a educação popular no brasil

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  • 7/28/2019 A Educao popular no Brasil

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    REVISTA USP, So Paulo, n.61, p. 58-77, maro/maio 200458

    MARIAD

    AGRA

    AJACIN

    THOSETTON

    MARIAD

    AGRA

    A

    JACINTHOS

    ETTON

    professo

    radeSociologia

    daFaculda

    dedeEdu

    cao

    daUSP.

    Aeducao

    popular

    noBrasil:

    acultura

    demassa

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    INTRODUOTendo j completado mais de cin-

    qenta anos, polmica e controver-

    tida, a TV tem sensibilizado, ao

    longo de sua histria, um nmero

    significativo de estudiosos. sem

    dvida o veculo miditico maiscriticado entre os analistas, mas

    tambm a mdia que parece alcan-

    ar o pblico mais expressivo no

    que toca sua diversificao. Cri-

    ticada pela sua programao de

    baixa qualidade e altamente mer-

    cadolgica, reflexes que muitasvezes no dissociam o meio de seu

    contedo (Khel, 1995, 2000; Bucci,

    Nopr

    ocedeex

    aminarseve

    rdadeira

    oufalsa

    ainsus-

    tentvel

    imagem

    queoin

    telectualprod

    uzsobreo

    mundo

    operrio

    quando

    ,colocan

    do-sena

    situaodeop

    errio,

    semtero

    habitus

    deoper

    rio,apre

    endeaco

    ndioo

    pe-

    rriasegundoes

    quemasd

    epercep

    oeap

    reciao

    que

    noso

    osqueo

    sprpriosm

    embrosd

    aclasseo

    perria

    emprega

    mparaa

    preend-

    la(Bourdieu,

    1979).

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    2000-01), a TV, no meu entender, carece

    de um melhor entendimento. No entanto,

    felizmente, possvel identificar, recente-

    mente, uma srie de trabalhos que pensam

    a TV e as outras mdias a partir de outros

    critrios. Ou seja, fugindo das generaliza-

    es que uniformizam a proposta de entre-

    tenimento televisivo, chamam ateno para

    a riqueza de suas produes, na tentativa

    de avanar na sua compreenso (Machado,

    2000; Martn-Barbero, 1997). Mais do que

    pensar exclusivamente nos contedos e no

    carter muitas vezes ideolgico dessas pro-

    dues, grande parte das reflexes procura

    compreender o uso dessa programao pelo

    pblico. Ao invs de refletir sobre a forma

    como os contedos influenciam as pessoas,dedica-se a pensar o que as pessoas fazem

    com esses contedos. Esta a minha pro-

    posta. Compreender os usos variados que

    grande parte da populao faz ou pode fa-

    zer das mensagens televisivas e demais

    produes miditicas.

    Este artigo objetiva pois trazer uma dis-

    cusso sobre a transformao que o campo

    da educao vem sofrendo com a emergn-

    cia do fenmeno mundial da TV e da cul-

    tura de massa em geral. Tem inteno de

    refletir sobre a perda do monoplio da fa-

    mlia, da escola e demais instituies

    educativas tradicionais, reconhecidas pela

    transmisso e produo de um saber e de

    uma cultura formal.

    Para isso, primeiramente, preciso cha-

    mar ateno para o fato de que se a) as

    formas de aprender e b) tomar conheci-

    mento sobre o mundo, se c) os mecanis-

    mos de transmisso do saber, d) os agen-

    tes da transmisso, e) as ocasies e f) os

    espaos educativos j no so mais os

    mesmos, certo considerar que o proces-

    so educativo e o resultado desse aprendi-

    zado o educando, suas prticas e a formacomo fazem uso delas sofreram profun-

    das alteraes. Isto , se as formas de aqui-

    sio do saber mudaram pertinente pen-

    sar que o produto dessa configurao pe-

    daggica o estudante moderno e o con-

    tedo do aprendizado e suas prticas

    tambm assumiu outras feies.

    Se, grosso modo, convencionalmente,

    a educao exigia disciplina, silncio, des-

    treza em um nico tipo de linguagem, asaber, a leitura e a escrita; se, tradicional-

    mente, somente os adultos na figura dos

    pais e dos professores detinham o conheci-

    mento; se apenas os livros, as bibliotecas,

    museus e conservatrios de artes assegura-

    vam o caminho da cultura e da educao,

    hoje a informao e o saber (1) esto pulve-

    rizados em vrias linguagens e dissemina-

    dos em vrios veculos e instituies pro-

    dutores de bens simblicos. Desde a dca-

    da de 20, o rdio, o cinema, as revistas, e

    mais recentemente, os outdoors, a Internet

    e sobretudo a TV so veculos transmisso-

    res de informao, saber e cultura caracte-

    rsticos da moderna tradio brasileira

    (Ortiz, 1988).

    justo imaginar que o estudante moder-

    no no age e no se estimula com os mesmos

    processos didticos e educativos tradicio-

    nais, bem como no usa essa informao,

    esse saber e cultura da mesma forma.Posto isso, para encaminhar esta dis-

    cusso tenho como inteno fazer uma an-

    lise sobre as noes de cultura, cultura

    1 Citando Monteil (1985), segun-do a leitura de Charlot (2000,p. 61), entendo informao

    como um dado exterior ao su-jeito, que pode ser armazena-do, sob a primazia da objetivi-dade; entendo conhecimentocomo o resultado de uma expe-rincia pessoal ligada ativi-dade de um sujeito provido dequalidades afetivo-cognitivas eque est sob a primazia dasubjetividade, neste sentido uma informao de que o sujei-to se apropria; o saber, noentanto, produzido pelo sujeitoconfrontado a outros sujeitos,podendo ser enquadrado naordem da objetividade.

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    popular e cultura de elite. Estou

    convencida de que, a partir deste encami-

    nhamento, conseguirei montar um argu-

    mento que explicita um conflito entre duas

    concepes de cultura que fundamenta as

    dificuldades que alguns tm em compre-

    ender o significado e o uso diferenciado

    que os distintos segmentos sociais fazem

    dos produtos da TV e demais bens da cul-

    tura de massa.

    minha inteno problematizar, des-

    construindo sociologicamente, o julgamen-

    to elitista que a academia e ns, professo-

    res, temos em relao a uma variedade de

    produtos da mdia. A literatura que se torna

    best-seller, os fascculos e livros didticos

    que tomam lugar dos clssicos, a banca dejornal que aos poucos torna-se a referncia

    de leitura em detrimento das livrarias, a

    msica erudita que sequer consegue ter a

    audincia da msica sertaneja, a velha rixa

    entre os programas educativos e os progra-

    mas de variedade na TV, a preferncia pela

    comdia em detrimento do drama psicol-

    gico. Estes so alguns exemplos das oposi-

    es e classificaes que fazemos automa-

    ticamente quando nos dispomos a julgaralgumas prticas e disposies educativas

    relativas ao consumo de massa ou ao con-

    sumo popular (2).

    Para fazer estas reflexes o argumento

    ser construdo da seguinte forma. Irei ini-

    cialmente caracterizar brevemente o que

    entendo sobre cultura de massa. Retomarei

    alguns determinantes socioestruturais res-

    ponsveis pela emergncia desta configu-

    rao cultural no Brasil. Destacarei a evo-

    luo do crescimento da produo de bens

    simblicos no territrio nacional, seus usos,

    desde meados do sculo passado at os

    nossos dias. Em seguida, irei trabalhar os

    conceitoscultura, cultura popular e cultu-

    ra de elite e observar que todos so concei-

    tos que expressam um conflito, uma tenso

    de ordem poltica no interior do campo

    intelectual. So conceitos construdos so-

    cialmente que expressam uma tomada de

    posio de alguns segmentos em relao aum saber que valorizam ou desprestigiam.

    Creio que ao esclarecer que os concei-

    tospopular, cultura popular e cultura de

    massa esto carregados de juzos de valor

    possvel problematiz-los e compreender

    os usos variados que os segmentos popula-

    res fazem ou podem fazer da cultura de

    massa.

    A CULTURA DE MASSA

    A TV e os demais produtos da cultura de

    massa so fenmenos, sem dvida, contro-

    versos e complexos. Ora manipulam, ora

    servem como resistncia frente a uma cultu-

    ra do status quo. Ora educam, segundo uma

    lgica hedonista, ora educam para a eman-

    cipao (Kellner, 2001; Thompson, 1995;Martn-Barbero, 2003). minha inteno

    demonstrar que os usos das mensagens des-

    ses veculos so heterogneos e circunstan-

    ciados. Esto estreitamente influenciados

    pela trajetria e apropriao de um capital

    cultural oriundo da famlia e das instituies

    educativas pelas quais quase todos experi-

    mentam ao longo de suas vidas (Bourdieu,

    2003, 1998, 1979; Morin, 1984).

    Assim, a nfase do argumento desteartigo foge dos maniquesmos e das gene-

    ralizaes to comuns neste debate (Setton,

    2002, 2000) (3). A discusso aqui proposta

    sobre a cultura de massa privilegia o aspec-

    to criativo do processo de produo/recep-

    o cultural das mensagens. Ressalta no-

    vas possibilidades de interao a partir da

    difuso e troca de signos, valores e saberes

    sociais. Concordando com as colocaes

    de Edgar Morin, apio a idia de que a cul-

    tura de massa pode ser considerada uma

    terceiracultura, ou seja, uma cultura que

    se alimenta a partir de uma relao de

    interdependncia com outras culturas, seja

    esta escolar, nacional ou religiosa.

    Creio que, para que se possa analisar a

    cultura de massa (4) ou, em uma verso

    mais moderna, para se analisar a cultura

    das mdias (Kellner, 2001), necessrio

    empreender uma anlise interdisciplinar.

    Creio que dessa forma posso compreendero processo comunicativo proposto pela TV

    e demais mdias como um processo de in-

    terao, um dilogo contnuo entre criao

    2 Por popular, estou me atendoao sentido de gente comum,maioria, annimo e tambm aosentido de pobre, simples, seminstruo (Dicionrio Houaissda Lngua Portuguesa, So Pau-lo, Objetiva, 2001, pp. 2261).

    3 sabido que desde os estudosda teoria crtica da cultura, ela-borada por T. Adorno e M.Horkheimer (1996), uma sriede trabalhos, at aproximada-mente a dcada de 70, tra-balhava, fundamentalmentecomo referencial terico, umaperspectiva crtica e negativasobre o fenmeno da culturade massa. Privilegiando os as-pectos relativos produo easpectos relativos ao conte-do manipulador das mensa-gens, essa perspectiva, aindahoje, acolhe importantes tra-balhos. No obstante, a partirdos anos 70, uma outra abor-dagem, sobre o mesmo fen-meno, surge na Europa. Os es-tudos culturais da Escola deBirmighan so os precursoresdas anlises que enfatizam oprocesso de recepo dasmensagens miditicas e os usosdiferenciados que o pblico fazde cada uma delas.

