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Jürgen Habermas: anotações sobre a trajetória do conceito de esfera pública Estevão Bosco 1 RESUMO: O objetivo principal consiste em delinear a trajetória interna na obra de Jürgen Habermas que resulta, na década de 1990, na proposição de uma "democracia constitucional cosmopolita". Como metodologia, orientamo-nos por uma perspectiva imanente, considerando apenas aspectos internos da obra, circunscritos aqui à associação histórica entre capitalismo e democracia e sua mediação por meio do conceito de esfera pública. Uma vez que os dilemas concernentes à relação entre política, economia e cultura perpassam, grosso modo , conjunto dos estudos do autor, faz-se necessário considerar um conjunto de livros específicos, ainda que não exclusivos: "Strukturwandel der Öffentlichkeit" (1962); "Legitimationprobleme im Spätkapitalismus" (1973); "Theorie des kommunikativen Handelns" (1981); "Faktizität und Geltung" (1992); e “Die Einbeziehung des Anderen” (1996). Como hipótese, argumento haver uma coerência interna, para não dizer uma complementaridade, entre o diagnóstico de crise da esfera nacional, a proposição de uma democracia cosmopolita, o diagnóstico de época elaborado no início dos anos 1970 e, em 1962, a tese da mudança estrutural da esfera. PALAVRAS-CHAVE: Habermas, Jürgen; Esfera pública; Democracia deliberativa. INTRODUÇÃO O propósito geral de Jürgen Habermas é o de iluminar fundamentos normativos para uma teoria crítica da sociedade. Em resposta a uma crítica da razão prisioneira de si mesma, Habermas desenvolve um conceito de razão a partir da racionalidade possível da práxis comunicativa quotidiana, mais especificamente, a partir do uso da linguagem voltada ao entendimento. Para ele, a elaboração de um conceito de comunicação deve ser tarefa de uma da filosofia em um diálogo sistemático com a teoria social e a teoria política. Nesse artigo, elaboro uma leitura, não exaustiva, da trajetória teórica da obra de Habermas a partir do conceito de “esfera pública”. Com isso, pretendo iluminar aspectos gerais de sua trajetória que permitiram resultar em seu modelo deliberativo de democracia. Para tanto, faço principalmente uso de alguns livros: Strukturwandel der Öffentlichkeit (1978b [orig. 1962]); Legitimationprobleme im Spätkapitalismus (1978a [orig. 1 Sociólogo pela Universidade Estadual Paulista, campus de Araraquara (UNESP), mestre em sociologia pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e doutorando pela mesma universidade. Esta pesquisa é financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). Contato: [email protected]

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Jürgen Habermas: anotações sobre a trajetória do conceito de

esfera pública

Estevão Bosco1

RESUMO: O objetivo principal consiste em delinear a trajetória interna na obra de Jürgen Habermas que resulta, na década de 1990, na proposição de uma "democracia constitucional cosmopolita". Como metodologia, orientamo-nos por uma perspectiva imanente, considerando apenas aspectos internos da obra, circunscritos aqui à associação histórica entre capitalismo e democracia e sua mediação por meio do conceito de esfera pública. Uma vez que os dilemas concernentes à relação entre política, economia e cultura perpassam, grosso modo, conjunto dos estudos do autor, faz-se necessário considerar um conjunto de livros específicos, ainda que não exclusivos: "Strukturwandel der Öffentlichkeit" (1962); "Legitimationprobleme im Spätkapitalismus" (1973); "Theorie des kommunikativen Handelns" (1981); "Faktizität und Geltung" (1992); e “Die Einbeziehung des Anderen” (1996). Como hipótese, argumento haver uma coerência interna, para não dizer uma complementaridade, entre o diagnóstico de crise da esfera nacional, a proposição de uma democracia cosmopolita, o diagnóstico de época elaborado no início dos anos 1970 e, em 1962, a tese da mudança estrutural da esfera. PALAVRAS-CHAVE: Habermas, Jürgen; Esfera pública; Democracia deliberativa. INTRODUÇÃO

O propósito geral de Jürgen Habermas é o de iluminar fundamentos normativos

para uma teoria crítica da sociedade. Em resposta a uma crítica da razão prisioneira de si

mesma, Habermas desenvolve um conceito de razão a partir da racionalidade possível da

práxis comunicativa quotidiana, mais especificamente, a partir do uso da linguagem

voltada ao entendimento. Para ele, a elaboração de um conceito de comunicação deve

ser tarefa de uma da filosofia em um diálogo sistemático com a teoria social e a teoria

política.

Nesse artigo, elaboro uma leitura, não exaustiva, da trajetória teórica da obra de

Habermas a partir do conceito de “esfera pública”. Com isso, pretendo iluminar aspectos

gerais de sua trajetória que permitiram resultar em seu modelo deliberativo de

democracia. Para tanto, faço principalmente uso de alguns livros: Strukturwandel der

Öffentlichkeit (1978b [orig. 1962]); Legitimationprobleme im Spätkapitalismus (1978a [orig.

1 Sociólogo pela Universidade Estadual Paulista, campus de Araraquara (UNESP), mestre em

sociologia pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e doutorando pela mesma universidade. Esta pesquisa é financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). Contato: [email protected]

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1973]); Theorie des kommunikativen Handelns (1987 [orig. 1981]); Faktizität und Geltung

(2003b e 2010 [orig. 1992]); e Die Einbeziehung des Anderen (2007 [orig. 1996]).

Como hipótese geral, argumento haver uma coerência interna no percurso do

autor, que pode ser caracterizada por uma ênfase específica em cada um desses

momentos da obra: sob a preocupação geral com a associação histórica entre capitalismo

e democracia, em 1962 e 1973 o acento é dado ao capitalismo, enquanto a partir dos

anos 1980, à democracia. Sugere-se, pois, que as tendências econômicas, políticas e

sócio-culturais para a crise, diagnosticadas em 1962 e 1973, mantiveram-se

empiricamente válidas e, deste modo, vieram a combinar-se com a "crise gerencial" de um

Estado nacional confrontado a uma globalização intensificada (Habermas, 2002 e 2003a).

Disso resulta uma crise mais profunda, que coloca em questão a capacidade de

legitimação do modelo nacional de democracia.

A INTUIÇÃO DE UMA ABERTURA INSUFICIENTE DAS INSTITUIÇÕES

DEMOCRÁTICAS E A ESFERA PÚBLICA EM STRUKTURWANDEL DER

ÖFFENTLOCHKEIT (1962)

Foi em 1962 que Habermas (1978b) elabora o conceito de esfera pública através

de uma reconstrução histórica da sociedade moderna, compreendida em fases

sucessivas, uma pré-capitalista, outra capitalista liberal, uma terceira capitalista burguesa

e uma quarta e contemporânea, a do capitalismo administrado. Para essa reconstrução, o

quadro teórico-metodológico elaborado por Habermas compreende inicialmente a

diferenciação entre Estado e esfera privada, cabendo à esfera pública a mediação entre

um e outro. O que interessa especificamente o autor é a compreensão da decadência do

projeto liberal do século XIX, que tinha, conforme sua demonstração, na esfera pública

liberal burguesa o seu espaço de mediação principal, pois é em sua constituição que

surgiram um conjunto de direitos civis que vieram garantir autonomia da esfera privada

perante a regulação estatal. A elaboração do conceito de esfera pública consiste aqui

numa inovação importante para a compreensão da sociedade contemporânea, e constitui

um marco metodológico para as Ciências Sociais. Mas a contribuição do estudo não é

somente essa: como argumenta Walter Reese-Schäfer, Habermas formula "uma forma

diferenciada de crítica à ideologia, a qual não denuncia ideias e ideologias como mera

consciência falsa, antes porém dirige criticamente seu potencial normativo excedente

contra uma atualidade decadente" (Reese-Schäfer, 2010, p. 43).

