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92 Mário Adnet Sou um músico gerado e nascido no Rio de Janeiro em 1957, durante os “anos dourados” do governo de Juscelino Kubitchek, e fui certamente contagiado, e ainda continuo até hoje, pelo otimismo desse período que muitos descrevem como um dos mais felizes da história do país, sobretudo para a música brasileira. Não se pode falar em Bossa Nova sem se falar, obvia- mente, em João Gilberto, Antônio Carlos Jobim e Vinícius de Moraes, mas é de fundamental importância o ambiente favorável criado por Juscelino Kubitschek. E logicamente a contribuição de nossos grandes heróis irrequietos, entre compositores, arranjadores, músicos e intérpretes que já vinham modernizando a música brasileira apesar dos tem- pos menos azuis (a lista é interminável). Quando ouvimos falar em Bossa Nova, associamos imediatamente o rótulo a um movimento musical feito por uma pequena elite da zona sul do Rio de Janeiro. Alguns crí- ticos puristas diziam que era a música popular que passava das casas para os apartamentos, minimizando, talvez sem se dar conta, a extensão do que realmente aconteceu. Na verda- de essa novidade não foi de última hora mas fruto de um processo de incubação que levou anos se manifestando iso- ladamente durante um longo inverno, até a chegada daquela primavera, o ambiente perfeito com jeito de Shangri-lá, que foi a “Era JK”. Tom Jobim, João Gilberto e Vinícius de Moraes foram, portanto, a ponta de um iceberg. E se pensar- Era JK: ensaios de uma utopia João Gilberto Foto: Mario Thompson

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    Mrio Adnet

    Sou um msico gerado e nascido no Rio de Janeiro em1957, durante os anos dourados do governo de JuscelinoKubitchek, e fui certamente contagiado, e ainda continuo athoje, pelo otimismo desse perodo que muitos descrevemcomo um dos mais felizes da histria do pas, sobretudo paraa msica brasileira.

    No se pode falar em Bossa Nova sem se falar, obvia-mente, em Joo Gilberto, Antnio Carlos Jobim e Vinciusde Moraes, mas de fundamental importncia o ambientefavorvel criado por Juscelino Kubitschek. E logicamente acontribuio de nossos grandes heris irrequietos, entrecompositores, arranjadores, msicos e intrpretes que jvinham modernizando a msica brasileira apesar dos tem-pos menos azuis (a lista interminvel).

    Quando ouvimos falar em Bossa Nova, associamosimediatamente o rtulo a um movimento musical feito poruma pequena elite da zona sul do Rio de Janeiro. Alguns cr-ticos puristas diziam que era a msica popular que passavadas casas para os apartamentos, minimizando, talvez sem sedar conta, a extenso do que realmente aconteceu. Na verda-de essa novidade no foi de ltima hora mas fruto de umprocesso de incubao que levou anos se manifestando iso-ladamente durante um longo inverno, at a chegada daquelaprimavera, o ambiente perfeito com jeito de Shangri-l, quefoi a Era JK. Tom Jobim, Joo Gilberto e Vincius deMoraes foram, portanto, a ponta de um iceberg. E se pensar-

    Era JK:ensaios deuma utopia

    Joo Gilberto

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    mame tinha um temperamento exatamente contrrio aodele uma mulher severa, rigorosa, filha de um alemomuito disciplinado. A cidade de Diamantina, assim como asoutras cidades de Minas daquele tempo, eram muito isola-das e tinham que se bastar em termos de cultura. Criavamseus prprios clubes literrios e as escolas eram tambmncleos culturais. Durante quase 200 anos, oito ou noveestabelecimentos de ensino, distribudos por Diamantina,Mariana, Ouro Preto, Serro, concentraram a cultura deMinas Gerais. De modo que todos ns que ali vivamos,tnhamos orgulho dos diamantinenses que j haviam passa-do por ali, e que, saindo de Diamantina, tinham conquistado,em outros pontos do pas, glria ou fama. Sobretudo a polti-ca ensejava estas oportunidades; e tambm a literatura.

    Joo Nepomuceno Kubitschek, tio-av de Juscelino, umdos primeiros dolos do menino Non, chegou a vice-gover-nador do estado, mas se tornou famoso pela sua poesia, quegostava de declamar nas histricas noites de luar deDiamantina. Ele estudava em So Paulo, juntamente com apliade de outros brasileiros muito ilustres na literatura, entreos quais o grande, o imenso Castro Alves, que cuidavam s deescrever ou de produzir versos.