    4 O conceito cultura de massatem uma longa histria nas ci-ncias humanas. No entanto,para os objetivos deste artigo, importante salientar que, para

    alguns autores, ele ultrapas-sado, pois no mais explicita ocomportamento do mercadoconsumidor, hoje altamentesegmentado. A este respeito ler:Ortiz, s/d.

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    (produtor) e consumo (receptor). Diferen-

    te de grande parte das leituras que se faz

    sobre o fenmeno, acredito que o receptor

    da mensagem miditica, televisiva ou no,

    no passivo, no apreende as mensagens

    tal como foram propostas. A recepo no

    o estgio final do processo comunicativo.

    Ao contrrio, a recepo uma fase que d

    incio a etapas criativas de apropriao e

    novas produes de sentido (Martn-

    Barbero, 2003, 2000; Certeau, 2002;

    Ginzburg, 1987). Saliento que existe uma

    margem de liberdade no processo de apre-

    enso dos contedos por parte dos indiv-

    duos. A etapa da interiorizao essencial-

    mente particular e singular, derivada so-

    bretudo da trajetria anterior de cada um.Dessa forma, preciso explicitar que no

    considero os produtos e/ou contedos das

    mdias em sua totalidade como ideolgi-

    cos. Apoiando-me em Thompson (1995),

    creio que so ideolgicas apenas as mensa-

    gens que reforam relaes de dominao.

    Ou seja, toda explicitao de sentido que

    sustenta hierarquias e relaes de poder.

    DETERMINANTES

    SOCIOESTRUTURAIS: A CULTURA

    DE MASSA NO BRASIL

    Em meados do sculo passado, e prin-

    cipalmente com os governos militares, a

    sociedade brasileira v-se submetida a uma

    nova ordem social e econmica. Desde

    Getlio Vargas, nas dcadas de 30 e 40,

    seguido de Juscelino Kubitschek, nos anos

    50, e culminando nas polticas ps-64, as-

    sistimos a um alto volume de investimento

    na infra-estrutura da informao e do lazer.

    Perodo de grande efervescncia poltica,

    inverses financeiras na consolidao de

    um projeto poltico integrador possibilita-

    ram a criao de um mercado de cultura e

    bens de consumo at ento desconhecidopor ns. Apoio institucional em polticas

    educativas utilizando o rdio e o cinema

    (Espinheira, 1934; Franco, 2000), tecno-

    logias avanadas para a difuso de ima-

    gens via satlites, apoio estatal nos em-

    preendimentos culturais, com a criao da

    Funart, Embrafilme, ou mesmo nos subs-

    dios importao do papel para a inds-

    tria editorial, promoveram, em poucos

    anos, as bases para a consolidao, sem

    precedentes, de uma cultura miditica em

    territrio nacional (Ortiz, 1988).

    Neste artigo, chamo ateno para o fato

    de que possvel constatar a especificida-

    de de uma nova ordem sociocultural, no

    Brasil, diferente da vivida pelos pases

    como Estados Unidos e demais naes

    europias. Em 1950, quando as emisses

    de rdio estavam praticamente generaliza-

    das em territrio nacional, o cinema levavamultides s salas de projeo e a difuso

    televisiva dava seus primeiros mas decisi-

    vos passos, metade da populao brasileira

    era ainda analfabeta. O Brasil, juntamente

    com outros pases latino-americanos, cons-

    tri, respectivamente, uma histria cultu-

    ral a partir de outras influncias. Antes que

    a escola se universalizasse, antes que o saber

    formal se tornasse referncia educativa para

    grande parte de nossa populao, antes quea lngua escrita estivesse generalizada em

    todo o territrio nacional, o rdio, a TV e o

    cinema j eram velhos conhecidos da po-

    pulao. possvel pois considerar que o

    imaginrio ficcional das mdias h muito

    mais tempo vem colonizando os nossos

    espritos. possvel considerar que esse

    imaginrio est mais presente e mais fa-

    miliar no cotidiano dos segmentos sociais

    brasileiros, sobretudo os segmentos com

    baixa escolaridade, do que propriamente a

    cultura escolar (5).

    No obstante estas observaes, for-

    oso constatar um certo silncio e desinte-

    resse, entre os educadores, sobre a predo-

    minncia da cultura de massa em relao

    cultura escolar. Em recente levantamento

    entre as principais revistas especializadas

    em educao, nos ltimos vinte anos, foi

    possvel constatar a ausncia de reflexes

    sobre a particularidade da configuraocultural e educativa do Brasil, e as implica-

    es da decorrentes para a formao esco-

    lar de nosso estudantado. Na realidade,

    5 importante registrar que no fi-nal do sculo XIX Estados Uni-

    dos e Frana contavam comapenas 14% e 18% de analfa-betos, respectivamente. Ao con-trrio, o Brasil apresentava umpercentual de 84% na condiode analfabetos (Hallewell,1985; Mira, 1995). Ainda hoje,segundo o Instituto Nacional deEstudos e Pesquisas Educacio-nais (Inep), a regio rural brasi-leira ainda conta com 29,8%de adultos analfabetos e a re-gio urbana, 15%. A escolari-dade mdia do morador dazona rural na faixa dos 15 anosou mais de 3,4 anos, enquan-to a urbana de 7 anos. Emrelao infra-estrutura, s 5,2%delas possuem bibliotecas e0,5% possui laboratrio de in-formtica, enquanto na zonaurbana os ndices so 58,6% e27,9%, respectivamente.

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    sobre o tema dos meios de comunicao,

    parte dos pesquisadores est mais interes-

    sada nos aspectos didticos e metodolgicos

    dos usos das mdias do que propriamente

    nas determinaes socioculturais do fen-

    meno (6).

    A MATERIALIDADE DO FENMENO

    Reforando o argumento deste artigo,

    alguns nmeros podem nos ajudar a justi-

    ficar a importncia da questo.

    Atualmente, segundo dados do Censo

    Demogrfico 2000, 53% da populao bra-

    sileira freqentou menos de 7 anos a esco-la, ou seja, no ultrapassou o ensino funda-

    mental, e 27,7% ocuparam apenas 3 anos

    os bancos escolares. Apenas 47% estuda-

    ram de 8 ou mais de 15 anos. De acordo

    com esta mesma fonte, de um total de qua-

    se 45 milhes de domiclios brasileiros

    pesquisados, 93% tm acesso a energia

    eltrica, 87,7% possuem televiso, 87,4%

    possuem rdio e 35,3% possuem video-

    cassete em suas residncias (7). Nesse sen-tido, importante ressaltar que a heteroge-

    neidade de acesso aos meios educativos

    um fato, e suas implicaes so bastante

    complexas para o campo da educao for-

    mal e informal.

    Em relao mdia televisiva seria im-

    portante registrar a configurao do setor.

    As 65 emissoras nacionais, suas 349 gera-

    doras e afiliadas, bem como suas 1.818

    retransmissoras, do conta de atingir quase

    a totalidade dos domiclios brasileiros

    (Lima, 2001). Ou seja, dos quase 90% dos

    domiclios que possuem televisores, a ao

    pedaggico-informativa das novelas, seria-

    dos, shows de variedades e filmes parece

    estar mais presente do que a ao escolar.

    Fazendo uma breve pesquisa sobre a

    programao oferecida pela TV aberta,

    pude observar a oferta crescente de progra-

    mas de natureza informativa e prescritiva

    (8). Classificando as ofertas das emissoras,foi possvel verificar que os contedos da

    programao transcendem ao aspecto pe-

    daggico explcito da transmisso dos do-

    cumentrios Globo Reprter,Reprter

    Eco, Planeta Terra (1.840 horas) (9), ou

    das programaes propriamente educativas

    Telecursos, Vestibulando Digital, Gran-

    des Cursos Cultura (2.405 horas). Notici-

    rios televisivos (10.430 horas) ou esporti-

    vos (3.225 horas) tambm cumprem uma

    funo pedaggica. Com audincias signi-

    ficativas, expressam uma disposio do

    pblico em inteirar-se das questes econ-

    micas e polticas da ordem do dia (10).

    sabido que a fico televisiva, h muito, na

    forma de seriados (1.510 horas), novelas

    (3.435 horas), filmes (780 horas), desenhos

    animados e/ou programao infantil (6.260

    horas) e humor (350 horas), preenche o ima-

    ginrio de crianas e adultos, disponibili-zando ou prescrevendo comportamentos na

    diversidade de sua produo (Pereira Junior,

    2002). Possibilitando o acesso a comporta-

    mentos e modelos de conduta a partir de

    celebridades, ficcionais ou no, essa pro-

    gramao, ao mesmo tempo que integra

    todos em um ideal de civilizao (capita-

    lista, hedonista e consumista), possibilita a

    uma multido o acesso a um cdigo de

    conduta que at pouco tempo era restritoaos segmentos privilegiados. Em uma an-

    lise simplista, poderia identificar uma po-

    larizao entre manipulao ou integrao

    a partir dos contedos propostos pela pro-

    gramao televisiva. possvel. Entretan-

    to, creio que seria mais prudente e menos

    tendencioso investigar as formas de articu-

    lao e apropriao dessas mensagens pe-

    los diferentes pblicos.

    Mais do que isso, preciso comentar

    ainda a crescente promoo de programas

    religiosos e de variedade que subliminar-

    mente (Ferrs, 1988) se propem educa-

    tivos. As emisses religiosas (5.365 horas),

    as emisses que investem nas entrevistas

    (2.790 horas), ou as emisses de entreteni-

    mento variado que provocativamente de-

    nominoparadidticas Note e Anote, Bom

    Dia Mulher, Melhor da Tarde, Vinho e

    Mesa, Neurnios, Mochilo, Fica Comi-

    go, Vida e Sade, Mestre Cura, Chek In,Turismo na TV(14.200 horas), grande par-

    te destinada ao pblico jovem e feminino,

    especificamente, podem revelar uma iden-

    6 Fazendo um levantamento nasprincipais revistas especializa-

    das em educao, entre elas,Revista Brasileira de Educao,Educao e Realidade, Educa-o e Sociedade, Cadernos dePesquisa e Educaoe Pesqui-sa, pude observar que poucosso os artigos que discutem arelao dos meios de comuni-cao de massa e a educao.A maior parte deles (Kenski,1998; Preto, 1999; Oliveira,2001; Mazzoti, 1991; Valen-te, 1988; DAlmeida, 1988;Oliveira, 1980; Castro & Fran-co, 1980) trabalha as novastecnologias como instrumentosou recursos de trabalho do pro-

    fessor. Raros so aqueles queprocuram investigar as novastecnologias como promotorasde um conhecimento informal,formadores de uma nova subje-tividade (Costa, 2002; Fischer,2002; Preto, 2002).