Apesar de a fundação teórico-metodológica do estudo de 1962 ter sido

reformulada nos estudos posteriores sobre a esfera pública (Habermas, 2003b e 2010; e

2007 [orig. 1992 e 1996), nele encontram-se muitas ideias que permaneceram centrais ao

longo de toda a sua trajetória. Daí a importância de compreender a concepção de esfera

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pública elaborada a partir de 1992 (idem, ibidem) a partir de uma reconstrução

sistemática, pois ela permite ter clareza quanto ao projeto intelectual em seu conjunto, eo

ipso em relação à proposição de sua democracia deliberativa como resposta aos

problemas de legitimação nos dias atuais. E isso exatamente porque o potencial de

emancipação diagnosticado em 1962 deu lugar a um projeto político claramente

direcionado, tendo no direito a esfera de mediação institucional entre Estado e sociedade,

e na sociedade civil, o conteúdo normativo excedente, passível de institucionalização

(Habermas, 2010, p. 17-64 e 2003b, p. 57-122). Em 1962, Habermas propunha:

Primeiramente, de fato, a universalidade das leis num sentido rigoroso só é garantida na medida em que a autonomia, intacta, da sociedade civil enquanto esfera privada, permite afastar do material tratado pela legislação certos interesses cuja situação é sobremaneira especial, e de limitar o trabalho de codificação às condições gerais necessárias para o reequilíbrio dos mesmos interesses. Em segundo lugar, a verdade das leis só é garantida na medida em que uma esfera pública elevada, enquanto parlamento, à dignidade de órgão de Estado permite a discussões públicas fazer surgir as necessidades práticas que respondem ao interesse geral. (Habermas, 1978b, p. 187 [orig. 1962]).

Já em Strukturwandel des Öffentilichkeit (Habermas, 1978b), o diagnóstico de uma

crise de legitimação derivada da evolução específica do capitalismo e de uma participação

política restrita já vinha vinculado à ideia de uma democracia mais ampla, mais “radical”

porque indicava a necessidade de criação de mecanismos mais variados de participação

direta nos processos político-decisórios. Apenas “indicava”, porque ainda não resultava

num modelo de democracia propriamente dito. Entretanto, e apesar da fundação teórica

diametralmente distinta, a localização concreta do conceito de esfera pública permanece a

mesma de 1962 à 1992. Os efeitos de constrição sistêmica da sociedade burguesa

permanecem vinculados à circulação de mercadorias e trabalho, como sociedade de

pessoas privadas e cidadãos econômicos. No Estado concentra-se a organização do

político. E na esfera pública, temos os cidadãos políticos. A função de mediação social da

esfera pública entre Estado e esfera privada situa-se justamente no fato de que ela é

constituída, a rigor, por pessoas privadas que, na autonomia que lhes é conferida pela

propriedade econômica, reúnem-se enquanto público e deste modo reserva para si a

possibilidade de incidir sobre o poder político, sem, todavia, ter a intenção disputá-lo.

Tanto em Strukturwandel der Öffentlichkeit (Habermas, 1978b, p. 13-66 [orig. 1962]) como

em Faktizät und Geltung (2010, p. 73-118 [orig. 1992]), portanto, a esfera pública é

funcionalmente política e privada em sua composição.

No século XIX, constitui-se o que Habermas (1978b, idem) denominou esfera

pública liberal, um espaço comunicativo entre pessoas privadas cuja reunião se

caracterizava pelo raciocínio livre orientado para a verdade. Sua estrutura era composta

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pela pequena família burguesa e por uma esfera pública-literária. Naquele momento,

diante do diagnóstico de mudança estrutural da esfera pública e da crise de legitimação

decorrente desse processo, Habermas então sugeria uma reestruturação das relações

entre Estado e sociedade a partir da reinserção, assegurada juridicamente, da esfera

pública liberal. Isso passava necessariamente por uma redefinição político-jurídica da

autonomia da esfera privada perante a esfera social e econômica. Pois, no século XIX, o

que conferia poder de intervenção política à esfera pública era a autonomia privada, obtida

através da propriedade privada e assegurada juridicamente, e a publicidade, através da

imprensa e do romance. Estruturalmente, a esfera pública liberal deve o seu surgimento

ao capitalismo primitivo de pequenos produtores, à circulação de mercadorias, à

conversão de informações comerciais em mercadoria, à difusão mais rápida de

comunicados jurisdicionais.

Finalmente, essa condição historicamente específica da sociedade permitiu

posteriormente dar publicidade também às opiniões do público burguês. Em um sentido

fundamental, a esfera pública liberal burguesa é constituída por pessoas privadas, que

reunidas na forma de público através de diferentes esferas, reivindicam e negociam as

regras que conformam os tipos variados de troca. Para o Habermas de 1962 (1978b, p.

38-66), a troca de mercadorias e a divisão social do trabalho compõem as dimensões

centrais da esfera pública. À luz das evoluções recentes, como o surgimento da questão

ambiental como um problema capaz de mobilizar as pessoas, os dilemas em torno da

genética, entre outros, podemos afirmar que vieram compor a esfera pública dilemas

relativos à repartição de responsabilidades e prejuízos.

Pressupõe-se, nesse sentido, a atribuição de poder a uma esfera não

exclusivamente estatal. Isso significa, para todos os efeitos, que a esfera pública liberal

burguesa de uma só vez consiste numa esfera de ação reivindicada pelas pessoas

privadas e regulamentada pela autoridade do Estado, esfera de ação privada que pode

justamente opor-se a essa autoridade. Mas a oposição que, na esfera pública liberal

burguesa, pessoas de direito privado fazem à autoridade política do Estado não pretende

substituí-la por outra: "[...] o poder, que advém do direito privado, de dispor da propriedade

empregada no modo de produção capitalista é, de fato, de natureza apolítica" (Habermas,

1978b, p. 39). Por definição, esse poder possui um fundamento privado, não público.

Deduz-se assim que na esfera pública liberal burguesa, pretende-se atribuir poder de

conformação da autoridade do Estado a pessoas de direito privado, na medida em que

estas últimas venham a tornar-se um público. Sendo privado em seu fundamento, esse

modelo de esfera pública compõe-se de uma subjetividade relativa tanto ao público

quanto às experiências próprias da esfera da família. Esse fundamento privado do poder

na esfera pública será retomado em 1992 com a sociedade civil, enquanto uma esfera da

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sociedade que canaliza problemas que emergem na socialização privada e acabam por

influenciar o sistema política e as empresas, sem, contudo, ter por motivação disputar o

poder estatal.

A esfera pública liberal burguesa do século XIX está imbricada funcionalmente

com o Estado em três grandes eixos: primeiro, garante-se a liberdade de opinião,

associação e de inserção política; segundo, proteção da intimidade frente ao coletivo; e

terceiro, garantias de livre atuação econômica. Esse conjunto de eixos pode ser referido

como garantias de direitos políticos e direitos civis (Habermas, idem). Funcionalmente,

eles protegem a esfera privada e a esfera pública da intervenção arbitrária do poder

estatal. Sua contradição estrutural está no fato de que, nela, presume-se o acesso do

conjunto da população à propriedade e à educação, bens que estavam restritos a uma

pequena parcela de pessoas. Mas isso não significa que a esfera pública burguesa não

era efetiva já naquela época, pois apesar dessa estrutura social, argumenta Habermas, o

modelo se tornou efetivo na medida em que o interesse de classe burguês se afirmou

como interesse geral.

A transformação estrutural da esfera pública liberal do século XIX se deve a alguns

processos específicos (Habermas, 1978b, p. 149-158; 159-182; e 183-188). O primeiro é

a substituição progressiva do modelo de pequenos produtores por oligopólio e grandes

trustes, que tende a subverter a ideia liberal de livre-concorrência em virtude do poder

adquirido pela corporação de incidir sobre o preço da mercadoria Na esfera do

proletariado, surgem as grandes organizações sindicais e os partidos de trabalhadores.

Essas transformações tiveram por reflexo uma racionalização crescente do direito público

e do direito privado. A legislação trabalhista e anti-monopólio consistem em exemplos

emblemáticos da diversificação funcional do Estado, ou ainda, como formula Habermas

(idem, p. 153-158), da “socialização do Estado e da estatização da sociedade”. A esfera

pública se vê assim repolitizada, e nessa repolitização progressivamente se desfaz a

antiga separação entre o público e o privado. Com isso, já no século XX, dá-se início a um

processo crescente de juridificação do trabalho e da circulação de mercadorias que

resulta no Estado de bem-estar social. Há aqui certa influência democrática sobre uma

economia com tendência oligopolista, que impediu a redução da renda do trabalhador.

