaes, de nossos preconceitos (Heller, 2004, p.54). De uma maneira muito semelhante ao pensamento analgico, lanamos mo, na vida cotidiana, dos precedentes, exemplos de situao que nos ajudam a decidir qual atitude tomar, o problema quando o uso de precedentes impede a viso daquilo que novo e faz com o que o indivduo sempre reaja da mesma maneira diante de determinadas situaes. Outra caracterstica fundamental da atividade cotidiana a imitao. por meio da mimese que os indivduos se apropriam das regras e dos costumes do seu grupo. As aes como segurar o garfo ou aprender a comer com os talheres no aprendidas por outro meio seno pela imitao. No se deve tomar a imitao como algo ruim, como indesejvel. Segundo Vigotski (2001), a velha psicologia 12 entende a imitao como uma simples reproduo mecnica, que quando uma criana imita alguma ao isto no reflete o seu real desenvolvimento intelectual; porm isto no verdade, somente se pode imitar aquilo que se encontra na Zona de Desenvolvimento Proximal, no qualquer coisa que se pode imitar:

O desenvolvimento decorrente da colaborao via imitao, que a fonte do surgimento de todas as propriedades especificamente humanas da conscincia, o desenvolvimento decorrente da imitao12

A psicologia que ele critica no seu trabalho, anterior a ele neste caso.

P g i n a | 53 o fato fundamental. Assim, o momento central para toda a psicologia da aprendizagem a possibilidade de que a colaborao se eleve a um grau superior de possibilidades intelectuais, a possibilidade de passar daquilo que a criana consegue fazer para aquilo que ela no consegue por meio da imitao. Nisso se baseia toda a importncia da aprendizagem para o desenvolvimento, e isto o que constitui o contedo do conceito de zona de desenvolvimento imediato. A imitao, se concebida em sentido amplo, a forma principal em que se realiza a influncia da aprendizagem sobre o desenvolvimento. A aprendizagem da fala, a aprendizagem na escola se organiza amplamente com base na imitao. Porque na escola a criana no aprende o que sabe fazer sozinha mas o que ainda no sabe e lhe vem a ser acessvel em colaborao com o professor e sob a sua orientao. O fundamental na aprendizagem justamente o fato de que a criana aprende o novo. Por isso a zona de desenvolvimento imediato, que determina esse campo de transies acessveis criana, a que representa o momento mais determinante na relao da aprendizagem e do desenvolvimento (VIGOTSKI, 2001, p. 331).

E por fim, a ltima caracterstica da vida cotidiana, apontada por Heller, a entonao, que constitui um campo tonal ao redor dos indivduos. Ela fundamental para o reconhecimento do outro e para a comunicao. Aquele que no produz a produz carece de individualidade, enquanto que aquele incapaz de perceb-la insensvel a este aspecto das relaes humanas. Entendemos, assim, que no pode existir vida cotidiana sem estas caractersticas: espontaneidade, probabilidade, economicismo, pragmatismo,

ultrageralizao, f e confiana, precedente, imitao e entonao. Porm, quando tais caractersticas cristalizam-se em absolutos estamos diante daquilo que Heller chama de alienao da vida cotidiana. Diante deste fenmeno, as possibilidades concretas de

54 | P g i n a desenvolvimento genrico da humanidade (HELLER, 2004, p. 57) esto

comprometidas. A coexistncia muda (em silncio, sem ao) entre particularidade e genericidade faz com que as motivaes sejam sempre efmeras, implicando na separao entre ser e essncia. Desta maneira, a capacidade transformadora da ao humana (da prxis) no pode realizar-se em plenitude, pois existe um abismo entre o desenvolvimento humano-genrico e as possibilidades de desenvolvimento dos indivduos, entre a produo humano-genrica e a participao consciente do indivduo nessa produo (ibidem, p. 58). Destacamos, ainda, que fundamental compreender as caractersticas da vida cotidiana, uma vez que podemos falar, suportados por Leontiev, que existe devido a esta estrutura de atividade um psiquismo cotidiano (ROSSLER, 2004). Buscamos, sobretudo, entender quais so as particularidades deste pensamento (cotidiano), nos quais os indivduos continuamente e em grande parte da sua vida se prendem e, que muitas vezes, por estarem alienados, no conseguem se desprender ao realizar suas atividades. O movimento ao humano-genrico implica no abandono de certas particularidades e compromissos do psiquismo cotidiano.