    7 Exclusivamente 10,6% possuemcomputador e 8% usufruem delinhas telefnicas.

    8 Essa classificao foi feita apartir da programao ofereci-da pelo jornal Folha de S. Pau-lo, em 11 das 12 emissoras decanal aberto (exceto a emisso-

    ra 21), na ltima semana doms de outubro de 2003. Ascategorias criadas para a clas-sificao so: 1) educativas (do-cumentrios, educativas, entre-vistas); 2) fico (novelas, de-senhos, seriados, filmes, hu-mor); 3) informativos (telejor-nais); 4) religiosos; 5) paradi-dticos (Fica Comigo, Note eAnote, etc.).

    9 As horas registradas entre pa-rnteses referem-se ao total dehoras desse gnero de progra-mao calculado por semana.

    10 A ttulo de curiosidade, a audi-ncia do Jornal Nacional daRede Globo de Televiso alcan-a a mdia de 35 pontos, sen-do que cada ponto refere-se aum total de 48,5 mil domicliosna Grande So Paulo.

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    tificao do pblico com uma sede de sabe-

    res e informaes que a sociedade lhes

    cobra. Em um dilogo crescente entre a

    necessidade de informar-se, de estar por

    dentro das dicas do bem-viver, de uma cer-

    ta arte de viver valorizada socialmente, a

    grande maioria da clientela televisiva en-

    grossa os ndices de audincia de uma pro-

    gramao que oferece a preos mdicos e

    sem cobrana uma educao que se ven-

    de a partir da emoo e da diverso. Pro-

    gramas religiosos promovendo a vida

    asctica, regrada e disciplinada, e progra-

    mas paradidticos que prescrevem, esti-

    mulando, a conduta correta para mulhe-

    res e jovens expressam a meu ver uma de-

    manda que h muito a escola e demais agen-tes tradicionais da educao deixaram de

    promover (Dubet, 1996).

    Trabalhando de maneira interdepen-

    dente com a TV e demais mdias (Santaella,

    2000), temos o rdio, que tambm apresen-

    ta a caracterstica de oferecer a seu pblico

    muito mais que um simples entretenimen-

    to musical e informativo. Uma srie de vi-

    nhetas que disponibilizam informaes e

    saberes especializados est a todo tempoatingindo um pblico diversificado. No

    raro ouvirmos dicas sobre sade, cultura,

    turismo, meio ambiente e lazer, entre os

    noticirios nacional, internacional e espor-

    tivo, nas emissoras FM e AM, oferecidos

    no meio da programao musical. O mais

    antigo e mais acessvel veculo popular de

    acesso informao e entretenimento, no

    Brasil, ainda hoje, no incio dos anos 2000,

    disponibilizava 2.013 emissoras (11). Sa-

    bendo da capacidade de atingir amplas

    extenses, com baixos custos, as rdios per-

    mitem a comunicao e a integrao pol-

    tico-informativa, universalizando seu aces-

    so, e como todos sabem criando uma tradi-

    o como veculos de educao a distncia.

    Em relao ao cinema, em 2000, segun-

    do o Censo Demogrfico, apenas 14% da

    populao brasileira declarou freqentar as

    salas de projeo, mas importante lem-

    brar que 35,3% possuem videocassete emsuas residncias. No entanto, a renda das

    bilheterias nacionais, em trinta anos, au-

    mentou oito vezes R$ 529,5 milhes con-

    tra R$ 70,1 milhes. A aparente contradi-

    o, no obstante, explicita apenas a mu-

    dana de hbito do brasileiro em relao a

    esse item do lazer. Dando preferncia s

    salas em shoppings e concentrando em um

    nico segmento seus consumidores, o ci-

    nema parece ser um fiel entretenimento dos

    segmentos mais abastados. Por outro lado,

    o crescimento das locaes e lanamentos

    de vdeos expressa que o consumo cinema-

    togrfico s ampliou o uso domstico da

    TV, conquistando, aos poucos, outros seg-

    mentos menos privilegiados (12). Atual-

    mente, segundo o SAJ Assessoria Em-

    presarial Ltda., temos 5.867 locadoras no

    Brasil. O volume de vendas em fitas VHS,

    em 2002, foi de 2.833.961 e o nmero deDVDs alcanou o registro de 4.988.008

    (13). A ttulo de curiosidade, seria interes-

    sante registrar que, segundo o Anurio

    Estatstico de 1990, 52% do pblico prefe-

    re o gnero aventura e 49%, comdia. Para

    os objetivos deste artigo, o importante

    salientar, no entanto, que o DVD foi lana-

    do no Brasil em 1998, ou seja, h menos de

    dez anos. Naquela ocasio, a indstria ven-

    deu 20 mil aparelhos e 105 mil CDs, segun-do dados da UBV. Desde ento, o preo

    dos leitores de DVDs caiu quase 50%, au-

    mentando a possibilidade de uma parcela

    cada vez maior ter acesso a mais um ele-

    trodomstico miditico.

    Em relao ao mercado fonogrfico

    vemos semelhante expanso com forte

    apelo popular. Segundo pesquisas, desde o

    Plano Real, ou seja, meados da dcada de

    90, nunca se vendeu tanto e nunca tantas

    pessoas de renda mais baixa tiveram a

    oportunidade de comprar um aparelho de

    som. Cerca de 5 milhes a 8 milhes de

    pessoas que antes nunca tinham tido um

    aparelho de som compraram um, depois do

    Plano Real. De acordo com essa mesma

    fonte, a popularizao dos aparelhos de som

    foi to rpida que num curto espao de tem-

    po 1995 e 1996 foram vendidos 10,7

    milhes de sistemas de som, nmero supe-

    rior populao de Portugal. A venda deCDs, em 1997, chegou a 104 milhes (Su-

    plemento Mais!, Folha de S. Paulo, 1998)

    (14).Atualmente, em funo da pirataria, o

    11 Anurio Estatstico de Mdia 2003.

    12 Estima-se que somente oito mi-lhes de pessoas freqentem ci-nema e somente 9% dos muni-cpios possuam salas de proje-o. As cidades do Rio de Ja-neiro e So Paulo destacam-seentre as capitais que possuemmais salas em uso, 212 e 556,respectivamente. O Brasil, em1972, tinha 2.648, em 1990,1.550, e, em 2002, 1.650. Avenda anual de ingressos, em2000, girou em torno de 80milhes. Em 1972, foram 191milhes (Folha de S. Paulo, se-tembro de 1995 e Filme B).

    13 De acordo com levantamentosdo setor, o DVD vem superan-do as vendas de fitas VHS h10 meses consecutivos no Bra-sil, e em 2005 pode represen-tar cerca de 90% do setor. Se-gundo o presidente da UnioBrasileira de Vdeo (UBV), nosprimeiros sete meses do ano de2003, o mercado de VHS caiu6,1% e o de DVD cresceu 60,2%em unidades vendidas em rela-o ao mesmo perodo do anopassado. No ano passado onmero de aparelhos vendidosficou em 1 milho e este anodeve chegar a 2,2 milhes,segundo o diretor geral da pro-dutora e distribuidora Colum-biaTriStar Films, no Brasil. Elepreviu que em 2005 sero ven-didos no pas 12 milhes deaparelhos. A expanso do DVD,que est sendo mais rpida quea de CD no pas, segundo essediretor, reflete-se tambm na di-ferena de ttulos lanados. Atjulho deste ano foram lanados569 filmes em DVD contra 286

    em VHS.14 Em 1979, foram vendidos um

    total de 66 milhes de unida-des, entre LPs, compactos sim-ples, compactos duplos e fitascassete (Ortiz, 1988).

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    volume da ordem de 79,6 milhes, 20%

    menor que em 2001; 76% do total das ven-

    das foi de produtos de artistas brasileiros.

    Os lbuns mais vendidos, em 2002, so

    Xuxa,Xuxa s para os Baixinhos 3, Rouge,

    Popstar, Roberto Carlos,Roberto Carlos

    2002, Vrios, O Clone Internacional, to-

    dos de forte apelo popular (15). Seria inte-

    ressante ressaltar tambm a premiao or-

    ganizada pelo setor. Em 2003, o Disco de

    Ouro, relativo venda de 100 mil unida-

    des, foi entregue para Amado Batista, o

    Disco de Platina, correspondente a 250 mil

    cpias, foi dado para Jorge Verclio e a dupla

    Sandy e Junior, e o Disco de Platina Duplo,

    totalizando 500 mil unidades, foi entregue

    ao CD da novelaMulheres Apaixonadas.

    Um total de mais de um milho de cpias

    vendidas oficialmente para um pblico que

    facilmente poderia ser classificado como

    popular. Para o desenvolvimento do argu-mento deste artigo, importante registrar

    tambm que grande parte dos consumido-

    res do mercado fonogrfico de estudantes

    (23%), ainda em idade escolar, ou seja, entre

    15 e 23 anos. Boa parcela, 46%, tem nvel

    de escolaridade distintiva, isto , nvel

    mdio e superior, entretanto, 54% dos con-

    sumidores estudaram apenas at oito anos

    (Unio Brasileira dos Produtores de Dis-

    cos UBPD, 2001-02).

    Para completar a anlise da expanso

    do consumo de bens da cultura de massa no

    Brasil, enfatizando seu apelo informativo e

    prescritivo, e muitas vezes popular, seria

    importante considerar o mercado de im-

    pressos e o pblico deste setor.

    No que se refere ao acesso leitura,

    recente pesquisa sobre alfabetismo/

    letramento (16) aponta que 67% da popu-

    lao brasileira encontra-se na situao deanalfabetismo funcional. Isto , encontra-

    se nos nveis 1 e 2 caracterizados por baixa

    habilidade e compreenso da leitura (17).

    Em Os Nmeros da Cultura, Abreu

    (2003) revela que, segundo o Indicador Na-

    cional de Alfabetismo Funcional (Inaf)

    2000, 67% dos entrevistados gostam de ler:

    32% gostam muito e 35% gostam um pou-

    co. Comentando outra pesquisa,Retrato da

    Leitura no Brasil (18),

    a autora aponta que98% dos entrevistados possuem em suas

    casas material escrito, entre eles, livros

    didticos, enciclopdias, dicionrios, livros

    infantis, bblias, livros sagrados e religio-

    sos, livros tcnicos e especficos, livros de

    literatura e romances, agendas de telefones

    e endereos, calendrios e folhinhas, livros

    de receitas de cozinha, lbum de famlia,

    guias e catlogos.

