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    FUNDAO GETULIO VARGAS

    ESCOLA BRASILEIRA DE ADMINISTRAO PBLICA E DE EMPRESAS

    CENTRO DE FORMAO ACADMICA E PESQUISA

    CURSO DE MESTRADO EM ADMINISTRAO PBLICA

    VERSO PRELIMINAR DE DISSERTAO DE MESTRADO APRESENTADO POR

    RONALDO GUIMARES GUERALDI

    TTULO

    A APLICAO DO CONCEITO DE PODER BRANDO (SOFT POWER) NA

    POLTICA EXTERNA BRASILEIRA

    PROFESSORA ORIENTADORAACADMICA

    ANA LCIA GUEDES

    VERSO PRELIMINAR ACEITA,DE ACORDO COM O PROJETO APROVADO EM :

    DATA DA ACEITAO:______/_____/_____

    ________________________________________________

    ASSINATURA DA PROFESSORA ORIENTADORA ACADMICA

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    SUMRIO

    LISTA DE TABELAS 3

    Captulo 1 INTRODUO 41.1 Contextualizao do tema 41.2 Tema, Pergunta e Objetivo 71.3 Delimitao do estudo 91.4 Relevncia do estudo 10

    1.4.1 Relevncia da poltica externa no mbito das Relaes Internacionais 161.4.2 Relevncia da poltica externa no mbito da Administrao Pblica 21

    Captulo 2 REFERENCIAL TERICO 28

    2.1 Paradigmas das Relaes Internacionais 282.2 Poder e hegemonia no sistema internacional 312.3 Autoridade e legitimidade do Estado 412.4 Insero Internacional do Brasil 432.5 Agenda Internacional e Domstica 552.6 Conceito de Poder Brando 65

    2.6.1 Fontes de Poder Brando 732.6.2 O Poder Brando difundido pelo mundo 772.6.3 Fortalecimento do Poder Brando 792.6.4 Diplomacia Pblica 812.6.5 Poder Brando e Poltica Externa 82

    2.7 Critrios, Categorias e Cdigos de Anlise 84

    Captulo 3 METODOLOGIA 89

    3.1 Tipo de pesquisa 893.2 Coleta de dados 91

    3.2.1 Anlise de contedo na produo acadmica em administrao pblica 913.2.2 Anlise de discurso 923.2.3 Anlise de contedo na mdia internacional 94

    3.3 Tratamento dos dados 973.4 Desenho de pesquisa 98

    Captulo 4 DESCRIO E ANLISE DOS DADOS 99

    4.1 Resultados da anlise de discurso da poltica externa brasileira 994.1.1 Discurso do Presidente Fernando Henrique Cardoso 1004.1.2 Discurso do Presidente Luiz Incio Lula da Silva 1044.1.3 Discurso do Ministro das Relaes Exteriores Celso Lafer 1084.1.4 Discurso do Ministro das Relaes Exteriores Celso Amorim 1114.1.5 Discurso do embaixador Osmar Vladimir Chofhi 1144.1.6 Discurso do embaixador Samuel Pinheiro Guimares 1154.1.7 Resumo do resultado da anlise de discurso 118

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    4.2 Resultados da anlise de contedo na mdia internacional 1194.2.1 The Economist 1204.2.2 The New York Times 1254.2.3 Le Monde 132

    4.2.4 Resumo das anlises de contedo 1414.3 Resumo dos resultados das anlises de discurso e de contedo 142

    Captulo 5 CONCLUSES E SUGESTES PARA FUTURAS PESQUISAS 146

    5.1 Concluses 1465.2 Sugestes para futuras pesquisas 152

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS 154

    APNDICES 159

    Apndice 1 Critrios, categorias e cdigos de anlise em ingls 159Apndice 2 Critrios, categorias e cdigos de anlise em francs 160

    ANEXOS 161

    Anexo 1 - Discurso do Presidente Fernando Henrique Cardoso na ONU, em 2001 161Anexo 2 Discurso do Presidente Luiz Incio Lula da Silva na ONU, em 2004 165Anexo 3 Discurso do Ministro das Relaes Exteriores Celso Lafer em 2001 169Anexo 4 Discurso do Secretrio-geral do Itamaraty Osmar Chohfi, em 2002 174Anexo 5 Textos para a anlise de contedo da revista britnica The Economist 176Anexo 6 Textos para a anlise de contedo do jornal americano New York Times 186Anexo 7 Textos para a anlise de contedo do jornal francs Le Monde 193

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    LISTA DE TABELAS

    Tabela 1 Resultados dos levantamentos bibliogrficos 12Tabela 2 Resultados do levantamento na RAP 12

    Tabela 3 Relao de autores e suas definies de poder 40

    Tabela 4 Definio de autoridade de Weber 41Tabela 5 Dimenses de poder 72

    Tabela 6 Os trs tipos de poder 75

    Tabela 7 Critrios, categorias e cdigos de anlise 88Tabela 8 Total de artigos sobre o Brasil na The Economist 120

    Tabela 9 Anlise de contedo no primeiro artigo da The Economist 121Tabela 10 Anlise de contedo no segundo artigo da The Economist 122

    Tabela 11 Anlise de contedo no terceiro artigo da The Economist 122

    Tabela 12 Anlise de contedo no quarto artigo da The Economist 124Tabela 13 Anlise de contedo no quinto artigo da The Economist 125

    Tabela 14 Resumo da anlise de contedo na The Economist 125

    Tabela 15 Total de artigos sobre o Brasil no NYT 126

    Tabela 16 Brasil nas editorias doNew York Times 126Tabela 17 Anlise de contedo no primeiro artigo doNew York Times 128

    Tabela 18 Anlise de contedo no segundo artigo doNew York Times 129

    Tabela 19 Anlise de contedo no terceiro artigo doNew York Times 130Tabela 20 Anlise de contedo no quarto artigo doNew York Times 131

    Tabela 21 Anlise de contedo no quinto artigo doNew York Times 131

    Tabela 22 Resumo da anlise de contedo noNew York Times 132Tabela 23 Artigos com Brasil no ttulo noLe Monde 132

    Tabela 24 Palavras mais freqentes nos textos doLe Mondesobre o Brasil 135

    Tabela 25 Anlise de contedo no primeiro artigo doLe Monde 136Tabela 26 Anlise de contedo no segundo artigo doLe Monde 137

    Tabela 27 Anlise de contedo no terceiro artigo doLe Monde 138

    Tabela 28 Anlise de contedo no quarto artigo doLe Monde 139

    Tabela 29 Anlise de contedo no quinto artigo doLe Monde 140Tabela 30 Resumo da anlise de contedo noLe Monde 140

    Tabela 31 Resumo da freqncia dos cdigos na mdia internacional 142

    Tabela 32 Critrios, categorias e cdigos de anlise em ingls 159Tabela 33 Critrios, categorias e cdigos de anlise em francs 160

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    Captulo 1 - INTRODUO

    Esse primeiro captulo introdutrio apresenta o tema e os objetivos a serem

    alcanados nesta pesquisa, assim como sua delimitao e relevncia para o estudo da

    administrao pblica. A proposta do estudo verificar, seguindo as perspectivas de

    administrao pblica e de relaes internacionais, como o conceito terico, chamado

    de poder brando, aplicado poltica externa brasileira. Uma justificativa para tal

    abordagem vai ser apresentada e detalhada a seguir.

    1.1Contextualizao do tema

    A ditadura militar que governou os brasileiros de 1964 a 1984 incentivou o

    slogande que o Brasil o pas do futuro. Quarenta anos se passaram e esse futuro

    ainda no chegou. Um novo prazo de 40 anos foi estipulado com o estudo da Goldman

    Sachs sobre os BRICs1. A palavra composta pelas iniciais de Brasil, Rssia, ndia e

    China, pases que o banco americano de investimentos aposta que estaro entre as seis

    maiores economias do mundo em 2040, ao lado das duas maiores da atualidade:

    Estados Unidos e Japo. A palavra tambm sugere uma interpretao curiosa, pois

    BRIC significa tijolo em ingls, ou seja, a base da construo de um novo centro

    poltico, econmico e social do mundo. Essa perspectiva de crescimento dos quatro

    pases foi corroborada no Frum Econmico Mundial2em Davos, na Sua, em janeiro

    de 2004. Como os pases perifricos costumam valorizar conceitos e teorias

    estrangeiras3(como o Consenso de Washington4, na dcada de 1990), a probabilidade

    de o Brasil estar no centro de gravidade do mundo em 40 anos ganha peso. Apesar da

    aposta nos BRICs, o estudo da Goldman Sachs alerta para os problemas e obstculos

    contemporneos dos quatro pases, em termos econmico, social ou poltico.

    1http://www.goldmansachs.com/insight/research/reports/99.pdf, acesso em 12/12/20032 Frum Econmico Mundial ocorre anualmente, em janeiro, em Davs, na Sua. A exceo foi em 2002,quando o evento foi realizado em Nova York, nos Estados Unidos, devido aos atentados terroristas ocorridos nacidade em 11/09/2001. O Evento rene chefes-de-estado, ministros da rea econmica e representantes do setorprivado para discutir tendncias e diretrizes da economia mundial.3Ver Guimares (2002).4Consenso de Washington - trata-se de uma srie de princpios, propostos pelos Estados Unidos, que deveriamguiar os pases subdesenvolvidos em direo ao ajuste econmico-poltico do novo capitalismo global, comoprivatizaes, controle das contas pblicas, desregulamentao e abertura dos mercados internacionais. O

    principal argumento pr-reformas estruturais seria que elas passariam a dar suporte financeiro ao Estado,possibilitando o crescimento econmico e a eqidade social. O termo foi cunhado por John Williamson,economista ingls radicado nos EUA, em 1989.

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    Afastando um pouco o foco de anlise do contexto econmico possvel observar

    semelhanas de outras naturezas geopolticas entre os quatro pases, sendo esse mbito

    que pretendo desenvolver nessa proposta de pesquisa.

    A abordagem de anlise selecionada focada no conceito terico de poder

    brando, cunhado pelo americano Joseph Nye no fim da dcada de 1980 e que ganhou

    flego e prestgio desde os atentados de 11 de setembro de 2001. O termo

    originalmente em ingls soft power e j encontrei tradues dessa teoria como

    poder suave (revista Veja da editora Abril), com a qual discordo. Prefiro adotar o

    termo poder brando pois dessa forma que se encontra no referencial terico

    traduzido (Nye, 2002).

    Nye foi escolhido recentemente diretor da Escola de Governo John F.

