habermas e a reconstrução
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Habermas é bastante conhecido pela ideia de ação comunicativa. E, de fato, sua maneira de pensar a emancipação se confunde em grande medida com a noção de racionalidade comunicativa. Mas não se resume a ela. Para alcançar seus objetivos críticos, o filósofo busca produzir uma teoria da racionalidade, e não apenas uma teoria da racionalidade ...TRANSCRIPT
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Habermas é bastante conhecido pela ideia de
ação comunicativa. E, de fato, sua maneira de
pensar a emancipação se confunde em grandemedida com a noção de racionalidade
comunicativa. Mas não se resume a ela. Para
alcançar seus objetivos críticos, o filósofo busca
produzir uma teoria da racionalidade, e não
apenas uma teoria da racionalidade
comunicativa. É por isso que ele mesmo afirma
que sua Teoria Crítica da Sociedade consiste
em uma “teoria reconstrutiva da sociedade”.
Longe de ser um mero recurso “metodológico”,a “reconstrução” é a categoria estruturante de
seu projeto. Por meio dela, ele pretende tanto
identificar os potenciais de emancipaçãoinscritos na realidade social de nosso tempo,
como criticar e incorporar os resultados das
teorias sociais não críticas, das teorias
tradicionais.
Assim, é objetivo deste livro apresentar essa
noção central em todos os seus aspectos e em
todas as fases do percurso de Habermas.
E A RECONSTRUÇÃO
MARCOS NOBRE •LUIZ REPA .ORCSJ
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HABERMAS E A RECONSTRUÇÃO
SOBRE A CATEGORIA CENTRAL
DA TEORIA CRÍTICA HABERMASIANA
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iLIVRARIA
inciAv Rio Branco 185 - Sub
Rio de Janeiro - RJTei 2533-2237 - Fa*
sclc
2533-1277www leonardodavmci com brtnfo@leonardodavmci com br
MARCOS NOBRELUIZ REPA (ORGS.)
HABERMAS E A RECONSTRUÇÃO
SOBRE A CATEGORIA CENTRAL
DA TEORIA CRITICA HABERMASIANA
PAP1RUS EDITORA
SUMARIOCapa:Fernando ComacchiaCoordenação: Ana Carolina Freitas
Diagramaçào:DPG EditoraCopidesque: Mônica Saddy Martins
Revisão: Aurea Guedes de Tultio Vasconcelos.
Danieie Débora de Souza e Isabel Petronilha Costa
Dedos Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)_Habermas e a reconstrução: Sobre a categoriacentral da Teoria
Crítica habermasiana/Marcos Nobre e Luiz Repa (orgs.) -Campinas, SP: Papirus. 2012.
BREVE APRESENTAÇÃO
Marcos Nobre e Luiz Repa
7Vários autores.Bibliografia.ISBN 978-85*308-0961-4
1. Filosofia alemà 2. Habermas. Júrgen. 1929 - Crítica e
interpretação I. Nobre, Marcos. II. Repa. Luiz.
12-07841
INTRODUÇÃO - RECONSTRUINDO HABERMAS:ETAPAS E SENTIDO DE UM PERCURSO 13
Marcos Nobre e Luiz Repa
COO-193
Indices pare catálogo sistemático:
1. Filósofos alemàes: Crítica e interpretação 193
2. Habermas.Filosofia alemã 193
A ideia de reconstrução 17
A origem do conceito 22
Ciências reconstrutivas 25
Reconstrução da história da teoria 30
Reconstrução eprocedimentalismo 35
Conclusão eperspectivas 40
1. A RECONSTRUÇÃO DA HISTÓRIA DA TEORIA:OBSERVAÇÕES SOBRE UM PROCEDIMENTO
DA TEORIA DA AÇÀO COMUNICATIVA 43
LuizRepa
Exceto no caso de dtaçôas, a grafia
daste livro está atualizada segundo o
Acordo Otegrtfoo da língua Portuguesa
adotado no Brasil a partir de 2009.
2. TEORIA CRITICA DA SOCIEDADE E EVOLUÇÃO SOCIAL 65
Clodomiro José Bannwart Júnior
ProiOida a reprodução total ou parcial
da obra de acoido com a lei 9.610/98.
Editora afiliada a Associação Brasileira
dos Direitos Reprograficos (ABDR).
A construção de um conceito
Evolução social como base da teoria da sociedade
Homologias ontofilogenéticas
Aprendizagem como condição depossibilidade da evolução social
66
68
76
DIREITOS RESERVADOSPARAALÍNGUAPORTUGUESA.©M.R. Comaccbia LivrariaeEditora Ltda.-Papirus Editora
R.Dr.GabrielPenteado.253-CEP13041-305-Vila JoãoJorge
Fone/fax: (19) 3272-4500-Campinas - São Pauto -Brasil
E-mail: editoraOpapirus.com.br - www.papirus.com.br
88
BREVE APRESENTAÇÃODISCURSO À TEORIA DO DISCURSO 99
Angelo Vitório Cenci3. DA ÉTICA DO
Marcos NobreLuiz RepaIntrodução 99
inicial da ética do discurso habermasiana
variante ético-discursiva deApelOprograma t
em contraste com a100
A versão habermasiana do argumento
ático-transcendental e a derivação doprincípio (U) 106pragm
A critica deHabermas à arquitetônica apeliana daspartesAeB da ética
A reformulação do conceito de razãoprática
e o aprofundamento da diferenciação dos discursos 116
Oprincípio do discurso neutro em relação à morale ao direito 123
A guisa de conclusão 131
110
Desde pelo menos o início dos anos 1970, Habermas considera que sua
teoria crítica da sociedade consiste em uma “teoria reconstrutiva da sociedade”.Todo o percurso intelectual de Habermas, a partir de então até os seus últimosescritos, é caracterizado pela centralidade da ideia de “reconstrução”. Trata-se deum operador teórico que permite realizar as duas tarefas fundamentais da teoria
crítica: identificar os potenciais de emancipação inscritos na realidade social
presente, ao mesmo tempo em que critica e incorpora os resultados das teorias
sociais não críticas, das teorias tradicionais. Isso quer dizer também que há uma
estreitacolaboraçãoentreosprocedimentos reconstrutivos e a apresentação deum
diagnóstico do tempo presente.
E, no entanto, apesar da explícita centralidade que Habermas atribui à
reconstrução,não écomumencontrar trabalhos que sedebrucemmais detidamentesobre essa categoria. Com algumas exceções dignas de nota, o problema dareconstrução costuma aparecer de maneira lateral e marginal nos trabalhos deinterpretação de Habermas. De certa forma, é compreensível que o problema em
toda a sua amplitude seja, no mais das vezes, deixado de lado quando se trata deexaminar um aspecto ou uma fase específica do desenvolvimento intelectual deHabermas. De fato, o sentido mesmo de “reconstrução” se altera conforme se
modificao diagnóstico de tempo do autor;de fato,a posição que acategoria ocupana armação conceituaimais geraldopensamento de Habermas se altera conformeos elementos teóricos fundamentais são arranjados e rearranjados de diferentesmaneiras ao longo das décadas a partir de 1970.
A proposta deste livro é acompanhar todas essas mudanças ao longo do
percurso intelectualdeHabermas,tendocomo fiocondutor anoçãode“reconstrução”.O pressuposto é o de que, se mudançashá - e muitas, e importantes há tambémalgumas características essenciais do projeto reconstrutivo que se mantêm. E essa,
por assim dizer, constância no interior da mudança não está apenas no “nome”
4. CRITICA E RECONSTRUÇÃO EM DIREITO E DEMOCRACIA 135
Felipe Gonçalves Silva eRúrionMelo
Odireito como meio de integraçãosocial 137
Reconstrução interna e externa
Oparadigmaprocedimental 157
Consideraçõesfinais
140
162
DenilsonLuís Werle
169-V
170, Rawls e Habermas: Uma disputa emfamília?
Oconstrutivismopolítico não metafísico de Rawls 177
Oconceito de autonomia e a ideia de razãopública 184
A reconstruçãopós-metafisica e o usopúblico da razão 187
Observaçõesfinais 191
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 197
Habermas e a reconstrução 7
reconstrução, em uma referência meramente verbal. A reconstrução é, de fato, um
projeto teórico e é assim que,anosso ver,deve ser apresentada.No fundo,a tese deste
livroéadeque,semareferênciaaesseprojeto reconstrutivo,seriamesmoimpossível
apresentar o percurso intelectual de Habermas em sua unidade e coerência.
4- Esse projeto reconstrutivopode ser caracterizado em sua generalidade e em
sua visada mais fundamental como uma tentativa de desvendar na reprodução da
sociedade toda os elementos de umaracionalidade existente, mas cujos potenciais
de pleno desenvolvimento ainda não foram suficientemente explorados. Essa
racionalidade existentenavidasocialconcreta se sustentaemestruturasprofundas,
aquelas capazes de gerar os objetos simbólicos que tomamos como parâmetros
de ação e de pensamento. Em outras palavras, o projeto reconstrutivo pretende
apresentar as regras,as estruturas,os critérios de avaliação e osprocessos sociais em
que objetos simbólicos surgem e ganham sentido social. Reconstruir não significa
reproduzir oque é factualmente,mas refletir sobre as regras que têmde ser supostas
para que seiapossívelaprópriacompreensão do sentido e mesmodonão sentido do.........-*—---í--*ÿ----------A.-----*____
_________________________-------------------------------------------- "
queéconstruído socialesimbolicamente. Ao mesmo tempo, são regras,estruturas
e processos que mostram potenciais de emancipação, possibilidades melhores de
desenvolvimento,quenãopodem ser reduzidos à realidade existente,à facticidade
decontextos quepodemsignificar,aocontrário,obloqueio dessas potencialidades
emancipatórias.
Uma vez, porém, que essas potencialidades emancipatórias estão ligadas,
direta ou indiretamente, ao conceito de ação comunicativa, cabe justificar
preliminarmentepor queadotamos aideiadereconstrução como amais adequada
paracaracterizar oprojetocríticohabermasiano,enão essemesmoconceitodeação
comunicativa ouo de racionalidade comunicativa. Há duas razões de fundo para
isso. Aprimeiraconsisteemafirmar que,sedefatoospotenciaisemancipatórios têm
sua sede na ação comunicativa e é nesta que é preciso encontrar o fulcro principal
da reprodução da sociedade, o projeto teórico de Habermas vai além da teoria da
ação como tal,oumesmo da teoria daracionalidade comunicativa como taL Trata-
se, antes, de mostrar como a teoriaproietaum conceito de razão em que diversas
formas deracionalidade se diferenciam,complementamouchocanudemodo que
a própria racionalidade comunicativa se torne um momento e uma dimensão,
sempre fundamental é.verdade, de uma diferençiaçãadarazão, a qual precisaria
ser decifrada em sua lógica e em sua dinâmica. E nisso consiste, em grande parte,
a ideia mesma de reconstrução, como se verá ao longo deste livro.
Soma-se a isso, em segundo lugar, que não se poderia falar de emancipação
e de potencialidades de emancipação se, por exemplo, a teoria da racionalidade
comunicativa fosse estabelecida de maneira apenas construtiva ou de maneiraapenas apriori, isto é, se ela não pudesse ser de fato apreendidacomo efetividadeda própria realidade social, a qual se caracteriza também por bloqueios aodesdobramento dessa mesmaracionalidade. Assim,se a teoriadaação comunicativanão for ela mesma reconstrutivo, ela não pode desempenhar um papel crítico, nosentido de teoria crítica, no conjunto da obra habermasiana. O procedimentoreconstrutivo é a resposta de Habermas à ideia H<> pmanripaçãn qup rara£t<riga-n
campo critico,demodo que os principais componentes da teoria reconstrntiva dasociedadepodem ganhar seu sentido à luz dessa ideia, inclusive o conceito de ação
e de racionalidade comunicativa.
*Algo semelhante se aplica à articulação da teoria crítica com a teoriatradicional, que, como tentaremos mostrar já na introdução, caracteriza demaneira ou de outra todos os modelos críticos desenvolvidos desde Marx. Ouseja, com seu conceito de reconstrução, Habermas pretende mostrar como asteorias tradicionais podem ser articuladas no interior de uma teoria crítica comoteoria reconstrutiva, seja diretamente, por meio de ciências reconstrutivas, sejaindiretamente,por meio deumareconstrução dahistóriada teoriasocial.Tambémaquiaideiadereconstruçãopermitesatisfazer umprincípiodateoriacrítica,oquenão poderia ser alcançado simplesmente por meio do objeto da teoria social. Aocontrário,talobjeto,aaçãocomunicativanocaso,sópoderáser apreendidoemtodaa sua significação se for possívelumaarticulação de diversas teorias tradicionais pormeio da ideia de reconstrução. Assim, só é possível dizer que a ação comunicativae a racionalidade comunicativa são conceitos centrais da teoria da sociedade deHabermas,namedida emque essa teoria deixa de ser tomadacomo teoria crítica -ou seja, deixa de ser tomada como aquilo que corresponde, em última instância,
à autocompreensão de Habermas. A centralidade cabe, nesse sentido, à categoriade reconstrução. Ê esse pressuposto, assim justificado, que está na base da nossaexposição sobre a evolução do projeto habermasiano.
»O vínculo da ideia de reconstrução com os princípios da teoria críticapermite afastar também, ainda que de maneira, por assim dizer, “vestibular”,possível mal-entendido acerca dessa ideia, pois não se trata, aqui, de reduzir osprocedimentos reconstrutivos a meros recursos metodológicos, que muito poucodepõem sobre a forma e a finalidade da teoria. A reconstrução é certamentetambém um método, mas esse método não pode ser entendidoconjunto de expedientes metodológicos, no limite substituíveis por outros. Aforma metódica de como se apreende a realidade está indissoluvelmente ligadaàs potencialidades melhores dessa realidade e aos seus bloqueios e, assim, ao que
uma
nos
um
como um
8 Papirus Editora Habermas e a reconstrução 9
permite o conhecimento mais amplo possível dessa realidade- o que, ao que tudoindica, as metodologias tradicionais da teoria social desaprovaram no curso de
sua especialização.
O quenospropusemosnestelivro foi investigar os diferentes aspectos,etapas
epercalços desseprojeto teórico,cujacentralidade cabeàcategoria dereconstrução.
E isso do final dos anos 1960 até a última fase da obra, que se desenvolve a partir
do marco representado por Direito e democracia, de 1992, passando pela etapa
fundamental que foi a publicação da Teoria da ação comunicativa, de 1981. Isso
significa que também não foram negligenciados aqui dois outros momentos e
elementos decisivos,masnormalmentemarginais,nos trabalhos sobreHabermas:tanto sua “teoria da evolução social” como sua “ética do discurso”, que evolui nos
anos 1990 para uma “teoria do discurso”. Dois momentos da obra de Habermasquenascematrelados aoprojeto dosanos 1970dacriação edodesenvolvimento das“ciênciasreconstrutivas”,masquepermanecemcomo elementos sistemáticos deseu
pensamentomesmo depois queoprojeto dos anos 1970deixadeser levado adiantetal como inicialmente formulado. Também não quisemos perder a oportunidade
de confrontar o conjunto desse percurso esquadrinhado com a proposta de
outro monumento teórico decisivo da segunda metade do século XX, a proposta
construtivista de John Rawls, a fim de, por contraste, mostrar a originalidade e a
importância do empreendimento habermasiano.
Mesmoestabreve apresentação já é suficienteparamostrar acomplexidadeda tarefa,poisHabermas,mudando a configuração de seuprojeto reconstrutivoem
umsentidoimportantea cada vez,nãorealizaelemesmoo trabalho dereposicionar
as peças de sua teoria para mostrar como a unidade de seu pensamento ficoupreservada a cada reconfiguração sistemática. Essa tarefa cabe a quem se propõe
comentar a obra, e nãonos esquivamos dela.Mas, ao mesmo tempo, também não
nos esquivamos de mostrar as tensões, dificuldades e possíveis incongruências
presentes nesse percurso. Foi tambémpor essa razão que, embora se trate de uma
preocupação presente em cada um dos capítulos, procuramos logo no primeiro
sistematizar tanto os diferenteselementos decontinuidade como as várias rupturas
observáveis no período de mais de quatro décadas que examinamos ao longo dolivro.Quandonãopor outrarazão,comointuitodemostrar que opensamento deHabermas,como todapropostada teoriacrítica,mantém-sevivo,porquemudacom
o seu tempo, exigência de quenãopode recuar por temor da mera incongruência.
OProgramadePós-graduaçãoemFilosofiadaUnicampfinanciouoencontro
em que, em maio de 2011, foram exaustivamente discutidas as primeiras versõesdos capítulos aqui apresentados. Depois disso, deu ainda apoio financeiro para a
publicação. Apesar dos muitos acidentes de percurso, Sônia Cardoso não mediuesforços para que todo esse trabalho pudesse se realizar nas melhores condiçõespossíveis. Tivemos oprivilégio depoder contar em todas as etapas doprojetoa leitura atenta e com a crítica aberta, franca e propositiva de Ricardo Terra. Semo suporte e o apoio da Fapesp,por meio da linha de auxilio a projetos temáticos,não teríamos tido as condiçõesmateriais e intelectuaisnecessárias para constituir
grupo depesquisa capaz delevar acabo uma tarefa
com
umcomo a que apresentamos
neste livro. Desde que este livro era apenas um esboço de ideia, Adriano Januáriose desdobroupara tomar realidadecadaumade suas etapas. A todas essaspessoase instituições,o nossoprofundo agradecimento.
10 Papirus EditoraHabermas e a reconstrução 11
INTRODUÇÃORECONSTRUINDO HABERMAS: ETAPAS E
SENTIDO DE UM PERCURSO
Marcos NobreLuiz Repa
Desde o ènsaio inaugural de Horkheimer, “Teoria tradicional e teoria
crítica”, de 1937, a teoria crítica não pode ser apresentada independentemente dateoria tradicional. E não apenas porque Horkheimer começa sua exposição pelateoria tradicional, apresentando a teoria crítica como aquela de capaz superar a
parcialidadeque seriaprópriadas contribuições tradicionais,mas,principalmente,porque a formulação em cada momento de um diagnóstico do tempo presente
tradicionalj>araproduzir um diagnóstico do tempo presente que permitaentrever
as potencialidades e os óSstáculos para a própria emancipação. É nesse sentidoque cada constelação determinada desses elementos pode ser chamada de um
“modelo crítico”,1o que quer dizer que é preciso esclarecer o que significa, nesse
caso, “depender em um sentido não trivial”.
“Trivial” seria aqui circunscrever o campo da teoria crítica apenas
negativamente em relação à teoria tradicional, de tal maneira que a dependênciaentre as duas perspectivas fosse caracterizada, sem mais, como uma relação de
oposição. Acontece que a teoria crítica também se caracteriza por pretender dar
à teoria tradicional seu sentido completo e íntegro, o que só pode ser conseguido
combasenaconsideraçãodascondiçõesemque seproduz conhecimento,dopapeldesse conhecimento na sociedade atuale da compreensão das relações sociais que
estruturam a dominação vigente.
*No entanto, não é possível esquecer que a teoria crítica é marginalrelativamente àmaneiradominantedeprodução de conhecimento quecaracteriza
a teoria tradicional. Isso quer dizer também que o conhecimento crítico depende
1. A apresentação dos termos mobilizados aqui para caracterizar a teoria crítica pode ser
encontrada em Nobre 2004 e 2008a.
Habermas e a reconstrução 13
da massa de conhecimento produzido demaneira tradicionalpara poder elaborar
diagnóstico do tempo com suficiente complexidade e profundidade. Esse.
digamos,parasitismo da teoriacriticarelativamente à produção da teoria tradicional
é possível,por sua vez,porque se pressupõe que as contribuições tradicionais não
sejam falsas,mas “parciais”, isto é,passíveis de integração de uma perspectiva mais
ampla, que lhes dêumnovo sentido,um sentido critico.
•*De modo que, se o vínculo conceituai entre os dois termos é interno, o
desenvolvimento da teoria crítica exige a apresentação do estado da arte da teoria
tradicionalemcadamomento.Eessa exigência temconsequências importantespara
aconfiguração do campo crítico.Significa,emprimeirolugar,que acaracterização
de um modelo determinado de teoria crítica se faz também pela relação que
estabelece com a teoria tradicional. Uma relação que pode se caracterizar, por
exemplo, como dialética, como é o caso da teoria de Adorno. Ou, em outro caso,
como uma relação de complementaridade entre os dois termos, como é o caso da
teoria da ação comunicativa de Habermas.
Em segundo lugar, a própria,articulação,entre as diferentes disciplinas, a
constelação disciplinar própria da teoria crítica em cada um de seus diferentes
modelos,depende de um diagnóstico do tempo que tem de abranger igualmente a
situação disciplinar no campõtradicional. A especialização do conhecimento,por
exemplo, marca característica das contribuições tradicionais desde pelo menos o
séculoXX,pode ser criticamente incorporadaao trabalhocrítico,comonomodelo
críticodoHorkheimer dos anos 1930.Oupode ser rejeitadacomointrinsecamente
reificante, como é o caso do modelo crítico do Lukács de História e consciência
de classe, publicado em 1923.2 Em outro registro ainda, a própria especialização
disciplinar pode, por exemplo, ser criticamente incorporada na forma de uma
constelação de disciplinas configurada segundo ummodelo interdisciplinar como
o do já mencionadomodelo crítico do Horkheimer da década de 1930. E este,por
«Mt vwjjode variar quaBtoijdgÿiiltgaaente«sjtedpliiw,comp.se pode
observar, por exemplo, na Teoria da ação comunicativa de Habermas, de 1981.
em que a sociologia desempenha a papeL<k centrQ.de referência da constelação
interdisciplinar, ao passo que, no modelo inaugural de Horkheimer da década de
1930, a economia política ocupava a posição central.
Em terceiro lugar,podem-se ainda classificar os diferentesmodelos de teoriacrítica conforme caracterizem a atividade crítica como essencialmente crítica dateoria tradicionalou,alémdisso,comoalgo queexigearealização deinvestigaçõesempíricaspróprias,identificandolacunas eausências nas contribuições tradicionaisque sópoderiam ser supridas por pesquisas orientadas criticamente.Nesteúltimo
a tarefanada trivialdacriaçãodemétodosetécnicascapazesdeincorporara perspectiva da emancipação em sua lógica. Esse foi o caso do modelo crítico deHorkheimer na década de 1930 e também o modelo crítico de Habermas pelomenos até a década de 1970, por exemplo, com a proposta do desenvolvimentodas “ciências reconstrutivas”.
«Nocaso davertenteda teoriacríticainauguradapelosescritosdeHorkheimernadécada de1930,omodeloinauguraldeMarx da“críticadaeconomiapolítica”sefirma como centro daatividade teórica.Mas,além disso - e contrariamente,nesseaspecto,ao modelolukacsiano-,Horkheimer introduzaideiadeumacolaboraçãointerdisciplinar, em que a especialização do conhecimento é explorada em seuspotenciais teórico-críticos e não afastada liminarmente como intrinsecamentereificante. Ou seja, diferentemente do modelo crítico do Lukács de História econsciência de classe, Horkheimer vê na exploração crítica da especializaçãonecessidade, em acordo com a ideia de sempre criticar o estado mats avançado dateoria tradicional e não em rejeitar sua forma mesma de desenvolvimento.
O modelo do materialismo interdisciplinar da década de 1930 nãlimitou à crítica das contribuições tradicionais,buscou também desenvolver suasprópriaspesquisasempíricas,criticamenteorientadas.Foiassim quese apresentoucomo uma composição entre o momento de crítica imanente da teoria tradicional
momento de investigações empíricas autónomas. Também nisso a vertenteinaugurada por Horkheimer seguiu o modelo de Marx. Ao longo de O Capital,Marx emmuitosmomentos teve também de “suprir lacunas” da teoria tradicionalpara poder prosseguir na apresentação/crítica do sistema capitalista. Ou seja, emmuitos momentos, Marx teve de produzir ele mesmo o conhecimento faltante àeconomia política para alcançar uma apresentação global do sistema capitalistaque fosse ao mesmo tempo a sua crítica.
Issopareceparticularmenteverdadeironoquedizrespeito aoLivroIIIdeOCapital,momentoemquea economiapolíticamostra suamaisgrave“insuficiência”.ÉoqueexplicitaMarxem Teorias da mais-valia apropósitodométododeRicardo-que “parte da determinação da grandeza de valor da mercadoria por meio dotempo de trabalho e investiga então se as demais relaçõeseconómicas contradizemessa determinação do vàlor, ou o quanto modificam a mesma” - por meio da
seu
caso,com
uma
o se
e o
2. Sobre o modelo critico deHistória e consciência de classe e suas relações com a posição de
Horkheimer nas décadas de 1930e 1940,ver Nobre 2001,especialmente as “Considerações
finais”.
14 Papirus Editora Habermas e a reconstrução 15
contraposição entre a “justificação histórica” da “maneira deproceder” deRicardo
(isto é, “sua necessidade científica na história da economia”) e sua “insuficiência
cientifica”. Como diz o texto:
A partir de Técnica e ciência como “ideologia", tamhérp <*n
1968,Habermi
_de
to pam is
», a enunciar
a ideia de reconstrução como a mais adequadapara orientar a teoria crítica. E,porisso, o presente volume,em sua totalidade, segue a orientação mais geral dada porLuiz Repa, segundo a qual o modelo de crítica de Habermas deve ser chamado de
A “reconstrutivo” (Repa 2008a e 2008b). Não se trata de mero rótulo, mas de uma
caracterização quecondensa arelação deHabermascoma tradição crítica.Significaque a orientação para emancipação, formulada como ancoramento normativo.
seráoprincípio orientador da categoria de reconstrução e o fio rnndntnr Ha rrítira
nil
Vê-se à primeira olhada tanto a justificação histórica dessa maneira de
proceder, suanecessidade científicanahistóriadaeconomia,mas, ao mesmo
tempo, também sua insuficiência científica, uma insuficiência que não se
mostra apenas (formalmente) namaneira de apresentação,mas que conduz
a resultados equivocados, porque salta elos intermediários necessários e
procuraprovar a congruência das categorias económicas entresidemaneira
imediata. (Marx 1978,p. 816)ie
da normatividade, seja em um normativismo que não mostra suas raízes no real.
Como se verá, a categoria mesma de reconstrução vai ter seu sentidomodulado conforme o momento da obra de Habermas enfocado.Na tentativaquese segue de apresentar esse percurso em três momentos diferentes, organizados
grossomodo segundo aperiodizaçãopor décadas (1970,1980,1990),aênfaserecairá
menos nos diferentes diagnósticos de tempo que sustentam os rearranjos teóricosdoquenasmudançaspropriamenteconceituaise teóricas dosescritos deHabermas.
Isso inclui,por exemplo,mostrar que amudança daconfiguração dareconstrução
da década de 1970 para a de 1980 se deveu também, e emboa parte, à ausência de
resultados investigativos de peso no que diz respeito ao projeto do que Habermas
X chamava então de “ciências reconstrufivas”. Como a apresentação da mudança da
década de 1980 para a de 1990 procura mostrar que, se há uma continuidade na
concepção da Teoria da ação comunicativa de uma “reconstrução da história da
teoria”, Direito e democracia, de 1992, orienta esse modelo para a reconstrução
da racionalidade de instituições sociais como o direito e o estado democrático de
direito,o que não apenas é uma novidadeem relação à constelação anterior como
também altera emum sentido importante o modelo crítico habermasianoÿ
Não por acaso, também o próprio modelo de Teorias da mais-valia
reapareceránaapresentação deHabermas que se seguesob o título“Reconstrução da
históriada teoria”,umdos sentidos mais importantes e mais duradouros da noção
de reconstrução naobra deHabermas.Umsentido queMarx jáhavia estabelecido
no primeiro prefácio a O Capital, ao explicitar o conteúdo do quarto livro da
obra,publicado postumamente com o título de Teorias da mais-valia, justamente:
“história da teoria” (Marx 1984,p. 17).
No caso das pesquisas realizadas no âmbito do Instituto de Pesquisa Social
na década de 1930,como jámencionado repetidas vezes, fica evidente que a crítica
da ecnnnmiapolíticaocupaocentro da constelação disciplinar.O quecorresponde
ao diagnóstico do tempo segundo o qual o mercado continuava a ser a instituição
social estruturante, mesmo se o próprio capitalismo já tivesse passado a uma
fase monopolista. Nesse contexto, é o conceito de “classe” (com todas as suas
obscuridades - e elas são muitas, com certeza - nos escritos de Horkheimer desse
período) que permite a passagem entre a crítica da economia política como foco
e núcleo do arranjo disciplinar a investigações empíricas, como aquela dirigida
por ErichFromm sobre o autoritarismo nas famíliasproletárias,por exemplo (cf.
Fromm 1984; Bonss 1993).
K No caso de Habermas, esses diferentes elementos se articulam em torno
da noção geral de “reconstrução”. Até o livro Conhecimento e interesse, de 1968, é
possível dizer que Habermas seguia, à sua maneira,o mote de Adorno, segundo o
qual “crítica da sociedade é crítica do conhecimento e vice:versa” (Adorno 1977,
p. 748).E. também de maneirapeculiar,propunha o desenvolvimento deumnovo
A ideia de reconstrução
Aodizer,emDireito e democracia,quesua teoriacríticada sociedade consiste
em uma “teoria reconstrutiva da sociedade” (1994a,p. 19), Habermas explicita ao
mesmo tempo o sentido mais amplo em que deve ser tomada a evolução do seu
pensamento, pelo menos desde o início dos anos 1970, quando passa a conferirtornar reflexivas segundo o modelo exemplar da psicanálise freudiana.
Habermas e a reconstrução 1716 Papirus Editora
A centralidade à ideia de reconstrução. Desde então, tal ideia estará sempre ligada
à identificação e comprovação de potenciais de racionalidade que façam justiça à
orientaçãopela emancipação quecaracterizao campocritico.Reconstruir é omodo
específicopormeiodoqualsepodemancorar narealidadedas sociedadescapitalistas
çadasospõtenciaisemancipatórios,os quais demonstrariam,simultaneamente.
á possibilidade real do conteúdo normativo próprio dos critérios que orientam a
crítica da sociedade e das teorias sociais tradicionais.
Em que pese a complexidade do conceito em Habermas, e as modulações
que ele sofrerá ao longo do seu percurso intelectual, tal conceito mantém seu
sentido basilar de ser uma tentativa de desvendar na reprodução da sociedade
toda os elementos de uma racionalidade existente, porém insuficientemente
explorada.Reconstruçãonão significa,por isso,uma tentativa derestituir o sentido
particular ouoconteúdoparticular deumdeterminadoconstruto simbólico,deum
determinadoprocesso simbólico oude uma determinada instituição oumodo de
agir em sua particularidade.Ela significa, antes, descobrir as estruturasprofundas
que possibilitam a geração de objetos simbólicos.Não são estes ouaoueles obietos
sociaismaisamplos em quedeterminados objetos simbólicos se inserem e ganham
umsentidosocialeracional,queéoalvo da teoriareconstrutiya.O que sereconstrói
é o que possibilita uma determinada construção ou o que possibilita a crítica de
umaconstrução,enão essa mesma construção tomada como resultadoparticular,
como construto.
«K Reconstruir não significa refazer conceitualmente algo dado, recontar sua
históriãTporassimdizer;não significa reproduziroqueé factualmente,masrefletir
sobre as regras que têm de ser supostas como princípio para a compreensão do
sentido e mesmo do não sentido do que é construído social e simbolicamente. São
essas regras, estruturas e processos que constituem a racionalidade imanente aos
objetos simbólicos, a racionalidade que eles reivindicam por si mesmos para que
possamter sentido.Sãoessasregras,estruturaseprocessosqueconstituem,emoutro
aspecto,ospotenciaisemancipatórios, já que sua efetividade se insere desde sempre
na facticidade de contextos suscetíveis de um sem-número de fatores coercitivos.
A novidadedessemodelocríticonão deve ser subestimada. Trata-sedeuma
revolução teórica comparável em seu alcance àquela realizada por Horkheimer
em seus escritos da década de 1930. Colocar no centro da teoria crítica a
reconstrução de estruturas normativas profundas desloca o eixo de análise da
lógica do desenvolvimento das forças produtivas e da técnica para a explicitação
da normatividade própria à orientação para a emancipação que caracteriza mais
amplamenteocampocrítico.5 Deslocarofocodateoriacríticaparaoprocessomaisabstrato e mais geral da geração de normais sociais corresponde a uma mudançafundamentalnodiagnóstico de tempo.Nocapitalismo da segundametadedoséculoXX, já não é plausível supor que uma forma unitária de racionalidade se irradiepara o conjunto da sociedade combaseno desenvolvimento das forçasprodutivase da técnica.
í* Tal virada teórica no interior da tradição crítica trouxe com elacompreensãoradicalmentenovadoancoramento realdaemancipaçãona formadedominação vigente. Já não se trata deuma emancipação tornadapossívelportendência interna autodestrutiva do capitalismo. A partir do novo diagnóstico detempo,trata-sedeumaemancipação tomadapossívelporestruturasnormativasdamodernidadequelibertarampotenciaisdeprodução de formas devidaemancipadasque são efetivamente realizados apenas parcialmente a cada vez. Daí que um dossentidos fundamentais de “critica” em Habermas seja iustamente o do confrontoentrepotenciaisemancipatóriospresentenas estruturasnormativasprofundase sua
realização limitadana vida social. Oque quer dizer, por sua vez, que esse sentidofundamental de crítica é solidário e dependente da reconstrução de “estruturas doagir e do entendimento inscritas no saber intuitivo de membros competentes dassociedades modernas” (1984a, v. II,p. 562).
Essa radical novidade do modelo crítico reconstrutivo de Habermas podemuitas vezes ficar obscurecidapelaprópria terminologia de que se utiliza o autor.É muito frequente encontrar nele expressões obscuras e mesmo paradoxaispara descrever essa novidade. Um bom exemplo disso é a expressão “quasetranscendental”, largamente utilizada por Habermas - uma expressão que maispareceesconder doque revelar a orientaçãocríticade sua teoria.Embora apresentecerta margem de variação de seu sentido, a expressão “quase transcendental”aponta para a novidade de uma reconstrução que franqueia o acesso às estruturasnormativasprofundas,capazes de gerar regras enormas sociais-umprocedimentoque facilmentepode ser confundidocomresultado de umainvestigaçãounicamentetranscendentaloureduzido a esseresultado. Ocorre que as regras e normas sociaisvigentesnão sãooalvodareconstrução;este estápostopara alémdeconfigurações
avan
uma
uma
3. Ainda que observe essa diferença de orientação crítica, Axel Honneth procura,por suavez, expandir o conceito de reconstrução, a ponto de abarcar praticamente toda a teoriacrítica, chamando a atenção para diversas versões de “crítica reconstrutiva" (cf.Honneth2007). A respeito dopróprio modelo honnethiano de reconstrução, cf.M.her 2008 e R.Celikates 2009.
18 Papirus Editora Habermas e a reconstrução 19
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determinadas elimitadas daspotencialidades construtivas presentes nas estruturas
normativas. O alvo est£ posto em uma forma de organização social em que sejam
esgotadas e realizadas todas essas potencialidades construtivas.
* Trata-se, portanto, de uma reconstrução que vai além da investigação
transcendental capaz deconduzir àconfiguraçãonormativadomomentopresente.
Seuponto de fugaconstitui o cerneda concepçãohabermasiana denormatividade,
que não é simplesmente o de apresentar a génese de um conjunto de regras e
de normas determinado, mas, para além disso, o de reconstruir as condições
de possibilidade de qualquer conjunto possível de regras e normas, vale dizer, to-ima*____
- - HiV estruturas fundamentais geradoras de regras e normas. Um objetivo que já genébca_ deye_podgtexpIicar_£Qmo se dá esse processo de aprendizagem- Isso
não pode ser alcançado de maneira plausível mediante a postulação de teses de \çr,d< significa que tal reconstrução deve poder explicar como sujeitos socializados
filosofia da história; para alcançá-lo, é necessário agora produzir uma nova classe iwu,' cM* podem aprender e criar novas estruturas Çombasenas anteriores até chegar ao
de ciências quepossamproduzir conhecimentos falíveis,mas capazes de sustentar nível das sociedades contemporâneas. Por fim, e
a plausibilidade da reconstrução das estruturas normativas profundas em suas .\jjyvdLoutU- viste crítico, a reconstrução por inteiro permite divisar quais são os potenciais
dimensões características. Como se verá adiante, essa nova classe de ciências é construtivos inseridosÿiÿdÿterrm|iâdas.,estniUnÿj_á.,âlcÿçadas..quç„ãjndaaião
chamada por Habermas de “ciências reconstrutivas”.#
sufiÇieÿferoénte explQradASjQçialmente. Como se constata uma diferença, ... , f . j
® J_ entre as estruturas geradoras e as regras geradas, também se pode observar que
Dessa maneira, a tarefa reconstrutiva se debruça sobre as fontes das regras _, . ,. , \... ... . .... „ ... . • ,Ulx nem tudo o que uma estrutura pode render no que diz respeito a construção de
“d*“ simbolicamente medmda,, d, objetos simboUcos em sentido amplo. .Je o«J.Esse
TÿfenHaojmÿamo estradas getadoras deyegtaÿoamtpe.esmo .esnltado critico será abordado ao longo deste livto sempre que se nata,diretaouPortanto nabase do intento reconsmttivo,
indiretament,do dlagnOstico de época habermasiano.encontra-se a distinção, de início apenas metodologica e a ser confirmada, entre
o que permite uma série de construtos simbólicos e o princípio de construção ideia de reconstrução é, como dito, também a maneira específica por
simbólica,entre regras geradas e regras geradoras. Tal distinção não significa quef
meio da <lual a teoria crítica lida com a teoria tradicional segundo o modelo
tais estruturas geradoras não possuam, elas mesmas, uma natureza simbólica. A habermasiano que começa a despontar nos anos 1970 e que servirá de referência
diferençareside,antes,nadiferençalógicaentrecondição e condicionado. Aquelas. ao desenvolvimento posterior, até chegar ao início dos anos 1990, pois, de início,
estruturas geradoras são tomadas como condições sem as quais não poderiam ter . a reM° entre a teoria crítica e a teoria tradicional é mediada pela proposta de
surgido determinadõ71~Õnstrutos, õsquãis servem, na qualidadeje fenômenos desenvolver um tipo especial deciência,apar dosmodeloscientíficos tradicionais,
imeihatosÿãÿllíse.comõpcnSodê:partidada reconstrução. Ós atores sociais se eservindo debasepara acríticada sociedade contemporânea,ouseja,apropostade
orientamporessasêsffúfijSs.'sãb'idasde determinadas desenvolver “ciênciasreconstrutivas”,comprocedimentosmetodológicospróprios,
mãnjfeslÿéTsõriãlsTciÿ por exemplo. determinada.rregras sociais ou. diferenciando-se apénas segundo o campo de inserção dos objetos simbólicos.
ainda,emumnívellinguístico,determinadosproferimentos. A maneiracomo essas Dessa maneira, a ideia de reconstrução não pode ser separada, nessa constelação
regras eproferimentos são reciprocamentecompreendidos pelos atores depende de inicial, caracteristicamente acidentada e repleta de intentos provisórios, da noção
seu saber intuitivo sobre certas estruturas, que não podem ser confundidas, nesse mesma de ciência reconstrutiva.
sentido, com o que resulta delas. Nesse aspecto, tais estruturas são chamadas por Tal constelação surge no momento em que a primeira grande tentativa de
Habermas também de sistema de regras ou padrões de racionalidade. * Habermas de fundamentar seu primeiro e rudimentar modelo de teoria crítica,
«v A_reconstrução racional de estruturas profundas, geradoras de obietos em 8rande Parte insPirado ainda em Adorno e Horkheimer,mas de uma maneira
simbólicos, permite, assim, investigar a racionalidade própria de regras sociais.bastante peculiar, encontra impasses, cuja solução é a proposta mesma de pensar
dadas emumdeterminadomomentohistórico,ouseja.pemiitecompreenderjpaisestruturas são basilares emuma determinadaetapa daevolução social, em que elasse diferenciam de estruturas de outra etapa, como também entender como elaspuderam suceder historicamente. Veremos adiante que a reconstrução se investe,nesse aspecto, de uma intenção propriamente genética,ummomento “vertical" deanálise,quese diferenciametodologicamenteda descoberta,no tempo presente,deestruturas geradoras das regras sociais dadas,o momento “horizontal” de análise.Como as estruturas geradoras são também de natureza simbólica, ou seia. elas
a
Habermas e a reconstrução 2120 Papirus Editora
a ideia de reconstrução e seu arranjo metodológico por meio da noção de ciência
reconstrutiva. Ou seja, surge dos impasses de Conhecimento e interesse.
relaçãocoma teoria tradicional,elamesmaconstituídapor umarelação “esquecida”cominteresses antropologicamente fundamentais,como tambémparaa crítica dopositivismo.
O problema do positivismo consiste aí, em primeiro lugar, em ignorar
sistematicamente o vínculo entre ciência e interesse, e também çiB_igilfirar_iLlegitimidade de outras formas de saber oue têm intgfiasgS divpr<:r><: nareconstrução do pensamento de Peirce, Habermas pretende mn<trar
ciências da natureza são orientadas pelo interesse térnirnmtomar disponível a
realidade objetivadapara fins dereproduçãomaterial daespécie.O interessetécnicose enraíza assim em uma das condições fundamentaispor meio da qual a espéciehumana se constituiue se reproduz, a saber, o trabalho. As outras condições são ainteração e alinguagem,as quais implicamtambémrelação deinteressesespecíficosnoconhecer.Éo caso das ciênciashermenêuticas,deumlado,edas teorias críticas,como a crítica da ideologia e a psicanálise, de outro.
À hermenêutica caberia ummodo decompreensão do sentido que obedecea outro interesse da espécie em aumentar cada vez mais suas estruturas decomunicação, o chamado interesse prático da espécie.E à crítica da ideologia e àpsicanálise caberia o interessepelaemancipação diantedeumcontexto injustificávelde dominação. Esse interesse estaria enraizado na própria linguagem, na medidaem que com cada frase se ergue a pretensão de um consenso sem qualquer tipode coerção. Daí a situação analítica construída teoricamente por Freud ganhar adimensão de um modelo para toda teoria social crítica. O diálogo entre analista eanalisando remeteacritériosde umacomunicaçãopúblicaqueé sistematicamentedistorcida pelas ilusões do analisando.5 Na tipologia das formas de saber assimesboçada, os interesses orientadores do conhecimento predeterminam o quadro“quase transcendental” em que se definem e evoluem, para cada caso, as regrasde conhecimento e de método. Dessa maneira, a autorreflexão que se pode obterem cada caso pela crítica imanente das ciências coincide com a autorreflexão dahistóriade formação da espécie,cujalógica se estrutura segundo aquelas dimensõesfundamentais do trabalho, da interação e da linguagem.
Dois problemas fundamentais surgem do programa de Conhecimento einteresse. O primeiro diz respeito ao estatuto que teria a própria reflexão sobre osinteresses doconhecimento, se elamesmanãoparece ser guiadapor interesse algum.
A origem do conceito
Conhecimento e interesse e outros escritos que giram em sua órbita nos
anos 1960 constituíram-se da dupla tarefa de realizar uma critica da ciência em
sua concepçãopositivista e,aomesmo tempo,de fundamentar a teoriacrítica e a
teoria tradicional, tendo como baseo vínculo indissociável entreconhecimento e
interesse.4Édignodenotaque a viaadotadapor Habermaspara essa tarefa dupla
será a de uma“reconstrução dapré-históriadopositivomodernocomopropósito
sistemáticodeumaanálisedonexo entreconhecimento e interesse” (1999a,p.9).
Tal reconstrução é de natureza historiográfica, ou seja, prende-se à história da
teoria, principalmente filosófica, para buscar tanto as condições teóricas que
possibilitaram o positivismo e o cientificismo moderno como,inversamente, as
condições teóricas que poderiam fazer frente a ele, na medida em que revelam
a relação de implicação entre teoria e práxis, conhecimento e interesse. Como
veremos adiante, tambéma Teoria da ação comunicativa vaiadotar um caminho
semelhante, embora com outros propósitos sistemáticos. Porém, no contexto
de Conhecimento e interesse, a ideia de reconstrução da história da teoria é bem
maisimplícita e,decertamaneiraÿmais aplicadado que teorizada. O mesmo vale
para a reconstrução de estruturas geradoras, à quaTdeve chegar a reconstrução
da teoria, assumindo a forma de urna autorreflexão, exemplificada em Peirce,
Dilthey e Freud. Nas obras desses autores, seria possível reconhecer o vínculo,
negado pelo positivismo de modo geral, entre a constituição do conhecimento
e interesses próprios da espécie humana como tal em seu processo de formação.
Tal descoberta de interesses cognitivos, específica para cada tipo de saber, é
apresentada como uma operação crítica de autorreflexão.
A questão posta por Habermas é uma questão deixada em aberto por
Horkheimer. Se a teoria crítica se diferencia da teoria tradicional justamente por
se guiar internamentepelo interessepela emancipação,então, trata-se de conceber
emque se enraíza esse interesseconstitutivo e,comisso,obter critérios tantopara a
5. A respeito do caráter reconstrutivo da descoberta de tais critérios segundo o modeloda psicanálise e da tentativa de desenvolvê-lo como padrão da “crítica reconstrutiva”, cf.Celikates 2009,p. 187 ss.
4. Para uma apresentação alternativa desse percurso, mas coincidente em muitos pontos
também, ver Voirol 2012.
22 Papirus Editora Habermas e a reconstrução 23
Ao mesmo tempo, contudo, permanecem os resultados metodológicos. A
partir doensaio Técnicaeciência como “ideologia”,Habermas(1990a) jádispõedeum
conceitomaisclarodereconstrução e,diferentementede Conhecimento e interesse,
propõe-se não mais implementá-lo no seio de uma “historiografia reconstrutiva”(1999a,p.367),mas diretamentepor meio de “ciências reconstrutivas”. A tipologiade formas de saber que subjaz ao projeto crítico de Conhecimento e interesse se
transforma assim, no começo dos anos 1970, em uma tipologia das ciências, entre
as quais se destacamas reconstrutivas.Sob estas devemse fundamentar,apartir deentão,os critériosnormativos e as linhas teóricas do diagnóstico de época esboçadoem Técnica e ciência como “ideologia".
Nesse caso, Habermas precisa afirmar que se trata de uma crítica da ideologia, no
sentidomuitodébilde que areflexão sempre sevincula ao interesseemancipatório.Por
outrolado,ele insisteem que nenhuma fundamentação dointeresse emancipatório é
possívelem termos deuma teoriapura,ouseja,uma filosofiaemsentido tradicional:
“A teoria da sociedade que levanta a pretensão de uma autorreflexão dahistória da
espécie não pode simplesmente negar a filosofia. A herança da filosofia se transfere,
antes,paraaatitude dacríticadaideologia,aqualdefineopróprio método daanálise
cientifica.Mas, foradacrítica,não restaà filosofianenhum direito” (1999a,p.86). A
maiorpartedas críticas feitas aHabermasidentificaoproblemada seguintemaneira:
ele estaria confundindo dois tipos de crítica ou reflexão, uma própria da tradição
kantiana, outra própria da marxista (cf. Bubner 1994; Bernstein 1985; McCarthy
1978).A reconstruçãodos interessesdaespécienãopoderia ser vinculadadeimediato
àcríticadadominação,masaumainvestigação sobreascondiçõesdepossibilidadedo
conhecimento e do seudesenvolvimentohistórico.Habermas reconheceuavalidade
dessas críticas e tentou solucioná-las distinguindo reflexão como reconstrução de
reflexão como crítica.No primeiro caso, trata-se já da reconstrução de sistemas de
regras profundas geradoras deobjetos simbólicos.No segundo caso,da críticacomo
descoberta depadrões ideológicos sistematicamenteproduzidos.Porém,ao fazer tal
distinção no posfácio de 1973, a teoria dos interesses cognitivos como tal deixa de
ser o seu alvo sistemático.
O segundoproblemadizrespeito aomodocomo elepensa tambémaprópriacrítica da ideologia nela mesma, pois, seé na li
w
_ ” __'
pela emancipação, é então nas relações intersubjetivas, afetadas por estruturas de
dominação,que se encontra adinâmica desse interesse.Ouseja,acrítica ideológica
se funda,nessecaso,nalutapor reconhecimento enadialéticada eticidadedojovem
HfigeL No limite, a luta de classes é interpretada como luta por reconhecimento.
Quando Habermas puhlica. meses depois. Técnica e ciência como “ideoloeia”,
toda a razão de ser _
criticando epressupondoparaacriticadopositivismonãoencontramaisnenhumano capitalismo tardio. Oproblema já não se encontrava na luta de
classes, e o tigodedominação tecnocrática nãopoderia ser pensado como lutapor
reconhecimento, justamente porque essa dominaçâoÿseTpresentava como uma
dominaçãdjécnica) Provavelmente foi esse o principalmotivo por que Habermas
abandona o objetivo de elaborar sua teoria dos interesses cognitivos. Como a
própria crítica da ideologia perde sua importância no contexto do capitalismo
tardio, também o conceito de autorreflexão, norteador daquela teoria, perde em
relevância sistemática (cf. Habermas 2002).
; (p dUT>ULAAOC«SO
rnl/nW ímdbc'
|, O GO 1 (V ofe 60 uclVv -mCwIx
i4 Tendo como objeto a formulação da categoria de reconstrução dada na
décadade 1970,Luiz Repamostraqueumareconstruçãoúnicase desdobraemdois
aspectos,emduas tarefas,aqueHabermasdáosnomes dereconstrução “horizontal"e “vertical”, referindo-se a elas como “lógica do conceito” e “lógica da evolução”,
respfrfivarpente. A primeira se ocupa da reconstrução “dos sistemas de regras
antropologicamente fundamentais (da lógica, da fala, da interação comunicativa,
da ação instrumental, da aritmética e da medição)”, lá a segunda se ocupa
processos de aprendizagem interna que incorporam, sob condições empíricas,
imeiro tipo de reconstrução busca explicitar”
Ciências reconstrutivas
“dosie
as :rsas coi
(Repa 2008a,p. 138; cf. igualmente Iser 2008; Pedersen 2008). Tal aprendizagemsocial é caracterizada cialmente por duas dimensões, uma filoeenética. outra
A• ontogenética,queHabermasexaminasegundoosaspectosdeuma“lógicaevolutiva”
edeuma“dinârniça evolutiva”.o
Ambos os aspectos são desenvolvidos, nos anos 1970, no âmbito daquelenovo tipo de ciência que Habermas denomina “reconstrutiva” e que ele distingue
< das ciências que caracteriza como hermenêuticas ou como empírico-analíticas.ciênciareconstrutivaprocurareconstruir os sistemas deregrasuniversais que estão
nabasede ações,manifestaçõeslinguísticas eoperações cognitivas eque são seguidas
j?or qualquer sujeito competente. Desse modo, ela pretende transformar o saberimplícito e intuitivo (saber pré-teórico) incorporado no uso daquelas regras em
um saber explícito (saber teórico).É justamente esse saber intuitivo que é objeto de
reconstrução,uma vez que ele é supostamente dado nas interações sociais. Caberia
Habermas e a reconstrução 2524 Papirus Editora
ao cientista reconstrutivo buscar identificar e analisar as regras, apreendidas no > outra. Tomemos primeiramente o que distingue a atitude reconstrutiva daatitudeprocesso de socialização, segundo as quais determinados construtos simbólicos se objetivante das ciências pmpíriro.analítiracefetivam napráxis social concreta. x Em primeiro lugar, a atitude reconstrutiva implica a participação em um
fk Para além das distinções dadas por seu objeto (regras lógicas, cognitivas, processodecomunicação,aopassoqueaatitudeobietivanteétípicadeumohservadnr
interativas etc.), as ciências reconstrutivas se diferenciam ainda segundo os de regularidades empíricas. Sem a postura de um participante (que seria típica damencionados aspectos horizontal e vertical. Em um plano “horizontal”, busca-se atitude interpretativa do hermeneuta), o cientista reconstrutivo não poderia terreconstruir as regras já opprantps no contexto das sociedades contemporâneas, acesso ao seuâmbito de objetos, justamenteum saber pré-teóricoqueconfiguraumaao passo que, em um segundo plano “vertical”, busca-se reconstruir a lógica da [_—* NXAXW
OV**ÿ40realidadesimbolicamente estruturada.Em segundolugar,nooueserefereàobtençãoevolução dessas regras àluz dahistória das sociedades,verificandoaté quepontoa -yvoiÿ dxw dedados,éaconsciênciaderegradefalantescompetentesoueostomaprimeiramente
dinâmicahistórica concreta obstruiuoupromoveu o desenvolvimento do sistema dio ueoV/rrífderegras.6Enquanto alógicaevolutivaprocuradeterminar asmargens devariação
deestruturasemumdeterminado processo de aprendizagem,a dinâmica evolutiva
explicita como as modificações suscitadas no interior delas se dão como resposta,
segundoprincípiospróprios,a “desafiosevolutivos”representados geralmentepor
problemas na reprodução material da sociedade.
Em que pese o sempre enorme leque de interesses teóricos de Habermas,
seus esforços se orientam, nessa época, para estabelecer os rudimentos teóricos
e metodológicos da pragmática universal ou formal, como principal ciência
reconstrutiva “horizontal”, e, no outro plano, uma teoria da evolução social.
A pragmática formal pretende reconstruir as condições de possibilidade do
entendimento mútuo mediado pela linguagem, vale dizer, o sistema das regras
que possibilitam o acordo entre sujeitos socializados linguisticamente. A teoria
da evolução social versa sobre o desenvolvimento das estruturas normativas que
tomarampossível o surgimento das sociedades modernas, no núcleo das quais se
podem verificar as regras da interação comunicativa.
«v Comojámencionado,asciênciasreconstrutivas “horizontais”,emparticular
apragmáticaformal,diferenciam-se dasciênciashermenêuticasou"compreensivas”
e das ciências empírico-analíticas, “nomológicas” ou, ainda, “objetivantes”. Não
obstante as ciências reconstrutivas não deixarem de se aproveitar dos recursos
e metas das ciências empírico-analíticas ou hermenêuticas, na medida em que
se mostrem apropriáveis, as diferenças entre as abordagens são marcadas. E o
que diferencia a atitude reconstrutiva de uma é exatamente o que a aproxima da
acessíveis, mediante procedimentos maiêuticos operacionalizados pelo cientista, e(fjkewíx- cLet éU#5 nãomediçõesdevariáveis,comonaabordagem empírico-analítica Fmtprreimlugar
no que diz respeito à relação entre a teoria e o âmbito objetual. a linguagem teóricanão representa uma metalinguagem em relação a uma linguagem-objeto: amhas
estão necessariamente no mesmo nível linguístico, sendo impossível estabelecer' uma hierarquia de linguagens conceituais. Em Quarto limar, para a relação entre a
teoriaeosabercotidianoaserreconstruído,resulta impossível falsear r> saher-ohjeftvsomente a reconstrução propriamente dita pode ser falseada. Do ponto de vista daciência objetivante,o saber cotidiano éuma espécie concorrente a ser corrigida Porúltimo, as reconstruções podem reclamar para si a possibilidade de corresponder
essenciàlmenteao saber intuitivo,que seriaproblemáticoparaas teoriasnomológicas.
*De outro lado, a atitude reconstrutiva se distingue da atitudehermenêuticaexatamente nos pontos de contato que guarda com as ciências nomológicas,
, especialmente em razão do caráter empírico das ciências reconstrutivas, no queelas se aproximam das ciências nomológicas e se afastam das hermenêuticas.Como aquelas, a ciência reconstrutiva procura produzir um saber explicativoe empiricamente falseável. Assim, se, de um lado, a ciência reconstrutiva poderecorrer aargumentos de tipo “transcendental fraco”paraadescobertadeestruturas
recorrentes queestariamnabase do saber intuitivoa serreconstruído-argumentoesse que receberá também a forma de contradiçõesperformativas -,deoutrolado,ela permanece no círculo das ciências empíricas, já que a reconstrução requersemprenovas averiguações,recorrendo-se a sujeitos empíricos,e sepresta tambéma um teste indireto baseado nas reconstruções evolutivas (cf. 1984b,p. 380 ss.).
>-Por sua vez, as ciências reconstrutivas voltadas para as tarefas de uma
teoria da evolução social se distinguem dos diversos tipos de pesquisa históricapor pretenderem articular uma reconstrução das diversas etapas evolutivas.organizando-as em uma hierarquia segundo a__estruturas normativas disponíveis em cada etapa. Metodologicamente relevante
6. Ao deixar de lado a articulação desses dois momentos reconstrutivos, Celikates comete
o erro de ver em Habermas, após Conhecimento e interesse, um conceito de reconstrução
centrado unicamente na pragmática formal e, por isso, abstraído da história e da críticasocial; cf. Celikates 2009,p. 188 ss.
is
26 Papirus Editora Habermas e a reconstrução 27
nessecaso é amencionada distinçãoentre lógicaevolutiva,isto é,o espaço lógicoem
que se apresentam e variam os potenciais e os limites das estruturasnormativas,e a
dinâmicaevolutiva,ouseja,osprocessos factuais quecontribuíramparaimpulsionarouimpedir determinado desenvolvimento estrutural.Dessamaneira,areconstrução
evolutiva também se alimenta daspesquisashistóricas tradicionais,principalmenteno que se refere aos processoshistóricos que teriamcolocado desafios às estruturas
já alcançadas ou, inversamente, a como tais estruturas representam problemasque suscitaram novos processos históricos. Além disso, a lógica evolutivadeve ser
pensadacomo um processo de aprendizagem, de moj
por que uma etapa é capaz de resolver problemas da etapa anterjqrÿjiemperder o
saber acumulado nela.Como o conceito deprocesso de aprendizagem,retirado de
Piaget,é reportadounicamente a umalógicaestruturalenão à dinâmica factualdos
processos históricos, a teoria da evolução socialpoderia se contrapor aos diversosmodelos de filosofia da história. Ou seja, não se pressupõe um sujeito unitário,
nemcontinuidade,nem necessidade ou irreversibilidadeparao decursohistórico.
complementares e não momentos de uma unidade superior. Nesse sentido,
o conceito de racionalidade assim projetado estabelece domínios (em
terminologiakantiana), mas domínios concretos de ação social,o que permitetambém estabelecer critériosparadeterminarpatologias:usurpaçãodedomínio(parapermanecer na terminologiakantiana). A ideiamesmade“reconstrução”ancora-senopressuposto deumaracionalidadesocialcomplexa,deumarazão
que se diferenciou e quecristalizouessa sua diferenciação emestruturas sociaiscom lógicas diversas. (Nobre 2008c, p. 273)
;ar Se a razão se diferenciou social e concretamente, é preciso reconstruir a
história dessa diferenciação. E, seguindo o diagnóstico do próprio Habermas dobeco sem saída da vertente de esquerda do projeto moderno (cf.Nobre 2000), issonão pode mais ser feito mediante recurso a uma filosofia da história. Terá de serfeitopor meiode uma teoria da evolução social de característica falível,ouseja,pormeio de uma reconstrução dos saberes pré-teóricos de característicauniversal que
& não tenha pretensão a uma fundamentação última. Com isso, a reconstrução deestruturas universais realizada pelapragmática universal7 poderá contar comuma
“confirmação indireta”. Se for possívelmostrar,por exemplo,que outras estruturas
ououtras formas dediferenciação teriam sidopossíveis,caso as condiçõeshistóricasconcretas fossem outras, então, a pretensão de universalidade das reconstruçõeshorizontais é afetada. Nesse caso, as regras identificadas noprimeiroplano seriam
particulares e determinadas por completo por uma dinâmica evolutivaparticular,própria de uma sociedade e deuma cultura.
n8 A relação entre os dois aspectos da reconstrução, porém, não se esgota
na tentativa de confirmações empíricas indiretas. De outro ponto de vista, é
a reconstrução evolutiva que tem precedência sobre a “horizontal”, uma vez
que cabe àquela explicar por que o
sociedades contemporâneas, a estruturas supostamente universais passíveis deuma reconstrução interna. Como a teoria da evolução social deve não só explicarcomo se diferenciou a racionalidademoderna,mas tambémpor que as sociedadesmodernas se caracterizam por patologias modernas que implicam domínios deracionalidade aomesmo tempo fundamentais eusurpados,areconstruçãoevolutivapermiteexplicar por que os saberespré-teóricosdapráxis socialcotidianaapontam
!
Dessa maneira, a reconstrução horizontal tem certa precedência sobre a
vertical,no sentido de que orienta aprópria investigação genéticapor realizar;esta,
por sua vez,confere indiretamentemaior plausibilidade àprimeira.A reconstrução
horizontal orienta a teoria evolutiva não somente porque apresenta as estruturas
básicas de racionalidade (no caso,o sistemaderegras do entendimento linguístico)
como objeto a ser reconstruído de um ponto de vista genético, mas também essas
estruturaspermitemdecifrar alógicade estruturasnormativasemetapas anteriores
da evolução social, isto é,permitem identificar os potenciais e os limites dessas
estruturas anteriores à luz dos seuspróprios potenciais e limites. Reconstruções
evolutivas são, nesse sentido, retrospecções efetuadas com base nas estruturas e
nos problemas sociais relevantes do presente. pOiuvucuCOj ;«\jutAxUó
Simultaneamente, as teorias reconstrutivas evolutivas conferem maior
plausibilidadeàs“horizontais”,dado tanto ocaráter genético-empírico próprio das
nas
reconstruções verticais como de sua específica orientação para a compreensão da
passagemdas sociedades tradicionaisparaas sociedadesmodernas. Asreconstruções
verticais -nomarcomais geraldeumátêõríã da evõlução social - devempermitir
mostrar como a racionalidade social, reconstrutível como unidade nas sociedadestradicionais, diferencia-se (concretamente) a tal ponto nas sociedades modernas
que já não é possível reconstruí-la segundo os padrões de uma razão una.7. Sobre a orientação fundamental da pragmática universal (posteriormente denominada
pragmática formal) para uma ética do discurso e, posteriormente, para uma teoria dodiscurso, bem como seu confronto com a versão que lhe deu Karl-Otto Apel, consultarCenci 2011.
