educação no brasil

47
Educação no Brasil Educação no período imperial Para o professor Lauro de Oliveira Lima (1997) a vinda da Família Real representou a verdadeira “descoberta do Brasil”. Ainda segundo o professor Lauro, “a ‘abertura dos portos’, além do significado comercial da expressão, significou a permissão dada aos ‘brasileiros’ (madeireiros de pau-brasil) de tomar conhecimento de que existia, no mundo, um fenômeno chamado civilização e cultura”. Lima (1977, p. 103) em sua análise sobre o contexto histórico no período imperial afirma que: Em 1820 o povo português mostra-se descontente com a demora do retorno da Família Real e inicia a Revolução Constitucionalista, na cidade do Porto. Isto apressa a volta de D. João VI a Portugal em 1821. Em 1822, a 7 de setembro, seu filho D. Pedro I declara a Independência do Brasil e, inspirada na Constituição francesa, de cunho liberal, em 1824 é outorgada a primeira Constituição brasileira. O Art. 179 desta Lei Magna dizia que a “instrução primária é gratuita para todos os cidadãos”. Em 1823, na tentativa de se suprir a falta de professores institui-se o Método Lancaster, ou do “ensino mútuo”, onde um aluno treinado (decurião) ensina um grupo de dez alunos (decúria) sob a rígida vigilância de um inspetor. Em 1826 um Decreto institui quatro graus de instrução: Pedagogias (escolas primárias), Liceus, Ginásios, e Academias. E em 1827 um projeto de lei propõe a criação de pedagogias em todas as cidades e vilas, além de prever o exame na seleção de professores, para nomeação. Propunha ainda a abertura de escolas para meninas. Adquirida a autonomia política em 1822, fazia-se necessária uma Constituição. Na escola estava presente a idéia de um sistema Nacional de Educação”, em seu duplo aspecto: a graduação das escolas e a distribuição por todo o território nacional. Assim, em seu art. 250 foi declarado: “haverá no Império escolas primárias em cada termo, ginásios em cada comarca, e universidades nos mais apropriados locais”. (RIBEIRO, 1988). Já no texto constitucional outorgado, Ribeiro aponta que: a idéia de “Sistema Nacional de Educação” foi abandonada, uma vez que com relação à educação, o artigo 179 menciona os seguintes termos: “A inviolabilidade dos direitos civis e políticos dos cidadãos brasileiros, que tem por base a liberdade, a segurança, individual e a propriedade, é garantida pela Constituição do Império”, entre outras maneiras, pela “instrução primária

Upload: elomar-xavier

Post on 27-Jun-2015

629 views

Category:

Documents


23 download

TRANSCRIPT

Educação no Brasil

Educação no período imperialPara o professor Lauro de Oliveira Lima (1997) a vinda da Família Real

representou a verdadeira “descoberta do Brasil”. Ainda segundo o professorLauro, “a ‘abertura dos portos’, além do significado comercial da expressão,significou a permissão dada aos ‘brasileiros’ (madeireiros de pau-brasil) detomar conhecimento de que existia, no mundo, um fenômeno chamadocivilização e cultura”.

Lima (1977, p. 103) em sua análise sobre o contexto histórico noperíodo imperial afirma que:

Em 1820 o povo português mostra-se descontente com a demora doretorno da Família Real e inicia a Revolução Constitucionalista, na cidade doPorto. Isto apressa a volta de D. João VI a Portugal em 1821. Em 1822, a 7 desetembro, seu filho D. Pedro I declara a Independência do Brasil e, inspiradana Constituição francesa, de cunho liberal, em 1824 é outorgada a primeiraConstituição brasileira. O Art. 179 desta Lei Magna dizia que a “instruçãoprimária é gratuita para todos os cidadãos”.

Em 1823, na tentativa de se suprir a falta de professores institui-se oMétodo Lancaster, ou do “ensino mútuo”, onde um aluno treinado (decurião)ensina um grupo de dez alunos (decúria) sob a rígida vigilância de um inspetor.

Em 1826 um Decreto institui quatro graus de instrução: Pedagogias(escolas primárias), Liceus, Ginásios, e Academias. E em 1827 um projeto delei propõe a criação de pedagogias em todas as cidades e vilas, além de prevero exame na seleção de professores, para nomeação. Propunha ainda aabertura de escolas para meninas.

Adquirida a autonomia política em 1822, fazia-se necessária umaConstituição. Na escola estava presente a idéia de um sistema Nacional deEducação”, em seu duplo aspecto: a graduação das escolas e a distribuiçãopor todo o território nacional. Assim, em seu art. 250 foi declarado: “haverá noImpério escolas primárias em cada termo, ginásios em cada comarca, euniversidades nos mais apropriados locais”. (RIBEIRO, 1988).

Já no texto constitucional outorgado, Ribeiro aponta que:

a idéia de “Sistema Nacional de Educação” foi abandonada, uma vezque com relação à educação, o artigo 179 menciona os seguintes termos: “Ainviolabilidade dos direitos civis e políticos dos cidadãos brasileiros, que tempor base a liberdade, a segurança, individual e a propriedade, é garantida pelaConstituição do Império”, entre outras maneiras, pela “instrução primária

gratuita a todos os cidadãos” e pela criação de colégios e universidades, ondeserão ensinados os elementos das ciências e das artes (RIBEIRO, 1988, p.47).

Analisando-se a lei de 15 de outubro de 1827, a única Lei geral relativaao ensino elementar até 1946, mais uma vez se tem a comprovação dos limitescom que a organização era encarada (ARANHA, 1989).

Mas, como a sociedade brasileira manteve sua base escravocrata, aclientela a estudar no ensino elementar, reduziu-se simplesmente aos filhosdos homens livres.

Em 1834 segundo Lima (1977, p. 103):

o Ato Adicional à Constituição dispõe que as províncias passariam a serresponsáveis pela administração do ensino primário e secundário. Graças aisso, em 1835, surge a primeira escola normal do país em Niterói. Se houvesseintenção de bons resultados não foi o que aconteceu, já que, pelas dimensõesdo país, a educação brasileira se perdeu mais uma vez, obtendo resultadospífios.

De 1842 até 1844, D. Pedro II edita decretos educacionais para aInspetoria-Geral da Instrução Primária e Secundária do Município da corte,destinada a fiscalizar e orientar o ensino público e particular em 1854. Crioutambém o estabelecimento das normas para o exercício da liberdade de ensinoe de um sistema de preparação do professor primário, além da reformulaçãodos estatutos do Colégio de Preparatórios também no mesmo ano (ARANHA,1989).

A Instrução primária continuou constituída de aulas de leitura, escrita ecálculo. A organização das escolas normais (magistério), iniciada na terceiradécada do século XIX, trouxe uma pequena melhora. A instituição secundáriacaracterizou-se por ser predominantemente para alunos do sexo masculino,pela falta de organicidade, pelo predomínio literário, pela aplicação de métodostradicionais e pela atuação da iniciativa privada (PILETTI, 2000).

Em 1880 o Ministro Paulino de Souza lamenta o abandono da educaçãono Brasil, em seu relatório à Câmara. Em 1882 Ruy Barbosa sugere aliberdade do ensino, o ensino laico e a obrigatoriedade de instrução,obedecendo as normas emanadas pela Maçonaria Internacional (LIMA, 1997,p. 104).

Os últimos anos do Império foram marcados por fatores de ordemeconômica, social e política, que configuraram a crise da Monarquia eprepararam o advento da República. Esse período de crise, assinalado pelodesenvolvimento de diversas questões (abolicionista, republicana, religiosa,

militar), foi uma época em que importantes personagens de nossa eliteintelectual abraçaram os ideais do liberalismo burguês (PILETTI, 2000).

Contribuindo com essa reflexão Lima (1977, p. 104) ressalta que:

Até a Proclamação da República, em 1889 praticamente nada se fez deconcreto pela educação brasileira. O Imperador D. Pedro II quando perguntadoque profissão escolheria não fosse Imperador, respondeu que gostaria de ser“mestre-escola”. Apesar de sua afeição pessoal pela tarefa educativa, pouco foifeito, em sua gestão, para que se criasse, no Brasil, um sistema educacional.

A educação no período da Primeira RepúblicaEm 1889 cai a Monarquia e começa a Primeira República, conhecida

também como República Velha, República Oligárquica, República dos Coronéise República do Café. Com a Constituição de 1891, é instaurado o governorepresentativo. Faz-se necessário ressaltar que oligarquia significa um governode poucos, indicando que a escolha dos governantes não é propriamentedemocrática, mas controlada por uma elite.

Após a Primeira Guerra Mundial (1914-1918) começa a lenta mudançado modelo econômico agrário-exportador da Primeira República. Um surto dáinício à nacionalização da economia, com a redução de importações, e fazsurgir uma burguesia industrial praticamente urbana (ARANHA, 1989).

Em 1929 a Bolsa de Nova York quebra e desencadeia a crise do café.As conseqüências acabam sendo, de certa forma, benéficas, pois provocam ocrescimento do mercado interno e a queda das exportações, o que resulta emmaior oportunidade para a indústria brasileira. Esse período é conhecidotambém como nacionalista, ou seja, há grande valorização da cultura do país.

A Primeira República é marcada por diversos acontecimentos políticos esociais , entre eles:

A oposição às forças conservadoras do aristocrata rural. Este movimentorecrudesce com a Revolução de 30, que aglutina grupos de diferentessegmentos sociais e econômicos e diversas tendências ideológicas:intelectuais, militares, políticos, burguesia industrial e comercial, além desegmentos de classe média (ARANHA, 1989, p. 195).

Diante dessa realidade e aproveitando a situação instável do país,Getúlio Vargas aplica o golpe de estado em 1937. Esse governo, centralizadore ditatorial, apresenta influência das doutrinas totalitárias vigentes na Europa(nazismo e fascismo).

Portanto, a Primeira República é o período no qual se colocou emquestão o modelo educacional herdado do Império, que privilegiava aeducação primária profissional. Em 1920 a educação elitista entrou em crise.

Por essa razão instala-se na organização escolar da Primeira República aseguinte dualidade, fruto da descentralização pela Constituição de 1891:

À união competia privativamente legislar sobre o ensino superior naCapital da República, cabendo-lhe, mas não privativamente, criar instituiçõesde ensino secundário nos Estados e promover a instrução no Distrito Federal.Aos Estados se permitia organizar os sistemas escolares, completos; [...](AZEVEDO apud RIBEIRO, 1988, p. 36).

Ressalte-se que, em 1890, foi decretada e colocada em prática a ReformaBenjamim Constant, que tinha como princípios orientadores a liberdade,laicidade do ensino (leigo) e gratuidade da escola primária. Outro dadorelevante na Primeira República é que o ensino continuava tradicional eautoritário, sob influência positivista. Em decorrência dessa postura, opercentual de analfabetos no ano de 1900 era de 75%, segundo o AnuárioEstatístico do Brasil do Instituto Nacional de Estatística (ARANHA, 1989).

Nesse período complexo de História do Brasil, surgiram várias reformas.Dentre elas, a de João Luiz Alves, que introduziu a cadeira de Moral e Cívica,com a intenção de tentar combater os protestos estudantis contra o governo dopresidente Arthur Bernardes (1922-1925) (ARANHA, 1989).

A década de 1920 foi marcada por diversos fatos relevantes no processode mudanças das características políticas brasileiras: Movimento dos 18 doForte (1922), Revolta Tenentista (1924) e Coluna Prestes (1924-1927). Alémdisso, foram realizadas diversas reformas de abrangência estadual: LourençoFilho, no Ceará (1923), Anísio Teixeira, na Bahia (1925), Francisco Campos eMário Casassanta, em Minas (1927), Pernambuco (1928) (ARANHA, 1989).

A Educação nova no BrasilA década de 1920 foi marcada pelo confronto de idéias entre correntes

divergentes, influenciadas pelos movimentos europeus, que culminou com acrise econômica mundial de 1929. Esta crise repercutiu diretamente sobre asforças produtoras rurais que perderam do governo os subsídios que garantiama produção (PILETTI, 2000).

A Revolução de 1930 foi o marco referencial para a entrada do Brasil nomundo capitalista de produção. A acumulação de capital, do período anterior,permitiu que o Brasil pudesse investir no mercado interno e na produçãoindustrial (PILETTI, 2000).

Ao fim da Primeira República, o país não avançara em relação aoImpério: continuava sem um sistema nacional de educação. Com a Revoluçãode 1930, a primeira iniciativa em relação ao campo educacional foi a criação doMinistério da Educação e das Secretarias de Educação dos Estados. ParaMinistro da Educação foi escolhido Francisco Campos que, na década anterior,havia reformado a educação de Minas Gerais. Contribuindo para essa análisePiletti (2000) ressalta que:

A nova realidade brasileira passou a exigir uma mão-de-obraespecializada e para tal era preciso investir na educação. Sendo assim, em1930 , foi criado o Ministério da Educação e Saúde Pública e, em 1931, ogoverno provisório sanciona decretos organizando o ensino secundário e asuniversidades brasileiras ainda inexistentes. Estes Decretos ficaramconhecidos como “Reforma Francisco Campos”, são eles:

O Decreto n.19.850, de 11 de abril, cria o Conselho Nacional deEducação e os Conselhos Estaduais de Educação (que só vão começara funcionar em 1934).

O Decreto n.19.851, de 11 de abril de, institui o Estatutos dasUniversidades Brasileiras que dispõe sobre organização do ensinosuperior no Brasil e adota o regime universitário.

O Decreto n.19.852, de 11 de abril, dispõe sobre a organização daUniversidade do Rio de Janeiro.

O Decreto n.19.890, de 18 de abril, dispõe sobre a organização doensino secundário.

O Decreto n.20.158, de 30 de julho, organiza o ensino comercial,regulamenta a profissão de contador e dá outras providências.

O Decreto n.21.241, de 14 de abril, consolida as disposições sobre oensino secundário.

Em 1932, um grupo de 26 educadores lançou o Manifesto dos Pioneirosda Educação Nova que foi redigido por Fernando de Azevedo e assinadopor outros conceituados educadores da época. Nesse documento forampropostas e defendidas muitas soluções que, a partir de então, foram sendoaplicadas à educação brasileira. Esse manifesto é muito importante nahistória da educação brasileira por que representa a tomada de consciênciada defasagem entre a educação e as exigências do desenvolvimento sociale humano. (CAMBI, 1999).

Em 1934 a nova Constituição (a segunda da República) dispõe, pelaprimeira vez, que a educação é direito de todos, devendo ser ministradapela família e pelos Poderes Públicos. Ainda em 1934, por iniciativa degovernador Armando Salles Oliveira, foi fundada a Universidade de sãoPaulo. A primeira a ser criada e organizada segundo as normas do Estatutodas Universidades Brasileiras de 1931 (PILETTI, 2000).

Imprescindível salientar que, em 1934, a 3ª Constituição foi a primeira aincluir um capítulo especial sobre educação, abordando dessa forma osseguintes aspectos: educação como direito de todos, obrigatoriedade da escolaprimária integral, gratuidade do ensino primário, assistência aos estudantesnecessitados etc.

A partir da Constituição de 1934, o Governo federal passou a assumirnovas atribuições educacionais, como: traçar diretrizes da educação nacional,controlar, supervisionar e fiscalizar o cumprimento das normas federais.

Em função da instabilidade política deste período, Getúlio Vargas, numgolpe de Estado, instala em 1937 o Estado Novo e proclama uma novaConstituição, também conhecida como “Polaca”.