    Kennedy, da Universidade de Harvard, e comps o conselho da secretaria de Defesa

    dos Estados Unidos na administrao Clinton (1993-2000). Ele tem experincia tanto

    na vida acadmica quanto na prtica da administrao pblica e, em ambas atividades,

    esteve em centros de prestgio e excelncia mundial, logo, seu conceito ser

    considerado para fins de anlise da insero brasileira no contexto internacional

    contemporneo. Nye ganhou notoriedade quando escreveu, em conjunto com outro

    terico das Relaes Internacionais, Robert Keohane, o livro Power and

    Interdependence(cuja traduo seria Poder e Interdependncia). Em posterior anlise

    da poltica externa dos Estados Unidos, no livro O Paradoxo do Poder Americano,

    Nye defende que a Casa Branca, apesar de ser uma superpotncia, no pode governar

    o mundo seguindo uma postura isolacionista, visto que precisa cooptar pases para

    baratear o custo de alianas. Ele defende o uso do que chamou de poder brando

    (caracterizado pelo uso de instrumentos dos mbitos da cultura, ideologia e poltica),

    em detrimento ao poder bruto (dos mbitos da economia e do uso ou ameaa de uso

    de fora militar), buscando atrair a cooperao de outros pases sem usar os recursosde ameaa blica, como o Big Stick, ou a cenoura, uma espcie de suborno para

    convencer aliados, numa analogia ao legume usado para incentivar o movimento de

    animais de carga, como o burro. Ou seja, poder brando a habilidade de alcanar

    objetivos por meio de influncia em vez da coero.

    No caso do Brasil e diante de tantas crticas ao governo Lula, como a poltica

    macroeconmica de juros altos e as fraudes nos programas sociais como Bolsa-

    Famlia e Fome Zero, chama a ateno a atual poltica externa, que parece terabsorvido alguns conceitos do citado poder brando, o que pretendo explorar nessa

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    pesquisa. Por exemplo, a proposta de mudar a contabilidade do supervit primrio

    excluindo investimento social dos gastos; a idia de criar uma taxa sobre o comrcio

    de armas para destinar a um fundo mundial de combate pobreza; a criao do grupo

    dos principais pases em desenvolvimento, o G-20; na liderana e mobilizao dos

    pases em desenvolvimento na ltima rodada de negociaes da Organizao Mundial

    do Comrcio (OMC); e a campanha por um assento permanente no Conselho de

    Segurana das Naes Unidas (ONU). Os reflexos so visveis na mdia internacional,

    como as duas reportagens de destaque no New York Times5 e a edio especial da

    revista Timeque classifica Lula como uma das 100 personalidades mais influentes do

    mundo.

    No entanto, quando se fala em poltica internacional e insero internacional do

    Brasil, a primeira associao freqentemente com o comrcio exterior, uma rea na

    qual o pas participa com cerca de 1% do comrcio internacional. Entretanto, h outras

    fontes de poder nas esferas poltica, militar, tecnolgica, cultural e ideolgica. A

    presente pesquisa se disps a investigar uma estratgia diferente do tradicional foco na

    esfera econmica para consolidar a insero internacional do Brasil. Como o prprio

    Nye afirma, o conceito de poder brando surgiu como uma forma de ilustrar o trip

    do poder dos Estados Unidos no fim da dcada de 1980: o militar, o econmico e o

    poder brando (Nye, 2004). Logo, seguindo tal raciocnio, pretendo explorar a

    viabilidade do poder brando para aprofundar a insero internacional do Brasil, por

    formas distintas da militar ou da econmica. Nesse contexto vo ser explorados

    aspectos culturais, ideolgicos, ticos e morais. Por mais estranho que possa parecer, a

    tica e a moral esto envolvidas nas questes de legitimidade no exerccio do poder

    nas relaes internacionais (Fonseca Jr., 2004). O ministro das relaes exteriores,

    Celso Amorim, em uma entrevista exibida pela Globonews no dia 23 de setembro de

    2004, para o reprter William Waack, disse que a incluso do Brasil como integrantepermanente do Conselho de Segurana da ONU vai aprofundar a insero

    internacional do Brasil, entretanto, essa insero e influncia no se manifestam

    somente pela fora da economia ou das armas, mas pela fora moral. Amorim

    completou afirmando que o presidente Lus Incio Lula da Silva tem essa fora tica e

    moral, comprovada pela campanha que ele comeou a favor da erradicao da fome no

    5No dia 24/01/04, oNew York Timespublicou um editorial afirmando que o presidente americano George W.

    Bush deveria estreitar laos com Braslia para se aproximar da Amrica Latina. No dia 27/06/04, o jornalpublicou uma reportagem especial sobre o presidente Lula na revista dominical afirmando que ele o ltimorepresentante do idealismo socialista no mundo.

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    mundo, na ajuda humanitria ao Haiti e em episdios de auxlio aos vizinhos da

    Amrica do Sul em momento de crise, como Bolvia e Venezuela.

    Ao longo da pesquisa sero explorados conceitos de uma disciplina ainda

    pouco difundida no Brasil e exclusiva de um seleto grupo de pesquisadores: relaes

    internacionais. A justificativa para tal decorre da escolha do objeto de estudo, a

    poltica externa brasileira, e pela novidade de abord-la no mbito da administrao

    pblica. As disciplinas de relaes internacionais e administrao so

    interdisciplinares.

    1.2 Tema, Pergunta e Objetivo

    A escolha do tema dessa pesquisa atende aos critrios de originalidade,

    importncia e viabilidade (Castro, 1977).

    De acordo com Castro (1977), a importncia do tema decorre do fato de o

    mesmo estar de alguma forma ligado a uma questo crucial que polariza ou afeta um

    segmento substancial da sociedade, ou quando o tema est ligado a uma questo

    terica que merece ateno continuada da literatura especializada. Esse projeto sobre

    poder brando atende s duas definies. Como Weil (2001) mostrou, o mbito

    internacional e a poltica externa de um pas tm um enorme impacto na vida da

    populao no cenrio domstico, mesmo que a populao no tenha conscincia disso.

    O outro fato corresponde lacuna que existe em administrao pblica que explore o

    mbito internacional, como mostra um levantamento apresentado nas tabelas 1 e 2 e

    em outro realizado por Pacheco (2003) em que a autora enquadra o tema internacional

    na categoria de temas curiosos ou isolados.

    Seguindo a definio de Castro (1977), a originalidade de um tema

    corresponde potencialidade dos resultados nos surpreenderem. Acredito que essapesquisa se preste a esse papel. A pesquisa poderia ser dividida em duas partes cujo

    tpico principal seria estratgia de ascenso hegemnica do Brasil. Muitos

    acadmicos que se dedicam a estudar hegemonias, como vai ser detalhado no

    referencial terico, apontam alguns parmetros para alcanar a hegemonia, entre elas o

    poderio econmico, militar, poltico, tecnolgico e cultural. A estratgia coerente para

    o pas aprofundar sua insero internacional e atingir status de liderana hegemnica,

    mesmo que seja regional, passa por caminhos que no almejem, na primeira etapa,ascenso econmica e militar. A alternativa vivel seria o fortalecimento do poder

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    brando, que acredito que j esteja sendo aplicado pela diplomacia brasileira, com a

    valorizao de aspectos culturais, sociais e polticos.

    A definio de viabilidade engloba conceitos mais tangveis, dependendo dos

    recursos financeiros, de prazos, da disponibilidade potencial de informao e o estado

    de teorizao a respeito. Como h pouco, ou quase nada, referente poltica externa

    nas publicaes de administrao pblica, vou buscar referncias em outras reas de

    conhecimento, tais como relaes internacionais, sociologia e cincia poltica.

    Entretanto, o mais importante, que a pesquisa pretende mostrar que essa miopia

    uma falha do mbito da administrao pblica brasileira, haja vista que nas escolas de

    administrao pblica espalhadas pelo mundo (principalmente Estados Unidos,

    Europa e Japo) o mbito internacional no s estudado, como valorizado

    (Kamarck, 2004; Eckert, 2002; Borjas, 2002; Weil, 2001). Desta forma no chega a

    surpreender porque as grandes potncias ditam as regras do sistema mundial, uma vez

    que tais governos entendem, se preocupam e estudam as instituies internacionais,

    suas estruturas e funcionamento.

    1.2.1 Tema: Poder brando na poltica externa brasileira

    1.2.2 Pergunta:

    Como o conceito terico de poder brando (i.e. poder de atrao), de Joseph

    Nye, vem sendo aplicado na poltica externa brasileira e quais so as

    repercusses na mdia internacional?

    1.2.3 Objetivo:

    Identificar se o conceito de poder brando (i.e poder de atrao), de Joseph

    Nye, vem sendo aplicado na poltica externa brasileira e quais so as

    repercusses na mdia internacional.

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    1.3 Delimitao do estudo

    O estudo pretende identificar a aplicao do conceito terico de poder

    brando na poltica externa brasileira. um exerccio terico-emprico ambicioso e,

    para execut-lo, pretendo estudar o perodo envolvendo os dois ltimos anos do

    mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso (2001-2002) e os dois primeiros

    do presidente Lus Incio Lula da Silva (2003-2004). O conceito de poder brando

    tem sido explorado recentemente, portanto, no necessrio recuar muito no tempo

    para estud-lo. Os dois primeiros anos do mandato do presidente Lula so suficientes

    para recolher informaes acerca de substanciais mudanas na poltica externa

    brasileira.

    Outra delimitao da pesquisa decorre do foco no mbito poltico e relegando

    os aspectos econmicos a um segundo plano na anlise do tema. O fator econmico

    no ser analisado como incentivador, mas como resultante da modificao de outras

    variveis no mbito poltico. Ou seja, enxergar a economia como conseqncia da

    utilizao do poder brando e no como causa.

    As variveis analisadas vo ser basicamente os fatores polticos que promovam

    a insero internacional do pas, privilegiando questes culturais e iniciativas que

    atraiam aliados ao Brasil na esfera internacional. Questes macroeconmicas de

    mbito domstico, como polticas cambiais, taxas de juros e polticas tributrias no

    vo ser consideradas nessa pesquisa.

    Essa delimitao fruto do prprio conceito de poder brando cunhado por

    Nye (1991). Como vai ser detalhado mais adiante nessa pesquisa, o poder brando foi

    ilustrado como a terceira vertente do trip da hegemonia americana: o poder militar, o

    poder econmico (chamados de poder bruto) e o poder brando.

    1.4 Relevncia do estudo

    A investigao sobre a aplicao do conceito de poder brando relevante

    pelo uso feito, no discurso e na prtica, pela potncia hegemnica nos mandatos do

    presidente americano Bill Clinton (1993-2000), o que resultou na recuperao da

    economia e na liderana dos Estados Unidos na dcada de 1990 (Gilpin, 2004;Ramonet, 2003; Stiglitz, 2003; Halliday, 2001). Como citado na introduo, o conceito

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    terico isoladamente j mereceria estudo. A originalidade decorre de sua anlise em

    termos de aplicao na poltica externa brasileira.

