edição 424 - de 14 a 20 de abril de 2011

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www.brasildefato.com.br Uma visão popular do Brasil e do mundo Circulação Nacional R$ 2,80 São Paulo, de 14 a 20 de abril de 2011 Ano 9 • Número 424 João Brant Um passo à frente Mudanças na comunicação, como a regulamentação dos artigos da Constituição, a universalização da banda larga e a defesa dos direitos de grupos vulneráveis, estarão na pauta de nova Frente Parlamentar. Pág. 3 Igor Fuser Retrocesso diplomático A atitude do Brasil de condenar o golpe de junho de 2009 em Honduras foi o melhor momento da política externa de Lula. Mas, e se o golpe tivesse ocorrido hoje? Como Dilma Rousseff agiria? Pág. 3 Frei Betto Crianças, entre livros e TV A vantagem da leitura sobre a TV é que a criança permanece inteiramente receptiva, sem condições de interagir com o filme ou o desenho animado. A TV “rouba” a capacidade onírica dela, como se sonhasse por ela. Pág. 3 Carajás 15 anos de impunidade O massacre permanece ISSN 1978-5134 Código Florestal, jogo pesado dos ruralistas Pág. 7 Bia Pasqualino Saara Ocidental A luta de um povo por liberdade Encarte especial Igor Ojeda Após 15 anos do maior crime contra trabalhadores rurais organizados pelo MST, continua a impunidade dos assassinos dos 21 sem-terra mortos em Eldorado dos Carajás (PA). No Assentamento 17 de abril, a lembrança do massacre é presente, tal como o desamparo do Estado às famílias das vítimas. No entanto, a escola e o assentamento coordenados pelos sobreviventes dão exemplo de educação e agroecologia. Págs. 4 e 5 Trabalho escravo na pecuária argentina Pág. 9 Código Florestal, jogo pesado dos ruralistas Pág. 7 Trabalho escravo na pecuária argentina Pág. 9

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Uma visão popular do Brasil e do mundo Após 15 anos do maior crime contra trabalhadores rurais organizados pelo MST, continua a impunidade dos assassinos dos 21 sem-terra mortos em Eldorado dos Carajás (PA). No Assentamento 17 de abril, a lembrança do massacre é presente, tal como o desamparo do Estado às famílias das vítimas. No entanto, a escola e o assentamento coordenados pelos sobreviventes dão exemplo de educação e agroecologia. Págs. 4 e 5 Retrocesso diplomático Uma visão popular do Brasil e do mundo Igor Fuser

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Page 1: Edição 424 - de 14 a 20 de abril de 2011

www.brasildefato.com.br

Uma visão popular do Brasil e do mundoCirculação Nacional R$ 2,80

São Paulo, de 14 a 20 de abril de 2011Ano 9 • Número 424

João Brant

Um passo à frente Mudanças na comunicação, como a regulamentação dos artigos da Constituição, a universalização da banda larga e a defesa dos direitos de grupos vulneráveis, estarão na pauta de nova Frente Parlamentar. Pág. 3

Igor Fuser

Retrocesso diplomáticoA atitude do Brasil de condenar o golpe de junho de 2009 em Honduras foi o melhor momento da política externa de Lula. Mas, e se o golpe tivesse ocorrido hoje? Como Dilma Rousseff agiria? Pág. 3

Frei Betto

Crianças, entre livros e TV A vantagem da leitura sobre a TV é que a criança permanece inteiramente receptiva, sem condições de interagir com o fi lme ou o desenho animado. A TV “rouba” a capacidade onírica dela, como se sonhasse por ela. Pág. 3

Carajás 15 anos de impunidade

O massacre permanece

ISSN 1978-5134 Código Florestal, jogo pesado dos ruralistas Pág. 7

Bia Pasqualino

Saara Ocidental

A luta de um povo por liberdade Encarte especial

Igor Ojeda

Após 15 anos do maior crime contra trabalhadores rurais organizados pelo MST, continua a impunidade dos assassinos dos 21 sem-terra mortos em Eldorado dos Carajás (PA). No Assentamento 17 de abril, a lembrança do

massacre é presente, tal como o desamparo do Estado às famílias das vítimas. No entanto, a escola e o assentamento coordenados pelos sobreviventes dão

exemplo de educação e agroecologia. Págs. 4 e 5

Trabalho escravo na pecuária argentina Pág. 9

Código Florestal, jogo pesado dos ruralistas Pág. 7

Trabalho escravo na pecuária argentina Pág. 9

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O país em luto e no banco dos réus

O ECONOMISTA Reinaldo Gonçal-ves tem sustentado a volta ao passa-do da política econômica do governo Lula, quando o Brasil era primário-exportador.

Especialização retrógrada é o con-ceito utilizado por ele para mos-trar dito retorno à produção primá-ria voltada para fora, centrada espe-cialmente na exportação de bens com baixa tecnologia incorporada.

Para explicar este processo, o pro-fessor criou o conceito de vulnerabi-lidade externa, entendida como a ca-pacidade do país enfrentar com mais êxito, ou não, as pressões internacio-nais.

Para ele, o período Lula foi marca-do por um cenário internacional fa-vorável que permitiu um controle conjuntural da vulnerabilidade, mas estruturalmente não mexeu nas con-dições internas que permitiriam ou-tra condução no processo de desen-volvimento.

O jornal Valor Econômico mostra que de 2004 a 2010 o Brasil viu seu processo industrial, de incorporação tecnológica, perder força, enquanto as commodities ganharam.

Neste período, as cinco principais commodities concentraram 43.36% das exportações, enquanto os auto-móveis tiveram uma queda de 3,5% para 2,2%, a venda de aviões caiu de 3,4% para 2%.

Outro destaque é a composição tec-nológica destas commodities. Dos 17 bilhões de dólares exportados de so-ja, 64,5% foram em grãos e dos 12 bi-lhões de dólares do açúcar, apenas 29% se referem ao refi no.

Vulnerabilidade Temos algumas diferenças centrais

com os períodos anteriores, dado o prévio impacto no cenário nacional do processo neoliberal vivido no pe-ríodo FHC.

1) O período neoliberal conformou uma situação no Brasil de privatiza-ções, abertura econômica e mudan-ças legislativas que fortaleceram, no cenário nacional, a participação do capital internacional.

2) As terceirizações, com as que-bras de contratos e a implementação dos trabalhos temporários - em espe-cial estágios e designações temporá-rias da educação - modifi caram o pa-drão de emprego e renda no Brasil e formalizaram a precarização do tra-balho como critério fundamental da extração de valor em território na-cional.

3) A soberania nacional - alimen-tar, territorial, democrática e popular - foi substituída pela aberta campa-nha publicitária sobre o Brasil, agora na condição de credor do FMI.

4) O mercado interno passou a ser o celeiro das novidades internacio-nais eletro-eletrônicas – cujas sedes principais das marcas industriais es-tão no G-7 - desde os telefones celu-

lares ate os aparelhos de televisão. Agrega-se a isto o tema da suposta comodidade dos lares, o que nos dá um intenso culto ao consumo, dire-tamente atrelado ao endividamento das famílias e dos indivíduos.

Estes quatro elementos juntos mostram a acentuação dos víncu-los de dependência do país no perío-do Lula às economias centrais, e rela-tam uma faceta nova da reprimariza-ção da economia brasileira.

A dependência, entendida como vulnerabilidade externa estrutural traz, para a classe trabalhadora brasi-leira, novos dilemas dos velhos para-digmas da disputa do poder.

Estes dilemas reforçam a lógica de banir do imaginário coletivo brasilei-ro três questões chaves: a soberania nacional; a democracia participati-va, casada com o projeto popular; e a situação da classe que vive do traba-lho, a partir deste processo de repri-marização.

Dependência De 2004 a 2010 a classe trabalha-

dora viveu a reconfi guração do mun-

do do trabalho em que a indústria perdeu peso e o agronegócio, de bai-xa incorporação tecnológica e labo-ral, ganhou força.

Além disto, a juventude deste perí-odo - criança que se desenvolveu nos moldes neoliberais dos anos de 1990 - viu a possibilidade de se empre-gar pela primeira vez como estagiá-ria, cuja aparência de ganho real aci-ma do salário mínimo brasileiro foi conformando uma nova ideologia do trabalho, avessa ao debate da intensa exploração vivida.

A sociedade do consumo tecnoló-gico e dos ganhos da especulação fi -nanceira, associada ao endividamen-to pessoal sem precedentes na his-tória do mercado interno brasileiro, abriu as portas ao fortalecimento re-novado da cultura estadunidense do consumo, do desperdício, da amplia-ção do desejo mercadológico de cria-ção de necessidades e escolhas exter-nas à realidade concreta destes su-jeitos.

As cruéis implicações desta polí-tica neoliberal combinada com a re-primarização dizem respeito à inten-ção formal do poder institucional, de impor, na aparência dos números da economia, de enterrar de vez do ima-ginário coletivo brasileiro, os elemen-tos que garantiriam a força da nação e a capacidade decisória da sociedade (primazia do público sobre o privado; retomada da soberania nacional; de-mocracia participativa, para além da suposta democracia do consumo, via endividamento individual).

Até quando? Até sermos capazes, enquanto classe, de dar unidade aos levantes, de retomar o debate popu-lar sobre os grandes processos que vivemos – como a campanha contra os agrotóxicos – e de reconstruir o projeto popular para o Brasil.

Roberta Traspadini é economista, educadora popular e militante da organização Consulta Popular/ES.

Reprimarização e dependênciaartigo Guilherme C. Delgado

O ASSASSINATO de 12 crianças da Escola Municipal Tasso da Silveira, em Realengo, zona oeste do Rio, dia 7, chocou a todos. A monstruosida-de cometida, friamente, contra vidas inocentes e indefesas, protagonizada por um jovem esquizofrênico, colo-ca nossa sociedade sentada no banco dos réus. O acontecimento explicita as incertezas do futuro que queremos legar às gerações posteriores. Mas, sobretudo, põe em xeque o presente. É contundente o questionamento do jornalista Mauro Santayana, ao inda-gar “se vale a pena continuar sepul-tando crianças, e, com elas, os senti-mentos de solidariedade, de huma-nismo, de civilidade e de justiça”. Va-lores que a sociedade capitalista fra-giliza todo dia.

A brutalidade do ato nos impõe questionamentos que vão além dos de responsabilizar o assassino, já morto. Até quando manteremos uma sociedade estruturada e promoto-ra de uma das maiores desigualda-des sociais do planeta? Como convi-ver numa sociedade em que a disse-minação do medo tornou-se um ne-gócio lucrativo? Espalha-se o medo e logo surge uma empresa venden-do proteção e segurança, seja na área da saúde, investimentos fi nanceiros, propriedades materiais, educação,

moradia e, até mesmo, do seu futuro. Será mera coincidência que a socie-dade estadunidense, tida como mo-delo para a burguesia daqui, é justa-mente onde ocorre o maior número de lamentáveis acontecimentos co-mo o ocorrido em Realengo? Os EUA - que se vangloriam de ser a polícia do mundo, que constroem imagem de ser uma sociedade soberba e bem armada, que possui uma população carcerária superior a da agricultura, que tem a maior indústria cinemato-gráfi ca disseminadora da violência, que não hesita em prover guerras pa-ra dominar, se apropriar de riquezas naturais e incrementar sua econo-mia, que sustenta seu luxo empobre-cendo outros povos - pode servir de exemplos a outras sociedades?

Em busca de ganhos pessoais e de maior visibilidade, há políticos que não hesitam em promover ataques e espalhar preconceitos contra homos-sexuais e negros, como fez recente-mente o deputado federal Jair Bolso-naro (PP/RJ) em programa de televi-são. Sempre com um discurso agres-sivo, racista e sexista, esse parlamen-tar destila ódio em busca dos holo-fotes da mídia e de cativar uma par-cela da sociedade que lhe garante sucessivos mandatos. Não diferen-te fez o candidato tucano José Ser-

ra, nas eleições passadas, quando es-palhou mentiras, preconceitos e into-lerância, em busca dos votos que pu-dessem alimentar seu esquizofrêni-co sonho de ser presidente do Bra-sil. Sempre com a conivência da mí-dia burguesa e com a impunidade as-segurada por setores do Poder Judi-ciário. Não hesitou nem mesmo em usar sua mulher, Mônica Serra, pa-

ra acusar irresponsavelmente a can-didata Dilma Rousseff de ser a favor de matar criancinhas. Resta-nos a es-perança de que as tradicionais olhei-ras desse tucano são consequentes de noites mal-dormidas pelo desserviço que prestou à política brasileira e pe-lo incentivo que deu aos grupos mais direitistas do país.