    Aos seis anos de idade teve, pela primeira vez, a sensa-o de contato com uma pessoa importante com a visitado presidente de Minas (como era chamado um governa-dor de estado na poca), Joo Pinheiro Diamantina, quechegou a cavalo depois de vrios dias de viagem e foi rece-bido por sua me. O presidente, na sala de visitas de suacasa, prometeu que fundaria o primeiro grupo escolar deDiamantina, o que foi cumprido risca ainda no mesmoano. Com isso D. Jlia foi a primeira professora nomeadae passou a receber um salrio do estado, o que melhorouum pouco a vida da famlia. Juscelino foi um menino extre-mamente estudioso. Devorou os trezentos livros da biblio-teca, alm de todos os outros da cidade, sobre qualquerassunto, que pedia emprestado. Estudou francs comuma francesa que tinha vindo de Paris com o marido, noincio do sculo passado, um minerador de diamante, quedepois de explorar as minas exausto e aumentar osestragos nas encostas da cidade, voltou terra natal aban-donando a mulher no Brasil. Com ela, Juscelino traduziutodo o teatro clssico francs: Molire, Voltaire e Racine.

    mos bem, a obra que fizeram to utpica e desbravadoraquanto a de JK. Vai muito alm da zona sul do Rio e maiordo que o Brasil, tanto que atravessou as fronteiras.

    No incio dos anos 50, Tom Jobim dava duro nas noitesdo Rio para sustentar a famlia mas j mostrava a que veio,com suas melodias e harmonias avanadas. Joo Gilbertoainda no havia tido o estalo daquela batida sinttica do vio-lo e Vincius de Moraes era um diplomata que fazia umapoesia ainda um tanto erudita. Juscelino era governador deMinas e j tinha feito alguns ensaios para o futuro prximo,com a ampliao da cidade (planejada) de Belo Horizonte,incluindo a a criao de um novo bairro inteiro, a Pampulha,

    projetada por um jovemarquiteto, Oscar Niemeyer.V-se que JK j tinha umfaro fino para perceber e esti-mular novos talentos.

    interessante observar,sob o ponto de vista artsticomusical claro, esses perso-nagens a comear pelo oento presidente da repbli-ca, cuja a afinidade comartistas e literatos fez comque aquele perodo fosse togeneroso com a msica.

    Juscelino nasceu emDiamantina em 1902, teveinfncia e juventude pobre,ficou rfo de pai aos doisanos de idade e foi alfabetiza-do e educado pela me, aprofessora primria JliaKubitschek de Oliveira. Opai, Joo Csar de Oliveiraera um homem inteligente,bomio e, como todos oshabitantes da cidade, gostavade serenata. Era tambmexcelente danarino e bomviolonista. Em todas as fes-tas, ele era convocado;

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    Esses dados sobre sua infncia e adolescncia parecemsuficientes para dar a pista da importncia que teriam amsica, a literatura, a poesia, a cultura de maneira geral, naformao do futuro presidente. E com certeza a herana dosexemplos de disciplina e rigidez da me, do tio poltico-poeta, da promessa cumprida do presidente de Minas, almda simpatia, a alegria de viver e a bomia, provavelmente her-dadas do pai. Mas sua trajetria no foi s alegria e bomia.

    Num ltimo depoimento em 1976, pouco antes de suamorte, ele mesmo admitiria: - muito difcil um homemsair de Diamantina, filho de uma viva, pobre, chegar pre-sidncia da Repblica. preciso ter um feitio muito especialde comunicao, seno no vence as dificuldades que eu tiveque vencer. Primeiro, tive que vencer as dificuldades debaixo, depois as mdias, e, finalmente, as de cima. Eu tive queenfrentar todas, porque enfrentei as dificuldades decorrentesda situao poltica municipal, estadual, federal, militar; tudofoi um conjunto. Ou ter sido uma orquestra?

    De volta ao incio dos anos 50, esse feitio muito especialde comunicao j havia levado Juscelino duas vezes cma-ra dos deputados, prefeitura de Belo Horizonte e ao gover-no de Minas.

    Enquanto isso no Rio de Janeiro, Antnio Carlos Jobimcontinuava tentando resolver as dificuldades de baixo, JooGilberto nem isso e Vincius de Moraes, bem mais velho, tal-vez estivesse passando pelas mdias.

    Tambm para Jobim a vida no era s boemia.Descobriu em pouco tempo que como pianista da noite nochegaria a lugar algum e que ainda poderia ficar doente.Havia estudado com grandes mestres como Koellreuter,Toms Teran e Lcia Branco e para ser algum, precisariatrocar a noite pelo dia. Com o incentivo da famlia, ele saiudo cubo das trevas, como se referia s boates, e passou aostrabalhos diurnos. Primeiramente arrumou um empregona editora Euterpe e, pouco depois, na gravadoraContinental, onde se tornou arranjador da casa, com a ajudado maestro e compositor Radams Gnattali, um de seus do-los. A partir de 1953 comeou a ter suas msicas gravadas,alm de fazer arranjos para artistas como Orlando Silva eDalva de Oliveira em final de carreira. Em 54, veio o primei-ro sucesso,Tereza da Praia, com Billy Blanco, nas vozes semfirulas de Dick Farney e Lcio Alves. Seu talento tambm