A Educação no período da Segunda RepúblicaDepois da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) teve início a SegundaRepública, também conhecida de República Populista, que se estende desde adeposição de Getúlio, em 1945, até o golpe militar de 1964.Na América Latina, o populismo surge com a emergência da industrialização(em que, aos poucos, dava-se a substituição do modelo agrário-exportadorpelo nacional-desenvolvimentista). No caso do Brasil, vimos que essatendência se fez presente desde 1930, durante o Estado Novo, com a atuaçãode Getúlio Vargas (ARANHA, 1989).Houve retorno ao estado de direito, com governos eleitos pelo povo, esperançade progresso acelerado e mudanças no modelo econômico. Odesenvolvimento, até então caracterizado pelo nacionalismo, começa a entrarem contradição com o processo de internacionalização da economia einstalação das multinacionais, no governo de Juscelino Kubitschek.Depois de Juscelino Kubitschek, a tendência populista se expressa naliderança de Jânio Quadros (1961), que renuncia no início do mandato. Duranteo governo de João Goulart (Jango, 1964), herdeiro político de Vargas, opopulismo já se encontra desgastado. As forças conservadoras eanticomunistas, temerosas da instauração de uma nova Cuba, depõem opresidente e instauram a ditadura militar (ARANHA, 1989).

Um fator marcante nesse período diz respeito à criação da Lei deDiretrizes e Bases n.40.24/61. Foi a primeira a englobar todos os graus emodalidades do ensino, mas levou 13 anos para entrar em vigor. Sendo assimquando foi aprovada em 1961, muitos pontos já estavam ultrapassados e arealidade social já era outra (PILETTI, 2000).

Na década de 1960, a educação popular, principalmente, é alvo dediscussões e idealizações. Paulo Freire foi um dos principais pensadores dessemovimento. Seu método de alfabetização de adultos – centrado na adequaçãodo processo educativo às características do meio e do educando – alcançourepercussão nacional e internacional.

Aprofundando o conhecimento

As concepções da História: do positivismo à Nova História¹

Introdução

Para realizarmos uma análise da História é necessário compreendermoscomo se deu a relação do homem com a natureza a as suas relaçõessociais a partir de uma reflexão sobre as macroestruturas: o positivismo,o historicismo e o marxismo, uma vez que a macroestrutura é a forçaque encaminha a sociedade.

Partindo do pressuposto de que nenhuma concepção pode existirfora de sua historicidade, pois todo pensador estabelece um diálogo comseu tempo, uma análise deve ser feita a partir do contexto histórico emque essas concepções se desenvolveram.

Dessa forma, este texto vislumbra discorrer sobre os paradigmasda História: iluminista ou racionalista, e pós-moderno. O primeiroparadigma originou-se no século XIX, com o positivismo, o historicismo eo marxismo e prolonga-se até o século XX, com a “Escola dos Annales”,nas suas duas primeiras fases, de 1929 a 1969. O segundo paradigmadá-se a partir da década de 1970 com a terceira fase da “Escola dosAnnales”, sob a denominação de “Nova História”.

Estaremos discorrendo sobre cada um deles tendo como pontoreferencial os autores que se preocuparam em elucidar tais paradigmas.

Do positivismo à Nova HistóriaCom a Revolução Francesa, a burguesia utilizou-se do

conhecimento iluminista para convencer as camadas populares a apoiá-la, pois estava instalada uma desorganização geral na sociedade. Eranecessária uma reorganização ideológica, que buscasse umordenamento que garantisse o progresso.

O positivismo foi a primeira tentativa de analisar cientificamente asociedade considerando sua natureza social. A sociedade era entendidacomo um corpo social, dividido em partes, cada uma com sua função eimportância, devendo haver a cooperação dessas partes para o bomfuncionamento do “corpo” social. Nessa concepção, a sociedade éregida por leis naturais que explicam seu desenvolvimento a partir detrês estados: estado teológico, estado metafísico, e estado positivo.

Na França, por exemplo, a civilização

foi vista tradicionalmente numa perspectiva evolucionista eotimista. As civilizações seriam “altas culturas” caracterizadas pelaurbanização, a escrita, o desenvolvimento das ciências, a metalurgia, osurgimento de um poder separado do parentesco (o Estado), odesenvolvimento da divisão social do trabalho e das diferenças de statusentre indivíduos e grupos. (CARDOSO, 1997, p.2).

Utilizando o método erudito francês, a Alemanha produziu afilosofia da história e a história científica, com Hegel e Rankerespectivamente.

A história para Ranke era o reino do Espírito, que se manifestavaindividualmente. O significado dos eventos aparece parcialmente nomundo dos sentidos, havendo a necessidade do rigor na análise dasfontes. “O historiador deve se concentrar nos eventos, nas expressõesdessas individualidades apreendidas através das fontes” (REIS, 1996, p.12).

Reis (1996) elucida que nesta época historicista, procura-seseparar o sujeito do conhecimento do seu objeto, visando à“objetividade”. O sujeito se afasta do objeto para vê-lo melhor, “tal comoele é”. A busca da objetividade conduz à convicção de que a história nãopode ser produzida. A função do historiador seria a de recuperar oseventos, suas interconexões e suas tendências através dadocumentação e fazer-lhes a narrativa – a história se limitaria adocumentos escritos e oficiais de eventos políticos. A história científicadá grande importância ao documento escrito, uma vez que este é aprova da verdade, porém afastada da vivência coletiva, preocupada comum encaminhamento lógico, e com neutralidade, realiza um recorteingênuo dos eventos.

Diferente do positivismo tem-se no século XIX, o Historicismo,originário na Alemanha com um grupo de pensadores heterogêneos,que refletiam sobre o problema da originalidade do conhecimento nasCiências Sociais, para qual todo fenômeno social, político é histórico.Com um caráter relativista, o conhecimento revela um mundo transitório,que muda de acordo com as transformações reais. Assim, as verdadessão transitórias de acordo com as diferentes concepções teóricas.

Segundo Dilthey, a multiplicidade dos sistemas teóricos,filosóficos e científicos se estende ao redor de nós de maneira ilimitadae caótica, e não há esperança de que possa aparecer uma solução paraessa confusão [...]. Cada um desses sistemas exprime uma dimensãodo universo, cada um é em conseqüência, verdadeiro, mas também éunilateral, só toma um pedaço, um aspecto, uma dimensão da realidade.É impossível ter-se uma visão de conjunto dessas dimensões (LOWY,1985, p.74).

Dilthey propôs a “crítica da razão histórica”, criando um “método”para a apreensão das individualidades totais, que inicia pela descriçãoexterior, seguido pela busca das articulações internas pela suadecomposição em partes, e chega à reatualização, à recriação da “vida”dessas individualidades. (REIS, 1996).

As teses de Dilthey descritas por Reis (1996) são: o homem nãocriou a natureza, mas criou o mundo social, o direito, a cultura; só sepode conhecer o que se criou e as metodologias das ciências naturaispodem apenas “descrever”, nunca “penetrar” seu objetivo. É pelacompreensão que se dá uma “aproximação íntima”, uma “confiança

recíproca” do objeto e não pela distância entre o sujeito e o objeto, comoestabeleciam os positivistas.

Para Dilthey o indivíduo é a unidade concreta e, real, é uma“duração psicológica. A consciência individual é devir, não se repete, éincessante novidade. O presente vivido constitui-se de um complexo deemoções, sentimentos e vontades: uma unidade na diversidade” (REIS,1996, p. 29).

Na França, o pensamento histórico foi ignorado e somente comAron transparece a filosofia crítica da História quanto à especificidade doconhecimento histórico. Aceita que a História é “autoconsciência” que ohomem toma de si, mas rejeita a História como devir não evolucionista.Só a retomada consciente do passado consegue definir a historicidadeautêntica.

Nesse contexto, o séc. XIX foi um século de grande efervescênciado capitalismo, no qual, os embates entre os grupos sociais –trabalhadores e burguesia – levaram ao surgimento de propostas quesugeriram um reordenamento econômico e político para a solução dosconflitos. Nesse momento, os trabalhadores lutavam por transformaçõescom bases socialistas.

Surge a figura de Karl Marx que empreende publicações comanálises históricas, sociais, econômicas e políticas compondo o outrogrande paradigma da história: o marxismo, trazendo novas categoriaspara explicar as relações sociais. Para Marx, a base da sociedade, dasua formação, das suas instituições e regras de funcionamento, dassuas idéias, dos seus valores, são as condições materiais. É a partirdelas que se constrói a sociedade; a base da sociedade está no trabalho(ANDERY; SÉRIO, 1996, p. 401).

O sujeito toma consciência histórica e determinada do objeto.Assim é a concepção de uma história humanizada, produto da práxiscoletiva sobre as condições dadas e sobre as regularidades materiais. Amaterialidade se dá pela base econômica (determinismo econômico) emque se as relações e as estruturas são explicadas pela produçãomaterial. A materialidade explica a relação homem x homem e entre elese o real.

O marxismo, enquanto ciência da História, tomará como objetivoas estruturas econômico-sociais, invisíveis, abstratas, gerais, mas “chão”concreto da luta de classes e das iniciativas individuais e coletivas. ParaMarx, “os indivíduos só podem ser explicados pelas relações sociais quemantêm, isto é, pela organização social a que pertencem e que osconstitui como eles são” (REIS, 1996, p. 43)

Assim, o ser social, o homem, é materialista, objetivo, concreto,exterior ao pensamento; o ser social não é uma “coisa”, mas relaçõessociais históricas determinadas que constituem o modo de produçãocapitalista.

Para Hobsbawn “a imensa força de Marx sempre residiu em suainsistência tanto na existência da estrutura social quanto na sua historicidade,ou, em outras palavras, em sua dinâmica interna de mudança”, e issorepresenta dizer que Marx considerava a história como dimensão necessáriapara entender a sociedade.

Cardoso (1997) cita a síntese por Adam Schaff sobre a visão marxista dahistória:

1. Que a realidade social é mutável;2. Que esta mudança é submetida a leis cujo reflexo são as leis dinâmicas

da ciência (histórica);3. Que as mudanças conduzem a estados periódicos de equilíbrio relativo,

cuja característica não é [...] a ausência de qualquer mudança, mas sima duração de suas “formas” e “relações recíprocas” (hojeexpressaríamos isto mais precisamente com as palavras: da estrutura dosistema).

O marxismo é um estruturalismo genético, no entender de Reis (1996),que afirma a contradição presente, que a levará à transição para outraestrutura, dando outro entendimento à história “científica”. O Espírito deixa deexistir e dá lugar ao visível, ao explícito e ao aparente, componentes de umaestrutura econômico-social real, objeto da história-ciência.

É nessa estrutura econômico-social que acontece a práxis, a intervençãolivre e condicionada na qual os homens transformam o mundo e a si mesmos.Essa ação resulta das lutas que se tornam o “motor” do desenvolvimentohistórico em direção à emancipação da humanidade (REIS, 1996).

O mesmo autor apresenta várias interpretações do marxismo, dentreelas, a de Leforte, para quem há duas formas de compreensão do marxismo:uma visão “evolutiva” da história e uma visão “repetitiva” da História. Reis(1996) considera a visão evolucionista do marxismo como uma filosofia dahistória, uma síntese de todas as grandes filosofias da História da sua época.No entanto, para Marx, há ainda um outro modo de compreensão da História eda vida social, um modo que dá mais ênfase à “repetição” do que a “evolução”.O modo de produção capitalista não seria resultante do desenvolvimentoevolutivo dos modos de produção anteriores, mas de uma ruptura com eles, ouseja, uma descontinuidade entre as estruturas históricas, os modos deprodução.

É pela práxis que a História teria sua salvação na própria história, autopia resgataria o tempo passado e presente de infelicidade, e a espéciehumana seria imortal num processo de superação da finitude dos indivíduos(REIS, 1996).

Na década de 1920, surgiu na França um movimento agrupado em tornoda revista dos Annales d’historie économique et sociale, um periódico quetraduzia o movimento da reorientação que queria se imprimir aos estudos davida privada, o grupo dos Annales abriu uma terceira via ao estudo da história,

distanciando-se tanto da historiografia marxista quanto da história factual-biográfica.

Um dos grandes panoramas que os Annales desvelaram para ahistoriografia foi a revolução documental, que, não apenas significou aincorporação de novas fontes das quais a história brotaria, mas também daprópria ampliação dos objetos de estudo do campo histórico, não mais restritoao modelo baseado nos acontecimentos.

March Bloch e Lucien Febvre, seus fundadores, propõem uma ciênciaempírica, sem dogmas, uma verdadeira “guerra sem movimento”, com totalnegação à filosofia da história e seu aspecto positivista, típico do século XIX.

A partir do 1940, os Annales, em sua segunda geração, com FernandBraudel, entre outros, caracterizou-se por uma produção historiográficapredominantemente demográfica. Reis (1996) considera que, entre 1946 e1972, quando os Annales estiveram sob direção de Braudel, este “teria criadoum paradigma reconhecível e maduro, uma matriz disciplinar autônoma” (p.55).

Até a aposentadoria de Braudel, os Annales pautou-se pela busca daconstrução racional de uma história totalizante (SAVIANI, 1998).

O final da década de 1960 e o início dos anos 70 caracterizavam-secomo a 3ª geração dos Annales, considerando o segundo paradigma daHistória, marcado por um crescente interesse dos historiadores por temaspertencentes ao domínio da cultura, havendo um declínio dos temassocioeconômicos, desinteresse por temas demográficos e aparecimento detemas outrora raríssimos ou desconhecidos (criança, família, morte,sexualidade, criminalidade delinqüência...).

De acordo com Saviani “a partir dos anos 70, dá-se uma inflexão com aadoção de pressupostos estruturalistas oriundos da filosofia, da lingüística e daetnologia que desembocará na autodenominada Nova História” (1998, p.9).

Cardoso (1997) explica que em História, o marxismo e o grupo dosAnnales no período de 1929-1969 foram suas vertentes mais influentes eprestigiosas.

Os historiadores do grupo dos Annales escreveram uma história quepretendem científica e racional, tendo como pontos básicos, na visão do autoracima citado:

1. A crença do caráter científico da história, entendida como uma ciênciaem construção;

2. O debate cítrico permanente com as ciências sociais, sem reconhecerfronteiras entre elas que sejam estritas e definitivas. A história importoudelas problemas, conceitos, métodos e técnicas;

3. A ambição de formular uma síntese histórico-global do social;4. O abandono da história centrada em fatos isolados e uma abertura

preferencial aos aspectos coletivos, sociais e repetitivos do sócio-histórico;

5. Uma ênfase menor nas fontes escritas, ampliando o uso da história oral,dos vestígios arqueológicos, da iconografia, etc.;

6. A retomada de consciência da pluralidade dos níveis de temporalidade:a curta duração dos acontecimentos, o tempo médio das conjunturas, alonga duração das estruturas;

7. A preocupação com o espaço;8. A história vista como “ciência do passado” e “ciência do presente” ao

mesmo tempo (CARDOSO, 1977).

Cardoso ainda ressalta alguns pontos comuns entre as característicasdo grupo dos Annales com a concepção histórica do Marxismo, sendo algunsdeles:

1. O reconhecimento da necessidade de uma síntese global que expliquetanto as articulações entre os níveis que fazem da sociedade humanauma totalidade estruturada quanto as especificidades nodesenvolvimento de cada nível;

2. A convicção de que a consciência que os homens de determinada épocatêm da sociedade em que vivem não coincide com a realidade social daépoca em questão;

3. O respeito pela especificidade histórica de cada período e sociedade;4. A aceitação da inexistência de fronteiras estritas entre as ciências

sociais;5. A vinculação da pesquisa histórica com as preocupações do presente;6. A aproximação de alguns membros dos Annales da noção marxista da

determinação em última instância pelo econômico (1997).

O autor, no entanto, aponta a pouca inclinação dos historiadores dosAnnales e o fato de não disporem de uma teoria da mudança social como amaior diferença entre os Annales e o marxismo.