Ter a coragem de encarar de frente a tragédia de Realengo exige, da so-ciedade brasileira, determinação e fi rmeza para enfrentar o modelo de comunicação em nosso país. Aca-bar com o monopólio é apenas a pon-ta desse iceberg. Trata-se de defi nir o papel da comunicação numa socie-dade que busca consolidar a demo-cracia, ser socialmente justa, cultu-ralmente instruída e desenvolvida. É deplorável a forma como a mídia co-briu a tragédia da Escola Municipal Tasso da Silveira. Em busca de ele-var seus índices de audiência promo-veram acusações infundadas e irres-ponsáveis, como o de tentar vincu-lar o acontecimento ao fundamenta-lismo islâmico. Não pouparam nem mesmos os alunos sobreviventes da tragédia e seus familiares, com insis-tentes e desrespeitosas entrevistas. Em nenhum momento houve dispo-sição de promover um debate sério e aprofundado sobre a questão. E mui-

to menos mexer com os interesses das indústrias bélicas. Uma mídia co-erente, hoje, com a postura que ado-tou em 2005 quando fi cou do lado da bancada das armas, defendendo esse comércio no país.

Há sinais, no entanto, que mos-tram que o acontecimento explici-tou outros valores e comportamen-tos contrários à cultura da violência, do medo, da mentira, do individua-lismo e de ganhar a quaisquer cus-tos. Além da solidariedade prestada às vitimas da tragédia, nada mais va-loroso do que o grupo de moradores que se reuniu para apagar as picha-ções feitas na parede da casa do as-sassino, contra ele e seus familiares. Buscaram dar um basta, com aque-le gesto simbólico, às ideias de vio-lência e preconceitos que, na maioria das vezes, fazem de vítimas a popula-ção mais pobre e desassistida de polí-ticas públicas.

Também é louvável a iniciativa, no Senado Federal, de um projeto de decreto legislativo convocando um plebiscito para que o povo brasilei-ro decida se o comércio de armas e munição deve ser proibido no Brasil. Esperamos que a indústria da mor-te e da violência, juntamente com a bancada das armas, seja derrotada dessa vez.

de 14 a 20 de abril de 20112editorial

Gama

Infl ação e salário mínimoAS PRESSÕES INFLACIONÁRIAS de origem externa – “commodi-ties agrícolas” e agora também o petróleo, rearticulam de outra forma a “banda da música” conservadora, para um retorno mais duro à polí-tica fi scal e monetária contencionista – leia-se corte de gastos corren-tes do Orçamento e elevação de juros. Na esteira dessas pressões, o salário mínimo de 2012, já defi nido em lei pelo critério do incremento real do PIB de 2009 e 2010 mais a infl ação de 2011, passa a ser visado como bola da vez a ser abatida, por vias políticas ou judiciárias.

O governo Dilma conseguiu aparentemente conter a ânsia dos juros altos que caracterizou o Banco Central dos dois mandatos do governo Lula, exceto apenas o ano eleitoral de 2010. Isto teria sido substituído por política monetária clássica – do tipo elevação dos depósitos com-pulsórios dos bancos e outras restrições ao crédito, hoje meio pompo-samente denominadas medidas macro-prudenciais. Do lado fi scal, o governo aviou alguns cortes no custeio orçamentário; mas foi certa-mente o não incremento de cerca de dois pontos percentuais do salá-rio mínimo (PIB de 2008 a 2009), o fator isolado mais relevante de contenção orçamentária. Mas aqui está exatamente o perigo de retro-cesso na vertente distributiva do conjunto da política social.

O vínculo de salário mínimo a benefícios sociais monetários é ho-je muito potente para mover quase 5% do PIB (Previdência, Assis-tência, Seguros Desemprego e Folhas Salariais de Estados e Municí-pios) e cerca de 25 milhões de benefi ciários - famílias de consumido-res e produtores de bens-salário, diretamente afetados por esta políti-ca. Isto tudo, sem falar no mercado de trabalho, hoje fortemente afe-tado por esta política de piso salarial. Observe-se que o tamanho eco-nômico, apenas no setor público, da política do salário mínimo, vin-culada a benefícios sociais, é no mínimo 12 vezes maior que o Progra-ma Bolsa Família.

O fato de o campo conservador ter escolhido a política do salário mí-nimo como “bola da vez” a ser descartada, sob o pretexto da política anti-infl acionária é mais ou menos aquilo que se poderia esperar desse perfi l ideológico, que, diga-se de passagem, não tem nenhum compro-misso com igualdade social.

Por outro lado, os compromissos de crescimento econômico e o es-tilo de acumulação de capital que o governo Dilma herdou do governo Lula contêm um componente distributivo, pela via do consumo, para a qual a política social cumpre um papel virtuoso.

A batalha ideológica em torno da política econômica do governo Dil-ma compreende e continua uma disputa ideológica com três vertentes: 1) o retorno à política pura e simples das metas de infl ação, sem com-promisso necessário com crescimento econômico e sem nenhum com-promisso com melhorias distributivas; 2) a política de condução do crescimento econômico, apoiada em investimentos protagonizados pe-lo setor público; 3) o compromisso de repartição de parcela do exce-dente econômico, preferencialmente com crescimento, que o sistema de direitos sociais institucionalizou depois de 1988.

As políticas conjunturais – de caráter monetário e fi scal – não são neutras do ponto de vista distributivo. Também não o são do ponto de vista do crescimento. É difícil para o governo se situar no embate das três correntes que o dividem, daí certa paralisia de ações estratégicas para afi rmar o compromisso das vertentes dois e três (crescimento e distribuição). Mas a ortodoxia do conservadorismo seria fatal às metas de crescimento que a presidenta Dilma tem pela frente.

O grande risco que temos pela frente não é propriamente uma re-caída pura e dura ao receituário conservador, que hoje não tem mais o prestígio de outrora nos chamados mercados organizados. Mas sim uma aliança ao estilo modernizante e conservador, que, a pretexto das questões conjunturais, abandone de vez a vertente distributiva, para o que a política do salário mínimo é crucial. A velha teoria do bolo – pri-meiro crescer e somente depois distribuir – continua vigente em salas estratégicas do Palácio do Planalto.

Guilherme C Delgado é doutor em economia pela Unicamp e consultor da Comissão Brasileira de Justiça e Paz.

A monstruosidade cometida, friamente, contra vidas inocentes e indefesas, protagonizada por um jovem esquizofrênico, coloca nossa sociedade sentada no banco dos réus

A velha teoria do bolo – primeiro crescer e somente depois distribuir - continua vigente em salas estratégicas do Palácio do Planalto

A dependência, entendida como vulnerabilidade externa estrutural traz, para a classe trabalhadora brasileira, novos dilemas dos velhos paradigmas da disputa do poder

opinião Roberta Traspadini

Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Cristiano Navarro, Igor Ojeda • Subeditores: Aldo Gama, Renato Godoy de Toledo • Repórteres: Beto Almeida, Claudia Jardim, Dafne Melo, DanielCassol, Eduardo Sales de Lima, Leandro Uchoas, Mayrá Lima, Patricia Benvenuti, Pedro Carrano, Vinicius Mansur • Assistente de Redação: Michelle Amaral • Fotógrafos: Carlos Ruggi,

Douglas Mansur, Flávio Cannalonga (in memoriam), João R. Ripper, João Zinclar, Joka Madruga, Leonardo Melgarejo, Maurício Scerni • Ilustradores: Latuff, Márcio Baraldi, Maringoni • Editora de Arte – Pré-Impressão: Helena Sant’Ana• Revisão: Joana Tavares• Jornalista responsável: Nilton Viana – Mtb 28.466 • Administração: Valdinei Arthur Siqueira • Programação: Equipe de sistemas • Assinaturas: Francisco Szermeta • Endereço: Al. Eduardo Prado, 676 – CamposElíseos – CEP 01218-010 – Tel. (11) 2131-0800/ Fax: (11) 3666-0753 – São Paulo/SP – [email protected] • Gráfi ca: FolhaGráfi ca • Conselho Editorial: Alipio Freire, Altamiro Borges, Anselmo E. Ruoso Jr., Aurelio Fernandes, DelciMaria Franzen, Dora Martins, Frederico Santana Rick, José Antônio Moroni, Hamilton Octavio de Souza, Igor Fuser, Ivan Pinheiro, Luiz Dallacosta, Marcela Dias Moreira, Maria Luísa Mendonça, Mario Augusto Jakobskind, Nalu Faria,Neuri Rosseto, Otávio Gadiani Ferrarini, Pedro Ivo Batista, René Vicente dos Santos, Ricardo Gebrim, Sávio Bones, Vito Giannotti • Assinaturas: (11) 2131– 0800 ou [email protected] • Para anunciar: (11) 2131-0800

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de 14 a 20 de abril de 2011

dos direitos humanos para hostilizar os governos nacio-nalistas no Oriente Médio, em benefício dos planos dos EUA de dominar aquela região estratégica.

O próprio Amorim rompeu seu silêncio para criti-car a nova posição do Itamaraty, que, segundo ele, “fa-rá a alegria daqueles que desejam ver o Brasil peque-no e sem projeção internacional”. Com a mudança, ar-gumenta o ex-chanceler, fi cará mais difícil o nosso país exercer o papel de mediador e até interceder junto ao governo iraniano em casos específi cos, como o da mu-lher ameaçada de apedrejamento – um castigo bárbaro cuja concretização o Brasil ajudou a evitar.

Enquanto isso, a direita aplaude. Uma colunista tuca-na chegou a qualifi car a política externa de Lula como “um ponto fora da curva”. Há algo de verdade em di-zer isso de um governo que sempre se mostrou genero-so com os banqueiros e o agronegócio, ao mesmo tempo em que se exagera o alcance da mudança. Prova disso é a recusa brasileira em endossar a intervenção na Líbia, atitude que demarca os limites da guinada no Itamara-ty. Nada indica um retorno à posição submissa dos tem-pos de FHC. Mas o retrocesso é inegável.

Retrocesso diplomáticoA CORAJOSA ATITUDE do Brasil ao condenar o golpe de junho de 2009 em Honduras e, mais tarde, abrigar na sua embaixada o presidente deposto Manuel Zelaya, em desafi o aos EUA e à direita brasileira, foi o melhor momento da política externa de Lula. Agora, quando se discute a diplomacia do novo governo, pode-se abordar o tema com uma pergunta: se o golpe em Honduras ti-vesse ocorrido hoje, será que a dupla Dilma Roussef e Antonio Patriota agiria do mesmo modo que Lula e Cel-so Amorim?

A julgar pelos sinais emitidos por Brasília, a resposta é: “provavelmente, não”. O episódio mais expressivo do contraste entre as duas gestões foi o apoio do Brasil, em março, à resolução que instituiu um relator especial da ONU para investigar a situação dos direitos humanos no Irã. Essa foi uma decisão importante, pois colocou o Irã na berlinda entre os vilões humanitários do mundo, abrindo caminho para a adoção de medidas mais agres-sivas contra o regime de Teerã.

Como se sabe, o interesse do chamado “Ocidente” na-da tem a ver com a proteção dos cidadãos iranianos. Trata-se, ao contrário, do uso oportunista da retórica

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do Carmo Lara (PT-MG). Entre 2006 e 2008, elas cria-ram uma subcomissão que analisou todos os problemas nas concessões de rádio e TV, e fi zeram dois relatórios que são uma ótima referência para quem quer entender as causas e as consequências desse sistema carente de transparência e democracia.

A iniciativa da Frente vem pautada por temas chave na agenda de mudanças na comunicação, como a regu-lamentação dos artigos da Constituição, a universaliza-ção da banda larga e defesa dos direitos de grupos vul-neráveis como crianças e adolescentes, mulheres, ne-gros e negras, indígenas, população LGBTT e pesso-as com defi ciência no tocante às questões de comuni-cação.

Para a sociedade civil, o lançamento será a oportuni-dade de defl agrar uma agenda de mobilizações por um marco regulatório democrático para as comunicações. Quem tiver a oportunidade, vá a Brasília neste dia. A importância desse ato de lançamento só será dimensio-nada daqui a algum tempo. Tomara que haja bons mo-tivos para ele ser lembrado.

Parlamentares dão um passo à frente

NO DIA 19 ACONTECE o lançamento da Frente Parla-mentar pela Liberdade de Expressão e o Direito à Co-municação. Encabeçada pelos deputados Luiza Erun-dina (PSB-SP) e Emiliano José (PT-BA), a Frente tem participação de parlamentares de vários partidos, co-mo PSOL e PCdoB. A iniciativa será aberta à participa-ção popular, com entidades da sociedade civil integran-do sua coordenação. É uma ótima notícia, especialmen-te se considerado o quão pouco tem sido feito pelo Con-gresso Nacional nos últimos anos em favor da democra-tização da comunicação.