    de orquestrador o levaria a projetos ousados como aSinfonia do Rio de Janeiro, que talvez tenha sido um ensaiopara Orfeu do Conceio, o primeiro trabalho comVincius, que conheceu j nos anos JK, e, mais tarde,Braslia,Sinfonia da Alvorada. Vincius parecia estar descobrindoque a simplicidade da poesia era o grande segredo da expres-so da msica popular. Aos poucos foi rompendo os laoscom os meios acadmicospara se tornar o nosso poe-tinha. Musicalmente TomJobim j era moderno etinha todas as caractersti-cas musicais que o torna-riam o maestro soberano,na feliz expresso cunhadapor Chico Buarque. Comome disse uma vez, numaentrevista gravada para ordio, existia uma necessi-dade de se limpar a msica,seja nos arranjos, na forma,faltava uma linguagem maissinttica. Meu piano econmico. Sempre tenteiser conciso com as notas,usando poucas e boas,numa tentativa de fazeralgo que significasse algumacoisa. Acho que essa minhapreocupao deu resultado.Essa coisa que eu fiz, vocv hoje em dia na msica, osmsicos procurando dizermuito com poucas notas.Antigamente o pianista, ovirtuoso, era aquele caraque fazia um monte dearpejos e escalas. Os msi-cos de sopro, muitos aindatocam muitas notas nosaxofone, no clarinete eassim havia essa tentativa

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    para integrar o grupo vocal Garotos da Lua, contratado daRdio Tupi, a convite de Alvinho, seu amigo e integrante doconjunto. Naquele tempo ele soltava a voz la OrlandoSilva, um de seus maiores dolos. Chegou a gravar dois dis-cos de 78 rotaes cantando assim. Um detalhe curioso que uma das caractersticas das interpretaes de OrlandoSilva a brincadeira que ele fazia com as melodias, adiantan-do e atrasando, em relao ao acompanhamento, o que setornou mais tarde a marca registrada de Joo Gilberto. Adiferena que como Joo tocava bem violo e era antes detudo um msico, tinha maior controle rtmico sobre a brin-cadeira, pois era o responsvel pelo prprio acompanha-mento. Pode parecer mentira mas esse achado de Joo teriasido gestado justamente em Diamantina, durante os oitomeses em que passou confinado na casa de sua irmDadainha, enquanto Juscelino estava em plena campanhapara presidente. Estaria tudo planejado e ensaiado ?

    Mrio Adnet Compositor, violonista, arranjador e produtor

    carioca, Mario Adnet atua como profissional desde 1977. Em 1980 lan-

    ou seu primeiro disco, em duo com o compositor e pianista Alberto

    Rosenblit, e passou a atuar tambm como arranjador. Em 1984 lanou

    seu primeiro disco solo,Planeta Azul. Nos anos 90 passou a ser gravado

    no exterior por intrpretes como Lisa Ono, Joyce, Charlie Byrd, Chuck

    Mangione e outros. Ao mesmo tempo, produziu e apresentou progra-

    mas de msica nas rdios MEC e Alvorada, com entrevistas de artistas

    da MPB. Em 1994 Tom Jobim incluiu em seu ltimo disco (Antnio

    Brasileiro) o arranjo de Maracangalha (Dorival Caymmi) feito por

    Adnet, o que projetou seu trabalho como arranjador. Em seguida lanou

    seu CD Pedra Bonita, com participao de Tom Jobim, e excursionou

    pelo Japo ao lado de Lisa Ono. Em 98 passou a escrever perfis de artis-

    tas da MPB para o Segundo Caderno do jornal O Globo. Em 1999 lan-

    ou o CD Para Gershwin e Jobim que foi gravado entre o Rio e Nova

    Iorque. Depois vieram Villa-Lobos-Corao Popular no final de 2000,

    com canes do maestro em arranjos populares, Para Gershwin e

    Jobim-Two Kites em 2001, alm de produzir ao lado do saxofonista Z

    Nogueira, o lbum duplo Ouro-Negro, dedicado obra do maestro

    Moacir Santos. Entre 2001 e o primeiro semestre de 2002 esteve por

    duas vezes no Japo como arranjador dos ltimos CDs da cantora Lisa

    Ono. Lanou no incio de 2002 Rio Carioca, em homenagem cidade

    do Rio de Janeiro.

    de dizer o essencial. O samba tinha mil percussionistas, osespaos estavam todos ocupados, a bateria mais parecia ummar durante uma tempestade. Era muita coisa tocando aomesmo tempo, da a necessidade de ir limpando...

    O detalhe que faltava para a mudana a que Tom sereferia foi, com certeza, a batida tambm econmica do vio-lo de Joo Gilberto.

    Joo Gilberto chegou ao Rio de Janeiro em 1950, vindode Salvador, onde era crooner da Rdio Sociedade da Bahia,

    Antnio Carlos Jobim e Vincius de Moraes

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