Reis (1996), ao se posicionar sobre a temática que apontou váriasdiscussões sobre a existência dos paradigmas nos Annales e o impasse se ogrupo teria feito uma revolução no conhecimento histórico, sustenta a idéia deque os Annales, se não fizeram uma “revolução científica”, seguramenterealizaram uma “mudança substancial” no conhecimento histórico.

Concordando com Lê Goff, Reis pontua que os “Annales produziramuma ‘descontinuidade’, realizaram uma mudança ‘substancial’, por queapresentaram, sob o signo das Ciências Sociais, uma outra concepção dotempo histórico, uma outra noção de duração e de conhecimento de duração”(1996, p. 61). Assim o autor reconhece que os Annales realizaram aelaboração de uma nova concepção do tempo histórico e, por isso, criaramuma outra História!

Os Annales e Braudel em particular, constituíram o conceito de “longaduração”, isto é, a idéia de que, quando se define um período histórico, define-se um problema e esse problema é presente e não deve ficar desconectado do

passado. Para ter uma visão melhor, tem de ter o olhar de “longa duração”,reconhecendo os diferentes contextos temporais.

A duração temporal, a longa duração, é necessária para a compreensãoda história. Os historiadores da “Nova História” colocam muitas indagaçõesquerendo entender as possibilidades das outras ciências. A “Nova História”procura englobar todas as ciências sociais, todas as especialidades paraexplicar os eventos. Os historiadores analisam Marx, e não os marxistas, e nãoaceitam a explicação econômica dos eventos e sobre eles.

O paradigma pós-moderno, representado pela 3ª geração dos Annales,é entendido por Saviani (1998) como uma possibilidade de dissolução dahistória em múltiplas histórias e o abandono das explicações de amplo alcance,que passam a ser tachadas como inviáveis e sem sentido.

Saviani (1998) busca em Cardoso para elencar as principais críticas ao“paradigma pós-moderno”:1. O anti-racionalismo dessa corrente acompanha-se de certo desleixo teórico

e metodológico;2. Os pós-modernos costumam ser mais evidentes e retóricos do que

argumentativos, não se preocupando com a refutação detalhada e rigorosadas posições contrárias;

3. Há paradoxos e conflitos insolúveis em muitas das posições pós-modernas;4. Os pós-modernos têm o discurso do “façam o que eu digo, não o que eu

faço”.

Finalizando, reconhece-se na Nova História um desejo de ser porta-vozde uma visão que seria a do “homem comum”, do “homem da rua”, das“massas inarticuladas”, ainda que tal engajamento freqüentemente enfoque asminorias discriminadas em lugar das maiorias exploradas.

Educação e Globalização no terceiro milênio

Educação e Globalização no terceiro milênioA chamada globalização influencia não apenas a atividade econômica

mundial, mas também a vida em sociedade. Não é, portanto, um fenômenoinédito e utópico, e sim algo que vem sendo forjado gradativamente ao longoda História.

É uma realidade problemática, atravessada por movimentos deintegração e fragmentação simultaneamente às interdependência eacomodação, desenvolvem-se fusões e antagonismos: implicam tribos enações, coletividades e nacionalidades, grupos e classes sociais, trabalho ecapital, etnia e religiões, sociedade e natureza. São muitas as diversidades edesigualdades que se desenvolvem com a sociedade global. Algumas sãoantigas e outras recentes, surpreendentes. Para compreender os movimentos e

as tendências da sociedade global, pode ser indispensável compreender comoas diversidades e desigualdades atravessam o mundo (IANII, 1997, p. 29).

Com o advento da globalização na atualidade que para muitos,confunde-se com uma nova era, a era do conhecimento – a educação é tidacomo maior recurso de que se dispõe para enfrentar essa nova estruturação domundo. Dela depende a continuidade do atual processo de desenvolvimentoeconômico e social, também conhecido com era pós-industrial, em quenotamos claramente um declínio do emprego industrial e a multiplicação dasocupações em serviços diferenciados: comunicação, saúde turismo, lazer einformação (IANNI, 1997).

As dificuldades geradas pelo processo de globalização, como seobserva, atingem direta e indiretamente o indivíduo, o cidadão, principalmentenos Estados emergentes, que padecem com as desigualdades sociais, cadavez mais profundas.

Segundo Ianni (1997, p. 61),

Na perspectiva de diminuir essas dificuldades, o investimento no fatorhumano é de suma importância, visto que, nas sociedades subdesenvolvidas,somente tem acesso à propriedade os indivíduos qualificados tecnicamente, ouseja, em condições de competir no mercado de trabalho, cada vez maisespecializado. O acesso à propriedade tende a diminuir o desnível social e osproblemas da miséria e da violência.

O mecanismo que gera as condições para formar indivíduoscompetitivos inicia-se necessariamente com uma educação de base, atravésde um sistema de ensino comprometido verdadeiramente em formar cidadão,ensino este que deve ter a mesma qualidade tanto para os ricos quanto para ospobres. A preocupação com a educação deve ser a prioridade dos Estados,pois somente através dela é que se pode formar cidadãos conscientes equalificados para o trabalho no mundo deste terceiro milênio.

Levando em consideração os dados apontados até o momento,percebemos que a educação, e principalmente, o professor são diferenciadosnesse processo, ou seja, a atua conjuntura social, política, econômica e culturalrequer um novo perfil de professores com vistas à formação de um sujeitocrítico e transformador.

Para tanto, a educação brasileira está permeada de desafios eincertezas. É isso que deve nos mobilizar na busca, criação e transformaçãodas possibilidades de aprender para aprender a dinâmica educacional, unindo,assim, o saber e o saber fazer. Portanto, formar professores, na atualconjuntura, significa uma revisão fundamentada em pesquisas sobre arealidade de cursos, habilitações, currículos e prática pedagógica, queculminem na formação do educador/educando como um cidadão plural,inspirado na ética e no respeito aos códigos culturais alheios.

O papel do professor diante do contexto histórico daeducação no século XXIO novo cenário educacional do século XXI mostra que o grande desafio

da história não é somente discutir as questões apresentadas pela metafísica,este vai além. Ele nos apresenta novas concepções de educação, que tantoprofessor quanto professora almejam alcançar neste complexo universo damodernidade.

Em face dessas mudanças, o profissional da educação necessita ter umnovo olhar em relação à leitura de mundo e da condição humana. Osinstrumentos dessa nova leitura não são os mecanismos analíticos ereducionistas da lógica clássica. A racionalidade é complementada pelaintuição e pelo sentimento. Começa-se, então, a questionar, em educação,diversos elementos dialeticamente contrapostos. Dentre eles, destaca-se aprópria objetividade na formação do conhecimento, com a qual se confronta.

Ou seja, o sujeito cognitivo passa a ser entendido não apenas como umsujeito racional, mas também como um sujeito psicológico, social, político, istoé, relacional, haja vista que é fruto do processo entre subjetividade eobjetividade.

Sendo assim, o aluno e o professor têm de ser entendidos como sujeitosque se relacionam na mesma dinâmica histórica da sociedade. Bachelardexpõe muito claramente esta idéia afirmando que:

Fechado no ser, sempre há de ser necessário sair dele. Apenas saídodo ser, sempre há de ser preciso voltar a ele. Assim, no ser, tudo é circuito,tudo é rodeio, retorno, discursos, tudo é rosário de permanências, tudo é refrãode estrofes sem fim (BACHELARD, 1989, p. 215).

Ou seja, o homem é um ser social e faz parte das relações sociais. Istoposto, a escola tem de ser um lugar de criação, de produção de saber, pois,como outras instituições, não serve apenas para reproduzir um história linear,pelo contrário, o mínimo que se exige do espaço escolar é que ele possa ser umomento de pensar a história da humanidade levando em consideração a açãonas continuidades e mudanças do tempo, podendo dessa maneira, possibilitaraos homens e mulheres perceber-se como indivíduos produtores de história.Para tanto, o professor:

Necessita superar a visão restrita do mundo e compreender a complexarealidade, ao meso tempo, uma melhor compreensão da realidade e do homemcomo um ser determinante e determinado (LUCK, 1995, p.60).

Muitas vezes nos perguntamos: Fará sentido continuar a inscrever o agireducativo no registro epistemológico que autorizou a procura desenfreada decertezas em educação? Terá chegado o momento de fazer o luto das certezas

em educação? Todas essas questões buscam respostas práticas paraamenizar os conflitos, os desafios e as incertezas na história da educação, bemcomo no trabalho docente.

Vimos de um passado social feito de certezas relacionadas com aciência e achamo-nos num presente caracterizado por grande questionamentoda possibilidade intrínseca de se possuir certezas, pois, segundo Barbosa,“vivemos o fim das certezas” (1998).

Perrenoud (1995, p. 124) contribui afirmando que:

O educador deve fazer o luto das certezas didáticas, pois o terreno daspráticas educativas é bem mais incerto do que fazia supor o cristalinopositivismo de suas análises.

Assim o educador que não quer danificar o sentido humano da suaprática docente deve estar disponível a aceitar as incertezas. Contudo, adisponibilidade para aceitar incertezas não depende apenas da boa vontade doeducador. Depende fundamentalmente da inscrição do seu agir em novoregistro epistemológico, isto é, em nova instância paradigmática.

Isto posto, a nova perspectiva de relacionamentos entre a história oficiale a história vivida por diversos atores da sociedade coloca o professor diantede novos desafios. Se no quadro do registro epistemológico do taylorismo e dobehaviorismo o professor devia ser o dócil executor das estratégias elaboradaspelos teóricos da educação, no quadro da nova instância paradigmática, oprofessor é chamado, a ser autor das estratégias que deve seguir na prática,especialmente quando essa prática envolve situações de incertezas quanto apessoas e ambientes.

Assim a tarefa do professor torna-se mais exigente e mais comprometidacom o processo de condução da prática, pois o contexto social em quevivemos, ao anunciar o fim das certezas, cria condições favoráveis a essamudança.

O professor que se define e exprime nestes termos procura responderao desafio de encontrar formas de ação que sejam expressão de aspiraçõesverdadeiramente educativas.

O papel do professor neste contexto histórico representado pelasincertezas não é propriamente de promover e desenvolver uma ação comsentido moral, e sim de levar a cabo com significado social e político.

Sendo assim, necessitamos nos ater à exigência de pensar seriamente aprática profissional docente à margem de reducionismos, distorções esimplificações. O desafio no imediato não avança precipitadamente com novoscenários de formação para sair da crise. Antes mesmo de tomar essa iniciativa,é preciso passar do simples para o complexo na concepção do seu papelenquanto profissional da educação.

Podemos apontar, então, que os grandes desafios na formação doprofessor nesse início de milênio caracterizado pelas incertezas, segundo

Barbosa (1998), consiste no plano ético-político, n plano teórico eepistemológico e no plano da ação prática do professor.

No plano ético-político, é imprescindível que o professor seja formadonuma perspectiva unilateral e dentro de uma concepção de que as pessoasvêm em primeiro lugar, assim a tarefa é afirmar os valores de efetiva igualdade,qualidade para todos, solidariedade e da necessária ampliação da esferapública democrática em contraposição à liberdade e qualidade para poucos,reguladas pelo mercado, e das perspectivas do individualismo e do privatismo.

No que se refere ao plano teórico e epistemológico, um dos desafiosindica que a formação do professor deve ir alem da formação técnica ecientífica, ou seja, esta deve estar atrelada a uma perspectiva de projeto socialdemocrático e solidário, que possa levar em consideração a história nãocontada das culturas silenciadas, tais como: dos indígenas, dos negros, dasmulheres, entre outras.

Uma formação sem uma sólida base teórica e epistemológica reduz aum adestramento e a um atrofiamento das possibilidades de analisar asrelações sociais, os processos de poder e dominação.

No âmbito dos processos de produção histórica do conhecimentocientífico, crítico e dos processos de ensinar e aprender, é imprescindívelcompreender que estes gestam e se desenvolvem a partir de determinações emediações diversas no plano histórico, social e cultural.

Mediante uma capacitação teórica e epistemológica, o professor, noplano dos processos de ensino, deve levar em consideração os saberespresentes no senso comum do aluno e que foram construídos a partir de suaspráticas sociais, lúdicas e culturais mais amplas. Assim o professor poderáorganizar e programar, técnica e didaticamente, os diferentes conteúdos epráticas de ensino.

Em relação ao plano da ação prática do professor, o desafio central é ocôo potenciar essa experiência da ação cotidiana que ela não se reduza àrepetição mecânica, ao ativismo pedagógico ou ao voluntarismo político.

A formação e profissionalização do educador na perspectiva da práxisem, pois, como precondição a efetivação de um processo educativo centradonum projeto explícito e consciente no qual as dimensões ético-políticas,teóricas e epistemológicas, acima assinaladas, constituam a sua base. Nascondições objetivas das relações sociais capitalistas, dentro das quaisatuamos, esta perspectiva contra-hegemônica é, sobretudo hoje, consideradaum devaneio.

Para saber mais sobre o assunto, leia os textos a seguir; de AntonioZuin; “A dialética socrática como Paidéia irônica”, e de Maria C.A. de Almeida,“As tecnologias da Informação e Comunicação (TIC), os novos contextos deensino-aprendizagem e a identidade profissional dos professores”, de Lucianade S. Siqueira e Tania C. de Araújo Jorge “Práticas docentes e dicentes em

carreiras da ciências: desenvolvimento metodológico para percepção dosdiferentes registros do cotidiano escolar”.

Aprofundando o conhecimento

A dialética socrática como Paidéia irônicaQuem de vos pode, ao mesmo tempo rir e sentir-se elevado?Nietzsche

IntroduçãoLogo no início de sua obra Emílio, considerada por muitos como aquela

que inaugura a chamada pedagogia moderna, Rousseau presta o seguintetributo a Platão e, por que não dizer, a Sócrates, ao asseverar que o texto de ARepública não se limita a ser caracterizado como obra política, mas se trata “domais belo tratado de educação que jamais se escreveu” (ROUSSEAU, 1992, p.14). O elogio de Rousseau, um tanto quanto enigmático, instiga a análise sobrequais seriam as razões de ele ter considerado este texto como o paradigmaeducacional.

Mas a esfinge de Rousseau não oferece “apenas” duas alternativas, ouseja, a interpretação ou a morte do raciocínio daquele que se motiva a decifrá-la; ela remete o pensamento para a investigação da forçaeducacional/formativa presente nos escritos socrático-platônicos. Tal forçaeducacional não pode ser apartada do potencial irônico presente nos diálogossocrático-platônicos, haja visto o fato de a ironia ser caracterizada como molapropulsora de obras filosóficas e literária, tais como Cândido, de Voltarie, e Amontanha mágica, de Thomas Mann (WALSER, 1996; CEPPA, 1983). Dito deoutra forma, a constatação de Rousseau estimula o estudo do potencialpedagógico dos diálogos socráticos e seus respectivos avatares que foramexpostos nas obras de Platão. Daí o objetivo deste artigo, ou seja, ainvestigação da denominada dialética socrática como modelo de Paidéiairônica, o que implica analisar a condição de educador de Sócrates.

A refutação, a maiêutica e a dialética socráticaNa leitura de A República, observa-se a importância da consolidação do

processo formativo do rei-filósofo. De acordo com Jaeger (1995, p. 861),

[...] o filósofo deixara o estado de mera contemplação para abraçar oestado de criação. Converter-se-á em “demiurgo” e trocará a única tarefacriadora que na circunstâncias atuais lhe é dado realizar, a sua própriaformação, pela formação de caracteres humanos, tanto no campo da vidaprivada como no do serviço público.