    Morgenthau (2003)6, considerado um cone do realismo em Relaes

    Internacionais, afirmou que sua teoria aplicvel a todos os estados nacionais,

    entretanto, ele se concentra no mais poderoso de todos, os Estados Unidos,

    argumentando que s as grandes potncias determinam o carter da poltica

    internacional, em qualquer perodo da histria. O francs Aron (2002)7, um dos mais

    influentes acadmicos de Relaes Internacionais de nacionalidade fora do eixo anglo-

    americano, tambm concentra a anlise sobre o problema terico da formao da

    agenda internacional no comportamento poltico-diplomtico das grandes potncias.

    Para Aron, a ambio desses pases consiste em modelar a conjuntura internacional,

    enquanto os demais Estados Nacionais procuram ajustar-se a ela, ou seja, as questes

    internacionais so suscitadas de acordo com os objetivos especficos das grandes

    potncias devido a sua capacidade de mobilizar recursos, de ameaar e persuadir os

    demais atores.

    Tais argumentos vo de encontro teoria de poder brando de Nye (1991).

    Samuel Huntigton, que tambm trabalha na Escola de Governo John F. Kennedy, em

    Harvard, questionou sutilmente o conceito de poder brando ao afirmar, no livro

    Choque de Civilizaes (2001)8, que o poder brando s seria vivel depois que o

    estado em questo tivesse conquistado o poder bruto. Num dilogo implcito, Nye

    responde no livro O Paradoxo do Poder Americano (2002) citando Austrlia e

    Canad como exemplos de eficaz utilizao do poder brando, aumentando o poder

    relativo desses pases devido escassez de poder bruto. Fred Halliday (2001) afirma

    que os imprios modernos tm o poder distribudo em trs pilares: a fora militar

    (constituda de fora econmica e coeso poltica), a influncia cultural e a

    disseminao ideolgica. Halliday reconhece as fontes de poder brando, como a mdia,o cinema, a msica pop e a lngua inglesa, mas defende que para exercer tal poder, o

    Estado precisa desenvolver antes fora econmica e, conseqentemente, militar. Esse

    um dilema que a presente pesquisa pretende problematizar: o Brasil pode usar poder

    brando sem possuir o poder bruto?

    6Inicialmente o livro Politics Among Nationsfoi publicado em 1948. Adoto na bibliografia a traduo de 2003publicada pela editora UnB.7Inicialmente o livro Paix et Guerre entre les Nationsfoi publicado em 1962. Adoto na bibliografia a traduo

    de 2002 publicada pela editora UnB.8Inicialmente o livro Clash of Civilizationsfoi publicado em 1996. Adoto na bibliografia a traduo de 2001publicada pela editora Objetiva.

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    Como demonstrado, a discusso sobre a natureza do poder parte do debate

    corrente em relaes internacionais (RI) e seria suficiente para justificar o presente

    estudo. Entretanto, proponho expandir o escopo da pesquisa identificando estratgias

    de insero internacional brasileira por meio do uso do poder brando e suas

    repercusses na mdia internacional, como ser desenvolvido a seguir no item 1.4.1.

    A pesquisa tambm pretende preencher uma lacuna existente no estudo da

    administrao pblica no Brasil ao abordar o mbito internacional, ou seja, a poltica

    externa de um pas. Isso se deve baixa freqncia com que o mbito internacional

    abordado nos estudos focados no Estado e governo brasileiro, como ser apresentado a

    seguir no item 1.4.2.

    Com base em um levantamento realizado nas dissertaes de mestrado da

    Escola Brasileira de Administrao Pblica e de Empresas da Fundao Getlio

    Vargas (Ebape/FGV), no perodo de 2000 a 2004, constatei que pesquisas com

    referncia a aspectos internacionais so raras. Na Revista de Administrao Pblica

    (RAP), editada pela Ebape/FGV, no mesmo perodo, o nmero de referncias a

    aspectos internacionais ainda menor, apesar do crescente interesse pela questo

    internacional no mbito privado da Administrao no Encontro da Associao

    Nacional de Pesquisa em Administrao (EnAnpad). Em 2001, a EnAnpad criou uma

    nova rea para abrigar Gesto Internacional. No entanto, a rea de administrao

    pblica no apresenta artigos sobre o mbito internacional e a poltica externa.

    A tabela 1, a seguir, apresenta o resumo do levantamento, cuja metodologia de

    anlise de contedo vai ser explicada no item 3.2.3. Cabe destacar, que os nmeros

    correspondem a uma frao, assim, o numerador representa os trabalhos com alguma

    referncia ao mbito internacional no ttulo e o denominador o total de trabalhos

    apresentados por rea naquele evento. O mesmo critrio se aplica s dissertaes

    defendidas no perodo por linha de pesquisa.

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    Tabela 1 Resultados dos Levantamentos Bibliogrficos

    2000 2001 2002 2003 2004 Total

    EnANPAD 3 / 41 3 / 58 4 / 65 11 / 70 8 / 85 29 / 319

    Administrao Pblica (*) 3 / 41 - - - - 3 / 41

    Gesto Pblica e Governana - 1 / 34 2 / 38 6 / 32 3 / 45 12 / 149

    Polticas Pblicas - 2 / 24 2 / 27 5 / 38 5 / 40 14 / 129

    Ebape/mestrado acadmico

    em Administrao Pblica

    6 / 50 7 / 49 2 / 35 4 / 38 3 / 15

    (**)

    22 / 187

    Organizao e Gerncia 2 / 20 1 / 11 00 / 11 00 / 15 - 3 / 60

    Polticas e Estratgias 4 / 22 4 / 26 1 / 14 1 / 15 - 10 / 77

    Tecnologias de Gesto 00 / 08 2 / 12 1 / 10 3 / 08 - 6 / 38

    Fonte: Anais do EnANPAD e EBAPE/FGV.Nota: (*) cabe notar que a rea de Administrao Pblica foi desmembrada em Polticas e Gesto noano de 2001.(**) as dissertaes referentes ao ano de 2004 no foram atualizadas na internet at 30 de maro de2005. Os dados foram coletados na coordenao do mestrado sem diviso por linha de pesquisa.

    A tabela 2, a seguir, apresenta os resultados do levantamento na RAP. Cabe

    notar que a revista tem periodicidade bimestral e que o total de artigos analisados em

    cada ano, correspondente s seis edies, apresentado na ltima coluna de cada linha

    da tabela. O total de artigos, com referncia a temas ou aspectos internacionais no

    ttulo, corresponde a 8,2% dos artigos no perodo, ou seja, 25 em 305 totais:

    Tabela 2 Resultados do Levantamento na RAP

    Edio 1 Edio 2 Edio 3 Edio 4 Edio 5 Edio 6 Total2000 1 / 15 0 / 12 1 / 11 2 / 14 0 / 14 0 / 14 4 / 802001 1 / 10 2 / 12 2 / 12 1 / 10 1 / 9 0 / 12 7 / 652002 2 / 10 1 / 9 1 / 8 0 / 8 1 / 7 0 / 7 5 / 492003 1 / 7 0 / 17 2 / 11 0 / 10 2 / 7 0 / 9 5 / 61

    2004 0 / 9 0 / 8 1 / 6 0 / 7 30 / 10 0 / 10 4 / 50Total 25 / 305

    Cabe ressaltar que em 2004, dois artigos na rea de Polticas Pblicas do

    EnAnpad trataram do tema de poltica externa. Cassano (2004) tratou da postura de

    alinhamento e autonomia da poltica externa brasileira e sua influncia na captao de

    recursos externos e provedor de desenvolvimento econmico e Guedes (2004)

    destacou a insero do Brasil no contexto internacional contemporneo com a

    recuperao do papel de governana do Estado. Guedes sugere a adoo do modelo dadiplomacia triangular, envolvendo negociaes entre governo e empresas, e a

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    internacionalizao de empresas brasileiras pelo governo como estratgia de

    desenvolvimento. Com exceo desses dois artigos, nenhum outro aborda

    especificamente o papel da poltica externa como fator relevante da gesto pblica.

    Um estudo realizado por Pacheco (2003) chega a uma concluso semelhante. A

    proposta dela era analisar a recente produo brasileira na rea de pesquisa em

    administrao pblica, utilizando como base os artigos publicados entre 1995 e 2002

    nas revistas especializadas RAP e RAE (Revista de Administrao de Empresas), alm

    dos trabalhos apresentados durante os EnAnpads. Os resultados da autora confirmam a

    grande lacuna existente sobre temas internacionais na rea de administrao pblica.

    Pacheco dividiu os trabalhos encontrados em categorias e aqueles com referncia ao

    mbito internacional foram includos em temas curiosos ou isolados, como um

    artigo sobre o feudo japons do sculo XIII e outro sobre tica e o regime eleitoral

    no Chile.

    Pacheco (2003) aponta tambm a fragilidade do carter propositivo da

    produo em administrao pblica, que pode ser considerado inerente rea de

    administrao pblica devido natureza do objeto de estudo, essencialmente aplicado.

    Alm disso, a autora reconhece as tendncias de pesquisadores se auto-referirem e

    adoo acrtica de teorias desenvolvidas em outras disciplinas.

    Com relao ao foco da presente pesquisa, a aplicao do poder brando na

    poltica externa brasileira, reconheo argumentos da autora que, a princpio,

    contribuiriam para a fragilidade da rea de pesquisa em administrao pblica.

    Entretanto, a presente pesquisa ajuda a romper tal barreira, contribuindo para a

    melhoria da qualidade dos trabalhos realizados na rea, porque vai corroborar a teoria

    elaborada no exterior com a anlise de especialistas brasileiros em administrao

    pblica e relaes internacionais, ou seja, no vai ser uma transio acrtica.

    Pacheco apresenta um diagnstico sombrio de outros autores (Souza, 1998;Machado-da-Silva, Ambroni e Cunha, 1989) que identificam a fragilidade dos

    trabalhos na rea de administrao pblica. Entre os motivos citados esto: (1) a

    ocorrncia de baixa utilizao da literatura estrangeira mais recente e (2) a prevalncia

    de produo acadmica mais prescritiva do que analtica, mais dirigida para questes

    prticas do que para o desenvolvimento terico-emprico da disciplina.

    Sob tais aspectos, o foco do presente projeto no conceito de poder brando se

    destaca, haja vista que um referencial terico estrangeiro extremamente recente, cujoltimo livro de Nye sobre o tema foi lanado em 2004. O conceito de poder brando

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    extremamente analtico, fruto de estudo da poltica externa dos Estados Unidos,

    Inglaterra, Austrlia e at mesmo do Brasil. O conceito terico de poder brando

    poderia at ser identificado como um tema da moda, para usar a terminologia de

    Pacheco, mas no ser investigado de forma acrtica, visto que o projeto prev

    pesquisa emprica. Outro fator relevante do poder brando que ele foi desenvolvido

    na escola de governo da universidade de Harvard, nos Estados Unidos, o que, de

    acordo com o argumento apresentado por Pacheco (2003) pode ser uma vantagem

    porque escapa da preponderncia de uma matriz nica da escolha racional e suas

    derivaes como exclusivo referencial terico da administrao pblica.

