esfera pública política e media com habermas contra habermas

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  1 COMUNICAÇÃO E DEMOCRACIA DE MASSA: PROBLEMAS E PERSPECTIVAS Salvador, 2005

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COMUNICAO E DEMOCRACIA DE MASSA: PROBLEMAS E PERSPECTIVAS

Salvador, 20051

Sumrio

03. Opinio pblica poltica hojeUma investigao preliminar

16. Esfera pblica poltica e mediaCom Habermas, contra Habermas.

43. Esfera pblica poltica e media - II

64. Jornalismo e Esfera Civil:O interesse pblico como princpio moral no jornalismo.

79. Internet e participao poltica em sociedades democrticas

102. Internet, censura e liberdadeUma abordagem tica das questes relativas censura e liberdade de expresso na comunicao em rede.

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Opinio pblica poltica hojeUma investigao preliminar1

Wilson Gomes2Resumo: Tendo ao horizonte o uso tradicional, filosfico e poltico, da expresso opinio pblica para circunscrever um conceito e designar um fenmeno da ordem da realidade, uso proveniente da fase moderna e iluminista da experincia democrtica, este ensaio oferece contribuies preliminares para o exame do sentido e do alcance contemporneos do termo e do fenmeno a que ele refere. Sustenta que: 1) apesar da continuidade terminolgica e ideolgica, essencialmente vinculada mitologia democrtica, tenha mudado radicalmente o significado e a referncia da expresso opinio pblica; 2) o fenmeno da opinio poltica, to caro experincia democrtica, vem hoje designado com outra terminologia; 3) o fenmeno da opinio poltica, embora ele mesmo tenha se reconfigurado profundamente, continua decisivo na prtica poltica contempornea.

O campo de estudos de comunicao e poltica h bastante tempo conhece o tema da opinio pblica e a discusso sobre as suas relaes com os meios de comunicao de massa. Nos anos 60, o tema ganha particular alento com a imposio de uma nova agenda de estudos que passou a incluir, alm do vnculo j conhecido com os mass media, uma interface com o tema da publicidade social ou esfera pblica. Com isso, as discusses sobre opinio poltica ganharam substancial importncia para o conjunto de questes relacionadas cultura e experincia democrticas. Com a agenda de estudos, impe-se tambm um modelo de abordagem, de tipo genealgico, realizado atravs de um percurso histrico que costuma partir da experincia da esfera pblica do sculo XVIII e de sua relao com o fenmeno ento chamado opinio pblica, acompanhar as sucessivas mudanas de natureza e compreenso a que foi submetido o fenmeno no hiato que nos separa do seu surgimento para, enfim, identificar a sua forma (ou deformao) e a sua compreenso contemporneas. O fundamental livro de Habermas, Mudana Estrutural da Esfera Pblica, constituiu-se num ponto inicial desse endereo de pesquisa, embora tenha acabado se tornando tambm uma espcie de vulgata metodolgica. Ningum duvida do valor da obra de Habermas, mas hoje h uma consistente literatura afirmando que as discusses sobre opinio pblica, desde que o termo se estabeleceu no sculo XVIII no mbito dos discursos sobre a democracia que se reinventava, so batalhas ideolgicas muito mais preocupadas em disputar uma compreenso da natureza da democracia e muito menos com a realidade ou no daquilo que o termo designa. A disputa freqentemente estava: a) na imposio de um sentido ao termo opinio pblica; b) naOpinio pblica... In: A. Fausto Neto, A. Hohlfeldt, J. L. Prado e S. Porto (org.), Prticas miditicas e espao pblico, v. 1, Porto Alegre: Edipucrs, 2001, p. 61-82 2 Doutor em Filosofia, professor titular de Teoria da Comunicao da Universidade Federal da Bahia, pesquisador (CNPq/1) do PPG em Comunicao e Cultura Contemporneas. [email protected]

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autojustificao social do partido ou classe a partir da compreenso mdia imposta do termo. Como argumento suplementar, diz-se que tem sido menos importante, desde ento, identificar o fenmeno concreto, preciso e real referido pelo termo do que construir idealmente um fenmeno - mesmo que vago e impreciso desde que potente ideologicamente - que lhe possa corresponder. Se no bastassem tais reservas perspectiva genealgica, o estudioso do fenmeno contemporneo da opinio poltica tem, no de raro, a impresso de que a genealogia boa para dizer como os fenmenos eram, mas tem enorme dificuldade em dizer como os fenmenos so. Assumindo normativamente uma compreenso que provm de uma experincia do passado, o estudioso que adota a perspectiva genealgica capaz de apenas contrastar passado e presente, sem revelar a mesma profundidade de investigao na compreenso do contemporneo. Preocupados com a continuidade e descontinuidade do fenmeno da opinio pblica, como poderiam os genealogistas dar conta da mudana de sentido das expresses e da forma que os fenmenos ganham para alm do nome que recebem? Este texto representa um ensaio de considerao do fenmeno da opinio poltica - e de sua vinculao com meios de comunicao e democracia - que explora uma alternativa no-genealgica de pensamento. Como procedimento, a reflexo funcionar em dois nveis: no primeiro deles, tentar simplesmente lidar com a compreenso mdia predominante das expresses associadas ao fenmeno da opinio poltica (como opinio pblica, formao de opinio, debate pblico); usando este nvel como plataforma, procurar apresentar, num segundo estgio, algumas idias sobre as formas contemporneas do fenmeno da opinio em campo poltico. Sustentar-se-, no curso deste ensaio, que o fenmeno da opinio poltica se distribui hoje em pelo menos trs grandes veios discursivos, cada um deles remetendo a um conjunto de problemas especficos. Na primeira classe de discursos, a opinio poltica relacionada chamada opinio pblica - que como expresso, tentarei demonstrar, ganha um sentido radicalmente diferente da definio clssica, sem se distanciar, porm, do campo opinativo. Na segunda classe de discursos, a opinio poltica est vinculada ao debate pblico - entendido como o mbito opinativo da esfera pblica contempornea - e opinio publicada em geral. Na terceira classe de discursos, a opinio poltica referida s artes voltadas para a produo da opinio do pblico, num fenmeno que ser aqui chamado de poltica de opinio. I - OPINIO POLTICA E OPINIO PBLICA3 O percurso, nesse caso, ser simples. Primeiro, vamos tentar imaginar algumas sentenas comuns e tpicas - tpicas no sentido de que expressam todas as classes de uso do termo - retiradas aleatoriamente de textos jornalsticos. Depois, examinamos as alternativas de compreenso do que significam.

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Trabalha-se neste ensaio com a distino entre fenmeno, expresso e conceito. Nos casos em que os contextos no sejam suficientemente claros para distinguir sobre qual das trs entidades referida pela expresso, sero usadas aspas baixas ( ) para identificar que o objeto da expresso uma outra expresso e no um fenmeno. Assim, opinio pblica significa a expresso e no o fenmeno opinio pblica.

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1. O receio de reao negativa da opinio pblica o principal motivo para o presidente ainda no se ter decidido pela expulso dos sete estrangeiros e pelo indulto para os brasileiros ainda presos no Brasil. Alm da reao pblica, FHC teme, com eles, criar precedente para cerca de mil estrangeiros presos por crimes comuns no Brasil. 2. O maior trunfo para FHC emplacar a eleio do prximo ano o apoio da opinio pblica. 3. O governador Mrio Covas afirmou ontem que ignora a presso poltica para que se candidate reeleio, mas que a presso da opinio pblica forte. 4. O governo preferiu entrar num jogo cnico de palavras, com claros objetivos eleitorais de confundir a opinio pblica e de dissimular sua verdadeira posio. 5. Diversos crticos acham que a interveno militar dos Estados Unidos contra o Iraque poderia ser vista como forma de distrair a ateno da opinio pblica americana do caso Lewinsky. 6. O Prncipe Charles vem tentando preparar a opinio pblica para aceitar o seu relacionamento com Camilla Parker-Bowles. 7. Os bancos tm pssima imagem perante a opinio pblica. A primeira alternativa de compreenso do significado do termo opinio pblica h de consistir, certamente, na aposta de que ele mantenha o seu sentido tradicional. Nesse caso, opinio pblica significaria um repertrio comum de posies, juzos, teses, hipteses, prprio do pblico, a respeito de coisas, estados de coisas, relaes, circunstncias, pessoas, fatos, questes, instituies e suas respectivas classes4. Ora, por mais complicado que seja decidir o que se compreende com o termo nas sentenas apresentadas, difcil admitir que ele signifique, efetivamente, opinio. Da opinio pblica a se diz que realiza um conjunto de aes que, mesmo em sentido extremamente figurado, no lhe poderia ser atribudo se esta conservasse o significado clssico. Sentenas como conseguiram convencer a opinio pblica, os ministros informaro opinio pblica, o debate confundiu a opinio pblica, sofria nas mos da opinio pblica seriam absurdas se atribussemos opinio pblica o seu sentido clssico como opinio. Tecnicamente, no se convence uma opinio, no mximo se gera outra, assim como no se diria que informamos a uma opinio, mas informamos a alguma instncia que pode ter opinio... Ainda mais quando dizemos da opinio pblica que ela interpreta, avalia e opina, em sentenas como tudo sempre depende da opinio pblica e da sua interpretao da realidade, x e y influenciam a percepo que a opinio pblica tem de tal coisa, a imagem se consolidou perante a opinio pblica (sendo a imagem nessa sentido, ela prpria uma opinio), e outras que tais.

Por classe, neste ensaio, entende-se qualquer conjunto, qualquer quantum especfico proveniente de classificao a partir de uma propriedade comum, no seu sentido aritmtico e, sobretudo, lgico. No h que se chamar em causa, portanto, o seu significado na filosofia marxista.