Com efeito, o rei-filósofo deve assumir sua condição de educador eauxiliar os demais para que não permaneçam tão aferrados aos desatinos dossentidos e das aparências dos conceitos. O modelo educador ideal, presentenos diálogos socrático-platônicos, revelou-se não apenas uma imagem quecontestou os princípios pedagógicos protagonizados pelos sofistas, pois oprincipal alvo de tais diálogos nunca deixou de ser a tão reverenciada quantoquestionada Paidéia homérica. Seguindo essa linha de raciocínio, Jaeger(1995, p. 861) assevera:

Misturando as características do eternamente justo, belo, prudente, àsde todas as demais virtudes e às dos traços que descobrimos no homem real,quer dizer, misturando a idéia e a experiência, aparece ao homem real, querdizer, misturando a idéia e a experiência, aparece ao homem real, quer dizer,misturando a idéia e a experiência, aparece ao artista filosófico já não aquelaimagem semelhante aos deuses, figurada por Homero nos homens e na suaepopéia, mas sim uma imagem adequada a eles, semelhante ao homem.

Com efeito, o poder formativo do logos, exaltado nos diálogos socrático-platônicos, confrontava com o teor da explicação mitológico-homérica doscaminhos e descaminhos do conhecimento humano. A reverência a Homero, omaior poeta trágico, não pode servir para obnubilar a constatação de que ele,na verdade, imita “a aparência da virtude e de outros assuntos” (PLATÃO,1975, p. 331). Como contraponto à concepção homérica da tragédia, talvezfosse oportuna a lembrança da observação de Vernant (2002) de que o Édipo,de Sófocles, pudesse ser definido como o herói trágico exemplar, pois setratava de um herói duplo, dilacerado e problemático. Por detrás de toda asuntuosidade projetada na figura do rei herói Tebas que decifrou o enigma daesfinge, existia o tormento do conflito de desejos concernentes ao rompimentode tabus, que não podiam ser atribuídos exclusivamente aos mandos edesmandos dos deuses, pois diziam respeito não só a figura de Édipo comotambém aos dilemas da própria condição humana. É por isso que, como bemnotou Vernant (2002), adquire cada vez mais sentido a procura de respostas dequestões, tais como: Qual é a responsabilidade dos deuses na forma como oshomens agem? Qual é, naquilo que chamamos de falta, a responsabilidade doindivíduo, o que ele pode assumir totalmente, e aquela que pertence à suafamília, a uma espécie de culpabilidade arrasadora? São os esboços daconstrução da individualidade que vão sendo delineados. O ser humano, nacondição de agente, gradativamente se depara com questões que o auxiliam adelimitar, de forma cada vez mais apurada, seu campo de ação, de tal modoque as linhas tênues e fronteiriças que definem os limites entre o exercício desuas ações e as imposições divinas ganham contornos mais definidos.

A defesa socrático-platônica da hegemonia do logos na composiçãotanto da identidade das intervenções humanas tem como pressupostofundamental a realização de um processo educacional/formativo que capacite

ao filósofo se aproximar cada vez da sapiência, do domínio e da aplicação dasessências dos conceitos. Nesse sentido, o poder metafórico do mito dacaverna, referente ao gradativo processo de ascensão do espírito que sedesvencilha do sortilégio dos sentidos até chegar à dimensão da idéia,consolida a força da intervenção arvorada no logos em detrimento do poderdivino na construção do destino humano.

E se o foco da investigação dos diálogos socráticos, presentes nosescritos de Platão, for direcionado para a dimensão pedagógica da ironia, nota-se a importância deste conceito para o desenvolvimento de tal processoascendente. Mas, diga-se de imediato, há uma diferença decisiva entre aocasião na qual a dimensão crítico-emancipatória da ironia se afirma comohegemônica nas relações dialógicas entre os agentes educacionais e quandotal dimensão se instrumentaliza e flerta com o sarcasmo. No caso dosarcasmo, solapa-se possibilidade de desenvolvimento do processoeducacional/formativo, pois o interlocutor é obrigado a “ingerir”, de formahumilhante, determinado significado do conceito que se transforma numapalavra de ordem.

O destaque formativo da ironia pode ser vislumbrado nos diálogosestabelecidos entre Sócrates e Trasímaco, quando ambos refletem sobre aessência do conceito de justiça em A República. A ironia socrática revela seupotencial formativo quando demole as certezas sobre determinados conceitos,na medida em que as essências de tais conceitos não se restringem ao modocomo eles aparecem. As aparências, que são equivocadamente consideradascomo os pontos finais das definições conceituais, são na verdade, os pontos departida dos jogos que se estabelecem entre significantes e significados. O“irritante”, na leitura dos diálogos socráticos, refere-se à contínua observaçãode que somos demasiadamente humanos, para usar expressão de Nietzsche,e não correspondemos ao modelo idealizado de que detínhamos asprerrogativas da verdade na elaboração dos conceitos e, portanto, do modocomo eles são objetivados na realidade. Trasímaco aprende o significado destarelação de não-correspondência, principalmente quando desafia Sócrates acontestá-lo de que o “justo não é senão a vantagem do mais forte” (PLATÃO,1975, p. 19).

Em vez de ser aplaudido, tal como desejara, Trasímaco é questionadopor Sócrates da seguinte forma: se e justo obedecer aos governantes, os quaissão os mais fortes e que elaboram as leis que lhes são mais vantajosas,podem ocorrer situações em que estes mesmos governantes se enganem, jáque são falíveis, e promulguem leis que lhes sejam desfavoráveis, as quaisdevem ser obedecidas pelos governados. Conseqüentemente, não faz sentidoafirmar que o justo não é nada mais do que a vantagem do mais forte.

Contudo, Trasímaco não se conforma com a desconstrução de seuraciocínio e argumenta que o governante nunca se engana quando elaborasuas leis, da mesma forma que o médico nunca comete algum erro quandotrata de seus pacientes. Ambos só se equivocam quando deixam de ser

respectivamente governante e médico, e é apenas uma questão de hábito quese afirma que o governante e/ou médico erraram. Nova mente Sócrates lheinterroga sobre o objetivo do médico: ganhar dinheiro ou tratar dos doentes?Trasímaco lhe responde que ele objetiva tratar de doentes, e, após uma sériede outros exemplos, Sócrates conclui que a arte da medicina implica avantagem do indivíduo a que se aplica, de modo que analogamente,

[...] nenhum chefe, seja qual for a natureza de sua autoridade, namedida em que é chefe, não se propõe e não ordena a sua própria vantagem,mas a do indivíduo que governa e para quem exerce a sua arte; é com vista aoque é vantajoso e conveniente para esse indivíduo que diz e faz tudo o que faz(PLATÃO, 1975, p. 25).

Trasímaco não se dá por vencido e argumenta que, da mesma formaque os pastores e os criadores de gado engordam seus animais objetivandoreceber as devidas vantagens de tal ato, os governantes também olham paraseus súditos como se fossem carneiros e se propõem, deste modo, a obter dosgovernantes algum lucro pessoal. A dedução necessária seria a de que os quereprovam a injustiça não temem cometê-la nem deixar de louvá-la, mas simreceiam ser vítima dela caso não a cometam. Sócrates lhe diz que mesmoassim não está convencido de que se deva preferir a injustiça à justiça, eTrasímaco lhe responde sarcasticamente que não terá alternativa a não serenterrar seus argumentos na cabeça de Sócrates.

Mas Sócrates questiona Trasímaco da seguinte maneira: as benessesobtidas pelos médicos, por exemplo, não provariam que “ninguém aceitaexercer os outros cargos por eles mesmos, que pelo contrário, se exige umaretribuição, por que não é ao próprio que seu exercício aproveita, mas aosgovernados?” (PLATÃO, 1975, p.29). Com certo custo, Trasímaco concordacom o raciocínio socrático de que “nenhuma arte e nenhum comando provê aoseu próprio benefício, mas [...] assegura e prescreve o do governado, tendo emvista a vantagem do mais fraco e não do mais forte” (PLATÃO, 1975, p.30).

Após a contestação da argumentação de Trasímaco de que o justo nãoé senão a vantagem do mais forte, Sócrates menciona a relevância de seobjetivar a asseveração trasímica de que a vida do homem injusto é superior àdo justo. Para Trasímaco, os injustos são sábios e bons e, portanto, virtuosos.Sócrates se espanta com tal conclusão e reinicia seu diálogo com Trasímacoobservando que o justo não prevalece sobre seu semelhante, já o injustoprevalece sobre seu semelhante e sobre seu contrário, com o que Trasímacoconcorda. Logo em seguida, Sócrates pergunta a Trasímaco se um músico ésábio na sua arte em comparação com aquele que não é músico. Trasímacolhe diz que sim. Já Sócrates questiona Trasímaco se o músico desejaráprevalecer sobre aquele que ignora a música e não sobre o seu igual.Trasímaco corrobora o raciocínio de que o músico, enquanto sábio, desejará se

tornar hegemônico sobre aquele que ignora a música e não sobre seusemelhante.

Já o ignorante não desejará prevalecer sobre todos, ou seja, tanto emrelação ao seu igual quanto em relação ao sábio? Trasímaco não temalternativa a não ser concordar e, se ele mesmo afirmara que os injustos sãosábios e bons, como podem ser ao mesmo tempo sapientes e bondosos, umavez que se o sábio for bom ele não vai querer prevalecer sobre o seusemelhante, mas sim sobre o seu contrário? Assim, se o injusto desejaprevalecer sobre seu contrário e seu semelhante, como é que ele pode sersábio?

A conclusão da dança destes silogismos socráticos é a de que “o justorevela-se-nos, portanto, bom e sábio e o injusto ignorante e mau” (PLATÃO,1975, p. 33-35). É difícil sintetizar as argumentações de Sócrates e Trasímaco,tamanha é a comunhão da pungência e da sutileza de tais diálogos. Mesmoassim, é importante observar, nestas passagens dialógicas que foramdestacadas sobre o conceito de justiça, as voltas e reviravoltas que Sócrateselabora na refutação do raciocínio de Trasímaco. Não se trata “apenas” dademolição pura e simplesmente dos alicerces lógicos de seu interlocutor, massim da aparência de verdade que a definição de Trasímaco portava sobre seuconceito da justiça e de seu oposto, a injustiça. Para Reale e Antiseri (1990, p.98), a dialética socrática era composta por dois momentos fundamentais nosquais se desenrolava a fiação do novelo irônico: a refutação e a maiêutica. Arefutação se caracterizava da seguinte maneira:

[...] o momento em que Sócrates levava o interlocutor a reconhecer asua própria ignorância: Primeiro ele forçava uma definição do assunto sobre oqual se centrava a investigação; depois, escavava de vários modos a definiçãofornecida, explicava e destacava as carências e contradições que implicava;então exortava o interlocutor a tentar uma nova definição, criticando-a erefutando-a com o mesmo procedimento; e assim continuava procedendo, atéo momento em que o interlocutor se declarava ignorante.

Mas a metodologia socrática não fora, em muitas ocasiões, facilmenteacatada pelos seus interlocutores. Trasímaco, por exemplo, asseveravasarcasticamente o seguinte: “Essa é a sabedoria de Sócrates: recusar-se aensinar, ir instruir-se junto com os outros e não se mostrar reconhecido porisso!” (PLATÃO, 1975, p. 19). De certa forma, talvez Trasímaco tivesse razão,sobretudo no que diz respeito à recusa socrática de ensinar e de apresentar deantemão a sua definição sobre as essências dos conceitos postos em questão.Os estudiosos dos diálogos socráticos, tais com Reale e Antiseri (1990, p. 99),destacaram o papel do educador Sócrates como condutor do processoeducacional/formativo, de tal modo que sua função se assemelharia a umaespécie de parteiro espiritual que estimularia o interlocutor a parir oconhecimento que lhe era inerente. Desta forma, a maiêutica socrática

consistiria neste ato de auxiliar a alma, a psyché, a rememorar os conteúdos deverdade dos conceitos.

O próprio Kierkegaard observou que e justamente a realização damaiêutica, cuja nuança é imanentemente irônica, que lhe permite a reflexão deque o fenômeno não é a essência. Através das relações dialógicas entre omestre e o discípulo, observa-se a manutenção da tensão entre a palavra e aintenção velada, a qual, ao mesmo tempo em que se torna manifesta atravésda dedução, suscita novas formas de interpretação. Não é obra do acaso que aironia anseia pela liberdade subjetiva, ou seja, aquela liberdade que anuncia apossibilidade da construção de novos inícios são incentivados pelo educadorque faz uso da dimensão emancipatória da ironia quando não apresenta umraciocínio conclusivo ao aluno, mas sim o estimula para que reflita a respeitoda temática discutida e expresse suas próprias deduções.

Este foi o espírito dominante nos diálogos que Sócrates estabeleceucom seus interlocutores, embora tais jogos conceituais não deixassem deexpressar, em muitas ocasiões, a substituição da ironia socrática em sarcasmotanto por parte de Sócrates quanto por parte de seus “adversários”. Nestaperspectiva de análise, destaca-se a observação de Impara (2000) de que aetimologia do termo ironia tenha, após Sócrates, amealhado com umaconotação positiva, de estímulo à elaboração de novos significados, emboranão tenha desaparecido nos diálogos socráticos a associação do conceito deironia com a de um tipo de gracejo que poderia se tornar uma zombaria.

Talvez as contendas ocorridas entre Sócrates e seus interlocutorestenham atingido o seu ápice justamente nos diálogos travados entre Sócrates eProtágoras, os quais tiveram o mérito de colocar frente a frente asidiossincrasias das denominadas Paidéias socrática e sofística,respectivamente. A principal questão que se coloca no texto Protágoras era desaber se a virtude poderia ou não ser ensinada. O grande sofista Protágoras sevangloriava de ser um educador capaz de ensinar a prudência e de formar,conseqüentemente, bons cidadãos (PLATÃO, 1945). Diante da objeçãosocrática de que a virtude não poderia ser ensinada, eles elaboram uma sériede diálogos que conduzem a uma incrível reviravolta das respectivas linhasargumentativa. Sócrates revê sua posição inicial de que a virtude seria umaespécie de dom concedido pelos deuses e defende a idéia de que ela é,essencialmente, um saber, pois se os indivíduos optam por escolher aquilo quelhes agrada e evitar o desagradável, evidentemente ninguém escolherá, de sãconsciência, trilhar as vias que conduzem para a infelicidade. Aquele quepossui a felicidade de avaliar, de mensurar os prós e contras de suas açõestem, portanto, mais chances de poder ser feliz. As habilidades deste indivíduovirtuoso são assim definidas por Sócrates:

Quando se peca, peca-se por falta de ciência na escolha dos prazeres edos desgostos, isto é, dos bens e dos males e não simplesmente por falta deciência, mas por falta desta ciência que há pouco reconhecestes ser a ciência

das medidas. Ora, toda a ação culposa por falta de ciência, bem o sabeis, épraticada por ignorância, de sorte que ser vencido pelo prazer é a pior daignorância (PLATÃO, 1945, p. 92).

E será no discernimento da proximidade entre a valentia e a sabedoriaque Sócrates demonstrará a Protágoras e, surpreendentemente, a si próprio,que a virtude pode ser ensinada, diferentemente daquilo que pensara no iníciodos diálogos. Já Protágoras reconhecerá, por conta do desenvolvimento de seupróprio raciocínio, que a virtude não pode ser ensinada, ou seja, exatamente ooposto do que a principio afirmara. Esta aparentemente inusitada inversão deraciocínios será conseqüência da contestação de Sócrates ao argumento deProtágoras de que homens ímpios e ignorantes demonstravam também servalentes. Protágoras concorda com Sócrates quando ele define os covardescomo aqueles que têm receios vergonhosos e audácias indignas, e o motivo detais receios e audácias não pode ser outro a não ser a falta de conhecimento eignorância das coisas que temem. E se estes indivíduos são covardes devido aesta ignorância, isto significa que a covardia passa a ser definida como “aignorância das coisas que são para recear e das coisas que não o são”(PLATÃO, 1945, p. 98). Do mesmo modo, a valentia se torna “a ciência dascoisas a temer e das que não o são” (PLATÃO, 1945, p. 98). O xeque-mate deSócrates é sarcasticamente admitido pelo atônito Protágoras, que enfimreconhece o equívoco de sua perspectiva inicial de que homens ignorantesseriam também valentes: “Tu teimas, Sócrates, segundo me parece, em queseja eu a responder; dar-te-ei, pois, este prazer e confessar-te-ei que, depoisdos princípios em que assentamos, isso [um homem ignorante ser valente] meparece impossível” (PLATÃO, 1945, p. 98).