O segundo processo está vinculado diretamente à crescente diversificação da

oferta de mercadorias, que por um lado se deve à inovação tecnológica aplicada à

produção, com um incremento na produtividade, por outro, à inovação tecnológica

aplicada aos tipos de produtos. Ao alargamento e diversificação da obra cultural, enquanto

efeito anexo do desenvolvimento tecnológico, corresponde a transformação de pessoas

reunidas num público que fazia uso cultural de sua razão na forma de esfera literária, em

um público de consumidores de cultura (Habermas, idem, p. 159-182). Pois os produtos

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da indústria cultural passam a introduzir-se na esfera privada, substituindo a esfera

literária pela esfera do tempo livre. A passagem de um público que discute a cultura para

outro que a consome, dilui a distinção entre esfera pública literária, na qual pensa-se a si

mesmo, a própria cultura, e esfera pública política, o contexto de ação por excelência.

Essa diluição só é possível mediante a integração entre informação e raciocínio, operação

esta feita pelas mídias de massas. Não resta à pessoa senão consumir a cultura

objetivada nas redações e conselhos executivos das empresas televisivas e de

propaganda. Aqui, a publicidade se converte em propaganda, e deste modo incorpora

interesses mais amplos presentes na economia e na política. A mudança na disposição

entre público e privado tem por efeito a mudança da função política da esfera pública, o

que consequentemente transforma a relação entre Estado e sociedade. Com o Estado

social, surge o tipo administrado de capitalismo e com ele uma democracia organizada.

Nessa sociedade, a esfera pública política do Estado social corresponde a uma forma

decadente da esfera pública burguesa do século XIX, o que significa dizer que a

discussão pública voltada para a decisão (nos salões, nos círculos literários, etc.) tornou-

se o acordo não-publicamente conquistado ou simplesmente imposto.

Assim, a tese de Habermas em torno à mudança estrutural da esfera pública

assenta sobre o diagnóstico de que a distinção característica da esfera pública liberal

burguesa entre público e privado se esvai simultaneamente à diversificação crescente do

mercado, das funções do Estado e da integração social. Isto é: da socialização do Estado

e da estatização da sociedade surge uma nova relação entre o público e o privado; surge

uma nova esfera, que "não pode ser considerada nem como puramente privada, nem

como autenticamente pública" (Habermas, 1978b, p. 159). Compreende-se dessa maneira

que Habermas analisa a trajetória da esfera pública burguesa como uma decadência;

devido às transformações inicialmente ocorridas na esfera econômica (oligopólios e

indústria cultural) o raciocínio livre voltado para a verdade da esfera liberal é substituído

pela propaganda e a democracia organizada de massas (idem, p. 183-188). A antiga

separação da esfera pública do sistema político se dissolve mediante a regulação social

do Estado de bem-estar e o poder de influência sobre os governos decorrente da

formação de oligopólios no mercado mundial. Em 1962, é a evolução específica do

capitalismo entre os séculos XIX e XX que acaba por constringir a esfera da política, a

esfera social e a esfera privada a uma racionalidade de tipo específico, a racionalidade

instrumental. O acento aqui, portanto, é dado ao capitalismo e seus efeitos sobre a

democracia.

Dessa trajetória da sociedade burguesa, resultam problemas específicos de

integração social e integração sistêmica, aos quais Habermas dedicou boa parte de seu

trabalho posterior à Strukturwandel der Öffentlichkeit. Em Legitimationprobleme im

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Spätkapitalismus (1978b [orig. 1973]), os problemas de integração decorrentes da

transformação da separação estrutural entre esfera privada e esfera pública passam a ser

analisados através de uma forma teórica que permanecerá ao longo de sua obra: a esfera

da integração entre sistema e mundo da vida. De 1962 à 1992 as mudanças também não

cessaram, apesar de as ideias gerais colocadas em 1962 permanecerem ao longo da

obra. Nesse ínterim, o que é constitutivo do ponto de vista teórico é a passagem do que

Habermas (1978b, p. 112-126) então identificava como sociabilidade através do uso

cultural da razão no interior da relação entre esfera privada e esfera social, ao conceito de

atividade comunicativa e agir comunicativo (Habermas, 1987, v. 01, p. 14-17, 110-117 e

283-347).

UMA ESTRUTURA FUNDAMENTAL DA SOCIEDADE: SISTEMA E MUNDO DA VIDA

– LEGITIMATIONPROBLEME IM SPÄTKAPITALISMUS (1973) E THEORIE DES

KOMMUNIKATIVEN HANDELNS (1981)

Em Legitimationprobleme im Spätkapitalismus (1978a [orig. 1973]), o diagnóstico

ainda vai da análise da lógica de evolução do capitalismo aos efeitos da mesma sobre a

democracia. Nesse estudo, Habermas (idem, p. 11-19) introduz a diferenciação entre

sistema e mundo da vida como fundamento de seu diagnóstico de época, e é nessa

diferenciação que, anos depois e juntamente com estudos sobre teoria da comunicação,

repousa sua uma teoria geral da sociedade (Habermas, 1987, v. 1, p. 82-90 e v. 2, p. 125-

218). Tendo em vista que de 1973 (Habermas, 1978a, idem) a 1981 (Habermas, 1987, v.

2, idem) a construção dessa imbricação foi em diversos aspectos reformulada, a

formulação que figura em Legitimationprobleme possui aqui apenas intensão informativa2.

Retomando o conceito de sistema de Talcott Parsons e de Niklas Luhmann,

Habermas (1978a, p. 11 sq. e 1987, v. 2, p. 125-131 e 180-196) confere a ele um

significado próprio a partir de sua imbricação com o conceito de mundo da vida, que de

seu lado é retomado de Edmund Husserl, Alfred Schütz e Thomas Luckmann (Habermas,

1987, v. 2, p. 131-167). Se em Parsons e Luhmann a sociedade é tida, da perspectiva do

intérprete, como um sistema, em Habermas a sociedade é constituída pela imbricação

entre sistema e mundo da vida: o primeiro se refere aos sistemas funcionalmente

especializados (Estado e economia), o segundo ao conjunto de convicções básicas, tidas

como tácitas. A imbricação entre as duas dimensões é possível porque linguagem e

2 Em Theorie des Kommunikativen Handelns, Habermas aproxima sua interpretação de

sistema (Parsons e Luhmann) e mundo da vida (Husserl, Schütz e Luckmann) de uma intepretação da “teoria dos três mundos” de Karl Popper sob o registro da teoria da ação (Habermas, 1987, v. 1, p. 92-99 e v. 2, p. 131-140), aproximação esta inexistente em Legitimationprobleme im Spätkapitalismus (1978a).

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cultura perpassam tanto a dimensão do sistema como a do mundo da vida, pois

constituem o sistema de referência do entendimento.

De acordo com a intepretação de Reese-Schäfer (2010, p. 54-58), essa condição

implica afirmar que, se de um lado linguagem e cultura podem configurar um ponto de

partida universal para a crítica, por outro a crítica está limitada na exata medida em que,

enquanto elementos de fundo do mundo da vida, linguagem e cultura remetem ao “desde

já” pressuposto no entendimento (Habermas, 1987, v. 2, p. 131 sq.). Esse “pressuposto

desde já do entendimento” implica dizer que há um conjunto de convicções básicas que

compõem o mundo da vida - e por imbricação dialética, também o sistema - que não

podem ser problematizadas, pois se inscrevem tacitamente no processo de entendimento.

Não podemos desfazer-nos de pressupostos contidos na linguagem e na cultura

justamente porque tentamos tornar inteligível a sociedade através da criação de uma

linguagem (Reese-Schäfer, idem).

A partir de uma reconstrução da fenomenologia do mundo social de Schütz e

Luckman com base no processo de entendimento, Habermas define três aspectos gerais

do mundo da vida: primeiro, o mundo da vida compõe a existência social “sob o modo da

evidência”, de maneira tática, e como “mundo da vida, é simplesmente impossível que ele

se torne problemático”, mas “pode desaparecer” (Habermas, 1987, v. 2, p. 144). Segundo,

enquanto “certeza” intrínseca à “intersubjetividade da intercompreensão mediada pela

linguagem”, o mundo da vida “está acima de qualquer tipo de dissenso”, pois repousa

sobre um saber – não um conhecimento – formado intersubjetivamente através de

experiências passadas que validam a “capacidade de agir sobre o mundo”, e uma vez

adquirida essa capacidade, ela “permanece enquanto princípio” – enquanto “disposição

natural” de uma “reserva de saber” do “pensamento” (idem, p. 145). E terceiro,

diferentemente das situações que compõem a vida social, o mundo da vida não possui

fronteiras, pois é constituído por uma reserva de saber imanente a cada mudança de

situação, sendo, por definição, irredutível – “O mundo da vida define situações de ação

como uma espécie de contexto pré-compreendido, mas que não pode ser invocado”

(idem, p. 146).