Além disso, trata-se também de mostrar que, ao acolher essa diferenciação
dentro si, por sua vez, a teoria projeta um conceito de razão em que as diversas
racionalidades se revelam
28 Papirus Editora Habermas e a reconstrução 29
dadas as condições para apresentar uma teoria da racionalidade com base em
substantivos de ciências reconstrutivas, Habermas toma as teorias dajragionalidademoderna disponíveisparadar contanão apenas dejuadiferenciaçâojLJffagJ?at°l°gias suscitadas pela usurpação de um domínio por outro, mas
também dosjmenciaiÿrnancipatórios nãp explorados nas sociedades modernasracionalizadas. Ê dessa maneira que o conceito de reconstrução se orienta para a
realização de um diagnóstico crítico do tempo presente capaz de determinar asprincipais patologias modernas, justificar seus critérios normativos,jdentificar ospotenciais emancipatórios inscritos nas sociedades modernas contemporâneas e.
em última instância, explicar historicamente a si mesmoi Como já mencionadoanteriormente, todos esses objetivos se encontramdirigidos,nocontexto da Teoriada ação comunicativa, para o projeto mais amplo de reconstrução de “estruturasdo agir e do entendimento inscritas no saber intuitivo de membros competentesdas sociedades modernas” (ibid.,v. II,p. 562).
Ocorre que as duas classes de ciências reconstrutivas essenciais a esse
projeto permaneceram em estado de esboço. Habermas não fez senão indicar -principalmente nos trabalhos reunidos no volume de Estudos preparatórios àTeoria da ação comunicativa (1984b) em Para a reconstrução do materialismohistórico (1990c) e ainda em Consciência moral e agir comunicativo (1989) - aslinhas fundamentais segundo as quais esses dois campos de investigação teriam deser explorados. Essa exploração ulterior,entretanto,não aconteceu.
Ainda assim, Habermas continua a pressupor esses desenvolvimentos não
realizados para sustentar a estrutura sistemática da Teoria da ação comunicativa.De acordo com o quadro proposto na década de 1970, evitar o recurso a umafilosofia da história e, ao mesmo tempo, fundamentar a ideia de uma sociedadepós-tradicional,exigiu a proposta deuma reconstrução “quase transcendental” daracionalidade que podia encontrar uma “confirmação indireta” por meio de uma
teoria da evolução socialdecaráter falível. Aconteceque»»nem apragmáticanema
sua contrapartida reconstrutivavertical foramde fato desenvolvidas e apresentadas.E,no entanto, os resultados a que elas deveriam ter chegado continuampostos na
base dosdesenvolvimentos teóricosdeHabermas tambémdepoisda décadade 1970.
•Talvez seja esse peculiar estado de coisas o que pode explicar a presençaapontada por Luiz Repa, já no contexto da Teoria da ação comunicativa, de outro
sentido de “reconstrução”, o de uma “reconstrução sistemática da história dateoriada sociedade tendopor finalidadeuma teoriadaracionalização social” (Repa2008a,p. 139). Não dispondo dos desenvolvimentos necessários das duas ciênciasreconstrutivas que estabeleceu comopilares de sua teoria, mas, ao mesmo tempo,
para uma concepção complexa de racionalidade, ou seja, justamente na medida
emque a racionalidademoderna se torna problemapara os sujeitos das interações
sociais efetivas.
A unidade desses dois momentos da reconstrução parece ter sido dada na
abertura do livro Para a reconstrução do materialismo histórico: “Toma-se uma
teoriaem seus elementosconstitutivos e se os rearranjaemnova forma,demaneira
a mais bem alcançar o objetivo a que ela se tinha proposto” (1976, p. 9). Esse é
o sentido geral de reconstrução, aquele que orienta e dá certa unidade aos dois
outros, o vertical e o horizontal,o que é compatível com a ideia mais geral de que
as reconstruções vertical ehorizontal são aspectos de uma e mesma reconstrução,
que é própria de uma teoria da racionalidade.
Reconstrução da história da teoria
No entanto, essa teoria da racionalidade em sentido amplo não foi o que
acabou sendo desenvolvido na obra de referência de Habermas, a Teoria da ação
comunicativa, de 1981. Nesse contexto, Habermas não vê sentido em uma forte
separação entre elaborações sistemáticas e história da teoria. Para ele, seria possível
alcançar resultadps semelhantes ou até mais precisos aos pretendidos pelo proieto
das ciências reconstrutivas mediante o recurso aos grandes teóricos da sociedade
como Weber, Durkheim e
como fontes de explicaçõesparaosproblemas contemporâneos.Eéexatamenteesse
oprocedimentoque eleadotana Teoria da ação~comunicativa\Para tanto,oprimeiro
passo é afastar a suspeita deque o recurso àhistória da teoria se daria “por uma falsacomodidade,que sempre seinsinuaquandonãopodemos elaborar firontalmenteum
problema”. Ao mesmo tempo,porém, não deixa de reconhecer o "grande esforço”
necessário ainda para desenvolver investigações empíricas a respeito dapragmática
formal(1984a,v.I,pp.200-201).Omesmopoderia ser ditode sua teoria da evoluçãosocial, esboçada emPara a reconstrução do materialismo histórico.
E, no entanto, tudo se passa como se os resultados esperados do efetivo
desenvolvimento das duas classes de ciências reconstrutivas tivessem sido, de
alguma maneira, alcançados. Isso porque os objetivos emancipatórios da teoria
são atingidos, indiretamente, por meio da reconstrução de reconstruções, da
reconstrução de teorias sociais clássicas e concorrentes que,por sua vez, são cada
uma a súmula reconstrutiva de investigações empíricas. Ou seja, em não estando
i:
i
Habermas e a reconstrução 3130 Papirus Editora
utilizando o próprio quadro teórico colocado por essas ciências ainda em estado
de esboço como se concluído estivesse, Habermas passa a buscar na teoria social
clássica esses elementos faltantes. É esse deficit do projeto da década de 1970 que
orienta sua leitura dahistória da teoria dasociedade e que estrutura esse que pode
ser chamado de outro sentido de reconstrução.8
E,aomesmo tempo,isso significa que a composição entre teoria tradicional
e teoriacrítica semodificourelativamenteaos modeloscríticosanteriores. A partir
da Teoria da ação comunicativa, pode-se dizer que
Desde os escritos de Horkheimer da década de 1930, a teoria críticaprocurouconciliar dediferentes maneirasprocedimentos de crítica imanente dascontribuições tradicionais com investigações próprias, criticamente orientadas.Também Habermas enfrentou esse problema a partir do momento em queformuloua ideia de “reconstrução”. Se, na década de 1970, pensou ainda poderlevar adiante o projeto de desenvolver algumas ciências reconstrutivas queconsiderava essenciais para o projeto crítico como um todo, seus escritos dadécada de 1980 projetaram umatradicionais ganha prioridade sobre eventuais esforços empíricos próprios porparte da teoria crítica.
Não se trata de afirmar que esse novo sentido de reconstrução presente naTeoria da ação comunicativa veio substituir as reconstruções vertical e horizontalnas tarefas quelhes sãopróprias.Porém,é certo que a ausência de desenvolvimentossubstantivos originais nessas duas direções fez com que Habermas acabasserecorrendoaoexpediente debuscar nas teorias sociais clássicas e contemporâneasos “elementosconstitutivos” dessas duas vertentesreconstrutivas,que seriam entãorearranjados - como já mencionado - “em nova forma, de maneira a mais bemalcançar o objetivo a que ela se tinha proposto” (1976,p. 9).
Esse novo sentido de reconstrução,emque ahistóriada teoriada sociedadeganhaprecedênciacomomaterialimediatoaser decompostoerearranjadoemnovaforma,mostraque,apartir da década de 1980,Habermas dedica-se essencialmenteàreconstrução deconhecimentos e saberes existentes.No entanto,curiosamente,oprincípio sistemático de sua reconstrução continua a ser dado peloque antes eramos objetivos mais gerais das reconstruções verticais ehorizontais quenão tiveramdesenvolvimentos expressivos.
»Como a pragmática formal e a teoria da evolução social nãq tiveram
~comunicativa, a recorrer ao conhecimento disponível nas ciências snriaic. em_
______ial. Como
bem mostrou Clõdomiro Bannwart Júnior, restou do esquema anterior apenasuma noção bastante abrangente de aprendizagem - certamente importante efrutífera,masquenão tinha a abrangênciapretendidapelas ideias de “princípio deorganização”e “estruturasnormativas”.Foi tambémcom essa noção menos robustade aprendizagem que Habermas tentou resolver, por exemplo, o problema dahomologiaentre ontogênesee filogênese,quehavia ficadoemabertonos trabalhosdos anos 1970 (cf. Bannwart Jr. 2008).
constelação em que a crítica das contribuições
Habermas incorpora a Teoria Tradicional à Teoria Crítica, ou seja, o seu
conceito de teoria inclui a Teoria Tradicional, que é certamente uma
perspectiva parcial, mas, agora, no sentido de que é uma parte da teoria.
Horkheimer entendia o “parcial” como “integração ao todo que lhe dá
sentido” (...). Habermas interpreta essa operação como soma, interpreta
o “parcial” como incompletude, como parte que não faz sentido sem seu
“complemento”.Comisso,aTeoriaTradicionaléparcialapenasnosentidode
quepressupõeumconceitounilateralde racionalidade. (Nobre 2008c,p.380)
•*Essemovimento,por sua vez,está intimamenteligado ao fato de que anova
proposta de Habermas para a relação entre teoria tradicional e teoria crítica na
década de 1970- configuradanaideia de “ciênciareconstrutiva”, justamente -não
foilevadaadiante.Habermasrecuoudeumaposição francamente ofensiva-emque
a teoriacríticaassumiria o controledaproduçãodeumnovo tipodeconhecimento,
aquele próprio das “ciências reconstrutivas” - para uma posição mais próxima
do “parasitismo” da teoria tradicional que caracteriza mais amplamente o campo
crítico.E,no entanto -nunca é demais enfatizar -,essaprimazia domomento que
chamamos de“crítica imanente” da teoria tradicionalsignificou tambémumnovo
arranjo, em que as contribuições tradicionais dão conta de uma das perspectivas
em que se distingueintemamenteaprópriaracionalidade, faltando-lhe a dimensão
comunicativa que, afinal, dá o sentido último de toda coordenação social.
-V
particular aquele cristalizado em
8. Deficitquepodeajudar aexplicarasurpreendenteproximidadeentrea forma de exposição
do programa esboçado em Técnica e ciência como "ideologia”, de 1968, e a realização
do programa na Teoria da ação comunicativa. Também no texto de 1968, tratava-se
essencialmente de uma exposição guiada por algo próximo do que viria
“reconstrução sistemática da história da teoria da sociedade”. Com a decisiva diferença,
entretanto,de que,entre os dois momentos, esteve o programa ambicioso da produção das
“ciências reconstrutivas”.
a ser uma
32 Papirus Editora Habermas e a reconstrução 33
assim dizer, “indiciária” de apresentar elementos das elementos faltantes das reconstruções da pragmática e da teoria da evolução, elasganham sua sistematicidadeemrazão dosnúcleos teóricos esboçadospelas últimas.
*- Além disso,o tipo de reconstrução queHabermas realizouposteriormenteà Teoria da ação comunicativa fornece mais pontos de apoiogeral defendida aqui de que “reconstrução” deixou de significardesenvolvimento-das “ciências reconstrutivas” para se tornar a busca, nnconhecimento disponível, dos elementos capazes de corroborar as ideias e tesesestruturantes das duas classes de ciências reconstrutivas fundamentais para nspropósitos de uma teoria da racionalidade que seja sustentáculo de uma teoria daação comunicativa.
Essa forma, por
reconstruções vertical e horizontal pode ser encontrada também, em outra
formulação, no Discursofilosófico da modernidade (1985), por exemplo, em que
Habermas procura, nos diferentes autores, elementos quç mrefiguram (na forma
de pistas, de rastros) a vertente comunicativa da modernidade ou, ao contrário,
elementos quelevam seja aoconservadorismo, sejaànegaçãodoprojetomoderno,
seja a seu travamento. Trata-sede umabusca“indiciária”na teoria social, que tem
de solucionar pelo menos dois problemas.Em primeiro lugar, uma passagem da
forma tradicional de sociedade para a sua forma moderna, em que uma teoria
da racionalização não se limita, como foi o caso de Weber, à ancoragem da ação
racional com respeito a fins no sistema do trabalho social da perspectiva de uma
racionalidade com respeito a valores, ou seja, não se'limita a explicar como a
racionalidade comrespeito a fins foi institucionalizadaecomo foiproduzidauma
base motivacional para ela.Em segundo lugar,entretanto,a crítica àparcialidade
dateoriadamodernização weberiananãopodeselimitar,por suavez,ameramente
indicar qual seria o lugar de uma racionalidade comunicativa nesse processo,
tem ainda de mostrar o ancoramento positivo da racionalidade comunicativa na
sociedademoderna.
A cada uma dessas tarefas corresponde, a nosso ver, a divisão interna
da própria Teoria da ação comunicativa. Se o seu primeiro volume pretende
essencialmente apresentar um conceito de modernização social que pode ser
obtidobasicamentemediante uma ampliação da sua versão weberiana,o segundo
volume tem a tarefa de encontrar na teoria social de Mead a Parsons e Piaget
os elementos que atestam a inscrição da lógica comunicativa na sociedade
modernizada. Por outras palavras, para apresentar em toda a sua amplitude a
ideiamotriz de sociedadepós-tradicional,Habermas necessita não apenas de
conceito de modernização ampliado,mas de unia reconstrução das estruturas de
socialização que permitam mostrar a inscrição efetiva dos potenciais liberados
pelamodernizaçãona vidacotidianaenas instituições. Ou seja,uma vezmais,são
os objetivos das reconstruções vertical e horizontal que guiam e orientam a busca
pelos elementos de reconstrução nas teorias disponíveis.
Issonão significa,vale insistir,queHabermasnão seaproveitedosresultados
de suas incursões no terreno da pragmática formal ou no âmbito da teoria da
evolução social.Na Teoria da ação comunicativa,as considerações intermediárias
que seintercalamnareconstruçãodahistóriada teoriaincorporamesses resultados,
mas sempre a titulo de esboço e se alimentando das reconstruções da história da
teoria. Portanto, ao mesmo tempo em que tais reconstruções devem fornecer os
para a nÿjc
um necessário
Reconstrução eprocedimentalismo
Não há, emDireito e democracia, a proposta de uma ciência reconstrutivapara o direito e para a política - apesar da já mencionada familiaridade, a serainda investigada, com algo do velho projeto na proposta de um “paradigmaprocedimental do direito e da política”. Ao contrário, são os conhecimentosdisponíveisdasciênciassociais (incluindoaquiodireitocomodisciplinacientífica)sobre esses objetos que são objeto de uma reconstrução segundo os parâmetrosmais gerais que orientavam as propostas reconstrutivas dos anos 1970.
ANão é casual que os desenvolvimentos reconstrutivos em que Habermasainda se empenhou depois da Teoria da ação comunicativa tenham sido todosno âmbito da ética do discurso. Tampouco é casual que - no intervalo de apenasum ano entre a publicação deEsclarecimentos sobre a ética do discurso,em 1991, eDireito e democracia, em 1992-Habermas tenha mesmo alterado a denominaçãopara teoriadodiscurso.Nocontextodenossainterpretação,a denominação “teoriado discurso” passou a ser uma súmula,um conjunto de sinalizadoresnormativos,por assim dizer, para os elementos que foram preservados do antigo projeto deuma teoria geral da racionalidade fundada em um desenvolvimento de ciênciasreconstrutivas que, entretanto,não chegou a se efetivar.
\0projeto teórico de Habermas, como já ressaltado, não foi repensado emfunção desse deficit. Entretanto,pode ajudar a entender orearranjo de elementosqueépróprio dosescritos deHabermas apartir da décadade 1990a ideiade que ateoria do discurso,mesmo sem seu desdobramento em uma pragmática formal esemacontrapartidadeuma teoriadaevoluçãosocial, tenhapassadoadesempenhar
um
Habermas e a reconstrução 3534 papirus Editora
o papel de repositório dos sinalizadores normativos fundamentais desse antigo
projeto. O que ajuda ainda a explicar o fato umtanto inusitado- quando pensado
daperspectiva dosprojetos das décadas anteriores,pelomenos -de que o subtítulo
do livro de 1992 seja justamente “Contribuições à teoria do discurso do direito e do
estado democrático de direito” (grifos nossos).
Isso significa que nâo se está lidando aqui - como se pode dizer da Teoriada ação comunicativa- apenas comuma “reconstruçãodahistóriada teoria” com-o fim de atingir indiretamente o objetivo de revelar as “estruturas do agir e doentendimento” necessariamente pressupostas à reprodução material e simbólica
'ÿ* da sociedade. Em Direito e democracia, a reconstrução tem de lidar com uma“históriada teoria”queé tambémparteessencialdaautocompreensão de instituiçõessociaisformais.E, nesse sentido, toda reconstrução dahistória da teoria temde serconsiderada tambémcomo reconstruçãodoprocesso de formação de instituições,já que, segundo o quadro mais amplo de uma teoria da ação comunicativa, oprocesso de formação de instituições sociais não pode ser compreendido em todaa sua amplitude sem a consideração dos diferentes estágios de autocompreensãoenvolvidos.
Entendidadessamaneira,a teoriadodiscurso passa aregularnormativamente
todos. os.âmbitos em aue estão envolvidos procedimentos de reconstrução da
autocompreensão de sociedades modernas cujos mundos da vida passaram jjor
sentido, compreende-se que seu campo deprocessos de racionalização. E, nesse
aplicação seja tão vasto quanto vastoéo campo de objetos emque se cristalizam tais
processosdeautocompreensão,processosDensadosiemDrenocontextodeumateoria
da ação comunicativa.’ Ouseja,umateoria do discurso que,no caso do direito edo
estado democrático de direito, sublimou os elementos de uma pragmática formal
e de uma teoria da evolução social na forma de sinalizadores para a reconstrução
A racional de instituições sociais, no sentido mais formalizado da expressão. Em
Direito e democracia,não se trata,comona Teoria daação comunicativa,doprojeto
maisamplo de reconstruir “estruturas do agir e do entendimento inscritas no saber
intuitivo de membros competentes das sociedades modernas” (1984a, v.II,p. 562),
de, seguindo em sentido inverso, encontrar nas instituições formais existentes
funcionamento indícios de que, sem a pressuposição dessas estruturas, sem
Isso significa, em sentido mais amplo, que, em Direito e democracia,Habermas realiza a passagem entre a base comunicativa da sociedade. e sua“superestrutura” institucional, usando como fio condutor a metáfora do direitocomo “transformador”.10 Essa passagem exige procedimentos reconstrutivos dediferentes tipos e características, conforme se trate da reconstrução do sistema dedireitos,dalógica jurisdicionaljoudapolíticademocrática. São procedimentos quecombinam aideiada Teoria daaçãocomunicativa deuma“reconstrução dahistóriada teoria” (teoria do direito, principalmente)11
mascom resultados de investigações
empíricas das ciências sociais sobre a democracia e o direito, desde os trabalhosde T.H. Marshall ou R.A. Dahl até a teoria da circulação do poder de B. Peters,por exemplo.
e em
consideração pela lógicada autocompreensão, que éparte essencial de seu próprio
funcionamentocomoinstituiçõessociais,odireitoeo estadodemocráticodedireitosó
podem ser reconstruídosdemaneiraparcial.Essa foiamaneira,aliás,queHabermas
encontroupara seopor tanto aumadissoluçãopuraesimplesdodireitoracionalem
estudos empíricos que mostramo “desencantamento do direito” como à tendência
normativistaque,segundo seudiagnóstico,passouarevalorizar “demaneiraumtanto
imediata”atradiçãododireitoracionalemreação justamenteaessasinvestigaçõesdas
ciências sociais que tinham solapado o “normativismo jusracionalista”, reação cujo
representante mais destacado é John Rawls e seu Uma teoria dajustiça (Habe
1994a,pp.78-79).
!Mais significativo, porém, é o fato de que Direito e democracia abre a
possibilidade de umaleitura segundo a qualHabermas passaria,nesse contexto, aadotar procedimentos que combinariam elementos reconstrutivos com modelosconstrutivos. Semelhante, leitura pode se apoiar, por exemplo, no caso dareconstrução da génese do direito e dapolítica, tal como apresentada no capítuloIV do livro. Habermas constrói um modelo abstrato que seleciona “aspectosrelevantes” deummaterialantropológico de “profusão inabarcável”, material queinclui o próprio livro de Habermas de 1976,Para a reconstrução do materialismo
rmas
9. Entremuitosoutrospossíveisexemplos,tome-seo trechoinicialdaapresentaçãogeralquedá
Habermasdoconteúdodosdiferentescapítulosdolivro:“Nosdoisprimeiros capítulos,persigo
o duplo objetivo de esclarecer por que a teoria da ação comunicativa atribui uma posição
central à categoria do direito e por que ela, de sua parte, constitui um contexto apropriado
para uma teoria discursivado direito.Trata-separamima esse respeito da elaboração de uma
abordagem reconstrutiva que acolhe ambas as perspectivas: aquela da teoria sociológica do
direito e ada teoria filosófica da justiça” (1994a,p. 21).
10. “A linguagem do direitoconduz as comunicações do mundo da vida, oriundas das esferaspública e privada, segundo uma forma que permite serem tomadas também pelo códigosespecializados do sistema de ação autorregulados - e vice-versa. Sem esse transformador,a linguagem comum não poderia circular por toda a sociedade" (1994a, p. 429).
11. Sobre esse e outros aspectos, consultar Silva 2010.
Habermas e a reconstrução 3736 Papirus Editorai
histórico,bem como olivro de Klaus Eder,escrito no contexto do mesmo projeto
de produzir uma teoria da evolução social e publicado no mesmo ano. Ou seja,
Habermasconstróiummodelobaseado emelementos do antigoprojeto dasciências
reconstrutivas dadécada de 1970que,afinal,permaneceuemestado de esboço.Nas
suaspalavras: “Para a génese do direitoedapolítica eÿéolho,comefeito,a formade
apresentação deummodelo abstratoque,nointeresse dareconstruçãoconceituai,
ressalta apenas algunsaspectos relevantes emmeioaumaprofusão inabarcávelde
materialantropológico” (1994a,p. 173).Não é claro,por outro lado,se tal recurso
“construtivo” já não aparecia de uma forma ou de outra nos projetos anteriores
de reconstrução,no mais das vezes incorporado a modelos típico-ideais de ação,
interação, diferenciação estrutural etc.
Maissignificativaemrelação a isso,porém,é,sem dúvida, apropostade um
“paradigmaprocedimentaldodireitoe dapolítica”que,como Habermaspretende,
“supereemsi” (insichaufhebt) osparadigmas existentesdodireito formalburguês
e do direito materializado doEstado socialNas suas palavras:
paradigmas clássicos,a reconstrução daautocompreensãoprocedimentalista devepoder influenciar osprópriosoperadoresdodireito,àmaneira de um“empurrão”adiante no processo.
Essa vertente “construtivista” e “ofensiva” está ligada a um determinadodiagnóstico do momento presente, que pretende mostrar a plausibilidade epossibilidade real de desenvolvimento do paradigma procedimental, pois, paraHabermas,
(...) odireitoatualéexercidocombaseemimagensmuitoconcretas decomodeva ser a sociedade. Para ele, os dois grandes paradigmas desse direitoconcretista são o modelo social e omodelo liberaldodireito. Esses modelospor demais concretistas de organização social não só não encontram maisrespaldo no funcionamento efetivo das sociedades como não se coadunamcom o processo cada vez mais intenso de pluralizaçào das formas de vida,processo iniciado com a passagem para a modernidade e que tende a seaprofundar. Da mesma forma, também o processo judicial não pode serestruturado de antemão por paradigmas jurídicos lastreados em modelosdeterminados de sociedade. Com o aprofundamento da modernidade e oscrescentesconflitosentreeticidadesdiversas,éprecisogarantir queodireitoe apolítica,que as instituiçõesdemocráticasnãorestrinjam aspossibilidadesde discussão ao favorecer determinadas formas de vida em detrimento deoutras. (Nobre 2008b,pp. 34-35)
Os doisparadigmas do direito maisbem-sucedidos na modernahistória do
direito e que até hoje concorrem entre si são o direito formal burguês e o
direito materializado do Estado social. Interpretando a política e o direito
em termos da Teoria do Discurso,pretendo dar contornos mais precisos a
umterceiroparadigma do direito que supere em si os outros dois. Eu parto
da ideia de que, aos sistemas jurídicos surgidos no fim do século XX nas
democracias de massa dos Estados sociais, é adequada uma compreensão
procedimentalista do direito. (Ibid.,pp.238-239) Noentanto,porvariadosquesejamemnatureza eobjetivos,osprocedimentosreconstrutivospresentesemDireitoedemocraciamantêmsuaunidadenareferênciacomum à ideia do direito como “transformador”, pois, ainda que se trate dareconstrução da história da teoria dos direitos subjetivos, dopoder administrativooudapolíticadeliberativa,é da reconstrução daracionalidadedapassagemda basecomunicativada sociedade a sua"superestrutura” jurídico-estatalque se trata.Comanovidade,entretanto,dequetodosessesdiferentesmomentosreconstrutivosestãoagora orientados para e pela ideia normativa mais geraldeprocedimento,súmulanormativa da própria teoria do discurso. Ao “reconstrutivismo”próprio da teoriade Habermas desde a década de 1970, veio se somar certo “construtivismo”,aindaque cauteloso, orientado pela ideia de um “paradigma procedimental do direitoe da política”.
Nesse sentido, se a Teoria da ação comunicativa pareceu de certa maneira“recuar” para uma reconstrução limitada ao sentido de “reconstrução dahistóriada teoria”, em Direito e democracia, ao se colocar o problema da transformação
No contexto inteiro da obra, essa passagem sinaliza para a tentativa de
construir elementos teóricos importantespara complementar a reconstrução dos
potenciais“procedimentalistas”dodireitoexistente,articulando-osemummodelo
paradigmático capaz de superar os outros dois. Esse recurso “construtivista”,
limitado e subordinado ao viés reconstrutivo da obra, deve-se, a nosso ver,
justamente à ausência depesquisas empíricascapazes de dar suficiente densidade
à reconstrução da autocompreensão de uma comunidade de parceiros de direito
no sentido pretendido por Habermas. Por outro lado, ele pode estar associado
também ao caráter de “gestação” da compreensão paradigmática almejada, de
modo que o esforço construtivo procure conferir “contornos mais precisos”
por uma espécie de antecipação conceituai. Vai de par com essa ofensividade
teórica construtiva certa tendência “ativista”, no sentido de que, para além dos
38 Papirus Editora Habermas e a reconstrução 39
£ certo que pareceparadoxal a ideia de umapressuposição que jánãopodeconfirmada pelas regras de verificação estabelecidas pela própria teoria que a
estabeleceu como pressuposição. Por outro lado, entretanto, seria possível dizerque Habermas se moveu em direção à proposta de um modelo teórico que aindaespera sua confirmação - indireta que seja - por investigações empíricas futuras.Seja como for, a comparação com o modelo das ciências reconstrutivas da décadade 1970mostraqueomodelo se colocouemumnívelde abstração mais alto,o que,por sua vez, representouum recuo teórico significativo em relação aos parâmetrosestabelecidos pela própria proposta de Habermas.
Além disso, o novo nível de abstração em que se colocou o modeloreconstrutivo de Habermas também impôs um desafio adicional correspondenteem relação ao ancoramento de suas pretensões na realidade social do presente,tal como exige a tradição da teoria crítica. Sem o apoio de resultados robustos dereconstruções verticais ehorizontais,o diagnóstico de tempopassa a desempenharum papel essencial na tarefa de tornar plausível tanto o poder explicativo dareconstrução como sua capacidade de delinear tendências e apontar potenciaisemancipatóriosnomomentopresente.Por fim,veio se somar aesse desafio adicionalimpostopelaelevaçãodograudeabstraçãodateoriaaretomada,emnovos termos,da ofensividade da década de 1970, representada pelo caráter eminentementepropositivo do paradigma procedimental do direito e da política, um elementoque antes não fazia parte de sua proposta teórica como tal e que representa umanovidade também em relação à tradição da teoria crítica.
É de se notar, entretanto, que essas novidades foram em boa medidaacolhidas por grande parte do universo crítico pós-habermasiano, porcomo Seyla Benhabib e Nancy Fraser, ou mesmo Axel Honneth - apenas paramencionar algumas importantes propostas dessa vertente crítica. Nesse universoteórico, a reconstrução, em seu novo sentido de reconstrução da história dateoria, é tomada como pressuposto e ponto de partida, sem qualquer referênciaà necessidade de comprovações indiretas por meio de reconstruções verticais ehorizontais.E,emmuitos-senão na maioria- dos casos, também é tomada comopressuposta a necessidade de avançar modelos institucionais condizentesconjunto de sinalizadores normativos fixado por Habermas a partir da Teoria daação comunicativa.
Não nos propomos aÿui discutir em detalhe essa nova configuração docampo crítico resultante da própria evolução do pensamento de Habermas,acreditamos que essa discussão só possa ser feita de maneira informada e em todaa sua amplitude teórica se se levarem em conta as sucessivas transformações da
depoder comunicativo empoder administrativo, de liberdadescomunicativas em
liberdades jurídicas, Habermas como que retoma, de certa maneira, uma postura
“ofensiva” mais próxima do projeto da década de 1970, ainda que em um sentido
inteiramente diverso, porque, em Direito e democracia, Habermas propõe um
paradigma de autocompreensão e de funcionamento do estado democrático de
direito.Emoutraspalavras,se,napropostadasciênciasreconstrutivas da década de
1970,a ofensividadeera,por assimdizer, teórico-científica,emDireito edemocracia
ela se torna prático-institucional.
ser
Conclusão e perspectivas
Oresultadodopercursonão deixa de ser,decertamaneira,paradoxal,pois,
se é verdade que o projeto inicial, que exigia o desenvolvimento de duas classes
de ciências reconstrutivas, foi abandonado ou simplesmente adiado de maneira
indefinida, não foram abandonadas, entretanto, as diretrizes normativas que as
animavam.Ouseja,mesmo apóso abandono ouadiamentodo desenvolvimento das
ciênciasreconstrutivasemsentido enfático,Habermascontinuouadesenvolver seu
projeto teórico como se osresultadosprometidospor elas tivessem sido efetivamente
alcançados.Comonãoo foram,Habermasconcentrouenergiasnonovosentidode
reconstrução surgido na Teoria da ação comunicativa, a reconstrução da história
* da teoria. Porém, mesmo esse novo sentido de reconstrução passou a pressupor,
confirmadas pelas ciências reconstrutivas, as diretrizes normativas quecomo
as animavam. Essa pressuposição mostra que certo conjunto de sinalizadores
normativos que orientaram a proposta das ciências reconstrutivas foi preservado
e orientou a própria reconstrução dahistória da teoria.
nomes
*• Com Direito e democracia, à reconstrução da história da teoria veio se
reconstrução da racionalidade de instituições sociais, também orientadasomar a
pelo conjunto de sinalizadores normativos preservados e agora sintetizados sob
o rótulo teoria do discurso. A novidade neste último caso está em que Habermas
não apenas reconstruiu a racionalidade do direito e do estado democrático de
direito,mas o fezde talmaneira quepropôsumparadigmaalternativo não só para
a autocompreensão dessas instituições, mas igualmenteparao seu funcionamento
concreto,paradigmaque ele chamoude “procedimental”.Nesse sentido, é possível
dizer queaprópria teoriado discursopassoua ter comocentroorganizador aideia
com o
mas
de “procedimento”.
Habermas e a reconstrução 4140 Papirus Editora
A RECONSTRUÇÃODA HISTÓRIA DA TEORIA:
OBSERVAÇÕES SOBRE UM PROCEDIMENTODA TEORIA DA AÇÃO COMUNICATIVA
noção central de reconstrução nos escritos desse pensador. Entre outras coisas,
investigação como essa terá de se colocar o problema do estatuto teórico e 1uma
práticoda teoriadodiscurso talcomo seapresenta apartir de 1992,a fim depensar
que fundamentaçãoÿode lhe caber em um quadro em que a reconstrução já não
ega consigo o lastro que a própria teoria antes exigia dela. Um relativo vácuocarr
de fundamentação que temconsequênciasdenãopouca importânciapara ocampo
da teoria crítica de maneira mais ampla. Luiz Repa
Êchamativoo fato de a Teoria da ação comunicativa se abrir comaconfissãodeumfracasso.Noprefácio da obra de 1981,Habermasdeclaraquepretendeapenasdar prosseguimento à suaprimeira tentativade fundamentar asociologiacombaseem uma teoria da linguagem, tentativa essa delineadanas Gauss Lectures,de 1971(cf.1984a,v.I,p.7 ss.).Menosque aos problemas específicos postospor essa tarefa,ele se refere à dificuldade de exposição: a dificuldade de aliar a análise conceituaiprecisa nos diversos âmbitos da teoria da ação comunicativa como interesse pelasquestões substantivas da teoria social. Foi Thomas McCarthy quem o animou a
começar tudo de novo. Infelizmente se desconhece o teor dos conselhos do amigoamericano. O próprio Habermas não revela nada de muito concreto a respeito, anão ser queanova tentativa começara quatroanos antes,portanto,apartir de 1978.
Os sete anos que separam as Gauss Lectures dessa nova tentativaforam bastante produtivos. Os ensaios reunidos no volume Estudos prévios e
complementares para a teoria da ação comunicativa, de um lado, e os estudossobre evolução social, reunidos em Para a reconstrução do materialismo histórico,pertencem a esse período. Vale mencionar ainda outro texto, que foi publicadona nova edição de Sobre a lógica das ciências sociais, chamado "Objetivismo nas
ciências sociais”. Trata-se de um fragmento, um texto inacabado de 1977. Quasetodos os demais textos reunidos em Sobrea lógica das ciênciassociais são anterioresa 1971 e pertencem a umprojeto teórico distinto,aquele dadopor Conhecimento e
interesse.' O texto inacabado de 1977, no entanto, poderia ser publicado tanto na
coletânea dos estudos prévios como na coletânea sobre evolução social,pois trata
diretamente das questões de método supostas pela ideia de ciência reconstrutiva.Ou seja, uma concepção de ciência que está na base tanto dos estudos prévios
1. Não caberia aqui retomar o sentido desseprojeto,nem os motivos de seuaparenteabandono.Cf. a respeito o capitulo introdutório deste livro.
42 Papirus Editora Habermas e a reconstrução 43
como era o caso nos estudos realizados no período de 1971 a 1977 ou, ainda, dostextos coletados em Consciência moral e agir comunicativo, do começo dos anos1980.Também a históriada teoria é pensada comoumareconstrução,e justamentepor isso, como veremos a seguir,não é uma simples história das ideias.
< No entanto, antes de tentar responder à pergunta sobre o que significa,nesse caso, “reconstrução”, convém ainda apresentar as razões alegadas porHabermas para a introdução dessa noção no que se refere à história da teoria.Ela representaria, para ele, um terceiro caminho para a defesa do conceito deracionalidade comunicativa sem resguardos metafísicos, que ele apresenta naintrodução de maneira propedêutica. O primeiro caminho é representado, então,pelo desenvolvimento da própria pragmática formal, exposta a essa altura comoum programa de reconstruções hipotéticas das regras universais dos atos de falaorientados ao entendimento recíproco. O segundo caminho consiste na tentativade avaliar a fecundidade empírica das principais ideias da pragmática formal, eisso de três maneiras: 1) por meio de uma explicação dos padrões patológicosda comunicação; 2) por meio da evolução dos fundamentos das formas de vidasociocultural, a começar por uma antropogênese; 3) enfim, por meio de uma
ontogênesedas capacidadesdaação,apoiadanosmateriaisestudadospelapsicologiado desenvolvimento (cf. 1984a, v.I,p. 199 ss.).
No entanto, todas essas três perspectivas de investigação exigiriam um
“enormeesforço” para seremrealizadas,mesmo que se aproveitassem as pesquisasempíricas secundárias já disponíveis. Daí que a reconstrução da história da teoriaseria um terceiro caminho e bem mais viável, isto é, “menos exigente”. Porém, aomesmo tempo, não se trata, para ele, de uma “falsa comodidade, que se insinua
sempre que nós não podemos ainda elaborar de maneira frontal um problema”(1984a, v. I, p. 201). E não seria uma falsa comodidade, porque a alternativa“história da teoria versus elaboraçào sistemática” supõe uma “falsa avaliação dostatusda teoria da sociedade” (ibid.).Deumlado,os grandes teóricos da sociedadeintroduziram paradigmas que ainda hoje continuam a “concorrer em pé deigualdade” (ibid.).Ouseja, nenhum deles foicapaz de superar os demais.De outro
lado, esses mesmos paradigmas se vinculam diretamente ao contexto social de quesurgiram, e quanto mais a reconstrução dahistória da teoriapuder desenvolver os
componentes dosparadigmas tradicionais,mais elapoderá seimunizar contra seupróprioancoramentohistórico.Por fim,Habermas consideraqueareconstrução dahistória da teoria tem a vantagem também de permitir um movimento livre entre
as categorias da teoria da ação, as hipóteses teóricas e as eVíHências empíricas, semperder o ponto de referência, isto é, a questão sobre se a modernização capitalista
sobre ação e linguagemcomo nos estudos sobre a evolução social. Provavelmente,
. é o texto em que Habermas mais discorre sobre o método reconstrutivo, a par do
ensaio sobre a pragmática universal.
Écomuma todos esses textosque vão de 1971a 1977 opropósito,enunciado
nas Gauss Lectures, de dar conta de fundamentar a sociologia com base em
uma teoria da linguagem, porém cada vez mais orientada para o conceito de
ação comunicativa como conceito-chave, e este apoiado, no que diz respeito à
racionalidade comunicativa, na ciência reconstrutiva constituída pela pragmática
formal. O fragmento de 1977 é a tentativa talvez mais ampla de delimitar
metodologicamente a tarefa a ser cumprida.Échamativo queHabermasnãobusque
se apoiar sistematicamente em teorias disponíveis para esse intento.
Quando se passaparaoprefácio da Teoria da ação comunicativa, é possível
observar que tal característica dos textos do período de 1971 a 1977 é francamente
substituída por outra, a ser seguida nos dois volumes que constituem a obra. Não
mais sepretendearticular comométodo,e maisprecisamentecomoumaarticulação
entre ciências reconstrutivas, os diversos âmbitos da teoria da ação comunicativa.
Agora, esses diversos âmbitos são integrados em uma maneira específica de
A apropriação dahistóriada teoria social. Habermas sebaseia,eml981,natese sobre
a relação intrínseca entre a sociologia, sempre entendida como uma ciência que
aindanão abandonouapretensão de ser uma teoria da sociedade comoumtodo,e a
problemáticada racionalidade.Essa tese se articulaemtrêsníveis:primeiro,onível
dametateoria sobreosconceitos fundamentais de ação social,onívelmetodológico
do acesso ao âmbito de objetos a ser teorizado (problema da interpretação e da
compreensão) e, por fim, o nível empírico a respeito da modernização, descrita
como processo de racionalização. Essa tese se encontra, de uma maneira ou de
outra, tambémnos textos anteriores. A novidade, agora, é a afirmação do autor de
que “a apropriação sistemática dahistória da teoriame ajudoua encontrar o nível
de integração”, ou seja, o nível de integração daqueles três outros níveis, de modo
que Weber,Mead,Durkheim e Parsons são tratados como “teóricos da sociedade
que tem ainda algo a nos dizer” (1984a, v. I,p. 8).
Ao final da longuíssima introdução de quase 200 páginas, quando expõe
sua visão geral sobre a estruturadolivro, talapropriação recebe um título nemum
pouco neutro, como pode parecer à primeira vista: trata-se de “Reconstruções da
históriada teoria”,instituídascoma“intenção sistemática de desdobrar problemas
quepodem ser resolvidos combase emuma teoria da racionalização desenvolvida
comas categorias da ação comunicativa” (ibid.,pp. 200-201). A reconstrução,agora,
não diz respeito aos procedimentosmetodológicos de um tipo especial de ciência,
Habermas e a reconstrução 4544 Papirus Editora
representa um processo de racionalização unilateral, a qual será constantemente
retomada e desenvolvida ao longo daobra,atéencontrar uma explicação definitiva
na tese da colonização sistémica do mundo da vida.2
empiricamente o conceito de racionalidade comunicativa. Não é preciso dizer, aesta altura, que a pragmática formal e a teoria da evolução social representam asviasnão seguidas. A antropogêneseé constitutiva da teoria daevolução social,e estatambém se aproveita da ontogênese como princípio heurístico das reconstruçõesfilogenéticas.Tantoumacomo a outra são tomadas,nos escritosanteriores à Teoriada ação comunicativa, como ciências reconstrutivas. O estudo das patologias dacomunicação parece receber, por sua vez, outro status. Ele deve pressupor osdesenvolvimentos dapragmática formalcomo fonte decritériosparadiagnósticos.Entre oprimeirocaminho eo segundo,que,por sua vez,desdobra-seemtrêslinhasde investigação,existeumarelação evidente de complementação, jáque se trata detestar a fecundidade empírica dapragmática formal.
Essarelaçãodecomplementaçãofoielaborada,demaneiraumtantodispersa,nos escritosque vão de 1971 a 1977,mas tambémnaqueles deConsciência moraleagircomunicativo,comoumaarticulação entredois tipos dereconstruçãoracional:umareconstrução quepoderia ser chamadade“horizontal”ou“sincrônica”,porquepretende reconstruir as regras por meio das quais os sujeitos capazes de ação efala realizam determinados construtos simbólicos no horizonte das sociedadesmodernas contemporâneas - é o caso da pragmática formal; e uma reconstrução“vertical” ou “diacrônica”, pois se trata de reconstruir a evolução mesma dessasregras, partindo do curso da hominização - é o caso da teoria da evolução social(cf.Pedersen 2008;Benhabib 1986;McCarthy 1978;Repa 2008a).Retomemos aquiuma das primeiras explicitações de Habermas sobre talarticulação:
Todas essas observações visam explicitar as razões que levam Habermas
caminho da reconstrução da história da teoria como modelo dea tomar o
desenvolvimento teóricodaracionalidadecomunicativa;essas razões,porém,não
são fáceis de combinar. Entre o prefácio, que aponta tal caminho como forma
de exposição mais adequada, e o fim da introdução, que o aponta como a via
mais recomendada diante deoutras possibilidades teóricas,háumdescompasso.
Certamente,seriapossívelpensar que a reconstruçãopermite resolverproblemas
de exposição, primeiro, porque articula determinados paradigmas que lidam
com os mencionados níveis da metateoria, metodologia e teoria empírica. Para
isso, concorre igualmente a pretensa mobilidade da história da teoria. Por fim,
a reconstrução como exposição recupera, como em uma espécie de reflexão da
teoriasobre simesma,olaço comarealidade social. A exposição é,aumsó tempo,
desenvolvimento conceituai e “material”. Daí Habermas dizer, desde o início,
reportando-se a Hegel e Marx, que os problemas de exposição não são externos
aos problemas objetivos.E essa seria a razão por que o método de Parsons, que
tambémalia a reconstrução da históriada teoria à análise conceituaiem seulivro
A estrutura da ação social, seria ainda insuficiente como modelo a ser seguido
(1984a, v.l,p.7).3
No entanto, a reconstrução é também uma terceira via que, se não é
falsa comodidade, não deixa de ser recomendada pela impossibilidade deuma
elaborar frontalmente um problema, ou seja, o problema de desenvolver teórica e As reconstruções efetuadas na horizontal,por assim dizer, de algum poucossistemas de regras antropologicamente fundamentais (...) são para as teoriasgenéticas apenas uma preparação. Essas teorias têm a tarefa mais geral detornar transparente a lógica da evolução: na dimensão ontogenética, daaquisição da linguagem, da consciência moral, do pensamento operativo;na dimensão da história da espécie, o desdobramento das forçasprodutivase as grandes transformações históricas do quadro institucional que estãoassociadas àmudançaestruturaldasimagensdemundoedodesenvolvimentodo sistemamoral.Essas tentativas de reconstrução efetuadas navertical,porassim dizer, (...) são teorias que, falandohegelianamente, têmdepressupor alógicado conceito, istoé,a reconstrução de sistemas deregras abstratas,parapoder elucidar,por sua vez, sob condições empíricas, a lógica da evolução,portanto, as sequências necessárias da aquisição e do estabelecimentodaqueles sistemas de regras. (Habermas e Luhmann 1971,p. 175)
2. Para uma análise crítica dessa tese, cf. Honneth 1986, Kneer 1990 e Dietz 1993.
3. Por outro lado,não é absolutamenteclaro até quepontoHabermas segue de fato omodelo
hegeliano ouomodelo marxiano de exposiçãoouapresentação (Darstellung).Como vimos
no capítulo anterior, jáMarx apresenta uma espécie de reconstrução dahistória da teoria.
Porém,como emHegel, a apresentação das categorias da economiapolítica deve seguir um
caminho crescente de complexiíicação e totalização, que aponta sempre para seus limites
históricos. A apresentação das categorias é, ao mesmo tempo, a critica de seus limites e a
explicação de sua insuficiência. No caso de Habermas,há de fato um caminho crescente
de complexificação, mas o principio parece ser da ordem de uma complementação e não
do desenvolvimento de uma forma elementar até a configuração concreta de todos os seus
pressupostos, que parece ser o caso da mercadoria até o capital como tal. Dessa maneira,
se a reconstrução se inicia com Weber, a teoria deste não representa um momento inicial
"abstrato" a ser superado emumprocesso de totalização teórica eprática.Sobreoconceito
de exposição em Marx e em Hegel, cf.Múller 1982.
Habermas e a reconstrução 4746 Papirus Editora
As reconstruçõeshorizontaisvisam investigar alógicadoconceito, segundo
a qual é possível reconstruir verticalmente a lógica da evolução das sociedades.
Por outro lado, as reconstruções verticais devem ser capazes de mostrar por que e
como são possíveis as reconstruçõeshorizontais no momento presente. Como foi
expostonocapítulo anterior, tais vetores reconstrutivos deveriam ser desenvolvidos
por meio de tipos especiais de ciência, como são as ciências reconstrutivas, em
particular por meio da pragmática formal e da teoria da evolução social, as quais
formam a base da teoria da ação comunicativa. A pragmática formal orienta a
teoria da evolução social e esta, por sua vez, deve poder explicar as condições de
possibilidade histórica da abordagem da primeira, como Habermas afirma mais
uma vez no fragmento de 1977:
transcendentais de tipo fraco,no sentidode Strawson(cf. 1995,p.380) ouno sentidoque o próprio Habermas confere ao argumento da contradição performativa (cf.1999b, pp. 105-106), elas buscam, tanto quanto as ciências empíricas ordinárias,produzir um saber falseável.5 A ideia central da reconstrução racional do saberintuitivo de indivíduos socializados nas sociedades modernas contemporâneasse apresenta, desde o início, como uma tentativa hipotética que pode ou não ser
bem-sucedidaemcomparação com esse saber-objeto. Alémdisso, as reconstruçõesprópriasdapragmática formal,queatingemonúcleo do conceito de racionalidadecomunicativa,devem também ser submetidas a umexame de natureza histórica e,
portanto, submetidas a um controle empírico (cf. 1982, p. 593). Trata-se, a rigor,de programas de pesquisas empíricas que, em que pesem suas particularidadesmetodológicas, como descritas no capítulo anterior, não se distinguem de outros
programas de pesquisas das ciências empíricas comuns.
Ora, nas passagens mencionadas anteriormente da Teoria da ação
comunicativa, o que Habermas parece entender por “elaboração sistemática” dizrespeito aessas vias não seguidas dadaspelas ciênciasreconstrutivas.Por outro lado,ele trata logo de matizar a alternativa, de modo que as teorias reconstruídas sãoelas mesmas elaborações sistemáticas,porque seusparadigmas continuam atuais e
em concorrência.Desse modo, a via das reconstruções dahistória da teoriapareceter um efeito substitutivo. Seriapossível desenvolver por meio delas o que não foipossíveldesenvolver diretamentepor meio dasciênciasreconstrutivas,eissoporquehá uma insuficiência de investigações empíricas correspondentes.
Se é assim, a par das dificuldades de exposição, é preciso acrescentar as
dificuldades relacionadas ao próprio desenvolvimento das ciências reconstrutivas.Porém,nãoresultanemumpoucoevidentecomoareconstrução dahistóriada teoria
poderia desempenhar demaneira indireta osobjetivosdas ciências reconstrutivas,
isto é, especialmente apragmática formal e a teoria da evolução social. A resposta
parece ser, de início, dupla. Por um lado, Habermas procura indícios nas teorias
reconstruídas,em Weber,Mead,Durkheim e Parsons (e também Adorno) de um
conceito de racionalidade comunicativa e das implicações desse conceito para a
reprodução e evolução da sociedade. Por outro lado, ele procura também nessasteorias problemas internos que poderiam ser resolvidos com base na pragmática
Ora, com a ajuda de uma descrição, nos termos da pragmática formal,
das capacidades universais da fala e da ação, já são efetuadas tentativas de
desenvolver teorias evolutivas com as quais podemos explicar como esses
sistemasde regras reconstruídos são “aprendidos”passo apasso, isto é,como
etapas de competências nas estruturas da personalidade ou como niveis de
organização nos sistemas das instituições sociais. Se essas abordagens da
teoria evolutiva têm sucesso, pode-se fazer a tentativa de pôr sob controle o
vinculocontextuaida teoriada ação comunicativa.Pode-se examinar,então,
se,no curso de processos de aprendizagem socioevolucionários, surgiuuma
situação objetiva na qual os universais da ação orientada ao entendimento
se tornaram acessíveis reconhecidamente como universais e se, além disso,
o contexto factual de surgimento de nossa teoria da comunicação preenche
exatamente essas condições objetivas de conhecimento. (1982,pp. 592-593)
Certamente, não se pode dizer que Habermas abandonou, na Teoria da
ação comunicativa,esse objetivo autoexplicativo e autorreferencialque se tornaria
possívelpela articulação de seus doisprincipaismodelos deciênciareconstrutiva, a
pragmática e a teoria evolutiva, como se pode conferir no final da obra (cf. 1984a,
v. II,p. 583 ss.; Repa 2008a).4No entanto, esse objetivo já não pode ser alcançado
diretamente por meio de uma realização direta dos programas dados por aquelas
ciências reconstrutivas.
Embora tanto uma como outra ciência reconstrutiva admitam como
componente fundamental reflexões de tipo filosófico, como argumentos
5. A relação entre ciência reconstrutiva e ciência empírica ordinária é analisada por Alford1985. Sobre a crítica habermasiana da ciência, cf. também Hesse 1982. A respeito doproblema do falibilismo das ciências reconstrutivas, cf. a crítica “apeliana” desenvolvidapor Kuhlmann 1986.
4. Para uma leitura critica dessa autorreferencialidade da teoria da ação comunicativa, cf.
Piché 1986, p. 140 ss.
Habermas e a reconstrução 4948 Papirus Editora
formal e nateoria da evolução social, o que joga a favor da plausibilidade, se não
das ciênciasreconstrutivas,pelomenosde seus programas dereconstrução.Desse
modo, a reconstrução da história da teoria é orientada pelos resultados obtidos
anteriormente,ainda que demaneira provisória.Aomesmo tempo,ela trataagora
dereforçá-los, tanto demaneiraindiciária comodemaneira sistemática,istoé,por
sua capacidade de resolver os problemas internos da teoria reconstruída.
Na estrutura do livro, esses dois motivos separam os capítulos destinados
às reconstruções teóricaspropriamente ditas (cap.IIsobre Weber, cap.IV sobre a
teoriacrítica,cap.V sobreMeadeDurkheim,cap.VIIsobreParsons) eos destinados
“às questões sistemáticas”, as chamadas “considerações intermediárias" (cap. Ill
sobre a ação comunicativa e o mundo da vida e cap. VI sobre sistema e mundo da
vida),além de diversos excursos (sobrea teoriadaargumentação,sobreoconceito
de seguir uma regra em Wittgenstein, sobre as três raízes da ação comunicativa,
sobre identidade e individuação, sobre a tentativa de rekantinizar Parsons). A
consideração final (“De Parsons a Marx passando por Weber”) pretende ser a
reunião dos diversos resultados das investigações sobre a história da teoria e as
investigações sistemáticas, em vista da formulação definitiva do diagnóstico de
época: a colonização sistémica do mundo da vida.
Se essa leitura está correta, as reconstruções da história da teoria abarcam
indiretamente os intentos dos programas de reconstrução horizontal e vertical,
seja por uma via indiciária, seja por uma sistemática. A reconstrução de Weber
está orientada para a elaboração de uma teoria da ação comunicativa baseada na
pragmática formal,aqual,por suavez,pode tambémresolverproblemas da teoria da
racionalização social. A reconstrução deMead e Durkheim,que secomplementam,
está orientada para a elaboração de problemas evolutivos e vai da explicação da
emergência da interação simbolicamente mediada até o desacoplamento entre
mundo da vida e sistema, o que depois é atestado com base na reconstrução de
Parsons.
reconstruídos: “A teoria crítica da sociedade não procede como concorrente emrelação às orientações de pesquisa estabelecidas; ao se basear em suas concepçõessobre o surgimento das sociedadesmodernas,elaprocuraexplicar em queconsistealimitação específica e o direito relativo daquelas abordagens” (1984a,v.II,p.550).
Marcos Nobre tem insistido em seus estudos sobre a teoria crítica noprincípio danão concorrência como um traço distintivo dela em relação às teoriastradicionais. As teorias tradicionais se comportam entre si como concorrentes,aopasso que a teoriacrítica tomapara siumprincípiode não concorrênciaem relaçãoàs teorias tradicionais. No caso de Habermas, trata-se de incorporar as teoriastradicionais para superar sua parcialidade específica.
Habermas interpreta essa operação como soma, interpreta o “parcial” comoincompletude,como parte que não faz sentido sem seu complemento. Comisso, a teoria tradicional é parcial apenas no sentido de que pressupõe umconceito unilateral de racionalidade. Mas ela de fato dí conta da lógica“sistémica”, ainda que não da “comunicativa”. Desse modo, o fato de a teoriacríticanãoconcorrercomaslinhasdepesquisa estabelecidas significaagora:só a teoriacríticadispõedo conceitodualde racionalidade capazdeorganizare dar sentido às contribuições parciais da teoria tradicional. (Nobre 2008c,p. 272)
As reconstruções da história da teoria devem poder permitir talcomplementação de linhas de pesquisa, mas isso justamente na medida emque podem cumprir os objetivos dos programas de reconstrução “horizontal” e“vertical”.Ouseja,oconceito dualderacionalidade ede sociedadedeve se confirmarem uma teoria da evolução social que separe mundo da vida e sistema (cf. 1984a,v.II.p. 180).
X; Disso resulta que as reconstruções da história da teoria são uma formaespecífica de lidar com as teorias tradicionais já consolidadas.Éamaneira “crítica”de se relacionar com elas, pois aponta para sua unilateralidade. Por outro lado, éprecisoretirar delas indíciosepontos depassagemparaasreconstruçõespragmáticase evolutivas que demonstram tal unilateralidade. Dessa maneira,o procedimentoda reconstrução da história da teoria pode ser descrito com umprocedimento aomesmo tempo expositivo,críticoe sistemático (na medida em que é orientadopore fornece elementos para as reconstruções pragmáticas e evolutivas).
Talprocedimento,porém,se assenta tambémemuma curiosa estratégia.Naausência de pesquisas empíricas que pudessem levar adiante a pragmática formal
No entanto, a reconstrução da história da teoria tem uma terceira tarefa,
por assim dizer, além daquela de recolher indícios e problemas sistemáticos. Essa
terceira tarefa diz respeito à questão de como integrar os diversos paradigmas
teóricos,uma vez que eles continuam a concorrerempéde igualdade. Essa terceira
tarefa não se separa das duasprimeiras,pois os indícios e os problemas apontam
para a necessidade de complementação entre os paradigmas, em uma visão mais
geral, entre os paradigmas da racionalidade comunicativa e da racionalidade
sistémica.Ora,essa tarefa,queéprópriada teoria criticahabermasiana,pressupõe
umponto de vista que,por sua vez, não está em concorrência com os paradigmas
50 Papirus Editora Habermas e a reconstrução 51
reconstrução 53
e a teoria da evolução social de uma maneira, por assim dizer, independente,
Habermas trataaspróprias teorias tradicionais reconstruídascomo se fossem teorias
reconstrutivas. Isso é um tanto evidente em sua apropriação de Weber,Mead,mais
oumenosnocaso deDurkheimeumtantoobscurono casodeParsons.Esses teóricos
contribuem para uma teoria reconstrutiva da evolução social, porque organizam
os processos evolutivos que lhes interessam (a racionalização, a socialização, a
ancoragemreligiosadamoral) segundoumprocesso de aprendizagemreconstruível
conformeumalógicainterna.Somenteonúcleoreconstrutivo dapragmática formal
não se encontra nesses autores, embora eles tivessem de pressupor para as suas
reconstruçõesevolutivasumconceitoderacionalidadecomunicativa.Nesseaspecto,
porém, Habermas tampouco titubeia em tomar as referências básicas da filosofia
dalinguagemcomo intentosreconstrutivos,especialmente a teoriados atos de fala.
Se essa impressão puder se confirmar, a reconstrução da história da teoria
teria de ser vista como uma reconstrução de longo alcance de reconstruções
parcialmente bem-sucedidas, de modo que ela se realiza nos preenchimentos
de lacunas e nas necessárias modificações que precisariam ser feitas para que as
reconstruções “tradicionais”pudessemalcançar todooseusentido. Algo semelhante
é posto por Habermas quando, em seu livro Para a reconstrução do materialismo
histórico, expressa que a reconstrução do título não deve ser entendida nem como
restauração ou retorno nem como renascimento; ela significa antes que “se toma
uma teoria em seus elementos constitutivos e se os rearranja emnova forma, a fim
de mais bem alcançar o objetivo a que ela se tinha proposto” (1976, p. 9). Seria
possível, desse modo, esgotar o “potencial de estímulo” ainda presente na teoria
a ser reconstruída. No contexto da Teoria da ação comunicativa, essa ideia de
reconstrução se orientapara identificar objetivos e procedimentos reconstrutivos
na história da teoria e, ao mesmo tempo, os obstáculos que impediram sua
realização integral,o queexige umareorientação emesmo introdução depremissas
logicamente necessárias, mas ainda ausentes.
Dessamaneira,alémdas características doprocedimento que foramanotadas
até aqui, isto é, seu caráter expositivo, indiciário, crítico, sistemático, pode-se
acrescentar outro,que consiste no caráter “reconstrutivo” da teoria reconstruída.
Assim, o procedimento da história da teoria absorve para dentro de si o que era
essencial aos dois momentos de reconstrução, separados e articulados por uma
divisão de trabalho entre ciências reconstrutivas.Éseguindo essa dupla orientação
que Habermas reconstrói a história da teoria, buscando identificar em cada
autor a contribuição específica para ambos os lados e, daí, interrogar essa mesma
contribuiçãoem todaa suaextensão.É somente dessamaneira que tal reconstrução
dahistória da teoriapodedesempenhar umpapel sistemático, jáqueela se debruçasobre intentos reconstrutivos.
Dadas todas essas característicasdoprocedimento reconstrutivo,entende-sepor que a reconstrução da história da teoria nada tem a ver com uma história dasideias.Nãosetratadereconstituir ocontexto de surgimento dasprincipaisideias dosfundadores da sociologia nem de percorrer suahistória de influência. Poderíamosacrescentar que tampouco encontra similar em métodos tradicionais de históriada ciência,da filosofiaouda teoria social, que se atêm sobretudo ao texto. Segundoesses métodos, o procedimento habermasiano não poderia significar outra coisaqueumaviolência,umaintrojeção de temas externos,umaremodelação arbitráriados textos etc. Porém, o procedimento habermasiano busca identificar o sentidodos textos com base em um problema posto pelo próprio autor e determinar porque ele foi incapaz de resolver o problema com os meios adotados, entre outrospotencialmentedisponíveis. Aomesmo tempo,eleprecisaapontarparaalternativasencontráveisnomesmoautor,quemereciam, atéondepossível,umdesdobramentoque oucolaborasse efetivamentepara a reconstrução do conceito de racionalidadecomunicativa ou tivesse de apontar para ela.6
Cabe agora tentar identificar como se operacionaliza o procedimentoreconstrutivo no interior da história da teoria social. Para isso, lanço mão de um
único caso. A meu ver,é a reconstrução de Weber que reúnecommaior evidênciatodas as características apontadas até aqui. Deixarei de lado, contudo, o aspectoexpositivo, já que a demonstração do “nível de integração” de todas as dimensõesda estratégia teórica, que têm de pressupor um conceito de racionalidade,exigiriademais neste contexto. Basta indicar que Weber é o autor privilegiado para talintegração, já que o nível da metateoria conta com a teoria da ação e seus tiposideais.Onívelmetodológico apresentaaproblemáticado sentido,igualmenteposto
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6. Ésobretudo porque a reconstrução dahistóriada teoriaprocura desenvolver opotencial deestímulo de uma teoria que ela difere,a meuver,da compreensão de R.Rortydahistória dafilosofia e da ciência como reconstrução racional. Nesse caso, Rorty parece ter menteprojeto depesquisaem que“o diálogocom ospensadoresmortos sobre osproblemas atuais”,para além dos contextos históricos destes, busca sempre uma espécie de “autojustificação”do estágio de conhecimento alcançado,demodo que Aristóteles,por exemplo, teriapodidoconcordar que cometeu erros fundamentais em suas explicações sobre físicaoubiologia (cf.