2.6

Uma pequena sntese

At aqui dedicamo-nos a apresentar os pressupostos fundamentais daquilo que tem sido chamada de perspectiva scio-cultural-histrica. Diante de tantos elementos consideramos fundamental fazer uma pequena sntese para auxiliar nas anlises que faremos adiante no texto. Podemos ressaltar cinco pontos fundamentais: 1-) A atividade humana sempre coletiva e os sentidos emergem das relaes existentes entre os indivduos. 2-) O ser humano ao agir sobre o mundo sempre o faz por meio de instrumentos mediadores, que so construes/objetivaes scio-culturais-histricas,

P g i n a | 55 cuja capacidade instrumental somente se realiza na atividade humana e no so universais. 3-) Existe relao direta entre a atividade humana o seu psiquismo, de maneira que so transcendidas as concepes dicotmicas do biolgico e mental, do pensar e do fazer. 4-) A atividade humana apresenta historicidade. Ela no esttica no tempo. Ela evolui e ao mesmo tempo condicionada (jamais determinada) pelo passado e pelo devir. 5-) As contradies que continuamente se instauram que possibilitam a dinmica da atividade humana.

Em suma, o ser humano forma-se por meio da sua atividade prxica, atividade que sempre coletiva e cujos sentidos repousam sobre as complexas relaes que se estabelecem entre os seus participantes. A atividade humana se estrutura a partir de necessidades que so refletidas pelos motivos e que levam coordenao de aes e operaes; a sua dinmica (construo e desconstruo) dada pela contnua busca de superao das contradies que se fazem presentes. De posse dos pressupostos da perspectiva scio-cultural-histrica da Teoria da Atividade, o olhar orientador de nossa pesquisa e de nossas leituras, vamos ao prximo captulo, no qual apresentamos os sentidos de experincia a fim de adentrar no campo que estamos investigando e atribuindo novos sentidos.

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3. A EXPERINCIA, A EXPERIMENTAO E O CONHECIMENTO

Diante da proposta de revisitar a experimentao como recurso de ensinoaprendizagem de Fsica, parece-nos bastante importante (e interessante) buscar quais sentidos tm sido atribudos experincia, no somente no campo especfico do ensino de cincias ou da filosofia da cincia. Trazemos, assim, alguns sentidos de experincia que esto presentes na filosofia e no senso comum, de maneira bastante geral, e de experincia-experimentao para a Fsica, explicitando, sobretudo, algumas vises distorcidas acerca dos cientistas e do processo de construo do conhecimento, buscando super-las por meio das consideraes da moderna filosofia da cincia e do materialismo dialtico teoria do conhecimento na qual a perspectiva sciocultural-histrica est apoiada. Apresentamos, ainda, uma delimitao da noo de experincia na perspectiva scio-cultural-histrica, buscando salientar a importncia que a experincia possui dentro do quadro terico que estamos articulando. Os sentidos especficos sobre experimentao no ensino sero dados no prximo captulo. importante salientar que no buscamos esgotar todos os sentidos de experincia e experimentao presentes na literatura - no nosso objetivo e no nos possvel faz-lo neste trabalho. Vamos aos sentidos.

3.1

A experincia no senso comum e na FilosofiaBut first, are you experienced? Have you ever been experienced? Well, I have

Are you experienced, Jimi Hendrix

bastante comum nos depararmos com frases do tipo Essa pessoa ainda no tem experincia, Experimente esta