    No entanto, notem, essa pesquisa no

    menciona a produo do mercado de peri-

    dicos, fascculos e revistas em circulao.

    Se, por um lado, a autora chama a ateno

    para a necessidade de ampliar o entendi-

    mento sobre a leitura no universo brasilei-

    ro, integrando entre as prticas de leitura

    lbuns de famlia, cadernetas de endereo,

    etc., as pesquisas que comenta ignoram

    dados sobre uma grande fonte de prazer e

    leitura que so as bancas de jornal.

    No obstante, foroso salientar queneste item, em 2001, segundo o Instituto

    Verificador de Informaes, 14.132.700

    revistas circularam em territrio nacional.

    15 Os gneros mais escolhidos, se-

    gundo a UBV, so pop (21%),rock (15%), religioso (14%),pagode e samba (12%) e serta-nejo (11%).

    16 O conceito letramentoprocuracompreender a leitura e a escri-ta como prticas sociais com-plexas, desvendando sua diver-sidade, suas dimenses polti-cas e implicaes ideolgicas(Ribeiro, 2003).

    17 Nvel 1 corresponde capa-cidade de localizar informa-es explcitas em textos cur-tos, cuja configurao auxiliao reconhecimento do contedosolicitado. Nvel 2 correspon-de quelas pessoas que conse-guem localizar informaes emtextos curtos, de extenso m-dia, mesmo que a informaono aparea na mesma formaliteral em que mencionada napergunta. Nvel 3 capacida-de de ler textos mais longos,podendo orientar-se por subt-tulos, localizar mais de uma in-formao, relacionar partes dotexto, comparar dois textos,realizar inferncias e snteses(Ribeiro, 2003).

    18 Pesquisa encomendada pelaAssociao Brasileira de Celu-lose e Papel, Sindicato Nacio-nal dos Editores de Livros, C-mara Brasileira do Livro e Asso-ciao Brasileira de Editores deLivros, em 2000-01.

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    Entre elas, as revistas relativas ao universo

    cultural feminino (feminina, adolescente,

    sade, puericultura, trabalhos manuais,

    moda, horscopo 1.750.041), revistas re-

    lativas ao mundo dos games e infanto-ju-

    venis (1.317.050), juntamente com as re-

    vistas destinadas ao segmento de interes-

    sados em televiso e sociedade (1.288.232),

    destacam-se como as campes em venda.

    Nesse sentido, esse mercado, embora tmi-

    do em relao a outros pases, na maioria

    desenvolvidos, parece ser tambm um

    exemplo significativo que expressa o cres-

    cimento de uma cultura de massa letrada

    no Brasil.

    J na dcada de 70, Ecla Bosi, em seu

    clssico Cultura de Massa e Cultura Popu-

    lar, apontava que as revistas faziam parte

    do universo de leitura das operrias. Te-

    mas sentimentais, horscopo, religio e

    moda eram os mais presentes. Seria impor-

    tante ressaltar aqui que a prtica entre elas

    estava associada compra e constante

    troca e circulao dos exemplares. Nesse

    sentido, possvel inferir um efeito multi-

    plicador desses nmeros (19).

    Em 2000, segundo oAnurio Estatsti-co de Mdia, comercializaram-se 931 ttu-

    los de revistas, sendo os que mais se desta-

    cam, como foi visto anteriormente, os refe-

    rentes a um segmento feminino e adoles-

    cente. No entanto, expressivo o nmero

    de 370 ttulos relativos a revistas que pode-

    riam ser qualificadas tambm comopara-

    didticas. Ou seja, revistas de vulgariza-

    o de saberes e competncias, conselhos,

    dicas de estilos de vida variados, compe-

    tindo com as orientaes que podem e de-

    vem ser adquiridas nas escolas. Tal como

    verificado com a mdia televisiva e radio-

    fnica, a produo de entretenimento im-

    presso, via revistas especializadas, amplia

    o acesso informao para um pblico

    diversificado e jovem

    Os ttulos mais relevantes, em termos

    numricos, se encontram na rea da arqui-

    tetura, decorao e paisagismo (49), infor-

    mtica/games (33), construo e engenha-ria (29), arte, cultura e educao (20), entre

    outros (20). Assim, seria interessante cha-

    mar ateno para o fato de que todas elas

    disponibilizam, nas bancas de jornal, pe-

    ridica e sistematicamente, um conjunto

    de preceitos ou princpios de conduta que

    ajudam a orientar os comportamentos de

    seus leitores. como se essas revistas ofe-

    recessem informaes e conhecimentos

    para um pblico heterogneo, conheci-

    mento este antes restrito a um universo de

    peritos. Poderia afirmar, nas categorias

    de Anthony Giddens (1991), que elas esta-

    riam servindo para publicizar, com a TV

    e demais produtos miditicos, uma educa-

    o fora dos eixos tradicionais, possibili-

    tando um aprendizado, e uma circulao

    do saber, fora da escola.

    MEIOS DE COMUNICAO DE

    MASSA: UMA ABORDAGEM

    EDUCATIVA

    A TV, ainda que tenha uma histria mais

    recente, e com vocao educativa menos

    explcita, com o passar dos anos, sem queo perseguisse, acabou por ser uma til fer-

    ramenta na educao de nosso imaginrio

    social. As produes seriadas, as novelas,

    programas de entrevistas ou showsde varie-

    dades, conseguiram conquistar a audincia

    de milhares de brasileiros, e como cultura

    de massa, acabou por servir como espao

    de produo de um conhecimento e de uma

    leitura sobre o Brasil e seu povo.

    Segundo pesquisas (Ortiz, Borelli, Ortiz

    Ramos, 1989), a TV e sua programao

    eram vistas como um empreedimento de

    grande valor pedaggico. Logo no seu in-

    cio, na dcada de 50, herdeira de uma est-

    tica literria do teatro e do cinema, muitas

    vezes engajada e comprometida com um

    ideal de cultura das elites, a TV conta com

    uma produo forte de teleteatros e com a

    colaborao de uma srie de dramaturgos

    de renome (21). Ainda pouco comercia-

    lizvel, pois s alcanava um pblico res-trito, tinha espao para produes de car-

    ter mais experimental (Ortiz, Borelli, Ortiz

    Ramos, 1989) (22).

    19 Atualmente, em relao leitu-ra de jornais, h muito reconhe-cida como leitura legtima, deum pouco mais de 1.000 ttu-los em circulao, em todo oterritrio nacional, em mdia42% tm como hbito l-los, ouseja, praticamente a mesma por-centagem de indivduos com 8ou mais anos de escolaridade.

    No entanto, importante colo-car as diferenas dessa prticaentre as grandes capitais. Se-gundo o Ibope, os cariocas(69,8%), os recifenses (65,1%),seguidos dos moradores de Por-to Alegre (64,4), so os quemais tm o gosto pela leitura dejornais. Fortaleza destaca-secom um ndice de apenas25,7% de leitores.

    20 Interesse geral/atual (66), eco-nomia/negcios (49), arquite-tura/decorao/paisagismo(48), medicina/odontologia(44), informtica/games (33),

    agropecuria (36), alimenta-o/bebidas/gastronomia(29), auto/moto (29), constru-o/engenharia (29), market-ing/propaganda (29).

    21 Victor Hugo, Alexandre Dumas,A. J. Cronin, Charles Dickens,entre outros.

    22 Vale ressaltar que na dcadade 50 o Brasil contava apenascom 2.000 aparelhos de TV eem 1955, 170 mil; vinte anosdepois, ou seja, 1975, com 10milhes.

    23 Segundo pesquisa da Marplan,

    entre pessoas de 15 a 64 anos,o gosto pelos programas deauditrio vem sofrendo quedas.Entre as classes A e B, em1994, 64% diziam ter interes-se por programas de auditrio.Agora, esse percentual caiu

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    No entanto, a partir de 1960, a telenove-

    la, devedora dos folhetins melodramticos

    de origem europia e das radionovelas la-

    tinas, faz carreira sob o estigma de ter apelo

    popular e baixa qualidade. sabido que

    nos governos militares o Estado autoritrio

    passa a se preocupar com assuntos de cul-

    tura, procurando realizar diretrizes que fa-

    voream o desenvolvimento de uma cultu-

    ra brasileira, de uma identidade nacional

    compatvel com suas premissas coerciti-

    vas. Na ocasio, o ministro da Educao

    Jarbas Passarinho sublinhava que seria ideal

    existir entre ns uma cultura que se fundas-

    se na crena da nacionalidade e no uma

    cultura importada, uma forma de colonia-

    lismo cultural. Em protocolo assinado pelaRede Globo e pelas Emissoras Associadas,

    nos idos de 1975, o documento evidenciava

    a ao conjunta do Estado e das emissoras

    para abafar o que Muniz Sodr (1989) qua-

    lificou de esttica do grotesco. Protocolo

    que visava a uma profilaxia cultural, inter-

    vindo sobre programas que chocavam o

    bom gosto de camadas mais educadas

    (Ortiz, Borelli, Ortiz Ramos, 1989). Relacio-

    nava ainda uma srie de proibies comoapresentar em qualquer programa pessoas

    portadoras de deformaes fsicas, mentais

    e morais; quadros, fatos ou pessoas que sir-

    vam para explorar a crendice ou incitar a

    superstio, bem como falsos mdicos, cu-

    randeiros ou quaisquer tipos de charla-

    tanismo; comentar de forma sensacionalis-

    ta, ou depreciativa, problemas, fatos, suces-

    sos de foro ntimo ou da vida particular de

    qualquer pessoa (Miceli, 1973) (23).

    Nas dcadas de 50 e 60, no entanto, e

    anos seguintes, um conjunto de iniciativas,

    como o programa infantil Vila Ssamo e as

    novelasJernimo, o Heri do Serto eMeu

    Pedacinho de Cho, destacou-se com na-

    tureza de utilidade pblica (Ortiz, Borelli,

    Ortiz Ramos, 1989). Mais recentemente,

    as novelasRei do Gado, O Clone e Espe-

    rana, trabalhando com temticas polmi-

    cas, entre elas, MST, drogas, inseminao

    artificial, imigrao, sindicalismo, entreoutros, reinauguram as disposies edu-

    cativas da TV em um dos seus gneros

    menos prestigiados, a novela.