Rorty 2005,p. 305 ss.). Se, em Habermas, os mortos são tratados como contemporâneos, éporque,de fato,pode-se buscar neles ainda o potencial teórico para a explicação da situaçãocontemporânea, mesmo que esse potencial tenha de ser desenvolvido com categoriasdiferentes das propostas textualmente pelo autor.
um
52 Papirus Editora Habermas e a reconstrução 53
por Weber como essencial à sociologia.7 Por fim, o nível teórico-empírico seria o
tema
racionalização (cf. 1984a, v.I,p. 299 ss.).
O caráter indiciário se mostra na teoria da ação de Weber, isto é, na teoria
da ação que Habermas qualifica de “não oficial”;por outro lado,o aspecto critico
remete diretamente à teoria “oficial” da ação,pois esta orienta a reconstrução do
processo de racionalização a tal ponto que surge em Weber uma inconsistência
modernidade cultural e a modernização social. Ao mesmo tempo, essa
inconsistência poderia ser resolvida pelo próprio Weber, na medida em que ele
tomadisponívelumadistinçãometodológicareconstrudva fundamental:a distinção
entre lógica evolutiva e dinâmica evolutiva. Aqui se apresenta, então, o aspecto
reconstrutivo da própria teoria reconstruída. Todos esses aspectos, por sua vez,
orientam-separaareorientaçãodesentidodoconceitoderacionalizaçãocombase
naaçãocomunicativa.Éocarátermaisamplo,queHabermaschamadesistemático.
Por fim,Weber tambémé oprimeiro adar umdiagnóstico de época que ainda se
mostra atual,embora precise ser reposto em outras bases. Trata-se da questão da
racionalização unilateral,a que se destinademaneira geral toda areconstrução.
A seguinte passagem da Teoria da ação comunicativa concentra direta e
indiretamente todos esses aspectos. Apesar delonga,vale a penacitá-lanaíntegra:
para a ação e o surgimento de ordens legitimas são atribuídos à cooperaçãode ideias e interesses. Nisso, as constelações de interesses devem explicarduas coisas: o impulso para o desdobramento de estruturas de imagens demundo dotadasdeumsentido específico,bemcomo a cunhagem seletiva daspossibilidades abertas com as novas estruturas cognitivas, isto é, o gênerode conteúdos assumidospela imagem demundo.Essaperspectiva teóricaestáinscrita (angelegt)na obra inteira deMax Weber. Senósnosdeixamosguiarpor ela na interpretação dos estudos de Weber no terreno da sociologia dareligião, resulta um forte contraste entre aspossibilidades de orientação dasestruturasde consciência que se originam doprocesso de desencantamentoe o perfil das possibilidades realizadas com base nesse espectro e de fatotraduzidas em instituições, que é característico da sociedade capitalista.(1984a, v.I,pp. 276-277)
weberiano por excelência: entender a modernização como um processo de
entre a
Habermasconsidera,portanto,queWeberprocurarealizarumareconstruçãodas representações morais e jurídicas inscritas em imagens de mundo religide uma perspectiva bastante concreta: o problema evolutivo da passagem dassociedades pré-modemaspara as sociedades capitalistasmodernas. Esse enfoquerestrito da reconstrução evolutiva weberiana se choca com a perspectiva maisampla, exposta em termos metodológicos, de uma reconstrução evolutiva dasimagens de mundo em seu conjunto, isto é, do processo de racionalização, quepermite identificar uma série de possibilidades estruturais não aproveitadassubaproveitadas no curso da modernização capitalista. Segundo essa perspectivamais ampla, presente na obra inteira de Weber, é possível descobrir no prode desencantamento o desenvolvimento de uma lógica interna da racionalização.Ou seja, a lógica evolutiva da racionalização caminha para uma diferenciação decomplexos de racionalidade, que Weber estudou a título de legalidades internasdas esferas de valor: ética religiosa, política, economia, ciência, arte e mesmo oerotismo, como se pode observar de maneira mais clara na célebre “Consideraçãointermediária” sobre as rejeições religiosas do mundo (Weber 1988).
Boa parte dos esforços de Habermas consiste em mostrar, então, que alógica evolutiva da racionalização tem de pressupor conceitos próprios da teoriada ação comunicativa,demodo que as esferas de valor se apresentem como esferasde validade, especializadas em formas de discursos específicas. Do ponto de vistadessa reconstrução da teoria weberiana da racionalização, a modernidadeculturalse caracterizaria fundamentalmente pela diferenciação de esferas de valor - arte,ciência e moral -, cada qual com problemas específicos - questão de gosto, deconhecimento e de justiça -, submetidos às suas lógicas internas. Esse complexo
osas"
ou
Weber investiga o processo de desencantamento das imagens religiosas
do mundo de um ponto de referência histórico concreta Ele reconstrói a
história das representações jurídicas e moral não com o olhar voltado para
as estruturasdaséticasda convicção emgeral,mascomoolhar voltadopara
o surgimento da ética económica capitalista, visto que pretende elucidar
exatamente ascondições culturais sob as quais apassagem paraocapitalismo
pode ser efetuada e, com isso, resolvido o problema evolutivo principal, ou
seja,o de integrar socialmente um subsistema diferenciado de ação racional
com respeito a fins. Interessam-lhe, por isso, apenas as ideias que tomam
possível ancorar,nos termos da racionalidade com respeito a valores, o tipo
de ação racionalcom respeito afinsno sistema do trabalho social.
Ê útil não perder de vista essas restrições. Elas podem explicar por que
Weber não esgotouoespaço depossibilidades sistemáticas de sua abordagem
teórica.Segundoessa abordagem,a institucionalizaçãodenovasorientações
cesso
7. Embora oproblema da compreensão seja desenvolvido de uma maneira um tanto distante
da abordagem weberiana e se atenha, antes, a uma critica da hermenêutica de Gadamer
(cf. 1984a,p. 152 ss.).Cf. também o ensaio “Ciências sociais reconstrutivas versus ciências
sociais compreensivas* (1999b).
Habermas e a reconstrução 5554 Papirus Editora
de questões remete, por sua vez, ao complexo de pretensões de validade que
Habermas tratará na primeira “Consideração intermediária”, baseado em uma
reconstrução da teoriadosatosde fala,de AustineSearle. Assim,a razão substancial
expressa nas tradicionais imagens de mundo religiosas e metafísicas,próprias das
sociedades pré-modernas, daria lugar às formalizações específicas, que obedecem
a uma crescente sistematicidade e coerência discursivas. Por fim, com o processo
de desencantamento do mundo saindo de seu âmbito religioso, as esferas de valor
se autonomizam em relação à tradição e à autoridade.
Aspossibilidades estruturais dadas pelamodernidadeculturalpermitiriam,
então,umareavaliação,para alémdopróprio Weber oudaletradopróprio Weber,
daracionalização como processo demodernização social, isto é,o desenvolvimento
das sociedades modernas, desligadas dos modos de ação e interação próprios
das formas tradicionais de vida. A modernização social é caracterizada pelo
desenvolvimento de dois sistemas cristalizados na organização da empresa
capitalista e do aparelho burocrático do Estado, sistemas interligados de modo
funcional. Desse modo, a modernização é vista como a institucionalização das
atividades económicas e administrativas, seguindo opadrão de racionalidadecom
respeito a fins.
Antes de retomarmos a crítica metodológica que Habermas realiza com
base na citação anterior, cabe apresentar os contornos gerais da reconstrução
de Weber. Para Habermas, o problema fundamental da teoria da modernidade
consistenocaráter unilateraldaracionalização social. Talunilateralidade émedida
justamentepela complexidade alcançada pela diferenciação de esferas de validade
na modernidade cultural, que deu abertura a três dimensões de racionalidade:
a cognitivo-instrumental (técnica e ciência), a prático-moral (direito e moral) e
a estético-expressiva (arte e crítica de arte). Dessa maneira, a unilateralidade da
racionalização socialse deveantes aumdesequilíbrio entre aracionalizaçãocultural
e a social, ou seja, a um predomínio da racionalidade cognitivo-instrumentalsobre a racionalidade prático-moral e a estético-expressiva, provocado pelo
avanço dos sistemas de ação articulados pelos media dinheiro e poder (economia
capitalistaeEstadoburocrático) sobre osmundosdavidamodernos.Com a tese da
unilateralização daracionalização social,Habermas quer secontrapor ao diagnóstico
weberiano de época. As teses do fimda liberdade (em relação ao desenvolvimento
da modernização social) e do fimdo sentido (em relação à modernidade cultural)
procurammostrar que o esclarecimento culminano seuoposto.Doponto de vista
de Habermas, esse resultado não é inerente à racionalização como tal, na medida
em que elapode ser interpretada como umaliberação cada vez maior de complexos
de racionalidade comunicativa. Ele se revela, antes, como um limite próprio da
modernização capitalista, que só pode ser compreendida com a apropriaçãocrítica
da teoria weberiana, pelo viés da teoria da ação comunicativa:
De fato, só com os conceitos da ação comunicativa se abre a perspectivabaseada na qual o processo da racionalização social aparece desde o iníciocomo contraditório. (...) O paradoxo da racionalização de que fala Weberse deixa, então, formular abstratamente do seguinte modo: a racionalizaçãodo mundo da vida possibilita um tipo de integração sistémica que entra
em competição com o princípio de integração do entendimento e, sobdeterminadas condições, reage de forma desintegradora sobre o mundo davida. (1984a, v.I,pp. 458-459)
A racionalização desenvolveria o potencial comunicativo da razão ao
possibilitar a formação de estruturas modernas de consciência, nas quais se
condensam os três complexos distintos de racionalidade. Com o processo dedesencantamento do mundo, eles se autonomizam e criam, em esferas culturaisapropriadas e também na esfera social, as condições de um desdobramento da
racionalidade comunicativa, pois já não dependem fundamentalmente de visões
religiosas e metafísicas do mundo, mas do acúmulo de saber e dos possíveis e
instáveis consensos a respeito desse saber. Por outro lado, a racionalização das
imagens metafísicas e religiosas do mundo permite o que Habermas denominade desacoplamento dos sistemas em relação ao mundo da vida, isto é, os sistemas
de ação racional com respeito a fins deixam de se determinar pelos princípiosdaquelas imagens de mundo. Esse fenômeno, em sua origem, não pode ser
entendido apenas combasena importânciacada vez maior do afluxo de estruturas
cognitivas para a organização das empresas e dos aparelhos administrativos.
Mais decisiva é a constituição do direito formal moderno, desligado da esfera da
eticidade e articulado com uma consciência moralpós-convencional (ética regidapor princípios universalistas), que possibilita a institucionalização dos sistemas
de ação económicos e burocráticos e sua posterior autonomização relativa. O
direito moderno se torna então, dessa perspectiva,medium para sistemas de ação
formalmente organizados, os quais passam a dispensar os recursos do mundo davida já racionalizado. Os media dinheiro e poder se constituem como linguagensdesmundanizadas, empobrecidas e padronizadas, como códigos especiais queservem à coordenação de ações especificamente funcionais,emprincípio talhadas
para problemas de reprodução material. Com isso, tais contextos de interaçãofuncional se transformam, durante o processo de modernização, em subsistemas
-i
56 Papirus Editora Habermas e a reconstrução 57
funcionalmente interligados,cujosimperativos fundamentaisconsistemnaprópria
autoconservação, sejana formadoprincípio deacumulaçãocapitalista, sejana forma
de intervenções burocrático-administrativas destinadas a garantir o crescimento
económico, por um lado, e produzir a legitimação das estruturas de poder, por
outro.Daisurgiremnas sociedadesmodernas avançadas duas tendênciasrespectivas
comefeitosreifkadores:a monetarização e aburocratização dasrelações sociais de
vida. Tanto uma como outra pressupõem, no entanto, uma forma de tecnificar o
mundo davida,dispondo de suasestruturas conformearacionalidadecomrespeito
a fins.Ênesse sentido queopotencialda razão comunicativapassa a ser exploradoseletivamente sob as condições da modernização capitalista.
Essasconsideraçõesgerais,delineandomaisoumenos oscontornosda teoria
da modernidade em Habermas, explicam por que ele pôde contrapor a Weber a
ideia de umaracionalizaçãonão em simesmaparadoxal,masparcial, incompleta.Esse motivo emerge desde o início de sua reconstrução da teoria weberiana.
Apesar do mérito de terem entendido e investigado a modernização social como
resultadodeumprocessohistórico-mundialderacionalização,os estudos deWeber
são marcados, segundo Habermas, por uma grave inconsistência teórica; para o
processo de racionalização das imagens religiosas do mundo,Weber recorre a um
conceito complexo, embora confuso, de racionalidade, mas, para o processo de
racionalização social, o padrão de medida é fornecido pelo conceito unilateral deracionalidade com respeito a fins.
No entanto, tal crítica a Weber pretende-se imanente, já que, como vimos
anteriormente,Habermasenxerganopróprio Webero choque de duasperspectivas
reconstrutivas. Esse choque de perspectivas, restrita e ampla, resulta, então,
naquelainconsistênciada teoriadaracionalizaçãopor inteiro.Para Habermas,essa
inconsistência teórica emetodológica se converteráemumdiagnóstico equivocado
da modernidade, ainda que bastante atual, resumido nas teses sobre a perda de
sentidoeaperdadeliberdade.Porém,dado que,nopróprioWeber,encontra-seum
espectro amplo de possibilidades estruturais, caberia estudar a institucionalização
dos subsistemas de ação racional com respeito a fins, isto é, a economiacapitalistaeo aparelhoburocráticodoEstado,combase emummodelo de seleção.Aprópriamodernização capitalista exerce uma pressão para a seleção dessas possibilidadessegundo os conteúdosdisponíveis que favoreçam oestabelecimentoeocrescimento
económico, ou seja, a racionalidade formal do direito e os potenciais da ciênciamoderna para o incremento tecnológico e o controle social. Em suma, o padrãoseletivo é explicado pela constituição e autonomização dos sistemas dinheiro e
poder, que se expandem sobre todas as dimensões do mundo da vida.
Ora, tudo isso significaqueHabermascriticaWeber de umaperspectivaqueseria imanente à própria obra deste último.E isso porque o próprio Weber como
que não entendeu a si próprio no seu projeto de reconstrução da racionalizaçãoe da modernização. Tal crítica imanente não deve ser compreendida como uma
forma de crítica da ideologia, ainda que vez ou outra Habermas sugira que o
predomínio da racionalidade instrumental em Weber se deva ao próprio objetode investigação. Trata-se unicamente de contrastar os projetos e realizações dopróprio Weber e, ao mesmo tempo, identificar nele possíveis soluções,bem como
as “razões imanentes de por que Weber não pode efetivar sua teoria tal como elaestava disposta" (1984a, v.I,p. 365).
A solução para o problema se encontra no próprio Weber, na medida em
que ele pressupõe um modelo de reconstrução evolutiva que separa a lógica daevolução das imagens demundo e adinâmicadaevolução,isto é, as questões sobreos tipos de lutas sociais epolíticas e as constelações de interesse que colocaram em
cheque uma determinada etapa de racionalização, impulsionado,combase nela,osurgimento de umnovo potencial de racionalidade.
:
O trabalho da reconstrução racional se estende aos nexos de sentido e devalidade internos, com o objetivo de ordenar as estruturas das imagens demundo como lógicaevolutivaeosconteúdos demaneira tipológica;a análiseempírica,istoé,sociológicaemsentido estrito,dirige-se,aocontrário,para os
determinantes externos dos conteúdos das imagens demundo e ás questõesda dinâmica evolutiva. (Ibid.,p. 275)
Como se vê, essa separação metodológica está inscrita, segundo Habermas,
na base da teoria weberiana da racionalização.Esta é entendida, vale insistir,como
umateoriareconstrutivada evolução social,que separa,emumnívelmetodológico,aspossibilidadesestruturais das imagens demundoe os decursos factuaispor meiodos; quais elas se instituíram. De outro lado, no entanto, essa mesma separação
pode ser utilizada contra Weber,quando este trata deidentificar a “formahistóricada racionalização”, isto é, a forma europeia, impulsionada pela modernizaçãocapitalista, com “a racionalização social em geral” (ibid.,p. 306).
Dessa maneira,Habermaspodecontrapor a Weberumrecursometodológicoquelhe seriapróprio.A dinâmicaevolutivapermitiriaentender apressão seletiva dassociedades capitalistas dopotencialde racionalidade já alcançadonamodernidadecultural. De outro lado, a lógica evolutiva possibilita, contraposta à dinâmica quede feto tomou a racionalização em diversas sociedades, a levantar questões sobre •
Habermas e a reconstrução 5958 Papirus Editora
possibilidadesnãoconcretizadas demaneira adequada,e que,contudo,permanecem
como potencialidades da racionalização moderna.
de estímulo tem uma lógica semelhante àquela de descobrir,no caso das ciências
reconstrutivas, potenciais de racionalidade que são condições de possibilidade de
construtos simbólicos,mas que não foram de todo exploradas no sentido de novas
construções sociais. Tudo se passa como se Habermas encarasse a teoria a ser
reconstruída da mesma maneira que, antes, pretendia compreender o sistema de
regras quepermitemdeterminadas operações simbólicas,ouseja,visando descobrir
um potencial de razão e de explicação não aproveitado praticamente.
No entanto,é preciso elucidar também osmotivosque limitama exploraçãode uma abordagem teórica. Na visão de Habermas, as razões imanentes que
impossibilitam o desenvolvimento integral da teoria da racionalização de Weberdizem respeito a dois pontos estratégicos: as categorias da teoria da ação e os
limitespróprios de todateoriada ação, inclusivea da ação comunicativa.Habermasconsidera que a inconsistência de Weber se deve não só a um enfoque restrito, a
imposição dos subsistemas de ação racionalcomrespeito a fins.Ela se deve tambémao fato de, desde o início, Weber contar com categorias de ação cujo potencial deracionalização ébastante restrito,e justamentepor isso elenãopôdeperceber todas
as implicações de seuprojeto reconstrutivo. Porém, também nesse aspecto sepode
apoiar emWeber paracorrigi-lo. Aqui se apresenta o aspecto indiciáriono quediz
respeito à racionalidade comunicativa como tal.
O argumento de Habermas se baseia na possibilidade de distinguir duas
teorias da ação em Weber (cf. 1984a, p. 377 ss.). A primeira, a “oficial”, é a
conhecida distinção entre ação racionalcomrespeito a fins,comrespeito avalores,
a ação afetiva e a ação tradicional. Tal tipologia se justifica pelos diferentes fins: os
utilitários,os valorativos,os afetivos e os dadospor tradição.Porém,paraaquestão
do graude racionalização aque são suscetiveis os diversos tipos de ação,é aprópriaracionalidade comrespeito a fins que serviria decritério. Issoporquenelao sujeito
seria mais consciente tanto dos fins, eleitos no espectro dado de valores que ele
pode compreender,bem como seria capaz de calcular as consequências da ação e
decidir sobre os melhores meios para a realização da ação. O grau de consciência
do ator é superior, então, na ação racional com respeito a fins. Comparados com
ela, os demais tipos de ação decaem em potencial de racionalidade. Disso resulta
que, para todos os tipos de ação, estudados em sua capacidade de racionalização,
supõe-seumator quelida “racionalmente” com os demais demaneiramonológica.
Por outro lado, seria possível descobrir em Weber uma versão não oficialda teoria da ação. Nesse caso, a ação não está remetida somente à capacidade do
ator de calcular, mas também à de se orientar por outros atores da ação, isto é, de
compreender a própria interação social. Se é assim, então, as ações poderiam ser
Este questionamento contrafactual é pouco usual para o sociólogo que
trabalha orientado para aempiria,mas corresponde à abordagem, escolhida
por Weber, de uma teoria que separa entre fatores internos e externos, que
reconstrói a história interna das imagensde mundo e depara com o sentido
próprio [Eigensinn] de esferas de valor culturalmente diferenciadas. (Ibid.,
p. 304)
Por outro lado, tal operação de levantar questões sobre possibilidades
estruturaisnãoseguidasounão suficientemente implementadas temcomocondição
o fato de queamodernidadeculturalalcançou,apesar de diversos tiposderestrições
socioeconômicas, uma diferenciação relativamente madura e supostamente
incontornável:
A teoria da racionalização possibilita questionamentos contrafactuais que,
todavia - e este é o elemento hegeliano não eliminável ainda em Weber -,
não seriamacessíveispara nós,nós que seguimos talestratégia teórica,se não
pudéssemos nosapoiar sobre aevoluçãofactualdos sistemas de açãoculturalciência,direito,morale arte,e senão soubéssemos demaneiraexemplar como
podemseapresentaremconcreto aspossibilidadesdeumaampliação do saber
cognitivo-instrumental,prático-moral e estético-expressivo, possibilidadesfundamentadas em abstrato pela moderna compreensão do mundo, isto é,
por meio da lógica evolutiva. (Ibid., pp. 304-305)
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.
Não cabe aquiperguntar se, de fato, a leitura que Habermas faz do método
weberiano écorreta.Antes,interessa-nosmuitomaiso fato deque elepossaenxergar
em Weber o que ele mesmo pretendia estabelecer como princípio metodológicoda teoria da evolução social, como é o caso da distinção entre lógica evolutiva
e dinâmica evolutiva. Argumentos muito semelhantes a esses levantados na
interpretação de Weber são encontráveis emPara a reconstrução do materialismo
histórico, em que Habermas pretendia levantar as bases de sua teoria da evolução
de uma maneira direta, o que fala a favor de uma estratégia de substituição das
reconstruções científicas por reconstruções da história da ciência.
A Ao mesmo tempo, a estratégia da reconstrução da história da teoria,
evidenciadanocaso de Weber,permite discernir o fio queune os diversos sentidos
dareconstrução,pois a recomposição deuma teoria a fimde esgotar o seupotencial
Habermas e a reconstrução 6160 Papirus Editora
i
distintas pelos mecanismos que coordenam a interação social de pelo menos doissujeitos. A relação social se basearia em jogo de interesses ou em um consensonormativo.Éverdade que Weber entende a “validadeconsensual”pressupostanesse
tipodeinteração social como“crença”naobrigatoriedade jurídicaouconvencionalde umadeterminadaconduta,portanto,emalgo quenãoconteriagrandepotencial
de racionalização. Porém, no caso de Weber, de a crença na legitimidade do
sistema jurídicomodernonãopode ser separada daideiadecontrato originalentre
indivíduos livres e iguais e,portanto, não pode ser separada deprocedimentos de
formação de uma vontade racional.
Com isso, Habermas pretende ter descoberto em Weber o indício de outra
tipificação da ação,agora organizada segundo omecanismo decoordenação,a açãoestratégica e a ação baseada em um acordo normativo, ou seja, um tipo de açãocomunicativa. No entanto, esse indício é tomado por Habermas como referênciapara a necessidade de complementar a teoria da ação de Weber com a teoria dosatos de fala,o que será oassunto daprimeira consideração intermediária.Ou seja,não seria possível desenvolver em Weber oconceito de ação comunicativa, ainda
que ele tivesse de ser pressuposto se se quisesse compreender a interação social em
toda a sua extensão. A passagemparaa ação comunicativapermitiria,por sua vez,
reorganizar a reconstrução da evolução das imagens de mundo, pois a lógica dasesferas de valor poderia ser explicada de maneira mais adequada por uma lógicada argumentação específica.
Dessa maneira, o indício também é índice de uma insuficiência, de um
limitepróprio,quenãopode ser sanado pelopróprioautor reconstruído.Épreciso,
então, combinar Weber, no interior de uma teoria da ação, com os estudos de
Mead e de Durkheim, no quais se podem perceber de maneira mais enfática os
sinais da racionalidade comunicativa. Esse será o passo do capítulo seguinte da
reconstrução da história da teoria. Tal passo busca desenvolver o conceito de
ação comunicativa até o seu próprio limite.Da perspectiva da teoria da ação em
geral,não é possível explicar o tipo de efeito seletivo da modernização capitalista.
É preciso, então, complementar a teoria da ação com uma teoria da sociedadecomo sistema, inspirada em Parsons. Isso permitirá reconstruir novamente a
teoria weberiana, para afinal compreender o seu diagnóstico de época. Porém, éinteressante observar que também nesse aspecto a teoria weberiana traz o indíciode uma necessária complementação, já que não são poucas as vezes em que os
âmbitos de ação racional com respeito a fins são tratados como sistemas que sereproduzem às costas dos sujeitos que agem estrategicamente. Seria,por exemplo,o caso das descrições weberianas do aparelho burocrático e da fábrica capitalista
como grandes máquinas que reproduzem a si mesmas, descrições essas que estão
no fundamento da tese da perda da liberdade.
* Assim,o tipo de críticaimanentepressupostonoprocedimentoreconstrutivo
de Habermas se articula em dois momentos. Em primeiro lugar, trata-se de
desenvolver internamente um deficit teórico que resulta do contraste entre as
possibilidades teóricas e a efetiva elaboração dessas possibilidades. Em segundo
lugar, busca-se traçar, com base na identificação das possibilidades teóricas e
das razões imanentes do não desenvolvimento teórico delas, o limite próprio daabordagem teórica. O primeiro momento parece se ater ao que desde Hegel se
entende por crítica imanente: a comparação da coisa com o seu conceito, isto é,
entre o que a coisa opera e o que elapretende ser, de modo que nessa pretensão se
encontrem os critériosparamedir suas operações efetivas,como se podeconstatar
na célebre “Introdução” da Fenomettologia do espírito (Hegel 1970,p. 68 ss.). No
caso deWeber,Habermas contrapõeareconstrução exigidaeareconstruçãoefetiva.
T» O segundo momento, no entanto, parece se ater muito mais ao que Kant
entendeu por “crítica”, ou seja, ao traçado de limites em razão da capacidade
explicativa deumaperspectiva teórica,aqualdeveser complementadapor outra.No
caso de Weber, e também deMead e Durkheim, trata-se de complementar a teoria
daaçãocomateoriados sistemas,sendo que os doisparadigmas teóricos terão seus
direitos próprios, cada qual com suas especificidades. Porém, a tradição dialética
sempre entendeu esse modelo de crítica como não imanente, já que a distinção de
perspectivas teóricas é realizada pelo sujeito do conhecimento, em uma instância
autorreflexiva distanciada e independentedoobjeto.Por suavez,Habermasentende
que tal forma crítica de traçar limites próprios é um procedimento imanente,
porqueprocura desde o início testar a pretensão de totalidade deum determinado
paradigma teórico.O fato de osparadigmas da tradição da teoria social semanterem
em concorrência se deve a essa pretensão de totalidade quecadaqual traz consigo,ao passo que o reconhecimento de seus limites explicativos seria o momento de
passagem para o que o outro é capaz de explicar melhor com base numa estratégia
conceituai distinta.
Daí o esforço de totalização que a reconstrução da história da teoria operano interior da teoria da ação: ação estratégica, ação comunicativa,mundo da vida,
reprodução simbólica do mundo da vida por meio da ação comunicativa e dosdiscursos especializados e, por fim, a impossibilidade de explicar a reproduçãomaterial dos mundos da vida modernos com base na teoria da ação. Nesse
ponto, o processo de totalização conhece seu limite interno e exige, apoiadoem uma série de indícios encontrados nos teóricos da ação, uma mudança de
62 Papirus Editora Habermas e a reconstrução 63
TEORIA CRITICA DA SOCIEDADE r\
E EVOLUÇÃO SOCIAL* C.perspectiva.Ooutro lado,por suavez, também conheceumprocesso de totalização
semelhante, articulandoParsons,Marx e,novamente, Weber. A explicação de por
que a modernização capitalista impõe uma pressão seletiva sobre o potencial de
racionalidade dos mundos da vida modernos deve ser encontradanos imperativos
sistémicos de autorreprodução do poder e do dinheiro. A tese da colonização
sistémica do mundo da vida constitui a reformulação do diagnóstico weberiano.
Ela também representa a articulação concreta dos diversos paradigmas teóricos,
sem que para isso seja necessário um paradigma superior. O diagnóstico crítico é
a instância da unidade, mas não é ele mesmo um conceito de totalidade.
“Só quando são esclarecidas as falhas que radicam na própria construção
da teoria, é possível reconstruir também o conteúdo sistemático do diagnóstico
weberiano do tempo presente, de modo que podemos esgotar o potencial de
estímulos da teoria weberiana para as finalidades de uma análise de nosso próprio
presente” (1984a, v.I,p. 365). A reconstrução dahistória da teoriamantém,assim,
o objetivo geral da teoriacríticacomo teoria reconstrutiva: reconstruir opotencial
de racionalidade, vale dizer,o potencial de emancipação inscrito na realidade das
sociedades contemporâneas, bem como as razões imanentes dos obstáculos para
sua realização.
Clodomiro José Bannwart Júnior
A teoria da evolução social de Habermas foiproduzida ao longo da décadade 1970,primeiro,com relação às “ciências reconstrutivas” e,posteriormente,pormeio do conceito de aprendizagem extraído da psicologia do desenvolvimento dePiaget e Kohlberg, conjuntamente com a utilização dos clássicos da sociologia, osquais receberammaior ênfase na obra magna de 1981. Desse modo, os dois textoslimites para o empreendimento da “reconstrução” da teoria da evolução socialassinalados neste capítulo são: Para a reconstrução do materialismo histórico,de 1973, e Teoria da ação comunicativa, de 1981, passando por outros textos dadécada de 1970.
Segue-seumabreveapresentação,comoindicativo dasaproximações teóricasde Habermas na década de 1970. Na sequência, são apresentados o surgimento e
o desenvolvimento da teoria social de Habermas após o abandono do projeto deConhecimento e interesse. Destaca-se a obtenção e a apresentação dos conceitos
que formulam abase da teoria da evolução social, comproeminência doproblemada homologia entre indivíduo e sociedade. Essa é uma questão inescapável paraHabermas,pois somentecomapacificação dahomologiaontofilogenética épossívelfazer sentido uma teoria social que tenhapor base uma teoria da evolução social.
Em seguida, são oferecidas as tentativas deHabermas quebuscamsolucionaroproblemadahomologia,observados trêspossíveis encaminhamentos:a formaçãoda identidade do eu e do grupo; a relação entre direito e moral, e a aprendizagemindividual e coletiva. Essas três tentativas, contudo, têm limitações, em razão do“modelo de ciências reconstrutivas” adotado na década de 1970.
rí,'
* Este capítulo, ainda que reformulado, faz parte de minha tese de doutorado, “Estruturasnormativas da teoria da evolução social em Habermas”, defendida em 2008 na Unicamp.Aproveito para registrar meu agradecimento especial ao amigo Adriano Márcio Januáriopela leitura e pelas sugestões quanto ao formato final.
Habermas e a reconstrução 6564 Papirus Editora
Porúltimo,édestacadooconceito deaprendizagem,queHabermasadquiriu
por intermédiodapsicologia do desenvolvimentodePiaget e Kohlberge,ademais,
o modo como esse conceito resolve a questão da homologia entre indivíduo e
sociedade,emnovaabordagem “reconstrutiva”,por meiodautilização dos clássicos
da sociologia, a partir da Teoria da ação comunicativa.
Nesse sentido, a disposição teórica da evolução social no mosaico dareflexão habermasiana deve incidir no ano de 1968, quando ele encerra um ciclode trabalho,no qual interrompe as reflexões contidas em Conhecimento e interesseeiniciaumnovoperíodo(cf.Whitebook2008,pp.125-134)- conforme destacadonaintrodução destelivro -,sobreoqual fixa fúndamentalmenteduasperspectivasteóricas que caminharão paralelas durante a década de 1970.
Essas duas perspectivas se expressam, primeiramente, no contato deHabermas com a tradição do pensamento psicológico e social. Do ponto de vistahistórico, esse marco pode ser datado de 1973, com o início da investigação dapsicologiaevolutivabaseadanametodologiareconstrutiva,emquePiageteKohlbergse destacarão como importantes fontes de pesquisa, substituindo as contribuiçõesdapsicanáliseamplamenteutilizadasem Conhecimentoe interesse.Essanovaetapadereflexãocontemplaosvários textos deHabermasescritosentre1973e 1976,dosquais vários foram reunidos em Para a reconstrução do materialismo histórico. Aoutraperspectivadiz respeito à aproximação deHabermas da filosofiaanalítica,queé marco de importante realização investigativa, sobretudo com a edição, em 1976,de Quesignifica “pragmática universal Épossívelapontar queessesdoisciclosseinterpenetramao longo da década de 1970,alcançando apuradasistematizaçãoemTeoria da ação comunicativa.Pode-senotar nos escritos dos anos 1970que a teoriada sociedadenão está desvinculada desses doisciclos temáticos e,igualmente,dessamesmaperspectiva,a teoriadaevoluçãosocialesua explicitaçãonãosedesprendemda teoria da sociedade.
Naintercalação dos doisciclos temáticos -psicologia dodesenvolvimento epragmática universal -Habermas esboça a sua teoria da evolução social, visando àreconstrução do materialismohistórico e à reposição doprojeto damodernidade-Aufklàrung-emnovos trilhos.O fôlego que sebuscaassegurar à teoriadaevoluçãoestá, entre outras coisas, alocado na tentativa de dar sequência a uma teoriasocial crítica capaz de recuperar a capacidade de encontrar as tendências para aemancipação.
A construção de um conceito
NoprólogodeProblemas de legitimação do capitalismo tardio (1973), situa-
se umaprimeira e forte manifestação que vincula à sua teoria dual da sociedade
o sentido de uma teoria, ainda em construção, da evolução social. “(O] caráter
programático da primeira parte evidencia [macht deutlich] que uma teoria da
evolução social mal se formou [ausgebilden isf], mesmo que ela tenha de ser o
fundamentoda teoria social” (Habermas 1973,p.7).A linhaorientadorada teoria
da evolução social adquire relevância ao servir de fundamento à teoria social,
cujos alicerces delineados já em Técnica e ciência como “ideologia" encontrarão
seu acabamento, em 1981, na obra magna Teoria da ação comunicativa.
A teoria da ação comunicativa não é uma metateoria, mas tem relação
questões relativas à fundamentação da teoria da sociedade (1984a, v.I,pp. 7-10).
Referenteao fato deamodernidadenãomais se orientarpor critériosnãomodernos
(Repa 2000, p. 78) e, ao mesmo tempo, relegada a “extrair de si mesma
normatividade”(Habermas2002,p.12),Habermasentende,então,queosparâmetros
normativos, suplantados pelo modelo de racionalidade meio-fim, constituem uma
patologia e que esta "patologia da consciência moderna requer uma explicação
no quadro de uma teoria da sociedade” (idem 1999b, p. 55; cf. Hansen 2008, pp.
337-338). Tal referência enfatiza a importância que a teoria da sociedade ocupa no
tratamento das questões normativas - em específico, no quadro de reabilitação da
razãopráticaempreendidaoriginariamentepor Apel eHabermaspor intermédio da
formulaçãodaéticadodiscurso -,querecebemlugar dedestaquenoquadrodateoria
da modernidade de Habermas. Com isso, percebe-se que não se aprende o sentido
específico das estruturasnormativas deumarazãopráticapós-convencional,' senão
recorrendo ao quadro mais amplo de uma teoria da sociedade.
com
a sua
explicar odesenvolvimentodaconsciênciamoral.Os seisestágios foramdistribuidos em trêsníveisdistintos de moralidade,a saber:pré-convencional, convencional epós-convencional.A esse respeito,cf.Habermas 1999b. Cf. também Freitag 1989,pp. 7-44 e Nunner-Winkler1997,pp. 219-243.
1. O termo “pós-convencional" é proveniente deKohlberge foi utilizadopelaprimeiravez em
1976, com a função de subdividir os seis estágios que ele havia elaborado, em 1958, para
66 Papirus Editora Habermas e a reconstrução 67
detém,nareferidaconferência,ademonstrarquatroposições teóricasque, segundoele, constituem aspectos metodológicos não excludentes entre si na configuraçãoda teoria da evolução social. Trata-se (1) do materialismo histórico, (2) da teoriada ação, (3) da teoria psicológica da aprendizagem e (4) da teoria fimcionalista desistemas.
Evolução socialcomo base da teoria da sociedade
A teoria da sociedadehabermasiana temcomopontodepartidaabifurcação
origináriana distinção entre trabalhoe interação (Habermas 1990a), a qualassegura
padrões distintos para a reprodução material e simbólica da sociedade. Para cada
níveldereprodução social,isto é,paraas respectivas funções exercidas,é introduzido
um modelo de racionalidadepeculiar, seja na dimensão instrumental/estratégica,
seja na dimensão comunicativa. Desse modo, a base da teoria da sociedade, tendo
por suportea teoriada evolução social,exige que estaleveemconsideração osdois
modelos de racionalidade para explicitar um possível desenvolvimento evolutivo
das estruturas sociais.
Habermas fará o pêndulo da dimensão simbólica pesar fortemente sobre a
dimensãomaterial e,comisso,colocaráo primado evolutivo sobre a racionalidade
comunicativa, pois, como ele mesmo afirma, “são as características da ação
comunicativa, obtidas por meio da reconstrução, que descrevemumdeterminado
nível de emergência da evolução social” (Habermas 1984a, v. II, pp. 372). Ne
sentidoéque entramas duasperspectivas teóricasmencionadas,vistoqueHabermas
terá demostrar,por umlado,mediante areconstruçãohorizontal, as condições de
possibilidade do entendimento possível, ou seja, as condições de possibilidade da
própria racionalidade comunicativa- a pragmática universal;e,por outro,deverá
reconstruir, verticalmente, as etapas de aquisição e desenvolvimento evolutivo
dos princípios de organização social, nas quais as estruturas da racionalidade
comunicativa se fazem presentes.
A explicitação mais detida dos conceitos que movem a estruturação da
teoria da evolução social é encontrada, sobretudo, nos textos que intercalam os
dois ciclos de pesquisa desdobrados na primeira metade da década de 1970.Um
texto de referência desse período éPara a comparação de teorias na sociologia:Em
exemploa teoriada evolução(Zum Theorienvergliech inderSoziologie: amBeispiel
derEvolutionstheorie),preparado por Habermas com a colaboraçãode Klaus Eder
eapresentado,em1974,no 17acongresso de sociólogos alemães.Esseescritodeixa
transparecer,logo de início,pouco avanço em relação às colocações demonstradas
Problemas de legitimação do capitalismo tardio,nas quais, pela primeira vez,
são feitas considerações a respeito da teoria da evolução social. Habermas abre o
texto de 1974 com as seguintes palavras: “(...) não temos teorias que expliquem a
evoluçãosocialouqueaconceituemdemodoadequado”(1976,p.129). Sem ainda
dispor de uma teoria elaborada e de suficiente poder explicativo, Habermas se
Segundo Habermas, das quatro posições teóricas aludidas à teoria daevolução social,nenhumadelas- isoladamente enaquelecontexto- fundamentariauma teoria da evolução social de conteúdo aceitável e plenamente comprovável(1976, p. 139). Porém, é com elas que a teoria da evolução social é levada adiante.Tais teorias circunscrevem a esfera que configura o escopo da teoria da evoluçãosocial. No entanto, a precisão do campo teórico e sua delimitação passam, antes,pelos conceitos empregados em Problemas de legitimação do capitalismo tardio.Nocapítulo primeiro dessa obra,como subtítulo “Umconceitocientífico-socialdecrise”(EinsozialwissenschaftlicherBegriffderKrise),a expressão sozialenEvolution(evolução social) éempregada sete vezes,por exemplo.Naprimeira delas,Habermasapenas justifica a digressão: “Essas observações desarticuladas não podemsimular nem suprir uma teoria da evolução social; elas servem meramente deintrodução exemplar deumconceito” (1973,p.31).Paraumamelhor compreensãoe estruturação argumentativa, seguem as citações das outras seis referências queexplanam o conceito indicado:
nemsse
1) A evolução social se cumpre na dimensão do desdobramento das forçasprodutivas, do aumento da autonomia sistémica (poder) e da transformação deestruturas normativas.
2) Espaços de variações para a transformação estrutural podem se introduzir[eingefuhrt werden] publicamente apenas no quadro [Rahmen] de uma teoriada evolução social. Por isso, o conceito marxiano de formação social é solícito[hilfreich].
3) A evolução social transcorre [verlaufen], antes, nos limites da lógica do mundoda vida, cujas estruturas se determinaram pela intersubjetividade produzidalinguisticamente e com base em pretensões de validade criticáveis.
4) Eupressuponho,no entanto, o mecanismo fundamental para a evolução social,um automatismo do “não poder deixar de aprender” [des Nicht-nicht-lemen-Kõnnens].
5) Pode-se aceitar [ubernehmen kann] a direção [Fuhrung] da evolução socialquando se compromete [festlegen] primeiramente por meio de [durch] seuprincípio de organização.
6) Sem uma teoria da evolução social sobre a qual me debruçar, não se permiteainda compreender [fassen] abstratamente os princípios de organização,
em
mas,
Habermas e a reconstrução 6968 Papirus Editora
dois tipos de ação, conforme apredominância da ação racionalcomrespeito a finsou da ação comunicativa. “Na esfera analítica”, diz Habermas, “quero distinguirentre 1) o enquadramento institucional de uma sociedade ou de um mundo vitalsociocultural e 2) os subsistemas da ação racional relativa afins que se incrustamnesse enquadramento” (ibid.).
O direcionamento da teoria da evolução social estará assentado no quadroinstitucional do mundo da vida, lócus de realização da ação comunicativa e damanutenção das estruturas normativas. Esse é o caminho inicialmente delineadopara a certificação de uma teoria da evolução social compretensões de direcionar,
no escopo maior da teoria da ação comunicativa,uma teoria da modernidade.
Os princípios de organização são os responsáveis pela determinação da
formação social e também retêm em si, como espaço “abstrato”, aspossibilidadesde mudança social. Habermas tece uma ampla consideração sobre os princípiosde organização em Problemas de legitimação do capitalismo tardio,a qual merece
destaque:
sim, eventualmente, apanhar [auflesen) indutivamente e explicar [erláuten]
com referência ao campo institucional, o qual tem,para cada um dos níveis de
desenvolvimento, o primado funcional (sistema de parentesco, sistema político
e sistema económico). (Ibid.,pp. 31-32)
Por questão declareza expositiva e estruturaçãoanalítica,as seis expressões
acimapodem ser reunidas em três módulos.Noprimeiromódulo, integram-se os
pontos2,5 e6;no segundo,1e3;noterceiro,apenas 4.Dopontode vista temático,
é possível afirmar que oprimeiro transcorre em torno do conceito deprincípio de
do serelacionaàs estruturas normativasdo mundo da vida;eorganização, o segun
o terceiro trata do conceito de aprendizagem.
Em relação ao primeiro módulo, “princípios de organização”, é possível
destacar queoconteúdoapresentadonoitem2informaqueasmudançasestruturais
somente podem ser introduzidas no marco de uma teoria da evolução social.
O item 5 corrobora o anterior e o complementa, ao dizer que é o princípio de
organização que preside a evolução social. Logo,no entendimento de Habermas,
não há certificação da mudança estrutural de uma sociedade se ela não estiver
vinculada à teoria da evolução sociale, igualmente,não há a devida compreensão
dateoriadaevolução social seestanão for convenientementeesclarecidanomarco
teórico e conceituai do “princípio de organização”. Aqui entra o item 6, ao dar a
pista para o esclarecimento do conceito abstrato de "princípio de organização”.
Este deve ser elucidado com referência ao campo institucional, que tem o
primado em relação aos níveis de desenvolvimento (entendemos por “níveis de
desenvolvimento” oconjuntodosistema socialque,umavezalterado,corresponde
à “mudança estrutural da sociedade”). Quanto ao “campo institucional” de uma
sociedade,refere-seàsnormasquedirigem as interaçõesmediadaslinguisticamente
1990a,p.65).Emlinhas gerais,oconceitodeprincípiode organização,
ntado de formaabstrata,vaiganhando formataçãonoconceito
Por “princípios de organização” entendo ordenamentos de índole muito
abstrata que surgem comopropriedadesemergentesemsaltosevolutivosnão
prováveisequeemcadacaso caracterizamumnovonívelde desenvolvimento.Osprincípios de organização limitam a capacidade queuma sociedade tem
de aprender sem perder sua identidade. De acordo com essa definição, os
problemas de autocontrolegeram crises se (e só se) nãopodemserresolvidosdentrodo campo depossibilidade demarcadopeloprincípiode organizaçãodasociedade.Princípiosdeorganizaçãodesse tipo estabelecem,emprimeirolugar,omecanismo deaprendizagem de quedepende o desprendimento dasforças produtivas;em segundo lugar, determinam o campo de variação dossistemasde interpretaçãogarantidores daidentidade.Porúltimo,estabelecemoslimites institucionaisdo aumentopossívelda capacidade deautocontrole.(Habermas 1973,pp. 1S-19)(Habermas
inicialmenteapresefenomenológico do mundo da vida (Lebenswelt).
Desse modo, o esclarecimento da teoria da evolução social se inicia
marco da reconstrução do quadro institucional dos sistemas sociais, isto é, no
campodo mundo da vida(3),oque significaque,daqueles trêsníveis indicadosno
item1- desdobramentodas forçasprodutivas,aumentodaautonomia sistémica e
transformação das estruturas normativas -,o que certamente alcançará destaque
paraopropósitoda teoriadaevolução social será oníveldas estruturasnormativas.
Tal indicação nãoéfeita sem critério,umavezqueopróprioHabermas,em Técnica
e ciência como “ideologia”, jáhavia distinguido os sistemas sociais, servindo-se de
Os princípios de organização, além de terem tratamento assegurado no
campo da abstração, definem simultaneamente uma variedade de funções. A
primeira função destacada se presta, não obstante, a assegurar a ligação dasformas de integração social com os níveis de aprendizagem contidos em uma
determinada visão (imagem) de mundo. Nesse sentido,não destoa a afirmaçãointercaladanas obras de 1973 e 1975,que identificanosprincípiosde organizaçãoo lócus para a caracterização de um novo nível de desenvolvimento ou paraa institucionalização de um novo nível de aprendizagem. Também é próprio
no
Habermas e a reconstrução 7170 Papirus Editora
ii
dos princípios de organização o caráter peculiar de servir de barreira ou limite
tanto na delimitação da capacidade que uma sociedade tem de aprender sem
comprometer a sua identidade quanto na demarcação das condições possíveis
para as mudanças estruturais das instituições sociais. Ainda na circunscrição
dos princípios de organização estão contidas as condições de possibilidade do
emprego e desenvolvimento das forças produtivas e, igualmente, da ampliação
da complexidade sistémica.
Apesar deconstituir umconceito altamente onerado com diversas funções,
cabe notar que o princípio de organização, em sua mais destacada tarefa - a
de relacionar formas de integração social aos níveis de aprendizagem -, deixa
margem de manobra para situá-lo em uma base menos abstrata, lembrando que
a integração social é considerada consequência de estruturas normativas que
garantem a identidadecoletiva (Schmid 1982,p. 168).Se oprincípiodeorganização
se situano intercâmbio entre integração social e níveis de aprendizagem, épreciso
retroceder a reflexão e, de uma perspectiva causal, observar a relação entre as
estruturas normativas eosníveis deaprendizagem. Talvez aquiesteja umcaminho
menos abstrato apercorrer, cuja finalidade seja desinflacionar os vários conceitos
que Habermas utiliza com sentido semelhante. Em-suma, deve-se notar que a
real diferença entre os conceitos “princípio de organização”, “visão de mundo”,
“integração social” e “estruturasnormativas” ébempequena.De imediato,parece
haver mais semelhança que diferenças.
Ainda no primeiro capítulo de Problemas de legitimação do capitalismo
tardio,Habermas situa os princípios de organização como “elemento regulador
abstrato que define campos de possibilidade” (1973, p. 30).2 Apoiado em quatro
modelos de formações sociais - destacando 1) as sociedades anteriores às altas
culturas; 2) as tradicionais; 3) as modernas (incluindo o capitalismo liberal, o
capitalismo de organização e o pós-capitalismo); e 4) após-moderna-,Habermas
se detém a verificar o significado que o princípio de organização desempenha em
cadauma das formações sociais, indicando o “campo de possibilidade que se abre
para a evolução social” e também o tipo de crise que provém de cada um desses
princípios de organização. Aqui Habermas é levado a admitir, por indução, cada
dos princípios de organização mencionados. O que sustenta tal indução é a
associação dos princípios de organização ao campo (quadro) institucionalde cada
modelo social, o qual, segundo ele, tem o primado do desenvolvimento.
Naformação social anterior às altas culturas, Habermas assinala que “ospapéis primários de idade e de sexo constituem o princípio de organização dessassociedades” (1973, p. 32), sendo o quadro institucional formado pelo sistemade parentesco. Naformação social tradicional, o princípio de organização está
assentado na estrutura de classes e o quadro institucional é assegurado pelosistema político. E na formação social do capitalismo liberal, o princípio deorganização é dado na relação entre trabalho assalariado e capital, sustentadopelo direito privado. Os três princípios de organização social apresentados não
são senão exemplos que Habermas incorpora na noção de “formação social” deMarx paracaracterizar o “espaço abstrato possível demudanças sociais”.Contudo,o conceito de “princípio de organização” é justificado mediante os exemplosfornecidos de “formação social”,por intermédio de “instâncias constitutivasdossistemas sociais”.
Cabe perguntar: Qual a diferença que separa os conceitos de “formaçãosocial” e de “instâncias constitutivas dos sistemas sociais”? Quanto ao último,considerando-o como “sistemas sociais” ou “sistemas de sociedade”, Habermasindica haver em seu interior três propriedades universais: i) os sistemas desociedades contemplam a apropriação da natureza exterior (produção) e a
apropriação danaturezainterior (socialização);ii) ospadrões denormalidade deum
sistema social sofrem alterações emvirtudedo desdobramento das forçasprodutivase dograudeautonomiasistémica;noentanto, a variação de tais alterações é aferida
por uma lógica própria do desenvolvimento de imagens de mundo;iii) o nível dedesenvolvimentodeumasociedade édeterminadopelacapacidadede aprendizagemadmitidainstitucionalmente,levando-seemcontaadiferenciação entre asquestõesteóricas e práticas (Habermas 1973,p. 19).
A apresentação dessas três condições inerentes aos sistemas sociais tem
como propósito dar sentido aosprincípios de organização, desde que estes possam(i) definir a capacidade de aprendizagem da sociedade nas dimensões teórica e
prática e, com base nessa consideração, (ii) assegurar o nível de desenvolvimentodessa sociedade, em atenção ao desdobramento das forças produtivas e tambémdas interpretações das imagens de mundo, para, finalmente, (iii) mostrar que as
imagens de mundo, como elemento garantidor da identidade social, delimitam o
aumento da capacidade sistémica da sociedade.
Dentro das considerações colhidas em Problemas de legitimação docapitalismo tardio, outro aspecto destacado paralelamente aos princípios de
V:
um
2. Ver também Habermas 1973,p. 40.
72 Papirus Editora Habermas e a reconstrução 73
deumduplo sentido:ela serve como estruturanormativae,aomesmo tempo,como
base estrutural da integração social.
De qualquer modo, ainda que de forma generalizada, é possível afirmarque as estruturas normativas comportam as seguintes especificações: coordenamreciprocamente as estruturas de comportamento; têm o respaldo das imagens demundoque as institucionalizam,permitindoumapartilhaintegradacoletivamente;e possuem a capacidade de regular expectativa de comportamentos em conflito.Quando se obtém, portanto, um “consenso básico das estruturas normativas”,pode-se dizer que a “integração social” foi alcançada. Logo, avaliar o nívelparticular de integração social de uma sociedade significa avaliar as “estruturasnormativas” que integram a visão de mundo (imagens de mundo - Weltbildem)daquela sociedade. Nas palavras de Habermas: “Sob o aspecto do mundo da vida,tematizamos em uma sociedade as estruturas normativas (valores e instituições).Analisamos acontecimentos e estados em sua dependência comrelação às funçõesdesempenhadas pela integração social” (1973,p. 14).
No entanto, se até agora foi clarificada a importância de vincular à teoria daevolução socialas estruturas sociais,nãomenos importante éindicarumproblemaqueadvém dessaunião.Êprecisoevitar umaleiturada evolução socialcircunscritasomenteaonívelestruturalda sociedade, jáque se faznecessárioinserirnoprocessodeevolução o sistema de personalidade. Sistema social e sistema dapersonalidadesão complementares e somente a união de ambos permite um sistema capazde evolução (Schmid 1982, p. 164). A unidade entre sociedade e personalidade(indivíduo)constitui temática queHabermasaborda sob oprismaontofilogenéticoem paralelo à reconstrução do materialismo histórico de Marx.
Nos argumentos empregados em Para a reconstrução do materialismohistórico, Habermas não poupa esforços para assegurar a leitura do materialismohistóricoemumaplataforma quelhepermita reivindicar créditospara a sua teoria
de evolução social. A partir dessa obra, será possível encontrar os elementos queservirão debasepara a estruturação da evolução social e,ainda,alocar oproblemada homologia entre sociedade e indivíduo e os caminhos que objetivam a suaresolução. A homologiaconstituiráoproblema demaior relevânciapara sustentar
a teoria da evolução social e assegurar a vinculação desta à teoria social crítica.Habermas apresenta três homologias possíveis no texto de 1976, especificandosuas deficiências e contribuições para a consolidação da teoria da evolução social.
Habermas considera que a teoria da comunicação, embora esteja voltadaà solução de problemas filosóficos - naquilo que se refere ao fundamento das
organização diz respeito,como ressaltado anteriormente,às estruturas normativas.3
Se o ponto específico discutido nesse contexto se refere a “estruturas”, deve ser
indagado o que significa esse termo e em que sentido Habermas o emprega ao
caracterizá-lo no cômputo da sua teoria de evolução social. Levando em conta o
sentido de princípios de organização - como visto anteriormente -,pode-se dizer
que a evolução social se define num sentido lato como um “gênero específico de
mudança estrutural” (cf. Schmid 1982,p. 163).
Mas,afinal,estrutura se refere a “estrutura de ação” ou a “estrutura social”?
Primeiro,ao se mencionar o conceito de “estrutura”, esclarece-se que ele somente
pode serpredicado emrelação à sociedade.Significa que o alcance daprópria teoria
da evolução só é capaz de definição e precisão conceituai se analisado dentro de
“estruturas sociais”. Segundo,épreciso ternohorizonte que Habermas tende aler
as “estruturas sociais”como“estruturasdeação”. “Sociedades,paraele,são redes de
açãocomunicativaeestruturassão acessíveis somentecomoestruturas delinguagem
produzidas intersubjetivamente” (Schmid 1982, p. 163). Dessa consideração é
possível extrair o seguinte direcionamento: sendo o alcance da teoria da evolução
vinculado àsestruturas sociaiseestas compreendidascomoestruturas de ação,cabe
dizer que a prioridade dada à estrutura da ação comunicativa exclui de antemão
outras duas estruturas de ação conhecidas: a instrumental e a estratégica. Fica
novamente sinalizada a prioridade da ação comunicativa como eixo orientador
da teoria da evolução social.
Desse modo, a evolução social como “gênero específico de mudança
estrutural”deve ser compreendidacomoacréscimodeumnovoitem:aelacompete
não só transformar e reformular as estruturas sociais como também conservar
e manter o princípio de integração social, identificado na estrutura da ação
comunicativa.Significamanter na estrutura da ação comunicativa a concentração
3. Deve-se observar que, além das estruturas normativas, também são levados em conta o
desenvolvimento das forças produtivas e o aumento da complexidade sistémica referente
ao item 1.0 item 3, que se associa a esse contexto, indica que a evolução social deve ser
colhidaem estruturas determinadaspela intersubjetividade,na qual a linguagemlivremente
produzida seja capaz de requerer pretensões de validade suscetível de críticas.Doispontos
fundamentais se destacam nesse contexto:a dimensão dareprodução material representada
na categoria de trabalho e adimensão da reprodução simbólica identificada na linguagem.
Doponto de vista antropológico,Habermas assegura que trabalho e linguagem constituem
duas pressuposições irredutíveis de toda e qualquer sociedade e, por esse motivo, esses
dois conceitos constituem ponto de partida tanto para reavaliar o materialismo histórico
de Marx como para orientar a própria teoria da evolução social.
Habermas e a reconstrução 7574 Papirus Editora
As reflexões de Habermas mais bem amadurecidas, no decurso de uma
série de textos produzidos na década de 1970, tendem a elaborar como objetivoprincipalodesenvolvimento deumprograma teórico que encampaareconstruçãodo materialismo histórico (Habermas 1997b,p. 225) e, ao mesmo tempo, explicitaa sua teoriadaevolução social. A leitura desses textos deixaver que a teoria da açãocomunicativa - e nela implícitas a teoria da modernidade e a ética do discurso -faz parte do contexto de uma ambiciosa teoria da evolução social (p. 223). Asevidências dessa afirmação começam a se tornar claras,demodo especial,emPara a
reconstrução do materialismohistórico,quando Habermas apresenta asrazõesparaestender o modelo dapsicologiado desenvolvimento -presenteno seumodelo demoralpós-convencional - do indivíduo para o nível social (p. 58).
A teoriadaevolução socialpodeser considerada,alémdeoutrosqualificativos,comouma teoria reconstrutiva das capacidades humanas emníveis de aprendizadocada vez mais elevados, tendo em vista alicerçar as bases para uma teoria social.Em seu escopo, leva em consideração, sobretudo, que o desenvolvimento dascompetências do indivíduo pressupõe o desenvolvimento de contextos sociais ouformas de vida entrelaçados comunicativamente.
O fato de Habermas se pautar em Marx não significa que a sua teoria
evolucionária mantenha laços estreitos com o materialismo histórico em seu
modelo original. O materialismo histórico, conforme se deixa expressar pelo seu
procedimento de reconstrução, passa necessariamente pelas considerações dateoria do agir comunicativo. Com a delimitação do pensamento de Marx, a tese
levantada e sustentada por Habermas é a de que o desenvolvimento das estruturas
normativas-conformeressaltado anteriormente- será oinaugurador decaminhospara a evolução social, pois tão somente a estruturação de novos organismossociais - quer dizer, novas formas de integração social - permitirá a consecução
de novas forças produtivas, que,por consequência, tornarão exequível o aumento
da complexidade social. A leitura de Habermas tende, nesse sentido, a manter deMarx,porémde outraperspectiva, a dimensão tanto histórica quanto material. “Ateoriade Habermaspermanece - assumeele -históricaematerialista:materialistaem seu foco sobre crises de produção e reprodução, e historicamente orientadaem sua atenção para as ‘circunstâncias contingentes’ que dão origem a mudançasevolucionárias” (Outhwaite 1996,p. 61).
A consideração de Habermas é a de queo critério do desenvolvimento socialparaMarx é medidopelo estágio de desenvolvimento das forçasprodutivas acrescidoda maturidade das relações sociais. Diz a esse respeito que o desenvolvimento dasforças produtivas é portador de um saber tecnicamente utilizável, ao passo que
ciências sociais -, também se mantém vinculada a questões relativas à teoria da
evolução social: “Ao examinar as hipóteses singulares so.bre a teoria da evolução,
deparamo-nos comproblemas que,ao contrário, tornamnecessárias considerações
da teoria da comunicação (Komunikationstheoretischer)” (1976, p. 11). A teoria
da comunicação visa a um materialismo histórico renovado (p. 12). Em Para a
reconstrução do materialismo histórico, dos argumentos empregados se destaca a
afirmação seguinte:
(...) há boas razões para justificar a hipótese de que, também na dimensão
da convicção moral, do saber prático, do agir comunicativo e da regulação
consensual dos conflitos de ação, têmlugar processos de aprendizagem que
se traduzem em formas cada vez mais maduras de integração social, em
novas relações de produção, que são as únicas a tornar possível,por sua vez,
o emprego de novas forças produtivas. (Ibid., pp. 11-12)
No esforço de salvaguardar os pressupostos do materialismo histórico,
porém, com a inversão entre forçasprodutivas e relações de produção, Habermas
deposita valor altamente considerável nas estruturas de racionalidade - expressas
em (1) imagens de mundo, (2) ideias morais e (3) formação da identidade -, as
quais são materializadasemsistemas deinstituições.Éno destaque dareconstrução
dessas estruturas de racionalidade - que contemplam as estruturas normativas -
que Habermas distinguirá entre lógica do desenvolvimento e dinâmica do
desenvolvimento.
-J
Homologias ontofilogenéticas
A pretensão teórica do materialismo histórico é levada em consideração
pelo fato de a evolução social estar intrinsecamente ligada à história do gênero
humano e, nesse aspecto,assumir a tarefa de explicar a transição das civilizações
antigas para as sociedades de classes e destas para as modernas sociedades. Em
“Opapelda filosofiano marxismo” (“DieRolle der Philosophic imMarxismus”),
publicado em 1974na revistaPráxis, colhe-se a seguinteafirmação de Habermas:
“Nesse sentido, tenho o materialismo por umprogramapleno de sentido deuma
teoria futura da evolução social, ainda obviamente em sua forma não acabada”
(1976, p. 57).