A existência do mundo da vida só é possível mediante a mediação da linguagem e

da cultura, posto ser a partir delas que o processo de entendimento se realiza, i.e que a

intersubjetividade é constituída. E linguagem e cultura cumprem essa função fundamental

no processo de conhecimento através da transmissão de um conjunto de convicções

básicas para todo indivíduo capaz de agir e falar. Isso quer dizer que Habermas, formula

Reese-Schäfer (2010, p. 55), ancora sua concepção de mundo da vida no “sempre já” da

“hermenêutica moderna [...]: em todo processo de entendimento temos sempre já que

fazer pressuposições” contidas na própria estrutura da linguagem, pois é ela que torna

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possível o entendimento, i.e a própria cultura. Isso quer dizer que através desse “sempre

já”, “[...] Estamos sobre os ombros daqueles que se entenderam antes de nós” (idem,

ibidem). O entendimento consiste, portanto, no medium de direção do mundo da vida, do

que se deduz que a comunicação é o que torna possível a integração social (Habermas,

idem, p. 149 sq.). A sociedade civil, com suas associações, movimentos sociais, etc., é

composta por um tipo de atividade social cuja racionalidade está mais próxima do mundo

da vida do que do sistema, na medida em que nela prevalece o agir orientado para o

entendimento em sentido amplo. Por isso Habermas (2003b, p. 99-106) afirma que na

sociedade civil, o medium de direção é a solidariedade. Compreende-se assim que a partir

do conceito de mundo da vida temos os aspectos gerais do tipo mais elementar de

integração social: a integração pela linguagem. Nesse contexto, e por definição, as

potencialidades de integração são abertas e irredutíveis, cujos limites são conferidos pela

a própria linguagem. E isso na exata medida em que, no mundo da vida, a integração pela

linguagem está racionalmente orientada para o entendimento. No âmbito da ação política,

isso significa que, antes de qualquer coisa, é preciso um entendimento prévio entre os

participantes da ação.

Entretanto, justamente em virtude da natureza elementar da integração pela

linguagem, outros tipos de medium de direção podem fazer-se valer na integração social:

é o que Habermas designa por integração sistêmica, que tem por medium de direção o

poder (Estado) e o dinheiro (economia). A “disjunção” entre integração social (no mundo

da vida) e integração sistêmica está no fato de que, enquanto a primeira está

racionalmente orientada para o entendimento (racionalidade comunicativa), a segunda

está racionalmente voltada para meios e fins utilitários (racionalidade instrumental).

Mediums como o dinheiro e o poder partem de obrigações empiricamente motivadas; eles codificam o comércio racional com vistas para um fim com valores quantificáveis e calculáveis e tornam possível uma influência estratégica generalizada sobre as decisões de outros participantes da interação, contornando os processos de formação de um consenso pela linguagem. Não somente eles simplificam a comunicação linguística, mas também substituem-na através da generalização simbólica dos danos e das indenizações; o contexto do mundo da vida, no qual os processos de intercompreensão estão sempre inseridos, é desvalorizado no contexto de interações conduzidas graças aos mediums [poder e dinheiro]: não precisamos mais do mundo da vida para a coordenação de ações. Os sub-sistemas sociais diferenciados graças a mediums como esses podem se tornar autônomos em relação a um muno da vida relegado ao mundo ambiente do sistema. A recomposição da ação a partir de médiuns reguladores aparece então sob o ângulo do mundo da vida como uma maneira de amortecer o custo da comunicação e de seus riscos, como uma maneira de condicionar as decisões com margens de contingência maiores, e neste sentido como um

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tecnicização do mundo da vida. (Habermas, 1987, v. 2, p. 200-201).

Direcionando o mundo da vida através dos mediums dinheiro e poder, as

possibilidades de entendimento contidas nos processos intuitivos de intercompreensão

são reduzidas a um critério cognitivo-instrumental: a intersubjetividade é colonizada pelo

critério teleológico de eficácia conforme meios e fins, no sentido utlitarista. O agir

comunicativo orientado para a intercompreensão é subsumido (mediante a regulação

estatal da vida social, a administração empresarial, etc.) pelo agir instrumental orientado

para o sucesso e mediatizado pelo poder e pelo dinheiro. “A mediatização da vida vivida

então toma a figura de uma colonização” e a reificação, nesse sentido, de uma “patologia

do mundo da vida sistematicamente induzida” (Habermas, 1987, v.2 p. 216).

Em outras palavras, a racionalidade de integração do mundo da vida difere

estruturalmente da dinâmica de integração do sistema, de modo que as estruturas de

funcionamento do sistema podem reificar as estruturas simbólicas do mundo da vida,

distorcendo-as sob a forma de subsistemas crescente e funcionalmente diversificados e

autônomos. Essa distorção se dá por meio da mediação do poder e do dinheiro. Como

uma expressão da mesma, há a disjunção característica da democracia burguesa entre

direitos garantidos universalmente (igualdade de direitos) na esfera do Estado e sua não

correspondência a condições efetivas de participação (desigualdade de condições de

vida). A colonização do mundo da vida pelo sistema consiste precisamente no diagnóstico

de época elaborado em a teoria do agir comunicativa.

Compreende-se assim haver uma espécie de crescendum na trajetória intelectual

de Habermas, pois o sentido do diagnóstico de 1962 (Habermas, 1978b) – o aumento de

conformação social e política da economia e do Estado no capitalismo administrado –

permanece na tese de colonização do mundo da vida. Digo bem “sentido”, pois a

fundamentação passa por incorporações crescentes: a distinção entre Estado e

economia, de um lado, e esfera privada, de outro (1962), assume a forma de sistema e

mundo da vida em 1973 (Habermas, 1978a), mas, até então, ainda permanecia

direcionada apenas pelo conceito de razão instrumental; é somente em 1981 (Habermas,

1987) que a fundamentação na teoria da comunicação é formulada e com ela introduzido

o conceito de razão comunicativa no diagnóstico de época. Como expressão que

caracteriza esse crescendum, temos a passagem de uma crise de legitimação decorrente

da mudança estrutural da esfera pública (Habermas, 1978b [orig. 1962]) e da

complexificação crescente das sociedades no capitalismo avançado (Habermas, 1978a

[orig. 1971]) para a colonização do mundo da vida pelo sistema (Habermas, 1987 [orig.

1981]) – com a particularidade de que o sentido de cada uma dessas formulações

permanece, grosso modo, o mesmo. Na trajetória de Habermas, a teoria crítica em muitos

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aspectos influenciada por Adorno (Rolf Wiggershaus, 2010, p. 671 sq.), num primeiro

momento incorporou e elaborou uma concepção própria do conceito de sistema (Parsons

e Luhmann) e de mundo da vida (Husserl, Schütz e Luckmann), e num segundo

momento, introduziu nessa concepção própria a teoria da comunicação (Peirce e Frege)

sob o registro de uma teoria da ação (Weber). É somente a partir de então, isto é, a partir

do momento em que já havia formulado uma teoria geral da sociedade, que Habermas

(2003b e 2010 [orig. 1992]) se dirigiu para uma teoria da democracia (Rousseau e Kant).

A GUINADA LINGUÍSTICA EM THEORIE DES KOMMUNIKATIVEN HANDELNS

(1981): AÇÃO VOLTADA PARA O ENTENDIMENTO, SITUAÇÃO IDEAL DE FALA E

RAZÃO COMUNICATIVA

No quadro geral de uma teoria da ação, falar em integração social a partir da

comunicação significa dizer que sociologicamente existe um tipo específico de ação na

vida social dotado de uma racionalidade e um sentido específicos: que Habermas

denomina agir comunicativo, caracterizado por sua orientação racionalmente ao

entendimento, i.e um tipo de razão constitutiva da integração social (Habermas, 1987, v.

01, p. 110-117 e v. 2, p. 87 sq.). Somente são racionais pessoas capazes de agir e de

falar e, nessa medida, a primeira pergunta a ser respondida é a de saber em que medida

pode-se considerar racional uma pessoa, sua fala e sua ação em uma situação

específica. A concepção de racionalidade comunicativa elaborada por Habermas não é

definida por meio dos três critérios comumente utilizados para definir o que é racional, o

que possui uma racionalidade insuficiente ou que é irracional – a saber: se uma ação e a

expressão simbólica que a representa, incorpora um conteúdo criticável, se pode ser

fundada no mundo objetivo e se conserva um conteúdo idêntico quando transmitida, isto

é, se é dotada de uma “pretensão trans-subjetiva à validade” (Habermas, 1987, v. 1, p. 26

– p. 24-26).