    No que se refere programao contro-

    vertida dos programasde auditrio, shows

    que muitas vezes associam espetculos de

    msica e dana, games-shows entre cele-

    bridades ou pblico em geral e/ou curiosi-

    dades fantsticas, desde seu surgimento, fo-

    ram criticados como sensacionalistas e gro-

    tescos (Sodr, 1985; Bucci, 2002). Desde

    meados da dcada de 50 na TV, sofrendo

    alguns reveses mas sempre voltando

    telinha, essa programao recorrentemen-

    te alvo de crtica ainda que campe de

    audincia (Mira, s/d). No entanto, tentando

    compreender esta to criticada verso do

    entretenimento, deveramos buscar um

    pouco de sua histria. possvel conside-

    rar que, fugindo do modelo de uma diver-so legtima, sria e elevada, a programa-

    o popular sempre foi mal interpretada

    pelos crticos. No obstante, temos algu-

    mas excees. Mikhail Bakhtin (2003) e

    Peter Burke (1983), recuperando a histria

    da cultura popular na Europa, como tam-

    bm Renato Ortiz (1992) e Maria Celeste

    Mira (s/d), recuperando a verso da cultura

    popular nas manifestaes da cultura de

    massa, no Brasil, salientam que houve umaincompreenso e/ou desconhecimento das

    elites intelectuais em relao ao lazer dos

    segmentos populares. Afastando-se do

    universo e do cotidiano popular e ignoran-

    do as matrizes dessa tradio, grande parte

    das crticas acabou entendendo o grotesco

    popular como mau gosto. Ignorando o

    sentido divulgado por Bakhtin sobre o gro-

    tesco, essa forma pardica de interpretar o

    mundo em sua ambigidade acaba-se por

    reduzir e simplificar o gosto popular como

    baixo, vulgar, enfim, grotesco. Para uns a

    chamada programao sensacionalista sig-

    nifica falta de cultura, para outros significa

    explorao da misria social (Mira, s/d).

    Como explorarei no prximo item, esque-

    cem que, ao assim classificar a programa-

    o, esto construindo barreiras entre duas

    formas de conceber a cultura. A cultura

    hegemnica, burguesa e letrada e a cultura

    popular de massa (24).Cabe relatar neste item tambm a evo-

    luo dos usos do rdio e do cinema como

    veculos educativos. Se historicamente

    para 57%. Entre as classes C,D e E, o interesse manteve-seestvel ou aumentou, 76% e77%, respectivamente (Suple-mento Mais!, Folha de S. Pau-lo, 1998).

    24 Mas pode-se falar ainda deuma outra faceta da TV, ou seja,sua extraordinria tradio emTelecursos. Uma pesquisa maisaprofundada sobre o tema ain-da est por ser feita.

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    surgem no Brasil como um privilgio daselites, tal como os livros e a TV, aos pou-

    cos, em funo do potencial educativo e de

    entretenimento, conquistam o pblico e

    sucessivos governos, passando a ser vistos

    como instrumentos de integrao cultural

    e poltica (Espinheira, 1934;Revista USP,

    2002-03). interessante observar que na

    dcada de 20 at os anos 90, desde oMani-

    festo dos Educadores, com as polticas

    nacionalistas do perodo, bem como at

    hoje, governos e intelectuais debatem os

    meios de comunicao como estratgicos

    no projeto de construo de um ideal de

    Brasil (Franco, 2000; Ortiz, Borelli, Ortiz

    Ramos, 1989).

    Historicamente, importante lembrar,

    no obstante, que, no que se refere ao rdio,

    desde a primeira emisso, em 1924, no Rio

    de Janeiro, ele j despertava, entre seus

    incentivadores, sua vocao educativa. A

    histria do rdio e seu talento para uni-versalizar informaes e promover uma

    cultura local parecem se confundir a todo

    tempo. Com Edgar Roquete-Pinto e seu

    brao direito na rea da Rdio Difuso Edu-

    cativa, Ariosto Espinheira, at os dias atu-

    ais, com uma diversidade grande de pro-

    postas educativas, o rdio cumpre sua fun-

    o de favorecer o acesso de uma popula-

    o marginalizada do processo escolar.

    Alguns exemplos recentes expressam essa

    realidade. Em 1998, o Programa Serto

    Semi-rido, promovido pela Sudene e rea-

    lizado pela Escola do Futuro (USP), com a

    proposta de divulgar conhecimentos sobre

    plantio na regio, bem como informaes

    teis para se evitar doenas comuns na rea;

    Educomunicao nas Ondas do Rdio,

    iniciativa do Ncleo de Educao e Comu-

    nicao da ECA-USP, com o projeto de

    integrar a comunidade e a escola a partir daproduo e emisso de programas radiof-

    nicos, est em andamento em vrias esco-

    las pblicas da cidade de So Paulo, e Sin-

    tonia Sesc-Senac, programa de difuso

    aberta, desde os anos 70, hoje contando com

    a colaborao de aproximadamente 400

    emissoras pelo Brasil, com o objetivo de

    divulgar conhecimentos gerais e de utili-

    dade pblica, entre outras.

    Da mesma forma, o cinema, emboraconstituindo-se de uma mdia de alto custo

    e portadora de tecnologia moderna, cons-

    truiu sua maneira uma interface com a

    educao. Juntamente com o rdio, o cine-

    ma sofreu investimentos com a inteno de

    modernizar o modelo educativo brasileiro.

    Com o movimento escolanovista e com o

    apoio dos governos populistas, o cinema

    surge como um veculo promotor de cultu-

    ra e lazer. Com a criao do Instituto Na-

    cional de Cinema Educativo (Ince), em

    1937, at seu fechamento em 1966, esse

    organismo promoveu uma mdia de 30 fil-

    mes realizados por ano, com a durao de

    10 minutos. Quase em torno de 1,5 longa-

    metragem por ano. Com ttulos variados,

    mas sem um eixo pedaggico explcito, o

    Incefoi mais um instrumento pouco efici-

    ente, entretanto extremamente moderno

    para a poca, que os governos tentaram usar

    para controlar e impor uma educao dese-jada (Franco, 2000; Saliba, 2003).

    Atualmente, a produo cinematogr-

    fica e seu potencial pedaggico ainda so

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    REVISTA USP, So Paulo, n.61, p. 58-77, maro/maio 2004 69

    pouco utilizados. Servindo mais como fon-

    te de entretenimento e menos como vecu-

    lo formador, o cinema, como j foi visto,

    no se encontra entre os hbitos de lazer de

    preferncia do brasileiro mdio. No entan-

    to, pode-se encontrar importantes iniciati-

    vas localizadas. A parceria entre a Funda-

    o Abrinq e a Natura desenvolve o Projeto

    Cinema e Vdeo Brasileiro na Sala de Aula.

    Com o objetivo de capacitar professores e

    organizar um acervo, alunos da rede pbli-

    ca podero aprender a linguagem do vdeo

    e produzir seus prprios documentrios.

    Paralelo a isso, o Espao Unibanco de Ci-

    nema j h algum tempo vem disponibili-

    zando para grupos de estudantes e seus pro-

    fessores o acesso a obras em cartaz ou queconstem do seu arquivo. J h mais tempo

    a Fundao para o Desenvolvimento da

    Educao (FDE), com um acervo variado e

    voltado muitas vezes para obras de carter

    mais pedaggico, oferece a todos os inte-

    ressados o acesso a um material cinemato-

    grfico de qualidade (25).

    Embora cultivado e consagrado pelos

    setores mais escolarizados, o livro , sem

    dvida, um produto da cultura de massa eh muito tempo tenta se popularizar, no

    Brasil, a partir de polticas pblicas da rea

    da educao. possvel observar que o li-

    vro didtico e paradidtico esteve presen-

    te, entre ns, desde a dcada de 20 com o

    empenho do editor Francisco Alves. Nessa

    mesma poca assistimos a outros investi-

    mentos no setor, com a criao da Compa-

    nhia Editora Nacional. interessante res-

    saltar que, na ocasio, livros didticos divi-

    diam espao com ttulos que prescreviam

    hbitos de higiene e informaes sobre

    cuidados com o lar e a infncia. Preocupa-

    dos em difundir o hbito da leitura para

    amplos segmentos da populao, inverte-

    ram ainda recursos nas colees Paratodos,

    Biblioteca das Moas, com 176 ttulos, e a

    coleo Terramarear, alimentando assim

    um tipo de leitura de entretenimento diver-

    sificado para os jovens leitores brasileiros.

    preciso lembrar tambm que na dcadade 50 verifica-se um aumento de 143% no

    setor grfico brasileiro, com um volume de

    66 milhes de exemplares, para uma popu-

    lao de 50% de analfabetos. Mais de 25

    anos depois, em 1985, o Brasil contava com

    400 editoras, responsveis pela produo

    de 160 milhes de exemplares, em um pas

    que ainda resistia com quase 29% de anal-

    fabetos. H 10 anos, em 1993, o Brasil pro-

    duzia 300 milhes de livros (Hallewell,

    1985; Mira, 1995).

    Em 2002, o volume de vendas chegou a

    quase 339 milhes e aproximadamente 40

    mil ttulos. Com 530 editoras ativas e com

    cerca de cinco mil pontos-de-venda (en-

    globando papelarias, bazares, supermerca-

    dos, lojas de convenincia), dos quais 1.700

    so livrarias na acepo clssica do termo,

    o brasileiro tem acesso a apenas 1,8 livro

    por ano (26). Com um mercado mais seg-mentado, segundo o relatrio da Cmara

    Brasileira do Livro, a produo de livros

    didticos, quase 50% da produo nacio-

    nal, vendeu 161 milhes de livros, com

    12.800 ttulos. No item obras gerais, a

    venda chegou a quase 110 milhes de exem-

    plares, com 10.750 ttulos. No setor de li-

    vros religiosos, a circulao alcanou apro-

    ximadamente 30 milhes de unidades, com

    5 mil ttulos. Por ltimo, o setor de livroscientficos, tcnicos e profissionais che-

    gou expressiva venda de 21 milhes de

    unidades, com 11 mil ttulos. Para o argu-

    mento deste artigo seria interessante cha-

    mar ateno para o crescente volume de

    livros de caracterstica prescritiva e de

    auto-ajuda presentes sob a rubrica dos t-

    tulos religiosos.

    Para nosso estudo seria interessante ain-

    da ressaltar que a busca do leitor fora dos

    templos tradicionais de venda, as livrarias,

    tem tambm sua histria no Brasil. A edito-

    ra paulista LER, na dcada de 30, e a Editora

    Martins Fontes, o Clube do Livro e a Editora

    Saraiva, nos anos 40, foram pioneiros na

    venda em domiclio de enciclopdias, livros

    clssicos da literatura brasileira e interna-

    cional (Hallewell, 1985; Mira, 1995). Hoje,

    a herana parece permanecer pois os espa-

    os para compras mantm-se bastante di-

    versificados. Livrarias, bancas de jornais,farmcias, metrs e pequenas lojas de con-

    venincia expandem o acesso a este bem de

    consumo de massa (27).