O prazer concedido por Protágoras de reconhecer a razão de Sócratescorrobora, concomitantemente, a veracidade do argumento socrático de queaquele que se deixa arrastar pelo desejo de ser o dono da verdade recrudescesua fraqueza moral, uma vez que desconhece as conseqüências nefastas queo abandono irrefletido a tal prazer acarreta. Ora Sócrates se notabilizou, entreoutras coisas, pelos questionamentos aos movimentos professorais ecatedráticos daqueles que partiam da premissa de estar totalmente seguros dasolidez de seus argumentos (ADORNO, 1999). A questão moral, portanto,revela-se prioritariamente, uma questão de saber. E, no mesmo movimentodeste raciocínio, Sócrates comprova que a virtude pode ser ensinada, poisdepende da aplicação da ciência das medidas, que ao ser utilizada,proporciona as condições do exercício do bom julgamento e, no que dizrespeito a nosso exemplo de valentia, a consciência daquilo que se deve ounão temer.

É interessante observar que tanto Protágoras quanto Sócrates terminampor, digamos, descer do lugar de destaque do pedestal em que se situavam noinício dos diálogos, pois ambos, refletiam sobre as incongruências de suaslinhas iniciais de argumentação. Mas há uma diferença crucial entre os dois,

pois, ao contrário de Protágoras, Sócrates desejou descer. E foi o desejo detentar aprofundar o significado inicial do que seria a virtude e se ela poderia serou não ensinada, que o impulsionou a realizar a sua auto-reflexão crítica.

A despeito das mais diferentes exegeses metafísicas, o movimento deSócrates em direção a este exercício de auto-reflexão ecoa, no final do séculoXVIII, nos dizeres do imperativo categórico kantiano contido no célebre textoResposta à pergunta: que é o esclarecimento? Para Kant (2005), o indivíduodeveria contribuir, com sua ação, para sair do seu estado de menoridade, deser tutelado por outrem, e, para tanto, deveria ousar saber. É como se Kantrevitalizasse, nesse imperativo categórico, o anseio socrático de que o virtuosoé aquele que não amaina seu ímpeto na busca do verdadeiro conhecimento,pois tal procura porta consigo também um aprimoramento moral que não podeser dissociado desta ação. Balizando-se no ousar saber como condição doaperfeiçoamento moral, Kant (1996) elabora uma questão central e aindaatualíssima para a pedagogia: como estimular a observância das leis e, aomesmo tempo, promover a liberdade?

Evidentemente, tais leis tendem a ser respeitadas se os indivíduos queas acatam tiveram a liberdade necessária para poder se reconhecer comointerventores na sua construção e na sua difusão. Os costumes,fundamentados metafisicamente por Kant, são decorrentes de imperativoscategóricos que universalizam e legitimam as normas dos contratos sociais.Mas para tanto se torna decisiva a realização do ouse saber, mesmo que paraisto as fortificações das certezas anteriormente irredutíveis apresentem ossinais das primeiras fissuras.

Já a frustração diante das fendas do seu raciocínio aparentementeinconteste conduz a Protágoras a não ter outra alternativa a não ser referendaras conclusões de Sócrates, cujo espanto final decorrente da observação deque a virtude pode ser ensinada revela, paradoxalmente, tanto a condiçãohumana de que ninguém detém irremediavelmente a verdade quanto apossibilidade de que o indivíduo, por conta de sua falibilidade, tem a faculdadede poder continuar, corajosamente, a eterna busca do que a verdade significa.Jaeger enfatizou o fato de que Sócrates se esforçou para demonstrar que avirtude é passível de ser ensinada e que é, portanto, uma forma de saber. Eque Protágoras se esmerou na defesa de que a virtude não seria um saber,sendo, deste modo, incerta a possibilidade de ensiná-la. O grande intérprete doconceito de Paidéia afirmou o seguinte sobre esta contradição:

O drama finda com o espanto mostrado por Sócrates em face desteresultado aparentemente contraditório; mas o espanto, neste como em todosos casos, é evidentemente a fonte de toda a filosofia, para Platão, e o leitor ficacom a certeza de que a tese socrática que reduz a virtude ao conhecimentodos verdadeiros valores deve constituir a pedra angular de toda a educação(JAEGER, 1995, p. 644).

Este aspecto educacional/formativo da Paidéia socrática precisa ser ameu ver, necessariamente adjudicado à verve irônica que explode com toda asua força nos diálogos socráticos e que algumas vezes, resvala no limite datênue linha que separa a ironia do sarcasmo, ora exposto por Sócrates, ora,com maior freqüência, por Protágoras. É nessa perspectiva de análise que aironia socrática tanto pode suscitar os novos princípios que se desvelam nojogo da alteridade entre significantes e significados das palavras quanto podeceder espaço à fala sarcástica que consagra a vontade de poder daquele quedestrói a argumentação do outro por meio da humilhação e do destrato.

Porém, é exatamente nesta situação-limite que se tornam maisdiscerníveis as nuanças entre a ironia e ao sarcasmo, as quais, a meu ver, sópodem ser compreendidas por meio de uma análise crítica do educadorconcebido em seu modelo ideal. E foi Sócrates aquele que tanto criticou talmodelo, ao questionar a pretensão dos sofistas de serem identificados como osconhecedores da essência da virtude, quanto se metarmofoseou numa espéciede paradigma de educador de uma Paidéia, de um processoeducacional/formativo ideal.

O educador Sócrates e a Paidéia idealPara que se possa analisar a figura de Sócrates como educador ideal é

preciso compreender as características do processo educacional/formativo queforam expostas no movimento de ascensão da alma no famoso livro VII de ARepública. Com efeito, o mito de caverna detém a prerrogativa de,metaforicamente, narrar o modo como o prisioneiro da caverna rompe osgrilhões de suas ilusões e, num processo ascendente, aproxima-segradativamente da luz do sol e, portanto, do mundo inteligível e da idéia dobem.

Aquele que teve a oportunidade de verdadeiramente se deparar com oconhecimento das essências dos conceitos não conseguem mais voltar àcondição heterônoma que ocupava anteriormente como escravo das ilusões,principalmente das ilusões promovidas por meio da chamada ditadura dossentidos. Não por acaso Sócrates define a educação desta maneira:

A educação é, pois, a arte que se propõe este objetivo, a conversão daalma, e que procura os meios mais fáceis e mais eficazes de o conseguir; nãoconsiste em dar vida ao órgão da alma, visto que já tem, mas como está malorientado e não olha para onde deveria, ela esforça-se por encaminhá-lo naboa direção (PLATÃO, 1975, p. 234).

Tal como foi observado anteriormente, o método empregado porSócrates para poder orientar adequadamente o órgão da alma é o dialético.Para Sócrates:

[...] o método dialético é, portanto, o único que rejeitando as hipóteses,se eleva até o próprio princípio para estabelecer solidamente as suasconclusões e que realmente afasta, pouco a pouco, o olhar da alma da lamagrosseira em que está mergulhado e o eleva para a região superior (PLATÃO,1975, p. 252).

A alma que se encontra mergulhada na lama grosseira é aquela que serende ao sortilégio dos sentidos e, portanto, ao mundo das aparências. Cabe averdadeira educação espicaçar o seu processo de conversão, de tal modo quese assenhoreie do controle dos sentidos e, por que não dizer, das coisasrelativas ao próprio mundo fenomênico. Contudo, o filósofo que obtém oprivilégio de banhar seu rosto com os raios do sol e de se tornar conhecedor daessência do conceito tem o dever, mesmo que seja contra a sua vontade, deiluminar, com as suas palavras, as trevas nas quais se encontra a grandemassa dos cidadãos. O filósofo cumpre com sua função de educador quandoauxilia o “cego” que pensa que tudo sabe e vê a discernir a natureza de cadaimagem e de que objeto ela é imagem. Na análise da metafísica da Paidéiasocrático-platônica, Jaeger (1995, p. 79) observa que sua metaeducacional/formativa “fica além do mundo dos fenômenos diretamente dado eestá oculta ao olhar do homem sensorial por um múltiplo invólucro. Romperesses invólucros impeditivos é primeiro passo que se tem que dar para que aluz do Bem jorre no olhar da alma e lhe faça ver o mundo da verdade”.

De fato, se aquele que se eleva às alturas, a ponto de sua inteligência setornar hegemônica em relação à sua opinião, tende a desistir das coisashumanas, uma vez que sua alma aspira a instalar-se em tais alturas, Sócrateso recorda de sua tarefa de ajudar a maioria dos homens, a grande tarefa do rei-filósofo, a se libertar dos grilhões que os aprisionam à sedução das imagensdeformadas e que são geradas na esfera de domínio dos sentidos.

Séculos depois, Hölderlin (1994) expressou tal anseio na fase poética deque entendia a mansidão do éter e não a linguagem dos homens. Mas paraSócrates o filósofo não pode se aferrar à linguagem do etéreo por mais“saborosa” que ela possa ser. O conhecimento da linguagem do éter écondição fundamental para o conhecimento da linguagem dos homens. E oprocesso educacional dialético é aquele que pode e deve contribuir para que aciência das medidas prevaleça sobre o desejo desmesurado cotidianamentepresente nas ações humanas.

Ao ser acusado de ateísmo em relação aos deuses e de corromper ajuventude com o ensino do método dialético, Sócrates mencionou a dificuldadedaqueles que o acusavam de reconhecer sua própria presunção do saber, pois,na verdade, nada sabiam. Para tais pessoas, seria inconcebível o raciocíniosocrático da necessidade de se permanecer nem sábio da própria sabedorianem ignorante da própria ignorância. De acordo com Sócrates, oreconhecimento dos próprios limites seria o fulcro central da possibilidade deintelecto predominar sobre a opinião, pois é sobre ele que se sustentam os

alicerces do edifício do método dialético, cujas características foram expostasanteriormente.

O jogo de significados e significantes que se estabelece nos avatares detal método não pode ser apartado da relação entre a ironia e o sarcasmo quepodem ser observados nos diálogos socráticos. Seguindo esta linha deraciocínio, não se pode desconsiderar o fato de que a ironia tem uma cargaafetiva, cuja intervenção é decisiva tanto para a difusão de sua dimensãoemancipatória quanto para sua substituição pelo sarcasmo. De acordo comHutcheon (2000, p. 33), “existe uma ‘carga’ afetiva na ironia que não pode serignorada e que não pode ser separada de sua política de uso se ela for darconta da gama de respostas emocionais (de raiva e deleite) e os vários grausde motivação e proximidade”.

É difícil encontrar uma passagem mais significativa da presença destacarga afetiva da ironia do que no momento em que Sócrates contesta Meleto,na Apologia de Sócrates, sobre a acusação que lhe fora feita de não acreditarnos deuses respeitados pelos cidadãos atenienses. Quando Sócrates indaga aMeleto se seria possível alguém acreditar nas coisas demoníacas e, ao mesmotempo, desacreditar a existência de demônios e Meleto lhe responde que istoseria impossível, Sócrates lhe afirma o seguinte: “- Oh! Como estou contenteque tenhas respondido de má vontade, constrangido pelos outros” (PLATÃO,1999, p. 59).

O sarcasmo de Sócrates pode ser explicado com uma reaçãocontundente daquele que se encontra bem próximo da morte e que reageviolentamente ante um de seus acusadores. De todo modo, não há como negara presença notória da carga afetiva na expressão de Sócrates de que estava“contente” por causa da resposta de Meleto. Mas é esta mesma forçaapaixonada da ironia que motiva Sócrates a recuperar a incoerência daargumentação de Meleto, pois como Sócrates poderia ser acusado de negar aexistência dos deuses e dos demônios se, de acordo com Meleto, ele ensinavacoisas demoníacas? Novamente, a ironia socrática afrouxa os espartilhos nosquais as certezas aparentemente irredutíveis se enfeixam e que sufocam aprodução de novos significados.

A meu ver é exatamente esta carga afetiva que determina a perpetuaçãoe difusão da dimensão crítico-emancipatória da ironia, bem como a suasubstituição pelo sarcasmo que estilhaça a força de simbolização do jogoirônico e impõe, de forma humilhante, a atribuição de um significado aoconceito em questão. Mas se tal raciocínio for verdadeiro, como se poderia, apartir do uso das categorias socráticas, tais como refutação, maiêutica edialética, refletir sobre o potencial pedagógico da ironia, uma vez que a razãodeveria prevalecer sobre a sensibilidade? Não haveria uma espécie decontradição silogística nesta linha de argumentação? E mais, como seriapossível a realização do jogo irônico de significantes e significados travadoentre Sócrates e seus discípulos e, por que não dizer, entre o educador e seusalunos?

São questões como essas que nos direcionam ao encontro da leitura edo diálogo com os textos de Nietzsche e suas ponderações, afetivamentecarregadas, sobre a “proposta” socrática de que a educação teria como escopoprincipal afastar o olhar da alma do lodo dos sentidos e da aparência dascoisas. No livro O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo,Nietzsche (2001, p. 14) elabora o seguinte questionamento, que não deixa deser também uma provocação: teria sido toda a cientificidade socrática “apenas”uma reação ao temor e uma escapatória ao pessimismo? Tal ode à razão nãoseria uma sutil legítima defesa contra a verdade e, portanto, um ato de covardiaou falsidade? Não seria uma astúcia amoral? Nas palavras exageradas deNietzsche: “Ó Sócrates, Sócrates, foi este porventura o teu segredo? Ironistamisterioso, foi esta porventura, a tua ironia?”

É exatamente esta ironia de Nietzsche que permite refletir sobre a cargaafetiva que se pode observar nos caminhos e descaminhos da dialéticasocrática, pois como a ironia poderia sobreviver sem uma dose de exagero?(DÜTTMANN, 2004, p. 71). Ora não são desconhecidos os óbicesapresentados por Sócrates no livro X de A República, quanto à influênciadesconcertante que a poesia pode exercer sobre o espírito que se esforça paradesviar o olho da alma do lamaçal do sensório. Sócrates afirma a Gláucon aimportância de se criticar a poesia e o legado dos belos petas trágicos, emespecial Homero, pois estes se aferraram ao reino das aparênciasdesconsiderando as essências dos conceitos apresentados em obras tais comoa Odisséia. Sócrates não nega que se sente prazer “quando vemos Homero ouqualquer outro poeta trágico imitar um herói na dor, que, no meio dos seuslamentos, se estende numa longa tirada ou canta ou bate no peito” (PLATÃO,1975, p. 338).

Mas em nome da razão, é necessário reprimir o desejo de identificaçãocom os infortúnios de tais heróis, pois senão corre-se o risco de se parecercom aquilo que se deve repugnar, ou seja, o comportamento desmedido edescontrolado. As paixões da alma, tais como o amor e a cólera, as quais sãosuscitadas pela imitação poética, devem ser afastadas de nossas ações:“Alimenta-as [as paixões] regando-as, quando conviria secá-las, fá-las reinarsobre nós, quando deveríamos reinar sobre elas, para nos tornarmos melhorese mais felizes, em vez de sermos viciosos e miseráveis” (PLATÃO, 1975, p.339). A concordância de Gláucon com o julgamento socrático sobre a poesiatrágica representa também a “vitória” do processo educacional/formativo dadialética de Sócrates sobre a chamada Paidéia homérica.