De fato, o Congresso está devendo. Até hoje não fo-ram regulamentados os principais artigos sobre o tema na Constituição Federal. Uma das tentativas, um proje-to da deputada Jandira Feghali (PCdoB-RJ) sobre re-gionalização da produção de rádio e TV, está há 20 anos tramitando. Depois de muitas voltas, foi aprovado na Câmara em 2003, mas até hoje espera a manifestação do Senado.

Até agora, as melhores movimentações na casa ha-viam sido feitas por Luiza Erundina (PSB-SP) e Maria

João Brant

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Mumia Abu-JamalParabéns pela publicação da entrevista com Mu-mia Abu-Jamal. Um registro histórico da verda-de. Aquela história que não se ensinam nos livros das escolas de nossas crianças, negras, indígenas e brancas.

Bruna Vazfi canstt, por correio eletrônico

Mumia Abu-Jamal (2)Interessante notar como nossa realidade nacio-nal guarda similaridades com a realidade de lá. As diferenças sociais e de oportunidades que te-mos são parecidas com as de lá.

Luiz Mussio, por correio eletrônico

Ditadura militarJá passou da hora da ditadura no Brasil entrar no discurso, no debate, para entendermos o que se passou, não pode ser uma lacuna onde cada ver-são é uma versão e nunca uma verdade. Devemos discutir porque as pessoas que sofreram, que per-deram pessoas queridas e que simplesmente vive-ram a ditadura carregam chagas. Quando um ci-dadão comete um crime ele é julgado e condena-

do, porque quando acontece um crime de Estado ele merece ser acobertado e escondido? É neces-sário pensar a questão da ditadura, sim.

Kely Chagas de Araújo, por correio eletrônico

Ditadura Militar (2)Os militares sempre querem a ocultação de seus crimes - que não foram poucos. O que me irrita é a conivência que, de uma forma ou de outra, ain-da temos para com eles. Conheço um homem que foi censor no regime militar, que dá aulas numa universidade no Paraná. O cara relata com orgu-lho as bestialidades que fez ou mandou fazer. E os alunos batem palmas. Ser conivente é tão gra-ve quanto cometer um crime. Fiz um abaixo-assi-nado para tirarem o professor. A duras custas ti-ramos, depois de muito debate e muito medo da parte da moçada. Quando nós vamos baixar o de-do pra essa gente? Quando vamos mandá-los pa-ra onde merecem estar? O que mais me preocu-pa, em atitudes como essa, é que se hoje houves-se um golpe talvez não houvesse resistência. En-fi m, meu Brasil!

Maygon André Molinari, por correio eletrônico

AgrotóxicoFico muito feliz em ler a cobertura do Brasil de Fato sobre a agricultura famliar e a luta dos mo-vimentos sociais contra o agrotóxico e a mudan-ça dos latifundiários para o Código Florestal. A grande imprensa dá a informação alarmante so-bre o Brasil campeão no uso de agrotóxico, mas não dá uma linha sobre a luta daqueles que pen-sam no futuro dos nossos fi lhos e netos.

Arcelina Helena, por correio eletrônico

Código FlorestalOs ruralistas estão querendo se utilizar dos pe-quenos agricultores, responsabilizando-os pelo desmatamento para depois as comprar proprie-dades vítimas “da irresponsabilidade dos peque-nos”. Como foi dito pela Fetraf (Federação Nacio-nal dos Trabalhadores e Trabalhadoras na Agri-cultura Familiar), imagine a extensão de terras que eles vão adquirir no norte do país. Depois vão aos bancos, apresentam um projeto de recupera-ção ambiental, levantam dinheiro e a agricultu-ra familiar fi ca carimbada como devastadora de fl oresta. Depois, ainda vai ser usada como mão

de obra barata. A aliança do leão com o cordeiro nunca foi favorável ao cordeiro.

Edelcio Vigna, por correio eletrônico

Sem contra-movimento o risco é grande...Acho que a resposta deve ser à altura por parte dos movimentos contrários ao projeto do anti-co-munista Aldo Rebelo. Que se articule também um “consórcio”, ou qualquer coisa mais efi caz, das organizações e movimentos sociais para viabili-zar os recursos mínimos para um grande ato em Brasília. Se não houver um tensionamento políti-co radical, corre-se o risco deste projeto ser apro-vado ou “maquiado” por meio de acordos e con-cessões “apoiadas” pelo Governo Federal. Esta questão é mais séria do que acho que está sendo mostrada. Mais força na resistência, ou o projeto pega, morde e vai machucar muito.

Bruna Vazfi canstt, por correio eletrônico

Cartas devem ser enviadas para o endereço da redação ou através do correio eletrônico [email protected]

FOI O PSICANALISTA José Ângelo Gaiarsa, um dos mes-tres de meu irmão Léo, também terapeuta, que me desper-tou para as obras de Glenn e Janet Doman, do Instituto de Desenvolvimento Humano de Filadélfi a. O casal é especialis-ta no aprimoramento do cérebro humano.

Os bichos homem e mulher nascem com cérebros incom-pletos. Graças ao aleitamento, em três meses as proteínas dão acabamento a este órgão que controla os nossos míni-mos movimentos e faz o nosso organismo secretar substân-cias químicas que asseguram o nosso bem-estar. Ele é a ba-se de nossa mente e dele emana a nossa consciência. Todo o nosso conhecimento, consciente e inconsciente, fi ca arquiva-do no cérebro.

Ao nascer, nossa malha cerebral é tecida por cerca de 100 bilhões de neurônios. Aos seis anos, metade desses neurônios desaparecem como folhas que, no outono, se desprendem dos galhos. Por isso, a fase entre zero e 6 anos é chamada de “ida-de do gênio”. Não há exagero na expressão, basta constatar que 90% de tudo que sabemos de importante à nossa condi-ção humana foram aprendidos até os 6 anos: andar, falar, dis-cernir relações de parentesco, distância e proporção; intuir si-tuações de conforto ou risco, distinguir sabores etc.

Ninguém precisa insistir para que seu bebê se torne um novo Mozart que, aos 5 anos, já compunha. Mas é bom sa-ber que a inteligência de uma pessoa pode ser ampliada des-de a vida intrauterina. Alimentos que a mãe ingere ou rejei-ta na fase da gestação tendem a infl uir, mais tarde, na pre-ferência nutricional do fi lho. O mais importante, contudo, é suscitar as sinapses cerebrais. E um excelente recurso cha-ma-se leitura.

Ler para o bebê acelera seu desenvolvimento cognitivo, ainda que se tenha a sensação de perda de tempo. Mas é im-portante fazê-lo interagindo com a criança: deixar que ma-nipule o livro, desenhe e colora as fi guras, complete a histó-ria e responda a indagações. Uma criança familiarizada des-de cedo com livros terá, sem dúvida, linguagem mais enri-quecida, mais facilidade de alfabetização e melhor desempe-nho escolar.

A vantagem da leitura sobre a TV é que, frente ao moni-tor, a criança permanece inteiramente receptiva, sem condi-ções de interagir com o fi lme ou o desenho animado. De cer-ta forma, a TV “rouba” a capacidade onírica dela, como se so-nhasse por ela.

A leitura suscita a participação da criança, obedece ao rit-mo dela e, sobretudo, fortalece os vínculos afetivos entre o leitor adulto e a criança ouvinte. Quem de nós não guarda afetuosa recordação de avós, pais e babás que nos contavam fantásticas histórias?

Enquanto a família e a escola querem fazer da criança uma cidadã, a TV tende a domesticá-la como consumista. O Insti-tuto Alana, de São Paulo, do qual sou conselheiro, constatou que num período de 10 horas, das 8h às 18h de 1º de outubro de 2010, foram exibidos 1.077 comerciais voltados ao público infantil; média de 60 por hora ou 1 por minuto!

Foram anunciados 390 produtos, dos quais 295 brinque-dos, 30 de vestuário, 25 de alimentos e 40 de mercadorias di-versas. Média de preço: R$ 160! Ora, a criança é visada pelo mercado como consumista prioritária, seja por não possuir discernimento de valor e qualidade do produto, como tam-bém por ser capaz de envolver afetivamente o adulto na aqui-sição do objeto cobiçado.

Há no Congresso mais de 200 projetos de lei propondo restrições e até proibições de propaganda ao público infantil. Nada avança, pois o lobby do Lobo Mau insiste em não pou-par Chapeuzinho Vermelho. E quando se fala em restrição ao uso da criança em anúncios (observe como se multiplica!) lo-go os atingidos em seus lucros fazem coro: “Censura!”

Concordo com Gabriel Priolli: só há um caminho razoável e democrático a seguir, o da regulação legal, aprovada pelo Legislativo, fi scalizada pelo Executivo e arbitrada pelo Judi-ciário. E isso nada tem a ver com censura, trata-se de prote-ger a saúde psíquica de nossas crianças.

O mais importante, contudo, é que pais e responsáveis ini-ciem a regulação dentro da própria casa. De que adianta re-duzir publicidade se as crianças fi cam expostas a programas de adultos nocivos à sua formação?

Erotização precoce, ambição consumista, obesidade exces-siva e mais tempo frente à TV e ao computador que na esco-la, nos estudos e em brincadeiras com amigos, são sintomas de que seu ou sua querido(a) fi lho(a) pode se tornar, ama-nhã, um amargo problema.

Frei Betto escreve uma vez por mês neste espaço.

Frei Betto

Criança, entre livros e TV

De certa forma, a TV “rouba” a capacidade onírica dela, como se sonhasse por ela

comentários do leitor

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brasilde 14 a 20 de abril de 20116

Cinismo superior Todo mundo sabe que as altas

cortes do Judiciário atuam politica-mente para defender os interesses das classes dominantes. Mas a de-cisão do Superior Tribunal de Jus-tiça em anular as provas da Polícia Federal contra executivos da cons-trutora Camargo Corrêa (criação de empresas fi ctícias, remessa ilegal para o exterior, sobrevalorização de obras públicas, pagamento de propi-nas etc), ultrapassa todos os limites do abuso de poder.

Risco alimentarReportagem do jornal The New

York Times alerta que muitos agri-cultores que plantaram milho, soja e trigo na safra do ano passado, nos Estados Unidos e em outros países, estão destinando suas terras para o plantio de algodão neste ano – o que pode acarretar em escassez e novos aumentos nos preços dos alimentos. A mudança de cultivo acontece por-que os preços do algodão dispararam no mercado internacional.

Corrosão salarialO aumento do custo de vida já

começa incomodar a “nova classe C” promovida pela elevação do sa-lário mínimo desde 2003. Segundo o Dieese, em março de 2010 o gasto com alimentação consumiu 46% do salário mínimo e, agora, em março de 2011, a cesta básica representou 47,5% do salário mínimo. Se o custo de vida continuar subindo, em pou-co tempo a maior parte do salário será destinada para a alimentação. Durou pouco!

Jogo pesadoDepois que a Agência Nacional de

Vigilância Sanitária decidiu proibir a comercialização de alguns produtos químicos inibidores de apetite, os chamados emagrecedores, os labo-ratórios farmacêuticos mobilizaram seus lobistas na categoria médica e no Congresso Nacional, e passaram a jogar pesado para a liberação des-sas drogas que estão proibidas em muitos países. Até ameaças de morte foram feitas aos diretores da Anvisa. Tudo pelo lucro!

EstatalizaçãoEm seminário sobre políticas pú-

blicas realizado em São Paulo, dia 8, o sociólogo Rudá Ricci, autor de livro sobre o fenômeno do “Lulismo”, cri-ticou duramente o Estado brasileiro patrimonialista e centralizador. Para ele, existe hoje uma falsa ideia de participação, que não é participação porque a sociedade não tem controle social do que é deliberado nos con-selhos de gestão e nas conferências. Perde-se a oportunidade de democra-tizar o Brasil!

Veneno diárioCom o apoio de movimentos

sociais, entidades e institutos de pesquisas do setor da saúde, foi lan-çada dia 7 a Campanha Permanente Contra o Uso de Agrotóxicos e Pela Vida, que tem por objetivo alertar a sociedade e as autoridades para os danos causados pelos agrotóxicos nos alimentos consumidos pelo povo bra-sileiro. Espera-se que os ministérios da Agricultura e da Saúde deixem de ser omissos!