    25 No cabe neste artigo relatartodas as iniciativas educativasconhecidas do rdio e do cine-ma. No entanto, vale a penaum esforo sistemtico a fim deanalisar essas propostas.

    26Inglaterra (4,9); EUA (5,1);Frana (7); Itlia (5).

    27 Em recente pesquisa, foi poss-vel identificar que o mais novoponto-de-venda de livros seencontra em algumas estaesdo metr. Trata-se de um em-preendimento exploratrio que, maneira das mquinas quevendem refrigerantes e salga-dinhos, vende, por sua vez, li-vros de bolso, nos valores detrs, cinco e nove reais. Os ttu-los mais vendidos so relativosa sade, a informtica e a cons-tituio brasileira.

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    A titulo de curiosidade, considero im-

    portante registrar ainda que a primeira edi-

    tora brasileira, nos idos de 1862, ostentava

    ttulos de grande apelo popular como:Di-

    cionrio de Medicina Domstica, Sucintos

    Conselhos s Jovens Mes para o Trata-

    mento Racional de seus Filhos, Coleo

    Completa de Mximas, Pensamentos e

    Reflexes (Hallewell, 1985; Mira, 1995).

    Nesse sentido, o Brasil parece ter uma lon-

    ga tradio em leituras e entretenimentos

    que poderiam ser classificados como para-

    didticos ou populares. Uma literatura f-

    cil, de alto carter educativo e comporta-

    mental, que parece conquistar mais espao

    em nosso pblico do que o conhecimento e

    o gosto pela literatura clssica e eruditapromovidos pela escola. Um outro exem-

    plo interessante da circulao de livros

    menos nobres no Brasil refere-se Li-

    vraria do Povo. Fundada em 1879, no Rio

    de Janeiro, comercializava livros usados e

    era freqentada por estudantes e escritores

    desconhecidos (Hallewell, 1985; Mira,

    1995). Em seu clssico Cultura Popular

    na Idade Moderna (1989), Peter Burke vai

    salientar que a alfabetizao crescente vi-vida na ocasio do Renascimento, na Euro-

    pa, no tivera as conseqncias que os re-

    ligiosos supunham. Os camponeses liam

    livros pequenos de no mximo 30 pginas,

    almanaques, folhetos de notcias. Leitura

    simples, vocabulrio relativamente peque-

    no e construes no elaboradas. Nesse

    sentido, conclui Burke, a imprensa ampliou

    ao invs de destruir a cultura popular tradi-

    cional. Ainda que no se possa fazer uma

    analogia direta com a realidade atual no

    Brasil, seria interessante colocar que a ex-

    panso de um pblico leitor cultivado

    resultado de sculos de educao. Por ora,

    o que se tem, e j no pouco, expresso

    de uma significativa demanda de informa-

    es e saberes especializados.

    No obstante, para finalizar este item,

    caberia registrar que o aspecto formador e/

    ou educativo de um imaginrio ficcional

    das mdias no prerrogativa da culturabrasileira. Martn-Barbero (1995) salien-

    tava, nos anos 80, que a cultura de pases

    como Mxico (cinema), Argentina (rdio),

    Chile (jornal) e Brasil (msica) se consti-

    tuiu a partir de uma configurao cultural

    bastante semelhante. Isto , os meios de

    comunicao de massa se fazem presentes

    na nossa histria, construindo uma cultura

    hbrida em que se mesclam referncias da

    cultura erudita, da cultura popular e da

    cultura de massa. Este amlgama entre as

    culturas seria ento constitutivo nas confi-

    guraes latino-americanas.

    OS SENTIDOS DA CULTURA

    Para o desenvolvimento do argumento

    deste artigo seria interessante ainda fazeruma breve digresso sobre a noo de cultu-

    ra, e, nesse sentido, creio que Thompson

    (1995) oferece algumas pistas importantes.

    Fazendo um breve apanhado da hist-

    ria desse conceito, Thompson registra que

    uma das primeiras utilizaes da noo

    remetia idia de cultivo ou cuidado de

    algum elemento, tal como gros e animais

    (at 1500), e, mais recentemente, o cultivo

    da mente humana (1500 em diante). A dis-tino entre cultura (bens espirituais) e ci-

    vilizao (bens materiais), to bem funda-

    mentada por Norbert Elias (1990), docu-

    mentou ainda os sentidos variados da no-

    o de cultura em pases europeus, como

    Inglaterra, Frana e Alemanha (Thompson,

    1995, p. 167; Elias, 1990, pp. 21-5).

    Para nosso interesse, vale ressaltar, no

    obstante, que a noo de cultura sempre

    carregou um forte vis evolucionista e

    etnocntrico. Ou seja, grande parte dos pres-

    supostos desta noo so forjados dentro

    de uma tradio iluminista que favoreceu o

    sentido elitista e restrito do conceito (Mar-

    tn-Barbero, 2003; Bollme, 1988; Bour-

    dieu, 1979, Cuche, 2002). Para essa tradi-

    o a cultura expressa a idia de desenvol-

    vimento, enriquecimento, evoluo, um

    salto em relao a outros estgios anterio-

    res de civilizao. At hoje no difcil

    encontrar fortes vestgios dessas represen-taes entre ns. S muito recentemente a

    noo de cultura assumiu o sentido de um

    processo ou produto de um esforo materi-

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    al e espiritual de indivduos ou de grupos

    (Thompson, 1995; Canclini, 1983). Nesse

    sentido, para dar continuidade a essa ques-

    to o autor concebe quatro tipos bsicos de

    concepo do conceito de cultura (28).

    Vale salientar, no entanto, que esse autor

    constri uma particular concepo, que

    denomina concepo estrutural de cultu-

    ra. Ou seja, para ele, preciso dar nfase

    ao carter simblico dos fenmenos cultu-

    rais bem como ainda relacion-los a con-

    textos e processos histrica e socialmente

    estruturados.

    Assim, a concepo estrutural de cultu-

    ra de Thompson d nfase ao carter sim-

    blico dos fenmenos culturais mas os

    considera inseridos em contextos estrutu-rais especficos. Ou seja, entende a anlise

    cultural como o estudo das formas simb-

    licas aes, objetos, expresses signifi-

    cativas diversas em relao a contextos e

    processos historicamente especficos e so-

    cialmente estruturados, em que as formas

    simblicas so produzidas, difundidas e

    consumidas. Enfatiza que os contextos s-

    cio-histricos so muito variados, poden-

    do estar estruturados de vrias maneiras.Segundo ele, por exemplo, estruturados

    pelas relaes de poder, acesso diferencia-

    do a recursos e oportunidades sociais, etc.

    Dessa maneira, o que interessa salientar

    que, ao conceber a anlise dos fenmenos

    culturais da modernidade, contextualizando

    um momento histrico e social especfico,

    Thompson concebe a cultura sendo produ-

    zida em uma sociedade hierarquizada, mar-

    cada por profundas diferenas sociais, com

    uma injusta distribuio de poder e privil-

    gio. A concepo estrutural de cultura pro-

    pe ento uma anlise em que as relaes de

    poder estejam presentes. Para essa viso, os

    fenmenos culturais expressam sobretudo

    um terreno de disputa social. Compreender

    a cultura de nosso tempo uma pista para

    compreender a sociedade em que vivemos,

    seus conflitos, lutas internas, jogos de inte-

    resses, medos e fantasias. Essa viso conce-

    be toda expresso cultural das sociedadescontemporneas com a capacidade de fazer

    um diagnstico da histria de uma poca e

    de uma sociedade.

    Nestor Canclini (1983), emAs Culturas

    Populares no Capitalismo, contribui tam-

    bm para pensarmos o conceito de cultura

    nas sociedades globalizadas e hierarqui-

    zadas. Colocando-se o desafio de compre-

    ender a especificidade das culturas latino-

    americanas, Canclini alerta para a necessi-

    dade de refletirmos sobre elas a partir de um

    pressuposto poltico, ou seja, a cultura como

    um campo de tenso, um campo de luta sim-

    blica, onde diferentes interesses de classes

    ou de fraes de classes so expressos de

    maneira velada pelo conflito entre represen-

    taes sobre o mundo social (29).

    Canclini desenvolve uma noo de cul-

    tura que corrobora a anterior de Thompson.

    Cultura para ele no pode ser sinnimo deformao social, isto , forma de sociedade

    unificada a partir dos valores dominantes.

    A noo de cultura no pode se reduzir s

    manifestaes das instituies e modelos

    de comportamento de uma formao so-

    cial. Para ele, necessrio criar um defini-

    o mais eficaz, uma definio que enten-

    da a cultura enquanto processo. Cultura

    como sendo resultado de todas as prticas

    e instituies dedicadas administrao,renovao e reestruturao de sentidos.

    Posto isso, a produo simblica, a pro-

    duo dos sentidos, a produo das cate-

    gorias do pensamento e do julgamento re-

    meteriam s estruturas materiais de exis-

    tncia dos indivduos, suas condies de

    trabalho, de estudo, de lazer, de origem fa-

    miliar, etc. A cultura no representaria

    apenas em smbolos e imagens uma socie-

    dade. A cultura seria ento espao de pro-

    duo de sentidos e valores que ajudariam

    na reproduo das relaes entre os gru-

    pos, ajudariam na transformao e na cria-

    o de novos e outros sentidos e valores.

    Dessa forma, a cultura enquanto pro-

    cesso vista no s nos atos deproduo,

    mas nos atos que envolvem a divulgao e

    promoo da criao, bem como nos atos

    de recepo. A cultura no se reduziria

    objetos, smbolos ou bens materiais de uma

    sociedade, mas se apresentaria tambmcomo resultado das diferenas de sentido

    ou diferenas de significados e usos entre

    os diferentes indivduos que a consomem.