    Aqui fao um paralelo entre administrao pblica e relaes internacionais,

    cujos paradigmas e conceitos pretendo utilizar na pesquisa. A partir da anlise do

    artigo de Pacheco, acredito que ambas as reas de conhecimento padecem do mesmo

    mal. Tanto administrao pblica quanto relaes internacionais se proclamam

    independentes, como um campo de pesquisa autnomo, sem que sejam reconhecidas

    como tais. Conforme a proposta de Pacheco (2003), administrao pblica deveria se

    comunicar de forma mais direta e ostensiva com a cincia poltica, o que legitima a

    utilizao de teorias e paradigmas de relaes internacionais no mbito da

    administrao pblica. Uma crtica de Pacheco a apropriao acrtica de termos da

    cincia poltica e da economia, por exemplo, pela administrao pblica sem uma

    validao de seus pares. Por isso a autora prope que artigos de administrao pblica

    transitem mais nos fruns de cincia poltica.

    Pacheco (2003) afirma a tendncia brasileira de seguir o comportamento da

    academia americana em que se isola a rea de administrao. Nos Estados Unidos, a

    rea da administrao pode at estar isolada de outros campos de conhecimento,

    entretanto, os mbitos internacional e de poltica pblica esto localizados e so

    estudados no mesmo departamento nas principais universidades americanas, como porexemplo: a Escola de Governo John F. Kennedy, da universidade de Harvard9; a

    Escola Goldman de Polticas Pblicas da universidade de Berkeley, na Califrnia10; e

    a Escola Woodrow Wilson de Assuntos Pblicos e Internacionais, na universidade de

    Princeton11.

    9

    Acesso em 19 de agosto de 2004.10 Acesso em 19 de agosto de 2004.11 Acesso em 19 de agosto de 2004.

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    Bingham e Bolwen (1994) traaram um perfil da academia de administrao

    pblica americana analisando 50 anos de publicaes da Public Administration

    Review. Eles classificaram os artigos em 14 categorias de anlise e esperavam refletir

    a preocupao da academia americana de administrao pblica com a freqncia dos

    artigos nas categorias estabelecidas. A categoria tica, por exemplo, surgiu na

    dcada de 1970 depois dos escndalos polticos de Watergate.

    Ao longo do perodo, trs categorias dominaram 60% dos artigos:

    comportamento governamental e organizacional, public management e recursos

    humanos. Curiosamente, no h uma categoria especfica que trata do mbito

    internacional. Isso indica que a rea de administrao pblica nos Estados Unidos no

    trata do mbito internacional, ou da poltica externa, assim como no Brasil, apesar de

    as escolas americanas de polticas pblicas estudarem o impacto do mbito externo na

    administrao pblica e vice-versa (Allison, 1999). De acordo com as categorias

    descritas por Bingham e Bowen (1994), a que abordaria o internacional seria a

    categoria de anlise de polticas pblicas, que estuda as vantagens e desvantagens das

    polticas pblicas em geral. Essa categoria tambm existe na rea de administrao

    pblica no Brasil, como consta nas reas temticas do EnAnpad. Entretanto, so

    poucos os artigos que fazem referncia ao mbito internacional, como mostra os

    resultados do levantamento da tabela 1.

    Um dos argumentos de Pacheco (2003) para a fragilidade da administrao

    pblica no Brasil o fato de a comunidade de pesquisadores ser pequena, correndo o

    risco de se isolar, ser auto-referida e de identidade difusa. Outras causas so o uso

    excessivo de estudo de caso, a tendncia generalizao, sem rigor metodolgico, o

    que leva uma crtica de postura normativa e acientfica. Desta forma, o presente

    estudo promove a seguir uma ruptura no isolamento da disciplina de administrao

    pblica ao destacar a relevncia da poltica externa e promover o dilogo da rea comrelaes internacionais.

    1.4.1 Relevncia da poltica externa no mbito das Relaes

    Internacionais

    Conhecer o estrangeiro, ou o inimigo em potencial, uma regra antiga, que

    data de mais de dois mil anos com os escritos do general chins Sun Tzu (Clavell,2002). Muitos estudiosos das reas funcionais de administrao chamam a ateno

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    para a relevncia de conhecer o ambiente externo, mas a rea de administrao pblica

    parece no considerar o contexto internacional como parte do ambiente externo.

    De fato, a discusso acerca da poltica externa dos pases e do cenrio

    internacional ficou, durante muito tempo, restrito ao mbito da diplomacia e dos

    diplomatas. No incio da dcada de vinte, depois da Primeira Guerra Mundial, essa

    rea do conhecimento, sob o rtulo de relaes internacionais, passou a ser lecionada

    em universidades britnicas (Sarfati, 2005; Halliday, 1999), numa tentativa de

    estimular estudos acadmicos que pudessem compreender as causas e evitar a

    ocorrncia de novas guerras. Naturalmente, essa rea do conhecimento interdisciplinar

    comeou a ser desenvolvida na Inglaterra e nos Estados Unidos (EUA), pois

    representava os interesses hegemnicos do Imprio Britnico no sculo XIX e as

    aspiraes de poder dos EUA no sculo XX, respectivamente.

    No Brasil, os cursos de ps-graduao em Relaes Internacionais surgiram no

    fim da dcada de 1980 com cursos de mestrado (ver Myamoto, 1999 e Hertz, 2002).

    Os recentes programas de doutorado ainda no formaram as primeiras turmas, apesar

    de o Instituto de Relaes Internacionais da Pontifcia Universidade Catlica do Rio

    de Janeiro e o Departamento de Relaes Internacionais da Universidade de Braslia

    serem referncias nacionais, com projeo internacional na rea.

    Desta forma, as investigaes do mbito internacional permanecem restritas a

    um pequeno grupo de pesquisadores. Em paralelo, o excessivo enfoque da mdia na

    divulgao acerca dos recentes recordes de arrecadao com o supervit da balana

    comercial ajuda a legitimar o mito de que a poltica externa de um pas se resume em

    estratgias de negcios, como reduo de barreiras alfandegrias, discusses sobre

    acordos comerciais bilaterais e construo de reas de livre comrcio. Entretanto, a

    poltica externa no se resume economia, envolvendo tambm fatores militares,

    tecnolgicos, cientficos, culturais, ideolgicos e jurdicos entre outros. De fato,poltica externa apenas uma das formas mais limitadas de a poltica internacional de

    um pas se manifestar e ampliar sua insero no sistema mundial, por meio da

    formao da agenda diplomtica, por exemplo. Para o diplomata Jos Guilherme

    Merquior (1993), a poltica internacional equivaleria ao somatrio das polticas

    externas. Na anlise de outro diplomata, Georges Lamazire, a poltica externa teria

    maior afinidade com a diplomacia bilateral, que trata da conjuntura e das aes a que

    procede ao pas para se aproximar deste ou daquele parceiro, ou para opor-se a umcompetidor em funo de seus interesses mais concretos.

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    Por outro lado, a poltica internacional tem maior identificao com a

    diplomacia multilateral, em referncia viso do mundo e das regras que devem reg-

    lo e que, portanto, adquire caractersticas de maior durabilidade (Lamazire,

    1998:140). Singer (1969) ao tentar promover uma moldura de anlise ao que chamou

    de anarquia epistemolgica das relaes internacionais, sugeriu trs nveis de estudo

    na rea: o individual, o estatal (ou dos subsistemas nacionais) e o global (ou do

    sistema internacional) (Lopes e Vellozo Jr, 2004:330). possvel traar um paralelo

    entre a poltica internacional e o sistema internacional e entre a poltica externa e os

    subsistemas nacionais. Ou seja, a poltica externa corresponde ao nvel estatal de

    Singer e a poltica internacional, ao nvel global. Em suma, poltica internacional do

    Brasil a norma de conduta brasileira no mbito do sistema internacional, cujos

    objetivos envolvem a neutralizao de todos os fatores externos que possam contribuir

    para limitar o poder nacional (Lopes e Velloso Jr, 2004).

    No contexto da Guerra Fria, fora militar, tecnologia nuclear e poltica externa

    eram inseridos no mbito denominado de high politics. A economia, o direito

    internacional e os aspectos culturais estavam num plano secundrio, chamado de low

    politics.Esse cenrio comeou a se modificar lentamente a partir da dcada de 1970 e

    foi consolidada com o fim da Unio Sovitica, quando a economia foi promovida

    para o mbito de high politics.Entretanto, a poltica externa causa impactos na poltica

    domstica e vice-versa (ver Allison, 1981).

    Tal influncia tambm se reflete no Brasil, com o uso da poltica externa para

    alterar sua insero internacional e, conseqentemente, conseguir benefcios para sua

    populao. Paulo Vizentini (2003) mostra o desenvolvimento da poltica externa

    brasileira desde a era Vargas at o incio do mandato de Lus Incio Lula da Silva.

    Segundo o autor, durante quatro sculos, a insero internacional do Brasil processou-

    se por meio das potncias europias, primeiro Portugal e depois pela Inglaterra. Napassagem do sculo XIX para o XX, contudo, os esforos da diplomacia poltica e

    econmica do Brasil foram direcionados para os Estados Unidos.

    Desde o incio dos anos 1960, na esteira do desenvolvimento industrial, a

    poltica externa brasileira buscou novos espaos, por meio da mundializao e da

    multilateralizao. Na primeira metade do sculo XX, a insero do Brasil estava

    focada no contexto hemisfrico por meio do estreitamento dos laos com os Estados

    Unidos objetivando a condio de aliado privilegiado. Durante a Segunda GuerraMundial, Getlio Vargas buscou a autonomia na dependncia e utilizou a

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    diplomacia pendular entre Washington e Berlim como instrumento de barganha em

    defesa dos interesses brasileiros. Jnio Quadros e Joo Goulart promoveram a Poltica

    Externa Independente (PEI), que buscava questionar o status quomundial e negociar

    uma nova forma de insero internacional do pas, ou seja, nas palavras de Vizentini

    (2003), renegociar o perfil de sua dependncia.

    Os governos militares tambm se preocuparam com a poltica internacional e

    buscaram uma maior insero internacional do Brasil por meio de acordos de

    cooperao tecnolgico-militar nuclear, aprofundando relaes comerciais com pases

    socialistas, estreitando o relacionamento com outros plos capitalistas, como Japo e

    Europa ocidental, promovendo convnios culturais, tecnolgicos e comerciais com

    pas sul-americanos, centro-americanos, africanos e rabes.

    O presidente Costa e Silva promoveu a diplomacia da prosperidade,

    privilegiando o desenvolvimento e a soberania nacional, quando o Brasil liderou o

    grupo dos 77, que representava o movimento dos pases do Terceiro Mundo, uma

    espcie de verso econmica dos pases No-Alinhados, que no pretendiam se

    sujeitar esfera de influncia capitalista, dos Estados Unidos, ou socialista, da Unio

    Sovitica.