Habermas e a reconstrução 7776 Papirus Editora
as relações de produção, que fomentam as instituições sociais, incorporam
saber de outra ordem: o saber prático-moral. Notadamente, procura ver nessas
duas dimensões a possibilidade de que o seu desenvolvimento seja avaliado por
critérios independentes. Em ambas,há pretensões universais de validade, porém,
naprimeira se medem os progressos da consciência empíricacombasena verdade
das proposições, já na segunda se procura medir a consciênciaprático-moralpela
justeza das normas. Em face disso, abrem-se as condições para Habermas exigir
e defender a tese segundo a qual uma sociedade não deve ser avaliada, nos seus
mais diversos graus de desenvolvimento, tão somente por aquilo que se refere à
reprodução material, garantidora da sobrevivência física de seus membros, antes
se deverialevar emconsideração também os aspectos renitentes doplano cultural,
os quais englobam os elementos garantidores da identidade normativa do grupo.
Oponto fundamental sustentado é a ideia de que:
o propósito deproceder aumaleitura que tornepossíveis osprocessos evolutivosdas forças produtivas e das relações de produção de modo independente um dooutro.5
um
Além de uma leitura que conserve o campo específico de racionalidade decada uma das formas de reprodução social - material e simbólica -, Habermasnão pode descuidar de assegurar, por outro lado, a homologia entre ontogênesee filogênese. Na projeção do próprio materialismo histórico reconstruído, trêsperspectivas possíveis de homologias são indicadas. Trata-se da questão referenteà identidade que vincula grupos sociais e indivíduos; da dimensão prático-moralque implica a relação entre direito e moral; e da capacidade de aprendizagem,seja de indivíduos, seja da sociedade como um todo. Dado que personalidade esociedadedevemexpressarumapossívelunidadeparaassegurar o desdobramentoda evolução social, tais homologias são analisadas como intuito de verificar se, defato, tal empreendimento é realizado com sucesso.
(...) o gênero aprende não só na dimensão (decisiva para o desenvolvimento
das forças produtivas) do saber tecnicamente valorizável, mas também na
dimensão (determinante para as estruturas de interação) da consciência
prático-moral. As regras do agir comunicativo se desenvolvem, certamente,
emreação a mudanças no âmbito do agir instrumentale estratégico;mas,ao
fazê-lo, seguem uma lógica própria. (Habermas 1990a, pp. 162-163)
Cabe, no entanto, perguntar se Habermas concede prioridade a umdesses sistemas - sociedade e personalidade - ou se os correlaciona em perfeitoequilíbrio. Personalidade e sociedade recebem o mesmo amparo na estruturada intersubjetividade, a qual serve de parâmetro tanto para a personalidade -como capacidade de linguagem e de ação dos sujeitos - quanto para os sistemassociais - visto que estes constituem o tecido próprio da ação comunicativa. Tãologo as estruturas de intersubjetividade estejam inseridas nesses dois polos,Habermas indica uma espécie de “estrutura de consciência” que brota do eloentre personalidade e sociedade. Trata-se, por um lado, das instituições sociaisque se ocupam com a manutenção da intersubjetividade, a fim de evitar conflitos,
Habermas quer expressar, nesse aspecto, a necessidade de separar o agir
comunicativo do agir instrumentale estratégico,apontando igualmentepara outra
distinção quebusca promover nointerior domaterialismohistórico:a distinção
entre dinâmica evolutiva e lógica evolutiva* Quanto a este último aspecto, cabe
notar o queHabermas intenta expressar,ao afirmar que: “(...)podemosentender
a explicitação das forças produtivas como um mecanismo que cria problemas
e, certamente, abre caminho para a subversão das relações de produção e para
umarenovação evolutivadomodo deprodução,mas que não as produz” (1990c,
p. 161).Umpoucomais adiante,namesma obra,acrescenta: “Oconceito demodo
de produção leva em conta o fato de que a explicitação das forças produtivas é
certamente uma dimensão importante do desenvolvimento social, mas - para a
periodização - não é adimensãodeterminante” (p.164).Evidencia-se,portanto,
5. Doismal-entendidos que Habermas diz, com frequência, serem atribuídos à sua teoria deevolução social referem-se, em primeiro lugar, à ideia de que a dinâmica da história dogênero éexplicadapor umahistória imanentedoespírito,comose adimensãomaterialista,comomotor do desenvolvimento social, fosse abandonadaporcompleto;emsegundo,a ideiadeque a lógica dodesenvolvimento se sobrepõe às contingências históricas, suspeitando-sedo abandono de análises empíricas em favor de uma logicização da história (1976, p. 35).Esses mal-entendidos não são contemplados em sua teoria da evolução social e podem serverificados com a leitura atenta dos textos do próprio Habermas. Isso porque a distinçãoentre dinâmica evolutiva e lógica do desenvolvimento mostra que a dinâmica evolutivaresponde pela ótica "material” dos problemas sistémicos que geram crises no âmbito dareprodução material. A lógica do desenvolvimento registra não apenas ahistória interna doespírito, mas também a realização histórica e material cravada nas estruturas normativasda sociedade. Como diz Habermas: “Encontra-se aqui o lugar para os procedimentos dereconstrução racional" (1976, p. 38).
4. Segundo Araújo,“a lógica representa omodelo deumahierarquia de estruturaspassíveisde
reconstrução racional,num sentido similar ao da psicologia cognitiva do desenvolvimento
de Piaget, enquanto a dinâmica diz respeito ao processo pelo qual se dá a evolução dos
conteúdos empíricos,portanto condicionados e múltiplos,destas estruturas” (1994,p. 18).
Habermas e a reconstrução 7978 Papirus Editora
queHabermasnãohavia se decidido por ideias morais ou mecanismos de resoluçãodeconflitos,deixando em aberto a possibilidade ounão de assegurar aparticipaçãodo direito como mecanismo que regula conflitos.6 Em Desenvolvimento da morale identidade do Eu, a opção por ideias morais excluiu de antemão o direito comoparte integrante da dimensão prático-moral.
Não menos importante é destacar que a tese dahomologia entre ontogênesee filogênese passa necessariamente pela articulação dos conceitos psicológicos esociológicos:“Osconceitosbásicos,psicológicose sociológicos,podemse articular,porque asperspectivas doEuautónomo e da sociedade emancipadaneles esboçadasse corrigem e se implicam reciprocamente” (Habermas 1976, p. 64). Porém, levaradiante a correlação entre ontogênese e filogênese, com o propósito de assegurarumaperspectiva emancipatória da sociedademoderna, exige reabilitar o indivíduoe mantê-lo atuantecomo base de sustentação dahomologia pretendida. É preciso,nesse caso, que “a teoria crítica da sociedade conserve firmemente o conceito doEu autónomo, mesmo quando avança o negro prognóstico de que esse Eu estáperdendo a sua base” (p. 65).
A tese da homologia indicada em Introdução: O materialismo histórico e o
desenvolvimento de estruturas normativas menciona dois caminhos possíveis: a
vinculação do (i) desenvolvimento doEue da evolução das imagens de mundo e a
relação da (ii) identidade do Eu e da identidade do grupo. Já em Desenvolvimentoda morale identidade do Eu,o que se percebe é a preservação da identidade do Euem sua relação como desenvolvimentoda moral.Muda-se a constelação, jáque as
imagens demundo e, igualmente,a identidadedo grupo foramexcluídas da análise.A opção pelo desenvolvimento da moral ou das ideias morais também é fator deexclusão do outro aspecto da dimensão prático-moral: o direito - o mesmo quehavia sido indicado em razão de seu caráter institucional de resolução consensualde conflitos. O que se tem nesse texto da conferência de Habermas, proferida em
1974 por ocasião das comemorações do cinquentenário da fundação do Institutopara a Pesquisa social de Frankfurt, é uma análise circunscrita da dimensão dapsicologia do desenvolvimento ligada à teoria da ação. Um texto,por assim dizer,altamente inflacionado pelapsicologia.
violência e qualquer outro fator de ameaça à obtenção de consenso; e, por outro,
das qualificações das ações dos indivíduos que compõem o tecido social. Tais
“estruturasdeconsciência”,dessemodo,estão integradas às instituições do direito e
damorale também às expressões e aos juízosmoraisdos indivíduos.Segue daí que
“moral e direito definem o núcleo da interação” e são constitutivos da identidade
das estruturas deconsciência (Habermas 1976,p. 13).No mesmo texto,Habermas
retoma direito e moral como estruturas de consciência, para afirmar que ambos
são homólogos na história do indivíduo e na do gênero. Aspecto salutar a esse
respeito éo fato de ashomologiaspretendidas não selimitaremaonúcleo centralda
interação (1976,p.13).Combase nessa assertiva,é possívelafirmar queHabermas
se distancioude uma análise mais pormenorizada da “interação” sob o enfoque da
teoria da ação para se ocupar de mecanismos que lhe possibilitassem estabelecer
a relação entre ontogênese e filogênese pelo viés do desenvolvimento evolutivo
da dimensão prático-moral, incluindo nesta a consciência moral e o direito. A
visão de Habermas, nesse contexto, pode ser resumida na seguinte passagem: “A
psicologiacognoscitiva do desenvolvimento documentou,no caso da ontogênese,
diversos níveis de consciência moral, descritos singularmente como modelos ou
esquemas pré-convencionais, convencionais e pós-convencionais de solução dos
problemas. Os mesmos modelos se repetem na evolução social das ideias morais e
jurídicas” (1976,p. 13). É nessa orientação que seguirão, em princípio, as análises
das homologias.
Habermas fazmenção àsestruturas de consciênciaprovenientes do elo entre
personalidade e sociedade. Tais estruturas (de consciência) seriam asresponsáveis
por gerar aidentidadedoEueigualmente do grupo a que os indivíduospertencem.
Além das estruturas de consciência, Habermas menciona ainda as estruturas de
racionalidade, as quais são materializadas em mecanismos de agir racional
respeito a fins - novas tecnologias, por exemplo - e também em mecanismos
do agir comunicativo - incluídas as imagens de mundo, os procedimentos de
regulação de conflitos e a formação de identidades.Nessa última (mecanismos do
agir comunicativo) seencontram asestruturasnormativas,responsáveispor novas
formas de integração social.
No textoDesenvolvimento damorale identidade doEu,Habermascontempla
apenas dois componentes da estrutura de racionalidade: as ideias morais e a
formação daidentidade. As imagensdemundo ( Weltbildem) são deixadas delado.
Ainda cabe observar que,ao tratar em específico das ideias morais,Habermas está
tomando posição sobre a ambiguidade registrada em Introdução: O materialismo
histórico e o desenvolvimento de estruturas normativas.Nesse escrito, ficamanifesto
com
6. Ao sereferir àestrutura deracionalidade,Habermas trata com ambiguidade a morale odireito.Cabe notar que, ao se referir às estruturas de racionalidade, ora menciona “representaçõesmorais”, ora menciona “mecanismos de regulação de conflitos”. É um indicativo de queHabermas parece manter uma indefinição quanto à possibilidade de incluir o direitoestruturas de racionalidade.
nas
Habermas e a reconstrução 8180 Papirus Editora
No intuito de assegurar a identidade doEu,porém,Habermas afirma que a
consciência moral é um aspecto central do desenvolvimento do Eu. Desse modo,
sublinhar o desenvolvimento moral como parte inerente ao desenvolvimento da
personalidade é, para Habermas, fator decisivo na consolidação da identidade do
Eu.Nesse quesito,Habermasnão apenas se apropriadosníveis deconsciênciamoral
de Kohlbergpara relacioná-loscomos estágios dedesenvolvimento doEupropostos
por Jane Lõvinger,mas,acima de tudo,visa utilizar os níveis de consciência moral
propostos por Kohlberg para satisfazer “as condições formais de uma lógica do
desenvolvimento,reformulando esses níveis num quadro geral de teoria da ação”
(1976,p. 74).
constitutivosdegruposparticulares-o indivíduo,nessa fase, é sobrecarregado,poistemde ser capaz deromper identidades, já superadas, econstruir novas,buscandose sustentar na capacidade abstrata de representar a si mesmo.
A questão que sobrevém, admitindo-se que essas características do Eusão de fato coerentes, é saber se é possível indicar princípios universalistas eminstituições. A questão empíricarequer a existênciadeuma sociedade concretacomparâmetros normativos pós-convencionais. Essa questão tende a conduzir aparadoxo,visto que “a identidadedoEusó pode se formar nocírculoda identidadede um grupo” e, nesse caso, haveria dificuldades para justificar, do ponto de vistaempírico, a existência dessa sociedade com características pós-convencionais emescala universal.
A tentativa de conduzir a homologia pretendida pelo viés da identidadecomo elo entre personalidade e sociedade se apresentaproblemática, em vista daexistência de um deficit empírico no plano institucional. Habermas admite que,nas sociedades modernas, a identidade coletiva já não se apresenta na forma detradições fortessustentadaspelaunidadedas imagensdemundo:“Hoje,nomáximo,podemos ver a identidadecoletiva comoalgo enraizadonas condições formais sobas quais sãoproduzidaseintercambiadasasprojeçõesdeidentidades”.Na verdade,“os próprios indivíduos tomam parte no processo formativo e decisional deidentidade que deve ser ainda projetada coletivamente” (ibid., p. 107). O que sepercebe é que a identidade, na modernidade, não integra de forma simultânea arelação entre indivíduo e sociedade,mas éprimeiramenteincorporadanaestruturada personalidade e só posteriormente enraizada em estruturas sociais. Nesseponto,Habermas concedeprioridade demasiada àpsicologiadodesenvolvimento,residindo,nesse aspecto, a dificuldade de sustentar a identidadepós-convencionalcomo elo integrador entre indivíduo e sociedade, já que a psicologia dodesenvolvimento fornece condições teóricas e, também, empíricas,para apoiar ageração daidentidadepós-convencionalno indivíduo,masnãohánenhumsuporteempíricoque avalize esse tipo deconsciênciaemestruturasnormativasdasociedade.A saída,paraHabermas,é tentar mostrar que o direito,como sistema institucional,incorpora estruturas de consciência moralpós-convencional.
Direito e moral desempenham, como dito anteriormente, um papelimportante na regulação consensual de conflitos de ação e, nesse sentido, pode-sedizer que atuam, sobretudo,na conservação de “uma intersubjetividade de acordoentre sujeitos capazes delinguagem e de ação” (ibid.,p.30).A tentativa de assegurara plausibilidade de estruturas de consciência homólogas tanto nodesenvolvimentodoEuquanto na evolução das sociedadespassa necessariamentepela incorporação
um
Ao tratar da “identidade racional”, Habermas chama atenção para a
vinculação de um conteúdo normativo a esse conceito. Como ele próprio destaca,
é pertinente “reconstruir a lógica do desenvolvimento da organização doEu, sem
negligenciar o caráter normativo do conceito de identidade do Eu” (ibid., p. 96).
A identidadedoEu se caracteriza, entre outros aspectos,pelacapacidade de falar e
agir,epelacapacidade depermanecer idênticaa simesma,istoé,manter aunidade
da personalidade, mesmo diante de situações contraditórias que revolucionem o
indivíduo.Alémdessesaspectos,a identidadedoEusomentelhepermitedistinguir
a si mesmo dos outros mediante o processo de reconhecimento interacional.uma
Aidentidadeégeradapelasocialização,ou seja,vai seprocessando àmedida
queo sujeito-apropriando-se dosuniversossimbólicos- se integra,antes de
maisnada,numcertosistemasocial,aopassoque,mais tarde,elaégarantida
edesenvolvidapela individualização,ouseja,precisamenteporumacrescente
independência com relação aos sistemas sociais. (Ibid.,p. 68)
Baseado em correntes da psicologia, principalmente na psicologia do
desenvolvimento, Habermas indica três estágios de identidade percorridos pelo
indivíduo: (i) a identidade natural, que é conquistada quando a criança consegue
estabelecer olimiteentre seucorpo eoambienteexterno,mesmo queeste aindanão
seja diferenciadoquantoaos objetos físicosesociais;(ii) a identidadeconstituídapor
papéisemediadasimbolicamente,oquesedánomomentoemqueacriançaalcança
condições para se localizar no mundo social, incorporando os papéis sociais do
ambiente familiar egradativamente as dimensõessimbólicasincrustadasnasnormas
de ação do grupo social a que pertence - nota-se que é essa fase o momento de
geração de expectativasdecomportamento estáveis;e,por último,(iii) a identidade
do Eu,momento em que o Eu leva a sua identidade além das normas e dos papéis
82 Papirus Editora Habermas e a reconstrução 83
depapéis universais de comunicação,quer dizer,pela manutenção de canais abertos
para a intersubjetividade, os quais somente se efetivam por meio das estruturas
de linguagem e de ação expressas na lógica dos pronomes pessoais (ibid., p. 31).
Habermas quer mostrar que as estruturas homólogas de consciência encontram
elo de interconexão na e pela intersubjetividade e, portanto, direito e moral,
como mantenedores da intersubjetividade, tornam-se referenciais importantes de
investigação,comaqualnão se visaoutracoisa senão assegurar quemorale direito
sirvam de ponte para a homologiaproposta. A identidade de pessoas que agem em
ummundoconstituído intersubjetivamente seorientapor estruturas simbólicasque
estão na base do direito e da moral, cabendo destacar que as estruturas simbólicas
(estruturas de consciência) se integram ao direito, como instituição, e à moral,
como estrutura ancorada na personalidade.
No plano social, as estruturas da intersubjetividade são tomadas como
“tecidos de açõescomunicativas” e,noplano dapersonalidade,elas são consideradas
“capacidade delinguagem e de ação” dos indivíduos.Os doisplanos deestruturas-social e individual - referem-se a estruturas de consciência que, no âmbito dos
sistemas de sociedade, estão arraigadas nas instituições do direito e da morale,no
âmbito dapersonalidade,estão manifestasna expressão de juízosmorais enaprática
de ações individuais. Revela-se importante o papel desempenhado pela moral e
pelodireito,os quais são definidospor Habermascomo núcleo da interação (1976,
p. 13).Moraledireito se revelamcomo “orientações especializadasnamanutenção
da intersubjetividade”, podendo, como é o caso do direito, mais especificamente,
ser uma orientação de ordem institucionalizada. Se o sistema jurídico ocupa um
papel institucional destacado na homologia pretendida, cabe verificar qual a real
visão que Habermas tinha do direito nesse contexto. O texto que melhor ilustra
a sua posição nesse período é “Considerações sobre a posição evolucionária do
direito moderno”.
Nesse texto, preparado para um seminário interno, Habermas reforça, de
início, a ideia de que as sociedades aprendem de modo evolutivo e a evolução
ocorremediante aincorporaçãoinstitucionalde estruturasracionais quepermitem
a reorganização dos sistemas de ação. O direito,portanto, não escapa a essa regra
ao incorporar “estruturas universais de consciência”. O fator que decorre da
racionalização dos sistemas de ação é a ampliação da capacidade de orientação dos
sujeitoscomo capazesdepensar e deagir.Nesse caso,compreender as estruturas de
racionalidadedo direitomoderno éverificar como essas estruturas de racionalidade
jurídicas “se manifestam em relação com a racionalidade da ação dos sujeitos
jurídicos e não com a racionalidade sistémica da circulação económica, a respeito
da qual cumpre funções esse direito moderno” (ibid., p. 260). O direito cumprefunções de racionalidade sistémica (modelo no qual a racionalidade dos fins édeterminada por sistemas autorregulados), mas a sua estrutura de racionalidade,reforça Habermas, deve ser medida em outra chave de leitura: a racionalidade daação dos sujeitos jurídicos.
Por racionalidade da ação Habermas entende “os requisitos que uma açãotem de cumprir para alcançar a solução de um problema” (ibid., pp. 260-261).
A racionalização se desdobra por meio de três regras distintas: instrumental,
estratégica e comunicativa. Na primeira - instrumental -, trata da racionalizaçãodos meios, da construção de meios adequados; na estratégica, visa-se à eleição dosmeiospelainfluênciaepelologro dos atores envolvidos;nacomunicativa,busca-sea justificação denormas e valores. Se aconcepção deracionalidade,paraHabermas,circunscreve-sea“estruturas de consciênciaque semanifestamem sujeitos capazesde conhecimento e de ação ou em manifestações preposicionais e institucionais”,cabe perguntar qual das regras de ação indicadas - instrumental, estratégica ou
comunicativa - se refere ao direito. Nas palavras do próprio Habermas, a questãoé a seguinte: “Em que consiste a racionalidade do direito?”.
A respeito da questão levantada,quatro considerações são apresentadasporHabermas no texto supracitado. A primeira tangencia explicitando os conteúdosdo direito privado que prima pelas relações económicas capitalistas, garantindo,sobretudo, a posse da propriedade e da liberdade de contratos. Por essa ótica, o
direito se aproxima de forma intensa da racionalidade sistémica da sociedade, demodo que os problemas sistémicos encontram, eles próprios, melhor resoluçãoquando auxiliados pelo sistema jurídico moderno. Habermas afirma que, da
perspectiva da evolução social,não cabe desconsiderar opapelsignificativo que as
estruturas jurídicas tiveramnosurgimento damodernidade.Porém,essasestruturas
jurídicas não são explicadas ou esclarecidas por funções ou conteúdos do direitomoderno e ainda menos pelas consequências sistémicas que esse mesmo direitoproduz.“Asconsequências sistémico-racionaisnão fundamentam aracionalidadedo direito” (ibid.,pp. 262-263).
A segunda, partindo de considerações de Max Weber, trata da sistemáticajurídica e da vinculação dela à racionalidade. Observa-se que, desde as faculdadesde direito da Idade Média até o direito positivo moderno, quando atingemáxima expressão em Kelsen, a sistematização de normas jurídicas tem passadopor um processo de racionalidade interno ao próprio direito. Esse conjunto deracionalizações internas do direito temcomo prejuízo o fato de que circunstânciase tendências, diferenciadas em nacionalidades distintas, conduziram a diferentes
i
sua
84 Papirus Editora Habermas e a reconstrução 85
formas de evolução jurídica (Habermas 1984a, v. I, p. 348). Para Habermas,
“a sistematização das normas jurídicas parece ser mais bem entendida como
consequência deuma racionalização dasesferasdeação juridicamenteorganizadas”
(1976,p. 263).
A terceira serefereàs características estruturais dodireitoprivadoburguês,
baseado no qual se edificou o direito moderno. Trata-se da positividade, do
legalismo e do formalismo do direito. Positividade, legalidade e formalidade se
referem, respectivamente, às condições estruturais (1) de como criar o direito
para garantir a sua validade, (2) de como estabelecer a sanção e os critérios de
punição, (3) de como garantir um modelo de organização para a ação jurídica.
A positividade assegura que as normas jurídicas sejam instituídas por convénios
sancionados publicamente, podendo ser modificadas a qualquer momento sem,
no entanto,perderem a legitimidade. A legalidadepermite que a ação jurídica seja
completamente desvinculada de conteúdos éticos e das motivações internas que
movemo agente à ação.Ea formalidade,paragarantir queo sujeito jurídicopossa
agir em benefício privado, toma-se uma estrutura que viabiliza as ações racionais
com respeito a fins. Habermas observa que "positividade, legalidade e formalismo
são características gerais deumainstitucionalização, juridicamente vinculantes de
âmbitos de ação estratégica” (1984a,v.I,p.352).
Em razão do processo económico e de sujeitos movidos por interesses
privados, Habermas mostra que o direito moderno, nesse contexto, serve de
meio de organização da esfera de ação (1976, pp. 263-264). A racionalidade do
direito se ajusta à racionalidade estratégica dos sujeitos jurídicos que se orientam
pela racionalidade com respeito a fins, isso porque se criou uma espécie de
planificaçãodasorientaçõesde açõesque,perspectivadaspelas relações demercado,
possibilitaramabusca deinteressesprivadosneutralizadosdopontodevistaético,
legitimadas,no entanto, do ponto de vista jurídico. É importante atentar para as
característicasdaépocamoderna,emque odireito eamoralse integram,assumindo
um grau elevado de abstração e de universalidade. Para o modelo das sociedades
modernas profundamente marcadas pelo princípio capitalista de organização, a
economia, que desde cedo foi emancipada do quadro institucional, soube manter
umsistema despolitizado combasena regulação domercado.Nessecaso,as decisões
individuaispassaram a ser organizadaspelo direitoprivado burguês, sempre com
base em princípios universalistas,assegurando relações neutralizadas do ponto de
vistaético,de formaqueosindivíduospudessemperseguir seuspróprios interesses,
justificados pela perspectiva da racionalidade com respeito a fins e em razão de
estarem praticando máximas universais (ibid.,p.28).Em outros termos, o direito
privado burguês viabilizou normas que “organizam de acordo com princípiosuniversalistas esferas doagir estratégico neutralizadonoplano ético” (ibid.,p.37).
A quarta consideraçãoprocura demonstrar quenão épossíveldiagnosticara racionalidade do direito nem da perspectiva da racionalidade sistémicada perspectiva da sistematização jurídica. Sem desconsiderar a imposição daracionalidade estratégica, comoestrutura sistémica capitalista, Habermas assinala outro parâmetro para avaliar aracionalidadedo direito:aconsciênciamoral.“Doponto de vistadalógicaevolutiva[Entwicklungslogisch], a forma do direito moderno pode ser entendida como umaincorporação de estruturas de consciência pós-convencional. Nesse sentido, cabemediroaumentodaracionalidadedodireitomodernolevando-seemconsideraçãoa sua racionalidade normativa” (ibid.,p. 266).
A impressão que fica é a de que, cautelosamente, Habermas estende parao campo do direito a distinção entre dinâmica do desenvolvimento e lógica dodesenvolvimento.Nãonega queodireito se ajusta ao sistema económico capitalista,estruturandoomodelode ação estratégicaque se exige do direitoprivadoburguês.Porém, não admite que aí resida a chave de leitura correta para interpretar aevolução do direito. Se o modo de produção capitalista é decisivo para explicar osconteúdos e as funções do direito burguês, então, deve-se entender que o direito,nessa acepçáo, é resultado da dinâmica do desenvolvimento. Por outro lado, cabeà lógica do desenvolvimento justificar quais as estruturas de consciência moralqueimpulsionamo direitomoderno elhepossibilitam desempenhar as suas funções daforma como o exerce. Para Habermas, o direito, de sua perspectiva evolucionária,nãopode ter sua explicação reduzida nemaodireitoprivadonemà sua sistemáticainterna,develevar emcontaumaótica ampliada,queconsidereaconexãododireitoprivadocomodireitopúblicoe,sobretudo,aconexão entredireito emoral,aspectoesse de inconteste importância para entender a racionalização do direitopelo viésda racionalidade da norma.
O que Habermas está pretendendo fazer não é outra coisa senão mostrarque o direito exerce funções sistémicas na sociedade, mas que o núcleo de suaracionalidade é movido pelo nível pós-convencional da consciência moral. Nasociedade moderna, haveria, portanto, um espaço institucional para responderde forma homóloga à dimensão normativa alcançada pelo indivíduo no nívelpós-convencional. Porém, esse espaço, marcado pelos dispositivos jurídicos,acentuaria mais a consecução de ações movidas pela racionalidade meio-fim doque propriamente a de ações normativas orientadas ao entendimento.
nem
decorrência da dinâmica evolutiva própria da
86 Papirus Editora Habermas e a reconstrução 87
como conceito é um pressuposto importante para a teoria da evolução social. Sua
funçãoé sinalizar o crescimento e a formaascendente daspropriedades formais das
estruturas de racionalidade, implícitas nos conteúdos presentes em formas de vida
concreta, visando, desse modo, ao aumento cada vez mais elevado do “campo de
possibilidades” que se abre tanto aos indivíduos quanto às sociedades.No entanto,
ao mesmo tempo em que não é possível desatrelar as estruturas de racionalidadedas formas concretas do mundo vivido, das tradições culturais particularizadas e
da formação própria da personalidade e da identidade dos indivíduos, tambémnão é plausível vincular as estruturas de racionalidade a essa realidade histórica
concreta a fim de, apartir daí,obter o melhor critérioparaaferir a evolução social.A teoria da aprendizagem, colhida na lógica do desenvolvimento da psicologiaevolutiva,nãopode se firmar estritamente sobreomarcoconteudístico,por razões
de restringir o escopo de sua abordagem; deve se ater à caracterização formal dosníveis de aprendizagem, responsáveis pela determinação dos possíveis processosde aprendizagem em cada um desses níveis.
A teoria da evolução social preserva como padrão avaliativo das mudançasevolutivas as estruturas formais da racionalidade - porquanto essas variam de
acordo com o ponto de vista da universalidade. Portanto, “universalização e
abstração ou formalização crescentes seriam a lei ou lógica interna que parecepresidir os trânsitos de um estágio a outro” (Mardones 1985,p. 250). Os processos
de aprendizagem, no quesito do desenvolvimento, são analisados por Habermas
com base em três possíveis considerações.
A primeira consideração remete ao desenvolvimento ontogenético doindivíduo, que pode ser analisado em esferas distintas: na esfera cognitiva, que
consideraacapacidadedopensamento formal;naesferamoral,quevisaàavaliação
da capacidade do julgamento moral; ou na esfera da interação, que consideraa competência interativa da relação intersubjetiva (Schmid 1982, p. 164). Tal
material forneceo suporte teóricoparadefender que as capacidadesindividuais de
aprendizagem estão amparadas nas estruturas das imagens demundo- suscetíveis
de transmissão e de institucionalização -, traduzidas nas formas maduras de
integração socialeno aumento das forçasprodutivas.Oque faz Habermas é se servir
das estruturas hierárquicas da psicologia do desenvolvimento para reconstruir,
por meio da moral - institucionalização das expectativas de comportamento - e
do direito - regulação consensual de conflito -, a lógica evolutiva das sociedades(Habermas 1976, pp. 134-135).
O processo evolutivo de aprendizagem tem a relevância de considerar os
mecanismos de aprendizagem como lócus de explicação, quando da passagem
A consciência moral e a institucionalização jurídico-moral ocupam,
respectivamente, os planos da ontogênese e da filogênese - campos distintos quebuscam ser conjugados - e revelam dois aspectos importantes: 1) albergam em
comum a mesma especificidade ao tratar da superação de ameaças que rondam
a manutenção da intersubjetividade, pois o rompimento de uma situação de
normalidade comunicativa, desencadeado por conflitos ou acirramento de
interesses divergentes, encontra na moral e no direito o ponto de equilíbrio para
a restauração consensual dos conflitos dentro dos limites de uma fundamentaçãodiscursiva; 2) a inclusão da moral e do direito no âmago da ação orientada para o
entendimento revela queacompreensão dodireito modernopode ser reconstruída
dentro do mesmo quadro de uma moral pós-convencional, isto é, da perspectiva
da racionalidade comunicativa.Dessemodo,seguindo ashomologias traçadasporHabermas, aquela que procura vincular consciência moral e institucionalização
jurídico-moral tem de necessariamente assegurar para o direito moderno uma
explicação baseada nas estruturas de consciência moral pós-convencional. Foi
esse propósito que, a nosso ver,Habermas não levou adiante, visto que entendeu
o direito mais próximo à esfera sistémica.
;
Aprendizagem como condição de possibilidade da evolução social
Justifica-se a compreensão de que ocorre um “progresso” nas estruturas
jurídico-normativas, no sentido de liberação de um possível potencial de
racionalidade inerente a essas estruturas,porque se temno horizonte a concepção
piagetiana de aprendizagem construtiva.
Se a evolução social, em sentido lato, caracteriza-se por uma “teoria da
mudançaestrutural”,ouseja,pormudançasnosparâmetros daestruturanormativa
fixada, então, deve-se atentar que a teoria ficaria limitada, caso não fosse levado
em conta que a evolução social implica também um processo de aprendizagemcumulativo norteado por uma certa direção (cf. Schmid 1982, p. 164). Para dar
conta desse ponto, é preciso entrar na discussão do conceito de aprendizagem e
destacar, sobretudo, o conceito de lógica do desenvolvimento, talvez um dos mais
relevantes para a teoria da evolução social.
É manifesta em Habermas a “intenção de remeter a evolução social a
processos de aprendizagem” (1976, pp. 130-131). Nos aspectos possíveis de
consideração, em Para a reconstrução do materialismo histórico, a aprendizagem
Habermas e a reconstrução 8988 Papirus Editora
e adaptação a uma nova forma de integração social. Tendo no horizonte a
psicologia do desenvolvimento, que estabelece estágios de desenvolvimento para
a aquisição do conhecimento e da interação, Habermas se apoia em tais estágios,
considerando-os níveis de aprendizagem que,por sua vez “definem as condições de
processos de aprendizagem possíveis” (ibid.,p. 176).Desde já, ficamanifesto que os
mecanismos de aprendizagem,estandoperspectivadosnadimensão da ontogênese,deixam revelar que “a evolução pode se fundar sobre capacidades individuais de
aprendizado”.
Não significa,entretanto,queoprocesso evolutivodependa exclusivamentedas capacidades de aprendizagem dos membros individuais de uma sociedade.Fator relevante são as estruturas deconsciênciapartilhadascoletivamente,as quais
dispõem de conhecimentos empíricos e convicções morais, que contribuem parao processo evolucionário quando utilizado socialmente. Esse saber disponívelcoletivamente,pelo fato de resolver osproblemas sistémicos - tidos como desafiosevolutivos coloca as sociedades empéde igualdade com o indivíduo que avança
linearmentenapassagem deumestágio aooutro.Issosignificaque,nonível social,
também é possível falar deumprocesso evolutivo de aprendizagem. “As sociedadespodemaprender demodoevolutivo seutilizamospotenciaiscognitivoscontidosnas
imagens do mundo com o objetivo de reorganizarem os sistemas de ação” (ibid.).
Habermas procura, insistentemente, relacionar o progresso histórico por
meiode grausde desenvolvimento daintegração social.Nesse aspecto,distancia-sedo materialismo histórico, para o qual o desenvolvimento das forças produtivasera considerado dentro de progressos lineares e o desenvolvimento das relações
de produção, deixado a cargo de “figuras dialéticas de pensamento”. O que faz é
reivindicar apossibilidade deprocessos deaprendizagempara a dimensão do saber
técnico e igualmente para a dimensão da consciência prático-moral, deixando
entrever “quehá estágiosdedesenvolvimento tantoparaas forçasprodutivasquanto
para as formas de integração social” (ibid., p. 179). Porém, é tão somente com a
introdução de um novo nível de integração social que se torna possível aplicar os
saberes técnicos então disponíveis como também produzir novos saberes, o quevem a constituir o aumento das forçasprodutivas e a ampliação da complexidadesistémica. O que se vê é Habermas fazendo uso da teoria da aprendizagem parareforçar a tentativa da homologia sem,no entanto, avançar em sua consolidação,masparalelamente,aospoucos,promoveainversãodarelação dialéticaentre forçasprodutivas e relações de produção, tal como figurava na ótica de Marx.
A segunda consideração destaca a ideia de Habermas, colhida de formaesparsa, acerca do desenvolvimento técnico da humanidade. Nesse ponto
especialmente,Habermasafirmaque“oconhecimento dosmecanismos empíricos
é necessário, porém, não suficiente para explicar na história mundial o caráter
acumulativo doprogresso técnico ecientífico” (Habermas 1973,p.22).Entretanto,
quando se procede a uma leitura materialista da história, alinhavada à lógica de
desenvolvimento,acresce sempreuma inegável tendência de fazer essa leituracomo
se fosse a história do desenvolvimento da técnica, dada a coincidência auspiciosadas forças de trabalho nos seus diversos níveis de manejo técnico. Apesar de a
história da técnica se apresentar comoummodelo de desenvolvimento,Habermas
assinala que ela se configura por meio de “partes constitutivas elementares da
esfera funcional do agir racional com relação ao fim”.Em sua visão, a história da
técnica somente é passível de leitura se, antes, forem levados em consideração os
“impulsos evolutivos da sociedade por meio da evolução das imagens de mundo”(Habermas 1976,p. 164).
A terceira consideração menciona as estruturas normativas como capazes
de serem aprendidas no contexto da lógica do desenvolvimento. Diante dessestrês possíveis processos de desenvolvimento, aquele relacionado à racionalidade
instrumental não ocupa lugar proeminente na reflexão habermasiana. Porém, o
desenvolvimento ontogenético e o desenvolvimento das estruturas normativas
assumem destacado papel no interior da teoria da evolução social. Mesmo não
mencionando com muita clareza o processo de acumulação do conhecimento,
Habermas destaca como hipótese a ideia de que a aprendizagem individual é
institucionalizada na imagem (visão) demundo - recurso coletivamente acessível
para a resolução de problemas da sociedade como um todo (Schmid 1982,p.165).
Habermas deixaexplícito que os “mecanismos deaprendizagemdeverão ser
buscados, antes de tudo, no plano psicológico” (Habermas 1976,p. 36). Porém, a
aprendizagem não deve ficar restrita às “capacidades de aprendizagem adquiridasindividualmente”, deve também englobar os conhecimentos disponíveis nas
imagens demundo,de formaque seja possível falar em “processos de aprendizagemda sociedade” (ibid.).Dessemodo,aquilo que começacoma ajuda dapsicologiado
desenvolvimento deve, posteriormente, passar para o plano sociológico, a fim de
possibilitarque severifiquecomo ocorremosprocessos individuaisdeaprendizagemem sintonia com o saber socialmente disponível. Na verdade, Habermas vê um
“processo circular entre processos de aprendizagem sociais e individuais”, pois
acredita queodesenvolvimento cognitivodo indivíduo (aprendizagemindividual)
ocorre somente no entorno das condições sociais. Porém, elepróprio afirma: “As
sociedades só ‘aprendem’ em sentido figurado” (ibid.). Cabe, enfim, saber o que se
entendepor “aprender em sentido figurado”.Considerando-seque os processos de
?
»
90 Papirus Editora Habermas e a reconstrução 91
aprendizagem das sociedades ocorrem em nível evolutivo, duas são as condições
que demarcam a evolução das sociedades. Primeiro, as sociedades evoluem pormeio de problemas sistémicos que carecem de resolução, pois estes se apresentam
às sociedades como desafios a serem superados. Segundo, elas evoluem por meio
de conhecimentos disponíveis de modo latente nas imagens de mundo, que, aos
poucos,passam a ser incorporados nos sistemas de ação e,consequentemente, são
institucionalizados. A reprodução da sociedade afetada por problemas sistémicos,
que colocam em xeque a estrutura social normativamente fixada, impõeo desafioevolutivo que passa primeiramente pela mudança do modelo de integração social.Talmudança,daperspectiva dalógicado desenvolvimento,significa“oacesso aum
novonívelde aprendizagem”.Por isso, é digna denota,nessecontexto,a afirmaçãode Habermas: “Toda onda evolutiva é caracterizada por instituições nas quais
são encarnadas as estruturas de racionalidade de um estágio de desenvolvimentoimediatamente superior” (ibid.,p. 37).
Oconceito delógicado desenvolvimento, inicialmenteelaboradopor Piaget,temporpressuposto umasérie irreversívelde estágiosde desenvolvimentodiscretose cada vez mais complexos, na qual o alcance de um estágio superior implicanecessariamenteasuperaçãodo anterior, tornando inadmissíveissaltos aleatórios deestágios (ibid.,p.67).Outro aspectopresentenalógicado desenvolvimentoéanoção
de crise de amadurecimento - proveniente da psicanálise, mas estendida a outras
tradições teóricas o quepermitequalificar o processo de formação do indivíduocomo solução de problemas em uma determinada fase do desenvolvimento e
amadurecimento para a resolução de crises subsequentes. Atingir a autonomia(a independência do Eu- a identidade do Eu) é a marca da direção da lógica dodesenvolvimento, visto se encontrar o Eu plenamente capacitado a resolver com
sucesso os problemas oriundos do mundo objetivo, social e subjetivo.
Habermas evidencia que, se os níveis de consciência moral propostos porKohlbergsatisfazemas condições formais deumalógica do desenvolvimento,elesdevem, contudo, ser reformulados no quadro da teoria da ação (ibid., p. 74).Emlinhas gerais, a caracterização da lógica do desenvolvimento, como Habermas a
interpreta, pelo filtro da psicologia do desenvolvimento, permeia a capacidadede desenvolvimento cognitivo, linguístico e interativo do indivíduo. A opçãopor Kohlberg restringe o plano da análise habermasiana à dimensão interativa,
envolvendo a capacidade de realizar ações e discursos.
Aexpressão lógicadedesenvolvimento seapresenta-naleiturahabermasiana-como sequências de desenvolvimento passíveis de reconstrução. Toda e qualqueranálise dalógicade desenvolvimento que evite passos em falso deve deixar de lado
a pretensão de apontar os modelos de estruturas ordenados hierarquicamente.
Basta à lógica de desenvolvimento o intento de justificar de modo sistemático a
superioridade do nível posterior de aprendizagem com relação ao anterior. Nesse
intuito,a justificação da superioridade deumnivel em relação a outro passa, antes,
pelacapacidadederesolução dosproblemas que sevão colocando tantonadimensão
do conhecimento objetivante quanto na dimensão da convicção prático-moral,devendo ambas serem avaliadas sob aluz depretensões devalidadeuniversal (ibid.,
p. 249).Assim, “naesfera daevolução social, temos de distinguir entre a solução de
problemas de direção e os mecanismos de aprendizagem subjacentes. Com ajuda
dos mecanismos de aprendizagem, podemos explicar por que alguns sistemas
encontram soluções para seus problemas de direção, soluções que fazem avançar
a evolução, enquanto outros fracassam ante os desafios evolutivos” (ibid.,p. 134).
Nesse sentido, alcança-se o motivo pelo qual Habermas deixa a teoria da
evolução social isenta de vínculos com a historiografia, mas unida ao discurso
prático. Em sua própria afirmação:
1
Pode-sever,em tudo isso,queumaaplicação de teoriasdaevoluçãonaanálise
da época tem sentido somente no âmbito de uma formação discursiva davontade,ouseja,numaargumentaçãopráticaemque se tratede fundamentara razão pela qual - em determinadas situações e por parte de determinadosatores - deveriam ter sido escolhidas determinadas estratégias e normas de
ação e não outras. (Ibid.,p. 250)
A evolução social é decorrência do processo de racionalização das imagens
de mundo que, por sua vez, permite alterações e modificações no complexo das
estruturas sociais graças aosprocessos de aprendizagem. A aprendizagemmantém
sua efetiva participação na promoção da teoria da evolução social, ao mesmo
tempo, como causa e fomento. Os aspectos centrais da teoria da aprendizagem
desenvolvidos em Para a reconstrução do materialismo histórico são conservados
na Teoria da ação comunicativa.
Contudo, entre as duas obras, houve cortes e mudanças significativosna condução da evolução social. Não é possível, por exemplo, afirmar que o
estruturalismo genético de Piaget seja mantido em Teoria da ação comunicativa
com o mesmo propósito praticado na década de 1970. Se, nos escritos dos anos
1970, o estruturalismo genético forçava a homologia ontofilogenética por meio
da transposição dos ganhos obtidos no campo da psicologia para o campo da
teoria social, na década de 1980, Habermas reforçará o papel da aprendizagem
92 Papirus Editora Habermas e a reconstrução 93
o âmbito da interação social. Opróprio Klaus Eder ratifica essa perspectiva teórica
como a mais producente: “A base micro-sociológica do processo de aprendizadoevolucionário dever ser conceituadanãoemtermosdeumateoriadaação social (quesegundo ele mantém-se enquanto teoria individualista da ação),mas da interaçãosocial, não de sujeitos competentes, mas de formas de subjetividade que evoluem,
não em termos de intenções, mas de relações” (Eder 2001,p. 10). Tal afirmação ésintetizada na seguinte expressão: “O que importa não é o que as pessoas têm emmente, mas o que elas compartilham” (ibid.,p. 11). Assim, o aprendizado socialdeve seguir outraperspectiva,diferente daquelapercebidana esfera individual: “Oaprendizado das sociedades,portanto,éum fenômeno quenãopode ser explicadopelo aprendizado individual, já que é uma consequência da coordenação socialdo processo de aprendizado dos indivíduos. Essa coordenação social,no entanto,
segue tuna lógica que é diferente daquela do aprendizado individual" (ibid.). Combasenas considerações deKlausEder,épossíveldestacarumaspecto quejustifica a
necessidade deHabermasde trabalhar comumconceito complexoderacionalidadeque dê conta,além da socialização e da integração social, também da coordenaçãoda ação. Trata-se da importância de ir além dos polos concentradores de Mead(socialização) e Durkheim (integração social), para destacar que o núcleo dateoria da ação comunicativa incorpora a ideia de que oentendimento,por meio dalinguagem, constitui o próprio mecanismo de coordenação de ação, seja noplanoindividual, seja no plano social (Berger 1991,p. 166).
Navisão deKlausEder,amudança doenfoque dequenão são osindivíduos,
mas a relação entre eles, o ponto de referência para a aprendizagem, permitecolocar a racionalidade, imanente à teoria da comunicação, na organizaçãosocial onde transcorrem os discursos: “Portanto, a ideia de racionalidade mudasua base do indivíduo para a situação social onde ele age” (Eder 2001,p. 14). E,
nesse caso, à medida que se especifica um modelo de racionalidade para cadatipo ideal de ação, permite-se “entender a ação social dos outros pelo simplesfato de que compartilhamos com eles os padrões de racionalidade” (ibid., p. 15).
Há aqui, por parte de todos os envolvidos, um reconhecimento dos significadosdas ações praticadas: “O que os autores produzem em tal processo não é um
consenso racionalmente produzido, mas antes um sentido de uma identidadecoletiva daqueles que assim se reconhecem” (ibid., p. 16). Essa perspectiva doreconhecimento é importante,porque denota que a ação social (ouinteração) tem
uma fundamentação transubjetiva,melhor dizendo, intersubjetiva.Oaprendizadoé resultado dos processos de interação que, ao produzir determinados efeitos,
proporcionam amodificação doconhecimentocoletivamentepartilhadoe,"quando
por meio dos ganhos provenientes da psicologia do desenvolvimento, mas não
fará a homologia repousar no estruturalismo genético, e, sim, no conceito de
aprendizagem. Isso significa, em outros termos, que a ontogênese, promotora da
psicologia do desenvolvimento, não será a responsável por assegurar a relação
ontofilogenética, mas, sim, o conceito de aprendizagem. Não permanece na
Teoria da ação comunicativa a ideiade que os ganhos obtidosno desenvolvimentoindividual refletem o próprio desenvolvimento social. O foco que perpassará a
evolução social é a ideia de que os problemas sistémicos, próprios dos desafios
provenientesdadinâmicaevolutiva,demandam soluçõesdentro doâmbitodeuma
determinada formação social.A resolução dessesproblemasimplicauma espéciede
aprendizagemevolutivaquese efetivanapossibilidadedeassegurar,por intermédio
do conceito de interação, a unidade ontofilogenética.
Longe da afirmação deHabermas, emPara a reconstrução do materialismohistórico,deque as sociedades aprendemdemodo figurado,épreciso explicarcomo
as sociedades, de fato, aprendem e como,muitas vezes, bloqueiam a possibilidade
de o aprendizado se realizar. Habermas,na obra de 1976, baseava-se na noção de
que os processos sociais de aprendizagem estavam ligados à concepção de como
os indivíduos aprendem e, uma vez demonstrada a capacidade de aprendizado
do indivíduo (ontogênese), acreditava-se plenamente resolvida, com argumentos
favoráveis dapsicologia,a aprendizagemindividualista do social.Habermaspartia
do pressuposto de que poderia reunir as diversas aprendizagens individuais sob
a estampa do social. Na Teoria da ação comunicativa, a tendência de Habermas é
levar adiante a noção de aprendizagem como mecanismo da evolução social sob
outra rubrica: a da interação.
Habermas leva adiante o modelo de interação, enfatizando, com base,
sobretudo, na gramática gerativa de Chomsky, na teoria cognitivista de Piaget,
na teoria da ação de Mead e na teoria da religião de Durkheim, a ideia de que o
indivíduo se constrói no processo de socialização e, portanto,adquire o que ele
chama de competência comunicativa. Contudo, o erro que Habermas cometeu
foi estender o modelo de aprendizado individual de matriz piagetiana - que
carregava em si um telos constitutivo direcionado à reflexividade cognitiva e à
universalidade moral-para omarcodo desenvolvimento sociocultural,como se
fosse possível, nesse nível ampliado, conservar o telos imanente do aprendizadoindividual,porém,comnova denominação na esfera da sociedade, entendendo-o
como evolução social.
A saída desse impasse, como é possível perceber na Teoria da açãocomunicativa,assumeoscontornos sociais,deslocando o foco da aprendizagempara
94 Papirus Editora Habermas e a reconstrução 95
tal aprendizado acontece,eleproduz resultadosespecíficos:elemudaouos quadros
e crenças normativas que guiam a ação social ou o conhecimento empírico sobre
o mundo utilizado como recurso na ação social” (ibid., p. 17). Desse modo, o
aprendizado de que trata Habermas é o aprendizado de adultos que interagem e
alcançam o entendimento recíproco sobre fatos ou normas.
Habermaspartedo alicerce da racionalidade comunicativa,ancorando-a na
forma socialdevidahumanapormeio de suportes teóricos advindos da filosofiada
linguagem contemporânea e de autores como Weber, Mead, Durkheim, Parsons
e Marx, com o propósito de montar um sistema de referência no qual as ideias
básicas da teoria da sociedade sejamhistoricamente justificadas e testadas mediante
a apresentação de argumentos (Honneth e Joas 1991, p. 1).
A inserção daracionalidadenadimensãohistórica é compreensíveldepoisda
virada linguística, levando-se em conta que o novo olhar da filosofia no século XX
permitiu afirmar que o soloonde nos movemos é impregnado de linguagem e de
cultura e, ademais,amanifestação daracionalidadenão se deixa realizar fora dessa
arena (Habermas 1984a,v.II,p.190). A reflexão deHabermasbusca se certificar da
existênciadarelaçãoentreracionalidade eprocessohistórico e,acima de tudo,dizer
que esse processo é passível de ser orientado para a emancipação. A teoria social
de Weber e o materialismo histórico de Marx permitiram a Habermas construir
“uma teoria da evolução social que recuperasse o potencial da razão e vinculasse
essepotencialaprocessos de aprendizagem,nonível individuale coletivo” (Bannell
2006,p.22). A teoria de evolução socialpassa a constituir uma alternativa que visa
assegurar ao processo de racionalização da sociedade outra dimensão que não a
mesmalevada adiante, sejapor Weber,pormeio da racionalidade instrumental, seja
por Marx, que fixava o desenvolvimento social exclusivamente na base produtiva
dos modos de produção. Desbloqueado o caminho para a emancipação que,para
Weber se mantinha inviabilizado pela jaula de ferro e, para o marxismo,pelo fato
de a revolução proletária se ter dissipado do horizonte, Habermas, com a teoria
daevolução social, torna apotencializar a possibilidade de a razão,historicamente
situada,oferecer ummaior grauderacionalidade das estruturas sociaise dereflexão
de sujeitos autónomos. “Assim, tanto tradições culturais como indivíduos são
concebidoscomo sendo progressivamentemaisreflexivosnumaevolução socialque
se contrapõe aos diagnósticospessimistas” sustentadospor vários autoresno século
XX (ibid.,p. 28). O esforço de Habermas parece se concentrar, nesse aspecto, em
apontar que a racionalidade, incorporada na interação mediada linguisticamente,
tem a capacidade de reorientar o poder de reflexão contido no processo histórico
de desenvolvimento social.
Habermas entende a realização do potencial da racionalidade, própria doagir comunicativo e integrada ao processo histórico mundial, como aquilo quepossibilita afirmar a existência de uma concepção de racionalidade concretizadana linguagem, na história e na sociedade. Alguns fatores inerentes à próprianoção de racionalidade refletem, sobretudo, na forma como se configuraram associedades modernas. Ao se tratar da diferenciação das estruturas simbólicas, darefletividade das tradições culturais,doprocesso deracionalização dos mundos davida,dagradativa individuação na geração dapersonalidade e da generalização denormasuniversais,percebe-se umaefetivapresença da racionalidadeplasmada emcontextos empíricos ehistóricos. A racionalidade,nesse caso,pelo fato de apontar,entre outros, parà a possibilidade de mundos da vida altamente racionalizados,para a legitimação de pretensões de validade por meio de relações intersubjetivase para a formação de identidades pessoais pelareflexão crítica,permiteafirmar quea consecução de tais propósitos somente se efetivapor intermédio de processos deaprendizagem (cf. Cooke 1994,p. 162; Bannell 2006,p. 64).
A importância e o significado dos processos de aprendizagem que visamdar conta, entre outras coisas, da dimensão contrafactual da racionalidadecomunicativa, encontram, desde cedo, respaldo na pragmática formal, à medidaque esta reconstrói as condições de possibilidade de a competência comunicativade sujeitos capazes de linguagem e ação alcançar a realização do entendimento. Oprocesso de aprendizagem compreende não apenas a capacidade de assegurar oprocesso cumulativo de conhecimento, mas também a garantia de condições detematizar ecriticarosentendimentospreviamente estabelecidosnoâmbito factual,visando,dessemodo,proporcionar acorreção de significados enormaspartilhadosem determinada comunidade linguística.
Opróprioprocesso deaprendizagemparaassegurar condiçõesde tematizaçãocrítica deve transcender.o espaço localizado e empírico das comunidadeslinguísticas: “Se a condição da possibilidade da compreensão é reduzida aossignificadosenormas jácompartilhadospor umacomunidade linguísticaqualquer,apossibilidade de corrigir esses significados enormaspor umprocesso racional ficabloqueada” (Bannell 2006,p. 65).
Desse modo, o processo de aprendizagem, além de constituir importantepano de fundo da reflexão de Habermas como possívelpotencial de emancipação,é ainda alocado na expansão de processos de reflexão e maturidade, os quaisnecessariamente dependem de aprendizagem. Considerando-se os processosevolutivos norteados pelos níveis pré-convencional, convencional e pós-convencional, é possível destacar a capacidade de aprendizagem, sobretudo, em
-
96 Papirus Editora Habermas e a reconstrução 97
DA ÉTICA DO DISCURSOA TEORIA DO DISCURSO*
dois aspectos fundamentais.Noprimeiromodo,referenteaonívelconvencional,a
capacidade de aprendizagem, em se tratando da dimensão normativa, refere-se às
condiçõesdeinternalizaçãodevaloresededisposiçãomotivacionalquanto aregras
previamente estabelecidas.No segundomodo,referenteaonívelpós-convencional,
a capacidade de aprendizagem amplia seu escopo de internalização e motivação
para apossibilidade de tematizar,discursivamente,a validadedas normas,até então
aceita sem problematização. Nesse aspecto, a aprendizagem é condizente com a
aquisição dacompetência comunicativa,que faculta aosmembros de determinada
comunidade avaliar alegitimidade dasnormascombase emprincípiosuniversais
orientados discursivamente.Onívelpós-convencionalpressupõe,dopontodevista
da capacidade de aprendizagem, o domínio do agir comunicativo,que possibilita
a relação entre falante e ouvinte, disponibilizando a coordenação de suas ações e,
também,a tematizaçáo daspretensõesdevalidadeemrelação aos mundosobjetivo,
social e subjetivo.
A aprendizagemévista,portanto,daperspectivade transformaçãoindividual
e social com o direcionamento para a realização do ideal democrático. Visa à
modificação do individuo em cidadão, conferindo-lhe condições de participar
efetivamente de uma estrutura social assentada na soberania popular e no
integral respeito aos direitos humanos. Significa, para Habermas, a existência da
possibilidade sempre aberta daaprendizagemcomocondição deaperfeiçoamento
dademocracia,núcleo fundamentaldo estadodedireito.O quepermitedizer,para
finalizar,quea aprendizagem,emHabermas,apontacomo telosarealização,nomais
alto grau, da situação ideal de fala alicerçada em pressupostos empíricos, os quais
dependem,preferencialmente,de sua institucionalização em bases democráticas.
3Angelo Vitórío Cenci
Introdução
A partir docomeço da década de 1990,Habermas desenvolve alteraçõesemsua obra que repercutem de modo marcante sobre sua variante ético-discursiva,tal como concebida em sua origem. A introdução de um princípio do discursoneutro em relação à moral e ao direito, a diferenciação dos discursos da razãoprática e a própria reformulação do conceito modemo de razão prática, dentreoutros aspectos, farãocom que a éticadodiscurso seja situadadentro deumquadroteórico diferente daquele configuradopela teoria da ação comunicativa da décadade I960. Essas modificações levadas a cabo por Habermas permitem identificaruma passagem da ética do discurso para a teoria do discurso. Cabe observar,todavia, que tais modificações podem ser mais bem compreendidas em contrastecom Albrecht Wellmer e, sobretudo,com Karl-Otto Apel,uma vez que a varianteético-discursiva deste semantém,diferentementedadeHabermas,vinculada aummodello de fundamentação transcendental forte.Nessesentido,asdivergênciasApel se iniciam cedo, já com o fato de Habermas aproximar a filosofia e sua éticade unn modelo de reconstrução racional destranscendentalizador, distanciado dapretemsão apeliana da defesa de um modelo de fundamentação última.
com
Principiaremos nosso percurso situando brevemente o programa inicialda étiica do discurso habermasiana em contraste com o de Apel. Em seguida,retoimaremos alguns aspectos centrais de tal programa na década de 1980, comênfase na reconstrução habermasiana do argumento pragmático transcendentalde Apel.Mostraremos que a posição adotada por Habermas resulta do fato de não
* fete capítulo éuma reformulação de aspectos desenvolvidos em minha tesededoutorado,iintitulada 'A controvérsia entre Habermas e Apel acerca da relação entre moral e razãofprática na ética do discurso”, defendida na Unicamp em 2006.
Habermas e a reconstrução 9998 Papirus Editora
determinadasposturaspresentesna filosofia contemporânea-como oracionalismocrítico de Hans Albert
ser possível à pragmática formal adotar o modelo de uma prova direta,
que as reconstruções de caráter filosófico necessitam manter um cunho hipotético
e remetemacomprovações indiretas.Na sequência,exporemosoaprofundamento
que Habermas faz de sua teoria do discurso por meio da diferenciação dos
discursos da razão prática. Nesse passo, vamos nos basear da explicitação das
razões que o levam à rejeição da arquitetônica apeliana das partes A e B da ética.
Talaprofundamento implica a reformulação do conceito derazãoprática,
seu juízo, com a guinada linguística, o conceito moderno de razão prática
uma vez
-, as quais têm em comum a ideia da impossibilidade e,consequentemente, do abandono de uma fundamentação filosófica última. A seujuízo,oproblemaestáem taisposturasidentificaremfundamentaçãocomomodelodesta, assumido pela metafísica ontológica tradicional e pela lógica da ciência e,por não conseguirem dar conta da especificidade de uma racionalidade ética oumesmo não a reconhecerem. Apel constata que as posições filosóficas aí inscritasjá não conseguem fundamentar racionalmente a ética.
uma vez
que, a
amparado na filosofiadosujeito se desintegrou. As insuficiências desse conceito e
a necessidade de acomodar a teoria do direito e a teoriapolíticadentro de seunovo
quadro teóricoo levam apropor que amoraldeontológicadeveria ser interpretada
nos termos da teoria do discurso.O aprofundamento da teoria do discurso o leva
também à proposição de umprincípio do discurso neutro emrelação à moral e ao
direito, situando a ética do discurso dentro de um quadro teórico muito distinto
Outro problema importante que Apel se propõe tratar é o de que, em razãodo caráter abstrato do seuprincípio moral, a ética do discurso precisa se formulartambém como ética da responsabilidade, a qual deve possibilitar uma mediaçãoentre a racionalidade consensual-comunicativa, própria da esfera do discurso,e a racionalidade estratégica. Para contornar esse problema, Apel articula duasestratégias morais - a de conservação ou sobrevivência e a de emancipação -,englobandoemsuaéticadodiscursouma teleologiamoral(cf. 1999,p. 431ss.). Apeltememvista,por umlado,evitar o rigorismo morale,por outro,defender umaéticadodiscursocomoéticadaresponsabilidademedianteumafundamentaçãoúltima.Ocorreque aéticadodiscurso,pensadadoprisma deumaéticadaresponsabilidade,teria de ponderar que o sujeito não pode desconsiderar as condições reais de açãoem que predomina a racionalidade estratégica. A ação de acordo com o princípiomoral não poderia ser exigível sem mais em tais circunstâncias. Por essa razão, atensão existenteentre a situaçãoreal e a situação idealdeargumentaçãoremeteparao dever de se contribuir para a realização das condições, a fim de que se estabeleçao princípio moral em longo prazo. Sua variante ético-discursiva se configuraoriginariamente como deontológico-teleológica.
A proposta de Habermas se distingue da de Apel em relação aos aspectosmencionadose tambémem suaprópriamoldura teórica. Se oprojeto filosófico deApel é marcado, desde o início,pela questão centralacerca de como transformardemodopós-metafísicoaperguntakantianasobreascondiçõesdepossibilidadeda validez do conhecimentopara superar a aporiaem torno da incognoscibilidadeda coisa em si e ajustá-lo ao nível da reflexão a respeito de uma teoria críticadas ciências naturais e das ciências sociais, o de Habermas é pautadoorigempeloobjetivoprincipalde “desenvolver a ideia deuma teoria da sociedadeconcebida com intenção prática” (1987, p. 13). Seus interesses intelectuais seorientam, inicialmente, pela preocupação em tematizar a relação entre teoriae práxis de um prisma epistemológico. Nos anos 1960, Habermas se guia pelopropósito de elaborar uma crítica integral ao positivismo com base no alcance
daquele da década de 1980.