A fundação racional da teoria do agir comunicativo está ancorada, como

argumenta Reese-Schäfer (2010, p. 21-31), em uma teoria em dois níveis do consenso da

verdade. Esses níveis do consenso distinguem, por um lado, o conteúdo objeto de

consenso, por outro, o procedimento, de aceitação compartilhada, que ratifica o conteúdo

consensuado. No âmbito específico dessa teoria, o conteúdo objeto de consenso é a

verdade em relação a algum estado. Para que a um conteúdo específico seja atribuída a

imputação de verdadeiro, é preciso, num momento ainda de comprovação, que haja

consenso não em relação ao objeto sob indagação, mas sobre as condições formais da

demonstração, e são elas que conferem veridicidade aos resultados. E na medida em que

tais condições formais de demonstração são discutíveis e que não prescindem do acordo

entre as partes, exige-se, pelos menos desde uma perspectiva ideal, que o consenso seja

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universal, para que os procedimentos tidos por válidos não sejam válidos apenas para

alguns participantes. Isso evita uma relatividade quanto à validade dos resultados.

Dessa maneira, ao invés de apenas partir da pressuposição de uma ontologia do

mundo objetivo, o mundo passa a ter objetividade na medida em que passa a valer “como

um e mesmo mundo para uma comunidade de sujeitos capazes de falar e agir”

(Habbermas, 1987, v. 1, p. 29). Não partir de uma ontologia se justifica aqui pelo fato de

que a simples possibilidade de haver comunicação pressupõe um entendimento prévio

sobre o que acontece ou deve acontecer no mundo. Aqui estamos no pano de fundo da

objetivação: a possibilidade de comunicação pressupõe uma reserva de saber tácito que

funda a possibilidade de interpretação do mundo, que está posto desde já antes de

qualquer objetivação, de qualquer problematização possível. Esse saber garante um

contexto de vida comum, que só é possível porque intersubjetivamente partilhado (mundo

da vida).

Nesse sentido, se a pretensão à verdade é mediada pelo consenso e pelo

procedimento, torna-se possível um conceito de racionalidade fundado no entendimento,

mas um conceito de racionalidade que não se orienta pela distinção estrita entre correto e

falso, pois está fundado no consenso e no procedimento, o que implica dizer o conteúdo

hoje tido por verdadeiro pode revelar-se insuficiente num momento e situação posteriores.

Isto é, o conceito de racionalidade comunicativa comporta ou prevê o falibilismo da razão.

A presunção de objetividade total, e com ela também o princípio de Absoluto, é assim

substituída por uma objetividade possível, que produz um consenso em torno à verdade,

mas que, no interior da prática comunicativa que possibilitou esse consenso, está

consciente da crítica ulterior. Isso significa igualmente que para que uma ação seja

racional, não é necessário haver consenso, pois “não é apenas na aptidão de promover

um consenso ou de agir de forma eficiente que reside a racionalidade das pessoas”

(Habermas, 1987, v. 1, p. 31). Desse modo, a racionalidade comunicativa comporta, por

um lado, “a percepção descentrada das coisas e dos eventos assim como a faculdade de

dispor dela” – tal como pressuposto nos outros três tipos de racionalidade –, por outro,

amplia o espectro de avaliação racional ao fundar-se no “entendimento intersubjetivo à

respeito dessas coisas e eventos” (idem, p. 30). Nisso consiste precisamente a teoria da

verdade de dois níveis de Habermas, na qual está fundada a teoria do agir comunicativo –

e também, como veremos, a sua teoria da democracia.

Considerando que a “racionalidade que habita a prática comunicativa se estende

sobre um amplo espectro”, Habermas elabora um conceito de racionalidade capaz de dar

conta das “diferentes formas de argumentação” e das “tantas possibilidades de perseguir

o agir comunicativo por meios reflexivos” (idem, ibidem). Em outras palavras, Habermas

funda sua teoria da sociedade num conceito de racionalidade capaz de dar conta da

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prática social cotidiana, que pode não estar mediada por critérios de funcionalidade, pela

eficácia ou justeza normativa dos meios empregados mediante uma pretensão de

sucesso ou um objetivo específico, no sentido de utilidade.

Assim, Habermas (1987, v. 1, p. 100-117) diferencia quatro tipos de agir, através

das relações “ator-mundo”: o agir teleológico, ou estratégico, no qual o ator é remetido

apenas ao mundo objetivo (todos os enunciados tidos por verdadeiros, imediatamente

acessíveis por todos aqueles capazes de agir e falar) e cuja racionalidade é avaliada por

meio dos critérios de eficácia e sucesso, sendo sua pretensão de validade a verdade, no

sentido de utilidade (adequabilidade dos meios conforme fins pretendidos – racionalidade

cognitivo-instrumental); o agir regulado por normas, que tem sua racionalidade medida

conforme a justeza normativa e sua pretensão à validade na correção normativa

(racionalidade moral-prática), aqui o ator está referido tanto ao mundo social (aspectos

normativos legítimos da vida social) quanto ao mundo objetivo; o agir dramatúrgico, no

qual o ator está referido ao mundo subjetivo e ao mundo objetivo, tem sua racionalidade

avaliada pelo sentimento pretendido e o sentimento provocado pelo ator no contexto

específico de uma representação cênica ou pictórica, sendo sua pretensão de validade a

veracidade (racionalidade estético-prática); e por último, o agir comunicativo tem sua

racionalidade mediada pela discussão e sua pretensão de validade é o entendimento

recíproco entre os participantes da comunidade de comunicação (racionalidade

comunicativa) e se remete reflexivamente aos conjunto dos três mundos, o objetivo, o

social e o subjetivo. De maneira esquemática, pode-se afirmar que essa categorização

das formas de agir que compõem a sociedade e a maneira como estão aqui dispostas

correspondem à maior ou menor proximidade de cada um deles ao conjunto de contextos

de interação altamente diferenciados que compõem a sociedade. Isso significa que eles

estão localizados nas intersecções entre sistema e o mundo da vida, já que para nosso

autor, a relação entre essas duas esferas é constitutiva. Nesse sentido, os tipos de agir e

suas racionalidades respectivas podem ser representados da seguinte maneira:

Quadro 1: estrutura da sociedade e tipos de agir

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Ao contrário dos outros tipos de agir, no agir comunicativo a validade de uma

proposição não se remete diretamente a um mundo específico – mundo objetivo, mundo

social e mundo subjetivo; nele, o entendimento é direto, mas a remissão ao mundo é

indireta, uma vez que o ato de fala implica a contestação por outros participantes da

interação quanto à validade do que foi dito. Isso implica uma relativização do conteúdo

enunciado que pretende à verdade, relativização que é parte intrínseca do agir, posto ser

derivada da condição primeva de reconhecimento, enquanto atores capazes de agir e

falar. Assim, Habermas (1987, v. 1, p. 114-117) distingue quatro pretensões à validade no

agir comunicativo: inteligibilidade/entendimento e a dos demais tipos de agir, por remissão

reflexiva a seus respectivos mundos – verdade, correção normativa e veracidade. Não se

trata aqui, portanto, apenas de execução, como no contexto dos outros tipos de agir, mas

de comunicação - e indiretamente de execução, de uma execução, aliás, possível, não

presumida.

A possibilidade de crítica e de aceitação implica uma maior complexidade, e nessa

medida é mais adequada a relações sociais tal como se dão pro verus do que tipos de

agir que pressupõem a "intervenção direta": "[...] A referência reflexiva indireta ao mundo

possibilita, ao invés da postulação imediata de normas ou da intervenção direta, a validez

de abordagens diversificadas que, de outra forma, seria desconsideradas ou suprimidas"

(Reese-Schäfer, 2010, p. 48). Tendo em vista que o agir comunicativo, de seu lado,

refere-se reflexivamente a todos os três mundos aos quais correspondem esses tipos de

agir, para que sua avaliação seja possível, é necessário primeiro encontrar um tipo de

pretensão à validade que caracterize um tipo de racionalidade que represente essa

remissão: a remissão reflexiva aos outros tipos de agir se deve ao fato de que, como

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pretensão à validade, a inteligibilidade/entendimento remete a uma premissa racional para

que sejam possíveis as outras pretensões à validade.