    Mdici exerceu a diplomacia do interesse nacional e estreitou laos com os

    Estados Unidos em busca de financiamento para a construo de uma indstria

    armamentista brasileira. O fortalecimento militar estava em consonncia com o ideal

    de Brasil potncia, assim como o perodo do milagre econmico, quando o pas

    cresceu em mdia 10% ao ano, de 1970 a 1973.

    Com a crise do petrleo e o fim do milagre econmico, Geisel promoveu o

    pragmatismo responsvel e ecumnico na poltica externa brasileira, quando houve

    uma aproximao dos pases exportadores de petrleo na frica e Oriente Mdio, com

    acordos visando o desenvolvimento tecnolgico e industrial-militar. Tambm houvenesse perodo acordos estratgicos com China e leste europeu quando, de acordo com

    Vizentini (2003), ocorreu o perodo de maior protagonismo e autonomia do Brasil no

    cenrio internacional.

    A atual administrao do presidente Lula est concentrando esforos na

    poltica externa que, a princpio, tem demonstrado resultados mais positivos do que a

    poltica domstica. Iniciativas como a proposta de mudar a contabilidade do supervit

    primrio excluindo investimento em infra-estrutura dos gastos; a idia de criar umataxa sobre o comrcio de armas para destinar a um fundo mundial de combate

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    pobreza; a criao do G-20 (os grupos dos principais pases em desenvolvimento); a

    liderana e mobilizao dos pases em desenvolvimento na ltima rodada de

    negociaes da Organizao Mundial do Comrcio; a participao do presidente do

    Superior Tribunal Eleitoral, Seplveda Pertence, como observador internacional das

    eleies para a Autoridade Nacional Palestina (em janeiro de 2005); a criao do

    grupo Amigos da Venezuela e o envio de funcionrios da Petrobrs para ajudar na

    atividade petrolfera do pas durante a greve geral que tentou derrubar o presidente

    Hugo Chavez; a intermediao para solucionar a tenso diplomtica entre Colmbia e

    Venezuela desencadeada pela priso de um lder, em janeiro de 2005, das Foras

    Armadas Revolucionrias da Colmbia (FARC) em Caracas; a doao de bilhes de

    dlares para ajudar a Bolvia depois das manifestaes que culminaram na queda do

    presidente Sanchez de Losada (em outubro de 2003); a liderana das tropas de paz da

    Organizao das Naes Unidas (ONU) no Haiti e a campanha mais agressiva por um

    assento permanente no Conselho de Segurana da ONU tm repercutido

    constantemente na mdia internacional.

    No dia 24 de janeiro de 2004, o jornal americano The New York Times

    publicou um editorial afirmando que o presidente americano George W. Bush deveria

    estreitar laos com Braslia para se aproximar da Amrica Latina e, no dia 27 de junho

    de 2004, publicou uma reportagem especial, sobre o presidente Lula, na revista

    dominical afirmando que ele o ltimo representante do idealismo socialista no

    mundo.

    Uma edio especial da revista Time, publicada no dia 19 de abril de 2004,

    classificou Lula como uma das cem personalidades mais influentes do mundo e o

    editorial do jornal britnico Financial Timesdestacou o estratgico estreitamento de

    relaes entre as duas maiores economias em desenvolvimento do mundo, durante a

    visita, em junho de 2004, de Lula China. A poltica externa do governo Lula tambmestabeleceu convnios culturais (com pases da Amrica Latina e frica) e

    tecnolgicos (com China e Ucrnia, por exemplo), expandindo a abordagem

    multilateral da atual diplomacia brasileira, reforando sua liderana na Amrica do Sul

    e fortalecendo sua posio como porta-voz dos pases em desenvolvimento do

    hemisfrio sul.

    Abdenur (1997) afirma que inmeros fatores conjunturais podem contribuir

    para influenciar as anlises sobre o peso especfico de um pas: prestgio pessoal deseus lderes, momento econmico, situao poltica, competncia da atuao

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    diplomtica, entre outros. Para ele, os aspectos mais permanentes da presena externa

    brasileira so credibilidade poltica, expresso econmica, atrao cultural, massa

    territorial e demogrfica.

    Na obra Quinhentos Anos de Periferia, Guimares (2002) detalha as

    estratgias de poltica externa que os pases, da chamada estrutura hegemnica,

    usaram para proporcionar benefcios de concentrao de poder, seja no mbito

    econmico, poltico, militar, tecnolgico, cultural e ideolgico. Uma dessas estratgias

    a formao de elites, onde Estados centrais promovem programas de difuso

    cultural, de bolsas de estudo, de pesquisadores visitantes, de visitas de personalidades

    polticas e de formadores de opinio para promover a formao de uma elite nos pases

    perifricos, que formam quadros simpticos e admiradores das estruturas

    hegemnicas. Indivduos que participam de tais programas desenvolvem sentimentos

    de simpatia em relao ao estilo de vida, ao modo de ver o mundo e as relaes entre

    aquelas estruturas e a periferia, se tornando elementos de grande importncia

    estratgica de preservao das estruturas hegemnicas de poder na medida em que

    vm a ocupar posies de destaque na vida pblica e privada dos pases perifricos.

    Borjas (2002) lembra que logo depois dos atentados terroristas de 11 de

    setembro de 2001, o presidente americano George W. Bush quis suspender o programa

    de bolsas acadmicas para estudantes estrangeiros nos EUA. Logo foi desaconselhado

    pelas prprias universidades porque iria representar um duro golpe num dos principais

    produtos de exportao dos americanos, seus ex-alunos que se transformaram em

    lderes polticos, como o ex-primeiro-ministro israelense Ehud Barak, e os ex-

    presidentes do Mxico, Carlos Salinas, e do Paquisto, Benazir Bhutto. Nye (2004)

    aponta esse fator de atrao, o poder brando que foco desse estudo, como um dos

    mais importantes poderes de influncia da cultura americana, que d legitimidade s

    diversas aes da poltica externa dos EUA. Nye (2004) alerta que ignorar tais valores,como democracia e liberdades individuais, pode comprometer a eficincia da poltica

    externa do pas e levar ao seu isolacionismo.

    Guimares (2002) enfatiza o erro das universidades latino-americanas de no

    desenvolverem centros de pesquisas sobre seus vizinhos e estarem, assim, sujeitos s

    avaliaes e estudos dos pases do centro hegemnico, que ditam regras, tradies e

    diretrizes sobre pases prximos. Ou seja, pases perifricos fronteirios acabam por se

    doutrinarem sobre seus vizinhos em aspectos culturais, econmicos e geopolticos sobo olhar de pases hegemnicos. A maioria das universidades americanas tem um

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    departamento de estudos para a Amrica Latina e outras culturas, como a francesa, a

    chinesa e a rabe. Na Europa a tendncia se repete. Entretanto, no Brasil no h um

    centro especfico sobre estudos da Argentina, por exemplo. Para Guimares (2002),

    esse um erro estratgico que mostra a vulnerabilidade das polticas externas dos

    pases perifricos.

    1.4.2 Relevncia da poltica externa no mbito da Administrao Pblica

    Chega a ser incompreensvel imaginar o mbito internacional e, mais

    especificamente a poltica externa, separado da administrao pblica. Historicamente,

    o Estado surgiu para controlar, principalmente, as relaes internacionais entre

    governos. O Estado Nacional foi criado em 1648, na Paz de Westflia, determinando a

    soberania e a autonomia de gerncia dentro do seu territrio (Sarfati, 2005). Ou seja,

    impedindo que Estados Nacionais interferissem na poltica domstica de outros pases.

    A relevncia do poder executivo com relao ao exterior j estava presente no

    raciocnio de Locke em 1690 (Chevallier, 1982), quando definiu como poder

    confederativo aquele, normalmente vinculado ao executivo, que se responsabiliza

    pelas questes exteriores, como tratados, paz e guerra.

    A questo do exterior e de poltica externa era determinada pela geopoltica e

    por determinismos geogrficos, ou seja, o pas tem o limite de suas fronteiras e sua

    preocupao maior era com seus vizinhos, a ameaa mais prxima. Entretanto, tais

    teorias, como as de Friedrich Ratzel e Nicholas Spykman, por exemplo, que tiveram

    impacto nas polticas do imprio britnico e da Alemanha, em que pregavam agressiva

    expanso territorial e aumento substancial de colnias e domnios, no tm mais

    relevncia nos dias de hoje. Antes, a premissa geopoltica era de que espao territorial,

    recursos naturais e volume demogrfico eram sinnimos de poder. Com o avanotecnolgico, tais paradigmas mudaram. Ramonet (2003) afirma que no contexto atual,

    as antigas fontes de poder no representam mais trunfos, pelo contrrio, so onerosas

    desvantagens na era ps-industrial, na qual a nova riqueza est na capacidade

    intelectual, que promove o saber, a pesquisa e a habilidade de inovar, e no mais na

    produo de matrias-primas. Para ilustrar seu argumento, Ramonet aponta como

    Estados extensos, com grande populao e ricos em recursos naturais que esto em

    posio de desvantagem na distribuio de poder, a Rssia, ndia, China, Brasil,

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    Indonsia, Mxico e Nigria. Os Estados Unidos constitui-se como exceo

    reconhecida pelo prprio Ramonet.

    Na dcada de 1920, uma tendncia, que ficou conhecida como escola

    francesa afirmou que a geografia importante, mas pode ser moldada segundo os

    interesses e convenincias do homem. O maior expoente dessa escola foi Vidal de la

    Blanche, dando exemplo da construo de usinas e barragens hidroeltricas para esses

    fins. Outro francs, Alexis de Tocqueville, escreveu que os americanos lutaram contra

    obstculos que a natureza lhes opunha para construir um extenso pas (Miyamoto,

    2004). Miyamoto (2004:88) tambm condena o determinismo geogrfico afirmando

    que a geografia possibilita, mas no determina os destinos de uma nao. Para ele, a

    ao humana, bem como de suas instituies, e as polticas pblicas que,

    efetivamente, levam o Estado e a sociedade a ocuparem papel importante ou no,

    dependendo das prioridades adotadas e implementadas por seus dirigentes, projetando

    o pas no quadro mundial.

    Duroselle (2000) afirma que existem numerosos atos de poltica interna pura,

    sem nenhum aspecto exterior, e que a poltica interna pura um fenmeno

    perfeitamente isolvel. Entretanto, alerta que ao blindar o interno das influncias do

    externo, o Estado faz vista grossa dinmica das foras interiores a um pas que to

    claramente incidem sobre a vida internacional.