Oprograma inicial da ética do discurso habermasiana em contraste
com a variante ético-discursiva de Apel
A éticado discurso tem origemnoprograma inauguralesboçado por Karl-
Otto Apelno final da década de 1960 e publicado em 1973 (cf. Apel 1999,pp. 358-
435).Com seuprograma,Apel sepropusera a tarefa de fundamentar racionalmente
umaéticadodiscursobaseadanaconstataçãodequeaética seencontravadiantede
paradoxo, sobretudo se for considerada sua relação com a ciência no contexto
da sociedade contemporânea, marcada pelas características de uma civilização
técnico-científica.Nodiagnóstico de Apel,deumlado,apresenta-se anecessidade
premente de uma éticauniversal,principalmente emrazão das consequências das
ações humanas decorrentes de tal civilização. De outro, a mesma racionalidade
técnico-científica que provoca tal premência subtrai a legitimidade de uma ética
universal, uma vez quemonopoliza os atributos de racionalidade e objetividade de
talmodo que a esferamoral fica relegada ao âmbitoprivado das decisões subjetivas
e irracionais.
um
em sua
Oleitmotivda tarefa assumidapor Apelémostrar não apenas a necessidade,
mas também a possibilidade e a relevância, de uma fundamentação filosófica
última e, por conseguinte, também da ética. Para tal, Apel tem de fazer frente a
Habermas e a reconstrução 101100 Papirus Editora
obtido até então pelo problema já colocado por Kant acerca da possibilidade do
conhecimento em geral. Nas décadas de 1970 e 1980, seu projeto de elaborar
uma teoria da sociedade por meio de uma teoria do conhecimento dá lugar a
uma teoria da ação comunicativa. A ética do discurso, no programa de 1983, é
dacombasenesseprojetoeem suaaproximaçãoaomodelo dasdenominadas
foco se volta para a análise das estruturas gerais que estão nabase dos processos deentendimento, já queo entendimento funcionacomomecanismo coordenador da
ação e visa à obtenção de um acordo acerca davalidez deumato de fala oude uma
manifestação entre os participantesde uma interação.Trata-se de ummecanismo
que permite o reconhecimento intersubjetivo de pretensões de validez criticáveispor meio das quais os participantes da interação se apresentam uns diante dosoutros.Eleprocuramostrar que oêxito deumato de fala dependedocompromissoassumidopelo falante em relação ao ouvinte,demaneira que estepossa confiar naoferta feita por aquele por meio das pretensões de validez levantadas. Como esse
compromisso vincula obrigações, gera determinados efeitos que são importantespara a sequência da interação e têm relevância moral.
A estratégia de Habermas para chegar à apresentação de seu programa defundamentação da éticado discurso pressupõe,portanto,algunspassosprévios.O
primeiro é esclarecer,mediantea ação orientada ao entendimento-viapragmáticaformal o que significa os atores se orientarem por pretensões de validez (teoria
da ação). Apartir daí,é levantadooproblemaacerca do que significaoresgateoua
resolução discursivadepretensõesdevalideznormativas.Esseproblemarequer,porsua vez,uma investigação dos pressupostos comunicativos da fala argumentativa,
bem como a análise das regras universais que servem de procedimento para as
argumentações (lógica do discurso). As questões básicas da ética, tais como o
problema do sentido dasproposiçõesnormativas e oproblema da fundamentaçãoda ética, aparecem somente no âmbito deuma lógica do discursoprático, a esferadas argumentações especializadas em questões de justiça. O percurso para chegarà fundamentação do princípio moral habermasiano é constituído, então, por três
passos: no primeiro, como forma também de sustentar um cognitivismo moral,
Habermas se propõe a explicitar a especificidade de uma pretensão de validez
própria à esfera normativa;no segundo introduz (U) como princípio-ponte, com
a finalidade de permitir o trânsito do particular para o universal1 e possibilitar,como regra de argumentação moral, o consenso na esfera do discurso prático;no terceiro, leva adiante a própria fundamentação do princípio (U), derivadodos pressupostos da argumentação. Nesse passo, Habermas parte do argumento
pragmático-transcendental de Apel, reformulando-o. Nosso objetivo aqui não é
operar umaretomada de cadaum dessespassosem detalhes.Oquenosinteressa,em
razão denossospropósitos,é apresentar a reformulação do argumentopragmáticotranscendental, pois ele é tanto o ponto de partida para a reformulação de (U)
situa
ciências reconstrutivas.
Diferentemente da variante apeliana da ética do discurso,que é formulada
se valendo do contexto mais amplo do projeto de uma crítica e transformação da
filosofia transcendental,ahabermasianaémoldadacombasenoquadrodesua teoria
çãocomunicativaeemdiálogocomoprogramade fundamentação já elaborado
por Apel. A ética do discurso, para Habermas, deve tomar como referência os
pressupostosdacomunicaçãoquetodosujeito temde fazer intuitivamentesempre
quepretenderparticipar seriamentedeumaargumentação.ParaHabermas,porém,
o argumento pragmático-transcendental de Apelconseguiria apenas mostrar que
certas condições ou regras de argumentação são irrecusáveis, a fim de provar
apenas a falta de alternativas para essas regras de argumentação, não a prática da
argumentação como fundamentação última. A pragmática formal habermasiana
assume uma interpretação mais fraca do transcendental, a qual renuncia a
dedução transcendental em prol de uma reconstrução racional de competências
universais. O modelo de reconstrução racional substitui o modelo apriorista da
deduçãotranscendentaldeKant Adimensão aprioristado saber selimitaaoâmbito
daconsciênciaderegrasdos falantescompetentes,referidaaumsaber intuitivo,pré-
teórico,sem oqualnãoháentendimentopossível. Isso significa que os problemas
comquea éticaseocupaestãoalojados na esfera daação comunicativa e,para serem
explicitados, terão de tomar como base uma investigação pragmático-formal do
agir comunicativo (cf. Habermas 1999b, p. 54).
Em Teoria da ação comunicativa,Habermas distingue a ação comunicativa
instrumental e a estratégica, o que lhe
daa
uma
;
dos demais tipos de ação,
permite diferenciar duas atitudes básicas dos sujeitos na interação: a voltada ao
entendimento e a orientada ao êxito (1984a, p. 385). Desenvolve, então, a tese
de que o uso originário da linguagem é o voltado ao entendimento, do qual os
demaisusos-comooestratégico- sãoparasitários. A tesedoparasitismo confere
primaziaà ação comunicativa sobre o agir estratégico. Esse passo é decisivopara a
estratégiadeHabermas,pois,seaaçãosocial fosseditadapor ordensinstrumentais,
não seria possível fundamentar a ética. A sua pretensão é explicitar, mediante a
teoria da ação comunicativa e com base numa reapropriação da teoria dos atos
de fala, os mecanismos que permitem coordenar intersubjetivamente a ação. Seu
como a
1. A esse respeito, ver a crítica de Wellmer a Habermas (Wellmer 1994,p. 43 ss.).
Habermas e a reconstrução 103102 Papirus Editora
quem argumenta tem de reconhecer implicitamente todas as possíveis pretensõesracionalmente justificáveis dos demais argumentantes e, ao mesmo tempo,comprometer-se a justificar argumentativamente as pretensões que apresenta aeles. Em outros termos, quem desejar compreender as ações humanas tem de secomprometer comunicativamente no sentido de assumir corresponsavelmente asintenções da ação (cf. Apel1999,p.384).’Emseucaráter formal(U),diferentementeda Grundnorm moral apeliana, constitui-se numa regra de argumentação semvincular um dever moral em relação ao agir, deixando os conteúdos a cargo dosdiscursosreais.Porém,assimcomo Apel,Habermas também sepreocuparáem fugirdoriscodeincorrernorigorismomoral,demodoque(U) játrazconsigooprincípiode umaéticada responsabilidade própriapara a avaliação das consequências e dosefeitos colateraisoriundosdasaçõeshumanascoletivas.Esseproblemapermanece,então, circunscrito ao âmbito de uma moral deontológica, sem agregar a ela umadimensão teleológica como fizera Apel.
A forma como Habermas elabora seu programa da ética do discurso trazconsigo, portanto, modificações significativas em relação ao modo como Apel oapresentaraaté então.Nocentro das modificações introduzidaspor Habermascom
programa de fundamentação estão as especificações feitas por ele em tornode sua noção da moral do discurso, considerada com base em “limites estreitos” esob “enérgicas abstrações”, uma vez que se configura como moral especificamentedeontológica. Com essa especificação, Habermas concede, já na formulação deprograma inicial, um âmbito mais estreito que Apel à esfera damoral do discurso eassenta abaseparaodesdobramentodas divergênciasprogramáticas que se seguirãoentre ele e Apel, a partir de então, no interior da ética discursiva. Os programas deHabermas e Apel têm comoponto comum a filiação à perspectivakantiana de umamoral deontológica, mas renovada em termos discursivos. No entanto, o modo deconceber esse deontologismo é diferenciado desde o início entre os dois fundadoresda ética do discurso,umã vez que Apelo assumirá, demodo distinto de Habermas,
quanto o revelador da peculiaridade de sua variante da ética do discurso
vinculadora de um modelo de reconstrução racional.
A nosso juízo, o programa habermasiano de fundamentação da ética
do discurso publicado em 1983 em Moralbewusstsein und Kommunikatives
Handeln inaugura uma variante própria dentro do projeto de teoria moral
mais amplo partilhado inicialmente com Apel. Ao desenvolver seu modelo de
fundamentação, Habermas apresenta a moral como estritamente deontológica,
dando a ela uma configuração mais estreita que aquela propostapor Apel
programaoriginal.Essa diferença será de grande importânciapara caracterizar as
divergências programáticas que vão se configurando na ética do discurso de cada
um dos dois autores. Com a apresentação desse programa, o projeto de uma ética
do discurso,desenvolvido inicialmente combasenuma perspectiva geral comum
e orientado, até então, de modo mais sistemático pelo programa de Apel, sofrerá
modificações significativas. O programa de Habermas tomará por base
teoria da ação comunicativa e umaconcepção pragmático-formal do significado.
Ele não se estrutura, pois, mediante o projeto de uma transformação da filosofia
transcendental de Kant e uma pragmática transcendental, como fizera Apel. Seu
programa será situado com base em uma concepção de filosofia que se aproxima
das ciências reconstrutivas e incorporaráumaperspectiva falibilista e um modelo
transcendental fraco de fundamentação, em vez de uma fundamentação última,
embora, como almejado por Apel, de caráter não metafísico. Isso lhe possibilita
reformular o argumento pragmático-transcendental de Apel e, diferentemente
do que ocorre no programa deste, os pressupostos da argumentação não têm
um teor normativo-moral, mas apenas normativo. Por conseguinte, o conceito
habermasiano de discurso não é impregnado de modo moral-normativo, como
tambémnãoo seráposteriormente,em seus escritos da década de 1990 em diante.
Tambémoprincípiomoral(U) assumeuma feição distintadanormamoral
fundamentalapeliana,cujo pressuposto geral é proposto por Apelna linhadeuma
hermenêutica normativa.2Deacordo comaformulaçãoapelianadoprincípiomoral,
como
em seu
uma
:>
'Vseu
t
seu
‘necessidades' humanas, na medida em que poderiam colocar reivindicações aos demaishomens” (Apel 1999, pp. 424-425).
3. Apel aqui não distingue entre (U) e (D), como fará Habermas posteriormente. Este últimoentende(U)comoregradosdiscursospráticose(D)comoumapropostade teoriamoralentreoutras. A norma ética fundamenta] inclui indistintamente o que em Habermas é (U) e (D).A partir do finalda década de 1980, já com sua arquitetônica das partes A e B da ética, Apelcomeça a falar em principio do discurso no sentido da norma ética fundamental e distingueduas normas fundamentais: a da igualdade de direitos de todos os possíveis parceiros daargumentação e a da corresponsabilidade na solução dos problemas passíveis de discussão.
2. Oprincípiomoral,denominado denormamoral fundamental (Grundnorm), é formulado
originariamente do seguinte modopor Apel: “Quem argumenta reconhece implicitamente
todas as possíveis pretensões (Anspruche) provenientes de todos os membros da
comunidade de comunicação, justificáveis mediante argumentos racionais (...) e, por
sua vez, compromete-se a justificar argumentativamente as pretensões que ele mesmo
apresenta a outros homens. Ademais, os membros da comunidade de comunicação (e
isso significa implicitamente todos os seres pensantes) estão obrigados (...) a levar
conta todas as pretensões virtuais de todos os membros virtuais; quer dizer, todas as
em
Habermas e a reconstrução 105104 Papirus Editora
comcertas reservas e acrescentará àéticadodiscursoumadimensão teleológica.Apel
incorporará a sua ética uma teleologia moral,procurando imprimir a ela a feição de
umaestratégiamoral,procurandoevitar,noentanto,um telos substancialdavidaboa.
A seu juízo,os que entram em argumentações têm de fazer pressuposiçõescujo conteúdo pode ser apresentado como regras do discurso e, além disso,devem compreender as normas justificadas como regradoras de matérias sociaisdo interesse comum de todos os possíveis concernidos. A aceitação das regrasdo discurso permite dispor de premissas com força suficiente para a derivaçãode (U), de modo que os envolvidos em resgatar discursivamente pretensões devalidez normativas têm de aceitar, de modo intuitivo, determinadas condições deprocedimento queequivalem aumreconhecimentoimplícito de(U) (cf.Habermas1999b,p. 103). Tais condiçõesnãopodem ser negadaspor quem tomaparteargumentação, sob pena de incorrer em autocontradiçáo performativa. Elas nossão irrecusáveis e temos de reconhecê-las,pois jános encontramos sob elas desdesempreemnossaprática argumentativa.Os argumentos transcendentaispermitemdemonstrar a impossibilidade de rejeitar tais condições (ibid.,p. 140).
Baseado no cânon aristotélico, Habermas distingue, então, três planos depressupostosargumentativos:ológico-semântico,o dialético dosprocedimentos eoretórico dos aspectos processuais (ibid.,p. 97 ss.).Ológico-semântico pressupõeregras lógicas e semânticas que não possuem conteúdo ético e,por essa razão,nãooferecemaoargumentopragmático-transcendentalumponto departidaadequado.Noplanodialético dosprocedimentos,as argumentaçõesaparecem comoprocessosdo entendimento mútuo, reguladospara que os argumentantes possam examinaraspretensõesdevalidezque se tornaramproblemáticas.Trata-se de argumentaçõesnas quais estão os elementos necessários para uma busca cooperativa da verdade.Nesseplano,estãopresentes aspressuposições compartilhadaspelo discurso comoagir voltadopara oentendimentomútuo.6Por fim,noplanoretórico dosprocessos,o discurso argumentative aparece como um processo comunicacional. Trata-sede uma forma de comunicação que se apresenta de modo muito aproximado decondições ideais.Habermas acreditaque,pormeio deumainvestigação sistemática
A versão habermasiana do argumento pragmático-transcendentale a
derivação do princípio (U)
numaPara dar conta do problema da fundamentação do princípio de
universalização(U),Habermas seutilizadeumargumentomais cauteloso queode
Apel.Opapelqueoargumentopragmático-transcendental assume agora é odeum
argumento quepermitecomprovar como(U) jáestáimplicadopelospressupostos
pragmáticos necessários para o funcionamento do jogo da argumentação. O que
está em jogo na fundamentação de (U) é a identificação de tais pressupostos, de
maneira que quem participe dele - pelo simples fàto de passar a argumentar - já
deve ter aceitado tais condições de conteúdo normativo. O próprio princípio (U)
pode ser entendido como uma reconstrução das intuições do cotidiano, as quais
permitem a avaliação imparcial de conflitos de ação de natureza moral. Como os
pressupostos universais e necessários da argumentação fundamentam somente o
fatodenãohaver alternativa identificávelpara o nosso modo de argumentar,a sua
comprovação não pode ocorrer por meio de uma dedução transcendental como
em Kant Diferentemente, a ética do discurso tem de se apoiar em reconstruções
hipotéticas a serem confirmadasdemodoplausívele depende deuma confirmação
indiretamediante teoriasmoraisconcorrentes(cf.Habermas1999b,pp.108 e127).4
Isso significaquenão épossívelàpragmática formaladotar o modelo deumaprova
direta,dedutivo. Asreconstruçõesdecaráter filosóficoprecisammanter umcunho
hipotéticoe seremeter acomprovações indiretas,emrazão de sua "fortepretensão
universalista” (Habermas 1987,p. 587).5
com as ciências, sobretudo as que procedem reconstrutivamente. Aqui ela deve trocar opapel de indicadora de lugar pelo de guardadora de lugar em relação às teorias empíricascom pretensõesuniversalistas fortes (cf.Habermas 1999b,p.23).O segundo argumento é ode que uma filosofia que submete seus resultados a comprovações indiretas precisa assumiruma consciência falibilista. Por fim,uma teoria da sociedadepensada como uma teoria daação comunicativa e que,portanto, queira se assegurar das estruturas gerais domundo davida, não poderia operar transcendentalmente (cf.Habermas 1984a, pp. 588-590).
6. As regras desse plano correspondem, respectivamente, à pretensão de sinceridade e a umpressuposto de responsabilidade. Trata-se de pressupostos pragmáticos de uma formaespecial de interação orientada para a busca cooperativa da verdade.
4. Como observa Dutra,Habermas sustenta aquique 'as teorias de caráter filosófico entram,
de forma indireta, na construção de teorias empíricas e, quando estas são confirmadas
pela experiência, indiretamente há uma comprovação da teoria filosófica nelas presente”
(Dutra 2005, pp. 24-25). A esse respeito, ver a Introdução desta obra. Sobre a concepção
habermasiana acerca docaráter transcendentaldasreconstruçõesracionais,ver Repa (2008a,
p. 167 ss.).
5. Habermasvaiaduzir trêsargumentosmetodológicosparaafastar pretensões fundamentalistas
desuaconcepçãode filosofia.Oprimeiro delesêodanecessidade de umadivisãode trabalho.entre a filosofia e as ciências.Nesse sentido,a filosofia muda de papel ao passar a cooperar
106 Papirus EditoraHabermas e a reconstrução 107
Valendo-se da assimilação das regras propostas por Alexy, embora com
algumas reservas,7 Habermas julga ser possível dispor, no que diz respeito àjustificação de normas, de premissas com força suficiente para a derivação doprincípio (U). O argumento de Habermas estabelece duas condições para quehajaumreconhecimento de(U)por todos os que se empenharem emresgatar pretensõesde valideznormativas: fazer,ao argumentar,pressuposiçõesde acordocomasregrasdo discurso e compreender as normas justificadas como regrando os interessesde todos os concernidos. O princípio de universalização pode ser fundamentadomediante uma derivação pragmático-transcendental que toma como ponto departidapara taldeterminadas pressuposições argumentativas.Por conseguinte,(U)como regra de argumentação tem de ser distinguido: a) do princípio e das normasmorais conteudísticas; b) do conteúdo normativo próprio das pressuposições daargumentação: c) do princípio (D) como princípio da ética do discurso, mas quenão faz parte da lógica da argumentação {ibid., p. 103).
Ao fundamentar (U) pelo caminho de uma derivação pragmático-transcendental, é possível indicar que a ética do discurso pode ser reduzidaao parcimonioso princípio (D). Esse princípio se refere ao assentimento dosconcernidos, obtido mediante um discurso prático quanto à validade de uma
norma, a qual depende de que todos os afetados por ela possam chegar aum acordo racionalmente motivado a seu respeito. Porém, Habermas toma
o cuidado de distinguir (U) tanto do princípio do discurso (D) como dasnormas conteudísticas, com as quais se ocupam as argumentações morais, e daspressuposições argumentativas explicitadas mediante regras. (D) não pertence à
lógicadaargumentação,mesmo queexprima já a ideia fundamentaldeuma teoria
moral. O único princípio moral da ética discursiva habermasiana é o princípio deuniversalização (U),que “vale como regra de argumentação e pertence à lógica dodiscursoprático” (ibid.). A ética do discurso selimita,nesse sentido, a fornecer um
procedimento para garantir a imparcialidade da formação do juízo, deixando delado todaorientação deconteúdos.Por conseguinte,o discursoprático é concebidocomo um processo próprio para o exame da validade das normas consideradashipoteticamente, não para a produção de normas justificadas. O princípio (D)
habermasiano tem o papel de esclarecer que o princípio (U) exprime apenas o
conteúdo normativo de um processo de formação discursiva da vontade. Por essarazão, tem de ser distinguido dos conteúdos da argumentação, que devem sercolocados sempre na dependência de discursos reais {ibid.,p. 133).
das contradições performativas, é possível chegar à pressuposição de uma
* comunidade ilimitada de comunicação, ideia essa jádesenvolvidapor Apelcombase
em Peirce eMead. Esse plano indica que os que tomamparte numa argumentação
têm, necessariamente, de assumir determinadas pressuposições argumentativas.
Em razão de as regras do plano lógico-semântico e do plano dialético dos
procedimentos firmarem,respectivamente,ascondiçõesde sentido e as condições de
sinceridadepara a validade das argumentações, a fundamentação de (U) não pode
ocorrerbaseadaemtaisplanos. Ascondiçõesdesentido e sinceridade são necessárias
paraa validade do discurso argumentative,mas nãopara a fundamentação de (U).
Por conseguinte, (U) terá de ser derivado do terceiro plano, o das pressuposições
argumentativas procedimentais, ou seja, de pressuposições como as da força do
melhor argumento - mediante a ausência de coação e da busca cooperativa da
verdade- e da igualdade de direitos a todos os interlocutores. Para esse plano, são
fornecidas regras quevisam assegurar que todo sujeito capaz de fala e açãoparticipe
de discursos,problematizeouintroduza qualquer asserçãono discurso e que possa
manifestar atitudes,desejos enecessidades.Tais regras explicitamas condiçõespara
a participação dos interlocutores num discurso prático, buscando lhes assegurar
o direito de participar do discurso, o direito da igualdade de oportunidade para
problematizar e introduzir asserções e de se expor e a exigência de que tais
direitos sejam assegurados. As regras do discurso não são apenas convenções,
mas pressuposições inevitáveis, e podem ser identificadas, conforme se esclarece
a um sujeito como ele cai em contradição performativa sempre que contesta as
reconstruções inicialmente propostas de maneira hipotética (ibid., p. 100).
Habermas se ocupa em observar que nem todos os discursos reais têm
de satisfazer às regras do discurso, que devem ser entendidas apenas como a
representação depressuposiçõespragmáticas deumapráticadiscursivaconsiderada
privilegiada. Tais pressuposições pragmáticas são feitas tacitamente e são sabidas
de modo intuitivo pelos falantes. A seu ver, as regras apresentadas nesse plano
retórico dos processos indicam apenas que, na argumentação, os participantes
têm de presumir uma satisfação aproximada das condições mencionadas. Dado
que os discursos são limitados no espaço e no tempo e que os participantes se
orientam por outros motivos além da busca da verdade, fazem-se necessários
dispositivos institucionais capazes de neutralizar tanto as limitações empíricas
inevitáveis quanto as influências externas e internas evitáveis. Isso possibilita que
as condições idealizadas,que têmde ser já semprepressupostas pelosparticipantes
da argumentação, possam ser preenchidas ao menos de modo suficientemente
aproximado {ibid., p. 102).
ftCií
7. Habermas discorda de Alexy justamente no aspecto já mencionado de que nem todos os
discursos reais têm de satisfazer a tais regras.
Habermas e a reconstrução 109108 Papirus Editora
uma teoria discursiva do direito, e o conceito de razão prática é reformulado nosmoldes de um conceito de razão comunicativa, o qual não é prescritivo, ou seja,não é abarcado pela esfera moral. A razão prática, por não poder ser prescritiva,deve ser mais ampla que a esfera da moral.
Habermas continua a conceber a moral do discurso como estritamentedeontológica, limitada a esclarecer e fundamentar o ponto de vista moral, eentende que tal fundamentação deva se dar com basenummodelo transcendentalfraco. Refuta, portanto, tanto uma fundamentação última quanto umhibridismodentro da ética,como faz Apel,quando vincula ao deontologismo discursivo umadimensão teleológica mediante um princípio de complementação. Aotempo,Habermas desenvolvecriticas a aspectos centrais daarquitetônicaapelianadas partes A e B da ética.8 Para Habermas, ao conteúdo lógico-cognitivo da éticado discurso não deve ser acrescentada uma parte B. Tal conteúdo deve, de mododistinto, ser complementado mediante uma teoria discursiva do direito, na qualo conceito de discurso ainda não abarque, em si,pressuposições de caráter moral.
Para Habermas, a inserção do princípio de complementação (C) e departe B para a ética na vertente apeliana apontaria para a tentativa de uma
autossuperação reflexiva da ética do discurso.9 A introdução do princípio decomplementação indicaria o rompimento dos limites de uma moral que deveriapermanecer formulada em termos estritamente deontológicos. Isso também trazconsequências que deveriam ser evitadas se os problemas vinculados pela teoriamoral apeliana fossem tratados nas esferas da teoria política (ética política) e dateoria do direito (cf. Habermas 1991, p. 196). O princípio de complementaçãodeveria, da mesma forma que o princípio (U), ter condições de ser derivado depressuposições não refutáveis do discurso,o que não é explicitado por Apel.
O rompimento com os limites estritos de uma moral deontológica seriaconsequência do hibridismo da versão apeliana da moral do discurso, que agregauma perspectiva teleológica, e poderia ser evitado se a moral do discurso -
A diferenciaçãoentre(U) e(D),inexistente em Apel,éimportante também
por apontar para um conceito de discurso, de caráter geral, que não possui em si
conteúdo moral-normativo. As pressuposições gerais do discurso argumentative
são normativas,masnãonormativo-morais.Comodestaca oportunamenteNiquet,
comocondições transcendentais, taispressuposiçõesnão têmainda,emsi,o valor
de normasmoraisbásicas dealtonível: “O apriorida argumentação,sobrecujo teor
normativo apóia-se a fundamentação da ética do discurso transcendental fraca de
Habermas, não é um a priori jápor si carregado moral-normativamente” (Niquet
2002,p.79).Elasnão têmomesmo teor que asnormasmorais,como defende Apel.
mesmo
A crítica de Habermas à arquitetônica apeliana daspartes AeB da
ética
No começo dos anos 1990, Habermas desenvolve alterações em sua teoria
do discurso que repercutem de forma marcante sobre seu programa da ética do
discurso tal como formulado na década de 1980. Ele introduz um princípio do
discursoneutroemrelação àmorale aodireito,aomesmo tempo emqueaprofunda
a diferenciação dos discursos e reposiciona suamoral do discurso baseado em tal
aprofundamento.Nela,a razãopráticaédivididaemdiferentes esferas: as questões
éticas sereferem ao autoentendimento de identidades,biografias eideais devida;as
questõesmorais se referem à solução justa ouimparcialdeproblemas doponto de
vistadauniversalização deinteresses de formaracionale as questões pragmáticas,
à utilidade da ação sob oaspecto da escolha racionaldemeios e fins (cf.Habermas
1991,pp.100-118).Emrazão disso,a teoriadiscursivadamoralconsistirá somente
âmbito parcial ou específico do amplo campo da razão prática, não tendo
uma
num
primazia dentro dela.
Habermasrecusaomodelo arquitetônicodeontológico-teleológico daspartes
A e B da ética proposto por Apel (1988) e opera transformações importantes em
relaçãoaoseupróprioprogramade1983.Alémdedivergir das novasespecificações
conferidas por Apel à ética do discurso, ele passa a situar a moral do discurso
segundoa perspectivadeuma teoria ou filosofiadodiscursoestruturadamediante
princípio do discurso neutro em relação à moral e ao direito e por meio de
uma diferenciação dos discursos da razão prática. Agora, a moral do discurso é
situada comouma da regiões da teoria do discursoe é colocada como cooriginária
e complementar ao direito. Sua teoria dodiscurso semodifica abrindo espaço para
8. Essa posição é apresentada por Habermas em diferentes trabalhos (1990b, 1991, 1994a,2003 e 2004).
9. Na opinião de Apel,a abordagem usualdas éticas deónticas contempla apenas aparte A dafundamentação,onde se localiza oprincípio moral. A ética do discurso teria de compensara abstração da realização das condições de aplicação do princípio do discurso na parte Bda éticamedianteumprincípiodecomplementação orientado teleologicamente. A funçãodo princípio (C) é a passagem à parte B da ética,para dar conta dascondiçqes de aplicaçãoda ética do discurso (cf. Apel 1988,p. 142).
um
Habermas e a reconstrução 111110 Papirus Editora
deontológica e pós-convencional- se limitasse à tarefa deesclarecer e fundamentar
o ponto de vista moral. Ao firmar essa posição, Habermas delimita o espaço da
moralno âmbito da razão prática,distinguindo-a da esfera da ética, da pragmática
e do direito. Ele se propõe, assim, a encetar um caminho diferente do percurso
traçado pela filosofia moderna e por Apel. Uma das principais consequências
dessa divergência é o redimensionamento da forma de articular o vínculo entre
moral e razão prática, rompendo com o primado apeliano da moral no interior
da razão prática e defendendo a substituição deste último conceito pelo de razão
comunicativa. Habermas, de fato, posiciona-se claramente de modo crítico em
relação à arquitetônica das partes A e B da ética, proposta por Apel na segunda
metade da década de 1980, de maneira que, em vez de distinguir entre parte A e
parteBpara a fundamentação de suaética,propõeumadiferenciação dos discursos
da razão prática, limitando a moral a uma das esferas de tais discursos. Desse
modo, diferencia-se claramente de Apel no que diz respeito ao grau de amplitude
damoral em relação à razão prática.O conjunto de críticas endereçado a Apel em
Erlãuterungen zur Diskursethik permite observar uma clara divergência acerca
desse aspecto e também um deslocamento da centralidade da ética do discurso
para localizar esta como um âmbito da teoria do discurso.10
A posição de Habermas renova a crítica à sobrecarga atribuída por Apel
ao apriori do discurso. Esse aprioriconteria em Apel tanto uma reconstrução do
ponto de vista pelo qual se julga algo em razão da moralidade - o ponto de vista
moral - quanto uma reconstrução das razões e motivos últimos para o próprio
ser moral com base num prisma discursivo. Em outros termos, da perspectiva
apeliana,a questãoepistêmica acercade como juízosmorais são possíveis pode ser
tematizada somenteporque aperguntaexistencialacercadoque significa ser moral
já vem sempre respondida mediante a reflexão sobre os conteúdos de teor moral-
normativo do apriori do discurso (cf. Niquet 2002, p. 97). Apel sobrecarregaria
a fundamentação do princípio moral com a pretensão de utilizar os pressupostos
universais da argumentação tanto para responder à pergunta epistêmica de como
os juízosmorais sãopossíveis quanto à pergunta existencialacerca do que significa
sermoral.ParaHabermas, a apresentação dospressupostos da argumentaçãonão é
suficiente,deper si,paracomprovar a relação entreodiscurso,oagir orientadopelo
entendimentomútuo e o mundo da vida. Por essa razão,distingue pressuposições
transcendentais fracas de conteúdos normativos presentes em juízos morais. (U)
pertence à lógicada argumentação- o aprioridodiscurso -,quenão vemcarregadamoral-normativamente. A seu juízo, esse assunto deve ser tratado no âmbito de
uma análise da linguagem formal-pragmática,não na esfera da teoria moral.
Habermas também insiste que uma ética cognitivista deve se limitar a exigir
da razão prática apenas operações epistêmicas, sem levar adiante uma pretensão
existencial. Isso significa que uma norma moral fundamental de justiça," como
propõe Apel, seria redundante, pois nada acrescentaria ao conteúdo preposicionalda moral do discurso, sobretudo no que tange ao sentido de validade de cada juízomoralparticular (cf.Habermas 1991,p.187). Arelevânciadoser-moralparao tododeuma vidaouparauma formadevida,pensa Habermas,pode sebasear, entre outros,
emâmbitos taiscomoumaboa socialização.A diferençaentrequestõesepistêmicas e
questões existenciais não pode ser tratada mediante fundamentações últimas. Alémdisso,num nívelpós-convencional,a consciênciamoralexige a complementação de
uma autocompreensão que requer que o sujeito só possa se respeitar como alguém
que, por regra geral, só faz o que considera moralmente correto fazer. Porém, a
consciência moral não pode garantir esse complemento, mas apenas fomentá-lo,
poisoproblemada fraqueza davontadenão pode ser resolvido pelacogniçãomoral.
Apel vai compreender a razão comunicativa como razão prático-moral e concedeà filosofia, com o primado da razão prática ao discurso filosófico, uma posição
privilegiadanahierarquiados discursoscientíficos.A arquitetônicade Apelmanteria
uma herança fundamentalista, concedendo à ética do discurso uma posição de
privilégio, equiparando razão comunicativa e razão prática. Para Habermas, a razão
comunicativa tem um conteúdo que somente pode ser considerado normativo em
sentidoamplo e se distingue darazãopráticapornão ser,em si,umafontedenormas
para o agir moral,pois vaialém da esfera das questões prático-morais.11
Outra suposição problemática da arquitetônica de Apel residiriano fato deeste conceder uma posição de privilégio a um discurso de fundamentos. Por essa
i
Essa norma consiste no “direito igual (Gleichberechtigung) para todos os possíveis
participantes do discurso ao emprego de todo ato de fala útil à articulação da pretensão
de validez no interesse de obter um possível consenso” (Apel 1992, p. 30, grifos de Apel) e
agrega o sentido contido na norma moral fundamental de 1973.
Opróprioprincípio (U)pertence ãlógica da argumentação, ou seja, a umadimensão apenasdo apriorido discurso,a qual não possui,por simesma, teor normativo-moral.Oconceitode razão comunicativa não vem já carregado de forma moral-normativa e, como observaNiquet. é ele que vai dar suporte à introdução, feita na filosofia do direito, do conceito deum discurso neutro em relação à moral (cf. Niquet 2002, p. 99).
11.
12.
10. Nessa obra,as criticas se dirigemprincipalmente ao programa de fundamentação última de
Apel, à metanorma de teor moral da justiça e aoprincípio decomplementação,introduzido
juntamente com a parte B da ética do discurso.
Habermas e a reconstrução 113112 Papirus Editora
razão,Habermascontesta a ideiaapeliana de que o discurso filosófico representaria
a posição culminanteda filosofia em relação aos outros tipos de saber.Comisso, a
filosofia seconverterianoúltimorefúgio decertezas que,sob areserva do falibilismo,
teria se tomado universal. A posição de Apel apresentaria aqui dois problemas:
primeiramente,oconfronto abstrato entre filosofia e ciência fariapartedaherançade uma filosofia da consciência que se orienta pela pergunta básica da teoria do
conhecimento;emsegundolugar,a filosofiaentraria,dentrodo sistema das ciências,
nummultiforme conjunto de relações de cooperação. Por conseguinte, comonão
existeumahierarquiade discursos,elaperdeu seulugar de “juíza” e de“indicadorade lugar”. O esclarecimento das estruturas que dão suporte ao apriorido discurso
argumentativedeveria sedarmedianteargumentos transcendentais fracos,os quais
possuem condições somente de apresentar a demonstração da não refútabilidadefática de pressuposições normativas (cf. Habermas 1991, p. 194). Habermas não
aceita nenhuma metanorma nem normas morais fundamentais vinculadas ao a
priori do discurso. Ele se vale também da ideia de uma irrefútabilidade fática, na
medida em que defende a ausência de alternativas em relação aos pressupostos
pragmáticos dos discursos racionais - o fundamento pressuposicional da moral
discursiva. Neste último ponto, ele se aproxima de Apel, porém, não aceita que,
para fundamentar oprincípiomoralque deriva de taispressupostos, seja necessário
recorrer a uma fundamentação última.
A essas críticas, Habermas vai posteriormente acrescentar a de que Apelnão teria conseguido avaliar adequadamente a conexão interna entre direito e
poder, razão pela qual desconhece a capacidade do direito de domesticar o poder(cf.Habermas 2003).13Emvez disso,ele se ocuparia comumadomesticação moral
do poder político que auxiliaria, a seu ver, a criação política de condições morais
para a emancipação a longo prazo. Habermas entende, todavia, que, no âmbito
dos discursosmorais,não épossível introduzir oproblema da “aplicação da moral
referida à história”, como faz Apel em Diskurs und Verantwortung (cf. 1988, pp.
103-153), em razão de que, a exemplo da ética de Kant, os mandamentos morais,
válidos incondicionalmente,não podem estabelecer compromissos com nenhum
objetivopolítico.A juízo deHabermas,umaética deontológicanãonecessitaria de
umaparteB,à qualApeldestina uma ética daresponsabilidade e ondealoja a ética
política e odireito.A seu juízo,apretensão devalideznormativa dosmandamentos
morais ficariarelativizada e vinculada às condições deêxitoda ação estratégica, caso
a preocupaçãopolíticapela suarealização aproximada ficasse incorporada àprópria
moral.Por essa razão, se se entender que o conteúdo normativo dos pressupostos
universais da argumentação não têm um sentido deontologicamente obrigatório,não é possível extrair dele exigências mais amplas.
Não seria possível,comopretende Apel,derivar dapolítica,semmediações,
a obrigaçãomoral de estabelecer em escalamundialcondiçõesmorais devidapara
todos os homens. Para Habermas, há que se levar devidamente em conta ainda
duas considerações a esse respeito. Por um lado, o poder político ainda é o único
meio para influenciar voluntária e coletivamente as condições sistémicas e as
formas institucionais deexistência social.Por outro lado,não é possívelmoralizar
imediatamenteapolítica rearmando comteormoralas virtudes daaçãopolítica. A
seuver,oúnicocaminhovislumbradoparaumareformamoraldacondutahumana
é a domesticação institucionaldopoder político,quepode ser viabilizadamediante
uma juridificação regulada democraticamente. Apel ignoraria a possibilidadede uma progressiva juridificação democrática da política, que poderia ter como
resultado,essa sim,uma“civilização das condições devida” (Habermas 2003,p.63).
Para que oprincípiode complementaçãopudesse ser considerado indicador
deumdever específico,teria de ser tratadononíveldos discursosde fundamentação
dos próprios implicados,mediante um teste de universalização. Isso significa que
o princípio deveria ser examinado com base nos pressupostos da argumentação
cujo cumprimento é por ele próprio afirmado explicitamente. Por essa razão,
Habermas não aceita a tentativa apeliana de ir além dos limites deontológicos da
ética do discurso e defende que as questões de ética política se inscrevem numa
classe de problemas de aplicação particularmente complexos e que devem ser
tratadosnoâmbitoda teoriadodireitoou,mesmo,da teoriada sociedade.Habermas
mantém,pois, sua variante da ética discursivadentro deumâmbito exclusivamente
deontológico e defende que, para dar conta dos problemas de aplicação, deve-se
recorrer ao âmbito jurídico e teórico-social.
A diferenciação apeliana entre parte A e parte B da ética padeceria de um
equívoco desde o início.Ocorreque Apel considera a parte A neutra em relação às
consequências,contemplando estas apenasnaparteB. ParaHabermas,oprincípiode universalização requer que as consequências da ação sejam ponderadas já na
fundamentação das normas dentro dos discursosmorais.Por suavez,na aplicação
dasnormas,oprincípio de adequação demanda que sejam levadas em conta todas
ascaracteristicas relevantes da situaçãodada (cf.1990b,p. 121). Agora,os discursos
13. Diferentemente do que afirma Habermas, Apel não desconhece tal capacidade, mas a
entende de outro modo, qual seja, mediante a ideia de agir para garantir a longo prazo as
condições para que a coerção jurídica seja superada. Ele vê a estratégia de criar condiçõespara a superação da coerção como uma obrigação moral.
114 Papirus Editora Habermas e a reconstrução 115
de aplicação da moral devem se transformar em discursos de fundamentação e de
aplicação do direito. Em geral, o problema da exigibilidade de uma ação que podeser moralmente ordenada só se colocaria com a passagem da teoria moral à teoria
do direito. Dessa perspectiva, a observância universal das normas moralmenteválidas somente pode ser assegurada mediante uma institucionalização jurídica(1991, p. 199).14 Em suma, a questão da exigibilidade do seguimento de normas
morais por discursos de fundamentação e de aplicação requer o trânsito da moral
para o direito,não a introdução de umprincípio complementar (C).
A partir desse ponto, a concepção habermasiana acerca do vínculo entre
moral e razão prática é desenvolvida com base em dois aspectos fundamentais. O
primeiroocorremediante a introdução deuma teoriada razãopráticadivididaem
ética,moralepragmática.Emrazão disso,a teoriadiscursivadamoralreconstruirá
somente um âmbito parcial do campo maior da razão prática, já não tendo
primazia dentro desta. A arquitetônica apeliana incorreria no erro de manter essa
pretensão. O segundo ocorre com a formulação da teoria discursiva do direito,
quando Habermas introduz um conceito de discurso neutro em relação à moral e
ao direito. Assimcomo a razão prático-moralnão representa toda a razão prática,
também os discursos morais não representam o conjunto da esfera do discurso.
Esse conceito derazão prática trazum aspecto totalmente novo: a teoria discursivado direito é colocada em condições de igualdade com a teoria discursiva damoral
formulada deontologicamente.
sentido não específico enquanto não se determine mais claramente o problemaem questão e o aspecto baseado no qual deve ser resolvido. Ocorre que, como a
razão prática engloba não apenas um uso moral, mas também pragmático e ético,
a teoria do discurso tem de se referir de maneira distinta a cada um de tais usos.“A razão prática”, observa Habermas, “se encarna em discursos que os implicadosempreendem ad hoc com o objetivo de esclarecer questões práticas” (Habermas
2003, p. 60). O uso da razão prática, como foi apresentado em Erlãuterungenzur Diskursethik, vai depender do tipo de pergunta levantada e, desse modo, a
orientação dapergunta “O que devo fazer?” depende do campo a que ela se refere.Por conseguinte, em seu caráter pragmático, a razão prática busca preceitos deação técnicos ouestratégicos adequados para se alcançar um fim;no âmbito ético,
orienta-se a conselhos por meio de planos individuais voltados à vida boa; no
campomoral,vincula-se a juízos e decisões boas para todos,ou seja, ao justo. Essestrês âmbitos têm uma lógica própria, o que faz com que, em cada um deles, sejam
apresentadas razões distintas e discursos específicos. Assim,o discursopragmático
se articulamediante relaçõesmeio-fim,o discurso ético visa à identidade individuale coletiva e o discurso moral prima pela universalização. Da mesma maneira, a
relação entre razão e vontade varia em cada discurso correspondente a cada um
desses usos da razão. Além disso, Habermas rejeita qualquer hierarquia entre os
discursos,umavezquecada esfera discursiva,como âmbitoparcialdarazãoprática,é resultado das diferenciações das interações sociais.
Habermas denomina razão prática à faculdade de fundamentar os
imperativos correspondentes às recomendações pragmáticas, aos conselhos
clínicos ou aos mandamentos morais. A esfera moral, por ser o âmbito de
conciliação entre razão e vontade, é o âmbito da racionalidade no sentido mais
próprio do termo. As esferas do pragmático, do ético e do moral culminam na
autodeterminação moral.Porém,o âmbito da razãopráticanãopode ser limitado
à dimensão moral, como teria feito Kant e como o pretende ainda Apel. Kant
teria confundido a vontade autónoma com a vontade onipotente, recorrendo a
ummundo inteligível (cf.Habermas 1991,p. 110). Ocorre que a vontade só podeser efetivano mundo real se as boas razões tiverem força motivadora o suficiente
para se contrapor aoutros fatores.O âmbito moralnão consegue dar conta de tal
tarefa sozinho. Habermas extrai daí, como conclusão, que somente no domínio
de uma teoria discursiva do direito e da política se pode esperar uma resposta à
pergunta acerca de se élícito continuar ainda falando de razãopráticano singular.Ocorre que a razãoprática se desagregounos distintos aspectos do adequado paraalcançar um fim, do bom e do justo, o que faz com que a constelação de razão e
:
A reformulação do conceito de razão prática e o aprofundamento da
diferenciação dos discursos
As teorias morais modernas partem da pergunta “O que devo fazer?”, queo sujeito individual precisa se fazer toda vez que se vê diante de uma situação a
ser resolvida de modo prático. Para a teoria do discurso, esse dever mantém um
14. Habermas acrescenta, em relação ao direito, pelo menos dois aspectos inexistentes em
Apel:primeiro,o direito é colocadoao lado damoral,complementando as dimensões ética,
pragmática e moral da razão prática; segundo, o apriori da faticidade das condições para
a aplicação da moral pós-convencional - Apel - constitui-se também numa espécie de a
priorido direito. A transiçãopara odireito busca dar conta do apriori da faticidadedeuma
maneira diferente daquela assumida pela vertente apeliana. Esse apriori é constituído em
formato jurídico.
116 Papirus Editora Habermas e a reconstrução 117
Foidessa maneira que ela concebeu a relaçáo entre sociedade eracionalidade.ParaHabermas, a filosofia moderna, ao trazer conceitos aristotélicos para dentro dafilosofia do sujeito, desenraizou a razão prática, de modo que esta ficou desligadade seu vínculo com as formas de vida culturais. Esse desligamento possibilitounamodernidade que a razãoprática fosse referida a duas perspectivas: a da felicidadeindividual e a da autonomiamoral do individuo (1994a,p. 15).
No século XIX, é acrescentada à concepção normativa de razão prática deKant - que é para Habermas quem melhor representa a filosofia do sujeito -dimensão da história. Hegel vai além de Kant, ao postular que a realização dafelicidadee daautonomiaé construídanãomaisnoplano do sujeito isolado,masnaesfera deummacrossujeito.Dessa perspectiva,a sociedadeencontrará sua unidadeno âmbito da vida política e na organização do estado. Entretanto, a filosofia dosujeito persiste mesmo assim,pois se trata, nesse caso, ainda da figura do sujeito,apenas com suas dimensões ampliadas. A razão prática,como faculdade subjetiva,subjaz à totalidade da vida social. O ponto departida da filosofia prática modernaestará centrado, então,na ideia da pertença dos indivíduos à sociedade na formade “membros a uma coletividade” ou na de partes pertencentes a um todo quese constitui mediante a ligação de suas partes (ibid.). O problema está em que acomplexificação das sociedades modernas teria tornado essa ideia insustentável.
Nessa espéciedediagnósticodarazãopráticamoderna,Habermasreconheceque Marx já havia se convencido da necessidade de renunciar a uma concepçãonormativa de estado. Porém,mesmo emMarx,permaneceriam vestígios da razãoprática e da normatividade, preservados no conceito de uma sociedade capaz deadministrar democraticamente a simesma e na qual o poder daburocracia estatalse fundiria comaprópriaeconomiacapitalista.Luhmann,com sua teoria sistémica,
contrapõe-se às teorias normativas de Kant e Hegel e, mesmo, aos resquícios derazão prática que ainda permaneceriam em Marx. Da perspectiva de Luhmann,os problemas colocados pela modernidade já não são compreendidos de modofinalista, mas funciopalista. Porém, desse modo, a razão prática fica eliminada eacaba substituída pela autopoiese de sistemas orientados autorreferencialmente(ibid.,p. 16).
vontade se modifique nos discursos pragmáticos, éticos e morais (ibid., p. 101).
Uma vez que, dependendo do tipo dasperguntas e respostas,modifica-se também
o conceito de vontade,aunidade darazãoprática jánãopode ser fundamentada de
acordo com o modelo de Kant acerca da “unidade da consciência transcendental”
na “unidade da argumentação moral”,pois nãohá ummetadiscurso baseado no
qual é possível fundamentar a escolhaentre as distintas formas de argumentação
(ibid.,pp. 117-118).
Com base em tais considerações, Habermas se julga em condições de
apontar para aquilo que, a seu ver, constitui uma das suposiçõesproblemáticas da
arquitetônica teórica apeliana. Apel concederia uma posição de privilégio à ética
do discurso no âmbito da razão prática, a fim de equiparar razão prática e razão
comunicativa. O conceito de razão comunicativapode ser desenvolvido por meio
de uma teoria da argumentação, mediante uma análise das pretensões de validez
e das condições de sua satisfação discursiva, bem como por meio da análise dos
pressupostos universais da argumentação. Por esse meio, é possível fundamentar
também o princípio moral e esclarecer o que significa o ponto de vista moral. A
juízo de Habermas, esse aspecto se refere, no entanto, a um momento específico
da razão comunicativa, sem se identificar com ela, uma vez que o conteúdo desta
é normativo apenas em sentido amplo. O agente se encontra, nesse caso, sob o
“ter de” deuma intimação transcendental fraca, o que significa que não se depara
aqui com o “ter de” prescritivo de uma regra de ação. Habermas extrai dessa
configuração dada agora ao conceito de razão comunicativa que esta não pode
ser entendida como uma fonte de normas para o agir correto em si (ibid.,p. 191).
A razão comunicativa se amplia, abrangendo todo o conjunto das pretensões de
validez, de modo a ultrapassar a esfera das questões prático-morais.
EmDireito e democracia,'5 Habermas vai ainda mais longe que o proposto
no ensaio sobre os usos da razão, dispondo-se explicitamente a substituir ou,mais
precisamente, a reformular o conceito de razão prática. No início dessa obra,
Habermasprocede aumaespécie debalançoacerca dosdesdobramentosdoconceito
derazãopráticadentro da filosofiamoderna,entendidacomo filosofiado sujeito.Tal
balançooleva aexplicitar opropósito de trilhar umcaminhodiferente,colocando o
conceito de razão comunicativanolugar até então ocupadopeloconceito de razão
prática. O motivo principal para tal substituição decorre da constatação de que a
filosofia moderna assumia o conceito de razão prática como faculdade subjetiva.
a
i
Habermaspretendemostrar que a visãonormativade sociedade edeEstadopresente nas teorias de Kant, Hegel e Marx, e sustentada pelo conceito de razãoprática, vai perdendo sua força explicativa. Essa perda se dá sobretudo diante dasquestões apresentadas pela ética, pela política, pelo direito e pela teoria social.Agora, a razão prática já não teria condições de fundamentar seus conteúdosnuma teleologia dahistória,naconstituiçãohumanaouem tradições quelograram
15. Embora tenha sido adotado o titulo da traduçãobrasileira,as páginas indicadas de Direito
e democracia são da edição alemã (Habermas 1994a).
Habermas e a reconstrução 119118 Papirus Editora
êxito. A figura da razão prática teria sido implodida pela filosofia do sujeito,o que
significa que,em sua formamoderna,jánão épossível fundamentar seus conteúdos.
A juízo de Habermas, o problema em relação à razão prática está no fato de ela
ter sido abordada, até Hegel, somente mediante questionamentos normativos
filtrados por uma filosofia da história,ou seja, teleologicamente.Em Kant,a razão
prática estabeleceria um dever transcendental forte, que indicaria concretamente
como o sujeito deveria agir. Ela assumiria a função de ser fonte imediata do agir,
enquanto se constituiriaemmodeloparaa ação.Issoocorremediante a formadeum
mandamentomoral,o imperativo categórico,quepossui caráter deontológico.Para
Habermas, renunciar ao conceito de razão prática é romper com o normativismo
nele presente. Na sua opinião, a filosofia prática havia tomado suas questões
fundamentais, taiscomo“Oque devo fazer?”,docotidiano,mas elaborando-as sem
o filtro da objetivação das ciências sociais (cf. ibid.,p. 24). Se o conceito de razão
for situado no medium linguístico e se for aliviado de seu vínculo exclusivo com a
moral, será possível lhe dar novos contornos teóricos, o que significa, em termos
habermasianos, situá-lopara alémdas limitaçõescolocadas pela filosofiado sujeito.
Por ser uma faculdade subjetiva, a razão prática moderna prescreveria
aos atores o que eles deveriam fazer, de maneira que se constituiria numa fonte
imediata deprescrição de regraspara a ação.Habermasquer substituir talconceito
encetando agora outro caminho.16 A seu juízo, a razão comunicativa é capaz, por
estar livre dessa base moral, de se abrir não apenas para os discursos morais, mas
tambémpara os éticos e os pragmáticos. Ao pressupor interações e formas de vida
estruturadas,que têmcomo mediação alinguagem,ela jánão se constituirianuma
faculdade subjetiva. À razão comunicativa, é atribuído um conteúdo normativo
fraco,namedidaemque apenasprescreve que os sujeitos quebuscam alcançar um
entendimentomútuodevemlevar adiante certas idealizações.Nesse sentido,aúnica
“prescrição” residiriaemobrigá-losa assumir umcompromisso compressupostos
pragmáticos contrafactuais que visam ao entendimento mútuo.
Ademais,sua ligação com aprática socialé indireta,uma vez que não indica
aosatorescomo devemagir.Como seupapel jánão é fornecer aprescrição parauma
regra de ação, são os próprios atores que têm de estabelecer que condutas podem
ser válidas ou não. A transposição dos conceitos fundamentais da razão prática
para a racionalidade comunicativa não precisa dispensar os questionamentos e as
soluções desenvolvidas na trajetória desta última, no entanto, têm de passar pormediação. O medium para tal será o da linguagem e é por isso que o seu conteúdonormativo se restringe a que quem atua comunicativamente se vê obrigado a
recorrer apressupostospragmáticos contrafactuais.Oconteúdonormativo do jogo
argumentative envolveumpotencialderacionalidadeque sópode ser atualizado na
dimensão epistêmica do exame das pretensões de validez. A substância normativa
presentenospressupostos daargumentação temrelevânciaparaa ação interpessoalapenas no sentido estrito de que ela possibilita o ajuizamento de pretensões devalidez criticáveis e que, assim, contribui para processos de aprendizagem, os
quais decorrem do fato de que o discurso racional obriga seus participantes a um
descentramento crescente de suas perspectivas cognitivas. Isso significa que o
potencialderacionalidadepresentenoconteúdo normativo do jogo argumentativo
se desdobra em diferentes direções, de acordo com o tipo de pretensão de valideztematizado emcada caso edo tipode discurso correspondente (cf.Habermas 2003,
p. 51).Se a razão comunicativapode continuar de alguma forma a ser denominadade razãoprática, terá de sê-lo de formamediata,não mais imediata,prescritiva;ela
será destituída da força normativo-moral que possuía para orientar diretamente
a ação.
i
Habermas se preocupa, então, em mostrar com mais precisão como o
conceito de razão comunicativa se distingue do conceito de razão prática. Em
primeiro lugar, ela não se vincula a nenhum ator individual nem, muito menos,
a macrossujeito político algum. Ao contrário, o que a possibilita é o medium
linguístico,mecanismomedianteoqualasinteraçõesse tomampossíveis e as formas
de vida se estruturam. Além disso, a razão comunicativa já não é uma capacidadesubjetiva em condições de prescrever aos atores o que eles devem fazer. Ela já não
se constitui numa fonte de normas para o agir. O ator é obrigado a empreenderidealizações,como ao levantar pretensões de validez e,ao fazer isso,defronta-senão
mais com o “‘ter de’ prescritivo”, próprio de uma regra de ação, mas com o “‘terde’ de uma coerção transcendental fraca”,não carregado moralmente (Habermas
1994a, p. 18). Os pressupostos da argumentação - transcendentais em sentidofraco- sediferenciamdas obrigaçõesmoraispornãopoderemser sistematicamente
ffagilizados sem que se destrua o próprio jogo da argumentação. Não é possível
transferir imediatamente do discurso à ação a necessidade fundamentada nos
transcendentais pragmáticos nem traduzi-la numa força reguladora da ação. A
exigência de inclusão dos participantes que possam fazer contribuições relevantes
16. No contexto de Direito e democracia, essa substituição tanto visa a uma normatividade
mediada para a razão comunicativa - seu caráter prescritivo decorre de um consenso
estabelecido de forma discursiva- quanto à formulação deumprincípiodo discurso neutro
em relação à moral e ao direito e, pois, ao estabelecimento da moral e do direito como
cooriginários,diferentemente da posição de Kant.
120 Papirus Editora Habermas e a reconstrução 121
fas instituições, estavam em condições de motivar a passagem dos sujeitos à ação.
Agora, a moral se mantém como uma forma de saber cultural, mas sem forçasuficientepara exigir dos sujeitos talpassagem.O direito, diferentemente, adquireobrigatoriedade tambémnonívelinstitucional, a fim de se estruturar como capazde coordenar a ação mediante seupoder de coerção (ibid.,p. 137).
Nas sociedades arcaicas, o problema da integração social era solucionadopela dimensão da autoridade do sagrado ou pela autoridade do costume. Por nãohaver mais esserecurso epor restar agora, comoúnicaautoridadepossível,a forçado melhor argumento,há que se considerar sempre o risco do dissenso.Em razão
das pretensões de validez, que podem ser resgatadas discursivamente, há agoraumanormatividademediada. Assim,daperspectiva de uma teoria dasociedade, o
direito desempenhaopapeldepreencher funçõesdeintegração social,assumindo a
garantiapelasperdas que ocorremnela(cf.Habermas 1994a,p.662).Acategoriadodireito,baseadanoprincípiododiscurso,é colocadanocentro daproblemáticada
integração social,umavezqueumamoralpós-tradicionalorientadaporprincípiosdependerá de uma complementação do direito positivo.'8
no discurso, a igual distribuição de oportunidades para fazer tais contribuições,a condição de sinceridade dos participantes e a ausência de coações se referemexclusivamenteàconstituição dapráxisargumentativa,não a relações interpessoaisque vão além dessa práxis (cf. Habermas 2003,p. 50).
A razão comunicativa se limita a possibilitar uma orientação baseadapretensões de validez sem fornecer qualquer tipo de orientação concreta paratarefas práticas; ela vai além do âmbito exclusivamente prático, significando quea normatividade em sentido moral não coincide mais, necessariamente, com a
racionalidade comunicativa como tal e que normatividade e racionalidade não
são capazes de fazer a transposição direta das ideias morais para o agir. A razão
comunicativa permanece aquém de uma razão prática prescritiva. Ela não é
informativa nem imediatamente prática e se refere unicamente às intelecçõese asserções que devem ser criticáveis e estar sempre abertas a esclarecimentosargumentativos. A localização do conceito de razão comunicativa na esfera deuma teoria da sociedade desenvolvida em termos reconstrutivos conduz a que o
conceito tradicionalde razãoprática venhaa adquirirum“novo valor heurístico",de maneira que já não sirva diretamente paira “introduzir uma teoria normativa
do direito e da moral” (Habermas 1994a,p. 19).
Em razão dos limites identificados no conceito moderno de razão práticae amparadona nova perspectiva da teoria do discurso, Habermas coloca o direitocomo elemento central para a solução do problema da integração social em
sociedadescomplexas.Nestas,a fundamentação se toma fraca,umavez que dependedo solo frágildaspretensões de validez. A seu juízo,amoralnão conseguedar conta
do problema da integração social em tais sociedades.17 A passagem da sociedadetradicional para a sociedade moderna provoca uma modificação significativa na
relação entremorale direito. Com talpassagem, essas duas esferas se diferenciamdo ethosda sociedade tradicional,onde estavamentrelaçadas. Aliodireitoeamoral,
por se apresentarem como saberes culturais entrelaçados com a personalidade e
ist
em
1
Oprincípio do discurso neutro em relação à moral e ao direito
Cabe agora,noúltimopasso do percurso proposto, tratar como Habermasconsolida apassagemdaéticadodiscursoparaa teoriadodiscurso.Umdosaspectos
centrais da nova orientação por ele imprimida à sua teoria está na postulação deum princípio do discurso neutro em relação à moral e ao direito,o qual decorrede um conceito de razão destituído de sua base moral e aberto, pois, a diferentes
tipos de discurso.19Oprincípiogeraldodiscurso é agoraentendidocomoconceito'Em 1992, emDireito e democracia,o direito assume a tarefade complementar amoral,porreunir condições de aliviar os indivíduos do peso das decisões. Assim,asquestões da esfera
privada são transferidas para a esfera pública, ou seja, são institucionalizadas mediante o
direito. A relação entreelas jinão éde atrelamento,mas de cooriginariedade,o que gera uma
transformação na estrutura da ética discursiva habermasiana e no modo de entender sua
teoria como tal.Por conseguinte,odireito assumelugar centralnaresolução dosproblemasreferentes à integração social,e sua legitimidade se desvincula damoralpara se estabelecerem procedimentos discursivos.
O direito passa a assumir um enfoque diferente daquele apresentado na Teoria da açãocomunicativa (1981). Habermas jánão fala em juridiíicaçâo do mundoda vida, atribui-lheagora a função de “dobradiça” entre sistema e mundo da vida (1994a, pp. 77-78). Nobre
18.
17. O direito opera agora como uma espécie de correia de transmissão que possibilita queas estruturas de reconhecimento recíproco existentes entre próximos e que se tornam
conhecidas pelos contextos concretos do agir comunicativo, sejam transferidas de formaabstrata,porém impositiva,ao âmbito das interações anónimas e mediadas sistemicamenteentre estranhos (cf. Habermas 1994a,pp. 662-663). Agora a solidariedade,a terceira fontede integração social, surge do direito de maneira indireta, pois este tem condições degarantir,medianteaestabilizaçãodeexpectativas decomportamento,relações simétricasdereconhecimentorecíproco.Taisrelaçõesocorrem entreos sujeitoscomo “titulares abstratosde direitos subjetivos” (ibid.,p. 663).
i
19.