Diferentemente da Odisséia, na qual a vitória do astucioso Ulisses foradeterminada também pela ajuda providencial dos deuses olímpicos, a leitura doconteúdo metafórico do mito da caverna, tal como foi observado anteriormente,reafirma a intervenção humana como determinante nas conquistas obtidas pelaalma daquele que gradativamente se afasta da sedução das paixões e dossentidos até alcançar o cume da dimensão da idéia do bem. Tudo pareciaperfeito não fosse um pequeno detalhe: a alma que é educada para abandonar

o lamaçal no qual se encontrava não cessa de olhar, ainda que de soslaio, paraeste mesmo lodo dos sentidos, das paixões e, por que não dizer, dos instintoshumanos. Mas que tipo de força impulsionaria a avidez com a qual Sócratesdefendeu a primazia da razão sobre o prazer a não ser o próprio prazer? Sereferendarmos o raciocínio de Nietzsche de que Sócrates inverteria a “lógicanatural” de que o instinto seria a força afirmo-criativa e a consciência seconduziria de maneira crítica, de tal modo que, socraticamente falando, oinstinto se metamorfosearia em crítico e a consciência em criador, então fazcada vez mais sentido a asserção nietzscheana de que

[...] o impulso lógico que aparece em Sócrates estava inteiramenteproibido de voltar-se contra si próprio; nesse fluir desenfreado mostra ele umaforça da natureza, como só encontramos, para nosso horrorizado espanto, nasmaiores de todas as forças instintivas [...] Que ele próprio, porém, tinha umcerto pressentimento desta circunstância é algo que se exprime na maravilhosaseriedade com que fez valer, em toda parte e até perante seus juízes, a suadivina vocação. Era tão impossível, no fundo, refutá-lo a esse respeito quantodar boa a sua influência dissolvente sobre os instintos (NIETZSCHE, 2001, p.86).

Defrontamo-nos com um estranho paradoxo, pois a carga afetiva daironia que Sócrates tanto se esmerou em arrefecer foi a mola propulsora dalógica de sua argumentação e de sua argumentação lógica. Ademais, caso sereflita a respeito da dimensão pedagógica da ironia tendo como pressupostobásico o reconhecimento de sua carga afetiva, então se compreende acontradição aparente de Sócrates, pois ele defende humildemente apermanência da necessidade de nem ser sábio de sua sabedoria nemignorante de sua ignorância e, concomitantemente, se auto-intitula pai ou irmãomais velho, ou seja, uma espécie de modelo ideal de Paidéia (PLATÃO, 1999).É preciso reconhecer que a humildade de Sócrates se metamorfoseia, emalgumas ocasiões, em soberba intelectual. E se as paixões e os desejoshumanos exercem notoriamente um fascínio muitas vezes irresistível, a pontode os espectadores das tragédias gregas se identificarem mimeticamente comos dramas dos heróis e se emocionem de forma descontrolada, a dialéticasocrática, como expressão metodológica mais desenvolvida do raciocíniosilogístico, também seduz seu praticante a, digamos, exercer sua vontade depoder. No livro de sugestivo título Crepúsculo dos ídolos, é Nietzsche (2000, p.20-21) aquele que novamente aponta para a ferida de que a carga afetiva nãopode ser desconsiderada, senão vejamos:

A ironia de Sócrates é uma expressão de revolta? Do ressentimento daplebe? Ele goza enquanto oprimido de sua própria ferocidade nas estocadasdo silogismo? Ele vinga-se dos nobres que fascina? À medida que se é umdialético, tem-se um instrumento impiedoso nas mãos. Com ele podemos

cunhar tiranos e ridicularizar aqueles que vencemos. O dialético lega ao seuadversário a necessidade de demonstrar que não é um idiota: ele o deixafurioso, mas ao mesmo tempo desamparado. O dialético despotencializa ointelecto de seu adversário. Como? A dialética é apenas uma forma devingança em Sócrates?

Seria mesmo a dialética apenas uma forma de vingança socrática? Se,por um lado, o exagero irônico de Nietzsche tem o mérito de iluminar as faces“obscuras” do afeto que potencializa a construção do jogo dialógico-irônicosocrático e, neste sentido, pode-se identificar uma teoria da ironia nos escritosnietzscheanos (BOHER, 2000, p. 283), por outro lado esta mesma exorbitânciadespotencializa o próprio reconhecimento de Nietzsche de que o impulso lógicosocrático continha, na sua imanência irônica, uma dimensão emancipatória.Caso contrário, não faria sentido Sócrates criticar os adolescentes que sedeleitavam sarcasticamente com a dialética, haja vista o fato de que “(...)sentem prazer, como são jovens cães, em assediar e dilacerar pelo raciocíniotodos os que dele se aproximam” (PLATÃO, 1975, p. 259).

Neste caso, não poderia haver melhor escolha do que o verbo dilacerar,uma vez que sarcasmo etimologicamente significa arrancar carne. Nota-se umcomponente sadomasoquista na utilização sarcástica da dialética, pois o prazersádico de tais jovens certamente tem haver com as humilhaçõesmasoquistamente reprimidas, as quais encontravam vazão no dilaceramentodo argumento alheio, tão logo estes dominassem os elementos da dialética.Mas, e Sócrates? Será que ele, mesmo sendo ciente desta possibilidade deuso da dialética, encontrava-se completamente eqüidistante do risco de “cairem tentação” e de se favorecer sarcasticamente do uso instrumental do jogoirônico-dialético?

ConclusãoNão foram poucas, ou mesmo menores, as objeções feitas a Sócrates. É

um embaraçado Kierkegaard que lembra s palavras de Ast de que a auto-humilhação de Sócrates teve o objetivo consciente de se exaltar diante dospobres de espírito que são denominados pela opinião e pensam,equivocadamente, que são senhores das essências dos conceitos. Porém, opróprio Kierkegaard (1991, p. 189) reconhece que:

[...] este é justamente o fino jogo de músculos da ironia. A circunstânciade que ele [Sócrates] sabe que nada sabe o alegra e o deixa infinitamente levepor causa disto, enquanto os outros se matam por seus tostões [...] Quantomais ele se alegra por causa deste nada, não como resultado, mas comoinfinita liberdade, tanto mais profunda é a ironia.

A alegria de Sócrates concerne justamente à força da ironia em produzirnovos significados aos conceitos discutidos. Foi de extrema felicidade a

percepção de Kierkegaard do reconhecimento de Sócrates do fato de que nãoser nem sábio de sua sabedoria nem ignorante de sua ignorância o deixavainfinitamente mais leve. Sua capacidade de autocrítica o eximia de seidentificar e de ser identificado como o senhor absoluto dos conceitos, aomesmo tempo em que tal constatação o habilitava a enveredar novamentepelos caminhos e descaminhos do conhecimento. É nesta perspectiva que aironia se revela como uma “tentativa de ‘discursividade’ (Verspralichung) domundo. A este respeito, a ironia remete ao mundo real, mas ela é uma tentativade palavração do mundo na forma de uma réplica simultânea. E assim ela serefere aos mundos possíveis” (JAPP, 1983, p. 18).

Mas é novamente Nietzsche aquele que observa indícios da vontade depoder socrática que se jacta de ser a única que domina a própria ignorância, aopasso que todos os outros sucumbem ao poder da ilusão e da falta decompreensão. De acordo com Nietzsche (2001, p. 85), Sócrates julgou que“deveria corrigir a existência: ele, só ele, entra com ar de menosprezo e desuperioridade, como precursor de uma cultura, arte e moral totalmentedistintas, em um mundo tal que seria por nós considerado a maior felicidadeagarrar-lhe a fímbria com todo o respeito”. As palavras de Nietzsche são tantoverdadeiramente impiedosas quanto absolutamente equivocadas? Ora, hásarcasmo em algumas respostas de Sócrates a Trasímaco em A República(PLATÃO, 1975) ou na Apologia,quando Sócrates afirma estar contente naocasião em que Meleto lhe responde com má vontade (PLATÃO, 1999, p. 59).Porém, se ele procedeu desta forma em algumas ocasiões, é o mesmoSócrates que tem a humildade de rever sua definição inicial no Protágoras econcluir que a virtude poderia sim ser ensinada.

O jogo irônico-dialético socrático, enquanto produção do conhecimentohumano, não pode se “crisalizar”, ou seja, encapsular-se a ponto de se dirimiras cargas afetivas que lhe são imanentes. Quando isso acontece, entãopredomina a carga afetiva sarcástica que dilacera os argumentos alheios pormeio da soberba intelectual daquele que não admite se equivocar no domíniodos conceitos discutidos. Na esfera educacional/formativa, tal “mestre” poderiaser caracterizado como um antizaratustra. Diferentemente daquele que seaferra com todas as forças ao pedestal que julga ser-lhe de direito, Zaratustra“provocou” seus discípulos da seguinte maneira: “Retribui-se mal um mestrequando se permanece sempre e somente discípulo. E por que não quereisarrancar folas da minha coroa?” (NIETZSCHE, 2005, p. 105). A autoridadepedagógica que é cônscia de suas forças e, principalmente, de suas limitações,pode contribuir para que isto ocorra, pois se está envolvida numa relação depoder com seus alunos, também tem ciência de que sua superioridade écontingencial ao portar em si sua superação. Há uma superação de autoridadeque não significa sua eliminação, uma vez que a intervenção do educador seconserva modificada no raciocínio elaborado pelo aluno, o qual se senterespeitado como partícipe do processo de ensino-aprendizagem.

Teria o Sócrates educador concordado com a indagação de Zaratustra?Penso que a resposta deve ser afirmada, sobretudo se considerarmos o próprioraciocínio nietzscheano de que a força motriz da lógica socrática se referia aosinstintos que foram tão insistentemente “combatidos” por Sócrates, os quaisalicerçaram não só a falibilidade como também a altivez de sua condiçãohumana. Foram estes mesmo instintos os responsáveis pela força da amizadeestabelecida entre discípulos e mestre, e que foi tão pela força da amizadeestabelecida entre discípulo e mestre, e que foi tão cara a Sócrates, aquele quetratava seus discípulos como seus amigos:

Esta expressão (a amizade – nota do Autor), oriunda do círculosocrático, incorpora-se na própria terminologia das escolas filosóficas daAcademia e do Liceu [...]. Esta palavra tem para Sócrates um significado pleno.O discípulo está continuamente diante de seus olhos como um homemcompleto, e para Sócrates, a quem repugnava tudo o que fosse elogiar a sipróprio, o melhoramento da juventude, de que os sofistas se gabavam, era osentido profundo e real de todo o seu trato amigável com os homens (JAEGER,1995, p. 556).

Assim, a paixão socrática pela busca do conhecimento verdadeironecessita também do conhecimento da paixão, ou melhor, do entendimento domodo como os vínculos afetivos estabelecidos entre os discípulos e os mestressão decisivos para o desenvolvimento do processo educacional/formativo. Aamizade se destaca, portanto, na condição de liame afetuoso entre os agenteseducacionais que se preocupam efetiva e carinhosamente, e não de formainstrumentalizada e interesseira, com os avatares de tal processo. Ao destacaa importância do eros na Paidéia socrático-platônica, Marrou (1975, p. 58)afirma o seguinte:

A ligação amorosa (entre discípulo e mestre – nota do Autor)acompanha-se, pois, de um trabalho de formação, de um lado, e de maturação,do outro, matizado ali de consciência paternal, aqui de docilidade e deveneração; é exercido livremente, pelo convívio cotidiano, o contato e oexemplo, a conversação, a vida comum, a iniciação progressiva do mais jovemnas atividades sociais do mais velho: o clube, o ginásio, o banquete.

Se esta linha argumentativa estiver correta, adquire cada vez maissentido o elogio de Rousseau (1992, p. 14) de que Platão, por meio dosdiálogos socráticos de A República, “não fez senão depurar o coração dohomem”. O iluminista “herético” Rousseau, para usar uma expressão de Realee Antiseri, sabia que o coração depurado não significa sua destruição, mas simseu controle, pois o conhecimento da virtude implicaria o aceite de que aspaixões humanas não deveriam ser destruídas, mas sim controladas, namedida do possível, pela razão que se nutriria da seiva destas mesmas

paixões. Ora, quem é que consegue rir e elevar-se ao mesmo tempo?Provavelmente o educador que é capaz de rir, irônica e pedagogicamente, desi, ao reconhecer suas próprias limitações, tem mais chances de alcançar talfeito que, antes de ser feito divino, faz-se ato humano, demasiadamentehumano.

Antonio A. S. ZuinProfessor associado do Departamento de Educação e do Programa de Pós-Graduação

em Educação da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Doutor em Educação pelaUnicamp, com “bolsa-sanduíche”, mediante convênio Capes-Daad, na Universidade JohannWolfgang Goethe, em Frankfurt, Alemanha. Pós-doutor em Filosofia da Educação pelaUniversidade de Leipzig, Alemanha, Assessor da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estadode São Paulo (Fapesp) e pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico eTecnológico (CNPq 1D). Coordenador do Grupo de Estudos e Pesquisas: Teoria Crítica eEducação da UFSCar.

Fonte: Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Nacionais Anísio Teixeira (Inep).Disponível em: http://www.publicacoes.inep.gov.br/arquivos/%7B2DE71637-46BA-4E28-90BC-D68417A2AC6E%7D_Miolo%20Rbep%20221.pdf.

Aprofundando o conhecimento

As Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC), os novoscontextos de ensino-aprendizagem e a identidade profissionaldos professores

ApresentaçãoO propósito deste artigo é o de apresentar parte dos estudos realizados

para tese de doutoramento¹. Inspirados em Michel Foucault, a nossa pretensãoFoi a de explorar as condições de funcionamento das atuais práticasdiscursivas que reconstroem o universo educativo a partir das Tecnologias daInformação e Comunicação (TIC), tomando como pressuposto que a realidadese produz no discurso que a nomeia e descreve.

O corpus do estudo foi composto por discursos dos lugares quepossuem legitimidade para dizer como se deve ser a educação: o lugar dapolítica educativa, da academia e da escola. Explorar os discursos segundo oslugares discursivos foi uma estratégia que fez perceber aquilo para queFoucault chama a atenção sobre o poder e a sua circularidade: não se trata deum discurso construído apenas de cima para baixo, pois as decisões dosatores surgem com especial relevância, como bem exemplifica o que diz umaprofessora entrevistada: “Quando ficou tudo mesmo preto no branco, a ordemdo Ministério para os professores usarem as tecnologias, para mim, foi odelírio.”

Os discursos analisados partilham da idéia de que existe uma mudançaem curso nas sociedades contemporâneas e que ela se deve ao papelpreponderante das TICs como medium e como telos. Estes discursos veiculama necessidade de os professores utilizarem as TIC como recurso fundamentalnos processos de ensino-aprendizagem. Os argumentos adiantados para talsão, sobretudo, da ordem da eficiência educativa e da urgência de pautar asmudanças locais pelas transformações internacionalmente em curso. Assim,prescreve-se que a escola deverá acompanhar as transformações sociais (senão quiser ser completamente ultrapassada por outras instâncias informativas)e contribuir para combater as desigualdades sociais existentes entre os alunos,oferecendo a todos, e desde a educação infantil, o acesso a essas tecnologias.