    28 primeira concepo d o nomede clssica. Remetendo ao quej foi dito anteriormente, a ex-pressocultura revela um proces-so de desenvolvimento e eno-brecimento das faculdades hu-manas, um processo facilitadopela assimilao de trabalhosacadmicos e artsticos e ligado

    ao carter progressista da eramoderna. A segunda concep-o, segundo Thompson, aque-la referente a uma viso antropo-lgica (1800-1900) subdivididainternamente entre concepodescritiva e concepo simbli-ca. Para ele, a concepo des-critiva entende a noo de cultu-ra como o conjunto inter-relacio-nado de crenas, costumes, for-mas de conhecimento, instrumen-tos materiais, arte, etc., que soadquiridos pelos indivduos en-quanto membros de uma socie-dade particular e que podem serestudados cientificamente. Preo-

    cupa-se com a anlise, a classi-ficao e a comparao dos ele-mentos constitutivos das diferen-tes culturas para traar o desen-volvimento da espcie humana.Seus expoentes maiores seriamTylor e Malinowski (1930-40).A concepo simblica da no-o de cultura, baseada sobre-tudo nas contribuies de CliffordGeertz, considera que o homem um animal suspenso em teiasde significados. Cultura a teiade significados produzidos pe-los homens e sua anlise cons-titui uma cincia interpretativaem busca de significados. Se-

    gundo Thompson, o intrprete,o pesquisador, tenta entendero que dito e vivido, explicaro significado das aes e pr-ticas culturais. A anlise cultu-ral seria ento a elucidaodestes padres de significado.Embora Thompson apie-se nascontribuies de Geertz, apontaalgumas limitaes. Ou seja,aponta para uma certa impreci-so nos conceitos, a limitaode uma interpretao fechadanos prprios textos ou smbolos esobretudo chama ateno sobrea falta de uma contextualizaoscio-histrica dos eventos cultu-rais. Geertz, segundo Thompson,no se preocupa com os signifi-cados divergentes e conflitantesque as expresses simblicaspodem assumir. No d desta-que s relaes de poder, aosconflitos internos relativos pro-duo de cultura, produode significados.

    29 Canclini um mexicano que in-troduziu a noo de culturas h-bridas no debate cultural. Em seulivro homnimo, faz uma discus-so sobre a especificidade dasculturas latino-americanas que seforjaram a partir do sincretismode vrias matrizes culturais, eu-ropia, nas suas verses eruditae popular, tnicas, negra e ndiae, mais recentemente, a culturade massa, globalizada e inter-nacionalizada.

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    CULTURA POPULAR E CULTURA

    DE ELITE

    Por ltimo, para pensar a cultura en-

    quanto processo de reproduo, transfor-

    mao e criao cultural, bem como espa-

    o de uma luta simblica, o que mais nos

    interessa nesta reflexo atentar para o fato

    de que os sistemas sociais no se reprodu-

    zem espontaneamente submetidos apenas

    a constantes estratgias de dominao de

    ordem material e de ordem fsica. Para

    Canclini, seria necessrio ainda investir no

    controle simblico das prticas culturais

    (Canclini, 1983; Bourdieu, 1979). Ou seja, necessrio investir em estratgias de im-

    posio de normas e padres culturais que

    ajudam a legitimar a ordem social vigente

    a partir de mecanismos que legitimem e

    reifiquem consensos. No obstante, quais

    seriam as prticas que possibilitariam a

    naturalizao de uma ordem cultural?

    Tentando desenvolver este argumento,

    valeria a pena recuperar um pouco da his-

    tria dos conceitos cultura popular e cultu-ra de elite. Em O Povo por Escrito (1988),

    Gennevive Bollme denuncia a ambigi-

    dade do conceitopopular. A autora identi-

    fica a impreciso, a grande variabilidade

    nas formas de se conceber a noo de po-

    pular. Para nosso objetivo aqui importan-

    te colocar que Bollme apresenta uma hi-

    ptese bastante interessante. Para ela, cul-

    tura popular deve ser apreendida como uma

    relao. Ou seja, a cultura popular explicita

    uma forma de interpretar aquilo que rela-

    tivo ao povo, ao popular. Mais do que isso,

    a palavrapopular faz mais do que simples-

    mente designar uma relao, ela acusa. Para

    a autora, a palavra popular expressa um

    julgamento, uma tomada de posio, que

    retira elementos do conjunto de uma cultu-

    ra e os classifica segundo alguns padres.

    Uniformidade, homogeneizao, pouca ela-

    borao, simplicidade, adjetivos que po-

    dem desclassificar estes elementos segun-do julgamentos exteriores a ele. como

    que se a palavrapopular fosse um reativo,

    ou seja, como se cultura popular se opu-

    sesse ao sentido da palavra cultura na sua

    acepo iluminista, aquela concebida sob

    o registro da cultura culta. Tornar-se-ia

    popular ento a cultura que sofre uma ava-

    liao segundo seus usos, sua identifica-

    o, sua apreenso pelas classes populares.

    Nesse sentido, tudo pode ser popular (cul-

    tura, literatura, msica, a cultura de massa)

    desde que seja apropriada pelo grupo que

    denominamos popular (30).

    Mais importante que isso, a noo de

    popular, segundo Bollme (1988) e Martn-

    Barbero (2003), grande parte herdeira da

    viso dos romnticos, deriva da idia de

    comunidade orgnica, pura, autntica, uni-

    da por laos naturais e telricos. Nesse sen-

    tido, ao mesmo tempo que os autores doromantismo recuperam positivamente o

    conceito, pois o concebem como uma ma-

    nifestao pura e imaculada, o conceito

    popular reduzido a uma autenticidade ou

    ausncia de contaminao/hibridizao

    com a cultura hegemnica e/ou dominante.

    E, ao reforar essa autonomia, ao negar a

    circulao cultural das manifestaes po-

    pulares, o que realmente se nega o pro-

    cesso histrico de formao do popular, ocarter de sua hibridizao. Nesse sentido,

    preciso chamar ateno para o fato de que

    se a cultura popular for concebida longe da

    dinmica histrica, ao se recusar o sentido

    processual e relacional das expresses, o

    que se resgata uma cultura que no pode

    olhar seno para o passado, uma cultura-

    patrimnio, ou seja, folclore de arquivo ou

    de museu nos quais conserva a pureza ori-

    ginal de um povo primitivo (Bollme, 1988;

    Martn-Barbero, 2003).

    Vemos assim que a qualidade, o em-

    prego ou o modo pelo qual somos levados

    a entender ou a apreciar uma cultura como

    popular no dependem absolutamente do

    que ela em si mesma, mas da essencial

    relao que temos com ela. Dizer que

    popular uma cultura explicitar uma rela-

    o que expressa uma diviso nos padres

    culturais que conhecemos. Declarar po-

    pular uma cultura ou um objeto afirmaruma relao, engajar-se assim em um

    discurso classificador que, por um lado,

    estabelece fronteiras entre a cultura letra-

    30 Assim, chamar de popular umacultura, por mais volumosa edisparatada que seja, reduzi-la uniformidade de um julga-mento mas tambm glorific-la pois popular tambm aqui-lo que agrada a todos. Daresulta ser a palavra popularuma faca de dois gumes, quepode explicitar ao mesmo tem-po sucesso mas tambm simpli-cidade e superficialidade.Nada mais fugaz, com efeito,do que a popularidade.

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    REVISTA USP, So Paulo, n.61, p. 58-77, maro/maio 2004 73

    da, culta, a cultura dita emancipadora,

    valorizada pelas instituies legitimadoras

    e, por outro, a cultura estigmatizada, a

    cultura dos outros, a cultura daqueles

    que precisam colonizar seus espritos, ou

    seja, os incultos.

    Bourdieu (1979, 1998), de uma certa

    forma, nos anos 60, j denunciava as bar-

    reiras e hierarquias culturais existentes nas

    sociedades capitalistas ocidentais ao criar

    o conceito capital cultural. Em Os Trs

    Estados do Capital Cultural (1998), na in-

    teno de definir e apreender as represen-

    taes que temos em relao cultura legi-

    timada, aquela adquirida em anos de esco-

    laridade, acaba por instituir as trs dimen-

    ses do capital cultural, ou seja, capital

    cultural incorporado, capital cultural

    objetivado e capital cultural institucio-

    nalizado (31). Creio que a forma como

    Bourdieu define esse novo tipo de moeda

    social, a saber, a cultura derivada de um

    esforo educativo, ajuda a compreender o

    carter classificador e elitista, mgico e

    portanto arbitrrio que fazemos de seus

    portadores.

    Dando continuidade a reflexes crti-cas sobre o papel da escola (Althusser,

    1988), mas imprimindo um carter mais

    original nas discusses, Bourdieu, na maio-

    ria de seus textos sobre a questo educaci-

    onal, pe em xeque a iluso meritocrtica

    da escola, relacionando poder cultural/es-

    colar com poder social e simblico. Ou seja,

    denunciou que a escola, contribuindo para

    a reproduo das diferenas sociais, tam-

    bm contribui para a manuteno das hie-

    rarquias de poder e privilgios das socieda-

    des capitalistas.

    Nesse sentido, para se compreender a

    fora do conceito capital cultural na obra

    de Bourdieu seria interessante reafirmar que

    ele o compreende como uma traduo ou

    desdobramento do capital econmico. Ou

    seja, mesmo no sendo irredutvel a este,

    capital cultural constitui-se em um novo

    capital, em uma nova forma de poder e

    recurso social de distino. Em uma socie-dade onde a herana e os privilgios no se

    realizam apenas nas propriedades e/ou nos

    ttulos de nobreza, surgem outras formas

    de hierarquizar os indivduos. A saber, a

    cultura e a educao em seu sentido ilumi-

    nista. como se o entendimento dessa

    noo de cultura fosse um produto histri-

    co de um consenso, produto coletivo da

    aceitao do mito de uma cultura univer-

    sal, dominante, no entanto uma cultura res-

    trita e prerrogativa de uma classe. O prop-

    sito de uma razo universal, hegemnica,

    constitutiva do imaginrio produzido pela

    burguesia e suas instituies de manuten-

    o do poder, capaz de converter este

    mundo restrito em um mundo universal e

    sua cultura na cultura de todos.

    Assim, possvel afirmar que Bourdieu

    considera o capital cultural to importante

    quanto o capital econmico, ambos recur-sos ou fontes de poder e privilgio de uma

    classe. Para ele, o campo da cultura um

    espao de luta e competio tal como o cam-

    po econmico; a posse dos bens simblicos

    como a posse dos bens materiais, smbolos

    de distino, signos de diferenciao, ele-

    mentos que hierarquizam e criam barreiras

    entre os indivduos de diferentes grupos

    sociais, possuidores de diferentes recursos.

    Posto isso, a cultura, no sentido espec-fico utilizado por Bourdieu, ou seja, fonte

    de um saber legitimado e institucionalizado,

    no apenas um sistema que oferece sig-

    nos e um cdigo de comunicao ou cate-

    gorias do entendimento (Durkheim, 1995).