Lutas sociaisAcontece de 22 a 24 de abril, na

Ocupação Quilombo das Guerreiras, no bairro de Leopoldina, no Rio de Ja-neiro (RJ), a 3ª Confederação Tamoia dos Povos Originários e Sem Teto, que vai debater, entre outros temas, o avanço do capital nas terras indígenas, os despejos e remoções, o terroris-mo de Estado, a criminalização dos movimentos e a unifi cação das lutas sociais. A organização é do Acampa-mento Revolucionário Indígena.

ImpunidadeSó após a imprensa ter revelado a

existência de testemunha do crime de execução praticado por policiais mili-tares de São Paulo, é que a Secretaria da Segurança Pública anunciou que, de agora em diante, a Polícia Civil vai investigar os casos registrados como “resistência seguida de morte” – usa-dos para esconder os assassinatos da Polícia Militar. Será mesmo que os investigadores vão denunciar seus colegas?

MonopolizaçãoA patronal e retrógrada Sociedade

Interamericana de Imprensa, que representa 1.300 jornais do continen-te americano – desde o Canadá até o Uruguai – acaba de se manifestar contra o projeto de lei que tramita no Congresso brasileiro e que restabe-lece a exigência de diploma de curso superior para o exercício profi ssional do jornalismo. Os donos dos jornais querem para si o direito de defi nir quem é jornalista. É direito da socie-dade e do Estado.

fatos em focoHamilton Octavio de Souza

Patrícia Benvenutida Redação

O FIM DE UM processo, mas não o fim de uma prisão. Para Luiz Gonzaga da Sil-va, o Gegê, não há sentença que apague as recordações dos oito anos em que foi acusado de um crime que não cometeu.

Um dos líderes do Movimento de Mo-radia do Centro (MMC), Gegê foi absol-vido em um julgamento realizado nos dias 4 e 5 de abril, no Fórum Criminal da Barra Funda, em São Paulo. Ele era acusado de ser mandante do assassi-nato de José Alberto dos Santos Perei-ra Mendes, morto em agosto de 2002 em um acampamento do MMC na capi-tal paulista.

De 2002 até o dia de seu julgamen-to, Gegê foi preso, enfrentou rebeliões e chegou a ser considerado foragido da Justiça. Para o militante, o período re-presentou um corte em sua vida. “Fo-ram oito anos sem ter o direito de vi-ver”, resume.

A sessão permaneceu lotada duran-te os dois dias de julgamento. Políti-cos e representantes de várias entida-des prestavam solidariedade ao líder e denunciavam perseguição política con-tra Gegê e criminalização contra os mo-vimentos sociais.

Gegê tem um longo histórico de mili-tância social e sindical. O militante par-ticipou da fundação do Partido dos Tra-balhadores (PT), da Central Única dos Trabalhadores (CUT) e de movimentos de moradia. Além disso, integrou en-tidades como Unifi cação das Lutas de Cortiço (ULC), Movimento de Moradia do Centro (MMC), União dos Movimen-tos de Moradia, Fórum Nacional de Re-forma Urbana e Central de Movimentos Populares (CMP).

Em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato, Gegê fala sobre a criminalização das lutas políticas e afi rma que pretende processar o Estado. “Não vou descansar enquanto o Estado não for para o banco dos réus”, garante.

Brasil de Fato – Qual era sua expectativa em relação ao julgamento?Gegê – Eu vou ser sincero, não tinha nenhuma esperança. Não falava isso, mas minha esperança era a mínima possível. Mataram alguém, há um as-sassino, o sistema penitenciário sabe quem foi, sabe o nome, mas não o pro-curou. Com isso posso dizer que eu me sentia completamente vulnerável, ex-posto a sair dali com, no mínimo, 12 anos de prisão. Era o mínimo que eu esperava.

O resultado te surpreendeu então?

O resultado fi nal não me surpreendeu na medida em que o júri foi acontecen-do, os interrogatórios, e a discrimina-ção foi vindo mais à tona. “Eu discrimi-no porque você é um negro, pobre, um sujeito abusado na sociedade e, ao mes-mo, eu criminalizo a sua luta política”. Foi caindo essa máscara, como um ta-buleiro de xadrez em que você vai des-montando peça por peça, até chegar ao ponto em que um dos promotores mais duros do Brasil [Roberto Tardelli, pro-motor responsável pela acusação] ser obrigado a pedir minha absolvição. Ele pediu porque se sentiu um homem im-potente diante dos fatos e dos aconteci-mentos nesses dois dias [de julgamen-to], aquele plenário cheio o tempo todo. Eles perceberam, ali, que estavam lidan-

Oito anos depois, livreENTREVISTA com Gegê absolvido, líder do movimento de moradia fala de perseguição, cárcere e futuro

do com um movimento social, que não estavam julgando a pessoa do Gegê.

Como foi esse período de oito anos em que o processo se arrastou?

Foram oito anos sem ter o direito de viver, pagando por uma pena, julgado e condenado já. Penalização total, sem emprego, sem vida familiar, sem vida pública, sem uma vida digna como qual-quer cidadão tem direito. Um dia eu es-tava aqui, no outro dia não sabia on-de podia amanhecer. Foram oito anos que, para mim, por conta de uma tra-gédia e de uma irresponsabilidade de um ser humano, fui acusado de um cri-me do qual jamais seria cúmplice. E pa-guei por esses oito anos, e aliás eu con-tinuo pagando. Mesmo que no dia 5 te-nha sido dito: “você está livre”, eu con-tinuo pagando. E mais caro inclusive, porque agora vem a censura, “você não pode falar isso”, “você não pode falar aquilo”. Terminou uma fase, um proces-so no dia 5, mas vem outra fase mais du-ra, que são as preocupações que eu vou ter na minha vida. Eu vou ter que sair em busca de uma forma de sobrevivên-cia. Esses oito anos foram anos que me impediram de fazer o que eu queria, era um direito meu, viver minha vida. Con-vivi com tentativas de fuga em DP, com três rebeliões. Não posso esquecer es-sas coisas.

Sua segurança também te preocupa daqui pra frente?

Eu estou inseguro. Continuo preso, em prisão domiciliar. Estou livre, mas muito longe de ter liberdade. Eu não sei se na hora em que eu sair desta ca-sa e puser o pé na rua o que estará por trás, nas minhas costas. Quem fez o que fez para me obrigar a viver oito anos co-mo eu vivi pode estar insatisfeito e dizer “agora sim eu posso tirar a vida dele”. Não tenho medo de nada, mas me preo-cupa a traição. Em 2001, nós [do Movi-mento de Moradia do Centro] chegamos a pedir segurança para o Estado, procu-ramos a Secretaria de Justiça do Estado de São Paulo, por meio do [secretário] Saulo Ramos, e ele nos negou. Eu ten-tei mostrar várias mensagens que tinha recebido, ameaças de morte gravadas, e ele não ouviu uma mensagem sequer. Só disse que era impossível dar segurança para o Gegê ocupar prédios públicos. Se o Estado tivesse me oferecido seguran-ça, talvez hoje eu estivesse livre disso.

Na sua avaliação, quem e que interesses estão por trás desta perseguição?

Não sei. Se eu soubesse, já teria re-solvido esse caso. Mas o que posso di-zer é que por trás de tudo isso está o Es-tado burguês em que vivo, que me per-seguiu, me pondo na prisão domiciliar. E por isso esse Estado não está livre de sofrer sanções.

Você pretende processar o Estado?

Eu vou processar. Vou ainda fazer uma reunião com meu advogado. Quero pro-cessar o Estado por aquelas pessoas que

tentaram me condenar e pôr essas pes-soas na cadeia. E não quero pouca coisa, quero arrancar o que eu puder do Esta-do, porque não se paga oito anos como vivi simplesmente com a palavra e um pedaço de papel dizendo que estou livre. Quero dizer para o Estado “você está pa-gando pelo seu erro, pela sua incompe-tência”. Nunca se foi atrás da pessoa que cometeu o crime, nunca se soube quem foram as outras duas pessoas que entra-ram no acampamento. O Estado tinha a obrigação de procurá-los, mas não foi atrás porque não teve vontade. Não foi feito um trabalho investigativo mí-nimo nesse processo. Teve uma mor-te, teve um criminoso, mas o que inte-ressa é a criminalização dos movimen-tos sociais. O único trabalho foi o de me condenar. Um investigador responsável pelo processo foi me procurar com a ar-ma na mão, apontada para minha cabe-ça. Não vou descansar enquanto o Esta-do não for para o banco dos réus.

E qual deve ser o papel dos movimentos de moradia em relação aos megaeventos que se aproximam como a realização da Copa do Mundo?

Os movimentos têm que ir para a rua mostrar os problemas que vão ser gera-dos por conta dos megaeventos e dos megaprojetos. As pessoas não sabem qual será o impacto ambiental da cons-trução do estádio do Corinthians, em Itaquera [na zona leste de São Paulo]. O povo não sabe que não poderá che-gar nem perto do estádio, vai fi car sa-bendo disso na hora H. A lei de exceção vai ser imposta em cada estado, em ca-da hotel em que estiver uma delegação. E será que, depois que passar a Copa, essa lei de exceção não vai permanecer? Só na ditadura militar a gente vê isso. A gente lutou tanto, morreu tanta gente para pôr fi m à lei de exceção e agora ela está aqui, de volta. Vem aqui um Oba-ma da vida e ninguém pode abrir uma faixa contra a presença dele que vai pra cadeia. Quantos milhões vão ser gas-tos com a Copa aqui no Brasil? Não vou ser contra a Copa, mas por que se gasta tanto dinheiro com a Copa e não se gas-ta com a miséria e a violência? Para fa-zer um estádio para 65 mil pessoas, eles vão mexer com dezenas de milhares de famílias, e vão para onde essas famí-lias? E aí vem o prefeito dizer que esse povo vai ser colocado na região central. Vai poder onde? Só se for na rua. Mais mendigos morando embaixo das pontes e das marquises.

“Os movimentos têm que ir para a rua mostrar os problemas que vão ser gerados por conta dos megaeventos e dos megaprojetos. As pessoas não sabem qual será o impacto ambiental da construção do estádio do Corinthians, em Itaquera. O povo não sabe que não poderá chegar nem perto do estádio, vai fi car sabendo disso na hora H”

“Eu não sei se na hora em que eu sair desta casa e puser o pé na rua o que estará por trás, nas minhas costas. Quem fez o que fez para me obrigar a viver oito anos como eu vivi pode estar insatisfeito e dizer ‘agora sim eu posso tirar a vida dele’”

O líder do Movimento de Moradia do Centro (MMC) Luiz Gonzaga da Silva, o Gegê

Andreson Brabosa/Folhapress

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Vinícius Mansur de Brasília (DF)

EM JUNHO de 2010, a Comissão Espe-cial sobre Mudanças no Código Flores-tal aprovou o relatório do deputado fe-deral Aldo Rebelo (PCdoB-SP). Com as eleições batendo à porta, o governo se-gurou a votação do relatório pelo ple-nário da Câmara, temendo um desgas-te eleitoral – especialmente pelo fator Marina Silva (PV). A então candidata Dilma Rousseff assumiu o compromis-so de vetar qualquer mudança que au-torizasse novos desmatamentos.

Passadas as eleições, a bancada rura-lista tensionou a disputa, aprovou um pedido de urgência e tentou, até a últi-ma sessão de 2010, colocar o relatório em votação. Apesar de fracassarem, o debate acerca do Código impactou for-temente as articulações para a presi-dência da Câmara. O atual presidente da Casa, Marco Maia (PT-RS), ganhou apoio da forte bancada ruralista prome-tendo a votação até fevereiro. O difícil consenso dentro do governo e sua ba-se, especialmente entre os ministérios de Meio Ambiente e Agricultura, trava-ram o avanço da pauta e, como alterna-tiva, Maia criou, em março, uma Câma-ra de Negociação que, até então, pouco caminhou.

No dia 5 de abril, entidades do lobby ruralista, infelizes com a demora nos bastidores, fi nanciaram um evento mi-lionário em Brasília, trazendo milhares de pessoas para defender o relatório de Rebelo. Tentaram demonstrar força ao Palácio do Planalto e dar um verniz po-pular ao projeto. No dia 7 de abril, outra mobilização, esta em oposição ao proje-to, convocada por movimentos do cam-po e ambientalistas, ocupou a Esplana-da. Para avaliar o estágio atual da dis-puta em torno do Código, o Brasil de Fato entrevistou o mestre em Agroe-cologia pela UFSC e dirigente do MST, Luiz Zarref.