Nosso trabalho consistiu em identificar, descrever e explorar estratégiasdiscursivas sobre o uso das Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC)no campo educacional e explorar como estas estratégias são incorporados aosdiscursos identitários dos professores. Importa explicar que não tomamos osdiscursos dos professores como narrativas identitárias. Perseguimos asregularidades discursivas, pois, como se sabe, numa inspiração metodológicafoucaultiana, as regras de formação dos conceitos não residem na mentalidadenem na consciência dos indivíduos; pelo contrário, elas estão no própriodiscurso e se impõem a todos aqueles que falam dentro de um determinadocampo discursivo. O foco está assim dirigido aos elementos que constituem oregime discursivo em que os professores são ditos através da sua práticadiscursiva, enquanto objeto passível de definir uma rede conceitual que éprópria da formação discursiva sobre a qual falam quando dizem de si.Procuramos, assim, ignorar a transcendência do discurso, e assumimos serpossível, sem privilegiar nenhum discurso, estabelecer uma descriçãoespecífica dos enunciados e evidenciar as regularidades próprias destaformação discursiva e a sua implicação na enumeração de novos atributos paraos docentes. A intenção foi a de fazer aparecer a diversidade na densidade dasperformances verbais que, com base nas TICs, redefinem os contextos deensino-aprendizagem e produzem novos espelhos para os professores semirarem.

A mudança na ordem do discurso educativo é a teve que pretendemossustentar, ou seja, reconhecemos que uma outra razão educativa emerge pelasmãos das TICs. O método adotado consiste em passar em revista uma massaheteróclita de documentos (textos escritos no papel e on-line, vídeos,conferências, chats, aulas, entrevistas), com o objetivo de fazer emergir a novaconfiguração do discurso educativo.

O artigo inicia explorando as regras dos discursos que instituem as TICsna educação, tomando como referência a reconfiguração dos objetos dodiscurso educativo. O segundo item se detém na discursividade em torno daordem do discurso para a informação e as conseqüências para a educação,para, em seguida, descrever as identidades docentes que emergem em temposde TIC. Nas considerações finais, relacionamos o dispositivo educativo

desencadeado pelas TICs com o projeto educativo moderno para evidenciar onovo regime de verdade para a educação.

As Tecnologias da Informação e Comunicação e os objetos do discursoeducativo

Não perguntamos o que são as Tecnologias da Informação eComunicação (TICs), mas exploramos o que se diz sobre as TICs e, assim,registramos que elas são constituídas, denominadas, indicadas como umanova arquitetura social relacionada aos desafios da globalização. O seu uso edomínio são apontados como uma necessidade dos atores sociais dacontemporaneidade. Da mesma maneira que foi enunciada a necessidade detodos dominarem o código escrito, hoje, enuncia-se o domínio do código digital.Utilizar as TICs é imperativo: para aceder aos conhecimentos, para acomunicação, para a interação, para trabalhar, para ser.

As TICs são veiculadas como uma das condições de passagem entre oque vínhamos sendo e isto em que estamos nos tornando – nós,individualmente, e a nossa sociedade. Primeiro argumenta-se que o nossotempo, a era da informação, é percebido em descontinuidade com o que oprecede. O filósofo Pierre Lévy (1993, 1996, 1997) afirma que a humanidadeestá diante de uma tecnologia intelectual que modifica a percepção e opensamento – trata-se de uma nova era antropológica. O sociólogo Castells(2000, 2003) declara que a base material da sociedade mudou, e, com ela,todas as relações sociais sofrem mudanças significativas – trata-se dasociedade em rede. Toffler (1984) diz que a escola deve preparar as pessoaspara a sociedade da Terceira Onda – onde nenhuma economia poderáfuncionar sem uma infra-estrutura eletrônica envolvendo computadores. Papert(1994) defende a imperiosa necessidade de mudar a escola, o conteúdo deaprendizagem, a maneira de ensinar, a forma de aprender, a organização doespaço e do horário escolar, a forma de comunicação entre aprendentes eensinantes. Nos discursos da política educacional as TICs emergem com umarazão de Estado, no sentido da defesa das aspirações das comunidadesnacionais, por enunciações que afirmam o seu valor irrefutável nas novasconfigurações da economia e na necessidade estratégica de formar umapopulação capaz de operar com estas tecnologias. As escolas cuidam deadquirir equipamentos informáticos, construir plataformas digitais, incentivar eformar professores para uso tas TICs nas atividades pedagógicas. Osprofessores freqüentam portais educativos. Enfim, instala-se uma práticadiscursiva que elege as TICs como um acontecimento em volta do qual tudo etodos devem acomodar-se.

Castells (2003), ao detalhar o novo sistema de produção, aponta aeducação como o fator que diferenciará aqueles que serão capazes de realizarum trabalho genérico dos que realizarão trabalhos “autoprogramáveis”. Osprimeiros, espécie de “terminais humanos”, são facilmente substituídos pormáquinas, ou por outros iguais, pois o seu valor agregado representa uma

parte muito pequena do que é gerado pela empresa onde trabalham. Já ostrabalhadores do segundo grupo serão aqueles que atingem níveiseducacionais mais altos. Observe-se que Castells (2003, p. 464-465) redefine aeducação. Diz ele:

A educação ou instrução (de forma distinta do internamento de criançase estudantes em instituições) é o processo pelo qual as pessoas, isto é, ostrabalhadores, adquirem a capacidade para uma redefinição constante dasespecializações necessárias a determinada tarefa e para o acesso a fontes deaprendizagem dessas qualificações especializadas.

Trata-se de um discurso que enuncia uma concepção diferente da quefundou os sistemas escolares, ou seja, a implementação da educação comoforma de igualizar as oportunidades a partir da escola única, universal. Oiluminismo dizia: somos todos iguais, todos temos os mesmos direitos, ecumpria à escola distribuir igualmente um conjunto de saberes. Já a formaçãodiscursiva da educação com as TICs enuncia a nossa diferença e a relacionacom a profissão que se terá no futuro: este será um médico, aquele, um biólogomarinho, aquela, uma escritora...² A cada um conforme o seu desejo, o seupotencial, o seu projeto de aprendizagem. Já não se trata de ensinar tudo atodos.

Lyotard (1989) argumenta que a hegemonia da informática, enquanto alinguagem universalmente aceite, impõe um conjunto de prescrições aosenunciados aceites como pertencentes ao saber. Na sua perspectiva, amultiplicação das máquinas informacionais afeta e afetará a circulação deconhecimentos, tal como o fez com o desenvolvimento dos meios de transportee, em seguida, com o desenvolvimento dos sons e das imagens. As máquinasinformacionais concentrarão o saber, e estar na rede digital passa a sercondição de existência. O que não estiver na rede digital não existe. Daí anecessidade de o saber precisa ser traduzido para a linguagem digital.

O conhecimento com função emancipatória parece desaparecer nosdiscursos das TICs e emerge uma noção de conhecimento que se relacionamais com sua aplicação e com o seu retorno no nível de mercado. O saberpara adquirir estatuto de conhecimento, para produzir riqueza, tem de serespecializado. O conhecimento é, assim, um recurso econômico. O sabedortradicionalmente formado é substituído pelo “sabedor como consumidor desaber” (Lyotard, 1989, p. 17), pois o conhecimento deixou de ser encaradocomo dirigido ao ser para se tornar aplicável ao fazer. Conhecimento bom é oque é novo, inédito, aplicado.

O objetivo de conhecer como autoconhecimento e comoautodesenvolvimento atribui ao conhecimento um caráter interior. Naperspectiva de Drucker (2005, p. 59), o conhecimento como “capacidade desaber o que dizer e dizê-lo bem” foi a base do ensino liberal (Gramática, Lógica

e Retórica). O conhecimento que se fala hoje é “a informação eficaz, em ação”,o que se pressupõe que são “exteriores ao indivíduo”.

O conhecimento reconfigurado desencadeia um movimento deatualização do sistema educativo e de sua estrutura curricular. Da escola,desenhada como a instituição socializado dos indivíduos, esperava-se queformasse cidadãos e preparasse trabalhadores aptos para a estruturaocupacional (STOER, Magalhães, 2003). O lugar de aprender, que era,sobretudo, um lugar episódico, como uma quarentena, recebe outrosmandatos: deve ser aberto, contínuo, permanente. Emerge uma noção deescola como um ambiente inteligente, especialmente criado para as pessoasdesenvolverem competências de acordo com os seus próprios estilos deaprendizagem. “Tem de ser um sistema aberto” que transmita “aos estudantes,de todos os níveis, motivação de aprender e uma disciplina de aprendizagemcontínua” (DRUCKER, 2005, p. 207). A escola deve rever seus tempos,respeitar os ritmos e as formas de aprendizagem e, sobretudo, os interesses decada um.

Os professores são aconselhados a despirem-se de suas velhasdidáticas e aventurarem-se, com seus alunos, pelas águas do ciberespaço. Oque era um verbo bitransitivo – ensinar o que a quem – funde-se num mesmoconceito e cria a idéia de ensinar a aprender. Não mais aprender pensando enem aprender fazendo, mas aprender aprendendo.Não mais ensinar o que aquem, mas ensinar a aprender como se aprende. O conteúdo passa a ser aprópria aprendizagem. Não há o que ensinar nos discursos das TICs; o que hásão competências a serem desenvolvidas.

São introduzidos termos como flexibilidade, inovação, eficiência,eficácia, aprendizagem colaborativa, interação mediada, ambientes deaprendizagem, software, blogs, web-questions, processos e produtos deaprendizagem. O e-Learning ou aprendizagem suportada pela Internet, porexemplo, é apresentado como um agente revolucionário que encontrajustificação tanto na idéia da formação como um sistema gerador decompetências quanto na idéia de ser uma estratégia de baixo custo capaz deatender à necessidade de aprender num ritmo acelerado.

O aluno nos discursos das TICs, não é o menor de idade que se preparapara ser cidadão emancipado; é o indivíduo, de qualquer, com potencial etalento, pois o sujeito da educação das TICs tem necessidades deaprendizagem ao longo da vida. O aluno classificado por meio de etapasuniversais de desenvolvimento, de categorias psicológicas e de medidasracionais de rendimento é agora um indivíduo com potencial. Em função dessepotencial, deve ele próprio, investir na sua aprendizagem, escolhendoinstituições educativas que estejam de acordo com os seus interesses deaprendizagem, sem limitação geográfica.

Por outro lado, o mundo é caracterizado como algo incerto, que não sesabe aonde vai desaguar; assim, é necessário preparar as pessoas parasituações em que se precise agir na urgência. E o conteúdo do trabalho

pedagógico passa a ser recolha e análise de informações com vista a resolverum problema urgente e complexo, tendo as TICs como aliadas. “Aprender eresponder de forma apropriada é o termo da educação”, afirma Litto (2005), umdos coordenadores da Escola do Futuro da Universidade de São Paulo (USP).

Com as TICs emergem novos alunos que poderiam ser denominadosaprendizes de aprendentes. A competência máxima que poderia adquirir seria,assim, a competência de, continuamente, adquirir novas competências(Magalhães, 2006).

Os novos contextos de ensino-aprendizagemOs contextos de ensino-aprendizagem que nos preocupavam antes das

TICs estavam relacionadas ao tempo e lugar. Assim, as nossas escolas eramrurais, urbanas, populares, de elite, profissionais, técnicas, agrícolas, entreoutras. Mas quando se fala em contexto, nos discursos das TICs, fala-se de:contexto presencial e a distância; contexto on-line (assíncrono e síncrono);contexto de comunicação; contexto real e virtual; contexto de utilização(FIGUEREDO, 2002).

Fala-se de contexto relacionado com o lugar quando se diz que oprofessor e o aluno não têm de estar, ao mesmo tempo, no mesmo lugar dasituação ensino-aprendizagem. Assim, diz-se que o computador é uma aliadopara estratégias de aprendizagens como: simulações, dramatizações, diálogossocráticos, painéis de discussão, diálogos dirigidos, questionamentos,narrações e audições de histórias, casos de estudo, resoluções de problemas,projetos, etc. (CHAVES, 2003). Fala-se em contextos de aprendizagemdiferenciados: os que exigem a intervenção de um professor e outros quepodem ser utilizados em total autonomia (SOFFNER, 2005). Abundam,igualmente, teorias de aprendizagem que enquadram plenamente taisestratégias: aprendizagem pela ação, aprendizagem reflexiva, aprendizagemsituada, aprendizagem acidental, aprendizagem baseada em projetos. Diversasmodalidades de métodos são propostas para determinados contextos deaprendizagem: método do aprender pela experiência, método do aprender pelasimulação da realidade, método do aprender pela teoria da abordagemconceptual, método do aprender pelo desenvolvimento comportamental.

A metáfora da jardinagem é retomada por Papert. Em A família em rede(1997), ele afirma que o papel dos pais e dos professores consiste em saturar oambiente de aprendizagem com os nutrientes cognitivos, a partir dos quais asnovas gerações constroem conhecimentos. E que devem ser proporcionadasàs crianças ferramentas poderosas que lhes possibilitem uma exploraçãocompleta dos nutrientes cognitivos existentes.

Os ambientes de aprendizagem mediados por computador são indicadoscomo atrativos, motivadores, interativos, de baixo custo econômico, eficientes,acessíveis, flexíveis, compreensíveis, e de fácil utilização eles podem sercriados a partir de softwares de gerenciamento de atividades quedisponibilizam ferramentas de comunicação entre usuários com interesses

comuns, assim como podem ser encontrados em sítios já existentes naInternet.

Há um consenso nessa massa discursiva heterogenia: o de que omundo mudou e a tecnologia é o comboio dessa mudança.

Embora o conhecimento e a informação tenham sido, desde sempre,importantes para a produção capitalista, no contexto das TICs ou docapitalismo flexível estes processos assumem a centralidade, tornam-se aforça motriz da produção. Como enfatizam Stoer e Magalhães (2003), essamudança na natureza do conhecimento tem implicações profundas nosprocessos educativos. Uma delas é referente à ordem da informação que étratado por Ilharco (2006) tomando como referência os filmes Munique,Máquina zero e Relatório minoritário.

Nos três filmes, as tecnologias da informação e comunicação disponíveismodelam substantivamente o modo como diferentes sistemas dominam e sãodominados, ou seja, como se exerce o poder, se sobrevive e se prospera. Ostrês filmes espelham três épocas, três modos de funcionamento do poder(ILHARCO, 2006, p. 5).

Em Munique, a realidade precede a informação, ou seja, depois dascoisas terem acontecido é que se sabe delas. O desafio do poder é, nestecontexto, conhecer o mais rápido possível o que aconteceu. O jogo, nestecaso, é predefinido, uma vez que o que tinha de acontecer já aconteceu – ainformação segue a ação. Já em Máquina zero a informação separa-se daação, e a realidade é o que se sabe sobre o que aconteceu. Relembre-se, atítulo de exemplo, que, no confronto de nossas casas, assistimos ao 11 deSetembro assim como à Guerra do Golfo. As pessoas telefonavam umas paraas outras: “vejam a televisão, tal canal está mostrando a explosão das torres”.Alguns até se alegravam pelo fato de os Estados Unidos estarem sendoatacados. O mundo todo viu a imagem. O desafio do poder, nessa situação, émaximizar a assimetria da informação a seu favor. No Relatório minoritário, emoposição ao primeiro caso, a informação passa a preceder o que aconteceu.Conhecer o que vai acontecer no futuro torna-se o desafio do poder, tanto paraimpedir que aconteça como para preparar-se para o enfrentamento. Não sesabe onde está quem a preparar o quê, logo, a ordem das coisas é aespeculação permanente sobre o que vai acontecer.

Nos discursos das TICs, as nossas escolas são acusadas de viverem notempo do filme Munique e advertidas de que o mundo mudou. Acredita-se queas TICs não só podem contribuir, de forma decisiva, para a modificação dosmétodos de trabalho e respectivas práticas profissionais, como emconseqüência, vieram colocar também os profissionais da formação perante anecessidade de adaptação e aquisição de novas competências, quer emtécnicos, quer do ponto de vista pedagógico, que lhes permitam tirar partido desoluções tecnologicamente mais avançadas. Assim, a requalificação dos

formadores tem sido indicada como uma prioridade que deve acompanhar astransformações ocorridas na forma de pensar a aprendizagem, instituindonovas formas identitárias.