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Poderamos, talvez, apostar num sentido figurado em expresses como ter apoio da opinio pblica, temer a reao da opinio pblica ou passar para a opinio pblica a imagem x ou y. Nesses casos, poderamos traduzir os ditos por existir uma opinio pblica favorvel a x, temer que a opinio pblica se torne desfavorvel a y ou simplesmente produzir a opinio pblica x ou y. Mesmo porque nas situaes comunicativas ordinrias normalmente a estas expresses precede ou segue uma fieira de nmeros proveniente das chamadas sondagens de opinio. Bresser Pereira, por exemplo, podia afirmar que existia apoio da opinio pblica reforma do aparelho do Estado, na medida em que, segundo ele, tal coisa ter-se-ia revelado em todas as pesquisas de opinio. De um modo geral, diz ele, encontramos 65% dos respondentes que a apiam, 25% que so contra e 10% que no tm opinio definida. O apoio , assim, quase trs vezes maior do que a rejeio. Entretanto, se verdade que em certas expresses a assim chamada opinio pblica uma categoria associada a opinio, tal associao implicaria em identidade? Embora seja uma questo de difcil deciso, podemos nos perguntar se opinio pblica indicada por Bresser Pereira nesse caso no corresponderia a opinio do pblico ou o prprio pblico que opina (ou os respondentes, em sua linguagem). De fato, vemos que Bresser Pereira constata o apoio da opinio pblica, mas no se preocupa em indicar em que consiste tal opinio enquanto opinio (a no ser simplesmente que apia a reforma), dedicando-se, ao invs disto, a quantificar a quota de opinantes. Ser, ento que o que se entende nesse caso por opinio pblica que apia a reforma administrativa no seriam, afinal, 65% de uma grandeza demogrfica de relevncia poltica como o pblico, a populao ou o eleitorado? No estaria a associao com o fenmeno da opinio consistindo apenas no fato de que essa grandeza demogrfica apreendida no seu ato de opinar (induzida tecnicamente pelos funcionrios dos institutos de sondagens)? Em suma, no seria opinio pblica apoiante, nesse caso, apenas o equivalente a populao instada a opinar a respeito da reforma administrativa? Do mesmo modo, a reao da opinio pblica, h pouco mencionada, no poderia, ao invs de significar uma opinio x desfavorvel a um ato y precedente, significar a reao do pblico ou da populao? Note-se que no mesmo exemplo dado, depois de falar de reao da opinio pblica, o autor, para no repetir a expresso, fala de reao pblica, estabelecendo clara equivalncia entre os termos. E a presso da opinio pblica, o que seria afinal? Por que o Executivo e o Legislativo, por exemplo, s vezes recuam de suas disposies ante uma matria, em face de uma alegada presso da opinio pblica? Porque reconhecem um poder maior, o poder dos sujeitos que so a opinio pblica. Os eleitores, so a opinio pblica no caso dos deputados. Os eleitores (alm do Congresso), no caso do presidente. Em suma, dificilmente pode-se interpretar opinio pblica nas expresses apresentadas como significando o repertrio comum de posies e juzos pblicos, a respeito de coisas, pessoas, fatos e questes como em seu emprego clssico e erudito na filosofia poltica. plausvel, ento, o apelo a um segunda alternativa, que vai consistir em entender opinio pblica como referida ao conjunto abstrato dos pblicos, ao pblico genericamente considerado ou, simplesmente, populao. Sustenta o autor deste ensaio que se possa dotar plenamente de sentido as expresses acima apresentadas se pensarmos a opinio pblica como uma grandeza demogrfica, uma entidade sociopsicolgica equivalente a algo como o pblico, a populao, o eleitorado ou,

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simplesmente, o povo. Para comprovar a tese, suficiente um exerccio simples: basta que se substitua, em cada sentena, opinio pblica por populao e verificar se funciona. assim que, por exemplo, expresses como vimos esclarecer a opinio pblica ganham sentido como vimos convencer, persuadir o pblico ou oferecer estmulos voltados para a produo, no povo, de uma opinio. interessante notar, todavia, que embora tenha mudado a sua referncia, a expresso parece ainda estar associada ao fenmeno da opinio, na medida em que deixa de designar a opinio do pblico para designar o sujeito coletivo de opinies. O seu deslocamento como que vai do material conceitual que chamamos opinio para os opinadores. Por outro lado, se examinarmos com cuidado arqueolgico as diversas classes de sentenas em que aparece a expresso opinio pblica hoje em dia, certamente encontraremos vrias camadas, vrios estratos de concepo, indicando vrios estgios do movimento de deslocamento de sentido. De tal modo que plausvel afirmar que os estratos mais recentes so aqueles em que do objeto designado como opinio pblica sequer se exige que tenha realmente opinio atual sobre alguma matria. A opinio pblica, assim, nem precisa ser sempre uma grandeza que se estabelece a partir da posse de opinio sobre uma questo. No campo poltico, por exemplo, o fenmeno designado pela expresso opinio pblica simplesmente uma grandeza permanente que inclui os concernidos por uma matria qualquer enquanto, e apenas enquanto, forosamente so dotados de posio prpria quando esta matria est em disputa, mesmo que a sua posio consista em ignorar o que se disputa ou em no ter opinio a respeito. como concernidos pelo modo como uma questo se resolve, enquanto includos no raio das suas conseqncias, que os indivduos so contados demograficamente e constitudos como opinio pblica. No fazendo diferena se jamais deixarem de ser meramente concernidos para se tornarem participantes da disputa como detentores de opinio. Dos pblicos assim constitudos, o que se solicita uma mera manifestao da vontade, fiapo de tomada de deciso, forma mnima da opinio, algo que pode se dar do seguinte modo: no tenho posio ou opinio a respeito de tal matria e essa a minha posio. Uma disposio. Nesse caso, o que no poderia contar numa investigao sobre opinies passa a contar numa enquete que quer simplesmente aferir manifestaes. No primeiro modelo, a investigao nos diria quais as posies dos sujeitos e suas classes num campo de disputas ou em face de uma matria; no segundo modelo, a investigao nos diz como os sujeitos e suas classes se dispem num campo de disputa. Assim, a rigor, precisamos reformular a definio: a opinio pblica, nessa acepo, no simplesmente o sujeito coletivo de opinies, mas o sujeito coletivo capaz de manifestar decises. As assim chamadas pesquisas de opinio pblica em poltica no so mais que isso: sondagens voltadas para estabelecer a disposio de classes de indivduos em face de alguma matria realmente posta em disputa ou que poderia vir a ser posta em disputa. Tais sondagens funcionam, apesar de todos os seus defeitos, porque a tal opinio pblica que os institutos vendem como uma grandeza tecnicamente mensurvel a disposio dos indivduos e suas classes num campo de disputas real ou possvel, como a disposio de peas num tabuleiro. Nesse sentido, evidente, a resposta no sei ou estou indeciso no pode ser considerada uma no-

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resposta (como o seria no primeiro modelo), porque embora de fato no seja uma manifestao de opinio ela uma manifestao - o que , do ponto de vista tcnico, suficiente para o que se busca aferir. 2. OPINIO POLTICA COMO OPINIO PUBLICADA O segundo conjunto importante de questes relativas opinio no campo poltico contemporneo diz respeito ao fenmeno da opinio publicada, isto da opinio exposta e disponvel socialmente. Tal fenmeno se inscreve na esfera da publicidade social representando o mbito especfico da esfera pblica composto pelos juzos de valor, pelas teses e imagens pblicas. Tecnicamente, bom que se diga, tambm sob este aspecto a opinio publicada de natureza diferente da opinio pblica em seu sentido erudito. A publicidade da opinio pblica em seu sentido clssico vinculada a duas propriedades, uma que diz respeito sua constituio ou forma de existncia social, outra decorrente do modo como se origina. No primeiro caso, a publicidade da opinio decorre do seu modo de existir socialmente como opinio exposta, disponvel, cognitivamente ao alcance de uma faixa extensa dos cidados. No segundo caso, a publicidade da opinio depende da sua origem, ou seja, da sua provenincia de uma esfera de debate pblico ou da discusso abertamente realizada por um pblico de pessoas privadas. J a publicidade da opinio socialmente predominante em seu sentido contemporneo est vinculada exclusivamente sua exposio e disponibilidade cognitivas, devendo, por isso, ser melhor qualificada como opinio publicada do que como opinio pblica. A esfera da publicidade social , antes de tudo, esfera de exposio, de mostra e de consumo de materiais de toda espcie, inclusive compilaes informativas sobre a atualidade. Compilaes que so transformadas, pela recepo, em insumos para o pensar, o dizer, o discutir, o conversar, em parmetro para orientao das decises e em disposies no campo cultural, econmico, poltico. Sobre esta plataforma informativa, podemos identificar um conjunto de materiais opinativos, que ora se situam numa faixa meramente expositiva ora apresentam pretenses discursivas, seguindo as caractersticas provenientes da duplicidade de existncia da esfera pblica. Trata-se do mbito especfico dos juzos de valor, das teses, enfim, das opinies sobre qualquer matria poltica, que o que aqui se est propriamente chamando de opinio poltica publicada, no sentido de opinio expressa, manifestada, exibida publicamente. O sistema da produo da opinio publicada depende fundamentalmente de duas classes de agentes: Em primeiro lugar, dos agentes da indstria da informao e, dentre estes, mais especificamente, dos agentes da indstria da informao opinativa (incluindo-se aqui a indstria da informao sobre a vida privada de celebridades), os opinadores profissionais. Em segundo lugar, temos um conjunto enorme de agentes que por uma razo ou outra o sistema expressivo dos mass media admite como sujeitos de opinio. formado por indivduos e instituies que vo desde aqueles a que socialmente se reputa uma competncia especfica na matria ou uma autoridade moral sobre o assunto at aqueles cujo reconhecimento provm simplesmente da sua existncia como personae e habitantes do mundo-mdia. De um modo ou de outro, perde-se normalmente a distino entre essas duas fontes de legitimidade, de forma que facilmente o reconhecimento social se converte em reconhecimento meditico e, ainda 8

mais freqentemente, o reconhecimento meditico se converte em reconhecimento social. Freqentemente, no preciso sequer que esses atores sociais sejam investidos de qualquer propriedade particular, como cultura, informao e inteligncia, sendo condio bastante corresponder aos valores que regem o mundo do espetculo na mdia. A sua especificidade dada exclusivamente pelo fato de serem opinadores com possibilidade de ter a sua opinio publicada. Mais que opinadores, so formadores de opinio. Faz parte das mitologia da poltica e do campo do consumo cultural que os indivduos que podem ser chamados de formadores de opinio constituiriam uma classe mais restrita que a dos publicadores de opinio, na medida em que a eles se creditaria, alm disso, a capacidade de influenciar a opinio dos outros ou, no mnimo, de influenciar a disposio das pessoas em face de questes ou disputas. Difcil dizer se isso verdade e, sobretudo, em que circunstncias o . De todo modo, dada a insistncia dessa atribuio, ela se converte em capital social muito importante. Sua excelncia, o formador de opinio, deve ser servido, cuidado, adulado ou controlado. Por outro lado, influenciar a opinio do pblico ao publicar a prpria opinio no o nico fenmeno interessante nesse mbito de questes. Uma outra categoria, ainda mais importante que a formao de opinio , segundo a mitologia poltica democrtica, aquela do debate pblico. Sustenta a idia de debate pblico a metfora da discusso ou debate oral em que sujeitos se pem diante de outros apresentando posies, ouvindo as posies deles e a elas retrucando. Para o que se entende hoje como debate pblico, entretanto, esto dispensadas certas caractersticas da discusso por meio da fala, como a possibilidade de exausto da argumentao, a velocidade de interao (que permite ajustes, autoesclarecimento, correo recproca) e, por conseguinte, o imperativo de produo de consenso ou concluso. Por outro lado, insiste-se ainda em caractersticas como a discursividade ou a necessidade de converso de toda pretenso em discurso para que ela possa ser admitida como vlida (o princpio da palavra democrtica que impede que a pretenso se converta em fora ou violncia, por exemplo) e a retrucabilidade (qualquer posio que se expe, expe-se, ao mesmo tempo, a rplica). Alm disso, acredita-se que o debate pblico deva incluir as duas propriedades fundamentais da publicidade: a visibilidade (significa que as posies se expem diante de todos os interessados) e, de algum modo, a acessibilidade (o que quer dizer que, em princpio, qualquer um pode intervir no debate). Como se do os debates, materialmente falando? Como apresentao de posies, s vezes seguidas de discusso ou, pelo menos, de rplicas, nos auditrios e centros de convenes, nos plenrios dos parlamentos, nos livros, na televiso, no rdio e nos meios impressos. Mas uma discusso pode ser propriamente considerada debate pblico em sentido estrito apenas quando atinge quotas quantitativamente importantes de pblico. Em nosso tempo, praticamente se confundem audincia e publicidade. Assim, o debate considerado realmente pblico se ele tiver sua disposio um volume satisfatrio de audincia. Isso faz com que o debate especializado precise, de algum modo, freqentar a mdia.