Brasil de Fato – O que esperar dessa Câmara de Negociação?Luiz Zarref – A Câmara de Nego-ciação não é regimental, nunca tinha acontecido em nenhuma outra vota-ção da Câmara. Inicialmente tinha uma conjuntura boa, com quatro ruralistas e quatro ambientalistas. Hoje são seis de cada lado e mais dois representantes da liderança do governo e dois da minoria. No início, a Câmara fi cou cerca de um mês e meio sem fazer nada. Com a pres-são nessas últimas semanas, o governo se movimentou mais e o espaço come-çou a funcionar. Mas ainda não se tem claro qual é o papel dessa Câmara. Fo-ram três reuniões e todas só serviram para deliberar sobre o recebimento de notas técnicas. Não se sabe se a Câma-ra servirá só para listar os pontos diver-gentes ou se serão feitas emendas ao re-latório do Aldo Rebelo.

O evento milionário organizado pelos ruralistas fez a balança das negociações pender para o lado deles?

O tiro saiu pela culatra. Eles queriam trazer essa mobilização e garantir a vo-tação, só que não contavam com a mor-te do [ex-vice-presidente] José Alencar, que atrasou a pauta em uma semana. Também não contavam que o PT fi ca-ria fi rme. O Paulo Teixeira [líder do PT na Câmara] disse que o PT não fechará acordo enquanto a proposta do gover-no não chegar. Já o Marco Maia disse que o texto só entra em votação quan-do a Câmara de Negociação terminar os trabalhos. Entretanto, mesmo que não tenham alcançado o impacto esperado, o peso que eles jogaram nesta mobili-zação, a maior que eles já fi zeram, de-monstra o interesse deles nessa pauta.

“Código Florestal é porta de entrada para ruralistas destruírem mais leis”MEIO AMBIENTE Especialista analisa momento da luta em torno do Código Florestal, seu valor estratégico para os ruralistas e cobra posição do governo federal

O que explica tamanho interesse?

Na nossa leitura, o Código é a por-ta de entrada para os ruralistas inicia-rem a destruição das leis agrárias e am-bientais, aquilo que lá em 2009 a Abag [Associação Brasileira do Agronegócio] defi niu como prioridade: rever todas as leis do setor para garantir “segurança jurídica”. Na realidade, a segurança ju-rídica signifi ca limpar toda a sujeira que fi zeram até agora, passar uma borracha no desmatamento, no uso irregular de agrotóxicos e de transgênicos, entre ou-tras. Além de permitir o avanço da pro-priedade privada e do lucro dos ruralis-tas. O Código Florestal tem um apelo muito grande na sociedade urbana. Se eles o destroem, dão uma sinalização de poder muito grande.

As outras pautas, que não estão na so-ciedade, seriam derrubadas com muito mais facilidade. Quem é que vai defen-der o Estatuto da Terra, a Política Na-cional de Meio Ambiente, o Sistema Na-cional de Unidades de Conservação, a Lei de Águas, ou Código de Águas, so-bre recursos hídricos? Está em jogo uma demarcação na guerra de posição muito importante para eles, porque o Código é uma lei que historicamente eles tentam destruir e ainda não conseguiram.

O Código Florestal lhe parece uma legislação adequada?

Ele já é fruto de uma avaliação de al-go que não deu certo, o Código de 1934. Ele surge em 1965 e, apesar de aprova-do no primeiro ano da ditadura, foi con-cebido em um ambiente progressista. Uma sociedade que não discutia meio ambiente sem discutir questão agrária. E ele é discutido em cima de uma dis-puta mundial entre socialismo e capi-talismo. Então, havia uma tendência de se discutir a função social da proprie-dade. O Código criou a fi gura da Reser-va Legal (RL), que não existia em lugar nenhum do mundo e que recentemen-te criaram no Paraguai. Com a RL, uma parcela da propriedade privada tem que ser destinada ao interesse público. O primeiro artigo do Código Florestal diz que “as fl orestas são bem de interesse comum da sociedade brasileira”. Ou se-ja, estão acima dos interesses privados. Poderíamos ter adotado o ambientalis-mo conservador, que foi adotado depois da década de 70 pela ditadura, que era o modelo dos EUA, do parque Yellows-tone. Ou seja, tirar a área da proprieda-de privada, isolá-la dos seres humanos e pronto. Porém, nosso Código traz pa-ra dentro da propriedade privada uma imposição da sociedade brasileira: uma parcela daquela propriedade deve ser utilizada sustentavelmente. Ele já colo-cava o conceito sustentável, um discur-so bem avançado para época.

De que maneira as mudanças propostas por Aldo Rebelo prejudicam a agricultura de menor porte e benefi ciam o agronegócio?

O agronegócio artifi cializa o meio am-biente. Ele mexe com a terra toda, usa o pacote da revolução verde, degra-da e depois de 10 anos vai embora pa-ra outra região. Não é à toa que agora estamos vendo a expansão da fronteira agrícola no Maranhão, Piauí e Tocan-tins, um pouco da Bahia também. Des-truíram as terras do Sul, destruíram as terras na região Centro-Oeste e na fron-teira com a Amazônia e agora estão in-do para esta outra área que se estima ter 30 a 40 milhões de hectares. O agro-negócio tem essa relação ecossistêmica de destruição. A agricultura camponesa não. Se você tira a RL dessas proprieda-des, diminui-se a Área de Preservação Permanente (APP), se você não traba-lha com a recuperação dessas áreas, no médio prazo, esses agricultores terão suas terras inviabilizadas. A RL é inte-ressante naquele microclima, naquele microespaço, porque ela impacta na po-linização de várias culturas, impacta so-bre predadores naturais, então veremos um aumento dos índices de pragas, ela impacta na adubação da terra, impacta no fornecimento de água, muda o cli-ma daquele espaço, impacta no agricul-tor que terá que comprar madeira para qualquer coisa que queira fazer.

O relatório do Aldo não aponta para o centro do problema: o problema não é a lei, mas a falta de regulamentação e im-plementação por parte do Estado brasi-leiro. Se você for ao campo, verá que os agricultores têm o seu pedaço de fl ores-ta. Dali ele tira as plantas medicinais, as ferramentas, os palanques para os gal-pões, ele gosta de ver aquilo. O que ele não gosta é da polícia ambiental ir fazer repressão. Faltam recursos para o agri-cultor recuperar as áreas que ele tem de passivo. E mesmo que o projeto do Aldo libere propriedades com menos de qua-tro módulos fi scais das RLs, as APPs te-rão que ser recuperadas. De onde que ele vai tirar esse dinheiro? Não tem na-da no relatório prevendo isso.

E o que explica a adesão de entidades da agricultura familiar a este projeto?

A Contag está indo para o discurso imediato, reacionário, que só leva ao fracasso da agricultura familiar, um desserviço histórico. Para a agricultu-ra familiar, a solução é de longo prazo. Porque é quem tem relação com a ter-ra. Para o agronegócio há solução ime-diata, porque daqui a dez anos eles fa-zem um tratoraço e vêm limpar as lam-

banças deles de novo. A agricultura fa-miliar não, mesmo que se mude a lei, asterras vão fi car inviabilizadas. A Contagrenegou o debate político com a sua ba-se. Preferiu se submeter à pressão doimediatismo. Há também uma disputainterna na Contag, entre as federaçõesque têm ligação com PT e CUT e fede-rações que têm ligação com o PCdoB eCTB. Então, muito provavelmente hou-ve uma ingerência do PCdoB dentro daContag para pressioná-los. O pior é quenem emendas ao relatório fi zeram, ba-sicamente aderiram, sem enfrentamen-tos com o agronegócio.

Reforçaram a polarização benéfi ca aos ruralistas dos produtores versus ambientalistas?

Isso. Essa posição deles é funcionalao agronegócio. Diferente da décadade 1980 e 1990, nessa primeira décadado século 21 há a hegemonia do agro-negócio, que conseguiu passar por pro-paganda que é ele quem produz para oBrasil. E nessa disputa do Código, elesusaram dessa imagem para dizer quequem quer as mudanças são os verda-deiros produtores, quem não quer sãoos ambientalistas, que ganham muitobem e não têm nada a ver com quemproduz no campo. E a mídia comproumuito isso. Porque os movimentos so-ciais como a Fetraf, o MST, o MPA, aVia Campesina e outros vêm discutin-do o tema, mas suas posições não ga-nham a mesma reverberação. Não apa-rece que os pequenos agricultores es-tão de um lado e os grandes de outro,que nós somos produtores e temos umaposição diferente. Somente produtoresversus ambientalistas.

Quais os próximos passos dessa luta?

Intensifi car o debate na sociedade epressionar o governo para tirar umaposição que altere a correlação de for-ças. O indicativo do presidente da Câ-mara é que a votação vá para maio, de-pois de fi nalizados os trabalhos da Câ-mara de Negociação. Mas difi cilmen-te haverá votação sem indicação clarado governo.

“Está em jogo uma demarcação de posição muito importante para eles, porque o Código é uma lei que historicamente tentam destruir e ainda não conseguiram”

“O Código Florestal, apesar de aprovado no primeiro ano da

ditadura, foi concebido em um ambiente progressista”

“O Código Florestal tem um apelo muito grande na sociedade urbana. Se eles o destroem, dão uma sinalização de poder muito grande”

“O relatório não aponta para o centro da questão: o problema não é a lei, mas a falta de regulamentação por parte do Estado”

“O indicativo do presidente da Câmara é que a votação vá para maio. Mas difi cilmente haverá votação sem indicação clara do governo”

A presidente da CNA, senadora Kátia Abreu, e o deputado Aldo Rebelo participam de manifestação em defesa da aprovação do novo Código Florestal Brasileiro

Marcello Casal Jr/ABr

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brasilde 14 a 20 de abril de 20118

Charles Soutode Aracaju (SE)

OS RECENTES indicativos econômicos e sociais de Sergipe parecem confi rmar o êxito dos investimentos do Programa Sergipano de Desenvolvimento Industrial (PSDI), que tem por objetivo incentivar e estimular o desenvolvimento sócio-eco-nômico estadual.

Menor estado da federação, Sergipe conta com o melhor IDH e o melhor ín-dice de Desenvolvimento Socioeconômico da região Nordeste. A taxa de mortalidade infantil caiu de 21,13 por mil nascidos vi-vos em 2006, para 14,94 em 2010.

Nos últimos três anos, segundo o Ca-dastro Geral de Empregados e Desempre-gados (Caged) do Ministério do Trabalho, foram criados 54.778 empregos com car-teira de trabalho na economia sergipana. Nesse período, foram implantadas 110 novas indústrias no estado. Além disso, seu PIB per capita, que representa a ri-queza média gerada no ano por pessoa re-sidente no estado, somou R$ 9.778,96 em 2008. Com isso, Sergipe manteve o 1º lu-gar no ranking do Nordeste, seguido pelos estados da Bahia e de Pernambuco.

Esses resultados excepcionais não im-pedem, entretanto, a importação de tra-balho infantil alagoano para os canaviais sergipanos, como comprova a presença de três menores dentre as vítimas de um aci-dente em Capela, no dia 27 de março, que resultou na morte de um lavrador de 17 anos (ver matéria abaixo).

Portanto, antes de afi rmar que Sergi-pe seja um novo Eldorado, seria pruden-te ir mais além dos dados e estatísticas e buscar na recente conformação sócio-eco-nômica do estado as causas – e fi ssuras – desse modelo de desenvolvimento.

Pilares da dependência Ao analisar a economia sergipana, Ri-

cardo Lacerda, professor de economia da UFS (Universidade Federal de Sergipe) e assessor econômico do governo estadu-

Sergipe, “progresso” e contradições

al. revela que a “participação tão expres-siva do setor industrial na riqueza gera-da em Sergipe deve-se, essencialmente, à presença de dois subsetores que têm peso muito maior no estado do que na média do Brasil e, em particular, do que nos de-mais estados nordestinos: a indústria ex-trativa mineral, que conta com a produ-ção de petróleo e gás e a extração de sais de potássio, e a produção e distribuição de energia, em que se inclui a usina hi-drelétrica de Xingó.”

Desde a entrada em operação, em 1963, do campo terrestre de Carmópolis, a ex-ploração do petróleo tem sido um dos principais vetores de desenvolvimento da economia sergipana. De acordo com Lacerda, “em 2007, último ano com da-dos disponíveis para as contas regionais, a indústria extrativa mineral, que abran-ge a atividade de exploração de petróleo e gás, respondia por 6,22 % do PIB sergi-

pano. O peso da cadeia de petróleo e gás ultrapassa muito essa porcentagem, con-siderando-se os efeitos multiplicadores da massa de salário paga e dos contra-tos de fornecimentos de bens e serviços e dos tributos e royalties.”