    Halliday (1999) prope uma concepo do mbito internacional que englobe as

    interaes Estado/sociedade. O acadmico britnico considera no somente o Estado,

    mas tambm atores no-estatais e foras transnacionais em sua teoria do

    internacional e afirma que o que vivido e normalmente estudado como algo que

    aconteceu dentro de pases, revela-se como parte de processos internacionais muito

    mais amplos de mudana poltica e econmica, ou seja, h interao do nacional e do

    internacional, dos mbitos interno e externo (Halliday, 1999:18).O ex-chanceler Celso Lafer (2002) acredita que essa discusso entre poltica

    interna e externa pode ser resumida na expresso: internaliza-se o mundo. Para ele, no

    mundo contemporneo as diferenas entre poltica nacional e internacional se

    diluram, o que engendrou novas realidades que tm colocado desafios inditos aos

    atores que atuam na cena internacional, deles exigindo novas e criativas solues.

    Lafer (2002) acredita que tal complexidade fez o ambiente internacional (interestatal)

    como unidade de anlise se desmembrar em global, transnacional e subnacional.

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    Hagan (1995), especialista em anlise da poltica externa, menciona vrios

    autores que tratam da poltica domstica como explicao para poltica externa, entre

    eles Putnam (1988), que chama essa situao de jogo de dois nveis (two-level

    game). Hagan (1995) trata da construo de coalizes relevantes para a determinao

    da poltica externa. No caso americano, o congresso tem que aprovar a entrada do pas

    em guerras, a ratificao de tratados internacionais e a aprovao do oramento, como

    os recursos destinados para o departamento de Defesa e de Estado (que corresponde ao

    ministrio das Relaes Exteriores do Brasil). A constituio brasileira prev esse

    procedimento, sendo o mais comum aprovao de oramento e a ratificao de

    tratados internacionais. Essa questo de extrema relevncia porque o direito

    internacional garante que tratados internacionais se sobrepem s constituies

    nacionais. de estranhar que tanta relevncia, como aspectos jurdicos que

    influenciam as normas internas de um pas, passe despercebida pela academia nos

    estudos sobre administrao pblica.

    Hagan (1995) sugere que a poltica externa deva ser ajustada para impor os

    menores custos domsticos possveis e que os efeitos do processo poltico domstico

    na poltica externa de um pas devam ser analisados num contexto mais amplo da

    dinmica internacional. A relevncia do processo poltico interno define a diminuio

    ou aumento da propenso de o pas assumir compromissos e riscos internacionais.

    Hagan (1995) analisa esse comportamento sob trs perspectivas: (a) acomodao; (b)

    mobilizao e legitimao; e (c) isolamento. Hagan (1995:134) afirma que presses

    internas e o receio de serem encarados como regimes fracos no sistema internacional

    levaram as grandes potncias a entrarem na Primeira Guerra Mundial. E que tanto

    Margareth Thatcher, da Gr-Bretanha, e Galtieri, da Argentina, queriam lutar pelas

    Ilhas Malvinas na esperana de que uma vitria militar no exterior pudesse reverter o

    declnio poltico que sofriam domesticamente.Moon (1995) trata da legitimidade dos Estados do Terceiro Mundo, tambm

    chamados de perifricos, em busca da autoridade interna por meio da poltica externa.

    Moon (1995) critica a definio de Estado no paradigma realista (que vai ser explicado

    no item 2.1 do referencial terico) e adota a abordagem estruturalista para apontar os

    diferentes objetivos de poltica externa dos pases centrais e perifricos. Ilustrando tais

    argumentos, Moon (1995) afirma que pases perifricos usam a poltica externa para

    atingir objetivos domsticos, como o acmulo de capital, legitimidade de estado,estabilidade social e manuteno do governo, em detrimento dos objetivos do

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    paradigma realista das grandes potncias, como poder militar, influncia poltica e

    recursos econmicos (1995:198-199). Em alguns casos, a poltica externa permite que

    o Estado perifrico se retrate como orgulho nacionalista, em que pases menos

    desenvolvidos buscam autodeterminao, integrao e at viabilidade domstica

    enfatizando seu papel internacional. Tal poltica externa construda de forma

    consensual, vista como legtima e com forte apelo ideolgico, como ocorreu com o

    pan-africanismo, o apoio causa Palestina e a oposio ao colonialismo e ao regime

    segregacionista sul-africano conhecido como apartheid (Moon, 1995:194).

    O diplomata e acadmico Gelson Fonseca Jr. (1998) acredita que a agenda

    diplomtica tem uma importncia crtica para o sucesso de uma negociao bilateral,

    ou multilateral, para um pas como o Brasil. O que entra ou o que excludo da

    agenda de discusso e de negociao o indispensvel passo prvio, definidor da

    latitude da defesa dos interesses de um pas. Desta forma, a agenda vai operacionalizar

    o tema da legitimidade como o espao de proposies o que, citando as palavras do

    ex-chanceler brasileiro San Tiago Dantas, representa um extraordinrio reforo de

    poder em qualquer conflito de interesses que se possa apresentar.

    Para Fonseca Jr. (1998), as brechas abertas pela Guerra Fria deram espao para

    o argumento da legitimidade, de cunho racionalista, dos pases no-hegemnicos. Por

    isso temas como autodeterminao e descolonizao, autonomia diplomtica

    (movimento dos no-alinhados), desarmamento nuclear, desenvolvimento e

    subdesenvolvimento e democratizao dos processos decisrios internacionais foram

    inseridos na agenda diplomtica multilateral. Entretanto, o prprio Fonseca Jr. (1998)

    acredita que a queda do muro de Berlim enfraqueceu a legitimidade pelas foras

    centrpetas da globalizao. Tal contexto representa um desafio para diplomatas e

    acadmicos de cincia poltica, relaes internacionais e administrao pblica, haja

    vista que instrumentalizar com preciso os temas da agenda internacional representaum fator estratgico para o Estado.

    A agenda internacional comea a ser pautada na agenda domstica, por isso

    relevante explorar como esse processo ocorre. Kingdon (2003) elaborou um exaustivo

    trabalho sobre a formao da agenda de polticas pblicas, abrangendo os atores e

    fatores determinantes que moldam a influncia exercida na pauta da agenda, suas

    alternativas e oportunidades. Para Kingdon (2003), o presidente, o staffpresidencial e

    os articuladores polticos, formam o ncleo da organizao governamental,considerado pelo autor como o principal jogador na formao do processo poltico e

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    da agenda pblica. A academia, que comporta pesquisadores e consultores, representa

    um impacto ao longo prazo na formao da agenda, possuindo reconhecimento e

    prestgio junto ao governo. A atuao preponderante de acadmicos est nas

    alternativas da agenda, corroborando ou refutando propostas em andamento da agenda.

    Os acadmicos costumam freqentar ambientes governamentais no s como

    observadores, mas com freqncia como gestores pblicos contratados para

    acompanharem determinados projetos ou atuarem de forma incisiva em agendas de

    polticas pblicas. Esse argumento legitima o presente estudo que tenta chamar a

    ateno para a escassez de estudos sobre poltica externa na academia de

    administrao pblica.

    O processo de formao da agenda est circunscrito esfera do Estado

    burocrtico e estrutura de oportunidades, mas no so dominadas por eles. O

    processo incorpora diversos atores, que compem o governo (presidente,

    parlamentares, articuladores polticos e burocratas) e atores externos (grupos de

    interesse, academia, mdia e opinio pblica). O principal ator na formulao de

    agendas o presidente, entretanto ele no controla as alternativas, que correspondem

    s oportunidades de mudar a agenda (Kingdon, 2003). H uma interao entre os

    atores para a formao da agenda e o que determina a intensidade da fora do ator o

    grau de informao, haja vista que ningum controla o sistema informativo na

    totalidade.

    Weil (2001) mostrou o enorme impacto que a questo sobre o internacional e a

    poltica externa de um pas tm na vida da populao no cenrio domstico, mesmo

    que os prprios cidados no tenham conscincia disso. Weil (2001) desperta a

    ateno para a necessidade dos cidados de compreender como o desenvolvimento

    internacional afeta suas vidas, ou seja, as implicaes da poltica externa de um pas

    no mbito domstico. A populao deve se conscientizar dessa importncia deconhecer o exterior, e no somente o governo, porque a democracia depende da

    confiana e do apoio dos cidados e que falta de consenso popular pode paralisar uma

    poltica pblica. Outro alerta de Weil (2001) que o governo que no percebe as

    ligaes com outros pases perde oportunidades de capitalizar lucros e compromete a

    prosperidade que poderia derivar de tais ligaes.

    A referncia ao trabalho de Weil (2001) se faz presente na relevncia de

    pesquisa porque a autora atribuiu essa negligncia com o internacional ao que chamoude dficit de informao. E para mudar essa tendncia, Weil defende que a

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    conscientizao do povo sobre a relevncia do internacional responsabilidade dos

    formadores de opinio pblica, ou seja, o governo, os legisladores, a mdia e a

    academia. Esse argumento legitima minha escolha de explorar rgos de imprensa

    internacionais e suas perspectivas sobre o Brasil, suas polticas, posturas e neles

    identificar o alcance do poder brando brasileiro. A presente pesquisa tentou analisar

    dois elementos desse trip da formao da opinio pblica: a imprensa internacional e

    os responsveis pela poltica externa, os diplomatas. Por dificuldades de acesso, s a

    mdia internacional foi estudada. Alm disso, a relevncia que Weil (2001) d ao papel

    da academia no processo de capitalizao pelo pas de suas vantagens e oportunidades

    no mbito internacional corroboram a importncia deste estudo em administrao

    pblica, haja vista a escassez de material produzido na rea sobre o mbito

    internacional, j argumentado nesta pesquisa.

    Nye (2004) afirmou que a cultura, os valores e a formao da agenda das

    polticas domstica e externa so fontes primordiais do que chamou de poder

    brando, que corresponde habilidade de influenciar os outros a fazer o que voc

    deseja pela atrao em vez de coero. O prprio Nye (2004:89) afirma que o Brasil

    tem poder brando em potencial para ser explorado por sua poltica externa, devido

    atrao despertada por sua vibrante cultura e promessa no futuro.

    Para Abdenur (1997), h dados objetivos a serem considerados sobre a

    importncia do Brasil no plano internacional. A riqueza e a diversidade da formao

    tnica e cultural do pas so fatores que ampliam as oportunidades de interlocuo

    internacional. A capacidade de dilogo com diferentes fatores reforada pelo fato de

    a realidade econmica e social brasileira exibir padres de primeiro mundo e tambm

    de subdesenvolvimento. Para ele, o Brasil um pas identificado pelos valores da paz

    e cooperao internacional, com uma tradio de convivncia pacfica com os vizinhos

    que encontra poucos paralelos no mundo. H tambm o privilgio de se encontrarlocalizada numa regio ausente de conflitos tnico-religiosos e com registros

    histricos de atuao diplomtica marcada pela incluso.