A identidade profissional dos professores

Na perspectiva de Dubar (1997), dois processos heterogêneosarticulam-se na construção de identidades: a) o processo das identidadesvirtuais, ou seja, os papéis que são atribuídos aos indivíduos pelas instituiçõese pelos seus agentes, em que os próprios indivíduos estão implicados; b) oprocesso das trajetórias vividas, ou seja, a forma como os indivíduosreconstroem os acontecimentos, que julgam particularmente significativos erelevantes, na sua biografia social.

A produção de identidades profissionais resulta, nesta perspectiva, daconvergência de dois processos: o biográfico e o relacional. O primeiro, o daidentidade para si, decorre no tempo e resulta de uma construção, pelosindivíduos, de identidades sociais e profissionais a parir das categoriasoferecidas por instituições como a família, a escola, o mercado de trabalho ou aempresa, consideradas acessíveis e valorizadas. O segundo, o da identidadepara os outros, diz respeito ao reconhecimento das identidades associadas aossaberes, competências e imagens que os indivíduos atribuem a si próprios, nossistemas dos quais participam, num dado momento e num determinado espaçode legitimação.

A identidade social não é “transmitida” por uma geração à seguinte, ela éconstruída por cada geração com base em categorias e posições herdadas dageração precedente, mas também através das estratégias identitáriasdesenroladas nas instituições que os indivíduos atravessam e para cujatransformação real eles contribuem. (DUBAR, 1997, p. 118).

Foucault fala da partilha de um só e mesmo conjunto de discursos quenumerosos indivíduos, em lugares diversos, definem sua pertença recíproca econstroem a rede poderosa do discurso. Aparentemente, a única condiçãorequerida é o reconhecimento das mesmas verdades e a aceitação de umacerta regra de conformidade com os discursos validados.

Nos discursos analisados, a identidade profissional dos professores é“produzida” através de discursos que, simultaneamente, explicam e constroemo sistema de educação com base nas TICs. Descreve-se uma identidade quedeve ser ajustada à imagem do próprio projeto educativo da sociedade digital eàs suas características de velocidade, flexibilidade, racionalização. Asidentidades que são atribuídas aos professores pelos gestores dos sistemaseducativos não diferem das identidades que os próprios professores atribuem.

Verifica-se nesses discursos, que perde força a idéia de professor comofuncionário do Estado, profissional com autoridade representativa de uma

ordem comum emancipativa (NÓVOA, 1991), e ganha força a idéia de umindivíduo ou organização que terá de investir sistematicamente na aquisição denovo conhecimento e de novas estratégias para alcançar ou manter umaposição competitiva. Neste contexto emergem:

Identidades desviantes, que devem romper com a organização doespaço e com controle do tempo que a sociedade disciplinar impôs aossistemas educativos. Que se conectem com outros professores inovadores eparticipem de equipes virtuais. Professores que inventem atividades comsoftware, que utilizem web-question, que proponham pesquisas na Internet.Professores que se distingam dos outros com publicações, por premiações, porfazeres diferentes. Colocar disciplina on-line, migrar para o espaço digital, fixarrepositórios de conhecimentos indexados ao trabalho escolar, validar ociberespaço como espaços virtuais de educação, tornar-se um duplo: virtual eatual (DELEUZE, 1995).

Identidades inovadoras, adversas à rotina, que façam coisas diferentes,que vejam o currículo como uma partitura ou como um roteiro para váriasinterpretações. Um professor preocupado em dar o seu toque pessoal aocurrículo. Que se assemelhe a um treinador desportivo, “um empreendedor”.

Identidades ilegíveis, que inventem um paradigma que fortifique arelação entre a escol e o desenvolvimento econômico e social, que inventemuma forma de funcionar da organização escolar adequada ao sistema binárioda era digital. Que veja a si como pessoa recurso.

Identidades on-line que saibam aproveitar as potencialidadescolaborativas das redes e tornar a instituição escolar presente a qualquertempo e em qualquer lugar, através de diversos professores que colocam suadisciplina on-line, trocam e-mail com seus alunos, respondem formulários on-line dos órgãos do sistema educativo, enviam sugestões, publicam textos,divulgam trabalho dos alunos, ou seja, utilizam a rede para uma nova forma detrabalhar.

Identidades competitivas, identidades profissionais inseridas numa lógicaprofissional própria e empreendedora, que renunciam às referências habituaislocais e se integram em projetos de rede.

Identidades criativas, que não sejam deixadas “fora do laço”, que façamparte do “reino dos bens-sucedidos”, que não sofram com a fragmentação, quetenham confiança para viver a desordem, capazes de “florescimento no meioda desolação”, com energia para fazer parte da “mudança irreversível”(SEMNET, 2001).

Esta identidade com o nome de professor, questionada quando amudança do ensino religioso para o ensino laico, do ensino tradicional para aescola nova, das pedagogias românticas para as pedagogias críticas, é apenasuma paródia: “o plural a habita, almas inumeráveis nelas disputam”(FOUCAULT, 1996, p. 21), ao longo dos tempos.

Sabe-se que a instituição de um comportamento é sempre um sistemade coerção que encontra condições de exercício em microrrelações de poder.

Os programas de inclusão digital encontram todos os tipos de apoio.Multiplicam-se enunciações sobre a idéia de que a educação, enfim, encontraum aliado que resolverá aquele velho problema das diferenças de ritmo, o quenos confere “a impressão de que é belo demais para ser verdadeiro”(FOUCAULT, 1996, p. 147). O modo de subjetivação em tempos de TIC é, decerta forma, aquele que não pode ser caracterizado como um código moral, nosentido prescritivo ou jurídico. Entretanto, a descrição dos discursos demonstraa instauração de procedimentos que induzem o indivíduo a dizer a verdadesobre si mesmo, como por exemplo: “ainda sou analfabeta no que se refere àsnovas tecnologias” ou “a minha vida mudou muito depois das TICs”. Emergeuma noção de TIC como constitutiva da subjetividade contemporânea para adocência.

Foucault (1996) mostra, em Vigiar e punir, que o caráter dos espaçosdisciplinares é seu estado perene de crise, o que os faz tornarem-selaboratórios de poder visando ao aprimoramento contínuo de seusmecanismos. O surgimento do dispositivo educar com as TICs revela a busca,um tanto às cegas, pela suposta fonte de potência criativa que ofereceráresposta para a crise que assola os sistemas educativos e resolverá o que sechama mal-estar docente. Esse dispositivo procura estabelecer uma incitaçãotécnica que é materializada em discursos e práticas que vão construindo aidéia de que aquele que pensa a educação mediata conhece melhor a simesmo e aos outros que vai educar.

É essa diluição histórica que parece estar contida nos discursos queenunciam uma nova identidade docente com base nas TICs. Quem quiser umaidentidade profissional adaptada ao tempo em que vive não tem de supô-laoculta em alguma parte. É dentro de epistemologias sociais e educacionais, ummundo governador por categorias que permitem nomear a educação, que seexerce a profissão docente. Pensa-se, assim, que as TICs estão ,cada vezmais, imbricadas nos espelhos onde os professores vão se mirar, como outrosprofissionais da contemporaneidade.

Considerações finais

A episteme moderna fixou o seu paradigma na ciência e elegeu osujeito, o objeto e a relação sujeito-objeto como as suas categoriasfundacionais (MAGALHÃES, 1998). Durante muitos séculos o grande marconorteador do nosso propósito educativo foi o chamado modelo consciencialista,ou seja, a crença na consciência como sinônimo de conhecimento edesenvolvimento da inteligência. Um a pessoa inteligente era acima de tudouma pessoa consciente, e uma pessoa consciente era uma pessoa sábia, poisa consciência e a inteligência eram vistas como faces da mesma moeda. Arazão tornou-se o instrumento indispensável de autodeterminação do serhumano. A crença era de que, através da razão, o homem encontraria a

medida e os elos de ligação entre o social e o individual, entre o estático e odinâmico, entre o particular e o universal.

Se na Modernidade a razão construiria a nossa humanidade, em temposde TIC, o conhecimento, mediado pela informática, fornecerá aos indivíduos ascompetências necessárias para a realização dos seus projetos pessoais. Fala-se menos da consciência e mais da competência. Fala-se menos daemancipação e mais de sucesso. Este depende, cada vez mais, da capacidadede inclusão no mercado, como consumidor reflexivo.

As TICs são um acontecimento a partir do qual a educação éreinventada por discursos que enunciam novos contextos de ensino-aprendizagem e especificam novas formas de ensinar e de aprender. Estesdiscursos comportam um modelo educativo com base eu um outro tecido socialdenominado Sociedade da Informação, do Conhecimento, SociedadeCognitiva, entre outros.

Há uma lógica comum que atravessa organizações e pessoas:competência, atitude, produção. No campo da competência, fala-se no domíniode pré requisitos, de operações elementares, da ferramenta e do tempo. Nocampo da atitude, elege-se o empenho, a colaboração e o cumprimento denormas. No campo da produção avalia-se a criatividade, a originalidade e arelação do produto com o proposto. Assim, à matriz moderna da escolaconstruída por Magalhães (2003, p. 41) podemos agregar o discurso das TICsconstrutoras de outros referenciais para a escola.

A educação como um processo emancipatório, em que o professor tinhaa missão de ajudar os estudantes a uma compreensão não mistificada da vidasocial, parece desaparecer nos discursos das TICs. Há indícios de que,redefinida como bem de consumo, a educação reconfigura os alunos comoconsumidores individuais de aprendizagens sob medida e os professores comogestores de processos individuais de aprendizagem.

Desde Comênio e a sua célebre Didática magna (1996), o sujeito daeducação é apresentado como um ser naturalmente educável que nascerudimentar, mas com o potencial de assunção à condição humana. Ensinartudo a todos para que se materialize a humanidade latente de cada um. Osujeito do conhecimento identificado em Kant e o de Piaget partilham de ummesmo pressuposto: “como humanos, já seriamos sujeitos dotados de umanatureza comum, que consiste numa capacidade intrínseca de aprendermos”(VEIGA-NETO, 2004, p. 133).

Quadro 1 Alteração na matriz moderna da escola

Projeto de Modernidade Consolidação do Estado-Nação Projetos das TICs

Formação do indivíduo Formação do cidadão Desenvolvimento decompetências

A ciência e a técnica comofundamentos explicativos elegitimadores da ação.

A ciência e a técnicacolocadas a serviço daconsolidação do Estado-Nação (a ciência e atécnica nacionais).

A informática colocada aserviço de cada indivíduo.A internet como repositórioda sabedoria.

A explicação e o domínioda natureza, da sociedadee de si mesmo pelaracionalidade científica.

A consolidação e alegitimação das ligaçõessociais pela açãoracionalizada eracionalizadora do Estadoatravés de suasinstituições.

O Mercado como instânciaracionalizada eracionalizadora

O pensamento racional, aracionalização dosprocessos sociais e doscomportamentos dosindivíduos.

A organização nacionaldos indivíduos nasinstituições sociais.

A organização dosindivíduos segundo seusprojetos pessoais.

Assim se quisermos que o sujeito desde sempre aí cumpra suadimensão humana, devemos educá-lo, para que ele possa atingir ou construirsua própria autoconsciência, de modo a reverter aquelas representaçõesdistorcidas que o alienavam; só assim ele será capaz de se contraporefetivamente à opressão e à exclusão e, em consciência, conquistar a suasoberania (VEIGA-NETO, 2004, p. 135).

Foucault, na esteira de Nietzsche, mostrou que o sujeito se institui porum campo de saberes e em práticas de poder, na medida em que examinoucomo o sujeito foi sendo moldado no interior das práticas sociais, e trouxe parao campo da educação um grande problema, ou seja, o de explicar como seforma isso que chamamos sujeito. Os atores ou os sujeitos, na sua perspectiva,não são produtores de conhecimento e sim produzidos no interior dos saberes.

Varela e Alvarez-Uria (1991) desenvolveram uma arqueologia da escolamoderna mostrando a relação existente entre os saberes pedagógicos, oestatuto da infância, o surgimento da especialistas em educação e aobrigatoriedade escolar, evidenciando o caráter arbitrário de uma forma escolarem detrimento de qualquer outra forma de educar. Eles descrevem ofundamento da maquinaria escolar e mostram o poder da escola comoinstituição transmissora e legitimadora dos poderes ativos na sociedademoderna.

A nossa pretensão foi a de realizar um trabalho bem mais modestos. Osdiscursos que analisamos fazem parte de uma constelação discursiva que temcomo pano de fundo a crise dos sistemas educativos modernos. São discursosinstituidores de práticas e de subjetividades que devem substituir as existentes.A escola deixa de ser episódica na nossa vida e adquire o caráter de aberta epermanente e nos institui, a todos, como eternos aprendentes. O trabalhodesvincula-se do emprego e institui identidades profissionais autônomas,adaptadas às mudanças freqüentes, próprias de uma sociedade que serenomeia. O ensino migra para o ciberespaço e institui pedagogias centradasno manuseio das ferramentas informáticas. A aprendizagem é desvinculada doensino coletivo, adquire estatuto individual e institui um ensino sob medida emque o professor aparece como pessoa recurso, ou seja, uma pessoa que estápresente para o caso dos aprendentes autônomos precisarem de algumaorientação ou explicação.

Uma pessoa que o aluno sabe que, se tiver alguma dúvida, ela podeesclarecer, porque a máquina não vai lhe oferecer tudo. Ajuda-o a pesquisar,ajuda a encontrar mais facilmente um determinado assunto, tem maisinformação. Ele (o aluno) precisa saber que o professor está ali... (Professorade Matemática).

Em torno das TICs se desenvolve uma discursividade tão convincenteque parece não haver outra maneira de ver a educação senão a que por elas émediada. “Uma coisa é evidente quando impõe a sua presença ao olhar comtal claridade que toda dúvida é impossível”, afirma Larrosa (2001, p. 83). Esseprocesso não é apenas um reflexo do que acontece fora da escola; ele produz,constitui e enforma uma outra realidade escolar.

A episteme, lembra Foucault (1991), ou as epistemologias sociais, paracitar Stoer e Magalhães (2003), ordenam formulam, moldam um mundo no qualnada tem sentido fora dele. Vivemos, pois, dentro de uma epistemologia sociale educacional em que se reelabora e se redefine tanto as formas derepresentação como as formas de significação social, em que as TICsaparecem como a locomotiva e os trilhos. Trata-se de um discurso que ordenaum outra educação. Não se trata efetivamente do mesmo ofício, dos mesmosalunos nem dos mesmos professores. Uma outra realidade educativa édefinida, já não sendo possível qualquer forma alternativa de pensar e dizer daeducação e do exercício da profissão docente desvinculados das TICs. Há quese admitir, com Matos (2002), que não se pode prescindir do uso material einstrumental das TICs nem do seu influxo na modelação simbólica e conceitualda realidade.

Na verdade não podemos dar-nos ao devaneio de suspender o curso dorio tecnológico em que quotidianamente nos banhamos ou de saltar do leitopara observarmos, olimpicamente, das suas margens (MATOS, 2002, p. 8).

Maria Cristina Alves de AlmeidaDoutora em Ciências da Educação pela Universidade do Porto, Portugal,

é professora adjunta da Universidade de Pernambuco (UPE), Departamento deCiências Humanas, da Faculdade de Formação de Professores de Nazaré daMata.

Notas

1. ALMEIDA, Maria Cristina Alves de. AsTecnologias da Informação eComunicação, os novos contextos deensino-aprendizagem e a identidadeprofissional dos professores. Tese deDoutoramento. FPCE da Universidadedo Porto, 2006.

2. Refiro-me ao vídeo da Microsoft “Seupotencial, nossa inspiração”, que temsido veiculado nos processos deformação continuada no Brasil e emPortugal.