Sobre a hidrelétrica de Xingó, instala-da na divisa com Alagoas, o economista sergipano lembra que “na divisão das ati-vidades, Alagoas fi cou com as moradias, mas as turbinas fi caram do lado de cá. Is-so quer dizer que toda energia de Xingó é contabilizada pelo lado de Sergipe. En-tão, não só os royalties são nossos, como a atribuição da riqueza gerada no PIB, que é expressiva, conta para Sergipe”.

Estado presenteFechando esse quadro, some-se a atu-

ação do setor público na economia sergi-pana, que em 2008 respondia por 24,5% da riqueza gerada no estado. Ou seja, cerca de um em cada quatro reais gera-dos na economia sergipana são origina-dos no setor público, contando com os

gastos dos governos federal, estadual edos municípios e as aposentadorias, pen-sões e outras transferências de recursos.

Revela-se, dessa forma, uma economiaessencialmente dependente da atuaçãoestatal. Pode-se argumentar que Sergipepossui maior taxa de urbanização, me-nor faixa de região semi-árida e menorconcentração relativa de terra da região,mas o fato preponderante para que o es-tado apresente indicadores sociais e eco-nômicos signifi cativamente superiores à maioria dos estados da região é a for-te atuação do Estado – seja diretamentepor seus entes de administração pública,seja indiretamente através do setor pro-dutivo estatal (Petrobras e Xingó).

As estatísticas mentem“Eu não posso dizer que o estado de

Sergipe, por ter o melhor IDH do Nor-deste, é mais desenvolvido que Bahia,Pernambuco e Ceará”, assegura LuizMoura, economista do Dieese (Depar-tamento Intersindical de Estatísticas eEstudos Sócio-Econômicos). Para ele,é preciso ter cuidado com algumas dis-torções estatísticas que esses indicadorespodem causar.

“Sergipe tem os melhores indicadoressociais do Nordeste por um motivo só: opeso da capital Aracaju dentro do estado.Por se tratar de um território pequenoem que a capital representa 38% da eco-nomia sergipana, os indicadores positi-vos de Aracaju puxam os dos outros mu-nicípios. Se você tira a capital, a maio-ria dos municípios sergipanos fi ca na va-la comum de qualquer indicador nordes-tino. Basta lembrar que 20 dos 75 mu-nicípios de Sergipe estão entre os pioresIDHs da região”, aponta Moura.

Para reforçar seu ponto de vista, e de-monstrar a fragilidade desses indicado-res, Moura cita como exemplo o municí-pio de Canindé de São Francisco. Por sera sede da hidrelétrica de Xingó, Canin-dé possui o maior PIB do interior do es-tado devido aos royalties que recebe, “noentanto é um município extremamentecomplicado do ponto de vista de servi-ços e políticas públicas”, alerta o econo-mista do Dieese. O PIB per capita de Ca-nindé é o maior de Sergipe, quatro vezeso de Aracaju, mas 42% de seus habitan-tes ainda são analfabetos.

Não se pode negar que Sergipe possuios melhores índices de desenvolvimen-to social do Nordeste, mas certas distor-ções existentes nesses indicadores po-dem camufl ar a permanência, e até mes-mo o fortalecimento, da desigualdade so-cial no estado.

NORDESTE Menor estado da federação apresenta índices de desenvolvimento positivos, mas ainda tem estatísticas questionáveis

de Coruripe/AL e Aracaju/SE

“Não tem foto dele não. Ele não gosta-va de foto. Mas se você quiser, tem uma que a gente tirou do celular no velório. Dá pra ver bem o rosto dele no caixão”, afi rma Benedita Alves. De gravata preta, camisa de linho branca, envolto por péta-las amareladas, o bigode ralo é uma tenta-tiva inútil de disfarçar os 17 anos de Die-go Alves dos Santos, morto na manhã de terça-feira, 29 de março, quando o ônibus que o transportava para o corte de cana na usina Taquarí colidiu com uma carre-ta nas imediações do município sergipa-no de Capela.

Na varanda de sua casa, à beira dos ca-naviais que rodeiam o pequeno povoado de Bota Fogo, divisa dos municípios de Coruripe e Pindorama, no sul de Alago-as, Benedita lembra que aquela não fo-ra a primeira vez que seu sobrinho via-jou para cortar cana no estado vizinho. “Sempre que termina a moagem nas usi-nas daqui, o José Cícero empreiteiro con-voca o pessoal do povoado para trabalhar em Sergipe. Antes do acidente, o Diego já tinha passado uma semana inteira cor-tando cana por aquelas bandas”, revelou Benedita.

Na madrugada daquela terça, Diego e mais 24 conterrâneos partiram de Bo-ta Fogo rumo a mais uma jornada de tra-balho. A poucos quilômetros de seu desti-no fi nal, o motorista do ônibus perdeu o controle do veículo e bateu de frente com um caminhão carregado de coque, um de-rivado do petróleo utilizado na fabricação de cimento. Além de Diego, os dois moto-ristas e mais um cortador morreram. Ma-

xwell Santos, de 17 anos, teve um dos bra-ços amputado e continua internado no Hospital de Urgência de Sergipe (Huse).

“Até agora ninguém da usina procurou a gente”, informou Benedita. Por tratar-se de um menor de idade sem carteira as-sinada, ela não tem esperanças de que a Usina Taquarí assuma a responsabilidade sobre o acidente – o que em outras pala-vras signifi caria admitir que possui traba-lho clandestino em seus canaviais.

Novas usinas Diego Alves começou a trabalhar nos

canaviais em 2008, mesmo ano de inau-guração da Usina Taquarí. Enquanto o jovem alagoano desferia seus primeiros golpes de facão, recebendo menos de R$ 4 por tonelada de cana cortada, o Grupo Samam investia R$ 68 milhões para pôr em funcionamento no povoado Miranda, município de Capela, “das mais modernas usinas de álcool do Nordeste, com 10 mil tarefas de terra tomadas pelo plantio de cana-de-açúcar, tendo capacidade de mo-agem de 500 mil toneladas e produção de 30 milhões de litros de álcool por sa-

fra”, segundo informações do site ofi cial da empresa.

A Sociedade Anônima Aguiar Menezes (Samam) foi criada há mais de 80 anos pelo empresário Manuel Aguiar Menezes. Ao longo do século passado, o Senhor Ma-nelito, como fi cou conhecido na sociedade sergipana, transformou pequena empresa de ferragens, louças e vidros em uma hol-ding com faturamento anual de mais de R$ 360 milhões e que abrange mais de 20 empresas atuantes nas áreas de de carros, caminhões e tratores, agronegócio, indús-tria, clínicas hospitalares e serviços em geral. O grupo é comandado por seus ne-tos Henrique e Manelito Menezes e tem na caçula Taquarí a sua mais nova galinha dos ovos de ouro. A expectativa é que já em 2012 a usina alcance seu ápice de fun-cionamento, chegando à marca de 40 mi-lhões de litros de álcool por safra.

Dinheiro públicoO que poucos sabem, todavia, é que boa

parte dos R$ 68 milhões investidos na construção da Taquarí não saíram efeti-vamente dos bolsos dos presidentes da

Samam. Na verdade, a empreitada foi fi -nanciada pelo governo de Sergipe, através do Banese – Banco Estadual de Sergipe. Além do fi nanciamento público, a Taqua-rí foi contemplada com uma redução de 90% no recolhimento do ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Servi-ços) durante um prazo de 15 anos.

“Meu otimismo é ancorado não só na forte demanda pelo álcool combustível, mas também na certeza de incentivos fi s-cais concedidos pelo governo do estado. O incentivo fi scal do governo foi crucial. Caso não recebêssemos esse apoio, seria completamente inviável criar o empre-endimento”, afi rmou o presidente Ma-nelito Menezes, quando da inauguração da usina.

Mesma vantagem foi dada a CarlosVasconcelos, presidente da Agroindus-trial Campo Lindo. Instalada no municí-pio de Nossa Senhora das Dores no mes-mo ano de 2008 e com capacidade para produzir 700 mil litros de etanol por dia,80% dos R$ 120 milhões gastos na cons-trução da Usina Campo Lindo foram fi -nanciados pelo BNB – Banco do Nordes-te do Brasil.

A instalação das usinas de Campo Lin-do e Taquarí são exemplos concretos de um novo ciclo de recuperação da ativi-dade canavieira em Sergipe, segundo Ri-cardo Lacerda, professor de economia da UFS e assessor econômico do governo es-tadual. “Desde 2004, impulsionada pela expansão da frota nacional de veículos bi-combustíveis e pela trajetória ascenden-te do preço do açúcar no mundo, a ativi-dade canavieira de Sergipe iniciou um ci-clo de recuperação que veio a ser conso-lidado nos últimos anos com a implanta-ção das usinas de Campo Lindo e Taqua-rí. Ainda que a produção de cana-de-açú-car de Sergipe represente apenas 3,7% do total do Nordeste, esse ciclo recente con-fi rmou um novo espaço para atividade ca-navieira no estado”, opina Lacerda. Em 2009, por exemplo, a produção sergipa-na atingiu 2,7 milhões de toneladas, 98% maior que a safra de 1996. (CS)

Martírio da cana conta com fi nanciamento públicoInvestimento estatal em usinas sucroalcooleiras fi nanciam desenvolvimento do setor no Sergipe

24,5%da riqueza gerada no estado

é fruto da atuação estatal

“Eu não posso dizer que o estado de Sergipe, por ter o melhor IDH do Nordeste, é mais desenvolvido que Bahia, Pernambuco e Ceará”

“Em 2007, a atividade de exploração de petróleo e gás, respondia por 6,22 % do PIB sergipano”

“Boa parte dos R$ 68 milhões investidos na construção da Taquarí foram fi nanciados pelo governo de Sergipe”

Obras no interior sergipano: índices de desenvolvimento escondem desigualdade social

Lucio Telles/ASN

Investimento público não impede o trabalho clandestino nos canaviais das usinas

João Zinclar

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de 14 a 20 de abril de 2011 9américa latina

Dafne Melode Buenos Aires (Argentina)

DE UM LADO, trabalhadores rurais vi-vendo em condições subumanas, sem água potável e condições de higiene bási-cas ou alimentação adequada, com pou-ca ou nenhuma remuneração e, quase sempre, impedidos de ir e vir. Do outro, grandes empresas do agronegócio, como a transnacional estadunidense Dupont e a argentina Nidera, uma das maiores ex-portadoras de grãos do país.

Essas são as duas faces da moeda do trabalho escravo na Argentina.

Somente neste ano, o órgão respon-sável pela fi scalização, a Administração Federal de Ingressos Públicos (Afi p), já encontrou mais de 500 trabalhadores em condições análogas à escravidão em pouco mais de nove operativos. Contan-do os trabalhadores urbanos mantidos em condições de escravidão, o número chega a pouco mais de 1.200. E as de-núncias não param de aparecer. A Afi p acredita que hoje há cerca de 1,3 mi-lhão de trabalhadores rurais no país: pelo menos três quartos desse total são mantidos na ilegalidade; parte deles, co-mo escravos.

“Manter trabalhadores em condi-ções de escravidão é inerente ao mode-lo agropecuário e agrícola existente”, ex-plica Diego Montón, militante do Movi-mento Nacional Camponês e Indígena (Mnci), entidade ligada à Via Campesi-na. Para Montón, o principal motivo pa-ra a persistência desse tipo de explora-ção da mão de obra no campo é a lógica de “lucratividade máxima” das empre-sas do agronegócio.

Os velhos grilhões da moderna agropecuáriaARGENTINA Desde o começo do ano, operativos em todo país resultaram na descoberta de mais de 500 trabalhadores em condições análogas à escravidão em zonas rurais

Guillermo Neiman, professor da Uni-versidade de Buenos Aires e da Facul-dade Latino-americana de Ciências So-ciais (Flacso), concorda: “As empresas querem maximizar sua rentabilidade. E isso não só por meio de salários baixos e uso de trabalho escravo, mas muito fre-quentemente evadindo suas obrigações fi scais também”.

Grandes empresasNa província de Catamarca, uma fa-

zenda de oliveiras pertencente a um grupo que possui como um de seus acio-nistas uma empresa de transporte ur-bano mantinha 296 pessoas, entre ho-mens, mulheres e crianças, em condi-ções subumanas, todos juntos em um mesmo galpão, sem água potável e com os documentos retidos. Podiam ganhar

até 9 pesos por cada caixa de azeitona colhida – podendo, no máximo, colher nove caixas – e eram obrigados a com-prar comida de uma mulher que cobra-va 25 pesos por dia.

Outra descoberta foi feita em 10 de março em uma fazenda de erva-ma-te pertencente a uma empresa que, de acordo com a Afi p, declarou lucro de 16 milhões de pesos em 2010. Trinta traba-lhadores foram encontrados.