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O debate poltico especializado - trate-se do debate formal e tcnico trate-se do acadmico - consiste em discusses razoavelmente reservadas (mesmo que pblicas no sentido de visveis, abertas) na medida em que exigem uma competncia atribuda a poucos e permitem o acesso pleno apenas queles de quem se reconhece a posse de capital intelectual especializado. Capital cujo reconhecimento feito com rito e parcimnia. Mas para que um debate especializado, mesmo aquele do Congresso Nacional, se torne um debate pblico, em sentido contemporneo, ele precisa de algum modo passar pela caixa de ressonncia dos meios de comunicao. Um debate com o melhor da inteligncia nacional pode, nesse sentido, ser considerado menos debate pblico do aquele realizado entre duas personalidades mediticas quaisquer num talkshow como o de J Soares. H setores que praticamente monopolizam o debate pblico, como editores e colunistas de informativos peridicos, as figuras principais do jornalismo opinativo da chamada grande imprensa, os condutores de talk-shows e programas de debates televisivos, o governo, personalidades mediticas do Congresso, cmaras e sociedade civil, personalidades dos chamados mundo da cultura, do espetculo e dos negcios e, por ltimo, os chamados intelectuais da mdia (as figurinhas carimbadas da academia ou do mercado profissional, a quem os meios de comunicao costumam recorrer para opinar). Reconhece-se a existncia de debate pblico sobre o tema x ou y quando se consegue identificar um certo nmero de intervenes monogrficas atravs de textos ou declaraes publicadas. Expor-se ao debate pblico ou furtar-se a ele passam a significar dois padres de comportamento em face dessa esfera opinativa que se realiza nos meios de comunicao ou em relao essencialmente simbitica com os mesmos. convico bastante difundida (talvez mais uma figura da mitologia poltica contempornea) que qualquer posio ou pretenso que pretenda valer no campo poltico e gere conseqncias concernentes ao bem comum tenha obrigatoriamente que inserir-se no debate pblico e a ele expor-se. Trata-se como que de um mandamento de retido poltica na conduo e deciso da coisa pblica. Algum sempre pode furtar-se ao debate pblico, mas isso visto como um atestado de ausncia de sensibilidade democrtica e desprezo pela opinio pblica. Furtar-se a isso recorrer a um expediente anti-democrtico. Ao contrrio, qualquer ator que sustente posio em disputa sobre uma matria qualquer procurar acumular como capital democrtico a ardilosa ou sincera exposio pblica das suas opes e prioridades e a sua insero num debate aberto e submetido s presses dos conflitos de interesses e idias. A relao entre debate pblico e opinio pblica envolve uma nebulosa. De qualquer sorte, trata-se de duas instncias que, no discurso dominante, so completamente distintas. A opinio pblica a populao, da qual no se espera que entenda e muito menos participe do debate pblico. Ela deve ser esclarecida, ensinada, conduzida atravs do debate do mesmo jeito que pode ser constituda, manipulada e enganada pelos formadores de opinio. Mas enquanto a chamada opinio pblica pode ser conduzida e formada, h uma outra classe de sujeitos que deve ser convencida por argumento, qual deve ser dado, at mesmo, poder de rplica. Essa classe uma espcie de elite social, dotada de poder de deciso e influncia porque dotada de capital intelectual ou econmico. Ao eleitorado se esclarece, se convence por persuaso, s elites pensantes se convence num debate. Para as elites, h o recurso do debate, em que se pode participar, editar ou simplesmente oferecer uma audincia competente. Diante

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do povo, o enorme fluxo de informaes e opinies, em debate ou no, em que ele poderia formar sua opinio ou disposio. Por outro lado, ningum tem dvida quanto ao fato de que o debate pblico pode ser mais ou menos qualificado, a depender da competncia dos que nele intervm sobre os temas em questo, da importncia que a audincia lhe confere (o que vai regular, afinal de contas, a quantidade de espao que ser destinada a um determinado tema pela indstria da informao e do espetculo) e dos interesses implicados. Os termos ou parmetros do debate pblico podem ser deteriorados e rebaixados pelos consensos prvios sobre convices que so adotadas como verdadeiras antes de serem examinadas, pelo pensamento da moda, pelo preconceito. Nesse sentido, por exemplo, a posio da indstria da informao e do espetculo, quando homogeneizvel ou convergente, transforma-se num poderoso critrio de seleo e edio da opinio publicada. H alguns anos, por exemplo, reclamava-se da baixa qualidade do debate pblico brasileiro sobre a questo ambiental, hoje se diz o mesmo com relao questo gentica. Ainda sobre o fenmeno geral da discusso pblica, temos o curioso fenmeno do in e out da esfera do debate pblico. Por um lado, os sujeitos de pretenses e interesses em nosso tempo h muito se deram conta da importncia do debate pblico como forma de conquistar a parcela da opinio pblica politicamente influente. Nesse sentido, a luta para a entrada no debate pblico passou a ser vital para a conquista de reconhecimento poltico e para a possibilidade de imposio de agenda, principalmente para setores tradicionalmente considerados alheios a esta esfera. Se as entidades ou organizaes da sociedade civil, por exemplo, no forem capazes de se introduzir na cena de debate meditico, tero reduzidas consideravelmente as suas j no to grandes chances de participar das decises do Estado e da agenda nacional. Por outro lado, setores sociais com facilidade de ganhar acesso s instncias de deciso do Estado, principalmente quelas obscuras e reservadas, procuram se abrigar dos riscos da exposio pblica ao debate, buscando anteparos em esfera particulares e fechadas. Eventualmente, procuram acesso ao debate pblico quando ele lhes imprescindvel, mas a sua estratgia de interveno no espao opinativo se realiza atravs dos dispositivos propagandsticos e da poltica de fabricao de imagem. O resultado a tenso que se gera entre esta tendncia e o sistema informativo, que a todo tempo procura seqestrar para a esfera pblica os processos de produo de deciso que alguns setores gostariam de ver realizados nos acordos de gabinetes e no segredo e que, alm disso, inicia debates pblicos sobre temas em disputa no campo poltico provocando os interessados para que se introduzam no debate.

3. OPINIO POLTICA E POLTICA DE OPINIO Outro fenmeno importante relacionado opinio publicada aquele que ser chamado aqui de poltica de opinio - frmula condensada que est para prtica poltica voltada para a imposio da opinio social predominante em matria poltica. conatural experincia democrtica o fato de que a disputa poltica se realize atravs de um processo de negociao argumentativa cujo objetivo a produo da aceitao pela maioria de uma opinio apresentada e sustentada por um sujeito, individual ou 11

coletivo, participante de um debate aberto e acessvel. Isso comporta sempre o fenmeno correlato da competio pela converso da opinio particular em opinio do pblico (ou da maior parte dele), pela imposio da opinio predominante. Fenmeno que, num primeiro momento, se garante episodicamente pela formao argumentativa da opinio em disputas eleitorais, terminando sempre pela tomada de deciso atravs do voto. A crescente institucionalizao e profissionalizao da atividade poltica - como, por exemplo, o funcionamento regular das atividades parlamentares - somada s peculiaridades das sociedades de massa, mudam o que episdico e pontual em constante e regular, transformando a poltica de opinio num dos eixos centrais da atividade poltica. E de tal forma que grande parte da energia poltica se consome na produo da opinio publicada na esfera da exibio pblica e nos conseqentes esforos de formao de construo, controle e imposio da opinio dominante sobre matrias em disputa. Chamam-se de poltica de opinio, os empreendimentos polticos que se dedicam a trs funes fundamentais da chamada conquista da opinio pblica: a) a construo da opinio; b) o ajuste entre a opinio que o pblico deseja e a opinio publicada; c) a manuteno, ou seja, o empreendimento que visa manter como opinio do pblico a opinio particular. Antes de tudo, preciso formar a opinio pblica, leia-se, fazer com que quantidades demograficamente importantes de pblicos tenham uma certa opinio sobre atores, instituies, temas e questes. Isso nada tem a ver com a produo de consensos argumentativos decorrentes de debate em forma de assemblia entre parceiros leais. O processo de imposio da opinio predominante se d em situao de competio nem sempre leal, em que no necessrio falar ao outro participante da disputa (que na assemblia seria parceiro do debate e aqui concorrente) nem ouvi-lo, no se tratando, pois, de convencer o oponente, mas de convencer aquela instncia que efetivamente conta: o assim chamado pblico, a populao e, muito freqentemente, o eleitorado. No de raro, isso acaba por incluir a desqualificao das opinies concorrentes, no argumentando com os sujeitos que as sustentam mas argumentando para a assistncia. A publicidade da opinio que assim se constitui consiste, antes de tudo, em conferir-lhe cidadania na esfera pblica opinativa ou, mais especificamente, no debate pblico. Mas preciso ir alm. Atravs dessa visibilidade na esfera dominante se pretende fazer com que o pblico que a ela se expe adote como prpria a opinio publicada por um sujeito de interesses, selecionando-a dentre as outras posies oferecidas no debate pblico. Na verdade, a construo da opinio prevalecente envolve dois aspectos: a) oferta ao pblico de uma alternativa de compreenso de tema, questo ou matria em disputa isso se realiza atravs do ingresso na esfera pblica opinativa como opinio publicada; b) a conquista de adeso pblica ou, em outros termos, a conquista da adoo dessa opinio como prpria por parte de uma parcela demograficamente importante de pelo menos uma dessas duas categorias: i) a populao em geral, freqentemente tomada na forma de eleitorado; ii) aquela parte politicamente influente da populao, capaz de algum modo de influenciar decises relativamente coisa pblica. Em poltica, sabe-se que a conquista da elite mais eficiente em curto prazo e que a conquista da populao