O tipo comunicativo de racionalidade é universal na medida em que a linguagem

perpassa todos as constelações da vida humana. Sua vantagem reside justamente nessa

universalidade: o critério de validade racional da comunicação, o entendimento, não reduz

a avaliação da ação à execução. Isso abre caminho para avaliar a validade de qualquer

forma de agir, pois são consideradas racionais, por definição, todas aquelas interações

das quais tomam parte pessoas capazes de agir e falar. A demonstração da validade

universal da racionalidade comunicativa consiste precisamente no objetivo principal de

sua teoria do agir comunicativo. É somente a partir disso que Habermas defende a tese

de que as patologias da modernidade advêm da intervenção direta e crescente de uma

racionalização de tipo cognitivo-instrumental no mundo da vida – através do sistema

(administração estatal e do mercado) –, levando a uma crise de legitimação (restrição da

liberdade e perda de sentido) devido à incompatibilidade entre as racionalidades que

gravitam entre essas duas esferas da sociedade, o sistema e o mundo da vida (cf. tópico

anterior).

Uma vez formulada essa fundação racional, Habermas então distingue entre um

consenso verdadeiro e um consenso falso com base em um conceito próprio, a situação

ideal de fala. Quatro critérios condicionadores se aplicam ao conceito: 1) os participantes

potenciais em um discurso devem ter igual oportunidade de atos de fala, no sentido de

intervenção e réplica; 2) essa oportunidade tem de ser de tal modo igual que permita

salvaguardar-se contra prejulgamentos; 3) todos os participantes têm de ter igual

oportunidade de atos representativos, no sentido de manifestar sentimentos, posições e

desejos; e 4) admitem-se no discurso apenas participantes que tenham iguais condições

de instituir princípios reguladores, como proibir, permitir, opor-se, julgar, mandar, inquirir,

de fazer promessas e de retirá-las, pois somente a reciprocidade plena das expectativas

de comportamento assegura uma intervenção dos participantes mais direcionada aos

aspectos fáticos da situação de fala, de modo a suspender as coações da realidade, de

modo que seja possível "passar para a dimensão comunicativa do discurso, dimensão

livre da experiência e desobrigada da ação3".

3 Walter Reese-Schäfer cita diretamente o trecho no qual Habermas define extensamente cada

um desses quatro critérios reguladores do conceito de situação ideal de fala – ver: Habermas, 1984, "Vorstudien und Ergänzungen zur Theorie des kommunikativen Handelns", p. 177ss, apud Reese-Schäfer, 2010, p. 24-25. Eles se encontram aqui resumidos. E é de interesse notar que tais critérios consistem no desdobramento da formulação de 1981, presente em seu Theorie des Kommunikativen Handelns: “Se considerarmos o discurso argumentativo enquanto processo, trata-se de uma forma de comunicação improvável, pois tendencialmente vinculada a condições ideais. É nesta ótica que tentei indicar, enquanto determinações de uma situação ideal de fala, as pressuposições comunicativas universais da argumentação. Tomada isoladamente, essa proposição pode ser insuficiente; mas o que tanto hoje quanto ontem me

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Os critérios reguladores que dão forma ao conceito de situação ideal de fala estão

fundamentados no princípio de simetria. A eles correspondem “a esfera pública, a

distribuição equitativa dos direitos de comunicação, a autenticidade e a não violência”,

enquanto “precondições para uma compreensão procedimental da verdade” (Reese-

Schäfer, 2010, p. 25). É a conjunção entre essas quatro pré-condições e os quatro

critérios condicionadores da situação ideal de fala que permitem uma compreensão

procedimental da verdade – procedimental porque argumentativa. Evidentemente que tais

critérios condicionadores jamais se encontram preenchidos em situações empíricas. A

situação ideal de fala fornece uma ideia contrafática da situação empírica, na medida em

que através da inclusão de um critério externo de avaliação, e retrospectivamente, seja

possível a compreensão da situação empírica, se o discurso dos participantes, e o nosso

próprio, enquanto intérpretes, foi proferido de forma isenta de coações ou não (Habermas,

1987, v. 1, p. 39 sq. e 127-135).

Nesse sentido, portanto, a ideia de verdade sobre a qual tanto a teoria da ação

comunicativa quanto a teoria da democracia de Habermas estão fundadas, pretende à

validade por meio de uma combinação específica entre o procedimento argumentativo e o

conteúdo objeto de discussão: o procedimento abstrato formalmente consensuado entre

os participantes da interação e a opinião dele derivada, que imprime à realidade uma

verdade, sendo esta retrospectivamente objeto de discussão e de crítica possível,

desprovendo-a de uma justificação absoluta enquanto critério necessário de validação, i.e.

de legitimação. Daí em seu projeto de conhecimento - e de sociologia, portanto -,

Habermas igualmente renunciar a um sistema de pensamento, sem contudo renunciar,

em outra medida, ao procedimento consensuado na comunidade científica em torno à

pretensão de validade. Em última instância, isso significa que na teoria da ação

comunicativa e na teoria da democracia de Habermas, a verdade deixou de ser um

conceito substancial da tradição, tornando-se um conceito de procedimento, e nessa

medida, em última instância falível, provisório e desvinculado da natureza, isto é, a teoria

pretende uma fundação pós-metafísica.

Como prova suficiente da verdade, temos, portanto, que considerar a

aceitabilidade racional das condições mais ideais possíveis da comunicação. E o que

torna essa formulação do conceito passível de utilização para a teoria social e a teoria

política é, num sentido imediato, a evidência factual de que a aproximação do mundo está

parece justo, [1] é a intensão de reconstruir as condições da relação simétrica, condições que todo locutor competente é obrigado de pressupor como estando tendencialmente preenchidas [...] Aqueles que tomam parte na argumentação [2] são obrigados a pressupor geralmente que a estrutura de sua comunicação [...] exclui todo aspecto constringente [...] toda constringência com exceção do melhor argumento [...] Sob este aspecto, [3 e 4] a argumentação pode ser concebida como uma busca por meios reflexivos da atividade orientada para a intercompreensão” (Habermas, 1987, v 1, p. 41).

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atravessada pela linguagem. O consenso em torno à verdade consiste, assim, apenas no

retrato de um estado atual do conhecimento, permanentemente falível, o que é diferente

de instável. No sentido de um projeto de teoria social crítica, cuja esfera de validade

implica a pretensão à emancipação possível em relação ao presente histórico, a verdade

figura além da situação empírica possível, sendo, para todos efeitos, um futuro possível e

passível de disputa no presente.

Como argumento Laurent Lemasson (2008, p. 40-42), enquanto interesse teórico,

Habermas pretende combinar a hermenêutica histórica com a epistemologia analítica4

através da substituição da natureza pelo entendimento, de modo que o homem possa

reger as leis para si sem qualquer tipo de limitação, sejam elas advindas do relativismo ou

da essencialização5. Enquanto interesse prático, a ausência de uma fundação ontológica,

natural, abre caminho para entretecer politicamente a tolerância vis-à-vis todas as formas

de vida culturais e todos os seres humanos, tolerância possível mediante a abertura

proporcionada pela comunidade ideal de fala, isto é, pela universalidade ideal da

linguagem. Diante disso, compreende-se melhor o potencial universalizante que

Habermas atribui aos direitos humanos, de tal maneira a poder constituir o fundamento de

um modelo democrático de esfera pública capaz de fornecer a engenharia institucional

para a diversidade (cosmopolita) das sociedades democráticas – pelo menos as

ocidentais.

A VOLTA DA INTUIÇÃO EM FAKTIZITÄT UND GELTUNG E DIE EINBEZIEHUNG DES

ANDEREN (1996): UM MODELO DELIBERATIVO DE DEMOCRACIA FUNDADO NO

PRINCÍPIO DE DISCUSSÃO

A crise de legitimidade (direito) e de legitimação (Estado) diagnosticada por

Habermas, que entre 1962 (Habermas, 1978b, p. 189 sq.), 1973 (Habermas, 1978a) e

1981 (Habermas, 1987, v. 2, p. 168 sq.) resulta na colonização do mundo da vida, levou a

uma filosofia do direito, que de seu lado, exige uma reconstrução do direito (Habermas,

2003b e 2010; 2007). Tal reconstrução, evidentemente, Habermas a empreende a partir

de uma derivação comunicativa da teoria da democracia. Com base em seu conceito de

situação ideal de fala, nosso autor introduz o princípio do discurso, cuja simetria

4 A preocupação com a incompatibilidade epistemológica entre a hermenêutica histórica e a

epistemologia analítica aparece primeiramente na obra de Habermas em “Zur Logik der Sozialwissenschaften”, obra que reúne textos redigidos entre 1967 e 1982 (Habermas, 2005) – ver no capítulo I, p. 07-25. 5 Em seu artigo “La démocratie radical de Jürgen Habermas”, Lemasson (2008) empreende

uma crítica metafísica e declaradamente liberal à teoria da democracia de Habermas, que justamente pretende uma fundação pós-metafísica e ancorada na neutralidade fornecida pela situação ideal de fala e seu princípio do discurso. Sua intepretação então perde força na medida em que empreende uma crítica externa ao pensamento de Habermas, o que consequentemente levanta a suspeita de uma crítica de fundo ideológico.