Já no caso da transnacional estadu-nidense Dupont, foram descobertos “acampamentos” de trabalhadores ru-rais em terras pertencentes a sua sub-sidiária no país, a Pioneer, no interior das províncias de Córdoba e de Bue-nos Aires.

Neste último local, na cidade de Sal-to, os funcionários da Afi p encontra-

de Buenos Aires (Argentina)

Na Argentina há uma combinação fa-tal que difi culta imensamente o comba-te ao trabalho escravo no campo: uma lei trabalhista abusiva e uma burocra-cia sindical que atua de acordo com os interesses do agronegócio e que coíbe a formação de sindicatos e organizações combativas.

De acordo com Diego Montón, mili-tante do Movimento Nacional Campo-nês e Indígena (Mnci), a última dita-dura militar argentina (1976-1983) te-ve uma grande preocupação de coop-tar e destruir a organização dos traba-lhadores. Para isso, criou uma lei traba-lhista abusiva no setor agrícola e fomen-tou a burocracia sindical, que tem co-mo principal expoente a União Argenti-na de Trabalhadores Rurais e Estivado-res (Uatre). Seu secretário-geral, Geró-nimo Venegas, foi recentemente acusa-do de comandar uma máfi a de falsifi ca-ção de medicamentos e é aliado político do ex-presidente e possível candidato à presidência este ano, Eduardo Duhalde (acusado de ser o mandante político do assassinato dos piqueteiros Darío San-tillán e Maximiliano Koteski, em junho de 2002, na estação de trem de Avella-neda).

Montón conta que era comum a Ua-tre avisar os fazendeiros de que have-ria inspeções em suas propriedades, o que possibilitava retirar os trabalhado-res mantidos como escravos.

Lei de VidelaOutro grande entrave é a atual lei que

rege as relações de trabalho no cam-po, assinada pelo ditador Jorge Rafa-el Videla em 1980. “Ainda que a lei fos-se cumprida, não adiantaria porque ela não é adequada”, afi rma Guillermo Nei-man, professor da Universidade de Bue-nos Aires.

A lei criou um regime especial para o trabalhador rural. Na prática, não fi xa uma jornada, apenas afi rma que entre uma e outra deverá haver uma pausa de pelo menos 10 horas – e fl exibiliza essa pausa em casos em que “necessidades impostergáveis da produção ou manu-tenção justifi carem sua redução”. Além disso, o salário mínimo não é o mesmo que o defi nido para o restante dos tra-balhadores.

Dessa forma, ainda que haja fi scaliza-ção e punições, com aplicações de mul-tas e fechamento de fazendas, a lei per-mite que a precarização do trabalho

rural persista. Neiman aponta que os proprietários se sentem à vontade pa-ra nem mesmo cumprir essa lei e que essas práticas do empresariado agríco-la devem ser vistas como algo inerente ao modelo de produção hoje. Nos paí-ses da América Latina, aponta, não há política de valorização de salários pa-ra esses trabalhadores. Ela cita como exemplo uma recente pesquisa condu-zida pela FAO, divisão das Organiza-ções Unidas para agricultura e alimen-tação, sobre a diminuição da pobreza no campo. Em países que mostraram alguma redução, como Brasil e Chile, isso se deveu a políticas públicas – co-mo Fome Zero e Bolsa Família no caso do Brasil – e não devido à valorização do trabalho.

Nova leiO governo federal argentino de Cris-

tina Kirchner apresentou em junho do ano passado uma nova lei para regu-lamentar o trabalho rural. De acordo com Diego Montón, há avanços no tex-to, mas uma mudança real só ocorre-ria se a medida viesse acompanhada de outras. “A lei avança em pontos concre-tos, mas ela deve vir junto com outros esforços na área da educação no cam-po, fi nanciamento à agricultura fami-liar e distribuição de terras”, propõe o militante.

Guillermo Neiman afi rma que dentre os pontos positivos, a lei defi ne a jorna-da de oito horas e reconhece o salário mínimo. A lei também fi xa a hora-extra

e aumenta o tempo de férias. Dentre os negativos, mantém e reconhece o traba-lho temporário. Entretanto, a lei foi re-chaçada pelos sindicatos patronais e pe-la Uatre, que ameaçaram a realização deuma greve patronal caso a lei fosse apro-vada. Para Montón, hoje o “governo não tem a correlação de força necessária pa-ra aprovar o projeto de mudança na le-gislação”, sobretudo neste ano, em que novas eleições presidenciais acontecem em setembro e a oposição deverá acir-rar os ânimos frente a qualquer oportu-nidade. O projeto foi encaminhado aoCongresso e aguarda votação.

Outro ponto importante da nova leié passar o Registro dos TrabalhadoresRurais (Renatre) para o Ministério do Trabalho, que se dedicaria às atividades de registro trabalhista e combate ao tra-balho informal. Hoje, o órgão funciona como uma autarquia, e quem comanda a entidade são as quatro entidades pa-tronais e a Uatre. (DM)

Lei arcaica e sindicatos pelegosNo campo, lei trabalhista data da ditadura, que buscou enfraquecer e cooptar sindicatos rurais

ram cerca de 25 barracos e oito tra-balhadores no local. Em depoimento,afi rmaram que o lugar chegou a abrigar100 pessoas que se dedicavam à colhei-ta de milho. A atividade era feita de se-gunda a segunda, cerca de nove horaspor dia e a remuneração era de 3,50 pe-sos por hora.

Já em Córdoba, foram detectados 140trabalhadores. Eles eram mantidos nafazenda em condições precárias, semágua potável, energia elétrica e banhei-ro adequado, e dormiam em cubículos.Eram impossibilitados de deixar o localaté o fi m da colheita do milho. A em-presa pagava 97 pesos por dia e descon-tava danos causados às plantas. Os tra-balhadores apontaram que como nãohavia forma de medir tais danos, nun-ca sabiam ao certo quanto iam receberde verdade.

Condições-padrãoNo caso da Nidera, pouco antes do fi m

de 2010, os funcionários da Afi p encon-traram 180 pessoas, sendo 60 crianças. Na prática, não recebiam nenhuma re-muneração, pois eram proibidas de sair do local e a comida fornecida era vendi-da pelos donos a preços altos, que “con-sumiam toda a remuneração”, segundoos trabalhadores. Em todos os episó-dios, as empresas negam o uso de tra-balho escravo.

Em sua página na internet, a empre-sa Nidera afi rma aplicar “as condiçõesde trabalho padrão” do agronegócio.Não deixa de ser verdade, já que o usode mão de obra precarizada ou escravaé algo comum no campo argentino. “Nocampo, a presença de trabalho escra-vo é histórica e o que chama a atençãoé que ele está presente em países quepassaram por processos de moderniza-ção do campo, ou seja, com emprego denovas técnicas e de tecnologia. Apesardisso, os trabalhadores rurais continu-am mal pagos e vulneráveis a altos índi-ces de ocorrência de acidentes”, analisaGuillermo Neiman.

Diego Montón afi rma que muitos dos trabalhadores são temporários e viajampelo país para trabalhar nas colheitas demilho, erva-mate, cana-de-açúcar, alho e assim por diante. “Normalmente, são homens, de origem indígena, e, muitas vezes, de países limítrofes como Para-guai e Bolívia”, aponta.

Para Neiman, um dos primeiros pas-sos para erradicar o problema está nafi scalização, que foi retomada no país há pouco tempo. Durante todo o período da ditadura, houve total conivência coma exploração da mão de obra no campo.Nas décadas neoliberais, idem. “Na dé-cada de 1990, quase não se fez contro-le. A partir de 2003 é que essa atribui-ção volta ao governo nacional e a fi sca-lização volta a ser feita”, explica. Dados ofi ciais do Ministério do Trabalho apon-tam que em 2003 haviam 21 fi scais, me-nos de um por estado, enquanto hoje há quase 500.

A ditadura militar argentina teve uma grande preocupação de

cooptar e destruir a organização dos trabalhadores. Criou uma lei

trabalhista abusiva no setor agrícola e fomentou a burocracia sindical

O governo federal argentino de Cristina Kirchner apresentou em junho do ano passado uma nova lei para regulamentar o trabalho rural

500trabalhadores em condições análogas à escravidão foram

encontrados neste ano na ArgentinaAcredita-se que hoje há

cerca de 1,3 milhão de trabalhadores rurais no país: pelo menos três quartos desse total são mantidos na ilegalidade; parte deles, como escravos

Em sua página na internet, a empresa Nidera afi rma aplicar “as condições de trabalho padrão” do agronegócio. Não deixa de ser verdade, já que o uso de mão de obra precarizada ou escrava é algo comum no campo argentino

Crianças trabalham em fazenda de produção de erva-mate em Missiones, Argentina

Reprodução

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américa latinade 14 a 20 de abril de 201110

Eduardo Sales de Limada Redação

O EX-MILITAR Ollanta Humala, do Partido Nacionalista Peruano (PNP), apoiado pelas forças de centro-esquerda e esquerda, venceu o primeiro turno das eleições presidenciais, realizado no dia 10 de abril. O que não garantiu sua ime-diata ascensão à presidência.

Isso porque Keiko Fujimori estará na disputa com ele no segundo turno. Kei-ko é fi lha do ex-presidente Alberto Fuji-mori, preso por atos corrupção. Segun-do analistas, as forças de direita vão se unir e contam com o apoio da grande imprensa local, que alardeia Humala como apoiador político dos presidentes da Venezuela e da Bolívia, Hugo Chávez e Evo Morales, respectivamente.

O dirigente nacional do Partido dos Trabalhadores (PT), Valter Pomar, es-tá no Peru para acompanhar as eleições em nome da secretaria executiva do Fo-ro de São Paulo (organização formada por partidos políticos, movimentos so-ciais e organizações não governamen-tais da América Latina e Caribe). Se-gundo ele, existe uma grande chance de Ollanta Humala ser eleito presidente do Peru, no segundo turno, marcado para o dia 5 de junho. O que não quer dizer que a eleição esteja garantida, conside-rando que as forças de direita, aglutina-das, se empenharam no processo eleito-ral para eleger a fi lha do ex-presidente Alberto Fujimori.

Brasil de Fato – A grande imprensa tem dito que o Partido dos Trabalhadores (PT) está encampando um forte apoio à candidatura de Ollanta Humala desde o Brasil. Isso está ocorrendo de fato? Por que?Valter Pomar – O Partido dos Traba-lhadores e o Partido Nacionalista Peru-ano participamos juntos do Foro de SP. É ótimo que o povo peruano tenha con-tado com Ollanta Humala como alter-nativa nesta e na anterior disputa eleito-ral. E, evidentemente, o PT mantém to-tal distância do “fujimorismo”.

Humala cresceu nas pesquisas de intenção de voto por assumir uma postura mais moderada? Você concorda com essa análise?

Aqui [no Peru] e aí [no Brasil], a gran-de imprensa trabalha com caricaturas. A verdade é: as candidaturas e os parti-dos apoiados pela mídia que diziam isto perderam a disputa. Perderam feio.

A única coisa em comum entre Keiko Fujimori e Ollanta Humala é que o elei-torado de ambos está concentrado nos setores populares. E o povo que votou em Ollanta Humala tem a esperança de que seu governo contribua para mudar para melhor a vida do povo peruano, através de medidas como saúde pública,

escola pública, defesa dos interesses na-cionais, democratizar o país, fortalecer o Estado, defender os direitos humanos e combater a corrupção.

Se eleito, Humalla tende a se aproximar do projeto da Alternativa Bolivariana para as Américas (Alba), implementando um modelo semelhante ao de Chávez e ao de Evo Morales?

Ollanta Humala vai implementar um projeto peruano.

Por outro lado, uma vitória de Keiko Fujimori nessas eleições poderá signifi car uma política de continuidade em relação àquela implementada pelo governo Alan Garcia?

É pior do que isto. Uma eventual vi-tória de Keiko Fujimori seria a volta de um grupo que implementou o neolibe-ralismo no Peru, nos anos de 1990, atra-

Ailín Bullentinide Buenos Aires (Argentina)

SYLVAIN POOSSON é professor de li-teratura hispano-americana e diretor de Estudos Internacionais da Universi-dade de Hampton, nos EUA. Nasceu na Costa do Marfi m, onde estudou, exerceu o jornalismo e participou da chegada da democracia, no princípio da década de 1990. Ainda que esteja longe, sabe ana-lisar e conhece com detalhes a realidade de seu país, que nos últimos anos lhe ti-rou seu sono.