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tem a sua importncia vinculada a pelo menos um dos dois fatores: a distncia temporal entre a conquista da opinio pblica e o prximo campeonato eleitoral, na medida em que a opinio prevalecente deve converter-se em votos e se as eleies estiverem mais prximas prefervel ter consigo o povo que as elites; o potencial mobilizador da disputa ou a sua capacidade de transformar a opinio pblica em instrumento de presso, na chamada mobilizao da opinio pblica. Meios de comunicao, mundo poltico e pblico se integram em nossos dias numa espcie de sistema de produo, circulao e consumo de opinio poltica, no interior do qual ganham sentido e possibilidade a poltica de opinio e todo processo de converso da opinio particular em opinio do pblico. A matria que constitui tal sistema, a opinio poltica, depende do concurso de agentes situados em trs campos diferentes, cada um deles organizado segundo lgicas distintas, que se equilibram ao mesmo tempo pela simbiose de interesses e pelo contraste de foras. Os agentes pertencem aos trs campos de fora que so a indstria da informao, o campo profissional da poltica e a esfera da recepo ou consumo da informao. A indstria da informao se orienta pelo servio de venda de informao ao pblico, pela converso do pblico-audincia em pblico-consumidor para a sua subseqente venda ao anunciante. A conquista da audincia produzida atravs de codificao dos materiais informativos segundo a lgica dominante na recepo, ordenada pelos princpios da velocidade, da visualidade, da novidade, da diverso e do espetculo. O campo da poltica orienta-se pela conquista e exerccio do poder de conduzir o Estado e de legislar sobre a coisa pblica, transformando a pretenso de validade particular em valor comum e vinculante socialmente. Como a admisso democraticamente legtima ao exerccio do poder revista de tempos em tempos pelo conjunto de scios reconhecidos, o assim chamado povo, a converso da opinio particular em opinio sufragada e autorizada plebiscitariamente passa a ser necessria. H, alm disso, um terceiro fator, que do ponto de vista do fluxo da indstria informao representa ao mesmo tempo a esfera do consumo de informao (como pblico), oferecido ao anunciante como possvel consumidor de produtos, mas que do ponto de vista do sistema poltico o cidado ou povo, soberano da deciso sobre o bem comum. Essa categoria fundamental ao tecido social conquistada pela indstria da informao e do espetculo de massa como pblico ou audincia, constituindo-se no seu maior bem. Conquistado o pblico, a indstria da informao trata-o como sua posse e passa a vend-lo como consumidor ao mundo da produo econmica, ao mesmo tempo em que o torna acessvel como opinio pblica ou eleitorado para o mundo da poltica. O sistema da informao e do espetculo possui um pblico e o torna disponvel ao mundo da produo em troca de capital. Nessa espcie de negociao, o sistema meditico recompensado diretamente e oferece um tipo de acesso s mensagens provenientes da produo e dirigidas ao pblico em que estas so recebidas e veiculadas integralmente sob uma nica condio: as mensagens devem estar codificadas conforme a gramtica e a lgica da recepo de produtos mediticos. O mesmo pblico tornado disponvel tambm ao mundo poltico, s vezes em troca de capital econmico, outras sem nenhuma troca aparente. Quando o pblico vendido ao mundo poltico, as mensagens que de l procedem encontram o mesmo tipo de tratamento e se submetem mesma condio que as mensagens provenientes da produo. Quando a recompensa

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financeira no imediata, as mensagens produzidas no mundo da poltica no encontram um trnsito direto e integral ao pblico, estabelecendo-se negociaes complicadas entre os interesses dos agentes polticos e aqueles do sistema da informao. Os atores polticos dedicar-se-o a elaborar e oferecer ao mercado pblico de opinies, mediado pelo sistema de informao e espetculo dos media, as concepes que desejam sobre o objeto que interessa. Preocupar-se-o com o debate pblico, a se introduzindo de algum modo, mas tero igualmente que lidar com os chamados formadores de opinio, principalmente aqueles profissionalmente ligados indstria da informao, para conquistar os seus favores e faz-los funcionar como agentes de difuso da opinio que interessa impor. Nesse momento, lida-se com quatro categorias de destinatrios, procurando convenc-las: os formadores de opinio, a elite consumidora do debate pblico, eventuais outros concorrentes no debate e a opinio pblica, em seu sentido de pblico ou populao. Os agentes da esfera da exposio pblica opinativa, os agentes da indstria da informao (proprietrios, diretores de redao, colunistas, reprteres, apresentadores e assemelhados), funcionaro como instncia responsvel pelos materiais que constituem tal esfera, pela sua ordenao e forma de apresentao. Por outro lado, tais agentes dependem do conhecimento dos fatos, relaes, questes, circunstncias e sujeitos do mundo da poltica para que possam transform-los em informao e opinio jornalsticas e vend-los ao pblico. A indstria da informao precisa da matria prima poltica para process-la, transform-la e vend-la ao seu pblico; o mundo da poltica precisa chegar ao pblico da indstria da informao. Tanto a regularidade da atividade poltica quanto a rotina produtiva da indstria da informao prevem e solicitam a negociao entre os dois campos. Mas como ambos funcionam com lgicas e interesses distintos, os seus agentes disputam, de forma tensa e engenhosa, o controle das mensagens e dos materiais informativos polticos em geral. Estabelece-se, assim, um equilbrio de foras, no exatamente simtrico e eqitativo, mutvel, baseado em trocas mtuas de favores, ameaas e sanes, em regras delicadas de compensaes, que explica as leis gerais a que se submete a poltica de opinio. Que no se pense que o pblico - como recepo do sistema expressivo dos media, como pblico-consumidor e como pblico-cidado - represente um mero desembocadouro do fluxo opinativo. A rigor, como destinao de todo o sistema, o pblico considerado parmetro absoluto para se decidir sobre sucesso ou fracasso da poltica de opinio. Afinal, toda a engenharia da opinio existe para fazer com que o pblico pense de um determinado modo sobre uma determinada matria. Alm disso, no se pode pensar a situao do pblico no fluxo opinativo como uma tabula rasa onde simplesmente seriam inscritas e reproduzidas as opinies geradas em outro lugar. Como instncia subjetiva, o pblico, mesmo em seu ato de consumo no mercado pblico de opinies, possui um repertrio prvio de juzos, convices, noes e saberes com que haver de negociar qualquer posio conceitual nova. Diante dessa instncia, a poltica de opinio contempornea tende a dotar-se de sensveis mecanismos de resposta capazes de produzir emisses opinativas que sejam conforme a expectativas, desejos e gosto do pblico ou da parcela de pblico que se quer agradar e satisfazer. Aqui no se segue a cronologia habitual que faz parte da mitologia democrtica, segundo a qual primeiro existiria uma pretenso com respeito ao

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bem comum, depois essa pretenso se transformaria em opinio particular apresentada de forma argumentativa que, uma vez conseguindo convencer o pblico de que melhor do que as posies concorrentes, passaria a valer como opinio pblica. Ao contrrio, primeiro se procura identificar sobre uma matria especfica a opinio que o pblico aprovaria, depois, ento, produz-se uma opinio em conformidade com essa opinio ideal. Com isso, dispensa-se a disputa argumentativa e os desperdcios de se produzir uma opinio com poucas chances de sucesso.

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Esfera pblica poltica e mediaCom Habermas, contra Habermas.5 Wilson GomesResumo: "Esfera pblica poltica e Media" considera o sentido, o alcance e a validade do conceito de esfera pblica poltica, como formulado por Jrgen Habermas em Mudana Estrutural da Esfera Pblica, no contexto dos estudos de comunicao & poltica. Como estratgia argumentativa, o ensaio examina a aplicabilidade e o potencial descritivo do conceito confrontando-o com as anlises de Gilles Lipovetsky sobre a cena poltica contempornea e o seu sentido democrtico. Sumrio: 1. Da esfera pblica moderna esfera pblica pr-estruturada e dominada pelos mass media. A perspectiva de Habermas. 1.1 - O conceito de esfera pblica; 1.2 - O quadro social da esfera pblica; 1.3 - Degradao da esfera pblica; 1.3.1 - Dissoluo das esferas; 1.3.2 - A esfera pblica dominada pelos meios e cultura de massa. 2. O conceito de esfera pblica poltica e a cena poltica contempornea. 2.1 - Da essencial leveza da democracia. A perspectiva de Lipovetsky. 2.2 - Habermas e Lipovetsky; 2.2.1 Esfera pblica ou cena poltica? 2.2.2 - Cena poltica espetacular e esfera pblica poltica; 2.2.3 - O conceito de esfera pblica poltica prescindvel?

1. Da esfera pblica moderna esfera pblica pr-estruturada e dominada pelos mass media. A perspectiva de Habermas. 1.1 - O conceito de esfera pblica A esfera pblica o mbito da vida social em que interesses, vontades e pretenses que comportam conseqncias concernentes a uma coletividade apresentam-se discursivamente e argumentativamente, de forma aberta e racional. A sua primeira caracterstica a palavra e a comunicao: interesses, vontades e pretenses dos cidados podem ser levados em considerao apenas quando ganham expresso em proposies ou discursos. Estes, por sua vez, destinam-se a convencer interlocutores servindo-se de procedimentos demonstrativos na forma de argumentos. Argumentos aos quais se adere ou com os quais se contrasta na forma da discusso, debate, argumentao, raciocnio pblicos. Nesse sentido, chama-se esfera pblica o mbito da vida social em que se realiza - em vrias arenas, por vrios instrumentos e em torno de variados objetos de interesse especfico - a discusso permanente entre pessoas privadas reunidas num pblico. A sua segunda caracterstica a sua conduo pela razoabilidade e racionalidade: interesses, vontades e pretenses dos cidados, mediados argumentativamente,5

Esfera pblica poltica e mdia. Com Habermas. Contra Habermas. In. A. Rubim, I. Bentz e M. Pinto (org.), Produo e recepo dos sentidos mediticos. Petrpolis: Vozes, 1998, p. 155-185