    Abdenur (1997) acredita que o Brasil deve ter a poltica externa de sua

    dimenso e as dificuldades e desequilbrios internos devem constituir incentivos a uma

    atuao externa mais firme, como forma de contribuir para a superao de tais

    dificuldades. Tal estratgia pode se viabilizar pela formao e explorao de

    oportunidades da agenda internacional, quando transforma temas caros aos pasesricos (tais como meio ambiente, direitos humanos, crime internacional e terrorismo)

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    em temas associados questo do desenvolvimento, por exemplo. Assim, a prioridade

    dos pases desenvolvidos aos novos temas fornece, de forma indireta, o impulso

    poltico necessrio ao tratamento dos temas do desenvolvimento.

    Esse captulo tratou de justificar a relevncia do estudo da poltica externa do

    Brasil e seus reflexos no cenrio domstico. Tambm foi indicada a carncia de

    estudos sobre o mbito internacional na rea de administrao pblica, apesar de a

    aplicao da poltica externa ter sido explorada por outras reas de conhecimento e por

    gestores pblicos no Brasil, como vai ser analisado em detalhes no captulo seguinte.

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    Captulo 2 - REFERENCIAL TERICO

    Este captulo apresenta o desenvolvimento do referencial terico para melhor

    compreenso do foco da pesquisa. Este referencial envolve os principais paradigmas

    das relaes internacionais, os conceitos de poder e hegemonia, autoridade e

    legitimidade, bem como a insero internacional do Brasil, agenda internacional

    contempornea e, finalmente o objeto de estudo da pesquisa, o conceito de poder

    brando.

    2.1 Paradigmas das Relaes Internacionais (RI)

    Apresento a seguir uma breve reviso dos paradigmas dominantes das Relaes

    Internacionais (RI) porque podem esclarecer os conceitos tericos que sero adotados

    nesta pesquisa.

    Fred Halliday (1999) aponta trs elementos constitutivos das RI: o interestatal,

    o transnacional e o sistmico. Por essa anlise, possvel destacar trs paradigmas,

    que correspondem s perspectivas tericas predominantes dentro da disciplina:

    realismo, liberalismo e estruturalismo.

    O realismo toma como ponto de partida a busca do poder dos Estados, cuja

    centralidade a fora militar. Para essa corrente terica, o mundo de mltipla

    soberania fonte duradoura de conflitos e guerras onde cada ator, no caso Estado-

    Nao, age em busca do prprio interesse nacional. Os realistas enxergam a fora

    militar como instrumento de manuteno da paz e como determinante nas RI. Eles

    acreditam que o mecanismo central para regular o conflito o equilbrio de poder, nos

    moldes como a Inglaterra tentou administrar na Europa no sculo XIX (Kissinger,

    2001), desprezando a possibilidade de uma mudana radical na dinmica do prpriosistema, como ocorreu com o surgimento da Alemanha, em 1871. Para o realismo, a

    sociedade internacional encontra-se em um estado de natureza (inspirado na obra

    Leviat, de Hobbes) e carece de um governo central, ou seja, anrquica. Aqui surge

    uma divergncia interna do realismo. O embaixador Ronaldo Sardenberg (1982)

    definiu o realismo como a corrente terica que se preocupa com a operao livre e

    desimpedida do poder, correspondendo a uma utopia pessimista, que deixava ao

    emprego da fora a tarefa de encontrar um equilbrio internacional e evitar o flagelo daguerra. Para Sardenberg, e outros estudiosos da estratgia militar (Defarges, 1999), a

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    concepo e uso da bomba atmica foi fundamental para que o realismo seguisse

    como paradigma clssico nas relaes internacionais depois da Segunda Guerra

    Mundial, onde a linguagem de valorizao do poder se tornou preponderante no

    cenrio internacional.

    Halliday (1999) afirma que a escola inglesa est inserida dentro do realismo.

    Esse grupo de realistas se formou na Inglaterra e Austrlia e percebeu essa ausncia de

    governo central no como caos, mas como um certo tipo de sociedade em que os

    Estados interagiam de acordo com certas convenes, includas a diplomacia, o direito

    internacional, o equilbrio de poder, o papel das grandes potncias e at a prpria

    guerra. Para Martin Griffiths (2004), a escola inglesa est inserida em outra corrente

    terica (teoria da sociedade internacional) que se diferencia do realismo porque, apesar

    da ausncia de uma autoridade central, os Estados exibem padres de conduta

    constitudos por restries legais e morais, o que no so adequadamente

    compreendidos como uma manifestao de poltica de poder.

    Entre os acadmicos brasileiros, Gonalves (2002) tambm classifica a escola

    inglesa como teoria da sociedade internacional, mas tambm o identifica sob outro

    rtulo: o racionalismo. Para Gonalves, o racionalismo nas RI representa uma

    proposio terica que fica a meio caminho entre as teses liberais e realistas. No plano

    analtico, os racionalistas compartilham com os liberais a tese da existncia de

    mltiplos atores nas RI, mas concordam com os realistas que os Estados so os

    principais atores responsveis pela deciso de fazer a guerra, ou seja, o meio

    internacional no se caracteriza somente pelo conflito, mas tambm pela cooperao e,

    ao contrrio de realistas e liberais, os racionalistas atribuem grande importncia aos

    fatores culturais nas RI. No plano normativo, os racionalistas consideram

    perfeitamente possvel os Estados alcanarem, por meio de tratados e convenes,

    certo grau de entendimento e cooperao que resulte numa considervel reduo dosconflitos internacionais.

    Barry Buzan (2002) incorpora escola inglesa o construtivismo, cujo foco

    est na dinmica das interaes sociais, nas normas, regras e instituies que os seres

    humanos desenvolvem para estruturar suas interaes em qualquer escala. Buzan

    atribui uma perspectiva pluralista escola inglesa, que est subdividida em trs

    tpicos: a) o sistema internacional, com abordagem mais realista, concentrada no

    poder poltico estadocntrico; b) na sociedade mundial, com caractersticas globalistas,com elementos transnacionais e atores no-estatais; e c) a sociedade internacional,

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    com inspirao construtivista baseada nas regras, normas e instituies criadas para

    mediar relaes entre os Estados.

    O liberalismo no nega a importncia dos Estados como atores do sistema

    internacional, mas destaca as foras transnacionais, ou seja, as interaes econmicas,

    sociais, culturais e tcnicas entre as sociedades nacionais. O liberalismo segue a lgica

    da interdependncia com uma viso mais relevante da cooperao no sistema

    internacional. De acordo com Gonalves (2002), a origem do liberalismo est no

    pensamento iluminista do sculo XVIII, apresentando uma dimenso analtica e outra

    normativa porque, alm de pretender mostrar como a realidade , pretende mostrar

    como ela deve ser. Nas dcadas de 1920 e 1930, o liberalismo foi menosprezado como

    uma forma utpica ou idealista de interpretar as RI, por isso que muitos tericos

    usam o termo idealismo, simbolizado na figura do presidente dos EUA Woodrow

    Wilson, para se referir a essa corrente terica. Com o fim da Guerra Fria e o colapso

    da URSS, o liberalismo no mais marginalizado, dando margem a novas correntes

    tericas, como a Economia Poltica Internacional. Para Sardenberg (1982), o idealismo

    tinha como nfase a evoluo do direito internacional e o estabelecimento de

    mecanismos internacionais de conciliao de interesses, correspondendo uma utopia

    otimista que buscava construir uma legalidade internacional capaz de construir

    instituies supranacionais e, no devido tempo, o estabelecimento de um governo

    mundial.

    O estruturalismoapresenta uma viso marxista das relaes sociais, porque

    divide o mundo entre os que tm e os que no tm acesso a bens materiais, explorando

    o conceito de centro-periferia e sendo uma expresso do funcionamento e da evoluo

    do sistema capitalista internacional. Os estruturalistas revelam as relaes assimtricas

    predominantes em RI e manifestam a explorao e dependncia da periferia

    subdesenvolvida. Os principais atores desse paradigma so os Estados, as empresastransnacionais e as organizaes internacionais, como o Fundo Monetrio

    Internacional (FMI), a Organizao das Naes Unidas (ONU) e o Banco Mundial,

    entre outras. Um representante brasileiro dessa corrente terica o embaixador

    Samuel Pinheiro Guimares, que no livro Quinhentos Anos de Periferia (2002)

    mostra toda a estratgia de dominao do que chamou de estruturas hegemnicas

    para perpetuar sua concentrao de poder (econmico, militar, tecnolgico e cultural)

    excluindo os pases perifricos ou em desenvolvimento, como o Brasil.

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    As Relaes Internacionais surgiram como disciplina acadmica depois da

    Primeira Guerra Mundial, se difundindo nos principais vencedores do conflito:

    Inglaterra e Estados Unidos. A preocupao inicial era evitar novos conflitos, uma vez

    que o equilbrio de poder, fundado em Westflia (1648), falhou em garantir uma paz

    durvel dando incio guerra em 1914. O presidente americano Woodrow Wilson

    acreditava ser possvel um novo modo de pensar as relaes internacionais mediante a

    adoo de cinco princpios e nove medidas objetivas contidas num documento que

    levou o seu nome: os 14 pontos de Wilson. Em sntese, ele propunha a democracia, o

    livre-comrcio, o desarmamento, o respeito auto-determinao dos povos e ao direito

    internacional, ou seja, um mundo regulado por regras e leis para manuteno da paz.

    Como Halliday afirma (1999), se RI tivesse uma disciplina me, ela seria o direito

    internacional. O liberalismo exerceu grande influncia sobre o pensamento e ao

    poltico-diplomtica at os anos 1930, quando estourou a Segunda Guerra Mundial

    (1939), dando incio a uma duradoura hegemonia do realismo dentro de RI, num

    mundo em constante tenso devido Guerra Fria. O colapso da URSS trouxe

    credibilidade a outras perspectivas tericas em RI, inclusive ao liberalismo.

    Essa variedade de paradigmas influencia muito na argumentao e no estudo

    de como funciona a ordem mundial, suas relaes de dependncia, alm da

    instrumentao e manifestao de dominao e poder entre os pases, como veremos a

    seguir com os conceitos de poder e hegemonia.

    2.2 Poder e Hegemonia no Sistema Internacional

    Como definiu Robert Dahl (2001), o conceito de poder envolve a habilidade

    para conseguir que outra pessoa faa alguma coisa que, de outra forma, no seria feita.

    Esta uma definio muito semelhante a utilizada pelos expoentes da escola realistaquando se referem ao poder no contexto internacional. Morgenthau (2003) o define

    como a capacidade de cada Estado de influenciar ou obrigar os demais a agirem de

    determinada maneira, ou a deixarem de faz-lo. Aron (2002) afirma que o poder na

    cena internacional corresponde capacidade de uma unidade poltica impor sua

    vontade s outras unidades.