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estabelece que as normas de ação válidas são aquelas de cuja formulação puderam

participar todos aqueles aos quais elas se aplicam, sendo o produto de um acordo.

Através da aplicação da simetria do princípio do discurso ao direito, Habermas lança do

direito como medium de definição para a reconstrução do sistema dos direitos e dos

princípios do Estado de direito e defende a tese de que, no exercício legítimo do poder,

Estado de direito e democracia pressupõem-se mutuamente e, nessa medida, devem ter

sua relação efetiva fundada de maneira simétrica (Habermas, 2010, p. 17-64).

Para estabelecer uma concepção de direito que possibilite a simetria desejada

entre democracia e Estado de direito no exercício do poder, Habermas (idem, 113-168 e

169-240) comprova uma concorrência interna entre direitos humanos (individuais) e

soberania do povo: há um déficit de racionalidade no interior da dogmática jurídica, no que

tange à “relação não-esclarecida entre direito subjetivo e público”, e na tradição do direito

racional, no âmbito do aspecto concorrencial entre direitos humanos e soberania do povo

tal como traduzida no processo de auto-legislação, que revela “que até agora não se

conseguiu harmonizar conceitualmente e de modo satisfatório autonomia privada e

pública” (idem, p. 115). Para o autor, a doutrina positiva do direito ao mesmo tempo em

que pretende assegurar, através do direito objetivo, a efetividade do direito subjetivo, elo

este que possui um sentido moral explícito, ela se desvincula de todo conteúdo moral no

momento da regulação da relação entre autonomia privada e autonomia pública. Em

outras palavras, a realização fática dos direitos humanos só é possível mediante a

constituição de condições de vida menos desiguais que permitam o exercício amplo da

soberania do povo. Nesse contexto, a validade jurídica dos direitos humanos não se torna

fática porque as condições de vida sob as quais é exercida a soberania do povo, são

desiguais.

A simetria que Habermas julga necessária se justifica quando considerada a

situação pós-metafísica que caracteriza as sociedades pluralistas contemporâneas, cuja

alta complexidade designa uma ancoragem sociológica da sociedade em formas culturais

e economicamente de vida diversificadas, impedindo que uma concepção de “vida boa”

seja compartilhada por todos. A intensificação dos processos de globalização constituem

os principais impulsos dessa pluralização social, cultural e econômica (Habermas, 2002 e

2003a). A ausência de uma concepção comum de “vida boa”, porque vinculada a uma

forma cultural e econômica de vida particular, dificulta o processo normativo, no sentido de

pessoas que buscam compreender-se mutuamente com vistas à definição de normas que

regulam sua vida em comum. Compreende-se assim que o déficit de racionalidade para a

fundação de normas legítimas (Estado) decorre da alta diversificação da sociedade

(democracia), da impossibilidade de haver uma concepção de “vida boa” compartilhada

entre todas as formas de vida que compõem a vida social (Habermas, 2007, p. 21-33 e

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2010, p. 48-64). Na falta de formas de vida mais homogêneas, Habermas argumenta que

o que há de comum entre todas elas é que são estabelecidas através da comunicação.

Surge assim um elemento comum a todas as formas de vida e, nessa medida, neutro

diante das concepções de “vida boa” particulares a cada uma delas, a comunicação,

sobre o qual pode repousar o processo normativo: “O “bem transcendente” que falta só

pode ser compensado de forma “imanente”, com base no caráter inerente da práxis de

reuniões em conselho [...] A distribuição equitativa de liberdades comunicativas no

discurso e a exigência de sinceridade em favor do discurso significam direitos e deveres

argumentativos, e de forma alguma morais” (Habermas, 2007, p. 57-58-61).

Nesse sentido, a situação de fala composta por todos aqueles interessados na

definição de normas que lhe disserem respeito pode constituir a engenharia mais

elementar para a fundação de normas legítimas, uma vez que nela pessoas com formas

culturais de vida diferentes e, consequentemente, com concepções de “vida boa” distintas,

são reunidas e poderão encontrar um acordo mediante a discussão racional. A partir do

procedimento argumentativo e da pretensão criticável à validade do conteúdo de uma

expressão, se poderia atender à premissa de que uma “lei é válida no sentido moral

quando pode ser aceita por todos, a partir da perspectiva de cada um” (idem, p. 46). Isso

significa que, conforme sugere Habermas, a crise de legitimação que caracteriza nossa

época exige uma reformulação democrática das regras do jogo democrático: a

comunicação (princípio de discussão) fornece um fundamento racional (universalmente

válido) para instituir politicamente direitos iguais à comunicação e participação na

definição de normas e tomadas de decisão. O reconhecimento recíproco de tais direitos

nada mais é senão o pressuposto normativo para a auto-realização e a auto-

determinação. Em outras palavras, o reconhecimento mútuo dos direitos humanos

constitui o pressuposto normativo para a realização da soberania popular. Compreende-

se a partir disso que direitos humanos e soberania popular se pressupõem mutuamente

(Habermas, 2010, p. 116-138).

Tendo em vista que a preocupação central de Habermas são as condições

efetivas de vida (e necessárias) para a fundação legítima de normas na democracia,

pressupõe-se uma ancoragem moral, válida universalmente. Essa ancoragem encontra-

se na orientação para o entendimento e no pressuposto do reconhecimento mútuo de

igual direito à comunicação e participação, isto é, na derivação política do tipo

comunicativo de agir. A particularidade das recomendações dessa moral está em sua

neutralidade (princípio de discussão) diante de questões éticas, a neutralidade diante da

questão do “bem”. As implicações éticas dessa moral, portanto, derivam da convenção

(Lemasson, 2008, p. 43). “A política deliberativa obtém sua força legitimadora da estrutura

discursiva de uma formação da opinião e da vontade, a qual preenche sua função social e

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integradora graças à expectativa de uma qualidade racional de seus resultados”

(Habermas, 2003b, p. 27-28).

A teoria da democracia de Habermas pressupõe a institucionalização de

procedimentos para a tomada de decisão que possibilitem que as transformações e

diversificação da auto-compreensão da sociedade (capitalismo e globalização) sejam

incorporadas sistematicamente pelas instituições reguladoras. Trata-se, em sentido estrito,

da institucionalização de uma concepção reflexiva de transformação, que seja de uma só

vez flexível o bastante para traduzir em normas as transformações da auto-compreensão

da sociedade e não restringir o conteúdo ético das normas a uma concepção fixa de “vida

boa”, i.e de verdade. Trata-se, em sentido preciso, da aplicação dos dois níveis da teoria

do consenso da verdade a um paradigma prodecuralista de processo deliberativo: na

dimensão do procedimento, define-se que as normas devem ser objeto de um debate

aberto, do qual todos aqueles que dela se sentirem implicados tenham o igual direito à

participação em sua formulação, de modo que seja possível que o conteúdo explícito da

norma seja objeto de consenso entre os interessados – dimensão do conteúdo objeto de

consenso. A partir da mudança no procedimento para a tomada de decisão, Habermas

pretende conter as implicações para o acesso igual à justiça oriundas da contradição entre

igualdade de direitos e desigualdade das condições efetivas de vida.