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contrapem-se e checam-se leal e reciprocamente orientando-se para a busca de convices e opinies razoveis e consensuais acerca dos objetos em discusso. Na idia de discusso est includo o fato de que os argumentos se dispem em posies e contraposies voltadas para a obteno de um possvel consenso ou concordncia dos interesses em disputa. Participar da esfera pblica, nesse sentido, significa comprometer-se a obedecer lei da racionalidade e da discursividade e apenas a esta. Dito de outro modo, a esfera pblica um mbito da vida social protegido de influncias no-comunicativas e noracionais, tais como o poder, o dinheiro ou as hierarquias sociais. A pblica argumentao que nela se realiza constringe por princpio os parceiros do debate a aceitar como nica autoridade aquela que emerge do melhor argumento6. A esfera pblica como que impe uma paridade inicial entre os sujeitos de pretenses at que a sua prpria posio se torne discurso; depois disso, h de se submeter apenas s regras internas ao processo de conversao ou debate pblico. De fato, historicamente, a esfera pblica moderna se constituiu como, por assim dizer, um mecanismo de defesa. Nasce com a burguesia, classe social que a partir do sculo XVI controlava as posies chave na economia das sociedades europias mas estava excluda do poder exercido como domnio no Estado e na Igreja. Foi precisamente o contraste entre a sua importncia social e o seu reconhecimento, de um lado, e o estado de privados de funo poltica, de politicamente desprovidos de influncia, do outro lado, que levou os burgueses a identificar na possibilidade da esfera pblica sobretudo um mbito livre do domnio das instncias estabelecidas e neutralizado quanto ao poder. Este mbito, acreditavam, na medida em que se submeteria apenas fora do melhor argumento haveria de, em princpio, ser capaz de converter a autoridade (poltica, eclesistica, artstica) em autoridade racional. A paridade preliminar da esfera pblica implica que nela o sujeito se introduz sem portar consigo os privilgios e vantagens extra-discursivos da realeza e das posies da hierarquia social, isto , na condio de pessoa privada; a ingressa na condio de homem livre, sujeito de razo e conscincia. Ora, como livre, privado, como pura e simplesmente homem, que o burgus se entende fundamentalmente. inclusive nessa condio que conduz, no interesse da reproduo individual de sua vida, os seus negcios; mas sobretudo nessa condio que se liga a outros homens livres, privados, enquanto pblico. Nesse sentido, a exigncia de paridade argumentativa resulta ser, se pensada considerando-se as suas conseqncias para a autoridade e o domnio sociais, uma tentativa de dobrar a autoridade e o domnio. Isto quer dizer, que toda autoridade e toda dominao esto em princpio desautorizadas, isto , deslegitimadas, se no se submetem esfera da argumentao das pessoas privadas reunidas num pblico, quer dizer, se no se submetem esfera pblica, se no superam a prova do melhor argumento. Ou seja, com a idia de esfera pblica, os burgueses no pretendem simplesmente exigir uma melhor partilha do poder; pretendem, ainda mais, que a negociao argumentativa tenha um "valor contratual" vinculante at mesmo para o domnio e a autoridade, a partir da submetidos aos critrios da "razo". Em suma, pretende modific-los de modo substancial.

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Habermas vai falar muitas vezes de "comunicao pblica" em lugar de "discurso pblico" ou "discusso pblica" (aquilo que mais tarde ser chamado de "ao comunicativa"). Tomo-os aqui como recobrindo o mesmo campo semntico.

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Sob este aspecto, a esfera pblica a esfera do pblico raciocnio ou do uso pblico da razo. O que significa que a esfera pblica justamente o mbito em que as pessoas privadas reunidas num pblico engajam-se num esforo argumentativo voltado para o recproco esclarecimento (Aufklrung) acerca de objetos comuns de discusso. A arte do raciocnio pblico - "aprendida pela vanguarda burguesa da classe mdia culta em contato com o mundo elegante, na sociedade aristocrtica da corte" (44) consistiria em apresentar posies e contraposies, aduzindo argumentos a favor e contra, dando razes ordenadas e convincentes da aprovao ou reprovao de argumentos. A demonstrao dialogal ou comunicativa - o que Habermas chama de raciocnio pblico - um processo tambm competitivo, na medida em que as posies diferenciadas engajam argumentantes em esforos destinados a comprovar a superioridade da prpria posio contra qualquer posio em contrrio. Isso admitido, o raciocnio pblico comporta tanto a prtica "pedaggica" do esclarecimento e entendimento mtuos, quanto prtica, um tanto "agonstica", da crtica, da luta dos argumentos, da aprovao ou rejeio de teses. Desse modo, a esfera pblica tanto o mbito em que um pblico busca no raciocnio das pessoas privadas esclarecimento e entendimento recprocos, quanto a arena da concorrncia pblica das posies privadas apresentadas na forma de argumentos. De qualquer modo, o raciocnio pblico, ou o uso pblico da razo em situao discursiva, sempre se realiza como debate, como discusso. Todas as instituies de que se dota a esfera pblica esto destinadas a garantir algo como uma espcie de debate ou discusso permanente das pessoas privadas reunidas num pblico. A prpria esfera pblica se entende, ento, como o mbito da discusso em sociedade entre indivduos privados. Temas e questes, gerados como tais fora ou dentro da prpria esfera pblica, aqui so submetidos comunicao pblica, no jogo de posies e rplicas. Uma insistncia to grande no uso pblico - portanto, argumentativo - da razo, historicamente se constitui, bem no esprito da modernidade, contra determinadas prticas e instncias. Antes de tudo, contra a poltica do segredo de Estado praticada pela autoridade (cf. Habermas 1985:71), em que decises so tomadas e posies se estabelecem a partir do simples arbtrio, da mera voluntas de quem exerce a autoridade. A prtica do segredo leva excluso de qualquer outra vontade. Se se atribui ao raciocnio pblico a capacidade de estabelecer qual posio deve ser aceitvel, o domnio no est mais meramente submetido ao arbtrio, mas ratio discursivamente exposta. Nesse quadro, um pblico no uma mera aglutinao de indivduos. uma reunio de pessoas privadas, isto , livres, capazes de apresentar posies discursivamente, de transform-las em argumentos e de confrontar-se com as posies dos outros numa discusso protegida da intromisso de elementos no-racionais e no-argumentativos. Um pblico uma reunio de sujeitos capazes de opinio e interlocuo. A esfera pblica - ou a publicidade - o mbito da sua negociao argumentativa, o domnio do seu debate racional-crtico, a dimenso dos procedimentos pelos quais este pode formular, estipular, rejeitar ou adotar posies sobre qualquer objeto em questo. Enquanto consiste em ser o mbito discursivo-racional do modo de vida democrtico moderno, a esfera pblica, ou publicidade, requer como pr-condio suficiente para a admisso dos parceiros da e na pblica discusso a capacidade de usar publicamente a razo, ou seja, a posse de uma vontade livre e a maioridade racional. Dessa forma, a condio , pelo menos em princpio, uma exigncia que diz respeito a propriedades que tm a ver com a mera humanidade dos sujeitos, excludas as

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propriedades provenientes de status, fora, poder etc. Se isso verdade, a publicidade comporta a exigncia de que os pblicos no sejam excludentes, que sejam em princpio sempre abertos, mas tambm comporta a exigncia de acessibilidade: todos devem ter a chance de introduzir-se na esfera em que possam dizer e contradizer. No apenas que os que a ingressam ganham o direito de apresentar e defender, com idnticas oportunidades, as suas preferncias, vontades e concepes pessoais (cf. Habermas 1985:255 s.), respeitados apenas o poder do melhor argumento e a argumentao racional como procedimento; sobretudo, trata-se de garantir que qualquer interessado, enquanto capaz de argumentar, possa introduzir-se num pblico e fazer-se valer na esfera pblica. No se poderia, de fato, garantir a lei do melhor argumento, da veracidade dos argumentos e contra-argumentos, sem que se admitisse a possibilidade da introduo em pauta de qualquer argumento: esse o fundamento do princpio da garantia de acesso a todos que caracteriza a esfera pblica burguesa. Sendo o mbito das interaes argumentativas no seio da vida social, a esfera pblica , ao mesmo tempo, o locus e a condio onde se gera a opinio pblica. Uma esfera pblica destina-se, negativamente, a proteger os privados da vontade que se manifesta pelo arbtrio, conforme j o vimos. Mas a proteo que nela resulta meio para alguma outra coisa qual positivamente se destina, sendo a sua meta e realizao. De fato, o conceito de esfera pblica denota todas as condies de comunicao sob a qual se pode alcanar uma formao discursiva da opinio e vontade por parte do pblico (cf. Habermas 1992:446). O que exatamente a opinio pblica? So duas as suas caractersticas: a) analisada materialmente um conjunto de posies e disposies, um conjunto de teses. Visto que a pblica discusso se processa atravs e a propsito de argumentos considerando matrias, temas, objetos de discurso, a opinio pblica o razovel e possvel consenso material no interesse geral que a se estabelece. A opinio pblica considerao, modo de ver, concepo, convico, posio; b) definida pela sua origem, a posio de preferncias, desejos e concepes resultante do tirocnio de um pblico apto a julgar, que resulta da discusso crtica na esfera pblica. , em suma, a opinio nascida da fora do melhor argumento. A opinio est em estreita relao com a vontade. A opinio a vontade expressa como posio acerca de algum objeto. Como a opinio pblica a concepo nascida do melhor argumento, que se impe por fora da lgica, na opinio pblica a vontade se transforma em razo. A opinio pblica a vontade expressa como posio obtida numa argumentao racionalmente conduzida, a vontade que se legitima como razo. Justamente a legitimidade racional da opinio pblica, que a deve tornar uma capacidade vinculativa das vontades privadas e do arbtrio no exerccio do poder, tambm o que a deve tornar normativa. Nesse sentido, no Estado de Direito burgus, a opinio pblica chamada a tornar-se a nica fonte legtima das leis. O conceito est no corao mesmo da idia de Estado de Direito burgus, que consiste na vinculao do estado a um sistema normativo legitimado pela opinio pblica (cf. Habermas 1984: 102). Desse modo, a esfera pblica, garantindo uma comunicao sem perturbaes extraracionais e extra-discursivas, bem como garantindo o uso pblico da razo, torna-se, ao mesmo tempo, garantia da formao democrtica da opinio e da vontade. 1.2 - O quadro social da esfera pblica

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Historicamente, a esfera pblica moderna constitui-se num conjunto de relaes com outras instituies e esferas que concernem ao modo de vida moderno. Para que se compreenda a mudana na esfera pblica, preciso que esta possa ser delimitada, no quadro histrico em que se formou, por contraposio a outras instituies e esferas. Parece ter-se firmado a convico, numa tradio de leitores de Habermas, de que a esfera pblica inclua a tudo o que est fora da esfera domstica, familiar, ntima7. O contraste que aqui se coloca, seria, pois, entre publicidade e intimidade. Todavia, a apresentao histrica de Habermas encaminha-se noutra direo, mostrando como o quadro de contrastes de que faz parte a esfera pblica inclui pelo menos trs elementos: o Estado, a economia e a esfera da intimidade. A esfera pblica a dimenso argumentativa dos homens privados - isto , privados ou desprovidos de investidura estatal, interessados em administrar os seus negcios particulares de maneira que a ingerncia do Estado a no comparea como arbtrio reunidos num pblico para, antes de tudo, discutir com a autoridade "as leis gerais da troca na esfera fundamentalmente privada, mas publicamente relevante, as leis de intercmbio de mercadorias e do trabalho social" (Habermas 1984:42). A institucionalizao de uma esfera pblica, onde se pudesse frear ou neutralizar o poder e a dominao (Habermas 1984:104), interessava aos burgueses enquanto possibilidade de emancipar-se das diretrizes da autoridade em geral e do poder pblico em particular. Por outro lado, a esfera pblica, embora seja a esfera de negociao dos privados, no se confunde com a esfera privada. A esfera privada inclui propriamente duas coisas: a) a esfera ntima, da famlia, lugar onde se estruturam e se constituem as subjetividades, lugar da emancipao psicolgica, centro emanador da esfera privada; b) a esfera privada propriamente dita, da produo e reproduo da vida, a economia, o mercado8. O que caracteriza a esfera privada propriamente dita que a atividade econmica, reconhecida como privada desde os gregos, agora possui relevncia coletiva, pblica; a esfera privada da sociedade torna-se publicamente relevante. E isso na medida em que a atividade econmica precisa agora se orientar por elementos que esto fora do limite da prpria casa (oikos), e que so do interesse geral, como o intercmbio mercantil mais amplo, publicamente induzido e controlado (cf. Habermas 1984:33). Esta esfera privada moderna , portanto, por um lado, uma esfera privada autnoma, a sociedade civil burguesa emancipada do Estado; por outro, uma esfera privada publicamente relevante, induzida a levar negociao os prprios mecanismos da negociao, mas que considera que o tirocnio argumentativo racional dos privados lhe mais vantajoso que o arbtrio fundado no segredo por parte do poder pblico. Mas a esfera privada se assegura enquanto tal, mesmo diante da esfera pblica que ela solicita. "A separao entre esfera pblica e privada implicava que a concorrncia de interesses privados tinha sido fundamentalmente deixada para ser regulada pelo mercado, ficando fora da disputa pblica de opinies" (Habermas 1984:221). A esfera

Cf. N. Fraser, "Rethinking the Public Sphere: A Contribution to the Critique of Actually Existing Democracy". In: Calhoun 1992:110. 8 " esfera do mercado chamamos de esfera privada; esfera da famlia, como cerne da esfera privada, chamamos de esfera ntima. Esta cr ser independente daquela, quando na verdade est profundamente envolvida nas necessidades do mercado" (Habermas 1984: 73).