Habermas e a reconstrução 123122 Papirus Editora
wI .
supremo de toda a teoria da razão prática, ramificando-se numprincípio moral e
num princípio do direito. Direito e moral são compreendidos como igualmenteoriginários, da mesma forma que os discursos de sua reconstrução e de sua
fundamentação.Oprincípiomoralagoraé tomado comoumprincípioque serefereaumdeterminado tipo deproblemadarazão prática.Ele se constituisomentecomo
princípio dosdiscursosprático-morais,nãomais comoprincípio deumamediaçãoestabelecida apriori entre o direito e a moral; por conseguinte, tem de se limitarapenas aos discursos desenvolvidos mediante argumentos morais.20
Habermas confere agora ao direito e à moral uma participação comum na
razãoprática:como sistemasnormativosque são,desenvolvem juízos e argumentos
práticos sustentados pelo princípio do discurso, uma espécie de tronco comum a
ambos. O conteúdo de (D) só pode ser especificado por referência às condições devalidezquedevemcumprir as regrasmorais e as normas jurídicaspara quepossamser reconhecidasem seus respectivosâmbitos devalidez. A autonomiadóprincípio(D) implicaadiferençaentreoconteúdopragmático-transcendentaldos discursospráticos e o sentido específico da validez de normas de ação fundamentadas em
cada caso, ou seja, sem prejulgar o sentido instrumental, ético, moral ou jurídicoda validez dos enunciados normativos. O potencial de racionalidade dispostouniversalmente nos discursos não pode ser compreendido como obrigatórioem sentido deontológico. É por se referir a normas de ação em geral, e não
especificamente a normas morais, que o conteúdo normativo de (D) explica o
sentido de imparcialidadedos juízospráticos.É justamentepor se referir anormas
de ação e a discursos racionais em geral que ele se situa num nível de abstração
superior ao princípio moral (U) e ao princípio da democracia (Pd). O princípio
do discurso (D), concebido originalmente para o princípio (U), é definido agora
de ummodo abstrato a ponto de expressar somente a necessidade pós-metafísica
de fundamentação de normas de ação em geral. As perspectivas das quais (D)
assume um sentido concreto são fixadas com base nas referências à constituição
domundo objetivo, subjetivoousocial.Enunciadosempíricos,ações orientadas ao
êxito,questões éticas e questõesmorais se vinculamaconotaçõesdistintas,a saber:
respectivamente,a conotações ontológicasrelativasàexistênciadeestados de coisas,
aconotações instrumentaisdeeficácia e demaximização deutilidade,a conotações
axiológicas relativas à preferência de bens e a conotações de reconhecimento de
relações interpessoais ordenadas (cf. Habermas 2003, p. 56).
Oparcimoniosoprincípiodo discursohabermasiano tem,pois,umconteúdo
normativo-prático que possibilita a avaliação imparcial de normas de ação em
geral, porém não pode coincidir de forma exata com o princípio moral, dado que
a maneira como se explicita como princípio moral é diferente da maneira como
se apresenta no princípio da democracia. O princípio do discurso não esgota o
conteúdo do princípiomoral (U),uma vez que este se constitui apenas como uma
espécie de operacionalização especial de (D) referente ao mundo social e permite
ajuizar racionalmente ações e normas doponto devista da justiça.Oprincípio(D)
se refere a normas de ação em geral, não apenas a normas morais, e é formulado
da seguinte maneira: “D: são válidas precisamente as normas de ação às quais
todos os possíveis afetados poderiam dar o seu assentimento como participantes
de discursos racionais” (Habermas 1994a, p. 138). A validade a que ele se refere
remete às normas de ação e a proposições normativas gerais. Pretende-se, desse
modo, assegurar que as diferentes pretensões de validez possam ser satisfeitas
discursivamente. A validade se refere à razão comunicativa, prescritiva apenas
indiretamente, distinta, pois, da razão prática pensada nos moldes kantianos, e
não tem especificamente um sentido moral nem jurídico. Agora, o princípio do
discurso (D) se vinculaàpossibilidadedevários tiposde fundamentação,conforme
o respectivo tipo de discurso desenvolvido. O princípio (D) se refere a discursos
racionais em geral, não apenas a discursos práticos nem exclusivamente à moral.
Dessa forma, os discursos visam à tomada de decisões racionalmente motivadas
com base na resolução discursiva das pretensões de validez e podem vincular
justificações de cunho moral,ético e pragmático.
í
;
*
f
i
observa que, “se, no quadro da Teoria da ação comunicativa, o modelo da sociedade em
doisníveiserapensado segundo ametáforado ‘sitiamento’, a relação entre sistema e mundoda vidaserá pensada,no quadro deDireito e democracia, segundo a metáfora das eclusas”(2003,p.389). A razão para talmudança estariaem que “o modelo anterior do ‘sitiamento’era “por demais derrotista” (ibid.).
20. Isso indica uma mudança de posição de Habermas em Direito e democracia (1992) em
relação a Moralbewusstsein undkommunikatives Handeln (1983). Habermas observa que,nesta últimaobra,adistinção entreprincipio (U) eprincípio (D)não estava suficientementeclara,pornão terdistinguido satisfatoriamente entreprincipiomoraleprincipiododiscurso(cf. Habermas 1994a, p. 140). As criticas de Albrecht Wellmer pesaram bastante para as
modificaçõesde(U)e(D).Oproblema,paraWellmer,residiriano fatode (U)nãodistinguirdemodo satisfatório entreproblemasrelativosilegitimidade das normas e oproblema damoralidade da ação.Emdecorrínda,oâmbito da racionalidadeprática restaria limitado àesferamoralealegitimidade dasnormasiuniversalidade da ação. A esse respeito,Wellmer1994, p. 135 ss. De qualquer modo,iluz das novas especificações operadas na teoria dodiscursopor Habermas,não se trata apenas de tornar a distinção entre taisprincípiosmaisdara, mas de alterações significativas na relação entre eles. Um problema dai decorrenteserá,para Apel, o de como se fará a passagem de (D) para (U). A esse respeito, Apel 1998,
p. 771.
'
*
124 Papirus Editora Habermas e a reconstrução 125
A juízodeHabermas,o sentido dos aspectos inseridosem(D)-os conceitos
de validade, normas de ação, afetados e discurso racional - será precisado e
diferenciado nos respectivos contextos morais e jurídicos. O princípio (D) é
neutro,porque se refere a normas de ação em geral,não apenas a normas morais.
Habermas especifica que ele é neutro em relação à moral e ao direito. É abstrato,
em razão de apenas explicitar o ponto em que é possível fundamentar normas
de ação de maneira imparcial.Éumprincípio sem conteúdo, em razão de que os
argumentos a serem utilizados na fundamentação de normas de ação só podem
ser determinadosna discussão,nãopreviamente a ela.Éprocedimental,por exigir
que as formas de vida estruturadas comunicativamente busquem, entre outros
aspectos,oreconhecimentomútuoeasimetriaentre osparticipantesdosdiscursos.Seu caráter normativo reside na exigência de que as questões práticas possam ser
julgadas imparcialmente e decididas de modo racional Porém, mesmo assim, é
neutroemrelação àmoraleaodireito;énormativo-prático,nãonormativo-moralEleseatémaindicar queépossívelfundamentar imparcialmentenormasdeação em
geral.Habermas tomaocuidadodeobservarque(D) temumconteúdonormativo
apenasnamedida em que ajuda a explicitar o sentido da imparcialidade em juízos
práticos. Talsentido,explicitadomediante a especificação de (D) como princípiomoral (U) ou como princípio da democracia (Pd), toma-se possível mediante a
introduçãodos diferentes usos da razão prática.
Habermas diferencia o princípio discursivo do direito - princípio da
democracia(Pd) -doprincípiodiscursivo damoral-princípio de universalização(U). Tais princípios vão regrar, respectivamente, normas do direito e da moral.
O princípio moral resulta de uma especificação do princípio geral do discurso
para normas de ação e a justificação de tais normas só pode se dar mediante
a consideração simétrica dos interesses. O princípio (U) deriva do princípio
(D) e serve, pois, para justificar normas morais válidas mediante um discurso
especificamente moral.21 Ele se limita aos discursos decididos especificamente
mediante argumentos morais. Com a diferenciação do princípio do discurso em
relação ao princípio moral e ao princípio da democracia, já não há um primado
lógico da moral deontológica do discurso emrelação aos outros âmbitos da razão
prática.O tipo de argumento a ser utilizadonosdiscursosresulta dalógicaprópriadorespectivo questionamento,esclareceHabermas,oqueindica,umavezmais,paraa ausência deprimazia damoral dentro doâmbito darazãoprática.Nesse sentido,
há que se distinguir entre questionamentos morais, ético-políticos e negociaçõesde compromissos. Os discursos morais ficam especializados num único tipo de
argumento e as normas morais têm ummodo específico de validez deontológica.As normas do direito, diferentemente, têm sua legitimidade baseada em um
amplo conjunto de argumentos, dentre os quais os de tipo moral. Ocorre queumamoralpós-convencional jánãopode depender deum substrato deestruturas
da personalidade, sob o risco de ter sua eficácia limitada. Ela tem de atingir os
motivos dos agentes pelo caminho da institucionalização de um sistema jurídico(cf.Habermas 1994a,p. 146).
Ao principio do discurso é atribuída uma função modesta. Ele tem como
ponto de partida a ideia de que o princípio se funda “nas relações simétricas dereconhecimento de formas de vida estruturadas comunicativamente” e,por isso,
limita-seapenas aexplicaropontodevistamedianteoqualsepodem“fundamentarimparcialmente normas de ação” (ibid., p. 140). O princípio do discurso jápressupõe que as questões práticas de modo geral, não apenas as morais, têm
tanto a capacidade de serem julgadas imparcialmente como de serem decididasracionalmente. A fundamentação de tal pressuposição deve ser feita mediantetuna teoria da argumentação, a qual distingue diferentes tipos de discursos. Essadistinção depende sempre da lógica do respectivo questionamento e do tipocorrespondente de argumentos. Assim, para cada tipo de discurso, é preciso ver
que regraspossibilitamrespostas aproblemaspragmáticos,éticos emorais.São tais
regras que operacionalizam o princípio do discurso. No âmbito especificamentemoral, (D) assume a forma de umprincípio deuniversalização (U) - em discursosde fundamentação - ou a forma de umprincípio de adequação - em discursos deaplicação.
O princípio moral (U) e o princípio da democracia (Pd) aparecem como
desdobramentos específicos doprincípiododiscurso (D).Oprincípio (U) serefereanormas de ação que somentepodem ser justificadas levandoemcontaointeresse
de todos os concernidos de forma simétrica. É dessa maneira que ele se constituiemcritériopara o funcionamentodoprocesso argumentative.Aoassumir a formade um princípio de universalização e por ser regulador dos argumentos para a
decisão racional de questões morais,oprincípiomoralexerce a função de regradeargumentação.Por meio dessaregra,épossívelavaliar seuminteresse determinadopode ser justificado universalmente oú não. O princípio (U) funciona no âmbito
21. Observe-se a diferença entre a formulação da década de 1980 e a da década de 1990 emrelação a(U).Em1983,(U),corooprincípiodeuniversalização, requeria que todapretensãode validade levantada emrelaçãoèação fossepassivelde ser aceitapor todosos concernidos(ef. Habermas 1999b, p. 75). Em 1996, Habermas observa que (U) tem como papeloperacionalizar um principio discursivo mais abrangente, tendo em vista primeiramenteum questionamento em especial, de ordem moral (cf. Habermas 1999c, p. 64).
126 Papirus EditoraHabermas e a reconstrução 127
associação por eles livremente estabelecida.Ocorrequeoprocedimento legislativoprecisa se institucionalizar juridicamente para garantir a inclusão igualitária detodos os que fazem parte da comunidade política na formação democrática daopinião e da vontade. Diferentemente do princípio moral, que funciona comoregra de argumentação para a decisão racional de questões morais, o princípio dademocracia pressupõe a possibilidade da decisão racional de questões práticas e a
possibilidade de todas as classes de fundamentações a ocorrerem em “discursos (e
negociações reguladas por procedimentos), das quais depende a legitimidade dasleis” (ibid.,p. 142). Ele se constitui mediante a linguagem do direito e se aplica àsnormas de açãoquesurgemna formado direito.Habermas observaqueoprincípiodemocrático tem de assumir umaposição deindependênciaemrelação aoprincípiomoral,emrazão danecessidade deproporcionar ao direitouma justificaçãoneutra
diante das diferentes visões demundo e tambémem virtude do entrelaçamento dodireito com o poder político (cf. Habermas 2003,pp. 45 e 61).
O princípio da democracia abre espaço a vários tipos de discursos - os
quais auxiliam a moldar as normas de ação que surgem na forma do direito - e,
por isso, taisnormaspodem ser justificadaspor razõespragmáticas,ético-políticase morais, e também na esfera das negociações. A forma das normas é jurídica,mas a justificação delas se dá por diferentes tipos de argumento,não apenas os deordemmoral.No que diz respeito aprincípios,adiferença está emque oprincípiomoral serve exclusivamente à formação do juízo, por funcionar como regra deargumentação,aopasso queoprincípiodademocraciapassaaestruturarnão apenaso saber, mas também a prática dos cidadãos (cf. Habermas 1994a, p. 677). Desse
modo,noprincípiodademocracia,háumamudança deperspectiva relativamenteao princípio moral, a qual se dá em relação ao ponto de vista dos participantes.Como sujeitos de direito, os participantes têm condições de se autodeterminar e
de construir uma associação.
O princípio do discurso, neutro em relação à moral e ao direito, implicaum
novo tipo de relação entre a moral e o direito. O modo encontrado por Habermaspara desfazer a dependência do direito em relação à moral, presente na filosofiamoderna,ésituá-loscomocooriginários ecomplementares.Acooriginariedadeentre
moral e direito é apresentada como teoria do discurso e decorre da decomposiçãoda eticidade substancial (ibid.,p.111). Habermas parte da constatação de que, paraKant e os modernos, o princípio da democracia está subordinado ao princípio damoralidade. O direito se constituiria numa espécie de discurso especial da moral e,
por conseguinte, estaria hierarquicamente subordinado a ela. A moral, agora, não
se constituimais em esfera legisladorapara o direito,o que significa que não dispõe
interno do jogo argumentativo, na medida em que regula que razões podem ser
levantadas para justificar os interesses nelas presentes.
Se a modernidade tende a deslocar as questõesmoraisparao âmbitoprivado,
Habermas busca não reduzi-las à responsabilidade pessoal. A seu juízo, na ótica
da teoria do discurso, o princípio moral terá de ultrapassar os limites históricos
que foram delineados entre os domínios vitais públicos e privados. A teoria do
discurso, então, tem de levar a sério o sentido universalista que tem a validade das
regrasmorais. Agora é exigido queaassunção idealdepapéis seja convertidanuma
práxispública,realizada emcomumpor todos.Oprincípiomoralbuscaultrapassar
a distinção entre público e privado e, por essa razão, os discursos sobre questões
morais e os discursos sobre questões de justiça não se diferenciam,o que significa
que questões acerca da responsabilidade pessoal -provindas das relações sociais -
e questões referentes à justiça - vinculadas aos âmbitos de ação institucionais,
provindas da relação entre direito e política - não mais se distinguem.Na opinião
de Habermas, a moral, nas sociedades complexas, só consegue obter efetividade
mediante sua tradução para o código do direito (ibid., p. 141).22
O princípio da democracia (Pd), por sua vez, será formulado da seguinte
maneira por Habermas: “Somente podem pretender validade legítima as leis
jurídicas que, num processo jurídico de normatização discursiva, possam
encontrar o assentimento de todos os parceiros do direito” (ibid.). Tal princípio
não se encontra no mesmo nível que o princípio moral, pois ele explicita o
sentido performativo daprática de autodeterminação de membros do direito que
necessitam se reconhecer mutuamente, partilhando de modo livre e igual uma
-1
22. Também para esse ponto se volta a crítica de Albrecht Wellmer, por entender que a ética
do discurso habermasiana acaba equiparando a moral com a moral civil e reduzindo-a
iesfera da justiça (o bom e o útil são deslocados para a esfera da ética e da pragmática,
respectivamente). O risco efetivo que Habermas incorre, na ótica de Wellmer, é o de
identificar os problemas da moral com os do direito. O entrelaçamento do direito e da
moralmediante o conceito deretitude normativa em(U) somente seriaobtido ao preço da
assimilação conceituaidos problemas morais áos jurídicos:“Nopostulado(U) se ‘mesclam’
de maneira confusa um princípio moral universalista com um princípio democrático de
legitimidade, obtendo-se ao final que tal postulado não resulta convincente nem como
princípiomoral nem comoprincípio delegitimidade” (Wellmer 1994,p.81).Nesse sentido,
a ética do discurso ficaria aquém deKant,pois taisproblemas já teriamsido suficientemente
distinguidospor ele. Para Wellmer, Kant conseguiu, mediante seu princípio moral, traçar
umlimite decisivo entre o campo da ação correta moralmente e o da justiça das normas. A
ética dodiscursohabermasiana,por sua vez,não teria alcançadoumrefinamento semelhante
no que diz respeito à diferenciação dos respectivos problemas (ibid., pp. 40 e 135 ss.).
Habermas e a reconstrução 129128 Papirus Editora
decomplementação,uma vez que têm umaparticipaçãocomumnaesfera da razão
prática.25 Como sistemas normativos que são, desenvolvem juízos e argumentos
baseados no princípio do discurso. O direito formal e a moral pós-convencionalprecisam se complementar, entre outras razões, para poder dar conta do espaçodeixado pela dissolução da eticidade tradicional. Ocorre que, num contexto pós-metafísico, tanto as regras morais como as jurídicas se diferenciam da eticidadetradicional, apresentando-se como dois tipos de normas de ação diferenciadosentresieque surgemlado alado,completando-se.Moraledireito sãocoorigináriospor se originarem concomitantemente de um mesmo princípio do discurso. Por
terem origemnum mesmo princípio,neutro em relação a eles, jánão é possível a
subordinação de um ao outro. A relação genética entre morale direito já não é de
dependência,mas de simultaneidade.26
de condições para fornecer o fundamento normativopara este. Dessemodo,moral
edireitopassamaser entendidoscomocooriginários.Seoprincípiododiscurso está
na base tanto de umquanto de outro, já não é possívelhaver subordinação alguma
do direito à moral. Trata-se, mesmo que direito e moral tenham o princípio do
discursocomoreferênciacomum,deesferasnormativasdistintas.Comoprocessode
racionalizaçãomoderno,odireitoseconstituicomoinstituiçãoneutra;portanto,não
maisdependentedamoral.23Naóticadateoriadodiscurso,odireitonão teráopapel
demediarmoraledemocracia, será tensãopermanenteentre facticidadeevalidade.24
Isso se deve ao fatodeodireitomoderno ser, simultaneamente,um sistemade saber
e um sistema de ação. Por se constituir, ao mesmo tempo, como um componente
importante do sistema de instituições sociais,o direito positivo, diferentemente da
moral,não representa apenas uma forma de saber cultural
Direito e moral já não podem manter uma relação de subordinação,pois,
alémdecoorigináriosmedianteumprincípiododiscurso,estabelecemumarelação
À guisa de conclusão
23. Recentemente (2011) Habermas, ao tratar do conceito de dignidade humana e da utopia
realista dos direitos humanos, observou que “a ideia da dignidade humana é a dobradiça
conceituai que conecta amoraldo respeito igualpor cadaumcomo direitopositivo e com
alegislação democrática de talmodo que,na sua cooperação sob circunstâncias históricas
favoráveis, póde emergir uma ordem política fundamentada nos direitos humanos” (no
prelo,p. 16).Em seguida argumenta que os direitos humanos mostram uma face de Janus,
tempo à moral e ao direito e que essa posição não exigiria
I Com base no percurso desenvolvido neste capítulo, cabe tecer algumasobservações a título de balanço. Primeiramente, Habermas se mantém coerente
com o princípio de que a filosofia tem de rejeitar a estratégia de fundamentação
última. Nesse sentido específico, o modelo ético-discursivo de Apel funciona o
a qual está voltada ao mesmo
umarevisão desuaabordagem sobreo sistema dedireitosconforme desenvolvida em1992,
no capitulo 3deFaktizitõt und Geltung. Habermas, todavia, faz uma ressalva importante, a
sabei;deque lá nãohavia tratado de dois aspectos: “Primeiro, as experiências cumulativas
de dignidade violada formam uma fonte de motivação moral para a práxis constitucional
semprecedenteshistóricosno finaldo séculoXVIII;segundo,a noção geradoradestatusdo
reconhecimento social da dignidadedo outro fornece a ponte conceituai entre o conteúdo
moral do respeito igualde cada um e a forma jurídica dos direitos humanos” (ibid.,p. 17,
nota 19).No final dessa mesma nota alerta que deixará de lado o exame a respeito de ~
que medidaodeslocamentodo focoparaessasduasquestõestrazconsequênciasadicionais
para sua“interpretação deflacionada” doprincípiodo discurso “D”na fundamentação dos
direitos fundamentais.Elehavialevado adiante talinterpretação na respostaãsobjeçõesde
Karl-OttoApelaoprincípiododiscursoneutroem relaçãoimoral e ao direito (Habermas
2003,pp. 44-64).
25. A posição deHabermas aqui(1992) não é amesma daquelaapresentada nas Tanner Lectures
(1986). A relação de complementação entre moral e direito já não é entendida da mesma
forma como fora desenvolvida alguns anos antes (ver Habermas 1994a,p.10). Agora, ela é
maiscomplexa e a ênfasemaior é dada ao aspecto da cooriginariedade.NasTanner Lectures,
a Tacionalidade jurídica estava vinculada diretamente à racionalidade em seu sentidoprático-moral (ibid., p. 542 ss.). Nelas, a moral estava encarregada de fornecer o critério
de validade que perpassava a esfera do direito, designava o grau de sua legitimidade e se
colocava comohierarquicamente superior (cf.Moreira 1999,p.171).Nas Tanner Lectures,
Habermas se posicionava ainda dentro dos moldes da tradição moderna da razão práticaao enfocar a relação entremorale direito.Portanto,ao tratar daquestão da origem, a moralassumia primazia em relação ao direito. Isso ficava explícito na tese de que a legalidadeteria de extrair sua legitimidade de uma racionalidade procedimental com teor moral (cf.
Habermas 1998a,p. 542). O prefácio de Direito e democracia faz uma autocrítica explícitaa essa posição anterior.
26. A complementaridade se dá em relação ao modo de proceder de ambos e tal relação de
complementação recíproca entre a moral autónoma e o direito positivo é explicitada em
três argumentos: o sociológico,o da diferenciação e o da forma(a esse respeito,Habermas1994a, p. 137 ss.).
em
evalidade é explicitadaem razão de o direitopositivomoderno24. A tensão entre
se apresentar como candidato para solucionar o problema da reprodução da sociedade.
O direito torna possível comunidades artificiais - membros livres e iguais associados -que obtêm coesão por dois aspectos: o das sanções externas e o de um acordo motivado
racionalmente. A tensão é gerada em razão desses dois aspectos, ou seja, entre seu caráter
coativo e sua pretensão delegitimidade, que são simultâneos.
Habermas e a reconstrução 131130 Papirus Editora
1tempo todo como uma espécie de contraponto para Habermas. A interlocução
com Apel, em razão das modificações que este opera em sua própria variante
ético-discursiva,e as críticas de Wellmer auxiliamHabermas aprecisar sua posição
destranscendentalizadora e a aprofundar sua teoriadodiscurso comasubstituição
do conceito de razão prática pelo de razão comunicativa e a introdução de um
princípiodo discursoneutro emrelação àmorale ao direito.Esse aprofundamento
gera modificações em relação ao modo como compreendia a moral e o direito,
assim como a relação entre ambos no quadro da teoria da ação comunicativa na
década de 1980.
Em segundo lugar, uma das consequências centrais do aprofundamento da
diferenciação discursiva operada apartir da década de 1990 é a ideia de que, assim
comoarazãoprático-moralnãorepresenta todaarazãoprática,tambémosdiscursos
morais não representam o conjunto da esfera do discurso. Ao propor a substituição
doconceitoderazãopráticapelo derazãocomunicativa,Habermas indicaqueesta já
nãopode ser entendida em sentidoprático-moral.Habermas passa a falar em teoria
dodiscurso,situando aéticadodiscurso dentro dessenovoquadro teórico.Emrazão
disso, a teoria discursiva da moral assumiu como função a de reconstruir somente
umâmbitoparcialdo campo maior darazãoprática,nãopossuindoprimaziadentro
desta.Porconseguinte,domesmomodocomo arazãoprático-moralnãorepresenta
toda a razão prática, também os discursos morais não representam o conjunto da
esferadodiscurso.Comareformulaçãodoconceitoderazãoprática,operada àluzda
teoriadodiscurso,observa-se queHabermas,ao mesmo tempo,ampliaoâmbito da
razão práticapara a esfera da ética,dapragmática,dapolíticae do direito emantém
o conceito demoraldo discurso emlimites estreitos, restrito à função de esclarecer
e fundamentar o ponto de vista moral.
Por fim, esse conceito de razão prática traz um aspecto totalmente novo
em relação ao programa original de sua variante da ética do discurso, pois a
teoria discursiva do direito é colocada em condições de igualdade com a teoria
discursiva da moral. O conceito de discurso relacionado ao direito complementaodiscursoprático-moralem razão dos contextos do agir concreto,decaráter legal,
presentesemEstados democráticosdedireito.Alémdisso,Habermas elabora uma
teoria discursiva do direito que, junto com a teoria discursiva da moral, culmina
numa teoria política da democracia, completando assim a esfera da razão prática
discursiva. O aprofundamento da teoria do discurso mediante a diferenciação dos
discursosbaseados em (D) obriga,portanto,Habermas aposicionar sua moral do
discurso como umaregião específica da razãopráticaorientadapeloprincípio (U)
como concretização doprincípio (D) para a esfera moral.
O princípio do discurso, que originalmente havia sido concebido parprincípiomoral(U),é definido agoracomo abstrato aponto de expressar somentea necessidade pós-metafísica de fundamentação de normas de ação em geral. Osdiscursosmorais,por sua vez,restam especializadosnumúnico tipode argumentoeasnormasmorais têmummodoespecífico devalidezdeontológica.Essas alteraçõesmostramcomo amoldura quecaracterizava sua varianteético-discursivana décadade 1980 é agora reconfigurada dentro do quadro do aprofundamento de sua teoriado discurso.
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132 Papirus Editora Habermas e a reconstrução 133
CRÍTICA E RECONSTRUÇÃOEM DIREITO E DEMOCRACIA 4
Felipe Gonçalves SilvaRúríon Melo
EmDireitoedemocracia,' Habermasrenova suaintenção dedar seguimentoa uma teoria crítica da sociedade que opera de modo reconstrutivo. Ao contráriodo queaconteceemoutros trabalhos,entretanto,o autor não se dedica aexplicitarcom precisão o sentido em que o termo “reconstrução’ é ali utilizado. E emborapossamos encontrar certos laços de continuidade em relação à sua obra anterior,
tudo indica que temosemDireito e democracia umprogramareconstrutivonovo,
marcado por diferenças significativas tanto em relação ao objeto da reconstrução
-*quanto aos modos de operá-lafcomo objeto da reconstrução, Habermas elege a
tensão entrefacticidadee validadequeseobserva tanto internaquanto extemamente
aodireito;uma tensão entre a facticidade de sua formaimpositivaesuas exigênciasdelegitimação democrática,aqualpermeia a esfera jurídicaem seu funcionamentointerno e nas relações que estabelece com os demais âmbitos da vida social.Para o
autor, essa tensão tem de ser reconstruída,porque guarda possibilidades de uma
democratização radicalda vida social,quer dizer,deuma submissão constantedas
instituições existentes à crítica e à transformação reflexiva - as quais, entretanto,
encontram-se imunizadas em muitos de seus conteúdos e de suas formas deA funcionamento.Eisso jános remete ao queparece ser o traçomaiscaracterísticodo
novomododereconstrução:oprocedimentalismo,presenteaolongode todaaobra,
que envolve o trabalho reconstrutivo em cada um de seus momentos particularesepermite sua convergênciana forma deumnovoparadigma jurídico.Nessa obra,
o trabalho de reconstrução opera, a cada vez, uma diluição de naturalizações e
engessamentos indevidos das formas institucionais, remetendo-as à sua génesehistórica e às suas exigências de atualização político-democrática. Reconstruir 1
a tensão entre facticidade e validade significa, pois, procedimentalizar a práxis
1. Embora tenha sido adotado o título da tradução brasileira, as páginas indicadas deDireitoe democracia são da edição alemã (Habermas 1994a).
Habermas e a reconstrução 135
1!jurídicaemcadaumde seus conteúdos singulares,subtrair ocaráter denecessidade
dogmática que acompanha os contçúdos doEstado democrático dedireitoem sua
compreensão tradicional e reapresentá-los como elementos submetidos à prova
dos processos democráticos.
O paradigma procedimental não resulta apenas de uma articulação bem-
sucedida entre teoria do direito e teoria da sociedade, também faz parte de um
novo diagnóstico do tempo. Habermas procura explicitar o núcleo racional
que anima o projeto de um Estado democrático de direito entendendo-o como
institucionalização de processos de formação política da opinião e da vontade.
Pressupõe em seu diagnóstico, portanto, que toda instituição está submetida
às exigências de legitimação radicalmente democrática: nas democracias
contemporâneas estabelecidas, as instituições existentes,mesmo as instituições da
liberdade, não se furtam à crítica e à transformação reflexiva (1994a, p. 13). Para
Habermas,esse éumtraço dapolítica contemporânea- ligado à revitalização e ao
aprofundamento da democracia por meio da participação da sociedade civil, da
ação dosnovosmovimentos sociais e dadinâmicade esferaspúblicasautónomas-o que atribuiria,de saída, um enraizamento ao procedimentalismo.2
Pretendemosmostrar queomodelo críticopresenteemDireito e democracia
éoreconstrutivo.Noquediz respeito aoconjuntodaobrahabermasiana,seguimos
ainterpretaçãoqueLuiz Repa desenvolveuao apresentaro aspecto sistemáticoquea noção de reconstrução, apesar das suas diferentes formulações,adquirena teoria
de Habermas.3 Nosso principal esforço aqui consiste em tentar compreender o
modeloreconstrutivo específicopresentenolivrode 1992,sublinhando,certamente,
suas continuidades e descontinuidades em relação às etapas anteriores do projetocrítico-reconstrutivo das décadas de 1970 e 1980. Gostaríamos de fazer algumasconsiderações iniciais sobre o direito e a democracia como objeto da reconstrução
para, em seguida, concentrarmo-nos nos procedimentos reconstrutivos dolivro Direito e democracia, segundo a divisão, sugerida pelo próprio Habermas,
entre uma reconstrução interna e outra externa. Não poderíamos completar essa
interpretação semenfrentar os “paradigmasdo direito” e semconsiderar qualseria
o estatuto doparadigmaprocedimentalnoempreendimentocríticohabermasiano.Nele parece confluir todo o problema de uma articulação entre as reconstruções
anteriores e a pretensão de uma crítica normativa socialmente enraizada. Por
último, teceremos breves considerações finais, com o intuito de compreender o
paradigma procedimental como um modelo crítico aberto, a ser empiricamentecomplementado nas pesquisas sobre direito e democracia.
O direito como meio de integração social
2. Muitos autores constataramque o projeto de uma críticanormativa socialmente enraizada
não teriasido adequadamente realizadonomodeloprocedimentalpropostopor Habermas.
Essa inadequação não decorreria de um excessivo realismo responsável por desequilibrar
a permanente tensão entre facticidade e validade em favor da primeira, mas, sim, do
predominio de considerações normativas, decorrente da preocupação de Habermas em
absorver tal tensãonos conceitos mais fundamentais de sua teoriado discurso.Para ilustrar
ohorizontedesse tipo deleitura,ver as aproximações entreo “construtivismo rawlsiano” e o
“procedimentalismohabermasiano* emMcCarthy 1994 e Peters 1993.MichaelPower,por
sua vez, afirma que Habermas, ao se distanciar do método empregado em seus primeiros
escritos,baseadonumcomponente“crítico-reflexivo",e adotar ummétodo “reconstrutivo-
transcendental", abandonaria, por essa razão, o programa herdado da primeira geração
da teoria crítica (cf. Power 1998). O modelo crítico-reflexivo de Conhecimento e interesse
é retomado para complementar a abordagem procedimental de crítica reconstrutiva em
Celikates 2009.Por fim,paraumacríticamais sistemática doparadigmaprocedimentalàluz
dahistóriaedo desenvolvimento da teoriacrítica,verNobre (2008c).Interpretando oprojeto
crítico habermasiano com base na tese da “não concorrência” entre “teoria tradicional”
e “teoria crítica”, Nobre questiona a possibilidade de que o paradigma procedimental
reconstruídopossase apresentar comouma“tendênciaconcretadedesenvolvimento inscrita
na sociedade atual” (ibid.,p. 278).
Em Direito e democracia, Habermas se volta à esfera jurídica, entendida
em seu sentido mais amplo, como foco privilegiado de reflexão e crítica.Uma das
maneirasmais adequadas depenetrar a ordemdemotivosqueolevaa essa escolha,
ainda que não pretendamos esgotá-los aqui plenamente, é pela compreensão do
que o autor chama de “paradoxo da integração social”. Habermas diz que a única
formanão violenta de integração é aquelaalcançadapelaviadoagir comunicativo.
A coesão social, nesse caso, pode ser considerada livre ou não coagida, porquealcançada entre atores que decidem voluntariamente coordenar seus planos de
ação segundo a aceitação racional dos argumentos apresentados - argumentos
que podem visar a ordens distintas de questões, tais como a verdade dos fatosempíricos,acorreçãoou“justiça”denormas sociais ea autenticidade de sentimentosalegados intersubjetivamente. Segundo Habermas,para que uma interação social
possa ser considerada comunicativa, não violenta, ela não pode estar pautada
3. As análises presentes no livro de Luiz Repa, entretanto, não abarcaram o procedimentoreconstrutivo desenvolvido emDireito e democracia (cf. Repa 2008a).
136 Papirus Editora Habermas e a reconstrução 137
em outra forma de coerção além daquela exercida pelo “melhor argumento”. Da
perspectiva de sua teoria da modernização social, a modernidade teria liberado
potenciais de entendimento comunicativo conforme nela vemos enfraquecer o
poder das autoridades religiosas e consuetudinárias que imunizavam suas visões
tradicionais de mundo contra reflexões e críticas. É, pois, com a diluição da
“sociedade tradicional” que são liberados os potenciais comunicativos capazes de
dar vazão ao exercício ampliado de uma crítica intramundana e a uma integração
linguística pautadano livre convencimento.
Por outro lado, a integração social pela via do entendimento comunicativo
é considerada profundamente instável. Se a liberação do discurso abre na
modernidade a possibilidade de uma integração social não violenta, ela também
permiteum sem-número de problematizações a serem levantadas pelos atores na
tentativa de concatenar seus planos de ação. Todos aqueles que já se envolveram
em interações comunicativas sabem que o discurso pode explicitar discordâncias
significativasentreatoresque supunhamumconsenso inicialde ideias eposições.O
discurso,pois, também gera dissenso e gravesriscos de desagregação,e esses riscos
são tantomaiores quanto maispluralizadas forem as sociedades com respeito aos
valores,àsconvicções e às formasdevidaassumidaspor seus membros.Comisso,a
teoriadodiscursoéobrigadaaadmitir quealiberação depotenciaiscomunicativos
na modernidade não consegue, por si mesma, preencher as condições para seu
devido aproveitamento: nas sociedades profanizadas e pluralistas modernas, as
certezasintuitivasdomundo davida se mostramcada vez mais frágeis e expostas a
questionamentos,não sendocapazes de,sozinhas,estabilizar demaneiraprolongadaos riscos de dissenso e de desagregação próprios da integração comunicativa.
Ao mesmo tempo, a integração comunicativa se vê ameaçada pelo avanço
de outras formas de integração sistémica ofereciclas pelo Estado e pela economia,
baseadas nos meios instrumentais do poder e do dinheiro. Para o autor, esses
meiosdeintegração sistémica seespecializamnamodernidadecombasenas novas
exigências de reprodução material da sociedade. Sua incidência, entretanto, não
permanecelimitadaaos âmbitosdereproduçãodosistemaeconómicoeburocrático.
SegundoHabermas,osmeiosdeintegraçãodinheiroepoder tendema se expandir
e colonizar os âmbitos de reprodução simbólica da sociedade, substituindo ali os
meios comunicativos.Essa invasão,por sua vez, é apresentadanos termos de uma
“monetarização” e “burocratização” crescentes da vida social, segundo as quais as
relações interpessoaispassam a ser coordenadas nãopelo entendimento recíprocodosparticipantes,maspelosmeiospadronizanteselinguisticamenteempobrecidosdo dinheiro e do controleburocrático.
Nesse ponto, vemos, enfim, constituído o paradoxo mencionado acima: a
única formadeintegração socialconsideradanãoviolentasemostraprofundamenteinstávele ameaçada dedissoluçãopelo avanço daintegraçãosistémica,aqualgarantea manutenção e reprodução das sociedades por meio da neutralização técnica e
não discursiva dos riscos de dissenso.Éem foce de tal delineamento deproblemasque o direito será apresentado como objeto necessário de crítica. O direito éconsideradopelo autor comoummeio de integração ambivalente,istoé,ummeiode integraçãoligado tanto aos imperativos sistémicos quanto à força socializadoradoagir comunicativo-e,emvirtudedisso,viráa representarumapossibilidadedesuperação doparadoxo aquiconsiderado.ParaHabermas,sua tensão constitutivaentre facticidade e validadeexplicapor queodireitopode ser considerado aquium
instrumento capaz de aliviar os sobrecarregados processos de entendimento dastarefas de integração social sem anular,emprincípio, a liberação dos mecanismos
comunicativos: de um lado, a positividade do direito estabiliza expectativas deconduta por meio de coerções impostas facticamente a seus destinatários, sendotalimposiçãoconsideradanãoumaexpressão demandamentos sagrados oudeleisnaturais imutáveis,masumfragmento darealidadesocialproduzidoartificialmenteeque“sóexiste até segundaordem”, jáquepodesermodificadooucolocado fora deação emqualquer umde seuscomponentes singulares.Deoutrolado,é apretensãode legitimidade que empresta duração às normas jurídicas para que se oponhamà possibilidade presente de virem a ser declaradas inválidas, sendo tal pretensãoalojadana expectativa de as normas teremsido criadaspelosprópriosdestinatários,
segundo formas de acordo alcançadas democraticamente (1994a,p. 57).
Além disso, o direito possibilita não apenas estabilizar as expectativas decomportamento geradas comunicativamente,como tambémaquantidadecrescente
deinterações estratégicas.ParaHabermas,odireito se apresentacomoummediumde integração ligado não apenas às fontes próprias do agir comunicativo, como
também às fontes sistémicas da economia e do poder administrativo. De um
lado,pois, o direito se mantémligado às fontes de integração comunicativa pelosprocessos de formação democrática davontade;de outro,asinstituições dodireitoprivado e público possibilitam o estabelecimento de mercados e a organização deum poder do Estado, “pois as operações do sistema administrativo e económico(...) completam-se em formas do direito” (ibid., p. 59). Segundo Habermas, essa
ambivalência do direitopermite a ele exercer funções em face de toda a sociedade.Entretanto, o autor não deixa de ressaltar que o direito tem também um caráterextremamente “ambíguo”: de um lado, abre canais para que os imperativosprovenientes de interações comunicativas alcancem os sistemas económico e
138 Papirus Editora Habermas e a reconstrução 139
cotidianos,por um lado, e das transformações dessas regras à luz de sua evoluçãoe de seus bloqueios históricos concretos, por outro.4 Essa aproximação podeparecer sugerida pelo autor na medida em que se dedica, no cerne da chamadareconstrução interna,às categoriasdedireitossubjetivos eaosprincípiosnormativos
do Estado democrático de direito,os quais serão reavaliados posteriormente àluz!das transformações histórico-sociais de seus contextos de aplicação. Essas duas|distinções,entretanto,não sãoequivalentes.Issoporque,emcadaumdosmomentos jreconstrutivosanunciadosemDireitoedemocracia,podemosencontrar elaborações jque se assemelham aos termos tanto de uma reconstrução pragmática quanto deiuma reconstrução evolutiva.5 E aqui dizemos meramente que tais elaborações seI“assemelham”,masnão seguemplenamentequalquer uma dessaslinhasde análise.Por um lado, Habermas não elabora uma reconstrução das regras linguísticasimplícitas da práxis jurídico-democrática,mas se volta ao conteúdo explicativo jádado por diversas disciplinas destinadas à compreensão do Estado democráticode direito, que procura ser reelaborado com base nas contribuições específicas dateoriado discurso.Por outrolado,Habermasnãopromoveestritamenteumagénesehistórico-sociológica das instituições e práticas analisadas, limita-se a “inscrevê-las” nomarco de sua teoria da evolução social, fazendo uso de recortes, adendos e
reparos que acompanham toda a obra. Dessa forma, uma utilização rigorosa dosmodosdereconstruçãohorizontale verticalnão parece ser operadanaobra de 1992.
Diferentemente do que essas aproximações podem sugerir, a distinçãoentre reconstrução interna e externa não se refere diretamente a dois modosreconstrutivos particulares,mas, sim, a objetos distintos de reconstrução: a tensão
entre facticidade e validade que se dá interna e externamente ao direito. No
primeiro caso, a reconstrução se volta aos modos de funcionamento do sistema
jurídicoexplicitadospela autocompreensão teóricadodireitomoderno,procurando
burocrático com a pretensão de seudirecionamento legítimo;deoutro,os sistemas
de ação podem se servir da força legitimadorada forma jurídica,a fim dedisfarçar
uma imposição meramente factual do poder político e económico, conferindo
aparência de legitimidade à pressão profana de seus imperativos funcionais:
Como meio organizacional de uma dominação política, referida aos
imperativos funcionais de uma sociedade económica diferenciada,o direito
moderno continua sendo um meio extremamente ambíguo da integração
social. Com muita frequência, o direito confere a aparência de legitimidadeao poder ilegítimo. À primeira vista, ele não denota se as realizações de
integração jurídicaestão apoiadasnoassentimento doscidadãos associados,
ou se resultam de mera autoprogramação do Estado e do poder estrutural
da sociedade; tampouco revela se elas, apoiadas neste substrato material,
produzempor simesmas a necessária lealdade das massas. (Ibid.,pp. 59-60)
Dessa forma, o direito não é lido aqui nem como mero instrumento de
dominação sistémica nem como um simples meio de obtenção da liberdade. Em
sua compreensão alargada, a esfera jurídica se mostra como um local onde se
manifestam explicitamente os conflitos observados entre imperativos sistémicos
que regulam instrumentalmente a vida social e potenciais comunicativos que
possibilitama determinação autónomado comportamento (Pinzani 2009,pp. 144-
149). Entretanto, é importante dizer que, quando Habermas fala nos “potenciais
comunicativos” que habitam o direito, ele já adianta que tais potenciais não
se encontram plenamente aproveitados, que encontramos diversas formas de
bloqueiosdiscursivos tantono interior daspráticas jurídicascotidianasquantonas
relações externas que o direito estabelece com os demais âmbitos da vida social.E
é nesse ponto, justamente, que se coloca a necessidade de uma dupla perspectiva
do trabalho reconstrutivo.
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4. Habermas distingue “dois tipos de reconstrução racional: horizontal e vertical. (...) No
primeiro caso se tratodareconstruçãohorizontaldos sistemas de regrasantropologicamentefundamentais (da lógica, da fala, da interação comunicativa, da ação instrumental, daaritmética e damedição) e de seucruzamento, tontonocaso daconstituição dos objetos da
experiência possível quanto na constituição de tipos de comunicação especiais, isto é, em
princípio isentos das coerções da experiência e da ação, que caracterizam os discursos.No
caso das reconstruções verticais, trata-se da 'lógicadaevolução’desses mesmossistemas, dosprocessos de aprendizagem interna que incorporam, sob condições empíricas, as diversascompetências que o primeiro tipo de reconstrução busca explicitar” (Repa 2008a, p. 138).
5. Quer dizer, tanto a “reconstrução interna” contém considerações evolutivas sobre seuscontextos históricos de surgimento quanto a “reconstrução externa" retoma e reavalia as
condições pragmáticas de funcionamento do direito.
Reconstrução interna e externa
Habermas organiza a estrutura de Direito e democracia por meio de uma jdistinção geral entre “reconstrução interna” e “externa” (1994a,pp. 109 e 349). À
j primeira vista,podemos ser induzidos a acomodar essa distinção àquela anterior,
) entre “reconstrução horizontal” e “vertical”, vale dizer, entre uma reconstrução
das regras e dos pressupostos pragmáticos inscritos em contextos de interação
Habermas e a reconstrução 141140 Papirus Editora
a o conjunto denso de temas que compõem essa primeira etapa i
recompor a tensão entre suas expectativasnormativasdelegitimação e a facticidade
de sua formaimpositiva;no segundo caso, essa autocompreensãoécontrastadacom
disciplinas empíricas que alojam o direito no interior dos processospolíticos mais
amplos, revelandouma tensão juridicamentemediada entreopoder comunicativo
gerado socialmente e os imperativos sistémicos das burocracias estatais. Quando
dizemos que a obra é dividida em função dos objetos da reconstrução, isso nos
leva inicialmenteaconsiderar semelhanças significativasdo trabalho reconstrutivo
operado em cada uma das referidas etapas. Com efeito, ambas se
< terreno que pode ser chamado de “reconstrução teórica”. Como insistem Luiz
Repa e Marcos Nobre, a obra de Habermas é caracterizada desde Teoria da ação
(Habermas 1976, p. 9). Quer dizer, em cada um dos momentos, procura-se umaapropriação daprodução teóricadisponíveleuma reelaboração voltada à superaçãode suaslimitações características.EmDireitoedemocracia,essareelaboraçãoenvolvea recomposição da tensão entre facticidade e validade, vale dizer, a integração deposições positivistas e idealistas presentes em cada um dos momentosdo debate,asquaisouobscurecemanormatividadeimanentedodireitomodernooua sobrepõem
Apor conteúdos substantivos alheios. Por fim, ambos òs momentos prreconstruir as condições procedimentais ante as quaispode se mover umprocessode democratização radical. E, para isso, os próprios conceitos e estruturas teóricasutilizadas devemassumirumformatoprocedimental.Emcadaumdeles,pois,vemosdiluídosconteúdossubstantivospresentesnasdisciplinasvoltadasàcompreensãodoEstado democrático dedireitoesua submissão aumpadrãoprocedimentaldegénesedemocrática,segundooqualtodososconteúdossuspensospelotrabalhoreconstrutivopassam a ser considerados objeto dedisputapúblico-política.Nadimensão interna,umbom exemplo desse trabalhopode ser encontradona reconstrução dos direitosfundamentais, que são reelaborados como categorias indeterminadas, carentes deumainterpretaçãohistórica a ser constituída emprocessos democráticos concretos.Nadimensãoexterna,essaprocedimentalizaçãopodeserencontradanareelaboraçãodas categorias de esfera pública e privada, as quais passam a ser caracterizadascomo esferas comunicativas fluidas e interconectadas,cuja diferenciação se cumpremediante suas formas de exercício enão segundo temas e relações sociais fixas.Essetrabalho reconstrutivo pretende incorporar nas categorias explicativas do Estadodemocrático de direito o papel positivo desempenhado pela práxis democrática,reapresentando-as como categorias de sentido aberto, em reelaboração constantenosprocessospolíticos reais.
Se osmomentosreconstrutivos se aproximambastanteemrelação aomododereconstrução operado,eles se diferenciamsignificativamentenoque serefere àsfunções cumpridas e ao respectivomaterial teórico confrontado.Na reconstrução
Iinterna,Habermas se voltaà “autocompreensão do direito”- isto é,às elaboraçõesi teóricas sobre o funcionamentodasinstituições jurídicasrealizadaspordisciplinas: e campos investigativos endógenos, tais como a dogmática jurídica, a filosofia dodireito, a hermenêutica jurídica e a sociologia do direito -, buscando com issoreelaborar a leitura dos princípios que orientam o funcionamento do Estadodemocrático dedireitoem suas funções decriação e aplicaçãonormativa.Oobjetivocentralqueperpassa o conjunto denso de temas que compõem essaprimeira etapa \
reconstrutiva é compreender como a legitimidade do direito moderno pode ser ijpensada em conexão com sua forma positiva. Ao penetrar a autocompreensão |
ocurammovem em um
i
| comunicativa pela substituição de suas antigas pretensões ligadas à elaboração
I de uma ciência reconstrutiva por uma reconstrução da história da teoria. Tal
substituição parece prevalecer em ambos os momentos reconstrutivos presentes
em Direito e democracia, que se voltam abertamente a um material teórico já
disponibilizado por diversas disciplinas dedicadas à compreensão das práticas e
instituições jurídico-democráticas. Em qualquer uma das referidas etapas, pois,
nãosepodemencontrar reconstruçõesmetodológicasparaumaformaespecífica-"crítica”, por assim dizer - de produção de conhecimento com base no campo
empírico.
Contudo, algumas diferenças entre as duas obras são dignas de nota. Em
primeiro lugar, não encontramos no livro de 1992 uma primazia da teoria social,
tal como acontece em Teoria da ação comunicativa, mas um alargado universo
interdisciplinar, que se abre a uma pluralidade “certas vezes desconcertante”
de campos investigativos e perspectivas metodológicas, agregando disciplinas
e posições teóricas habitualmente desconsideradas no interior da teoria crítica.
Em segundo lugar - e talvez essa seja uma das mais importantes diferenças entre
1981 e 1992 -,o procedimento reconstrutivo deDireito e democracia não leva ao
“parasitismo”da teoria tradicional,mas,sim,auma tomadadeposiçãomaisofensivaque aprópria reconstruçãopressupõe ecorrobora. Como veremos,a apresentação
do paradigma procedimental, que condensa os desenvolvimentos de toda a obra,
consolida um momento fortemente propositivo, sendo parte de uma “ofensiva
prática” que, de alguma forma, pretende orientar ou estabelecer diretrizes para
uma novapráxis jurídico-democrática.
Além disso, em ambos os momentos, o sentido da reconstrução se coaduna
aindamelhor àquele apresentado emPara a reconstrução domaterialismohistórico:
“Toma-se uma teoria em seus elementos constitutivos e se os rearranja em nova
forma, de maneira a melhor alcançar o objetivo que ela tinha proposto a si mesma”
142 Papirus Editora Habermas e a reconstrução 143
;contidas no princípio do discurso em face das peculiaridades da forma jurídica.
Desprovidadeumaconcepção discursivaderacionalidade democrática,adogmáticajurídica alemã não teria conseguido responder a um problema por ela mesmacriado: explicar a legitimidade específica e independente do direito positivo, valedizer,explicar a “legitimidade apartir da legalidade”.Em suas vertentes idealistas,
a legitimidade jurídica é encontrada em conteúdos morais de respeito mútuo
espelhados em direitos subjetivos privados, notadamente nos âmbitos do direitocontratual, no direito de família e no direito de propriedade; de outro lado, a
legitimidadepassa a ser encontrada emumsistemabem ordenado denormas e emumahierarquiade autoridades capaz decriá-las e impô-lascoercitivamente- aqualencontra no Estado, entendido como detentor soberano do poder de sanção, sua
figura de autoridade última.Em ambos os casos, segundo o autor, tais vertentes se
afastamdaquilo mesmoquemaisbuscavam.Elasperdem devistaanormatividade
especificamente jurídica e a própria independência do direito: no primeiro caso,
o direito se submete à moralidade tradicional; no segundo, à vontade do poderconstituído.SegundoHabermas,ovínculo entrelegitimidade jurídicaeautogoverno
democrático éencontrado apenas nas elaborações dodireitoracionaldesenvolvidasno interior da filosofia política moderna. Entretanto, se a ideia de democracia já
se coloca, tanto a liberais quanto a republicanos, como chave explicativa central
da ordem jurídica, essa ideia apenas consegue ser pensada ali de modo bastantelimitado: de um lado, o autogoverno é de antemão constrangido por direitos
naturais de caráter metafísico,os quais devem ser meramente “concretizados”pelolegislador político,não estando,portanto,à sua inteiradisposição; de outro lado,a
atividadedemocráticarepresentaaexpressão das tradiçõescomunsquecompõem a
autocompreensão ética deumacomunidade,a qualdeve ser diretamente transferidaao sistema de normas legais, evitando-se tanto quanto possível os debates e as
dissidências. Emnenhum dos casos, pois, podemos dizer que a criação do direito
legítimo se encontra alojada em processos democráticos de formação coletiva da
vontade. Em ambos os casos, vale dizer, a legitimidade do direito é fundada em
conteúdos normativos de caráter pré-político (Silva 2008a).
O princípio do discurso é apresentado como o início de uma génese
normativo-conceitual que se desenvolverá ao longo de todo o capítulo terceiro.Nesse sentido, ele concentra as orientações normativas que devem conduzir a
reconstrução discursiva da legitimidade jurídica. Ao mesmo tempo, Habermaso considera ancorado em sua teoria da modernização social, na medida em que
representa a racionalidade característica de discursos práticos modernos. Assim,
ele serve também de ponto de apoio para as considerações de ordem evolutivo-
do direito em diversas de suas vias de acesso, Habermas mostra que a resposta.
a essa questão não é trivial: nela encontramos uma sucessão de partidos teóricos'em concorrência, os quais submetem um dos termos da tensão entre facticidade
e validade em benefício do outro, autorizando a interrupção das exigências de
justificação racional do discurso jurídico, seja emnome de conteúdos normativos
fixos, seja em nome do arbítrio normativamente neutralizado das instâncias
formais de tomada de decisão. A resposta de Habermas a esse descompasso é
procedimental: uma vez que o pluralismo das formas de vida modernas tende a
diluir todaordemsubstantivade convicções,remetendo cadaumde seus elementos
singulares àpossível reflexão e crítica,a legitimidade do direitonão pode repousar
no espelhamento de qualquer conteúdo normativo (de caráter ético, moral ou
pragmático) supostamente compartilhado pela comunidade jurídica nem em um
sistema de competências formais que apenas reduz a contingência das decisões
políticas, sem garantir a racionalidade de sua génese. A legitimidade do direito
será ancorada em um processo democrático institucionalizado, que sustenta a
suposiçãodeproduzir resultadosracionaisporpossibilitar uma génese deliberativa
da opinião e da vontade.
t
Onde se fundamenta a legitimidade de regras que podem ser modificadas
a qualquer momento pelo legislador político? Esta pergunta se torna
angustiante em sociedades pluralistas, nas quais as próprias éticas
coletivamente impositivas e as cosmovisões se desintegraram e onde amoral
pós-tradicionaldaconsciência,que entrou emseulugar, já não oferece uma
base capaz de substituir o direito natural, antes fundado na religião ou na
metafísica.Ora,oprocesso democrático dacriaçãododireitoconstituiaúnica
fonte pós-metafisica da legitimidade. No entanto, é preciso saber de onde
ele tira sua força legitimadora. A teoria do discurso fornece uma resposta
simples, porém inverossímil à primeira vista: o processo democrático, que
possibilitaa livre flutuação de temas e decontribuições,de informações e de
argumentos, asseguraumcaráter discursivo à formaçãopolítica da vontade,
fundamentando, dessè modo, a suposição falibilista de que os resultados
obtidos de acordo com esse procedimento são mais ou menos racionais.
(Habermas 1994a,p.662)
V
Esseprincípio democrático-procedimental seráreconstruídopor Habermas
pela conexão do princípio do discurso com a forma jurídica. E nessa “conexão”
encontramos jáumaprimeiratentativa deintegrar asposições idealistas epositivistas
arroladas no debate sobre a legitimidade do direito positivo. Nesse sentido, como
escreveoautor, trata-sedeuma“especificação” dasprofundas exigênciasnormativas
Habermas e a reconstrução 145144 Papirus Editora
sociológica que acompanham a exposição, seja na forma de remissões constantes
aos capítulos iniciais, seja no excurso sobre a especialização dos discursospráticos
que toma lugar nesse mesmo capítulo. Como princípio normativo a orientar a
génese conceituai,ele éaqui inseridocomouma tentativade superar as dificuldades
apresentadas pelas diferentes vertentes da autocompreensão do direito até então
consideradas. A pretensãomodernadederivar a legitimidadedodireitoda ideiade
autolegislação não pôde ser sustentada pela vontade comum de uma comunidade
ética homogénea nem pelo conteúdo moral intrínseco das liberdades individuais.
Para Habermas, a racionalidade observada no advento histórico de formas
discursivas pós-tradicionais permite a exposição de toda norma de ação à crítica,
exigindo sua justificação fundada em argumentos, o que torna necessária uma
radicalização daprópria ideiade autolegislação:nenhumanorma de ação pode ser
afrttada da formação discursivadavontade sobopressuposto deumconsenso ético
inicialoudedireitosorigináriosderivadosdanaturezahumana.SegundoHabermas,
a ideia de autolegislação apenas pode ser entendidaem condiçõespós-metafísicas
como a “aceitabilidade racional fundada em argumentos”, segundo a qual os
próprios destinatários podem assentir, por meio de discursos livres de coerção,
às normas que terão de obedecer. A formulação do princípio do discurso - “sãoválidas apenas as normas de ação às quais todos os possíveis atingidos pudessem
dar o seu assentimento, na qualidade de participantes de discursos racionais”(Habermas 1994a, p. 138) - concentra de maneira não exaustiva as proposições
que fornecem as bases para discursos racionais práticos, tais como a igualdade de
statusentreosparticipantes,olivremovimento de temas e contribuições,a exigência
de que todas as partes afetadas com a decisão possam concordar com ela antes
que seja considerada válida e a exigência de que tais decisões sejam realizadas na
base do melhor argumento. Os termos “normas de ação” e “discursos racionais”,
utilizados nessa formulação, não recebem as qualificações de nenhuma forma
específica de discurso prático,deixando claro que oprincípio do discurso é válido
para discursos racionais e normas de ação “em geral”. Com isso, ele apresenta
orientações normativas neutras em relação ao direito e à moral, permitindo uma
distinção não subordinada entre eles (Melo 201la;Silva 2010).
Como já dito, a especificação do princípio da democracia em relação aos
discursos práticos em geral é realizada em consideração a certas característicaspeculiaresàformamodernadeinstitucionalização jurídica,entreasquais se destacama formacoercitiva deregulação dascondutase a estrutura reflexivadeumprocesso
jurídicoque estabelece “regrasparaageração deregras”. SegundoHabermas,essas
determinações da forma jurídicanão sãoparte deuma“fundamentaçãonormativa
do direito”, mas de uma “explicação funcional” sobre a diferenciação históricaentre direito e moral,bem documentada pela tradição de pensamento positivista(Habermas 1994a,p. 143). Ao pensarmos o direito como uma forma específica de“discurso racional prático” - vale dizer, ao considerarmos a referida “conexão”da forma jurídica com o princípio do discurso -, tais determinações formaisassumem um sentido novo, o qual escapa, entretanto, ao próprio positivismo.Habermas inscreve a forma coercitiva de regulação das condutas em sua teoriada evolução social, apresentando-a como elemento constitutivo do desbloqueiomoderno dos potenciais comunicativos: quando as exigências jurídicas passam ase dirigir ao comportamento dosdestinatários, sua validade, compreendida comoaceitação no campo das convicções internas, desliga-se da simples facticidade desua imposição externa,passando apoder ser questionadasmesmopor aqueles queas cumpremformalmente.Assim,odireitopositivomodernocolocariaàdisposiçãodo destinatário uma escolha sobre a perspectiva de cumprimento da norma: elaspassam a poder ser cumpridas como meras delimitações factuais presentes noleque de dados do ator que age estrategicamente, atuando como uma força queo induz a adaptar objetivamente seu comportamento em face de uma ameaça desanção ou como uma força social integradorapara o ator que age pela convicçãode sua aceitabilidade, a qual só é possível segundo a sustentação intersubjetivade suas pretensões de validade. Por umlado, essa dupla perspectiva estabiliza asexpectativas de comportamento por meio de sanções e, por outro, possibilita aexposição de normas e valores ao exame crítico (ibid.,p. 50 ss.). E para que nãoanule aracionalidadecomunicativarepresentadapeloprincípiododiscurso,aformacoercitiva não deve atingir o campo dos motivos pessoais, mantendo-se limitadaao âmbito do comportamento externo: “O direito legítimo só se coadunatipo de coerção jurídicaque salvaguarda osmotivos racionaispara a obediência aodireito. O direito positivo não pode obrigar os destinatários a isso” (ibid.,p. 154).
a um
Algo similar se dáemrelação àreflexividadede suas formas dereprodução.ParaHabermas,a especialização do direitomoderno cumpreumpapel importantena diluição das eticidades tradicionais ao afirmar, como critério para a legalidadede imperativos práticos, sua inscrição em um sistema de normas criado segundoum procedimento legal autoconstituído. A partir das primeiras codificaçõesmodernas, “valem como direito as normas produzidas segundo umprocedimentojuridicamente válido”, as quais passam a ser vistas como construções artificiais,vigentes provisoriamente até o momento que venham a ser derrogadas segundoprevisões do próprio procedimento que as criou, afastando-se, com isso, a “forçade direito” e o “caráter de eternidade” reclamados por mandamentos sagrados
146 Papirns Editora Habermas e a reconstrução 147
(ibid., p. 47). O positivismo jurídico, entretanto, interpreta a reflexividade do
direito moderno simplesmente como “autorreferência”. Ele ressalta os critérios
procedimentaisparaaproduçãodedireitoválido,masreduz todaanormatividadedo
procedimento à mera segurança de suasprevisões organizacionais.ParaHabermas,
a reflexividade do direito moderno - entendida como a exigência de legitimação
do direito com base em um procedimento juridicamente constituído - apenas
assume um sentido não tautológico quando unida às exigências de um discurso
racional prático; vale dizer, quando o procedimento vinculado à legitimidade do
direito é enxergado comoumprocedimento discursivo quepermitaaaceitabilidade
racional de seus resultados. Assim,não é a própria forma reflexiva do direito que
promove sua legitimidade, mas o preenchimento de seus espaços vazios segundo
a autodeterminação democrática dos cidadãos (Melo 2005).