    No apenas um sistema que integra e aju-

    da a compreender o mundo. Ela tambm

    tem o poder de separar, de hierarquizar,

    serve como instrumento ideolgico de do-

    minao (Bourdieu, 1999).

    Nesse sentido, a cultura escolar institu-

    cionalizada e o acesso diferenciado a ela

    expressam uma dimenso poltica na me-

    dida em que assumem o poder de criar hie-

    rarquias, fronteiras e barreiras sociais en-

    tre os grupos, a dizer, aqueles que a detm

    os escolarizados e os outros, os

    iletrados. Por serem bens raros, a educao

    e seu desdobramento, a cultura escolar, so

    fontes de privilgio. Portanto, o conceito

    de capital cultural de Bourdieu bastantepreciso. Refere-se a um conjunto de sm-

    bolos e prticas promovido pelas instn-

    cias culturais legitimadas, famlia, escola,

    31 Capital cultural incorporado,sob a forma de disposies du-

    rveis do organismo; capitalcultural objetivado, sob a for-ma de bens culturais materiais;e capital cultural instituciona-lizado, sob a forma de diplo-mas e titulao.

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    REVISTA USP, So Paulo, n.61, p. 58-77, maro/maio 200474

    museu, universidade, enfim, instituies a

    que poucos tm acesso, mas que congre-

    gam um alto valor no mercado. a cultura

    burguesa, aristocrtica, aquela que no Bra-

    sil os que a possuem so considerados pri-

    vilegiados (32).

    Vale ressaltar que Bourdieu no se refe-

    re ao conceitoculturaempregado pelas an-

    lises antropolgicas, ou seja, um sistema

    integrado de smbolos que todos, indepen-

    dente da origem social, detm. Mas sim a

    cultura que valorizada no mercado escolar

    e profissional. Uma cultura escolar institu-

    cionalizada e legtima, um capital que tem

    valor de troca e pode ser convertido em outras

    formas de poder, ou seja, capital econmi-

    co, posio e prestgio sociais, etc. (33).

    OS USOS DA CULTURA

    Nesse sentido, Bourdieu ajuda-nos a

    pensar a funo da escola e seus divul-

    gadores no processo de construo das re-

    presentaes classificadoras sobre o saber

    escolar. Com uma misso colonizadora,desde o sculo XV, a escola prope-se a

    expandir seu imprio cultural para as mas-

    sas incultas, ignorantes, supersticiosas e

    irracionais. Assumindo a educao esco-

    lar como reguladora do comportamento dos

    segmentos populares e iletrados, morali-

    zando espritos e formando quadros para o

    mercado de trabalho, as instituies for-

    mais do ensino sempre agiram disciplinan-

    do, chamando ordem civilizada amplos

    contigentes populacionais (Nvoa,1998;

    Durkheim, 1995; Burke, 1989).

    Para desenvolver o argumento deste

    artigo, lembro que, para desempenhar a con-

    tento essas funes, a escola utiliza-se de

    vrias estratgias de consagrao coletiva.

    Entre elas destaco a desclassificao e a

    desvalorizao dos modos populares e

    iletrados do saber e do estilo de vida popu-

    lar. A literatura registra fartamente que,

    pouco a pouco, um processo lento masdecisivo de inferiorizao da cultura/edu-

    cao dos segmentos pouco escolarizados

    foi promovido pelas instncias educativas.

    Mais do que isso, possvel registrar tam-

    bm um menosprezo em relao a essa

    educao que evoluir rapidamente para um

    sentido negativo, ou seja, o sentido de uma

    cultura atrasada e vulgar. Ou seja, um pas-

    so para a legitimidade de uma viso

    etnocentrista segundo a qual qualquer di-

    ferena cultural em relao cultura he-

    gemnica seria expresso de um atraso

    (Burke, 1989).

    A noo de cultura escolar vai permitir

    a seus divulgadores cindir a histria e as

    prticas sociais dos grupos a partir de pares

    de conceitos opostos: moderno/atrasado,

    nobre/vulgar, culto/inculto. Nesse sentido,

    fcil popularizar uma s cultura para to-

    dos. Uma compreenso que excluir asmatrizes culturais desviantes da verso

    dominante. Um passo para as representa-

    es excludentes e maniquestas em relao

    cultura popular e seus desdobramentos, a

    cultura de massa. Terreno propcio para po-

    larizar as expresses culturais julgando cri-

    ticamente a variedade da produo miditica

    e as escolhas populares dessa produo.

    CONSIDERAES FINAIS

    O populismo no outra coisa que a in-

    verso do etnocentrismo [] (Bourdieu,

    1979).

    O objetivo deste artigo foi refletir sobre

    a cultura de massa no contexto das preocu-

    paes educativas do mundo contempor-

    neo. Chamei ateno para uma nova confi-

    gurao cultural e, portanto, educacional, a

    que a sociedade brasileira teve acesso ao

    longo de sua histria. Apresentando dados

    sobre o crescimento da oferta de produtos

    da cultura de massa e a paralela demanda

    de informaes e entretenimento do pbli-

    co pude observar que a produo miditica

    complementa h muito a cultura e o saber

    escolar. Foi minha inteno desconstruir

    sociologicamente um certo julgamentoelitista que se tem sobre uma variedade de

    produtos da mdia. Nesse sentido, busquei

    as razes da tradio cultural brasileira e

    32Lembro que apenas 45% tmmais de 8 anos de escolari-dade.

    33 Posto isso, a famlia e a escola,para Bourdieu, so dois subes-paos sociais fundamentais noprocesso de aquisio desse re-curso. Famlia e escola podemser classificadas tanto como

    instncias produtoras de bensculturais como mercados de cir-culao desses bens. Para ele,a competncia cultural adquiri-da nesses espaos definidapelas condies de aquisio.Ou seja, de um lado, o apren-dizado precoce e insensvel,efetuado desde a primeira in-fncia, no seio da famlia, eprolongado adquirido fora doambiente familiar, nas institui-es de ensino ou na esfera dotrabalho. A distino entre es-ses dois tipos de aprendizadorefere-se a uma certa maneirade adquirir bens culturais e sim-blicos e com eles se familiari-zar, por um aprendizado esco-lar que o pressupe e o com-pleta. De outro, o aprendizadotardio, complementar quele,metdico e acelerado.

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    registrei a forte presena dos produtos cul-

    turais miditicos na nossa formao, suas

    caractersticas paradidticas, fortemente

    articuladas a um gosto popular pouco

    escolarizado. Foi possvel ver que antes

    que a escola se universalizasse, antes que

    o saber formal se tornasse referncia edu-

    cativa para grande parte de nossa popula-

    o, antes que a lngua escrita estivesse

    generalizada em todo o territrio nacio-

    nal, o rdio, a TV e o cinema j eram ve-

    lhos conhecidos da populao brasileira.

    Nesse sentido, considerei que o imagin-

    rio ficcional das mdias h muito mais

    tempo vem colonizando os nossos espri-

    tos. Mais do que isso, esse imaginrio est

    mais presente no cotidiano dos segmentossociais brasileiros, sobretudo os segmen-

    tos com baixa escolaridade, do que pro-

    priamente a cultura escolar.

    No entanto, no se trata de uma defesa

    deste imaginrio miditico. Trata-se de uma

    constatao. Esta discusso justifica-se

    enquanto um alerta para ns educadores.

    Formados segundo uma tradio iluminis-

    ta, racional e cientificista, valorizamos a

    escola naquilo que ela tem de aristocrticoe diferenciador. Ou seja, sua capacidade de

    emancipar segundo um modelo civilizador

    (Elias, 1989). cultura de massa dispensa-

    mos ateno apenas como consumidores

    ou na grande parte das vezes como crticos

    (Martn-Barbero, 2003). Raras so as oca-

    sies em que ponderamos sobre o uso va-

    riado que os diversos segmentos sociais

    fazem ou podem fazer dos produtos da cul-

    tura de massa. Acreditando na universali-

    dade das categorias do julgamento propi-

    ciado pela escola, acredita-se que todos se

    apropriam e usam os contedos miditicos

    de maneira homognea. Avaliando sob

    uma tica acadmica, douta e privilegia-

    da, prpria daqueles que ocuparam por

    longo tempo os bancos escolares, desen-

    volvemos uma certa arrogncia ao anali-

    sar a cultura miditica. Classificada como

    ilegtima, sensacionalista, grotesca, sim-

    ples, pobre e superficial, esta outra matrizcultural, no entanto, pode ser de grande

    valia para os segmentos pouco escolari-

    zados. Pode servir como complemento ou

    ampliao de um saber e uma cultura a

    que tradicionalmente poucos no Brasil ti-

    veram acesso.

    comum escutarmos avaliaes de que

    os segmentos sociais menos escolarizados

    so os que mais tm acesso produo

    miditica e so sobretudo os que tm as

    menores chances de criticar os contedos

    propostos. Na realidade, como os dados

    acima demonstraram, possvel afirmar que

    o consumo bastante variado. No entanto,

    acreditar que as camadas menos instrudas

    esto mais sujeitas manipulao e s ideo-

    logias no mnimo polmico. como afir-

    mar que os segmentos populares e pouco

    escolarizados sejam desprovidos de uma

    cultura, de uma tica e/ou de uma moral,incapazes de escolher o que lhes convm.

    Neste artigo, considero a possibilidade

    de pensar a educao popular no Brasil

    como um bloco de cultura hbrido, profun-

    damente marcado pelas influncias da cul-

    tura escolar e miditica. Servindo-me da

    idia de cultura enquanto processo afirmo

    que a cultura popular ou cultura de massa

    em muitos momentos se confundem, pois

    ambas, juntamente com a cultura dos seg-mentos escolarizados, formam um bloco

    maior. Nenhuma delas deve ser julgada sem

    que se esclarea as barreiras construdas

    entre elas. No se trata de uma relativiza-

    o, como diria Canclini (1988). H muito

    o relativismo no d conta das hierarquias,

    do jogo de poder entre as diversas formas

    de expresso e prticas culturais. Neste

    artigo, chamo ateno para o fato de que

    para se falar de educao popular no Brasil

    seria necessrio analisar a educao pro-

    movida pela cultura de massa. E, para falar

    deste fenmeno, seria necessrio descons-

    truir sociologicamente nossas resistncias

    sobre ele.

    A questo complexa. No tenho a pre-

    tenso de resolv-la. Tentei apenas apontar

    alguns elementos para a discusso. Na for-

    ma de um ensaio sociolgico, estas refle-

    xes propem-se como um prefcio, um

    prenncio de avaliaes mais profundassobre a variabilidade e a complexidade do

    fenmeno da cultura de massa para o cam-

    po de pesquisa na rea da educao.

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