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pblica, por sua vez, no um arena para relaes mercants, mas um teatro de relaes discursivas sobre quaisquer objetos. Dessa composio tinha que emergir a idia da esfera pblica como uma esfera de mediao entre o Estado e a sociedade civil, entre o poder pblico e a esfera privada. Recurso do domnio privado para contrastar, neutralizando, os aspectos do arbtrio e a mera vontade, o poder e a dominao estatal, a esfera pblica contrasta-se com a esfera privada tambm na medida em que no permite que a opinio e a vontade privadas permaneam privadas, enquanto exige que se submetam ao confronto argumentativo regido pela racionalidade, pela discursividade e pela acessibilidade. Em suma, a esfera pblica contrasta com o Estado enquanto reconhece como instncia legitimadora no mais o arbtrio e o segredo, mas a comunicao sem perturbaes e o uso pblico da razo; contrasta com a esfera privada enquanto desconhece a validade do interesse e do desejo privado antes que estes se submetam e sejam aprovados numa discusso racionalmente conduzida onde quaisquer outros interesses e desejos expressos tenham as mesmas chances de contrapor-se e confrontar-se. Por fim, cabe anotar, na configurao histrica da esfera pblica moderna, o que se refere s instituies e instrumentos da esfera pblica, particularmente da esfera pblica poltica. Dois institutos sociais em especial, a imprensa e o parlamento, merecem aqui considerao. Ambas instituies tiveram, desde o princpio, a sua prpria existncia associada idia de esfera pblica. Sobre o parlamento - bem como sobre a conhecida relao entre pblico, partidos polticos e parlamento - no h necessidade de comentrios, pois sabe-se, com efeito, que o parlamento a prpria funo poltica da esfera pblica concretizada e instituda. Quanto imprensa, preciso notar que esta tem lugar estratgico como instituio e instrumento da esfera pblica. Em primeiro lugar, porque h um vnculo essencial entre imprensa e pblico, pressupondo o qual pode-se dizer que s h imprensa propriamente quando a regular transmisso de informaes torna-se acessvel ao pblico em geral. Alm disso, a imprensa muito rapidamente assume funes ligadas aos interesses defensivos (em face do poder estatal) das camadas burguesas, ou seja, funes no meramente informativas, mas crtica e pedaggica. O que se tornou possvel, por certo, apenas com a superao do instituto da censura prvia nas vrias democracias modernas. Nesse sentido, tanto esta instituio da esfera pblica, enquanto passa a intermediar o raciocnio das pessoas privadas reunidas num pblico, quanto instrumento da construo e reunio de pblicos, neste sentido substituindo ou complementando os cafs, sales e comunidades de comensais (cf. Habermas 1984:68). imprensa estar associada, desde ento, a idia de opinio pblica, particularmente da opinio pblica poltica, na medida que se tornar instrumento com cuja ajuda decises polticas so tomadas e legitimadas perante este novo frum pblico (cf. Habermas 1984:76). 1.3 - Degradao da esfera pblica 1.3.1 - A dissoluo das esferas Segundo Habermas, a esfera pblica moderna no existe mais desse modo. Degradou-se nas formas contemporneas de esfera pblica devido a mudanas na sua 21

estrutura. As mudanas se processaram, antes de tudo, no quadro social em que esta se inscreve. incontestvel que a idia burguesa de esfera pblica foi decisiva na constituio dos mecanismos da democracia moderna. O governo parlamentar, a imprensa livre e a liberdade de opinio em geral, o voto universal, o Estado de Direito etc. so todas instituies cujas razes aprofundam-se no solo da idia de esfera pblica, tornada normativa no curso da poca moderna. Desse ponto de vista, a esfera pblica burguesa ainda explica essencialmente o modo de vida democrtico moderno. Entretanto, pouco a pouco foram sendo introduzidas mudanas na sociedade que, sempre segundo Habermas, solaparam as bases originais da esfera pblica, alterando-a substancialmente, ainda que conservando-a como um ideal. Com isso, criou-se a iluso de que a esfera pblica moderna ter-se-ia mantido nas nossas sociedades, quando na verdade ela h muito deixou de existir enquanto tal, conservando-se apenas na aparncia de uma pseudo-esfera pblica, encenada, fictcia, cuja caracterstica maior parece consistir em ser dominada pela comunicao e cultura de massas. As mudanas no contexto social que atingem decisivamente as bases da esfera pblica inerem particularmente ao quadro de contrastes onde emergia a sua necessidade. Entram em crise seja a dimenso polmica do esfera pblica burguesa, como tambm a sua no menos importante dimenso mediadora, enquanto mbito de legitimao argumentativa das posies privadas por meio de discusso conduzida racionalmente por homens privados reunidos num pblico, enquanto, por conseguinte, mbito de determinao do legtimo e do razovel no que tange ao bem comum. A crise proveniente, segundo Habermas, antes de tudo da mudana de estrutura pela qual passa o Estado e na qual se dilui o contraste entre Estado e sociedade. De um lado, com a interveno de um Estado social, que permite e autoriza as intervenes crescentes do poder pblico no processo de trocas das pessoas privadas, do mercado s leis do trabalho social, dessa vez no contra o mercado, mas a favor da sua evoluo. Uma interveno que, de algum modo, no apenas no contestada, mas solicitada pelo setor privado, como se verificam no combate estatal contra a tendncia concentrao de capitais e organizao do mercado base de oligoplios. Isso resultado de um evoluo da prpria economia de mercado, cujo modelo inicial era o comrcio de pequena escala dos primitivos burgueses, que acreditavam que "havendo livreconcorrncia e preos independentes, ento ningum deveria obter tanto poder que lhe fosse possvel dispor sobre o outro". Ora, justamente "contra tais expectativas d-se, agora, o caso de que h concorrncias imperfeitas e preos dependentes, o poder social em mos privadas" (Habermas 1984:172). Um Estado forte e atuando no privado passa a ser, ento, exigncia da prpria esfera privada. Alm disso, o reconhecimento social da esfera pblica partia do princpio da acessibilidade. Por isso mesmo, a burguesia no poderia esperar que o critrio da propriedade fosse considerado por muito tempo condio suficiente para a liberdade da vontade e a capacidade de uso pblico da razo, ou seja, como pr-condio para a introduo na esfera pblica. Quando a conscincia social desvincula a propriedade de bens das condies de acesssibilidade, os interesses dos socialmente desfavorecidos, particularmente dos trabalhadores, findam por ser admitidos esfera pblica. Essas camadas pobres, como outrora os burgueses, apiam-se na esfera pblica para neutralizar, de algum modo, a sua desvantagem social. E o fazem no sentido de compensar politicamente a paridade que negada na esfera da produo. A esfera pblica torna-se, ento, um espao em que os interesses polticos de classe se apresentam e continuam como tal lutando para a sua sobrevivncia na discusso. Com os antagonismos econmicos transformados em antagonismo poltico por meio de uma 22

no-discursiva participao e posio no debate pblico, a esfera pblica perde aquela espcie de "desinteresse" que a constitua to fundamentalmente e que herdara da esfera pblica aristocrtica e letrada. Tambm a famlia desprivatizada, na medida em que desligada do trabalho social. A famlia no est mais aos cuidados do produtor privado. Portanto, pouco a pouco a idia de propriedade familiar substituda pela de renda individual, as garantias e protees familiares para o membro singular so substitudas pelas garantias sociais do Estado - que ademais no se destinam famlia, mas ao indivduo -, o mesmo se pode dizer das funes de educao, acompanhamento, formao de comportamentos (poder discricionrio) que escapam quase completamente ao domnio privado. A conseqncia? "Sem uma esfera privada protetora e sustentadora, o indivduo cai na torrente da esfera pblica, que, no entanto, passa a ser desnaturada exatamente atravs desse processo. Desaparecendo o momento da distncia constitutivo da esfera pblica, se os membros dela ficam ombro a ombro, ento o pblico se transforma em massa" (Habermas 1984:188). 1.3.2 - A esfera pblica dominada pelos meios e cultura de massa Diludos os contornos das esferas pblica, privada e ntima, est selada a decadncia da esfera pblica moderna. Em todos os aspectos por onde a considerarmos, resultar sempre a perda das suas trs caractersticas fundamentais, a saber, a acessibilidade, a discursividade e a racionalidade, bem como a degenerao do seu resultado mais essencial, a opinio pblica. Suposto o quadro de transformaes da estrutura da sociedade, esboado acima, no centro de toda essa mudana de estrutura da esfera pblica estaria, segundo Habermas, a presena avassaladora dos meios e da cultura de massa. Antes, justamente a ntima vinculao da esfera pblica aos mass media e mass culture, a sua submisso a estes, o fenmeno que configura da maneira mais evidente a degenerao da esfera pblica moderna. No caso da esfera poltica, por exemplo, com a diluio das fronteiras entre pblico, privado e ntimo entra em crise o papel, exercido pela esfera pblica, de intermediao argumentativa e racionalmente orientada entre a esfera privada e o poder pblico. O pblico enquanto tal substitudo, como exigncia de legitimao das decises e leis, pelas negociaes entre organizaes e entre partidos, que so as formas pelas quais os interesses privados ganham configurao poltica. A funo de deciso e escolha, que em ltima instncia compete ao pblico por obrigao democrtica, cumpre-se apenas de forma plebiscitria. O que significa que, na transfigurao da esfera pblica, solicita-se ao pblico que exera sua escolha e deciso apenas espordica e plebiscitariamente. Do pblico dessa esfera social se solicita a participao to-somente para assentir plebiscitariamente, ou, pelo menos, tolerar posies que, de maneira no-pblica, apresentaram-se na esfera pblica. As posies de pretenses ainda tm que ser mediadas discursivamente, mas no mais no interior da esfera pblica e sim para a e diante da esfera pblica. A discursividade no mais um critrio para garantir que uma posio se exponha ao crivo da racionalidade argumentativa, comunicao pblica; a discursividade agora serve para que uma posio consiga a boa vontade do pblico. Tratava-se de discusso, trata-se de seduo; tratava-se de crtica, agora, de manipulao.