A apresentação do “princípio da democracia” privilegia justamente essa
conexão da forma reflexiva do direito moderno com as orientações normativas de
discursos racionais práticos. Em sua formulação mais destacada, lê-se: “Só podem
pretender validadelegítima as leis jurídicas capazes de encontrar o assentimento de
todososparceirosdodireitopormeio deumprocesso discursivo deestabelecimento
do direito constituído juridicamente” (Habermas 1994a, p. 141). Vemos assim
concluído o primeiro - e talvez mais representativo - percurso de reconstrução da
tensão entre facticidade e validade quehabitaaautocompreensão do direito. Contra
as posições idealistas, o princípio da democracia afasta a “carga de legitimação
jurídica” de todo conteúdo normativo prévio à génese dos direitos, apresentando-
nos um critério estritamenteprocedimental. Contra os positivistas, entretanto, esse
procedimento não é neutralizado normativamente em nome da autorreferência do
sistemadedireitos,masassumeumcaráter discursivo,vinculadoàautodeterminação
democrática da comunidade jurídica. Por ser procedimental, isenta de conteúdos
fixos, a legitimidade do direito não se completa sem a ativação desse procedimento
por meio do exercido da autodeterminação democrática.E aqui é importantenotar
que o princípio da democracia incorpora as orientações normativas exigentes do
princípiodo discurso ao estabelecer aaberturadoprocedimento a todosos membros
dacomunidade jurídicainteressadosanele tomaremparte.Essacondiçãonormativa
exigenteafastaapossibilidadedearacionalidadediscursivaseexercer exclusivamente
pelo círculo reduzido de autoridades competentes, no interior de suas instâncias
decisórias formais. Se esse procedimento se constitui juridicamente, ele não se
reduz ao discurso hermético dosoperadores do direito. Já aqui,pois,vemos que esse
procedimentoanuncia anecessidadede se ancorar emumtipodepráxisdemocrática
que extrapola os limites do discurso jurídico oficial.
O surgimento da legitimidade a partir da legalidade não é paradoxal, a
não ser para os que partem da premissa de que o sistema do direito tem deser representado como um processo circular que se fecha recursivamente,
legitimando a si mesmo. A isso, opõe-se a evidência de que as instituiçõesjurídicas da liberdade decompõem-se quando inexistem iniciativas deuma população acostumada à liberdade. (...) A compreensão discursiva dosistema de direitos conduz o olhar para dois lados: de um lado, a carga delegitimação danormatização jurídicadas qualificaçõesdoscidadãos desloca-se para os procedimentos discursivos de formação da opinião e da vontadeinstitucionalizados juridicamente.Deoutrolado,a juridificaçãodaliberdadecomunicativa significa também que o direito é levado a explorar fontes delegitimação das quais ele não pode dispor. (Ibid.,p. 165)
*A reconstrução da autocompreensão do direito não se ocupa apenas doprincípio da legitimidade democrática, mas de pelo menos quatro outros temas
a ele relacionados: o sistema de direitos, o exercício do poder político, a lógicajurisdicional de aplicação normativa e a separação de poderes. E em cada um
deles encontramos um movimento bastante similar àquele até aqui considerado:a concorrência de partidos que apresentam leituras parciais do direito moderno e
ummodo procedimental de superar suas limitações, recompondo a ambivalênciadodireitopor meio da integração deintuiçõesnormativas epositivistasunilaterais.Em cada um desses passos vemos a ideia de procedimento se alargar, tanto noque se refere aos diferentes momentos dapráxis jurídica quanto a suas exigênciasde racionalização do discurso jurídico. E em todos eles, vale insistir, vemos as
exigênciasdelegitimaçãonosremeteremaprocessosdeliberativosque transcendemos discursos herméticos dos operadores do direito, incluindo a possibilidade departicipação da comunidade jurídica em seu todo. Isso é feito não apenas em
relaçãoaoprocessolegislativo de criação dos direitos queconfiguramas autonomias
pública e privada - os quais vinculam o autoesclarecimento dos cidadãos acerca
de suas necessidades e seus espaços de ação, superando, portanto, os debatesestritamente parlamentares - quanto em relação à aplicação do direito pelasinstâncias administrativas e jurisdicionais - as quais, apesar de suas competênciastécnico-formais e da especificidade de suas formas discursivas, têm suas decisõessubmetidas à justificação pública. Ao longo de toda a reconstrução interna, pois,
vemosreafirmadaainsuficiênciade osdebatescircunscritos às instâncias formais detomada de decisão cumprirem sozinhos as exigências de uma formação discursivadaopiniãoedavontade,havendo anecessidadede semanteremporosos aprocessosdeliberativos mais densos e plurais, os quais tomam lugar à margem de suasfronteiras institucionais; vale dizer, de se conectarem às fontes “quase anárquicas”
-V
148 Papirus Editora Habermas e a reconstrução 149
jurídica centrada nos processos formais de tomada de decisão, mas deve contar
com fontes de legitimidade que a obriguem a se abrir aos fluxos comunicativos
que emergem da sociedade civil. Esse tipo depolítica deliberativa - que extrapolaos limites do direito - não pode ser plenamente abarcado por disciplinas quetrabalham a tensão entre facticidade e validade “no âmago do próprio direito”.As reconstruções internas até aqui operadas são, pois, incapazes de verificar seuformato, suas constrições sistémicas e suas condições maishabituais de exercício.Trata-se de considerar agora as disciplinas voltadas à compreensão dos processospolíticos reais, procurando reconstruir a tensão entre demandas sociais geradasdeliberativamente e os modos rotineiros de funcionamento do sistema político.
de uma esfera pública que não se deixa inteiramente organizar. Fiquemos aqui
apenas com um trecho representativo:
Todos os membros tém de poder tomar parte no discurso, mesmo que os
modos sejam diferentes. Cada um deve ter basicamente as mesmas chances
de tomar posição,dizendo“sim”ou“não”a todososproferimentosrelevantes.
Por isso, esses discursos, que por razões técnicas têm de ser conduzidos
representativamente, não podem ser interpretados segundo o modelo
do lugar-tenente, pois eles constituem apenas o foco ou ponto central da
uma esfera pública geral, não organizável.circulação comunicativa de
A participação simétrica de todos os membros exige que os discursos
conduzidos representativamente sejam porosos e sensíveis aos estímulos,
temas econtribuições,informaçõeseargumentos fornecidospor umaesfera
pública pluralista, próxima à base social e estruturada discursivamente.A criação legítima do direito depende de condições exigentes, derivadasdos processos e pressupostos da comunicação, onde a razão, que instaura e
examina, assume uma figura procedimental. Contudo,não expliquei comoesse conceito procedimental, repleto de idealizações, pode se relacionarcom pesquisas empíricas, as quais entendem a política como uma arenana qual se desenrolam processos de poder, e a analisam levando em conta
controvérsias estratégicas guiadaspor interesses oupor operações sistémicas.(...) Até o momento, adotamos a linha de uma teoria do direito que discutea tensão entre facticidade e validade no âmago do próprio direito. Naspáginas seguintes, tomaremos como tema a tensão externa entre facticidadee validade,ou seja, a tensão entre a autocompreensão normativa do Estadodemocrático de direito, explicitada pela teoria do discurso, e a facticidadesocial dos processos políticos. (Ibid.,pp. 349-350)
(Ibid.,p. 224)
Habermas inicia a reconstrução externa fazendo justamente referência
ao caráter extremamente exigente das condições de legitimidade desenvolvidas
até então. E para ele, cumpre agora submeter sua concepção procedimental de
democracia a um “teste empírico”, procurando “confrontá-la com a realidade
de sociedades altamente complexas” (ibid., p. 350). Como o próprio autor diz,
essa confrontação não se opera nos moldes de uma “contraposição entre ideal
e realidade”. Com efeito, a autocompreensão do direito já foi reconstruída
atenção a seus contextos de surgimento; quer dizer, ela vem acompanhada de
considerações constantes acercadasespecificidadesda formajurídicaedosdiscursos
práticosmodernos.Cabemencionar ainda que temosnaprimeirapartedo quarto
capítulo uma longa análise acerca da conexão entre direito e poder político que
pretendeaprofundaroenraizamentohistóricodágéneseconceituai,aqualparteda
resoluçãodeconflitospormeio depráticasconvencionais dearbitragem e termina
naconsolidação do poder organizado pelo Estado de direito. Nesse sentido,não é
casual que os critérios idealizantes das reconstruções iniciais venham a se revelar
“inscritos”,aindaque“parcialmente”,na facticidadedosprocessospolíticosa serem
consideradosapartir de agora.Contudo,independentementedograudeadequação
dessas formas prévias de enraizamento, o próprio autor não as considera nesse
momento suficientes, e isso porque elas se encontram marcadas pelas limitações
características das disciplinas endógenas reconstruídas até então. Com efeito, em
todos ospassosdareconstruçãointerna,fomoslevados a compreender quea fonte
delegitimidadedemocráticanão se esgotanos discursos esotéricos deumaprática
em
Do ponto de vista da estratégia reconstrutiva, os capítulos sete e oito deDireito edemocracia apresentam traços peculiares. A reconstrução externaimplica,em primeiro lugar, reconstruir a trajetória das teorias realistas, a fim de permitirsua crítica imanente, ou seja, mostrar que elas não conseguem explicar aquilomesmo quepretendem,uma vez que desconsideram a génese das ações,dos temas
e dos interesses que habitam a esfera pública. Para Habermas, os realistas não
somente naturalizam a relação entre grupos sociais e seus interesses específicoscomo, além disso, ignoram a parte mais relevante dos processos políticos reais: as
possibilidades de inverter o fluxo dopoder e transformar aprópria esfera públicapolítica.Por outrolado,asvertentes idealistas da democraciadeliberativaignorama dimensão sistémica.Não nos dão o aparato conceituai adequado para fazermosas “pontes” teóricas com o material empírico. Ao mesmo tempo, Habermas vai
se valer de.estudos empíricos que apontam para a existência de influências dos
Habermas e a reconstrução 151150 Papirus Editora
intersubjetivasdeaceitabilidadedenormasnosprocessospolíticos seriam anteriores
às (e determinantes das) orientações maximizadoras e egoístas. Nesse sentido, os
critériosdevalidadecomquese operao jogopolíticoacabamintroduzindo,navisão
doautor,umanovaconcepçãonormativapressupostapara acoordenação das ações.
Todo acordoproduzidoargumentativamente-mesmo entre ações estratégicas quese entrecruzam em mecanismos de barganhas - tem de se apoiar em argumentos
capazes deconvencer ospartidos.ParaHabermas,oqueasseguraria a formação doacordo seria o procedimento democrático em que as negociações se realizassem,
o que exigiria, portanto, que as estratégias de negociação e barganha estivessem
atreladas aos mecanismos equitativos de formação da opinião e da vontade.
Dessa forma, os próprios modelos realistas permitiriam a localizaçãode pretensões normativas que perpassassem suas descrições empiricamente
fundamentadas. Tais pretensões normativas precisam ser reconstruídas por um
modelo mais abrangente, que seja capaz de apontar a parcialidade do realismopolítico, bem como seus pressupostos não explicitados. Habermas não pretendeexcluir da compreensão dos processos políticos estudados a dimensão estratégicaque os constitui, porquanto as ações voltadas ao sucesso descrevem uma parte
bem considerável do jogo político.Mas,para além disso, a concepção deliberativade política permite reconhecer que as idealizações de equidade do jogo e delegitimidade das decisões estão presentes nas disputas estratégicas guiadas porinteresses. O importante a ser sublinhado é que, de um ponto de vista apenasempírico, não seria possível reconstruir as razões que os cidadãos assumem na
própria facticidade dos processos políticos. Por haver um sentido normativo
presente em todas as práticas e compreensões intuitivas de democracia, mesmo
naquelasprivilegiadaspelas abordagensrealistas,o jogopolítico,quandopretendeser descritoempiricamente,nãopoderia ser compreendido demodo adequado sem
a consideração do ponto de vista da legitimidade.
Habermas, entretanto, não pretende fazer a crítica das teorias realistas
apenas indicando seuspressupostosnormativosnãoexplicitados,mascombatendo,
sobretudo, o diagnóstico compartilhado que aponta para o completo fechamento
do sistema político institucional aos fluxos comunicativos oriundos da sociedadecivil. Importante dizer que o autor não recusa esse diagnóstico integralmente. A
crítica se impõeaquiessencialmenteao caráter limitadodeseuuniverso explicativo.Ao procurar neutralizar qualquer referência normativa em sua caracterização dosistemapolítico,a teoria dos sistemas recairia em profundas falhas descritivas: ela
falharia justamenteemperceber anormatividade que acompanhao funcionamentodosprocessos democráticos,namedida em queseinstauram segundo omediumdo
fluxos comunicativos informais na política oficial. Sua incorporação, entretanto,
não é imediata: mesmo esses estudos têm de ser reconstruídos, isto é, integrados a
uma compreensão mais ampla de política deliberativa,pois, quando se reconstrói
o núcleo racional das pesquisas empíricas efetuadas por diferentes vertentes da
sociologia dademocracia,percebemos que os dados coletados não são casuais,mas
possibilidades estruturalmente geradas pela conexão entre o direito e o sistema
político,aproveitadas conjunturalmente por movimentos políticos insurgentes.
A passagem da reconstrução interna para a externa implica uma
relação com pesquisas empíricas que descrevem a dinâmica política como
processos de concorrência pelo poder, caracterizados, seja como barganhas e
negociações estratégicas guiadas por interesses, seja como operações sistémicas
autorreferenciadas. A recomposição da tensão entre facticidade e validade requer
aqui que sejam investigados fragmentos e partículas de uma “razão existente”,
pressupostos no jogo político e nos processos de circulação do poder. Em outros
termos, recusando ameracontraposição entre ideal e realidade,Habermas precisa
mostrar queo conteúdonormativo já evidenciado na reconstrução interna está de
algum modo presente na facticidade daqueles processos sociais observados pelas
abordagens sociológicas da democracia, pois nem mesmo as teorias empíricas,
apoiadasnaobjetividadede suas investigações,poderiamcumprir suas pretensões
descritivas sem considerar a força legitimadora da génese democrática do direito
(Melo201lb;Silva2010).Maisumavez,areconstruçãopareceservirparaevidenciar
a posição parcial representada pelas teorias tradicionais - nesse caso,mostrar que
tambémhá uma tensão entre a autocompreensão normativa do Estado de direito
explicitadapela teoriado discurso e a facticidade social dos processos políticos.
Para o autor, o “derrotismo normativo” no qual desembocam as várias
versões da sociologia política parece ser menos fruto de evidências concretas do
quedo“uso de estratégiasconceituais falsas” (Habermas 1994a,p.400).Opretenso
realismo normativamente neutro sugere, por um lado, que somente podem ser
descritos empiricamente os comportamentos de indivíduos e grupos que ajam
estrategicamente; por outro lado, os realistas parecem selecionar de antemão o
campo dos processos passíveis de serem descritos empiricamente, criando uma
falsa correlação necessária entre realidade política e ações estratégicas. Para
Habermas, ao lado de uma ação estratégica - dirigidapelas preferências e voltada
ao sucesso - teríamos depressupor tambémuma ação reguladapor normas, já que
ninguémconseguiriautilizar estrategicamentenormas semsupor oreconhecimento
intersubjetivo das mesmas. E tal pressuposição precederia os comportamentos
estratégicos de um ponto de vista tanto lógico como sociológico: as condições
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Habermas e a reconstrução 153152 Papirus Editora
direito.Odiagnósticorealista seriaparcial,namedida em quedesconsidera formas
de resistência à autoprogramação do sistema político, as quais são encontradas
pelo autor em práticas de desobediência civil, na proliferação de movimentos
sociais e, fundamentalmente, na constituição de esferas públicas independentes
da agenda política oficial.Embora tais formas deresistência sejam com frequência
obliteradaspelo exercidorotineirodopoderburocrático,elasnão são consideradas
por Habermas focos isolados ou casuais. Com efeito, o caráter ambivalente do
direito moderno, apresentado na reconstrução interna nos termos de uma tensão
entre a positividade da norma e suas exigências de legitimidade, permite que ele
seja apresentado aquicomoum mediador entre as operações do sistemapolítico e
os fluxos comunicativos oriundos do mundo da vida. Para Habermas, quando os
sistemasde ação institucionalizamjuridicamentesuas estruturas de funcionamento,
eles assumem, mesmo que a contragosto, as expectativas normativas vinculadas
ao medium do direito, as quais os obrigam a se abrir a exigências de legitimidadeveiculadas na linguagemnão especializada domundo da vida (Silva 2010). Assim,
amencionadaresistênciaàautoprogramaçãoburocráticado sistemapolíticopodeser apresentada como uma contratendência da formação política da vontade que
parte da sociedade em direção ao Estado, possibilitada pela interligação mesma
entre o poder político e a génese dèmocrática do direito.
liberal e republicano,Habermas diz que ambos seriamainda incapazes de superar
os deficit acumulados até aqui: além de se sustentarempor meio de premissas não
comprovadas da filosofia do sujeito, tais modelos estariam ainda presos a uma
compreensão da política centrada no Estado. Com efeito, tanto a compreensãoda política como uma disputa acerca de ‘normas constitucionais” (as quais“disciplinam” o poder do Estado) quanto aquela que a defende como a realizaçãodos “objetivos coletivos” de uma sociedadepolítica (a qualpretende se “apropriardopoderburocratizadodoEstado”) teriamseucampodeanáliselimitado,defensivaou ofensivamente, à política institucional Tais modelos, pois, caracterizariam a
políticapor meio de demandas específicas levadas ao aparato estatal (de umlado,
obem comum de uma comunidade eticamente homogénea e,de outro,aproteçãode interesses eticamenteneutralizada na forma de competências constitucionais),
deixandodelado a análise sobre as condições e osbloqueiospara que tais demandas
sejam formuladas livremente entre os cidadãos. Em suma, os modelos liberal e
republicano seriam ainda incapazes de abarcar os processos sociais de formaçãopolítica da vontade,nos quais os temas, as posições e os próprios atores coletivos
seriam constituídos deliberativamente em esferas públicas situadas à margem do
sistema político.
Como dito, Habermas não descarta em bloco o diagnóstico realista queaponta tendências à autonomização do poder administrativo. Suarecusa se deve a
totalizações indevidas acerca do funcionamento habitual do sistema político,que
obliteram tendências opostas possibilitadas pela própria conexão entre o sistema
político e o medium do direito. Para Habermas, é na avaliação mesma dessas
possibilidades querepousa“o sentido crítico deuma sociologia dademocracia quetrabalha demodoreconstrutivo”,aqualprocura ser desenvolvida àluzdos estudosdeBernhardPeters (1993).Oautor descrevea formaçãopolítica da vontade segundoum modelo que distingue “centro” e “periferia”. Segundo essa caracterização, o
centro do sistema político é composto por instituições decisórias que permitem
umaredução significativadacomplexidade das deliberaçõespúblicas (emrazão de
uma seleção autorizadados temas e deuma divisão internado trabalho organizadasegundo competênciaslegais) e imprimem facticidade aosresultados da deliberaçãopor meio da coerção estatal. A periferia, por sua vez, seria composta por fluxoscomunicativos não institucionalizados, capazes de captar os problemas sociais
com a sensibilidade e a linguagem específica dos próprios atingidos, articulá-losfora das estruturas governamentais e inseri-losnapautadas deliberações políticasinstitucionalizadas. Não é a mera diferenciação entre centro e periferia queinteressa particularmente a Habermas, mas, sim, as análises de Peters sobre as
»
*
Parece que o saber regulatório requerido já não consegue penetrar nas
capilares de um processo de comunicação entrelaçado horizontalmente,aberto osmoticamente e organizado de modo igualitário. Tais evidências,
porém,não devem fazer esquecer a circunstância de que o desacoplamentoda regulação política doprocessoparlamentar eaemigração dos temasparafora das arenas públicas não acontecem sem resistência. Pouco importam a
versão eo tipodeconstelação:a questão democráticasempreconsegueentrar
naagenda.(...) Separtirmosdapremissadequeosentidoprópriodomediumdo direito, com o qual se liga intemamente o poder político, força-nos a
admitir uma génese democrática do direito, veremos que essas tendências
opostas não acontecempor acaso. (Habermas 1994a,p. 389)
Segundo Habermas, a tentativa de superar as limitações dos modelosrealistas em perceber os “freios normativos” à autoprogramação sistémica dosprocessos políticos exigiria uma passagem às teorias normativas da democracia,
pois teríamos de recorrer a modelos normativospara reconstruir adequadamentearelação entrenormaerealidadepressupostanaestratégia empirista de descrição.Entretanto,ao considerar os debates contemporâneosentre osmodelosnormativos
154 Papirus Editora Habermas e a reconstrução 155
possibilidades observadas de inverter o fluxo de poder na direção não habitual da
periferia ao centro; vale dizer, de romper com o funcionamento normalizante do
sistema político em nome de “impulsos renovadores provenientes da periferia”.
Segundo Peters, a rotina de funcionamento do sistema político é marcada por
processos endógenos operacionalizados pelos códigosprópriosda administração,
da justiça e do parlamento. Em seumodo rotineiro de operar, o centro da política
não apenas se fechacontra impulsosvindos de foracomo tambémvicia aspróprias
estruturas periféricas de formação da opinião com sua agenda pré-fabricada de
problemas,imprimindouma direção centrífuga aos fluxos de formaçãodopoder. A
formaçãopolíticadavontadeapenas toma a direção quepartedaperiferiaaocentro
em casos excepcionais, marcados por crises de legitimidade do sistema político.
Em momentos de crise, pois, a legitimidade das decisões do centro da política se
toma débil, ainda que essas decisões sejam tomadas de acordo com competências
formalmente atribuídas. E embora tais crises sejam internas ao sistema político,
as investigações de Peters apontam para a possibilidade de serem “geradas” pela
periferia e “aproveitadas” por ela para a incursão de seus fluxos comunicativos
próprios.
Oparadigma procedimental
O último capítulo de Direito e democracia é dedicado à reconstrução dosparadigmas jurídicos,vale dizer,às representações sociais que orientam aprática de
criação e aplicaçãonormativapelos operadores dodireito,permitindo,pois,acessar
os laçosdesentido observados entre “o sistema jurídico e seuambiente social”.Essa
ambivalênciadacategoria,por suavez, tornapossívelconectar os desenvolvimentoslevados a cabo em ambos os momentos reconstrutivos trabalhados na obra. Nesse
sentido, o autor escreve já em seuprefácio que “oúltimo capítulo tenta reagruparas considerações sobre teoria do direito e sobre teoria da sociedade, servindo-sedo paradigma jurídico procedimental” (Habermas 1994a,p. 10; Araújo 2010, pp.128-136).
Segundo Habermas, os paradigmas liberal e do Estado social, apresentados
como paradigmas historicamente vigentes, são considerados demasiadamente“concretistas” tanto no que se refere à compreensão dos aspectos da vida social
merecedores de tratamento jurídicoquanto às formasregulatóriasmais adequadas a
cada caso. Vale dizer,os dois sepautamemconcepções substantivas do capitalismoindustrial, as quais perenizam suas formas jurídico-institucionais e limitam a
inclusão de novos problemas e demandas. O trabalho reconstrutivo é dirigidoaqui à procedimentalização de ambos os termos que constituem um paradigmajurídico. Nesse processo, encontramos a rememoração de diferentes resultadosdas reconstruções anteriores. Por um lado, o paradigma procedimental não
determinaumnovomodelo substantivo de sociedadea substituir aquelespresentes
nos paradigmas anteriores, mas exige que as instituições jurídicas se mantenham
reflexivamente abertas àsnovaspercepções darealidade socialgeradasnosprocessos
deliberativos de formação da consciência e da vontade. Por outro, ele não opera a
fixação deummodelo jurídico substantivo a ser aplicado àsnovas demandas sociais.
Seu distanciamento em relação à dogmática dos paradigmas anteriores se situa
no desbloqueio das possibilidades de normatização jurídica e em sua submissãoa processos decisórios públicos e argumentativamente motivados, permitindoum exercício contínuo de reelaboração institucional que tem por horizonte a
configuração simultânea das autonomias pública e privada (1994a,p. 494).
Entretanto, se Habermas diz que o paradigma procedimental permite
“reagrupar” ambas as linhas de análise desenvolvidas ao longo do livro, ele não
é uma mera coletânea de seus resultados. O cruzamento da reconstrução dodireito com os desenvolvimentos de sua sociologia reconstrutiva da democracia
i
A reconstrução externa, portanto, traduz em termos sociológicos a
ideia da democracia, ou melhor, reconstrói com os meios de uma teoria do
discurso as condições para uma regulamentação jurídica da circulação do poder
em sociedades complexas. Para entender tais condições do ponto de vista da
legitimidade, Habermas explica como as decisões impositivas são reguladas por
fluxoscomunicativos quepartemdaperiferiae podem atravessar as comportas dos
procedimentospróprias dademocraciaedoEstado de direito.Ointuitomais geral
consiste,assim,emevidenciar omodo como oconteúdonormativo abordadopela
reconstruçãointerna é tratadoparcialmentenas teorias sociológicasdademocracia.
Emoutraspalavras,a reconstrução externapermite identificar naspráticas sociais
e nos processos políticos observáveis aquelas condições procedimentais exigentes
da aceitabilidade racional sem deixar de vincular as idealizações figuradas nos
procedimentosdeliberativoscomprocessosdepoder,ações estratégicas eoperações
sistémicas.6
6. Segundo Peters, essa vinculação entredimensõesempíricas enormativasconstituia tarefa de
um‘funcionalismoreconstrutivo’ (Peters 1993,p.396).Essa perspectivamais “sociológica”
paraabordar a tensão entre facticidade e validade épressuposta pelo autor também em sua
critica ao método procedimental presente em Direito e democracia (idem).
156 Papirus Editora Habermas e a reconstrução 157
constitucional e da efetivação do sistema de direitos"
gera transformações significativas nas categorias normativas iniciais. Essas
transformações podem ser notadas,por exemplo,nas reelaborações da autonomia
operadas no último capítulo; a autonomia, depois de confrontada com elementos
trazidos da “realidade das sociedades complexas contemporâneas”, passa a
incorporar em seu conceito uma disputa democraticamente mediada sobre o
sentido da igualdade contida no postulado de “iguais direitos subjetivos entre
todos” (Silva 2010). Para os objetivos deste capítulo, entretanto, cabe ressaltar
outro tipo de acréscimo. A reconstrução aqui operada não é uma mera resposta
à história da teoria. O procedimentalismo se apresentou, ao longo de todo o
livro, como o modo de escapar à unilateralidade de diversas disciplinas voltadas
à compreensão do Estado democrático de direito, ou seja, como uma resposta
à necessidade teórica de combinar diversos partidosém conflito, defendendo a
complementaridadede suas intuições inacabadas. Quando aprocedimentalizaçãose jj dirigeàspré-concepçõesparadigmáticas envolvidasnapráticadecriaçãoeaplicaçãoI
normativa, ela passa a ganhar uma relação com apráxis jurídico-democrática sem
paralelo nos capítulos anteriores. Nesse momento, é a própria teoria que passa a
estabelecer uma relação de complementaridade com a prática,na medida em que
elabora intuições procedimentais inacabadas de vertentes da dogmática juridical
que se veem encurraladas entre as críticas direcionadas ao paradigma do Estado,1
social e a recusa a umretrocesso neoliberal.Omaior “acréscimo” operado aqui é,!(pois, a consciência de que toda a reconstrução teórica levada a cabo ao longo da
obra se considera então dirigida àpráxisdiscursiva: “À medidaqueateoriaem seu 1todo estabelece uma relação com a práxis, ela visa, segundo declaro na conclusão sdo livro, a uma mudança da compreensão falível, em cujo horizonte não apenas !
os especialistas em direito, mas também os cidadãos e seus políticos participam j
. do processo de interpretação constitucionale da efetivação do sistema dedireitos”
(Habermas 1994a,p. 375).
, Essa nova relação entre teoria e prática,mais próxima de uma colaboração
mútua, não é enxergada como imposição teórica, mas como uma exigência
prática já identificada no próprio campo da dogmática jurídica; vale dizer, como
;um movimento espontâneo de reflexão da práxis jurídico-democrática acerca de í
Iseus pressupostos substantivos implícitos, os quais se tornam crescentemente ji questionados com a disputa de paradigmas. Para Habermas, a concorrência de \paradigmas fez com que a compreensão social deixasse de ser um pressuposto
encobertonoâmbitodoraciocínio jurídico, tomando-se focodeumdebateexplícito
que incorpora conhecimentos das ciências sociais. Ora, a doutrina e a prática do
direito tomaram consciência de que, se existe uma teoria social que serve como
pano de fundo dahistória dos processos vinculados ao direito,o discurso jurídiconão pode se furtar à justificação do modelo social em que se ancora. Uma vez quea compreensão paradigmática do direito já não pode ignorar o saber orientadorque funciona de modo latente, tem de desafiá-lo para uma justificação autocrítica(ibid.,pp. 473-474).
Habermasapresenta osdiferentesmodosdecomoadoutrinapassaapensaressa relaçãoentre teoriaeprática.Na argumentação deH.Steiner eF.Kúbler,umarelação interdisciplinar com as ciências sociais seria necessária para que a práticajurídicapudesseobteruma“descriçãomais adequadadas sociedades complexas” e,
na divisão de trabalho entre elas,a teoria receberia a função deproduzir umanovasíntese das convicções substantivas explicitadas pelos juízes acerca da sociedade,contribuindo, por seu turno, para a condução futura das práticas jurídico-democráticas. Habermas comenta que, segundo esses autores,
! parecequeumarelaçãointerdisciplinar comasciências sociaisseriasuficientepara se filtrar criticamente a função reguladora “das representações dosjuízes, aquisintetizadasno conceito de teoria”,e desenvolver,apartir daí,umacompreensãoparadigmáticado direitocompretensões teóricas.Segundo esta
linha de interpretação,onovo paradigma deve resultar deumesclarecimentojurídico e teórico-social das teorias “naturais” adotadas pelos juízes e estar
em condições de assumir a forma de uma teoria “como síntese de convicçõescomuns acerca do fluxo dos processos sociais” (...). Tal teoria teria “caráter deinjunção,pois ela determinaria de quemodo aleié entendida einterpretada,eestabeleceriaolocal,adireçãoeaabrangêncianaqualodireito, fixadona formadeleis,pode ser completado emodificado através da doutrinaedo direitodosjuízes; isso equivale a dizer que a teoriacarregaparteda responsabilidadepelofuturo daexistência social”. (Habermas 1994a,pp. 474-475)
:
Habermas encontrana obradeL.M.Friedmanumdeslocamento adequadoda elaboração teórica para as representações sociais da “totalidade dos cidadãos”,abandonando, dessa forma, o foco estritamente limitado do discurso dos juízes.Entretanto, ainda aqui veríamos presente a expectativa de uma nova sínteseobjetiva das representações comuns acerca do direito e da sociedade, alojadasem uma “cultura jurídica” que perpassa toda a população. Para Habermas,posição substancialista não apenas atribui um papel extremamente pretensioso àteoria,comonãoleva devidamenteemcontaquepartedoproblemaqueprocuramresponder éconstituído justamentepela inexistênciadaquilo quepressupõe em suaresposta, a saber,um consenso atual acerca das compreensões paradigmáticas do
essa
158 Papirus Editora Habermas e a reconstrução 159
direito. Vale dizer, ela “se esquece de que já é notória a concorrência entre os dois
paradigmas que se tornaram problemáticos” (ibid.,p. 476).
Ao longo do capítulo, Habermas apresenta diversas tentativas teóricas,
elaboradasno seiodadogmática jurídica,deencontrarumaalternativaaosparadigmas
vigentes por meio de projetos regulatórios que façam jus a uma compreensão
procedimentalistadodireito.Taisprojetosprocurariam,emsuamaiorparte,reduzir
oumesmoretirar ascompetênciasde criação e aplicação de normas substantivas das
instâncias estatais de tomada de decisão, acomodando-se a uma ideia de “direito
reflexivo”quepudesseampliar aspossibilidadesdedecisão eautogestão dospróprios
sujeitos de direito - pela via da expansão das ações processuais (Hàberle) ou pela
delegação de competências diretas para a “autogeração de normas” (Wiethõlter,
JoergeseGriiggemeier).Habermasconsiderataispropostas como tentativasprofícuas
em si mesmas de combater as cristalizações sociais indevidas, fazendo uso demeios
que buscam fortalecer o “status positivo” da autonomia jurídica (ibid., p. 496).
Entretanto, elas não seriam ainda capazes de atender ao paradigma procedimental
emseusentidopleno.Comefeito,odireito reflexivo seopõeaoparadigmadoEstado
social,namedidaem que opera uma “desmaterialização”do direitono âmbito dalei
edosprogramasestatais,promovendo aestruturaçãodeprocessosautorregulatórios
que deslocam a normatização de contextos sociais específicos às próprias partes
envolvidas no processo. Para Habermas, isso o caracterizaria como uma estratégia
regulatória específica,aqual já se vincula à determinação das categorias de direitos,
quedeveriaser cumpridapelospróprioscidadãos.Dessamaneira,aindaquepossavir
aser eleitapelos cidadãosparaaregulação desituações econtextossociaisespecíficos,
sua fixação teórica como um “substituto” do direito materialnão seria adequada ao
paradigmaprocedimental,paraoqualocampodeopçõesregulatóriasdeve semanter
procedimentalmente aberto:
Para Habermas, pois, a teoria não tem o papel de determinar qualquerdos componentes que constituem um paradigma jurídico, seja a compreensãosocial a orientar os raciocínios jurídicos, seja o tipo regulatório a ser aplicado acada caso. Nesse sentido,é significativo queencontre em certos desenvolvimentosdo feminismo contemporâneo - selecionados segundo os interesses teóricos emcausa- asintuiçõesmaisbemacabadasdeumnovomodeloprocedimental.Segundoo autor, a reflexão feminista contemporânea teria se esforçado continuamenteem identificar no discurso jurídico e em suas formas institucionais cristalizaçõesindevidas acerca da “identidade dos gêneros” e da “divisão sexual do trabalho”.Entretanto,emvez deumaredefinição substantiva das categorias identitáriase dasdemandas por direitos, a qual atribuiria à elaboração teórica um “monopólio dasdefinições”, encontramos sua remissão a práticas concretas de autodeterminaçãodemocrática,pormeio dasquais asprópriasconcernidaspodemgerarpublicamenteos termos em que pretendem ser reconhecidas juridicamente:
um
A classificação dos papéis dos sexos e das diferenças que dependem do sexorepousa sobre camadas elementares da autocompreensão cultural desociedade. O feminismo radical trouxe à tona o caráter falível, basicamentequestionável desse autoentendimento. Por isso, as diferentes interpretaçõesda identidade dos sexos e das suas relações mútuas têm de se submeterà reflexão pública. No entanto, as vanguardas feministas não detêm o
monopóliodas definições. (...) Issoexplicaopeso queo feminismo atribuiàs“identity politics”, ou seja, aos efeitos formadores da consciência, derivadosdopróprioprocessopolitico.Segundo essa compreensãoprocedimentalista,a
concretização dosdireitos fundamentaisconstituiumprocessoquegaranteaautonomiaprivada desujeitosprivados iguais emdireitos,porém, emharmoniacom a ativação de sua autonomia enquanto cidadãos. (Ibid.,pp. 514-515)
uma
•'
Ora,opapelreconstrutivodoparadigmaprocedimentalexplicita,antes,uma
dependênciaprocedimentalmenteproduzidaentreos paradigmasdodireito.Comisso,evidencia-seumprimadopolíticona justificação da validade dosparadigmas:nenhuma das autocompreensões jurídicas pode ser legitimada caso não sejareconduzida àautodeterminação democrática dospróprioscidadãos.Comovimos,
o feminismoradicalevidenciouocaráter falíveldas autocompreensões dominantes e
lutoupor umarevisãonormativamenteorientada:osdireitossubjetivos,cuja tarefaé garantir às mulheres uma condução autónoma das próprias vidas, já não podemser formulados demodo adequado semqueosprópriosenvolvidospossamassumiropapelde legislador emmeio à esferapúblicapolítica. Oparadigmaprocedimental
Esse caminhoparaa realizaçãodo sistema de direitos nas condições de uma
sociedade complexanão se deixasuficientementeabarcarpela compreensão
dequeoparadigmaprocedimentaldodireitoprivilegiauma formadedireito
específica-odireito reflexivo-damesmamaneiracomooparadigmaliberal
edoEstado socialprivilegiavam,respectivamente,odireito formalematerial.
Aescolhadarespectiva formado direitodevepermanecer referida ao sentido
original do sistema de direitos, que é o de assegurar uno actu a autonomia
pública e privada dos cidadãos, de talmodo que todo ato jurídico possa ser
considerado ao mesmo tempo umacontribuiçãopara a configuraçãopolítica
autónoma dos direitos fundamentais, ou seja, elemento de um processo
constituinte duradouro. (Ibid.,p. 494)
Habermas e a reconstrução 161160 Papirus Editora
explicita, assim, uma demanda radicalmente democrática, de acordo com a qualo processo democrático precisa assegurar ao mesmo tempo a autonomia privadae apública.
Desse modo, embora a teoria do discurso busque na defesa de um novo
paradigma jurídicoumaconexãocomaprática,elanãopretendesubstituiraspráticasdiscursivas de autodeterminação democrática.Eladefendeumapré-compreensãoprocedimental,aptaaorientaroraciocínio jurídicoem suasresoluções substantivas,exigindo uma “democratização progressiva” de todas as interpretações relevantesacerca do direito e da sociedade. Cabe insistir que o sentido queHabermas atribuia essa conexão com a prática é bastante forte: o paradigma procedimental, assim
comoosdemais,possibilitaproduzir “diagnósticos da situação capazes deorientar
a ação” {ibid.,p.572).Comisso,ele assume as expectativaspretensiosas de “poderinfluenciarnão somenteaselitesque operamodireitonaqualidade de especialistas,mas também todos os participantes” {ibid., p. 536). O caráter propositivo desseúltimocapítulo setomaaindamaisacentuadonaspáginas finais,quandoHabermassepermiteapresentar sugestões dereformas institucionais,ligadas à expansão dosespaços de participação e deliberação em diferentes instâncias decisórias, bemcomo tecer considerações acerca da necessidade de consolidação de uma esferapública jurídica no âmbito da própria sociedade civil, a qual pudesse, enfim,
superar a atual cultura de especialistas. Ainda assim, o autor não pretende diluiras fronteiras entre teoria e prática; vale dizer, não assume que suas reconstruçõesteóricas se proponham a decidir qualquer questão substantiva em abstrato. E issoporque, diferentemente dos demais paradigmas, o paradigma procedimental não
viria acompanhado da defesa de um ideal de sociedade ou de vida boa. Emborapretensioso nas expectativas dealcancee exigenteem suas formulaçõesnormativas,
seucaráter propositivo se limitaria à defesa das condições doprocesso democrático.Oqueolevaaadmitir,por fim,que asreconstruçõesprocedimentaisaquioperadasse submetem a reelaboraçõesposteriores,para verificar se o fluxo das deliberaçõescontínuas é capaz de encontrar nas condições procedimentais aqui apresentadasqualquer conteúdo incompatívelcom as liberdades dos cidadãos {ibid.).
reconstrutivamente,oqualprocuradesfazer naturalizaçõeseengessamentos de suacompreensão tradicionale reelaborá-loscomo condiçõesprocedimentaispormeiodas quais pode se mover um processo de democratização radial. Parece perpassarpela totalidade dos temas abordados uma preocupação insistente em vincular asperspectivas parciais da teoria do direito e da teoria política, “arrastadas para cáe para lá entre facticidade e validade”, e mostrar que questões relacionadas aodireito e à democracia rompem inevitavelmente tanto o quadro de uma reflexãomeramente normativa quanto o cinismo deumrealismo cegopara a dimensão devalidade do direito e de sua génese democrática. O pressuposto de Habermas deque há uma ligação estreita entre discurso teórico e autocompreensão jurídico-política nos remete à necessidade de não nos fixarmos em uma única orientaçãodisciplinar.Por essarazão, as reconstruções interna e externa operaram depontosdevistametodológicosabertos,serviramadiferentes finalidadesteóricas,adotaramperspectivas diversas (do juiz,dopolítico,do legislador,do cidadão) e assumiramvariados enfoquespara apesquisa,pois a teoria do discurso contribuinão apenaspara o enfoque crítico, mas também para explicações hermenêuticas, descritivase analíticas.
ComoHabermasdeclaranaconclusão daobra,oparadigmaprocedimentalprocura se ancorar na realidade das democracias estabelecidas e se manterreflexivamenteaberto às transformaçõesdeseuscontextoshistórico-sociais-de talforma que “toda transformação histórica do contexto socialpossa ser consideradaum desafio para o reexame da compreensão paradigmática do direito” {ibid.). Àprimeiravista,esteúltimoapontamentonosremeteapenasao falibilismoatribuídopor Habermas à obra. Entretanto, é possível vinculá-lo a certas questões maisdiretamente envolvidas neste capítulo. Em primeiro lugar, podemos considerá-lo como uma última forma do autor de sustentar a plausibilidade de sua teoria.Dissemos, de início, que Habermas não opera rigorosamente em Direito edemocracia as antigas formas de reconstrução horizontal e vertical. Entretanto,vimos aolongodotextoqueele fazumusonão sistemáticodediferentesestratégiaspara tentar comprovar que os elementos das reconstruções ali operadas têm uma“inscrição no real”. Por exemplo: sua acomodação à teoria da modernizaçãosocial; a consideração de transformações históricas das estruturas institucionais,das formas discursivas e das práticas políticas segundo contribuições de vertentesrepresentativas do pensamento jurídico e democrático; a referência a pesquisasempíricas voltadas à política deliberativa e ao ressurgimento dos movimentossociais, bem como a constatação, observada no campo da própria dogmáticajurídica,deuma concorrência entre osparadigmasliberaledoEstado social,
Considerações finais
Em Direito e democracia, encontramos a submissão dos elementos• mais centrais do Estado democrático de direito a um modelo crítico que opera
o que
162 Papirus EditoraHabermas e a reconstrução 163
igualmente em contextos políticos diferenciados. Podemos encontrar exemplosdo referido teste em pesquisas embrionárias sobre a esfera pública e as medidasantirracistas no Brasil.7 Temos consciência de que a contribuição do modeloprocedimental para as análises sobre a relação entre política e direito dependeem grande medida da verificação de que seu limite “não é inerente à teoria queo sustenta, mas sim ao estado atual da investigação sobre o tema” (Costa,Melo e
Silva 2009,p.218).O caráter aberto do modelopermitiuquepudesse ser adaptadoàs relações ambíguas de diferentes contextos legais e políticos, de modo que “asadaptações e ajustes efetivamentenecessários,no entanto, só possam ser definidosa partir da ampliação das investigações empíricas nesse campo” (ibid., p. 219).Também aqui as pesquisas empíricas precisam ser descritas adequadamente, semque taisprocessos sejam analisados pressupondo-se qualquer contraposição entreideal e realidade. Naprópria facticidade social dos processospolíticos observáveisjá se leva emconta a génese democrática do direito e a forçalegitimadorainvestidacontra o modo de operar do sistema político.
O sentido “aberto” de Direito e democracia, entretanto, não deve serencontrado apenas em seu caráter programático, mas também em sua aberturacognitiva epossibilidade de conexão a investigações quevão além de seuspróprioshorizontes teóricos. A aplicabilidade do paradigma procedimental a contextos
histórico-sociais cambiantes e sua autossujeição a transformações reflexivasexpande significativamente suaspotencialidadescríticas.Entretanto,nãopodemosadmitir que ela encerre aatividadecrítica em seu todo.Doponto de vista da teoriasocial, como vimos, o empreendimento reconstrutivo levado a cabo em Direitoe democracia tem um âmbito de análise intencionalmente restrito, limitadn àsrelações de mediação jurídico-democrática entre problemas sociais elaboradosdiscursivamente como focos de controvérsias públicas e o funcionamento dosistemaburocrático.Ele não penetraprofundamente as instituições e práticas quecompõemasociedadecivileosistemapolítico,apenas tangencia esses dois camposnaqueles pontos vinculados às chances de seupossível intercâmbio. Do ponto devista da teoria do direito, Habermas evita integrar o âmbito de discussões sobreprojetos regulatórios substantivos, reafirmando constantemente a autolimitaçãonecessária de uma reconstrução procedimental. A reconstrução do paradigma
forçaria a explicitação eummaior graude justificação daspré-compreensões sociais
quepermeiamodiscurso jurídico. Ao conferir umcaráter falibilistaàsreconstruções .operadas emDireito e democracia,Habermas também está se dirigindo a possíveis
refutações empíricas e inserindoumderradeiromodode se defender peranteelas: a
atribuição de umpesado ônus da refutação a seus críticos. Comefeito, a refutação
empírica da obra não é uma tarefa fácil, já que não lhe basta a apresentação dos
usos ideológicos e instrumentais das formas jurídicas nem a exposição de dados
sobre os inúmeros insucessos observados nas democracias contemporâneas. A
integração comunicativa pela via do direito em nenhum momento é descrita
como um impulso hegemónico ou mesmo prevalecente. Ao contrário, trata-se
de uma tendência entre outras,profundamente ameaçada de sucumbir diante do
avanço de formas de integração sistémica que também fazem uso do direito em
sua reprodução cotidiana.
Além disso,esses apontamentos finais vêmlembrar que a obra em seu todo
nãodeveser compreendidacomoumsistema filosófico fechado-oque jáhaviasido
afirmadonasprimeiras linhas doprefácio.Podemos aquinosperguntar,entretanto,
se isso é dito apenas no que tange à incorporação de outros conhecimentos
relevantes acerca do Estado democrático de direito ou se sua abertura também se
refere ao tipo de reconstrução ali operado. Formulando essa questão levando em
conta a continuidade da teoria crítica, cabe perguntarmos seDireito e democracia
admiteumaconexão comoutras formas deprodução de conhecimento dentro do
campocrítico.Oumelhor,se a obrareconhecemesmo outramodalidadedecrítica
paraalém dareconstruçãoprocedimentaldascondiçõesdoprocesso democrático.
Habermas não responde explicitamente a essas questões, mas podemos defender
aqui uma resposta afirmativa. Ao que tudo indica, a decisão de abandonar suas
antigaspretensõesligadas ao desenvolvimentodas ciênciasreconstrutivas,as quais
teriampor objetoaprodução de conhecimento combaseno campo empírico,não
émotivadapor razões deprincipio,masmeramenteporadmitir aimpossibilidade
de concentrar emsi o desenvolvimento desse projeto. Parece se tratar, sim,deum
abandono,masnão de umarecusa,o quenão impediria que tentativas deretomá-lo
nãopudessemser incorporadasaohorizontedaobra.Nesse sentido,ainda quenão
seacomodeaostermospretensiososdesseantigoprojeto,oprópriolivro lançabases
para uma compreensão mais ampla do processo democrático e de seus inúmeros
bloqueios, as quais podem ser apropriadas como orientações de pesquisa.
Secompreendermos queoparadigmaprocedimental foimetodologicamente
justificado em sentido negativo, uma vez que surge das denúncias a cristalizações
teóricas e práticas quenão se submeteram criticamente à autonomia, cabe testá-lo
7. A íntegra dessa pesquisa piloto foi publicada em Costa et al. 2011. Uma discussão maisresumida da pesquisa foi apresentada em Machado,Melo e Silva 2010. Também com basenapesquisapiloto,havíamos desenvolvido umbalanço de diferentes compreensões sobre a
relação entrepolitica e direito em comparação comoparadigma procedimental emCosta,Melo e Silva 2009.
Habermas e a reconstrução 165164 Papirus Editora
procedimental, entretanto, não coincide com sua atualização prática - justificada
normativamente pelo autor como exigência de uma democratização radical.
Como vimos, seu exercício implica, sim, a reflexão sobre modelos institucionais
concretosea submissão de todo conteúdo jurídicoàcríticaeao escrutíniopúblico,
compondoumdebate alargado sobre as cristalizaçõesinstitucionais,no qual todos
os concernidos devempoder tomarparte.Nesse sentido,a efetivaçãodoparadigma
procedimental,defendidanaconclusão dolivro,pareceexigir umtipo deatividadecrítica que vai além do modelo reconstrutivo desenvolvido em seu interior.
Por esses e outros motivos não explorados aqui, o modelo reconstrutivo
desenvolvidoemDireito edemocracianãodeve ser assumidocomoumadelimitaçãodo campo crítico. O autor admite diversas vezes que a obra não tem qualquerpretensão de totalidade: nem de conteúdo, nem de método. Como seu própriosubtítulo já parece assinalar, ela reúne “contribuições” da teoria do discurso à
compreensão do Estado democrático de direito, sem procurar esgotar as análisessobre o direitoe a democracianemdefenderque a teoria crítica se mantenhapresaa essa ordem de objetos.Entretanto, a recepção da obrano interior dessa tradiçãodepensamento segue quase queexclusivamente seus mesmos trilhos. Seu impactonas gerações pós-habermasianas é tão grande queomodelo alidesenvolvidoparece
critério depertencimento ao campocrítico.Umcritérioumtanto elástico,éverdade,
sujeito a interpretações e aplicações variadas, mas dificilmente encontramos
contribuições quevãomuitoalém deumareconstrução teóricaacerca dascondiçõesdo processo democrático.Bonsexemplosdissopodemser encontradosnopercurso
intelectual de Nancy Fraser e Iris Young, que desenvolviam no momento de
publicação deDireito edemocracia trabalhos dedicados à compreensão deconflitose patologias da modernidade tardia em sua materialidade social, tendo ambasmigrado,empoucos anos,paraumâmbito de investigáção teóricaque se adapta deformamaisconfortável aosprincípiosnormativos quecondicionam a democraciadeliberativa(Silva2008b).Omesmopodeserditoemrelaçãoa AxelHonneth:se,em
KritikderMachteemKampfum Anerkennung,oautor denunciavanopensamento
habermasiano deficit sociológicosresponsáveisporumacompreensãolimitada daslutas sociais,em seu livro mais recente,DasRecht der Freiheit,Honneth se dedicaexplicitamente àreconstruçãonormativa das condições institucionaisvinculadasà
democratização social. Valedizer queobservamosaliumalargamento significativoda ideia de processo democrático, alcançando análises sobre as possibilidades eos bloqueios à democratização interna da vida familiar, das relações amorosas,
do mercado de consumo e de trabalho (Honneth 2011). Entretanto, é notório
que, quase 20 anos após a publicação deDireito e democracia,Honneth tenha seu
projeto de pesquisa tão alinhado aos traços mais fundamentais de um modeloanteriormente combatido. E aqui tocamos naquilo que talvez,seja o pior legadode Direito e democracia: o fato de ter sido transformado no modelo crítico porexcelência,paralisandoumdebatemaispluraldemodelos que se apresentavaatéoiníciodos anos 1990einterrompendoprojetos frutíferos, inclusivede seuautor, antes de serem devidamente cumpridos.
próprio
166 Papirus EditoraHabermas e a reconstrução 167
CONSTRUTIVISMO "NÃOMETAFÍSICO" E RECONSTRUÇÃO
"PÓS-METAFÍSICA”:O DEBATE RAWLS-HABERMAS
5
Denilson Luís Werle
Desde suagénese,a teoriacrítica se caracterizapor certa aversão aos sistemas
filosóficos fechados e bem acabados. Apresentar algum dos modelos de teoria
crítica como um deles distorceria seu caráter essencialmente aberto, investigativoe inacabado. O desenvolvimento dos diferentes modelos de teoria crítica se deu
semprepelo diálogo, tantopor meio deuma série de críticas a outrospensadores e
tradições filosóficas comopor meio de diagnósticos semprerenovados da situação
presente. As mudanças políticas nas últimas décadas não deixaram de influenciar
a possibilidade de formular novos modelos de crítica social. A consciência de
uma pluralidade de culturas e a experiência de uma variedade de movimentos
sociais emancipatórios diferentes colocaram condições e exigências novas para
a formulação de uma teoria crítica da sociedade. De modo geral, essas mudanças
foram analisadas na filosofia política via uma concepção liberal igualitáriada justiça, que procura fundamentar critérios normativos para identificar os
fenômenos de injustiça social (opressão,humilhação,dominação,exclusão social)
e promover a justiça em sociedades democráticas. Essa concepção de justiça se
fez tão predominante que se tornou inevitável à teoria crítica se defrontar com
o paradigma que pretende ser uma de suas melhores justificações filosóficas: o
liberalismo político.1O objetivo deste capítulo é apresentar mais uma etapa desse
diálogoconstitutivodomodode operar da teoriacrítica,analisandoas semelhanças
e diferençasentreo liberalismopolíticode JohnRawlseorepublicanismokantianodefendido por JurgenHabermas.
i
1. Esse confronto com o liberalismo político está presente em muitos dos autores recentes da
teoria crítica (Jiirgen Habermas, Albrecht Wellmer, Axel Honneth,Rainer Forst).
Habermas e a reconstrução 169
Rawls e Habermas: Uma disputa em família? de justiça que devem regular a vida em comumnão podem se apoiar em qualquerconcepçãoparticular e abrangentedevidaboa.OEstado dedireito democrático se
fundamentananeutralidade de justificação que asseguraumconjunto de liberdadescomunicativas básicas iguais e procedimentos político-jurídicos de realizaçãoefetiva dessas liberdades. Uma vez que as normas de justiça estabelecem umasérie de limites razoáveis ao desenvolvimento dos planos de vida individuais e asformas de vida culturais,estabelecendonormas eregras que devem ser obedecidasobrigatoriamentepor todos,o que a tese daprioridadedo justo sobreobomexigeé que os princípios de justiça sejam justificados por meio de razões que todosos cidadãos, imersos em eticidades diferentes, possam aceitar (ou, pelo menos,
por razões que ninguém possa razoavelmente rejeitar,na formulação de ThomasScanlon), independentemente do recurso à coerção arbitrária.
Pode-se dizer, portanto, que tanto Rawls quanto Habermas têm como
ponto departida de suas reflexões sobre filosofiapolítica e teoriamoralos desafioscolocados pelos contextos de justificação das sociedades modernas caracterizadaspelo pluralismo dos planos de vida pessoais e de formas de vida culturais, que,muitas vezes, desdobra-se em conflitos de concepções do bem irreconciliáveisentre si.No âmbito da teoria moral epolítica contemporânea,Rawls e Habermascompartilham o propósito de procurar estabelecer as condições pelas quais os
próprios cidadãos podem chegar a um ponto de acordo sobre os fundamentosnormativosdacomunidadepolítica.Nisso,ambos seguemapreocupaçãodafilosofiaprática moderna em procurar assentar esses fundamentos no consentimento
Hpúblico de todos os cidadãos.Oproblemadaintegração sociale da justificação dasnormas e dos princípios que devem regular a vida em comum fica submetido às
exigências dalegitimidaderacionalmoderna:élegítimaanormatividade quepodeser reconhecida por todos os cidadãos no uso público de sua razão. O princípiode legitimidade reside na publicidade da razão, que é entendida, tanto por Rawlscomo por Habermas, ainda que com diferenças quanto ao modo de proceder e
ao conteúdo da razão pública, como a expressão política do conceito kantianode autonomia, interpretado de modo intersubjetivo: os cidadãos atuam de modoautónomo quando se submetem àquelas leis que poderiam ser aceitas, com boasrazões,por todos os atingidos sobre a base de um uso público de sua razão (Rawls
2000; Habermas 1998). A semelhança reside em sua defesa da ideia de autonomiados indivíduos, interpretada de modo procedimental e intersubjetivo.
Todavia, esse ponto de acordo deixa ainda em aberto um bom númerode divergências quanto às características procedimentais da autonomia e sobreo conceito de razão prática mais adequado para reconstruir o ponto de vista
Hápoucadúvidasobreo fatodeque,nodebatecontemporâneo em tornoda
possibilidadede fundamentar uma teoriada justiçapolítica e social, as abordagens
de Rawls e Habermas desempenham um papel central.Na medida em que Rawls,
com a sua já clássica Uma teoria da justiça (1971),deuumnovo enfoque à filosofia
política,orientando-aparaa questão da justificação deprincípiosde justiçaliberais
e igualitáriospara a estruturabásica de uma sociedade democrática, e aprofundou
essa discussão com O liberalismo politico (1993), situando a questão da justiça
no contexto de justificação e problemas práticos da modernidade, Habermas
procurou, em Direito e democracia (1996), desenvolver uma teoria sistemática
e abrangente do Estado de direito democrático, fundamentada na sua ética do
discurso, reconstruindo as articulações lógico-conceituais entre Estado de direito
e democracia radical.2 Ambos os desenvolvimentos teóricos, que originalmente
partiram de problemas conceituais e tradições muito diferentes, chegaram a uma
afinidade depreocupações a talponto queHabermaspôdequalificar o debate entre
ambos como “uma disputa em família”.
Mas em que consiste essa familiaridade entre uma filosofia políticanormativa, desenvolvidano interior da tradição analítica anglo-saxã,euma teoria
política cujos fundamentos normativos residemnuma teoria crítica da sociedade,
cujas raízes remontam a Kant,Hegel e Marx? Pode-se seguramente apontar que a
maior familiaridade reside no fato de ambas reatualizarem e defenderem a ideia,
de inspiração kantiana, de umaprioridade deontológica da justiça diante do bem,
de certa forma implícita na fundamentação doprincípio supremo da moralidade:
a autonomia.Essa ideiapode ser entendida de duas maneiras. A primeiraconsiste
em defender a ideia normativa da inviolabilidade da pessoa. Cada pessoa possui
umainviolabilidade fundadana justiça quenenhumcálculo debem-estar ouideia
do bem comum de toda a sociedade pode desconsiderar. Numa sociedade justa,
as liberdades básicas de cidadania igual são consideradas irrevogáveis, não estão
sujeitas à negociação política nem ao cálculo de interesses sociais. A segundamaneiradeentender a tesedaprioridadeda justiçasobreobemconsistenoprincípiodaneutralidade dejustificaçãodoEstado dedireitoouàneutralidadeéticadodireitoemrelação às concepçõesparticulares daboavidaeàsdoutrinas filosóficas,morais,
religiosas e políticas abrangentes. A ideia é que, em uma sociedade marcada pelapluralidade de planos de vida individuais e formas de vida culturais, os princípios
)
2. Cf. os capítulos anteriores deste livro.
170 Papirus Editora Habermas e a reconstrução 171
moral imparcial e mais apropriado para conciliar moral, política e direito no
procedimento de legitimação democrática. Como conseguir formular uma
concepção de razão pública capaz de respeitar simultaneamente a autonomia
privada dos indivíduos e a autonomia pública dos cidadãos, os direitos humanos
fundamentais e a soberania popular, o vínculo interno entre Estado de direito
(ou o império da lei) e a democracia? Qual instância deve servir de base pública
da justificação da normatividade: a eticidade imanente aos ideais implícitos nas
instituições e na cultura política pública comum das democracias constitucionais
modernasouaconstrução deumprocedimento de teste quepossibilite a avaliação
dos conflitos práticos de um ponto de vista imparcial, que sirva de padrão posto
contrafaticamente à realidade política (Vallespín 1998)? Para realizar a mediação
entreouniversalismomoraldosprincípios de justiça e oparticularismo dosvalores
da eticidadeconcretadeumadeterminada tradiçãopolítico-jurídica,arazãoprática
deve se ater somente aos “procedimentos” de argumentação racional ou deve se
apoiar também em considerações normativas substantivas, das quais não poderia
se esquivar?
e ênfase no princípio da calculabilidade dos bens humanos (felicidade, utilidade,
prazer),parecia ser a filosofiamoralmaisapropriadaaomundocientíficomodernae ao espírito de sociedades organizadas em economias de mercado. As filosofiasmorais aristotélicas e kantianas anteriores ao utilitarismo pareciam muito mais
presas a alguma doutrina metafísica sobre a natureza humana ou a natureza
do sujeito. Embora tenha vários pontos atrativos - a atenção para os efeitos dedeterminada ação ouinstituição sobreobem-estar de pessoas concretas,aausênciadeumpré-julgamentode desejos epreferências dos diferentes indivíduos,o caráter
fortemente igualitário do cálculo daspreferências-outilitarismo,segundo Rawls,está sujeito a uma dificuldade teórica incontornável ao tratar do tema de uma
sociedade justa entre livres e iguais: o utilitarismo tende a ver a sociedade comouma totalidade agregada de interesses individuais que permite sacrificar algumaspartes em vista do bem-estar geral, desconsiderando a inviolabilidade das pessoas.Para Rawls, as sociedades democráticas estão fundamentadas na ideia intuitivafundamental de que cada indivíduo deve ser respeitado como pessoa autónomalivre,distinta dos demais e com dignidade igual. Ao permitir que a justificação denormas eleis possa ser feitacombaseno critério dobem-estar geral, o utilitarismoacaba frustrando sua promessa igualitária original. Rawls retoma a tradição docontrato social (Locke,RousseaueKant),justamenteparaarticular umaperspectivadeontológica alternativa ao utilitarismo,procurando uma forma mais atraente doponto de vistanormativoparaarticular os temas daliberdade e da igualdadenuma
teoria da sociedade justa (Hedrick 2010).