Compreende-se assim que devido à desigualdade das condições de vida, as

posições de poder tendem a ser assimetricamente distribuídas na sociedade, o que

significa dizer que a dominação política dos homens sobre os homens acaba por

conformar sociologicamente estatutos qualitativamente diferenciados de realização das

liberdades subjetivas. O problema entre facticidade e validade no interior do direito liberal

se deve, pois, ao fato de que historicamente ainda não surgiu uma forma correspondente

de Estado democrático de direito (Lemasson, 2008, p. 60-62). O problema do Estado de

bem-estar social está em sua insuficiência, pois nele o exercício das liberdades subjetivas

ainda não está subordinado à idéia de justiça social como concebida no direito civil, mas

está condicionado pela garantia de condições mínimas de vida. E isso é insuficiente, na

medida em que há uma tendência estrutural de proporcionalidade entre assimetria na

apropriação da riqueza socialmente gerada e ocupação das posições de poder. E onde há

assimetria na ocupação de posições de poder, tende a haver privilégios, i.e condições

desiguais de acesso à justiça (Habermas, 2003b, p. 59-72 e 127-146).

Se a resposta política de Habermas a esses problemas parte da necessidade de

ampliação do espectro de participação e influência civil nas decisões políticas,

compreende-se melhor o lugar constitutivo atribuído à esfera pública em seu modelo

deliberativo de democracia. A esfera pública consiste na dimensão institucional do mundo

da vida, o que depois da guinada linguística nos anos 1970, significa que ela é uma

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estrutura comunicativa cuja ancoragem no mundo da vida se dá através da sociedade civil

(Habermas, 2003b, p. 91 sq.). Através da intermediação da sociedade civil, com suas

organizações, movimentos, associações, etc., problemas sociais assimilados na esfera

privada ganham ressonância na esfera pública. Nesse modelo deliberativo de democracia,

portanto, as decisões tornam-se legítimas na medida em que assimilado – ou mais

precisamente, uma vez regulado comunicativamente – um problema social na esfera

privada e amplificado na sociedade civil, esse problema atravessa os procedimentos civis

e políticos da democracia e do Estado de direito e se introduz no parlamento ou nos

(idem, p. 173-192).

Caberia então à esfera pública e à sociedade civil difundir os problemas sociais.

Em vista disso, pode-se afirmar que o processo político-deliberativo é definido por uma

ampla discussão da qual participam com iguais direitos à comunicação todo aquele

cidadão que se sente interessado pelo problema em questão. Através do debate público,

os cidadãos identificariam os problemas e traduziriam os mesmos em ações com vista a

exigir do poder público uma solução. A deliberação e a persuasão mútua dos cidadãos

seriam assim um processo permanente, dentro e fora das instituições políticas, sendo o

voto um momento específico de um processo mais amplo.

A concepção de esfera pública contida na democracia deliberativa busca, então,

abrir espaço para influências sobre uma administração e um parlamento que têm sido

influenciados excessivamente por aqueles cuja atuação no conjunto da sociedade está

dirigida para a reprodução das estruturas da esfera pública atualmente existente, isto é,

por aqueles que gerem e tomam as decisões que regulam os sistemas funcionalmente

especializados. Dito de outra maneira: na medida em que, conforme a concepção de

Habermas, a esfera pública não deve mais ser regulada pelo direito privado, a influência

dos atores dos sistemas funcionalmente especializados sobre o Estado de direito diminui

– ou deve diminuir – na mesma medida em que aumenta – ou deve aumentar – a

influência da sociedade civil sobre o mesmo. Isso permitiria que através da esfera pública

a sociedade civil pudesse dialogar e pressionar o Estado de direito com o propósito de

reivindicar uma nova, uma alteração ou uma reafirmação dos direitos e da regulação que

rege tanto a economia quanto a preservação dos direitos subjetivos e objetivos

institucionalizados.

De certa forma, a democracia deliberativa busca criar e assegurar

institucionalmente uma esfera de influência sobre o Estado de direito, voltada para a

regulação da economia, para aqueles que ainda não a possuem: os ativistas sociais, os

desempregados, os estrangeiros, etc. Ou ainda criar e assegurar um espaço de influência

sobre o Estado de direito semelhante àquele que os atores dos sistemas funcionalmente

especializados historicamente já possuem. Dessa maneira, de acordo com nosso autor,

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seria possível incorporar na fundação normativa a diversificação cultural, social e

econômica oriunda tanto da evolução específica do capitalismo e de uma democratização

cultural da democracia, quanto da intensificação dos processos de globalização. Para

todos os efeitos, isso quer dizer que a esfera pública da democracia deliberativa é uma

esfera pública de tipo específico: uma esfera pública “cosmopolita”. E a institucionalização

de uma esfera de socialização como essa implica, evidentemente, maior pressão no

sentido da redistribuição das riquezas socialmente produzidas.

CONSIDERAÇOES FINAIS

Do ponto de vista sociológico, o que Habermas pressupõe em seu modelo de

democracia é um indivíduo cuja forma de vida e concepção de bem seja reflexiva, de

modo que o direito de manifestar seus interesses, de agir no mundo conforme sua

concepção de vida boa particular, seja por ele mesmo atribuído a outro indivíduo. De certo

modo, em Faktizität und Geltung Habermas (2010, p. 113 sq.) pretende reconstruir a

autonomia perdida da esfera privada perante a esfera social e pública diagnosticada em

1962 em Strukturwandel der Öffentlichkeit (1978a), através de uma espécie de resgate da

capacidade de conformação do direito e de seu aparelho executivo, o Estado de direito

(idem, p. 196 sq.): a preferência por uma forma cultural de vida, com sua concepção

particular de “vida boa”, teria na democracia deliberativa um estatuto social privado, não

sendo a sua unidade específica de conteúdo passível de apreciação pública. A autonomia

perdida da esfera privada (1962) corresponderia aqui à necessidade de salvaguardar o

mundo da vida diante do sistema (1987; 2003b e 2010). Se naquele momento, à perda de

autonomia da esfera privada correspondia uma espécie de resgate da esfera pública

liberal do século XIX, em 1992 Habermas compreende ser necessário refundar o direito

de modo a resolver a tensão entre facticidade e validade da norma, para que, a partir

disso, o processo político-deliberativo voltasse a se abrir para a esfera pública. Do ponto

de vista do projeto político, pode-se dizer no transcorrer desse período passou-se de

intuições socialista-democráticas para intuições democráticas com um viés anarquista, se

considerado a centralidade conferida aos princípios democráticos de auto-determinação e

auto-realização.

A luz da trajetória do conceito de esfera pública, ganha evidência a permanência

da tese segundo a qual o conjunto de evoluções materiais e simbólicas que marcaram a

sociedade burguesa europeia desde a revolução francesa desencadeou uma tensão

estrutural, no plano político e societário, entre esfera privada e esfera pública. Assim, há

uma conexão interna direta entre Strukturakwandel der Öffentlichkeit (1978b [orig. 1961]),

Légitimationprobleme im Spätkapitalismus (1978a [orig. 1973]), Theorie des

kommunikativen Handelns (1987 [orig. 1981]), Faktizität und Geltung (2003 e 2010 [orig.

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1992]) e Die Einbeziehung des Anderen (2007 [orig. 1996]). Desde uma perspectiva mais

geral, essa conexão só existe porque foi mantida a preocupação de Habermas com a

associação histórica entre capitalismo e democracia e sua aposta em uma teoria

normativa da sociedade.

Isso permite apontar que, mais uma vez em um sentido bastante geral, ao

crescendum aludido anteriormente, cujo fio condutor seria a incorporação progressiva e

constante de novas perspectivas possíveis para a fundação teórica de uma teoria crítica

da sociedade, veio a corresponder um crescendum temático na dimensão do diagnóstico:

assim, à análise da evolução do capitalismo somou-se a análise do Estado-nação, da

ordem política e da integração social sob os efeitos tardios da globalização. Nesse

sentido, tudo se passa como se o diagnóstico de mudança estrutural da esfera pública

nunca tivesse cessado: entre 1962 e 1992, e apesar da fundação teórica distinta, a

transformação da esfera pública se deve, primeiro, à crescente e contínua racionalização

dos aparatos de regulação institucional, no âmbito da administração estatal e do mercado;

segundo, se deve a uma democratização cultural da democracia, que está na origem de

novas expectativas de participação nas decisões políticas; terceiro, a contradições

existentes no interior da relação histórica entre Estado de direito, democracia e

capitalismo; e quarto, se deve à perda de capacidade de conformação política de um

regime político nacional frente à intensidade dos processos de globalização. Nessa

trajetória, as condições sociológicas em constante transformação levam ao diagnóstico de

uma sociedade cosmopolita, cujo descompasso em relação a um sistema político em

muitos aspectos ainda nacional, sugere uma forma corresponde de Estado, um Estado

cosmopolita, e de esfera pública, que poderia ser denominada “esfera pública

cosmopolítica”.

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