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Os novos meios e recursos da comunicao de massa ocupam, nesse quadro de referncias, um lugar decisivo. No modelo liberal, a imprensa, o mais antigo sistema da comunicao de massa, era considerada um instrumento privilegiado da esfera pblica. De fato, o seu destino esteve historicamente ligado ao da esfera pblica de forma muito estreita. No de se surpreender, portanto, que a mudana estrutural da esfera pblica esteja profundamente vinculada mudana do papel da imprensa, e da comunicao em geral, em face desta esfera. No modelo liberal, a imprensa era ao mesmo tempo um lugar, uma ocasio e um meio da pblica comunicao. Nela, por ela e com ela se estabelecia o debate aberto e racional acerca de quaisquer objetos de interesse comum levado a termo por um pblico de pessoas privadas aptas para o uso pblico da razo. A opinio pblica emerge desse debate como a sua meta alcanada. Na contemporaneidade, a imprensa finda por ser o lugar, ocasio e meio pelo qual aquilo que se quer que se torne opinio pblica deve circular para obter assentimento dos privados. No um meio de debate do qual se espera emergir uma opinio, mas um meio de circulao de opinies estabelecidas s quais se espera uma adeso, o mais amplamente possvel, de um pblico reduzido a uma massa chamada de tempos em tempos a agir plebiscitariamente9. Uma esfera pblica constituda dessa arte no passa de um meio de propaganda. O lugar de origem da opinio que se quer difundir ou publicizar so certamente interesses privados com acesso privilegiado aos meios de comunicao. Com efeito, se, antes, o fato de a imprensa ser privada significava ter garantida a sua liberdade crtica em face da autoridade, agora, o fato de ser privada - portanto, de ser um campo de ressonncias de interesses particulares - que freqentemente compromete a sua funo crtica, por conseguinte, a sua capacidade de servir na constituio de uma autntica esfera pblica. Agora ela simplesmente um campo em que proprietrios privados agem sobre pessoas privadas, enquanto pblico, para influenci-las. A mudana pela qual os meios de comunicao deixam de ser instrumentos do pblico e modo de existncia da esfera pblica para se tornar instrumento de conquista do pblico por interesses privados explicam a funo estratgica desses meios na sociedade contempornea. Na verdade, aqui se pode flagrar a entrada em cena de outra forma de publicidade, entendida no mais como exposio discursiva das posies num debate acessvel a todos os concernidos e conduzido com razoabilidade, mas como exposio de posies e produtos para os quais se deseja formas concretas de adeso. A diferena entre as duas posies consiste sobretudo em que da segunda esto excludos seja o debate quanto a racionalidade: as posies se verbalizam para convencer, no para demonstrar dialogicamente. Este convencimento prescinde da discusso e da racionalidade, porque no quer conseguir convico lgica: precisa, sim, da simpatia, da boa vontade, da adeso no importando se a sua origem racional ou meramente emocional - por isso serve-se da seduo. Tecnicamente, a esfera pblica voltada para o convencimento realiza-se atravs de estratgias cuidadosamente planejadas que levam em considerao a lgica dos meios de comunicao e as necessidades plebiscitrias da democracia. Trata-se de construir a adeso, de trabalhar a "opinio pblica", ou seja, de inserir na agenda temtica do maior nmero de sujeitos de uma rea de interesse posies favorveis s pretenses que se quer defender. Resulta disso uma opinio certamente compartilhada por um nmero"Enquanto antigamente a imprensa podia intermediar o raciocnio das pessoas privadas reunidas em um pblico, este passa agora, pelo contrrio, a ser cunhado primeiro atravs dos meios de comunicao de massa" (Habermas 1984:221).9

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enorme de sujeitos, mas que nem por isso pode-se reivindicar "pblica", no sentido moderno, enquanto no decorre da pblica discusso. uma opinio pblica encenada (cf. Habermas 1984:228). Mas, por que, mesmo mudadas as condies sociais, h uma insistncia at mesmo normativa na esfera pblica, de forma que foi necessrio at mesmo inventar uma continuidade fictcia com a esfera pblica moderna quando, na verdade, definitivamente ocorreu uma ruptura? A resposta est, provavelmente, no conceito de democracia. Toda sociedade supe que decises que so tomadas no seu interior digam respeito a um conjunto muito amplo de cidados, algumas das quais, inclusive, a todos eles. A um conjunto de decises que envolva o conjunto dos cidados, direta ou indiretamente, reconhece-se como um valor ou bem comum. Mas enquanto em sociedades despticas, questes relativas ao bem comum so decididas pelo arbtrio da autoridade reconhecida, segundo critrios e princpios que no necessitam ser partilhados, nas sociedades democrticas, pelo contrrio, as questes relativas ao bem comum devem ser decididas de forma negociada, numa interao de que fazem parte a autoridade e os imediatamente interessados, mas que, em princpio, aberta participao ou reviso de todos os concernidos. Em sociedades dessa natureza h que haver, portanto, um mbito em que, no que tange s questes referentes ao bem comum, as pretenses interessadas se apresentem, as posies apresentadas sejam negociadas e as decises sejam tomadas ante o conjunto dos cidados. A esfera pblica moderna um modo de se entender e de se configurar este mbito da apresentao e negociao das pretenses que se referem ao bem comum. Esta consistiu, historicamente, em se defender, segundo Habermas, que a apresentao necessariamente discursiva, que as negociaes so uma disputa argumentativa conduzida com racionalidade, que estas so por princpio abertas a todos os concernidos e que, enfim, essa disputa se destina produo de uma posio terica e prtica em face da questo posta, posio da opinio pblica. assim que, embora este no seja mais o modelo vigente de esfera pblica, isso no obstante, a esfera pblica, ou como quer que se chame esta dimenso da vida social, continua sendo o conceito-chave da idia de democracia. Eis porque na contemporaneidade a idia de esfera pblica continue normativa, fonte fundamental de legitimao social das decises concernentes ao bem comum, embora a sua configurao j tenha deixado de ser a mesma do modelo iluminista. Como se caracteriza, ento, a esfera pblica contempornea? Antes de tudo, como a esfera da representao pblica dos interesses privados, que no ousam confessar-se tais. A arte consiste em conferir ao objeto de interesse privado a aparncia de um objeto de interesse pblico. O mais importante, todavia, que nesse caso a esfera pblica parece retornar ao seu estgio feudal: posies apresentam-se segundo um certo cerimonial em face de um pblico disposto a reconhec-las e segui-las. Do pblico se requer apenas que desfrute da sua aura e, obsequiosamente, a aclame10. Temos aqui uma refeudalizao da esfera pblica, onde a mesma "se torna uma corte, perante cujo pblico o prestgio encenado - ao invs de nele desenvolver-se a crtica" (Habermas 1984:235).

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"As organizaes buscam conquistar, junto ao pblico intermediado por elas, uma entusistica aprovao que ratifique formaes de compromisso sujeitos ao crdito pblico, ainda que desenvolvidos grandemente a nvel interno, ou ao menos tratam de assegurar a sua passividade replena de boa-vontade seja pra transformar tal concordncia em presso poltica, seja para, base da tolerncia alcanada, neutralizar presses polticas contrrias" ( Habermas 1984:234).

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Como a diluio das fronteiras entre as esferas, no h mais como pensar a esfera pblica poltica, por ex., como a dimenso da deciso apoltica dos conflitos. A esfera pblica passa a funcionar segundo o modelo do mercado, portanto, da esfera privada, e as mediaes das pretenses que a se apresentam tornam-se literalmente "negociaes", barganhas entre foras e presses representadas nos campos sempre provisrios de foras em que se envolvem tanto o aparelho do Estado como os grupos de interesses, dominadas por mecanismos e recursos destinados aos necessrios favorecimentos e compensaes (cf. Habermas 1984:232). Nessa forma de esfera pblica sequer necessrio que a disputa seja integralmente discursiva; bastante que o seja no seu momento de deciso para que garanta a legitimidade do decidido como questo referente ao bem comum, portanto, submetida assemblia dos cidados11 e por ela aprovada. Por isso, respeitados os procedimentos, em grande parte cerimoniais, das votaes e apresentaes, as negociaes podem ser estabelecidas fora da esfera especificamente pblica, nos gabinetes da administrao, na burocracia poltica, nos subterrneos do poder, nos subterfgios do lobby etc. As mediaes discursivas, que no modelo liberal de esfera pblica pareciam essencial para o conceito de democracia deliberativa12, empalidecem diante da crescente importncia da busca de compromissos das organizaes entre si e com o Estado. Compromissos que prescindem da esfera pblica e que devem, se possvel, guardar distncia desta, considerada freqentemente um incmodo e uma ameaa. Da obscuridade e clausura do compromisso privado, as posies emergem para a esfera pblica, dimenso reconhecida como da legitimao social. Mas essa emerso no implica que as cartas se ponham mesa, como argumentos sincera e lealmente apresentados, porque no se trataria de conquista o prprio reconhecimento na esfera pblica, mas de conquistar o reconhecimento do pblico atravs da esfera pblica. As posies no se expem na esfera pblica no sentido de apresentar os prprios fundamentos e motivaes crtica dos pares; expem-se no sentido de exibir-se, de mostrar-se naquilo que nelas h de mais atraente e cintilante, portanto, no sentido publicitrio-jornalstico. A rigor, a esfera pblica pouco a pouco deixa de ser a dimenso social da exposio argumentativa de questes referentes ao bem comum para ser a dimenso social da exibio discursiva meditica de posies privadas que querem valer publicamente e para isso precisam de uma concordncia plebiscitria do pblico. A esfera cumpre, portanto, uma funo ritual: sacraliza como questo do bem comum, portanto, do interesse pblico comum, pretenses privadas de muitos indivduos organizados em grupos de interesses, sacraliza como universal o interesse particular da organizao. Nesse sentido, os grupos de interesse, e o prprio Estado que, sob este aspecto, no se diferencia das organizaes, podem de algum modo "manipular" o pblico, sem, de resto, submeter-se realmente esfera pblica. Como diz Habermas, "o trabalho na esfera pblica visa reforar o prestgio da posio que se tem, sem transformar em tema de uma discusso pblica a prpria matria do compromisso" (Habermas 1994:234). Neste sentido, a opinio pblica no a posio, o ponto de vista comum a um crculo de concernidos que se imps sobre os outros a respeito de uma matria em disputa, como resultado de uma argumentao aberta e racional que se11 12

O que Habermas chama de "obedincia ao mandamento democrtico de agir publicamente". "A noo de democracia deliberativa enraizada no ideal intuitivo de uma associao democrtica em que a justificao dos termos e condies se d atravs da disputa e raciocnio pblicos entre cidados iguais" J. Cohen, "Deliberation and Democratic Legitimacy". In: A. Hamlin - P. Pettit (eds) The Good Polity, Oxford, 1989. Citado por Habermas (cf. Habermas 1992: 446).