    Para o embaixador Sardenberg (1982) tais definies escondem equvocos e

    defasagens de contexto. Equvocos porque se referem ao poder como uma capacidadenacional e o ignora enquanto relao caracterstica da vida internacional e defasada

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    porque nessa definio e pelo perodo em que foram publicados (as verses originais

    so de 1948 e 1962 respectivamente), se referem ao poder como um dado

    incontrastvel da realidade internacional, caracterstica dos primrdios da Guerra Fria,

    perodo em que os Estados Unidos detinham hegemonia mundial devido ao monoplio

    da bomba nuclear e da superioridade econmico-financeira. Entretanto, Sardenberg

    afirma que o diferencial de poder pode ser a importncia diplomtica-estratgica que

    permite pases pequenos, pobres e fracos derrotarem pases maiores, mais ricos e mais

    fortes.

    Seguindo esse raciocnio, Aron (2002) define a distino entre poder ofensivo e

    poder defensivo. Poder ofensivo a capacidade de uma unidade poltica de impor sua

    vontade sobre as demais e sua capacidade de no deixar que a vontade alheia lhe seja

    imposta. Para Aron, no domnio diplomtico, o poder defensivo consiste em um

    Estado salvaguardar sua autonomia, manter seu prprio estilo de vida, no aceitar que

    suas leis internas ou aes externas sejam subordinadas aos desejos de outros pases.

    Os Estados considerados pequenas potncias geralmente s exercem o poder

    defensivo, procurando sobreviver como centros de decises livres. As naes

    chamadas de grandes potncias desejam a capacidade de atuar sobre outras unidades

    polticas, convenc-las ou constrang-las, buscando a iniciativa de fazer alianas e

    liderar coalizes. Para Aron, um Estado que esteja no que definiu de primeira posio

    hierrquica que faz uso apenas do poder defensivo, adota uma postura isolacionista,

    o que para o pensador francs, nem sempre recomendvel. Tal afirmativa est de

    acordo e pode ser encarado como uma justificativa para a postura agressiva do general

    Charles de Gaulle para ascender a Frana a uma posio de primeira potncia.

    Para Sardenberg (1982), o poder internacional no s visvel em crises

    abertas, quando a violncia se torna o modo dominante de comunicao. O poder

    internacional pode ser medido tambm pela capacidade de destruir, infligir danos oude evit-los. Edward Carr (2001), um realista clssico, descreveu o poder internacional

    em trs categorias: o militar, o econmico e o poder sobre a opinio12. Essa definio

    parecida com a de poder brando, cunhada por Joseph Nye, explorada nessa pesquisa.

    H o poder mais visvel, como a ostentao militar e a robustez econmica, e o poder

    menos visvel que o de convencimento, persuaso, atrao e de influenciar a opinio

    12

    Inicialmente o livro The Twenty Years Crisis: 1919-1939: An Introduction to the Stdy of InternationalRelationsfoi publicado em 1964. Adoto na bibliografia a traduo publicada em 2001 pela editora daUniversidade de Braslia.

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    dos outros a fazer o que voc deseja. Entretanto, esse poder de convencimento no

    explcito, definido como poder brando, no tem um sentido manipulador e

    maquiavlico que outros autores realistas de relaes internacionais, como Kissinger

    (1998), atribuem opinio pblica como fator de poder poltico. Acredito que a

    natureza do poder brando est em mais harmonia com aquela defendida por Weil

    (2001) sobre a opinio pblica na formao da agenda da poltica internacional. Fao

    essa reflexo apesar de Nye, Carr e Kissinger terem origem acadmica no mesmo

    paradigma de relaes internacionais: o realismo e o estudo da segurana

    internacional.

    H outras diversas formas de definir o poder, como a de Aron (2002), na qual

    o poder tem um trinmio sinttico espao, populao e recursos, sejam eles naturais ou

    econmicos. Esse trinmio apenas um exemplo, haja vista que, recentemente,

    acadmicos tm estudado a composio de vrias vertentes num conjunto definido

    como hegemonia (Arrighi, 2000; Kennedy, 2000; Keohane, 1984; Kindleberg, 1996;

    Nye, 1991, 2002; Todd, 2003; Wallerstein, 2004). Os requisitos que definem

    hegemonia mudam de autor para autor, que enfocam ora o aspecto militar (Kennedy,

    2000), ora o econmico (Arrighi, 1996; Kindleberg, 1996), ora o poltico, cultural e

    tecnolgico (Nye, 2002) e ora todos juntos (Guimares, 2002; Keohane, 1984; Todd,

    2003).

    Halliday (2001) um especialista nos estudos sobre revolues e procura

    identificar se elas so possveis e como elas ocorrem. Nesse contexto, ele define a

    natureza do poder no cenrio internacional mediante trs formas: o militar, o

    econmico e o cultural ou ideolgico. Ele defende que, tradicionalmente, o poder

    internacional era manifestado pela fora militar. Entretanto, Halliday afirma que ela

    nunca foi suficiente e se sustentava em dois pilares: a fora econmica e a coeso

    poltica. E apesar de a fora militar ser a mais importante demonstrao de poder, elano era em si a motivao principal para o interesse de expanso do Estado, o que

    remete discusso sobre predomnio territorialista ou capitalista vigente na Europa

    entre os sculos XV e XIX. Halliday acredita que, com o advento das armas nucleares,

    a ocorrncia de guerras entre Estados se tornou menos provvel, o que fragmentou a

    influncia militar na trade de poder, onde a tecnologia fortaleceu os outros pilares

    econmico e cultural. Argumento semelhante ao de Igncio Ramonet (2003), que

    afirma que a supremacia militar no se traduz mais, como no sculo XIX e primeirametade do sculo XX, por conquistas territoriais. Para Ramonet, as operaes militares

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    se tornaram, a longo prazo, politicamente impossveis de administrar, financeiramente

    dispendiosas e desastrosas diante da opinio pblica, confirmando a mdia como ator

    estratgico de primeira grandeza na poltica externa e domstica. A avaliao do

    socilogo francs foi anterior invaso americana no Iraque, em maro de 2003, e se

    mostrou verdadeira13.

    Ramonet (2003) tambm afirma que os principais protagonistas do sistema

    internacional e, conseqentemente, os que detm o poder mudaram. O Poder passou

    do mbito poltico (concentrao nos Estados Nacionais) para o controle de mercado

    financeiro, grupos planetrios de mdia, as infovias da comunicao, as indstrias de

    informtica e as tecnologias genticas. Resumindo, os principais atores, na opinio de

    Ramonet, so: a) associaes de Estados, como Unio Europia, Mercosul e a

    Associao Econmica das Naes do Sudeste Asitico (Asean); b) as empresas

    globais e os grandes grupos de mdia ou de finanas; e c) as organizaes no-

    governamentais. Para ele, os conceitos geopolticos mudaram (Estado, poder,

    soberania, independncia, democracia e fronteira) influenciando a relao entre

    dominantes e dominados no sistema mundial. Ramonet afirma que existe um duplo

    triunvirato que detm os comandos do planeta e age como uma espcie de poder

    executivo global. No plano geopoltico lideram Estados Unidos, Inglaterra e Frana. E

    no plano econmico, as trs maiores economias do mundo: Estados Unidos, Japo e

    Alemanha.

    Ramonet (2003) aponta outra transformao nas fontes de poder. Antigamente,

    os trs fatores principais eram: a) tamanho do territrio; b) importncia demogrfica,

    ou seja, tamanho da populao; e c) riqueza de matrias-primas. No contexto

    geopoltico atual eles no representam mais trunfos. Pelo contrrio, representam

    pesadas e onerosas desvantagens na era ps-industrial, na qual a nova riqueza est na

    capacidade intelectual, que promove o saber, a pesquisa e a habilidade de inovar, e nomais na produo de matrias-primas. Para ilustrar seu argumento, Ramonet aponta

    Estados extensos, com grande populao e ricos em recursos naturais que esto em

    posio de desvantagem na distribuio de poder, como Rssia, ndia, China, Brasil,

    13Um ms depois do incio dos combates, o presidente George W. Bush declarou o fim da guerra e a vitriaamericana no Golfo Prsico. Nesse perodo morreram cerca de 300 soldados americanos. Um ano depois, noperodo ps-guerra, mais de mil soldados morreram. A ocupao ps-guerra se tornou um dos temas principais

    das eleies presidenciais nos EUA, sendo alvo de crticas contra Bush. Redes de televiso americana fizerammea culpa por terem feito uma cobertura dos conflitos sem os questionamentos que o exerccio jornalsticoexige.

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    Indonsia, Mxico e Nigria. A exceo, reconhecida pelo prprio Ramonet, so os

    Estados Unidos.

    Strange (1996) fez uma relevante contribuio terica discusso sobre as

    fontes de poder quando definiu os quatro pilares do poder estrutural, transformando a

    Economia Poltica Internacional (EPI) em uma corrente de pensamento independente

    do realismo na teoria das relaes internacionais. Strange afirmou que as fronteiras

    territoriais no mais coincidiam com a extenso da autoridade poltica sobre a

    economia e sociedade, onde ocorreu uma difuso de poder entre autoridades estatais e

    no-estatais na economia mundial. Ela foi incorporando atores no-estatais em sua

    proposta terica, medida que identificou o crescente declnio do poder e autoridade

    do Estado e a dificuldade de ele exercer as funes bsicas de lei, ordem, defesa,

    moeda, justia e bem-estar social. Em contraposio ao poder relacional, com forte

    teor de influncia, Strange props a alternativa do poder estrutural, que seria

    influenciada indiretamente pelos atores no-estatais, que tem quatro pilares de

    sustentao: a) a segurana, nica fonte de poder que fica exclusivamente nas mos do

    Estado-Nao; b) financeira, na qual o crdito ganha relevncia em detrimento

    situao econmica (riqueza); c) produtiva, onde se assemelha ao estruturalismo por

    destacar nessa questo as desigualdades do sistema internacional, onde quem tem e

    quem no tem acesso a fatores produtivos; e d) conhecimento, que define o poder de

    influenciar as idias dos outros.

    O socilogo italiano Giovanni Arrighi (2000) afirma que quatro hegemonias

    moldaram a economia capitalista mundial nos ltimos seiscentos anos: Gnova (do

    sculo XV ao incio do XVII), Holanda (do fim do sculo XVI at a maior parte do

    XVIII), Inglaterra (da segunda metade do sculo XVIII ao incio do XX) e os Estados

    Unidos (de 1870 at os dias atuais). Arrighi identificou quatro perodos que chamou de

    sculos longos, nos quais cada hegemonia liderou um processo mundial deacumulao de capital, correspondendo a uma unidade temporal maior que cem anos.

    O estudo do socilogo italiano mostra a centralizao de redes de produo, comrcio

    e poder sob cada uma das quatro hegemonias, onde ocorreram fases de expanso

    material precedendo fase de expanso financeira, ambas formando um ciclo sistmico

    de acumulao.

    Nas primeiras fases de cada ciclo, o capital coloca em movimento uma massa

    crescente de produtos, inclusive fora de trabalho e bens na