No caso de Habermas, seus escritos sobremoral,política e direito são uma
reação aos deficitnormativosdaprópria tradição da teoriacrítica,3que teriaum deseuspontosculminantesnaDialética do esclarecimento,de AdornoeHorkheimer,
cujas conclusões Habermas considera problemáticas (Habermas 2002). Para
Habermas,no diagnóstico de Adorno eHorkheimer,arazãonasociedademoderna
teriase tomadoessencialmenteinstrumentalecalculadora,orientadaàmanipulaçãoe dominação dos objetos.Odesdobramento darazãoinstrumentalaomundosocialé sinónimo de dominação, reificação e controle. Consequentemente, tornou-se
'
Nessas questões, está em jogo o próprio ethos da democracia: o modo
pelo qual os cidadãos se autocompreendem e se reconhecem mutuamente como
membroslivres eiguais da comunidadepolítica.Odebatedizrespeito às condições
depossibilidade deuma“justificaçãopública” das normase dosvaloresno contexto
desociedadessujeitasaofactofpluralism,que jánãopodem seapoiar emumaúnica
concepção dobem,ousobre a eticidade tradicionalquepenetre a sociedade como
umtodo(Forst 2010).Essacaracteristicadaautocompreensãonormativamoderna
influi tamhêm de modo decisivo no estoque dos recursos racionais disponíveis
para justificar princípios e normas. Tanto Rawls quanto Habermas reconhecem
que “acapacidade da filosofia de se pronunciar sobre as questões da racionalidade
prática se vê limitadapelo caráter finito e falibilista da razão, certamente reduzida
em sua capacidade de ordenar ou buscar sintonizar a pluralidade de suas vozes,
para parafrasear umaexpressão habermasiana” (Vallespín 1998,p.13).
Para lidarem com essas questões, Habermas e Rawls recorrem (não
exclusivamente) a argumentos kantianos sobre a primazia da justiça sobre o bem.
Por que o liberalismo político anglo-saxão e a teoria critica veem a necessidade de
uma retomada dessa tese da filosofiapolíticakantiana? A teoria de Rawls, segundo
suaprópria justificativa, temcomopano de fundoumcenário filosófico dominado
pelo utilitarismo e pelas análises consequencialistas das questões políticas,morais
e jurídicas. O utilitarismo se colocava como a única perspectiva normativa digna
de apreço numa sociedade democrática. Além disso, com seu ataque à metafísica
3. Ementrevistaconcedidaa A.Honneth,E.Knõdler-Bunt e A.Widmann,quando perguntadosobre sua relação com a tradição da teoriasocialcrítica,Habermas(1994b,p. 141) resumiuem três questões o deficit principal dessa tradição de pensamento: os fundamentosnormativos da crítica social, o conceito de verdade e a relação com as ciências, a poucaatenção dada ao Estado de direito e à democracia. O empreendimento teórico-filosóficode Habermas pode ser lidocomo uma das tentativas maisbem-sucedidas de lidar com esse
deficit da teoria crítica.
172 Papirus Editora Habermas e a reconstrução 173
difícilver comoarazãopoderia ser usadapara identificar criticamenteospotenciais
emancipatórios e as patologias na sociedade, uma vez que estes teriam de ser
engendradospelaprópria razão. Alémdisso,como os que defendem o diagnóstico
de Adorno e Horkheimer poderiam justificar seu próprio ponto de vista crítico
normativo e condenar a reificação e a dominação, se a razão é apenas uma razão
instrumentalquedomina toda arealidade social? Desde seusprimeiros textos sobre
a esfera pública e as obras mais recentes sobre a política, a moral e o direito, um
dos propósitos de Habermas tem sido o de superar o deficit da tradição da teoria
crítica, procurando esclarecer como os fundamentos normativos da crítica estão
enraizadosnosprocessos socaisefetivos ecomoépossívelidentificarpossibilidades
reais deemancipaçãonaprópriarealidade socialreificada.Como sabemos,a teoria
críticadodireitoe da democracia ocupaumlugar centralna tentativaderenovação
da teoria crítica desenvolvidapor Habermas.
Embora tenha modificado alguns aspectos de sua concepção sobre como
as instituições e os processos políticos devem ser configurados de forma mais
apropriada para a realização da autodeterminação dos cidadãos,Habermas busca
fundamentar,mantendo-sena tradiçãokantiana,osprincípiosde justiçanasnoções
de razão comunicativa e de autolegislação autónoma. Porém, diferentemente de
Kant,não quer se apoiar em concepções supraempíricas derazão e de autonomia
(McCarthy 1992a,p.193). Aocontrário dospostulados darazãoprática tradicional,
Habermas parte do conceito de razão situada e encarnada na linguagem e na
interação social.Oponto departida é a razão incorporada na ação comunicativa e
a intuiçãodeque,na ação comunicativa,está implícitoumconceito de autonomia
que se manifesta no telos do entendimento mútuo. O propósito de Habermas é
reconstruir o vínculo internoentre sociedade e razão,medianteum conceito mais
abrangente de racionalidade, a racionalidade comunicativa, com base no qual
se tome possível elaborar uma teoria da sociedade e da modernidade capazes
de oferecer critérios tanto para desvendar os potenciais emancipatórios das
práticas sociais quanto apontar as patologias da vida visíveis nos processos de
integração social e de legitimaçãopolítica das sociedades modernas diferenciadas,
complexas eplurais.Uma das teses centrais de Habermas é a de que o conceito de
racionalidade instrumentalestratégica,usado pelas teorias da escolha racional,e a
concepção da racionalidade funcional, usada pela teoria sistémica e por algumas
versões do marxismo,não são suficientespara fundamentar a crítica e explicar os
bloqueios atuais à emancipação. Sem dúvida,explicam dimensões importantes da
racionalidade da integração sistémica da economia capitalista e da administração
burocráticadoEstado.Contudo, fazem-no àcustadoconteúdonormativo darazão
práticae,assim,nãosãocapazesdeexplicarqualacontribuiçãodaautocompreensãonormativa dos próprios indivíduos (incorporada nas práticas e instituições) parao processo de reprodução e integração social (Baynes 1995).
Habermas recusa a ideia de que as sociedades modernas sejam integradasapenas sistemicamente, por lógicas que operam, por assim dizer, por detrás dasconsciências dos sujeitos da ação. Para se contrapor a isso,Habermas atribuiumnovo sentido aoconceito de racionalidadeprática:deslocaa ênfasedo conceito derazão prática situadana filosofia do sujeito para o “mediumlinguístico,através doqualas interações se interligame as formasdevida se estruturam” (Habermas1997c,v. I,p. 20).Habermas se concentra na linguagem como ummeio para coordenara ação social, isto é, para produzir expectativas normativas de comportamento epadrões de interação social. A ideia é extrair um padrão de justiça universal dopróprio uso que os agentes fazem da linguagem como forma de coordenar seusplanos de ação diversos. O foco se volta para a reconstrução dos pressupostosnormativos implícitos no tipo de ação em que os indivíduos são orientados para
«“alcançar umentendimento mútuo”.O conceito de racionalidade inscritona açãovoltada ao entendimentomútuoé transformadoporHabermas emmeiocategóricoprivilegiadoparasuperarodeficitdateoriacrítica.Trata-sedeumconceito-chavenareformulação da teoria social crítica em sua tarefa de analisar a sociedade a fim derevelar umelementodeemancipaçãointramundano,imanenteàprópriarealidadesocial. Habermas identifica no entendimento alcançado comunicativamenteumaesferapré-teóricadeemancipação,àquala teoriacríticapode sereportar,no sentidode confirmar seuponto de vista normativono interior daprópria realidade social.O que significa a racionalidade comunicativa e como podem ser interpretadas asestruturas e os problemas das sociedades contemporâneas àluz desse conceito sãoas questõesnorteadoras de seuprojeto.4
Em grande medida, como em Rawls, a inspiração do modelo crítico deHabermas vem do modelo inaugurado por Kant para o uso público da razão, queé traduzido por Habermas num conceito de racionalidade discursiva mediadasocial, cultural e institucionalmente. A ideia de uma discussão livre de coaçãoé um potencial inscrito em qualquer interação social de sujeitos voltados aoentendimento mútuo. Ao argumentar que a racionalidade está localizada nasestruturas universais da comunicação humana voltada ao entendimento mútuo,e não apenas nas dimensões instrumentais e sistémicas da ação, a teoria crítica deHabermasécapazdeelaborarnovosdiagnósticosdas sociedadescapitalistas tardias,
4. Sobre isso, cf. os capítulos anteriores deste livro.
174 Papirus Editora Habermas e a reconstrução 175
leis. O que está em causa é o próprio sentido da justificação pública e a naturezada sociedade democrática.
Sendo a teoria deRawls opontodepartidadacontrovérsia,vamosrecapitularbrevemente o caráter não metafísico de sua fundamentação, fazendo referênciaa alguns dos deslocamentos de ênfase ocorridos no projeto de Rawls entre UmateoriadajustiçaeOliberalismopolítico,para,em seguida,compará-locomateoriacrítica de Habermas.
que apontam tanto para as patologias da razão na sociedade como desvelam os
*potenciais emancipatórios implícitosna ação voltadaao entendimentomútuo.Nos
textos de Direito e democracia, Habermas estende esse potencial emancipatório a
umaconcepção deliberativa de democracia,aovincular os processosdemocráticos
de deliberação na esfera pública e na sociedade civil aos processos juridicamente
mediados de comunicação entre os cidadãos.
O que se pode perceber é que Rawls e Habermas, nas suas críticas a uma
concepção derazão instrumental e na fundamentação de suas teorias,recorrem a
concepçõesde razão deflacionadas ourelativamentemaismodestas.DesdeKant,
a razão é entendida como razão crítica, que examina seus próprios pressupostos
e os limites de seus usos. Rawls e Habermas seguem essa tradição de uma crítica
da razão e recusam quaisquer modelos fúndacionistas de justificação pública que
procurem encontrar uma fonte normativa última absoluta para a legitimação
do direito e do poder político. Ambos compartilham a percepção de que, na
modernidade,as teorias quebuscam fundamentar “metafisicamente” osprincípios
normativos das práticas e instituições das sociedades democráticas se tornaram
X-inviáveis. Para evitar o recurso a concepções metafísicas (Rawls) e diante da
exigênciadepensarpós-metafisicamente (Habermas),ambosbuscaminterpretar
o conceito de autonomia de modo intersubjetivo e procedimental e transformar
o uso público da razão em base de justificação dos princípios de justiça (Baynes
1995;Forst 2010; O’Neill 1989).
Uma concepção de justiça só pode ser considerada legítima quando suas
ideias e princípios (Rawls) ouprocedimentos (Habermas) possam ser justificados
pormeio deumconceito derazãoquenãoreivindicanenhumaautoridadesuperior
à do próprio princípio de justificação pública e seu correspondente conceito de
pessoa autónoma. A questão da justiça se torna,elaprópria,umprojetodiscursivo
e sua resposta fica em aberto, sempre suscetível à crítica. A justiça não tem outra
autoridade,exceto aquelaquelheé atribuídanosprocessos de dar ereceber razões,
levados acabopelospróprioscidadãosnoscontextosdedeliberação sobrequestões
práticas:a justificaçãopúblicapermanece a“pedrade toque”de todanormatividade.
Nisso,RawlseHabermasparecemestar depleno acordo.Contudo,suasdivergências
se mostram na hora de traduzir teoricamente essa intuição fundamental. A
divergência mais profunda se encontra nas duas estratégias de fundamentação:
a concepção política não metafísica de Rawls e a concepção pós-metafísica da
justiça, presente em Habermas. Para além de uma disputa meramente teórica, a
diferença tem consequências práticas para pensar o papel dos princípios morais
numa teoria da justiça e a natureza do processo democrático de legitimação das
O construtivismopolítico não metafísico de Rawls
Em O liberalismo político, Rawls denomina a sua concepção de justiçacomo equidade, não mais como uma teoria moral da justiça, embora aindatenha fundamentos morais. Agora, a justiça como equidade é situada no interiorda tradição do “liberalismo político”, no qual é pensada como uma concepçãopública epolítica,ainda que segundo razõesmorais. A escolha desses termos não éarbitrária. Emboraoprojeto deRawls tenhapermanecidoomesmo,comas ideiasde sociedade como cooperação social voltada para vantagens mútuas e de pessoamoral, as liberdades básicas e o conceito de autonomia permanecendo no centroda teoria,Rawlsprocuraentender osprincípios fundamentais de sua teoriamenosnum sentido moral e mais num sentido político,para evitar confúndi-los com osde uma doutrina moral abrangente. O propósito t. distanciar sua concepção deliberalismopolítico de outrasversões damoralidadepolíticaliberal, tanto clássicas(como os liberalismos éticos de Mill e Kant) quanto contemporâneas (como oliberalismoperfeccionista deRazeoliberalismoético deDworkin); tentar corrigiralguns problemas internos à justiça como equidade o suposto deficit de realidadeda descrição das condições de estabilidade de uma sociedade bem ordenada ea não separação entre a justiça como equidade e as demais doutrinas moraisabrangentes;5edefender (emboraRawlsnãoadmitaissoexplicitamente) sua teoriadasobjeções comunitaristas deque a justiçacomo equidadepermanece cegadiantedas particularidades das pessoas e da diversidade de formas de vida culturais, dos
palores,da tradição e dobemcomumdaeticidadedemocráticarealmente existente.
Para fazer frente a essas objeções, Rawls insiste na defesa das principaisideias da moralidade política liberal. A despeito das modificações,Rawls continua
5. Ver a introdução de Rawis 2000.
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a identificar aprimazia da justiça diantedo bemcomum e o valor da neutralidade
doEstado diantedeconcepçõesdobemdistintascomo os traços essenciaisdeuma
concepção política da justiça. SegundoRawls, essa é aúnica maneira de organizar
a convivência política justa e estável de sociedades em que os cidadãos estão
profundamente divididos por doutrinas morais, religiosas e filosóficas razoáveis».
embora incompatíveis.Opluralismo razoável, como característicapermanenteda
culturapolíticapública democrática, converte-seno pano de fundo que justifica a
aposta na neutralidade. Porém, trata-se de uma aposta que se restringe ao campo
do político, sem, contudo,excluir as pretensões morais da teoria.6
O desafio que se coloca a uma filosofiapolítica voltada para a elaboração
de uma concepção política epública da justiça,como a de Rawls, é encontrar uma
base comumde justificaçãoentredoutrinas abrangentesrazoáveis,quepreencha,ao
mesmo tempo,tantoascondiçõesdeaceitabilidaderacionalquantoascondiçõesde
aceitação social Porumlado,abase comumde justificação pública e de formação
do acordo sobre questõespolíticas fundamentais deve ser buscada mais além das
diversas concepções do bem; por outro lado, numa sociedade democrática que
acolheapluralidade,issosomentepodeser feitodedentro daspróprias concepções
do bem, uma vez que os cidadãos não estão dispostos a renunciar facilmente às
cepçõesdevidaboaconfiguradorasde suasidentidadese formasdevidacultural.
Nessas circunstâncias,uma teoria da justiça conseguirá apresentar princípios que
possamse compartilhadospelos cidadãos comoumfundamentocomumde acordo
político à medida que conseguir alcançar umponto de equilíbrio crítico reflexivo
entre as exigências de universalidade - aquilo que todos estariam dispostos a
aceitar - e as exigênciasparticulares de cada concepção abrangente dobem. Essa é
a ideiaque estáno cernedoconceitodeoverlappingconsensus:umacordo razoável
em torno de princípios de justiça e valores políticos com os quais os cidadãos
possam se identificar, mas por razões diferentes e mantendo suas diferenças de
crenças e estilos de vida.
Para preencher as exigências do contexto de justificação apresentado pelo
pluralismo das sociedades modernas, Rawls introduz algumas modificações na
forma de interpretar a justiçacomo equidade. Apesar de manter a dupla estratégia
de justificaçãointroduzidaem Uma teoriadajustiça,o“artificioderepresentação”
daposição originalde deliberação sob o véu de ignorância e o recurso ao métododo “equilíbrio reflexivo”, nas últimas formulações de sua teoria Rawls se inclinamais favoravelmentepara o método do equilíbrio reflexivo e a justificaçãopública(ou o uso público da razão) como instâncias privilegiadas de fundamentaçãode seus princípios de justiça (cf. Werle 2008). Como resultado, os princípios dajustiça passam a ser preferencialmente justificados por uma razão prática, quereconstróias intuiçõesmorais mais profundas e os ideais normativos da eticidadepolítica presentes na cultura política pública e nas instituições das democraciasconstitucionais modernas e que aposta na capacidade dos cidadãos, mediante aformação pública do juízo, de encontrar autonomamente umponto de equilíbrioentre osprincípios de justiça e esses ideais.Parece haver um enfraquecimento daestratégia de justificação do tipo “transcendental” ou kantiana, de certo modopredominanteem Uma teoria dajustiça, fundamentadanodispositivocontratualistadaposiçãooriginal,em favor do fortalecimentodeumaestratégiaqueenvolveumadimensão hermenêutica reconstrutiva, fundamentada nos ajustes e reajustes dométodo de equilíbrio reflexivo que os próprios cidadãos vão fazendo entre juízosparticulares, princípios de justiça e ideais implícitos na eticidade concreta dassociedades de democracia constitucional.7
£ preciso notar que se trata de certa tensão na teoria de Rawls, e nãosimplesmente o abandono unilateral de uma estratégia de justificação a favor deoutra. Ainda que a distinção possa não parecer clara (Habermas 1998), Rawlsmantémapretensão de aceitabilidaderacionaldosprincípios aoladodapretensãode sua aceitação fática. Isso porque o acordo sobre princípios de justiça não seconcebe como ummero modus vivendi entre as diferentes doutrinas abrangentes,como se fosse o produto de uma negociação ou compromisso entre elas. Aconcepção pública e política da justiça é certamente não metafísica,mas continuasendo uma concepção moral. O construtivismo político pretende se esquivardas questões metafísicas sobre a formação do mundo moral e se apoiar apenasem conceitos políticos. Esses são os que se referem apenas à estrutura básica dasociedadeepertencemàautocompreensãodoscidadãosnumaculturademocrática.Não estão vinculados a uma doutrina abrangente que contenha uma teoria sobrea existência ounão de valores mais elevados que se refiram à conduta de vidaéticadeumapessoaouaosarranjosinstitucionaisbásicosdeumasociedade.Umateoria
í:
con
1
6. O domínio do político se refere ao objeto da teoria da justiça - a estrutura básica da
sociedade-,às questões- os fundamentos constitucionais e as questões de justiçabásica - e
ao modo de justificação - a teoria se restringe aos valores político-morais, em oposição à
metafísica e aos princípiosverdadeiros.
7. São vários os textos de Rawls que ilustram essa guinada política de Rawls, mas o maissignificativomeparece ser “Justiça como eqiiidade;Umaconcepção política,nãometafísica”(Rawls 1992), originalmente publicado em 1980.
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ordemlegal,aespecificação dapropriedadee congéneres ecomoessas instituiçõesse combinam para formar um sistema. O que é próprio da estrutura básica é queela oferece o quadro para um sistema autossuficiente de cooperação para todos osobjetivos essenciais davidahumana,objetivos esses realizados pelograndenúde associações e grupos no interior desse quadro.
A concepçãopolítica da justiça é umaconcepção moral tambémnumoutrosentido.Oconstrutivismo sustenta queaobjetividademoraldeve ser compreendidasegundoumpontode vistasocial,construído adequadamente,que todospoderiamaceitar.Foradoprocedimentodeconstruçãodosprincípiosde justiça, nãoexistemfatos morais. Como dito anteriormente,esse procedimento é construído segundoideias de sociedade e depessoa que são simultaneamente ideias da razãoprática - e,como tais, pressupostos indispensáveis na formação do juízo imparcial - e ideiasintuitivas implícitas na cultura política das sociedades democráticas modernas.Portanto, Rawls parece ter em mente um procedimento complexo de justificaçãoque procurar reunir, na base comum da ideia fundamental de sociedadesistema de cooperação social equitativo e da ideia de pessoa moral livre e igual,
interdependência “dialética* entre o ponto de vista moral do que é bompara todos e o ponto de vista do que é bompara nós. Trata-se de uma tentativa demostrar que os princípios de justiça podem ser justificados “em todos os níveis degeneralidade” (Werle 2008). A validade objetiva da concepção de justiça dependede razões justificadas intersubjetivamente:
política autónoma ainda se apoia em ideias e princípios da razão prática,
• estabelecidos num plano não metafísico, o que permite que pessoas razoáveis se
identifiquemcomeles,aindaquedefendamconcepçõesabrangentesbemdiferentes.
Isso estabelece a base para um consenso sobreposto.
mas
mero
As ideias fundamentais de pessoa e de sociedade bem ordenada são
entendidascomoideiasdarazãoprática,quenão são elasprópriasconstruídas,mas
articuladasnumaautorreflexão darazãopráticaexercidasob instituiçõeslivres.Têm
simultaneamente um caráter político e moral. Político, pois não derivam de uma
doutrina abrangente,mas da autocompreensão,esclarecidanoequilíbrio reflexivo,
dos cidadãos razoáveis de uma sociedade democrática; moral, pois a concepção
conceito normativo de pessoa, caracterizadopolítica da justiça se apoia
pelas duas capacidades morais da pessoa razoável: a de ter um senso de justiça (a
disposição de querer justificar os termos queregulam a cooperação social, levando
emcontaos encargos do juízo) e de levar adianteumaconcepçãoparticular davida
boa (Forst 2010).Oconceitodepessoa é justificado de duas formas:comoumaideia
intuitiva presente na cultura políticapública de uma democracia constitucional e
comouma ideia da razãoprática.*O conceito de pessoa é considerado como parte
de uma concepção de justiça política e social: ele diz como os cidadãos devem
ver a si mesmos e uns aos outros em suas relações políticas e sociais, da maneira
especificadapelaestruturabásica dasociedade.Esse éo objeto primeiro da justiça
e abrange as principais instituições sociais - aconstituição,o regime económico, a
num
como
uma
Dizer que uma convicção política é objetiva significa dizer que há razões,especificadasporumaconcepçãopolíticamutuamenterazoávelereconhecível(...), suficientes para convencer todas as pessoas razoáveis de que ela érazoável.Se talordemderazõesde fato severifica,e se essas afirmações soamemgeral razoáveis, são coisasque sópodemser demonstradaspelointegral ao longo dotempo do exercício compartilhado da reflexão práticapor parte daqueles que são razoáveis e racionais, considerando-se os limitesdo juízo. (Rawls 2000,p. 166)
8. Oconstrutivismo político afirma que “depois de obtido o equilíbrio reflexivo, se isso vier
a acontecer, os princípios de justiça política (o conteúdo) podem ser representados como
o resultado de um certo procedimento de construção (a estrutura). Nesse procedimento,
modelado de acordo comaposição original,os agentes racionais,enquanto representantes
dos cidadãos e sujeitos acondições razoáveis, selecionam osprincípiospúblicos de justiça
quedevemregular aestruturabásica da sociedade.Esseprocedimento,assimconjecturamos,
sintetiza todososrequisitosdarazãoprática emostracomo osprincipios de justiçaresultam
dosprincípios da razão prática conjugados ás concepções de sociedade e pessoa, também
elas ideiasda razão prática" (Rawls 2000,p.134).Noutrapassagem domesmolivro,Rawls
reforça essa ideia: “Podemos dizer,então, queasconcepções de sociedade epessoa,e o papel
público dos principios de justiça, são ideias da razão prática. Não só adotam uma forma
quea razão prática requer para sua aplicação, como também proporcionam o contexto no
qual as questões eproblemas práticos surgem. (...) Sem as ideias de sociedade e pessoa, as
concepções do justo e dobem não têm sentido. Essas ideias são tãobásicas quanto aquelas
de julgamento e inferência,e os princípios da razão prática’ (ibid.,p. 156).Essas passagens
indicam que a ancoragem histórica da dimensão kantiana não redunda numa concepção
conservadoraecontextualista da justiça ounuma espécie de concepção realista da moral.
sucesso
Noutra passagem, Rawls esclarece que os conceitos fundamentais doconstrutivismo político que justifica a justiça como equidade expressam aautorreflexão da razão prática de cidadãoslivres e iguais.
O construtivista dirá que o procedimento de construção agora modelaprincípios da razão prática conjugados às concepçõescorretamente os
Habermas e a reconstrução 181180 Papirus Editora
apropriadasde sociedade e depessoa.Comisso,talprocedimentorepresenta
a ordem de valores mais apropriada a um regime democrático. Sobre a
maneira de encontrar o procedimento correto, o construtivista diz: pela
reflexão, usando nossos poderes de argumentação razoável (ourpowers ofreason). (Ibid.,pp. 140-141)
Sua aceitabilidade deve se apoiar em razões que todos poderiam aceitar ou, peloninguém poderia razoavelmente rejeitar. Nesse sentido, para Rawls, a
razão prática está,por assim dizer, inscritano próprio espaçopúblico de seuuso.O que confere objetividade às convicções políticas é a perspectiva compartilhadadarazão pública,o que toma o procedimento do usopúblico darazão ainstânciaprivilegiadapara assegurar a validade das afirmaçõesnormativas,bemcomoparagerar a sua aceitação. Mantém-se, assim, o duplo movimento ide justificação:a concepção de justiça deve ser aceita não apenas por ser aquela que, após ojuízo bem ponderado na reflexão pública, os cidadãos defato compartilham nassociedades democráticas,mas tambémcomoaquelaqueoscidadãos devemaceitarao pretender realizar o ideal político da autodeterminação e se autogovernar deforma justa e democrática. Assim, o construtivismopolítico propostopor Rawlsparte da reconstrução de intuições morais e ideias intuitivasprofundas,queestãosubjacentesaosprincípios de justiça,quenão têmapenasumvalor descritivoparaaculturademocráticaliberal,mas tambémumapretensão universalista,derivadadaprópria razão prática. Se não fosse assim, como a teoria da justiçapoderiaexercersua função crítica,não se limitando ado que já existe (Werle 2011)?
Neste ponto, ainda podemos ver certa semelhança entre o liberalismopolítico de Rawls e a teoria crítica de Habermas, se tomarmos o objeto da teoriada justiça. O conceito de justiça se refere à estrutura básica da sociedade, isto é,às principais instituições políticas, económicas e sociais que determinam a vidacoletiva e os planos de vida individuais e que podem ser objeto de reivindicaçõesde justiça por parte dos cidadãos. A ideia central é que os princípios da justiçaque regulam a estrutura básica da sociedade devem poder ser aceitos por todosos cidadãos como pessoas autónomas, livres e iguais. O que é fundamental parao conceito de justiça não é a defesa de uma determinada concepção de vai .
como liberdadee igualdade, mas, sim,umprincípio de justificação quepossibilitediagnosticar as injustiças nas relações sociais e as arbitrariedades no exercício dopoder social e político, que encontra expressão no sistema de regras públicas daestruturabásicada sociedade. Todas as instituiçõessociais epolíticasquealgum poder sobre nossas vidas devem poder ser justificadas à luz de princípiosou valores que possam merecer essa validade de modo recíproco e universal nospróprios discursos dos cidadãos. Esse princípio fundamental de uma justificaçãodiscursiva deveorientar aestruturabásica e se situaprocedimentalmente antes dequalquer fundamentação mais específica dos princípios de justiça. A justificaçãodiscursiva estabelece as condições para a formação legítima de acordos políticos,
menos,
Parece-nos, então, que RawXnão está pensando em fazer uma mera
hermenêutica das democracias existentes. Para servirem de fúndamento para
concepção política da justiça numa sociedade democrática, os conceitos
fundamentais da razão prática aos quais se refere, o procedimento da posição
original e a construção dos princípios de justiça devem ser vistos como as ideias
intuitivase fundamentaisdaculturapolíticapúblicadeumasociedadedemocrática.
Porém, o uso público da razão não reúne simplesmente as ideias que,por
acaso,sãocompartilhadasnumaculturapolíticapúblicademocrática.Elerecorreàs
ideiaseaosprincípiosdarazãopráticaquesãoincontomáveisaoadotarométodode
equilíbrioreflexivoparalidarcomaquestãodajustiçaparaumasociedadepluralista.
Rawls acentua que, em diversos sentidos, uma cultura política democrática se
encontra dividida e que não é fácil encontrar a sua “verdade” (Forst 2007). Por
toma-se necessária uma forma construtiva de esclarecimento e justificação
das autocompreensõesnormativas que estão nabase de suas instituições básicas.
uma
ser uma sistematização racional ideológica
isso,
Na filosofiapolítica,o trabalho da abstração é acionadopor conflitospolíticos
profundos.Só os ideólogos e os visionários não sentem profundos conflitos
entre valores morais e entre estes e os valores não políticos. Controvérsias
profundas e de longa data preparam o terreno para a ideia de justificação
razoável enquanto problema prático, e não epistemológico ou metafísico.
Voltamo-nos para a filosofia política quando nossas percepções políticas
compartilhadas,comodiriaWalzer,desmoronam,e tambémquandoestamos
dilaceradosinteriormente.(...)A filosofiapolíticanão se afasta,comopensam
alguns,da sociedade e domundo.E também não pretende descobrir o queé
a verdade com seus próprios métodos distintivos de raciocínio,apartada de
toda e qualquer tradição de prática e pensamento políticos. (...) A filosofia
política, assim como os princípios da lógica, não pode impor-nos
convicções refletidas. (Rawls 2000,pp.88-89)
ores
exercemnossas
Maisdo queumatarefa teórico-conceituai,aquestão da justiça seapresenta
questão prática política: todo princípio,norma ou valor que aspire a
alidade geralobjetivadeve se submeter àprova de umarazão intersubjetiva.como uma
umav
182 Papirus Editora Habermas e a reconstrução 183
como também fornece umparâmetropara formar um juízo sobre a razoabilidade
de posições, argumentos e reivindicações em caso de divergências e conflitos no
interior da estrutura básica da sociedade.
O que a estrutura básica da sociedade deve promover é uma concepçãode autonomia plena na vida social e política, que não se restrinja apenasconcepção abrangente de autolegislação moral ou ao ideal ético de uma pessoacapazdeautorrealizaroseuidealdeboavidaouaconcepçãodeautodeterminaçãopolítico-democrática. Essa autonomia plena ganha expressão no conjunto deliberdades básicas fundamentais que especificam o status comum e garantido doscidadãos iguais numa sociedade democrática bem ordenada. Como afirma Rawls,
“a liberdade é um padrão de convivência determinado por formas sociais” (2008,
p. 77).Ela é produzida pelas instituições sociais,políticas e jurídicas da sociedade.A ênfase, portanto, está nas relações sociais e na organização de uma sociedadejusta elivre entre indivíduos tratadoscomo iguais.
Seguindo uma sugestão de Albrecht Wellmer (1996), a compreensão queRawls tem da realização das liberdades iguais émuitopróxima ao modo deHegelentender a realização da ideia de liberdade na Filosofia do direito. Uma vez queo objeto primeiro da justiça é a estrutura básica da sociedade - que abrange asinstituiçõesda família,dapropriedade,domercado e do ruleoflaw-,podemos verno liberalismo político de Rawls uma concepção de justiça que abrange os váriosmomentos oudimensões de realização de uma concepção universal de liberdadeexercida em comum, que acabaria se concretizando numa eticidade democrática.Ela abrange diferentesesferasdeautorrealização dossereshumanos,aesferaprivada(daprivacidade,das relações sociais e económicas) e apública (política e jurídica).Mas,diferentemente deHegel,emRawls a passagem dodireito abstrato àeticidadeconcreta se dariade forma mais democrática, já que o princípio da liberdade igualconduz diretamente a umprincípio de direitos iguais de participaçãopolítica e dedeliberação pública (Werle 2011). /•
Emresumo,o projeto de Rawls é uma tentativa de fundamentar princípiosde justiçapolíticaede criticasocialassumindoumaperspectiva simultaneamenteimanente e transcendente ao contexto. Seráuma tentativabem-sucedida teórica epraticamente?Como seriadeseesperar,essa tensãonoprocedimento dejustificaçãoabre os flancos para críticas à teoria de Rawls. A principal se dirige ao próprioprincípio de justificaçãopúblicaeapouca atenção queRawls dispensaria aoprocessopolíticodelegitimação.Apesar de ter revisitadoaideia de razão pública,propondoumaversãomenosrestritadadivisãoentreodomíniopúblico dasquestõespolíticasfundamentaiseodominionãopúblicodasquestõeséticasdeboavida,Rawlsaindadefenderia uma divisão estrita entre osprincípios morais corretos, justificados noconstrutivismo políticoque seriaopadrão correto de argumentação nos fóruns darazãopública e as argumentações éticas nãopúblicas desenvolvidaspelos cidadãos
a uma
O conceito de autonomia e a ideia de razãopública
Nisso Habermas identifica o cerne comum de seu projeto e do de Rawls:
interpretação intersubjetiva do conceito kantiano de autonomia, segundo auma
qual agimos de forma autónoma quando obedecemos precisamente àquelas leis
quepodemser aceitas,comboasrazões,por todos os concernidoscombase emum
uso público de sua razão. Trata-se de uma determinada interpretação política do
conceitokantiano de autonomia moral, que apresenta a base para a justificação de
princípios fundamentais.Claro,esse éumpontocontroversonointerior daprópria
tradiçãokantiana.Determinadosintérpretescolocam o conceito de autolegislação
política(IngeborgMaus) ouopressupostodeliberdades de ação iguais e anatureza
conflituosa dos seres humanos (Hõífe) no centro de uma teoria da justiça (Forst
2007). No caso de Rawls, a concepção política da justiça pressupõe um conceito
político e não um conceito ético-moral de autonomia. O primeiro se refere à
autonomiaplena dos cidadãos responsáveis moralmente, ao passo que o conceito
ético-moral de autonomia só pode ser justificado como componente de alguma
doutrina abrangente sobre a vida boa. !
A autonomia plena é alcançada pelos cidadãos: é um valor político, não
umvalor ético. Com isso querodizer que ela se realiza na vida públicapela
afirmação dos princípios politicos de justiça e pelo usufruto das proteções
dos direitos e liberdades básicos; e realiza-se também pela participação nas
questõespúblicasda sociedadee emsuaautodeterminaçãocoletiva aolongo
do tempo. Essa autonomia plena da vida política deve ser distinguida dos
valores éticos da autonomia e da individualidade, que podem aplicar-se à
vida como um todo, tanto social como individual, da forma expressa pelos
liberalismos abrangentes de Kant e Mill. A justiça como equidade enfatiza
esse contraste: afirma a autonomia política de todos, mas deixa o peso da
autonomia éticapara ser decidido pelos cidadãos separadamente, à luz de
suas doutrinas abrangentes. (Rawls 2000,p. 123)
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numa esfera pública social mais ampla, não admitindo a traduzibilidade desses
argumentos éticos para a razão pública. Qual é, afinal, o critério de razoabilidade
da razão pública? Quais os limites da apresentação e discussão das diferentes
concepções dobemnadeliberaçãopública sobre questõespolíticas fundamentais?
O uso público da razão somente intervém se os princípios de justiça já tiverem
sido propostos ou escolhidos na posição original, cabendo aos cidadãos se referir
a eles na formação do juízo político e discutir sua aplicação adequada, ou a razão
pública funciona também como contexto de descoberta das razões que justificam
osprópriosprincípiosde justiça? Seescolhermosaprimeiraopção,aconstrução do
pontodevistamoralimparcial(aposiçãooriginal) determinaa justiçadosresultados
das deliberações públicas: a argumentaçãomoralé independente das deliberações
éticas e políticas. A razão pública funcionaria, nesse caso, como o conceito de
vontade geral em Rousseau: umponto de vista comum compartilhado, baseados
no qual os cidadãos julgam questões políticas fundamentais. A questão aqui é
saber, então,qualo espaço do debatepúblico, livre e aberto sobre questões éticas
deavaliação forteemumaesferapúblicasujeitaàsrestrições damoral. Se optarmos
pela segunda interpretação,a razãopública desempenhaumpapelmais dinâmico
e inclusivo,promovendoumaponderação reflexiva e crítica entrea argumentação
morale as deliberações ético-políticas.Nesteúltimosentido,a justificaçãorefleteas
condições,sempreobscuraseimperfeitas,dadeliberaçãopúblicaemuma sociedade
democrática.O risco aqui seriaoutro:o de se perder a dimensão da aceitabilidade
racional no torvelinho das deliberações políticas, perpassadas por conflitos de
interesseserelaçõesdepoder,criandouma sociedadepolíticasujeitaa instabilidades
e crises permanentes acerca de seus fundamentos normativos.
Em prol da estabilidade de uma sociedade justa, Rawls quer justamente
evitar essaúltima interpretação darazãopública. Aopensar a razãopública,Rawls
acaba transformando os princípios de justiça, que poderiam ser interpretados
procedimentalmente, em valores políticos substantivos que ninguém poderia
razoavelmente rejeitar. A rigor,não teríamos um uso público da razão, mas uma
divisão mais ou menos estanque entre razão pública e razões não públicas. O que
faltaria a Rawls seriauma compreensão doprincípio de justificação pública como
um processo intersubjetivo de universalização de normas e valores, segundo o
qualos domínios da justiça (do que émoralmente correto e válidopara todos nós
membros da comunidade dos sereshumanos) e os da ética (do que é consideradobom para mim como indivíduo ou bom para nós como comunidade ética de
valores) nãoestariam separados apriori,mas,em cada caso concretode conflito,os
próprios cidadãos deveriampoder demonstrar,por meio do usopúblico da razão,
quais valores ounormaspoderiamreivindicar uma validade recíproca e universal.Esse é um dos pontos fortes da crítica deHabermas (e outros teóricos) a Rawls.*
A reconstrução pós-metafísica e o usopúblico da razão
A falta de clareza de Rawls sobre a tradução política do procedimento dejustificação pública em processos efetivos de deliberação entre ddadãos colocaalgumas dificuldadesparacompreender como ospróprioscidadãos,nousopúblicoda sua razão, poderiam apaziguar as tensões sociais decorrentes dos dilemas deuniversalismo versuscontextualismo,liberdade versusigualdade,autonomiapúblicaversus autonomia privada, que marcam as sociedades democráticas pluralistas.Para acentuar sua diferença e semelhança com Rawls, Habermas qualifica suateoria discursiva do direito e a concepção procedimental da democracia comoa de um republicanismo kantiano. Com base nessa qualificação, pode-se,formaesquemática,dividir oprocedimento de justificaçãopropostoporHabermasem dois momentos interligados: (a) o momento da reconstrução, com base nospressupostos pragmáticos da ação e da liberdade comunicativas, de uma versãouniversalista, formal, cognitivista, procedimental e pós-metafísica do ponto devista imparcial implícito no conceito kantiano de autonomia; (b) valendo-se dosrecursosdisponíveisnas teorias sociológicasda democraciaedodireito,oprincípiodo discurso é “traduzido” por Habermas para as condições do procedimentode legitimação próprio da democracia deliberativa, segundo o qual os próprioscidadãos membros de uma comunidade jurídica concreta podem chegar, no usopúblico de sua razão, a uma autocompreensão a propósito das bases normativasde sua vida em comum.10
Na argumentação de Habermas, a necessidade de uma concepção pós-metafísica de razãoprática não se dá, como emRawls,numa estratégia de esquivadasquestõesmetafísicasemrazão deumareflexão sobreas condições de justificaçãoimpostas pela existência de doutrinas abrangentes numa sociedade pluralista.
numa
9. Certamente, não poderei,por uma questão de espaço, detalhar aqui todos os meandros dacrítica ampla deHabermas a Rawls - que se dirige à forma da posição original; ao caráterambíguo do overlappingconsensusnoprocedimentode justificação eà distinçãopouco claraentreaceitabilidade racional e aceitação de fato;â relação entreautonomiapública eprivada;ao papel do filósofo, e assim por diante - nem a pertinente e longa réplica de Rawls.
10. Para maiores detalhes dessa reconstrução, cf. o Capítulo 4 deste livro.
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e no uso público da razão, diferentes dimensões da razão prática: a moral, a ética
e a pragmática (Habermas 1991 e 1997c). Assim como Rawls, Habermas defende
a distinção entre normas morais e valores éticos,ou questões de justiça e questões
de vida boa, e defende a primazia da justiça diante do bem, mas, diferentementede Rawls, a distinção deve ser resultado de um procedimento de universalização,
que permite uma traduzibilidade de valores não políticos em normas públicas,aceitáveis universal e reciprocamente. Os próprios cidadãos, nos procedimentosinstitucionalizados e práticas informais de discussão e deliberações públicasreais, conduzidas num espaço intersubjetivamente compartilhado, decidem
autonomamenteadistinçãoentreessas questões.11As deliberaçõespolíticasescapamdadisciplinaquelhespoderia ser impostaporumaúnicadimensão darazãoprática,seja a dimensão moral, preocupada com a resolução de questões de justiça quedizem respeito a todos e exigem um reconhecimento universal, seja a dimensãoética, voltada apenas para as avaliações fortes sobre a vida boa e a identidade dos
membros de uma comunidade concreta de valores, seja a dimensão pragmática,direcionada para a realização instrumental e estratégica de interesses individuaisou de grupos. Com a ênfase colocada nos procedimentos de deliberação pública,Habermasquer evitar orisco deumadeterminaçãomoraldapolítica,como parece
ser o caso da ideia de razão pública defendidapor Rawls.
No nível mais fundamental de justificação, podemos ver outra defesa de
Habermas da primazia da justiça sobre o bem. Para Habermas, as deliberaçõespolíticas devem operar sob um forte constrangimento procedimental, que, como
em Rawls, deve assegurar a prioridade da justiça sobre o bem,no sentido de uma
neutralidade de justificação do Estado democrático de direito, que, é claro, não
impede a impregnação ética do direito, desde que sejam respeitados os limitesprocedimentaisdoprincípiodejustificaçãorecíprocaeuniversal,inscritonoprópriosistema de direitos fundamentais. Trata-se, nesse caso, de defender a primazia dajustiça como institucionllízação jurídicadoprincípio do discurso,encarregado deintroduzir o ponto de vista da imparcialidade nos processos de formaçãopolíticada opiniãopública e da vontade.12Nesse sentido,oprincípio do discurso remete à
Como pode ser visto nos demais capítulos deste livro, Habermas recorre a uma
abordagem reconstrutiva da ação comunicativa, em cuja base está a intuição
de que, na linguagem humana, em sua capacidade de produzir o entendimentomútuo,repousaumpotencialderacionalidade sobre o quala filosofiaaindapoderá
ancorar suas pretensões universalistas, depois que se perderam as concepções
substantivasde verdade emoralDisso,obviamente,não se segueumrelativismoou
contextualismo,poisapossibilidade de fundamentar racionalmentepretensões de
validadesobreaverdadeouacorreçãonormativaaindapermanecem,masprecisam
ser resgatadas emdiscursosreais enão emprocedimentoshipotéticosa-históricos,
típicos da tradição contratualista. Com base na reconstrução pragmático-formaldas implicações envolvidas em erguer e fundamentar pretensões de validade, é
formulado umprincípio do discurso que fornece o procedimento para validação
intersubjetivadenormas,segundo oqualsomente são válidas asnormas de ação às
quais todos os possíveis atingidos poderiam dar o seu assentimento,na qualidadede participantes de discursos racionais (Habermas 1997c, v.I,p. 142).
Segundo Habermas, com seu método de esquiva para evitar as pretensões
epistêmicas fortesqueentramemchoquecomasverdadesdas doutrinasabrangentes,
Rawls corre o perigo de diluir os próprios fundamentos morais de sua teoria da
justiça, fazendocomqueaadesão aosprincípios sejaa expressão deuma formafraca
de tolerância ilustrada,emvez de ser objeto deumaaceitabilidade racional,deuma
exigênciapráticadomundomoderno.Umateoriareconstrutiva eprocedimentalda
moraledodireitodevese tomar cientede quenãopodecontornar as controvérsias
+profundas em tomo dos conceitos de razão e autonomia. O que a filosofiapolíticadevefazer,comoteoriacríticadasociedade,éesclarecer,naformadeumaanálise das
condiçõesprocedimentais (e institucionais) parao discurso racional real, o ponto
de vistamoralimparciale os critérios de legitimidade democrática,sem antecipar
nenhumconteúdoprévio,anterior àpraticadeliberativadospróprioscidadãos.Por
umlado,para Habermas, Rawls não consegue fundamentar adequadamente sua
representaçãoprocedimentaldoconceitokantianodeautonomia,poisenfraqueceem demasia as pretensões cognitivas da validade dos princípios de justiça, e,por
outro, Habermas critica Rawls por não entender de forma radical o conceito de
autonomia política, pois, com a construção dos princípios de justiça na posição
original e a sua conversão em valores políticos na ideia de razão pública, acaba
antecipandoumresultado quedeveriaser alcançadonapráxis deautodeterminação
política dos cidadãos.
Nesse sentido, um primeiro aspecto da teoria política de Habermas, que o
diferenciadeRawls,é a tentativadeprocurar combinar,nademocraciadeliberativa
Aocontrário do que pretendeRawls,Habermas argumenta que a tarefa do filósofopolíticonão é formular, justificar epropor princípios substantivos de justiça- isso seria uma tarefaque caberia aos próprios cidadãos -, mas, sim, limitar-se a esclarecer o ponto de vista
moral e o procedimento democrático, a análise das condições informais e institucionaisdos discursos práticos e dos acordos racionais (Habermas 1998).
A fundamentação doprincipiodo discurso,sua diferenciação damorale seudesdobramentonoprincípio dademocraciaencontram-senareconstrução queHabermaspropõedo sistema
11.
12.
Habermas e a reconstrução 189188 Papirus Editora
reformulaçãointersubjetívaeprocedimentaldoconceitokantiano deautonomia e,
como tal,não dá nenhuma orientação de conteúdo;é, sim, apresentado como um
procedimento que deve assegurar a imparcialidade da formação do juízo.
de legitimação política e que também aponte para os obstáculos que impedemrealização dospotenciais emancipatórios.
É só com esse procedimentalismo que a ética do discurso se distingue de
outras éticas cognitivistas,universalistas e formalistas, tais como a teoria da
justiça de Rawls (...). O princípio da ética do discurso proíbe que,emnome
deumaautoridade filosófica, seprivilegiem e se fixem de umavezpor todas
numa teoria moral determinados conteúdos normativos (por exemplo,
determinados princípios de justiça distributiva). (Habermas 1989,p. 149)
Observações finais
Na réplica a Habermas, Rawls lança uma crítica à tentativa de Habermasde fundamentar suas reflexõesnormativas sobre a justiça emuma teoriacríticadasociedade. Para Rawls, a teoria discursivado direito edademocracia correoriscode nãopoder ser entendidacomo umacompreensão eticamenteneutrade justiça.A filosofiapós-metafísica deHabermas afigura-se,paraRawls,porumlado,comouma teoria antimetafísica, que questiona principalmente determinadas doutrinasabrangentes;por outro lado,é elamesma metafísica,poispretende ser tuna teoria
abrangente do mundo humano.
Um segundo aspecto da teoria de Habermas, qúé o distingue (nesse caso
radicalmente) de Rawls, reside na sua tentativa de situar o princípio do discurso
no contexto próprio das sociedades modernas, caracterizadas não apenas pelo
pluralismo e pela perda da eticidade tradicional capaz de vincular a todos, mas
também pela crescente autonomização dos sistemas económico e político-
administrativo, cujas lógicas de integração reificante ameaçam colonizar a
infraestrutura comunicativa do mundo da vida. Para pensar de forma realista o
vínculo entre moral, direito e política,Habermas vê no direito, a despeito de sua
dupla face de Jano, de coerção e de liberdade, a única forma viável de traduzir,
nas práticas sociais e nas instituições da sociedade, seu princípio de legitimidade
democrática apoiado no princípio do discurso e nas dimensões da esfera pública
e da sociedade civil. O medium do direito permite transmitir as experiências
intersubjetivas de reconhecimento recíproco, próprias da ação comunicativa e
do uso público da razão (o discurso prático),para uma sociedade constituída por
pessoas integradas sistemicamenteeestranhas entre si.ParaHabermas,amediação
institucional e o suporte sociológico dado pela esferapública e a sociedade civil se
f'convertem em pressupostos necessários para o uso público da razão. A “teoria da
justiça”propostapor Habermas- seéquesepode falar nesses termos-éuma teoria
crítica da sociedade,marcadapor indagações sociológicas e de filosofiado direito,
que vãomaisalém das tarefas queRawlsatribuià filosofiapolítica.ParaHabermas,
as reflexões sobre a justiça têm de contar com uma filosofia política vinculada
às ciências humanas em geral, que mostre como seus fundamentos normativos
estão enraizados nos desenvolvimentos e processos reais de integração social e
A doutrina de Habermas é, acredito,uma doutrina lógicano amplo sentidohegeliano: uma análise filosófica dos pressupostos do discurso racional (darazão teórica e da razão prática) que inclui em seu seio, como se diz, todosos temas substanciais das doutrinas religiosas e metafísicas. Sua lógica émetafísica no seguinte sentido: explica-nos o que há.E o que há são sereshumanos comprometidos na ação comunicativa em seu mundo da vida.(Rawls 1998,p. 82)
Para Rawls, reflexões normativas fundamentadas emuma teoria com essaspretensões dificilmentepassariam pelo teste intersubjetivo do equilíbrio reflexivoe não poderiam oferecer um ponto de vista público imparcial baseados no qualos cidadãos poderiam julgar as questões políticas fundamentais: não poderiamser a base pública de justificação para os acordos políticos fundamentais em uma
sociedade na qual os cidadãos estão profundamente divididos entre si.
A objeçãoqueRawls colocaparaHabermas temumarelevânciaprática,poisa questão “seumaconcepção de justiçase fundamentaempretensõesmetafísicas”sótemsentidonamedidaem quetalconcepção devapoder reivindicarqueé tolerantenão apenas no sentido teórico,mas muito mais no sentidoprático:para ser aceitaentre doutrinas abrangentes razoáveis numa sociedade pluralista, ela mesma nãopode assumir uma posição antimetafísica que possa ser refutada racionalmente.de direitos da cidadania democrática,destacando ovinculo internoentreoEstadode direito
e a democracia deliberativa,os direitoshumanos e a soberaniapopular, feitanocapítuloIII
de Direito e democracia (cf. os demais capítulos deste livro).
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identidade (individuale coletiva) e da autorrealização pessoalbaseada nas relaçõesde reconhecimentomútuoedelutapor reconhecimento entreindivíduos e grupos.
A possibilidade de realização dos desejos e necessidades de alguém como ser
humanoindividuale plenamenteautónomo, isto é,apossibilidade de formação da
identidadehumanadepende do desenvolvimento de uma relaçãopositivaconsigomesmo - autoconfiança, autorrespeito e autoestima -, que só pode ser realizada
emrelações intersubjetivas de reconhecimento recíproco bem-sucedidasna esferaprivada do amor e da amizade, na esfera político-jurídica do direito e na esferasocialdasolidariedade e da cooperação.Umateoriacríticada justiçadeve ter como
objeto o vínculo constitutivo entre a estrutura institucionalbásica da sociedade, a
formação da identidade e o desenvolvimento de uma vida boa (não deformada).
Uma de suas tarefas centrais é proteger precisamente as vulnerabilidades dosindivíduos, permitindo-lhes a aquisição de um conjunto de capacidades para
conduzirem autonomamente a própria vida e sé realizarem. Consequentemente,
uma teoria crítica da justiça deve ser capaz de identificar socialmente as várias
vulnerabilidades a que estão sujeitos os indivíduos e se voltar para os recursos
materiais e as circunstâncias institucionais necessárias para o exercício daautonomia pessoal: necessidade de educação, alimentação adequada e abrigo,oportunidades reais de participação da vidasocial.Deve tambémdar ao indivíduo
a possibilidade de desenvolver um senso interno de autonomia (autoconfiança,
autorrespeito e autoestima). Portanto, uma sociedade justa preocupada com a
autonomia deveria proteger a infraestrutura do reconhecimento recíproco: as
relações de reconhecimentomaisoumenos institucionalizadas queproporcionam
autorrespeito, autoconfiança e autoestima.
É exatamente isso, segundo Honneth, que não é contemplado porabordagens deontológicas da justiça, como a do liberalismo político de Rawls e
do republicanismo kantiano de Habermas. Uma concepção de justiça baseadaem direitos não conseguélidar com as condições que sustentam a aquisição e
manutenção daautoestimaedaautoconfiança.Omedium dos direitosfundamentaisé insuficiente para lidar com as vulnerabilidades dos seres humanos. A teoria da
justiça deveria ser uma teoria normativa da estrutura básica de reconhecimentode uma sociedade. Afinal, a eticidade é o lócus da vida humana e a teoria crítica
da justiça deveria estar voltada para os domínios sociais concretos - as relações
pessoais, as ações e interações mediadas pelo mercado e a esfera públicapolítica -em que os princípios da liberdade individual e da autorrealização pessoal são
gerados. Como somos criaturas socialmente situadas, estamos profundamentevulneráveis aomodo como somos percebidos e caracterizados pelos outros,eo que
Oobjetivoda justiçacomo equidadeé,por conseguinte,prático: apresenta-se
como umaconcepção da justiça quepode ser compartilhada pelos cidadãos
como abasedeumacordopolíticoargumentado,beminformadoevoluntário.
Expressa sua razãopolíticacompartilhadaepública.Mas,para chegar auma
razão compartilhada,a concepção de justiça deve ser, tanto quanto possível,
independente das doutrinas filosóficas e religiosasconflitantese opostasque
os cidadãos professam. Ao formular tal concepção, o liberalismo aplica o
princípio da tolerância àprópria filosofia. (Rawls 2000, p. 52)
Por isso, em sua réplica a Habermas, Rawls insiste no argumento de
que a razão pública - a argumentação dos cidadãos no fórum público sobre os
fundamentosconstitucionais e as questões de justiça básica - deve estar orientada
por uma concepção política cujos princípios e valores todos os cidadãos possam
endossar. Essa concepção política deve ser política,e não metafísica.
No debateentreRawlseHabermas, tocamos aquino cerne de controvérsias
agudas na filosofia política contemporânea, que refletem os desafios de pensar
uma sociedade justa no contexto de sociedades pluralistas: como pode haver uma
justificação autónoma da concepção de justiça sem que se introduzam suposições
metafísicas ouantimetafísicas emseus conceitos de justificação razoável,de pessoa
autónoma ou de validade normativa? Como o princípio da tolerância pode ser
aplicadoàprópria filosofiapolítica,semque esta fiqueesvaziadade suaspretensões
cognitivas? Afinal,como fundamentaruma teoriacríticada justiçapara sociedades
democráticasqueeviteos extremos donormativismoabstrato e daconfirmação do
realmente existente é aponte para perspectivas reais e plausíveis de superação de
misérias, injustiças e sofrimentos de nossas realidades sociais e políticas?
Essas questões estãonocentro de duas tentativas mais recentes de elaborar
uma teoria crítica da justiça, vinculando filosofiapolíticaecrítica social:a de Axel
Honneth e a de Rainer Forst. Contra o enfoque voltado apenas aos princípios
normativos abstratos e aos procedimentos de justificação,Honneth (2003 e 2011)
pretendepreencher o deficit sociológico das abordagensnormativas aproximando
a teoria da justiça da dinâmica real dos conflitos sociais. Valendo-se da ideia de
reconhecimento e delutapor reconhecimento como gramáticamoraldosconflitos
sociaisedoconceitodeeticidadedemocrática,Honnethpropõeumareformulação
da questão da justiça com base numa explicação das condições intersubjetivas
de formação da identidade e de uma fenomenologia moral das experiências
de desrespeito. No centro da teoria de Honneth, encontramos uma concepção
formal de eticidade fundamentada na ideia de uma formação intersubjetiva da
Habermas e a reconstrução 193192 Papirus Editora
uma teoria crítica da justiça deveria assegurar é que cada um recebesse o devidoreconhecimento da sua identidade pessoal: essa é uma necessidade humana vitale umapré-condição para agir efetivamente de forma autónoma (Honneth 2011).
Comointuito semelhante de elaborar uma teoria crítica reflexivada justiça,
Forst procura analisar a questão filosófica da fundamentação como uma questão
prática,radicalizando e contextualizandoa ideiade justificaçãopública.Noespírito
de Rawls e Habermas, Forst mantém a ideia de justificação recíproca e universal
como o cerne de uma teoria da justiça. Para isso, a questão da justificação e o
princípio deautonomiaquelheésubjacentenão devem serpostosde formaabstrata,
mas ser analisados concretamente, talcomo colocados por sujeitos históricos quenão se contentavam ou não se contentam mais com as justificações fornecidas
para as ordensnormativas a que estão subordinados.Uma teoria crítica da justiçadeveria, então, reconstruir as normas e princípios levantados na práxis social da
justificação.A análisereconstrutivadadinâmicasocialde justificaçãoeos diferentescontextos (social,político,moral, jurídico) em que ela ocorre, e que estão na basedas ordens normativas, deveriam ser o ponto de partida de uma filosofia políticacríticaereflexiva.Essepontodepartida,por sua vez,está ancoradonopressuposto
de que as pessoas são sempre participantes de “umamultiplicidade de práticas dejustificação; o que sempre pensamos e fazemos ocorre em determinados espaços(sociais) de razões, e o que chamamos de razão é a arte de se orientar nos e entre
esses espaços” (Forst 2011,p. 14).
A perspectiva da filosofia política - de pensar os indivíduos como pessoasautónomas,autoras edestinatáriasda justificação- temde ser complementadapelaanálisecrítica das relaçõesde justificaçãoparamostrar precisamente se estamos ou
não diante de possibilidades reais de justificação.13 O foco de uma teoria da justiça
não seria definir quais bens, recursos ou capacidades são necessáriospara realizarumprojeto de vidaboa,mas, sim,partir de uma filosofia social que compreenda a
sociedadecomoumconjunto depráticas e relações de justificação e quereconheçaos indivíduos como sujeitos autónomos participantes nas diversas práticas dejustificação, os quais possuem um direto à justificação nesses contextos social e
político. Uma critica das relações de justificação,por sua vez, deveria cumprir asseguintes tarefas: ter em vista uma análise crítica da sociedade que não se restrinjaapenas às dimensões político-institucionais da justificação, mas envolva também
análise das relações e estruturas sociais, económicas e culturais que violem oprincípio de justificaçãorecíproca euniversal,caracterizadaspor formasdeexclusão,por privilégiosepeladominaçãoarbitrária;elaborar umacrítica teórica discursiva e,
parte,genealógica das justificações falsas(muitos vezes ideológicas) derelaçõessociaisassimétricas;assumir comoexigênciauma “estruturabásicade justificação”,
imperativo primeiro da justiça, como espaço para uma práxis discursivaautónoma dos próprios indivíduos (nacionais e estrangeiros) subordinados aestrutura; esclarecer, de uma perspectiva histórica e social, quais os fracassos efalhas dasestruturasdejustificaçãopolíticas esociais efetivasquedeveriamrevelaremodificar asrelações injustas;comprovar demodo autocrítico ospadrõesde suaatividadecrítica,sem fabricar umanormaouidealabsoluto:apretensãodevalidadedacrítica ficanadependênciadapossibilidadedeconsentimentoporpartedaquelesque se subordinam à norma (Forst 2011,pp. 20-21).
Parece-nos evidenteque,nesse debate sobre a justiça,caminhamosparaummaioresclarecimento dos ideaisnormativos edas diferentes formasdeelaborar umateoriacríticada justiça quepermitamalguma forma deinteligibilidadeàestruturabásica das sociedades democráticas.Resto-nos avançar maisna demonstração daspossibilidades reais de realização dos potenciais emancipatórios de uma teoriacrítica da justiça.
uma
em
como
essa
13. Toleranz hn Konflikt,de Forst,publicado em 2003,pretende ser a reconstrução das viriaslutas históricas que introduziram o princípio de justificação pública no mundo políticomoderno.
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Centro Corsini:Atuando na prevenção contra a AIDS
CENTROCORSINI
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s:UJZD 0 Centro Corsini é uma organização não governamental (ONG) fundada em1987,
na cidade de Campinas, que atua nas áreas de pesquisa, prevenção e assistênciamultidisciplinar a portadores de HIV/Aids e outras doenças sexualmentetransmissíveis. É a única ONG no Brasil a realizar atendimento clinico asoropositivos,sendoumcentro dereferêncianacionalA missão do Corsini é criar e divulgar conhecimentos, produtos e serviços em
HIV/Aids deforma ética,respeitando o ser humanodentrodoconceitoholistico,
que integra corpo, mente e espírito.0 Centro desenvolve atividades nas áreas
de ambulatório clínico multidisciplinar, educação para a prevenção e aindacapacitação de recursos humanos para manejo com soropositivos. Em 1994,
atendendo a demandas decorrentes do avanço da Aids, foi criado em Campinas
um abrigo para crianças portadoras de HIV que ficaram órfãs de pai e mãe. É
conhecido como Unidade de Apoio Infantil (UAI). 0 Centro Corsini é uma
instituição de caráter filantrópico, reconhecida como de utilidade pública,portadora tambémdoCertificado deFilantropia.NÂO FAÇA DE SUA VIDA UMA PÁGINA EM BRANCO: Conheça o Centro Corsini e faça
parte dalutacontra o HIV/Aids.
Mais informações pelo site www.centrocorsini.org
ou pelo telefone (19) 3756-6300 r
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A campanha Não faça de sua vida uma página em branco: Colabore com quem precisa de você
foi idealizada pela Papirus e pela D&D Assessor» de Comunicação com o objetivo de divulgar o
trabalho de entidades envolvidas em ações sociais sérias e meritórias. Assim, as últimas páginas
doslivrosda Papirus, que costumavamserembranco,agora trazemtextos informativos sobre taisentidades. A campanha conta com o apoio da CentralBrasileira de Notícias (CBN) de Campinas, da
Rede Anhanguera de Comunicação (RAC) e da CPFL Energia.
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