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realizou publicamente - meramente a posio de um grupo dentre os concernidos. Como no o resultado de um processo de convencimento por demonstrao, tampouco precisa ser racional, coerente ou mesmo razovel. Por isso no preciso mais submeter-se esfera pblica quando se pretende fazer valer uma pretenso. Precisa-se, isto sim, submeter a esfera pblica, trabalh-la. A posio no se submete ao julgamento no pblico raciocnio; a arte consiste em conseguir prestgio pblico para a posio. A esfera pblica encenada torna-se um show, uma mostra. Os argumentos no so propriamente mais argumentos, como diz Habermas, "so pervertidos em smbolos, aos quais no se pode, por sua vez, responder com argumentos, mas apenas com identificaes (Habermas 1994:241). Em suma, ocorre uma reduo da autenticidade da esfera pblica. E estritamente associado a este fato que surge e se consolida o enorme mercado de comunicao voltado para se trabalhar a esfera pblica. Esse promissor mercado solicita um conhecimento voltado para a elaborao e implementao de estratgias destinadas produo desta nova espcie de opinio pblica, atravs dos meios de ressonncia da comunicao de massa, atravs de linguagens e processos da comunicao de massa (publicidade, public relations) e orientado segundo princpios e tcnicas da disciplina da administrao de negcios. A clientela desse mercado substancialmente a indstria de cultura, do lado da esfera pblica cultural, e as organizaes, partidos, grupos de interesse e o prprio Estado, do lado da esfera pblica poltica. assim que surgem, por exemplo, tanto os negcios da produo cultural quanto do marketing poltico, em que especialistas em matria publicitria, a prescindir das prprias convices, "so contratados para vender poltica apoliticamente (Habermas 1984:252) ou vender um produto cultural independentemente do que se ache dele. Os destinatrios so agora meros consumidores de pontos de vista polticos ou culturais, geralmente predispostos a oferecer o prprio agreement a uma posio que diante deles se apresenta, selecionando-a do mercado de ponto de vistas disponveis: eis a nova opinio pblica13. Aqui se estiolam as antigas instncias do debate pblico. Os meios de comunicao so agora apenas meios de propaganda, as assemblias dos partido so arranjadas para fins publicitrios, os debates do Parlamento se estilizam como shows para a televiso e os jornais. H de se notar, por outro lado, como na sociedade contempornea essa tendncia degenerativa da esfera pblica conviva paradoxalmente com a legalizao da esfera pblica e a sua incorporao como meio de legitimao do Estado. Mas ainda que no modelo liberal, no Estado contemporneo a esfera pblica ganha forma institucional e reconhecimento tico e legal como esfera da legitimao das questes relativas ao bem comum. Uma diferena no desprezvel nesse quadro de coisas consiste no fato de que, associado institucionalizao da esfera pblica, muda o tipo de ator que nela pode intervir. O que quer dizer que se espera e considera menos a interveno de um pblico de pessoas privadas que interagem individualmente e mais um pblico de organizaes ou pessoas privadas organizadas. Em alguns casos, o acesso esfera pblica se conquista por uma espcie de representao - ou pela representao plebiscitria ou pela representao de organizaes interessadas naquele mbito especfico de discusses (cf. Habermas 1984:270).13

"Ao invs de uma opinio pblica, o que se configura na esfera pblica manipulada um clima de opinio" (Habermas 1985:254).

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A nova esfera pblica explica-se por essa duplicidade de fenmenos, paradoxalmente compostos. De um lado, o reconhecimento institucional da normatividade de uma esfera pblica de organizaes e instncias super-individuais. De outro lado, a prtica da esfera pblica como instncia de exibio destinada a provocar reconhecimento pblico de posies e produtos. Se o primeiro fenmeno permite e admite a disputa e a crtica, podendo, enfim, garantir o princpio democrtico da "racionalizao do exerccio do poder social e poltico" (Habermas 1984:270), o segundo aspecto move-se pelo pressuposto contrrio de que se pode - talvez at mesmo se deva - realizar o convencimento democrtico acerca da validade de uma posio sem debate, comunicao ou discusso pblica sobre os objetos em questo, mediante o uso de estratgias persuasivas no-dialgicas, mediante a seduo. Se o primeiro continua a pressupor a possibilidade de formao da opinio atravs da discusso, a possibilidade de um consenso possvel dos interesses concorrentes, a partir de debates abertos e racionalmente conduzidos, o segundo aposta que a esfera pblica, convenientemente dominada por meios e cultura de massa pode servir estrategicamente para o sucesso de procedimentos de, como diz Habermas, engineering of consent. claro que para Habermas s aparentemente d-se no segundo fenmeno uma autntica esfera pblica. O problema de Habermas consiste provavelmente na constatao de que a esfera pblica enquanto esfera da exibio para o pblico, a esfera pblica dominada por meios e cultura de massa, no parece adequada e suficiente para uma sociedade democrtica. A insistncia na transformao estrutural da esfera pblica finda por ser uma insistncia na perda da concepo moderna da vida pblica democrtica. 2. O conceito de esfera pblica poltica e a cena poltica contempornea Como quer que se avalie esse fenmeno, o conceito habermasiano de esfera pblica obteve uma impressionante fortuna no campo dos estudos de comunicao, particularmente no campo de comunicao & poltica. Mudana Estrutural da Esfera Pblica encabea ou integra a lista bibliogrfica de cursos e publicaes sobre comunicao & poltica em todo o mundo h pelo menos duas dcadas, para surpresa at mesmo de Habermas. Isso significa que os estudiosos da comunicao & poltica muito cedo se deram conta das vantagens desse conceito para a anlise do seu objeto. Antes de tudo, ele mais especializado que o conceito de poltica. Este ltimo inclui, alm da esfera da pblica discusso, tambm as prticas das negociaes fechadas e no-discursivas, levadas a termo na burocracia poltica e administrativa, a origem, estabelecimento, diviso e gesto do poder, as instituies etc. O conceito de esfera pblica concentra a nossa anlise justamente no teatro das interaes discursivas, em que a poltica tornou-se j algo exotrico, comunicativo. H at mesmo quem argumente - e o prprio Habermas de Mudana Estrutural da Esfera Pblica no parece muito longe disso - que o aspecto fechado, enclausurado, esotrico dos automatismos da burocracia e das barganhas seja, na nossa sociedade, aquele decisivo, constituindo-se o resto em apenas uma grande simulao da poltica e que a esfera pblica seja s uma encenao. Mas isso no impede que se possa eleger o conceito como um bom operador de anlise na comunicao & poltica. O fato que no se pode negar que as sociedades modernas e contemporneas, de maneira sincera ou farsesca que seja, encaminharam-se

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para um modelo de democracia deliberativa, em que a comunicao cumpre o mais importante papel. O que decisivo o fato de que ele nos permite isolar justamente a arena comunicativa e deliberativa - em que se negociam argumentativamente as posies polticas - do conjunto de fenmenos sociais e analisar as suas estruturas, seus componentes, suas linguagens, sua configurao e as conseqncias que disso decorre. Em segundo lugar, e por isso mesmo, um conceito que tem em conta, da maneira mais rigorosa, a dimenso comunicativa da poltica. Na sua genealogia da esfera pblica burguesa, Habermas demonstra como a esfera exotrica, comunicativa, da poltica, longe de ser um epifenmeno, adorno ou anomalia social, constitui-se no centro da democracia moderna. Com isso, a comunicao pblica na poltica ganha o proscnio, roubando o foco da ateno de alguns lugares tradicionais determinados pela filosofia e sociologia polticas, como os fenmenos administrativos, o conceito de poder ou as instituies. Para o estudioso da comunicao & poltica isso significou o enobrecimento do seu objeto, com todas as conseqncias de reconhecimento e prestgio acadmico. Evidentemente, foi o fato de a comunicao poltica ser de fato importante na compreenso da sociedade contempornea - e no o conceito de esfera pblica - a conferir prestgio aos estudos de comunicao & poltica. Todavia, no resta dvida quanto ao fato de que o conceito ainda importante justamente por fornecer simultaneamente argumentos para justificar a importncia do fenmeno e um operador conceitual para a facultar a sua anlise. No obstante o quadro desses aportes inegveis da tese habermasiana, algumas crticas hoje podem ser feitas ao seu conceito, no sentido de test-lo ou mesmo de refin-lo ou rejeit-lo. H duas objees muito srias que, num esforo de imaginao, poderiam ser feitas ao conceito de esfera pblica formulado em Mudana Estrutural da Esfera Pblica. Nem mesmo digo que tais objees tenham sido feitas, pelo menos no exatamente do modo como as apresentarei. Proponho apenas um exerccio de fantasia crtica que, na verdade, retoma algumas idias presentes no esprito da poca para checar a validade dos pressupostos habermasianos. A primeira delas, proveniente de ambiente liberal, poderia objetar a Habermas que a sua esfera pblica ideal defeituosa por ser demasiado sisuda, argumentativa, sria e que, justamente por essa razo, com ela contrasta o aspecto leve, efmero e sedutor da esfera pblica contempornea. Tal contraste, que para Habermas tem o significado de decadncia, decorreria, talvez, de uma concepo um pouco demasiado "sisuda" da democracia e da natureza da sociedade democrtica, onde as formas mais gaias e levianas de comunicao e interao so consideradas excrescentes. Todavia, se se demonstrasse que no conceito de democracia dever-se-ia incluir, necessariamente, a efemeridade e a seduo, talvez se devesse ver continuidade entre a esfera pblica moderna - argumentativa, discursiva e racional - e a esfera pblica contempornea - de dominante sedutora -, justamente a onde Habermas v descontinuidade e ruptura. A segunda delas, proveniente da esquerda, poderia objetar a Habermas que o seu conceito de esfera pblica no adequado para dar conta da dimenso conflituosa da poltica, por vincular de forma excessiva a validade dos consensos a procedimentos discursivos paritrios e orientados por uma vontade real de reconhecer como vlida a melhor posio. Nesse sentido, a tentativa de invalidao do conceito de esfera pblica passaria pela demonstrao de que neste conceito se subestima a dimenso necessariamente agonstica e, sobretudo, estratgica da poltica. Nesse contexto, se pode reprovar a Habermas por no ter sido capaz de reconhecer que alm, e bem mais, qu