“O presidente Laurent Gbagbo come-teu muitos erros. Mas é o pai da demo-cracia, militou mais de 20 anos na polí-tica de seu país e esperou por um pro-cesso eleitoral democrático para chegar à presidência. Não é golpista, respeita os direitos de seu povo. Alassane Ouattara, ao contrário, é um assassino sem pieda-de e ambicioso que faria qualquer coi-sa para se sentar na cadeira do poder”, comparou, em conversa telefônica sobre seu ponto de vista a respeito da crise no país africano. No dia 12, Gbagbo foi deti-do e colocado sob custódia das forças le-ais a Ouattara após tropas francesas te-rem cercado o bunker onde permanecia escondido.

Os meios ocidentais contavam as horas para que as tropas de Ouattara, ajudados pela França e pela ONU, o arrancassem do poder. O que está certo nisso? Sylvain Poosson – A informação que chega sobre o confl ito está fi ltrada, em

sua maioria, pela imprensa francesa, que conta a história ofi cial. Mas é preciso ter cuidado, sobretudo em relação a temas internacionais nos quais a França tem interesses em jogo. Nesses casos, a im-prensa francesa joga em favor do gover-no, quase como se fosse sua empregada.

Por que a França interferiu na Costa do Marfi m?

Um dos principais pontos da plata-forma de Gbagbo para as eleições de novembro baseou-se em um redesenho da política econômica do país, que ine-vitavelmente afetava a França e os ne-gócios que o país tem na nação africa-na. Oitenta e cinco por cento das divi-sas que sustentam a economia da Cos-ta do Marfi m estão depositadas nos bancos franceses. A França tem 2.500 empresas na Costa do Marfi m e divide com a Inglaterra a compra da produção de petróleo e cacau – base da economia da Costa Marfi m – do meu país. A Cos-ta do Marfi m ganha, pela venda desses produtos, 12% dos lucros que a França gera com sua revenda. Essa é a ameaça que a França enfrenta se Gbagbo seguir na presidência. Quando foi ministro da Economia – entre 1990 e 1993 – Ouat-tara se encarregou de vender todas as empresas estatais a capitais privados, em sua maioria estrangeiros. Paris se benefi ciou enormemente.

O que Gbagbo fez para mudar essa realidade, durante os dez anos que exerceu a presidência?

Não pôde fazer muito. Assumiu a pre-sidência em 2000 e, três anos depois, as milícias rebeldes do norte do país, com armas e mercenários de Burkina Faso e o apoio oculto da França, tentaram der-rubar seu governo, planejando matá-lo. Ouattara apoiou esse golpe. Deixaram-no vivo, mas iniciaram uma guerra civil e verteram sangue de centenas de ino-centes nas ruas. O país fi cou dividido em dois: o norte, sob o comando dos re-beldes, e o sul, com Gbagbo, que acabou negociando o poder completo. Ficou na presidência, mas nomeou o líder dos re-beldes, Guilliame Soro, como primeiro-ministro. Desde então, nunca mais pô-de avançar dois passos sem a ameaça de colocar o país em guerra. Perdeu toda a condução.

O mandado presidencial de Gbagbo venceu em 2005. Por que as eleições atrasaram cinco anos?

Ele cometeu milhares de erros comopresidente. O primeiro foi ter permitido que a corrupção contaminasse cada can-to de seu gabinete. Mas não foi ele quenão quis realizar as eleições: foi Soro, através da ameaça permanente de vio-lência e suas contribuições para man-ter o país dividido, o que não permitiua instauração de um ambiente propício para as eleições. Convinha a Soro e aosrebeldes do norte se manterem no poderdevido aos negócios ilegais do tráfi co de cacau. Inclusive, em novembro de 2010, Gbagbo alertou sobre a inconveniênciade levar a cabo eleições democráticas,com tanta violência nas ruas.

Por que não se pôde defi nir ainda o processo eleitoral de novembro?

Outtara teria ganho as eleições presi-denciais se não tivesse maltratado tan-to a população. As tropas rebeldes ma-taram e disseminaram o medo para que ele se alçasse à presidência. Mulheres foram violadas, milhares de marfi nen-ses foram assassinados por essas bestas, com o apoio da França, para atemorizar e ganhar votos. As eleições não foram livres nem democráticas. A Comissão Eleitoral Independente, que deu vitória a Ouattara, tem 22 membros, dos quais 20 são vinculados a Outtara. Quando es-ses resultados preliminares chegaram à Corte Suprema, a autoridade considerou que havia sinais de fraude, mas não or-denou a anulação das eleições e a reali-zação de um novo processo. (Página 12)

Tradução: Tatiana Merlino

Humala sai na frente no PeruENTREVISTA No entanto, disputará o segundo turno com a deputada Keiko Fujimori, representante das forças políticas de direita

“Gbagbo não é um golpista”COSTA DO MARFIM Segundo o intelectual marfi nense Sylvain Poosson, políticas do presidente recém-deposto contrariava interesses franceses

vés de uma ditadura corrupta, agressora dos direitos humanos e submissa aos in-teresses dos EUA.

Se vencer, qual será o papel de um possível governo de Humala em relação à integração da América Latina?

Ele já disse várias vezes que vai apos-tar nos projetos de integrar a área andi-no-amazônica e no projeto da União de Nações Sul-Americanas (Unasul).

ÁFRICA

“Um dos principais pontos da plataforma de Gbagbo para as eleições de novembro baseou-se em um redesenho da política econômica do país, que inevitavelmente afetava a França”

“Convinha a Soro e aos rebeldes do norte se manterem no poder devido aos negócios ilegais do tráfi co de cacau”

“É ótimo que o povo peruano tenha contado com Ollanta

Humala como alternativa nesta e na anterior disputa eleitoral”

“O povo que votou em Humala tem a esperança de que seu governo contribua para mudar para melhor a vida do povo peruano”

Reprodução

Reprodução

O candidato á presidência do Peru Ollanta Humala

Cartaz da campanha eleitoral de Laurent Gbagbo

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internacional de 14 a 20 de abril de 2011 11

Achille Lollo de Roma (Itália)

AO CITAR O SITE israelense Filkka Is-rael, a rede árabe Al-Alam lembra que em 2008 o ex-embaixador dos EUA no Líbano, Jeffrey Feltman, e o ministro do interior da Arábia Saudita, Bandar Bem Sultan, planejaram a derrubada do go-verno sírio de Bashar al-Assad com a criação de fundos secretos sauditas pa-ra fi nanciar a “revolta social” a um custo de 2 bilhões de dólares.

Por “mera casualidade” no último dia 15 de março, em ocasião do “dia do or-gulho das tribos”, os fundamentalistas islâmicos da Síria voltaram a liderar as reivindicações econômicas dos campo-neses de Deraa no sul do país, enquan-to no Facebook emergiu a palavra de or-dem “revolta popular no dia 25 de Mar-ço”. Em seguida, a TV árabe Al Jazeera passou a divulgar somente as manifes-tações da oposição, fazendo com que a imprensa ocidental e os governos oci-dentais sentenciassem o fi m do regime sírio, como fi zeram com a Líbia.

Os acontecimentos recentes pratica-mente dividiram a Síria em duas. No sul e no leste, predominaram os pro-testos contra o regime de Bashar al-As-sad. Enquanto a capital, Damasco, e to-das as regiões da costa oeste foram pal-cos de manifestações em favor do gover-no, que recebeu o apoio dos 500 mil pa-lestinos que estão refugiados na Síria desde 1948.

O jovem presidente, Bashar al-Assad, aproveitou-se dessa crise para promo-ver algumas reformas que, na realidade, já haviam sido anunciadas em 2006, porém nunca foram implementadas em função do estado de guerra que o país vive há 43 anos.

Antes de entrar no cenário dos protes-tos que explodiram nas cidades sírias de Deraa, Homs, Latakya e Sueida, é ne-cessário esclarecer que com Bashar al-Assad as orientações políticas do regi-me mudaram bastante, para favorecer a abertura política ao Ocidente e à chega-da dos capitais das multinacionais. Um contexto que recebeu o apoio da Irman-dade Islâmica, cujo líder, Riyadh al-Sha-fqa, assinou uma trégua que acabou em agosto de 2010, isto é, quando o money dos fundos secretos da Arábia Saudita chegaram aos caixas da Irmandade.

Com a abertura ao Ocidente, o gover-no liderado por Muhammad al-Utri ten-tou uma aproximação política com os EUA e com Israel para entabular ne-

gociações que defi nissem o fi m do esta-do de guerra com Israel e fi nalizassem acordos sobre a fronteira com o Iraque.

Nem a Casa Branca e tampouco o go-verno sionista de Tel Aviv aceitaram ne-gociar com a Síria o seu status estratégi-co na região, tanto que o então Secretá-rio da Defesa do governo Bush, Donald Rumsfeld, vetou a participação da de-legação síria na conferência – realiza-da na capital da Jordânia, Aman - so-bre o controle das fronteiras do Iraque. Além disso, o lobby dos banqueiros sio-nistas pressionou o governo estaduni-dense para vetar até a venda de proje-tos de modernização do sistema ban-cário sírio, com a justifi cativa de que o banco central da Síria realizava fi nan-ciamentos ocultos em favor da resistên-cia iraquiana.

Abertura problemática

O presidente Bashar al-Assad pe-diu que o primeiro-ministro Muham-mad al Utri implementasse as reformas econômicas em todas as regiões da Sí-ria para modernizar a produção indus-trial e desenvolver a agricultura. Na rea-lidade, quase nada foi feito, visto que fo-ram priorizadas, apenas, as privatizações das empresas estatais mais lucrativas, deixando – sobretudo no setor agrícola - um esqueleto incompleto de empresas alimentares que aumentaram bastante o desemprego e o descontentamento das faixas populares rurais mais pobres.

“No fi m da década de 1960, a esquerda do partido Baath [pan-arabista] tornou-se majoritária e com nosso apoio realizou uma reforma agrária que visava desarti-cular o sistema de exploração feudal no campo e criar um sistema cooperativista, que visava produzir alimentos para todos os sírios. E foi assim que o vale de Deraa se tornou um grande centro de produção de trigo, que alimentava importantes in-dústrias estatais. Setores e projetos que o governo de Muhammad al Utri aban-donou, visto que a nova burguesia estava mais interessada em importar alimentos ou transformar as cooperativas em em-presas para exportar produtos agrícola nos circuitos comerciais das multinacio-nais. Assim, muitas regiões empobrece-ram de um dia para outro”, explica Am-maar Bagdache, membro da Secretaria Política do Partido Comunista Sírio

De fato, o líder da Irmandade islâmica, Riyadh al-Shafqa, logo após ter quebrado a trégua com o governo do primeiro-mi-nistro Muhammad al-Utri, centralizou sua agitação em Deera, tentando unifi car as reivindicações dos camponeses com a prática político-assistencialista da Ir-

mandade Islâmica. De fato, a Irmanda-de conseguiu exercer uma forte infl uên-cia política sobre os setores mais pobres, graças à rede de ajuda solidária que é re-presentada pelo auxílio fi nanceiro aos pobres e à construção do gerenciamen-to de infraestruturas comunitárias, tais como escolas para crianças, creches, pe-quenos hospitais e, evidentemente, mes-quitas e centros de cultura islâmica.

Realizações que ganharam os corações dos camponeses e, sobretudo, dos de-sempregados, no momento em que o go-verno central fi cou cada vez mais ausente e ligado ao apoio político dessa nova bur-guesia. De fato, quando se fala em dinas-tia dos Assad, não se pode esquecer que o pai de Bashar, o general Hafez, para fa-zer frente ao estado de guerra permanen-te com Israel e os EUA, instituiu o siste-ma de um único partido único: o Baath, totalmente nacionalista, anti-imperialis-ta, antissionista, aplicando no país pro-jetos sócio-econômicos de matriz socia-lista, além de abrir as portas do governo aos homens do PC Sírio, o que permitiu legitimar o conceito de Estado Leigo, to-talmente independente dos confl itos do mundo islâmico entre sunitas e xiitas.

É evidente que neste contexto a defe-sa do regime tornou-se prioritária, com a introdução de uma lei de segurança mui-to severa, que, somente agora, após 43 anos, foi defi nitivamente retirada.

Os protestos

A Irmandade Islâmica foi o “inimigo interno numero um” do pai Hafez al-As-sad, tanto que em 1982 o velho presiden-te não hesitou em bombardear a cidade de Hama, onde os homens da Irmanda-de haviam conseguido organizar uma re-belião que contou com milhares de mor-tos. O fi lho Bashar também não tem mui-ta simpatia em relação aos fundamenta-listas, porém, conseguiu manter com eles relações de convivência política logo de-pois de ter implementado a abertura ao Ocidente com o governo de Muhammad al Utri. A ruptura deu-se não só em fun-ção do plano subversivo saudita-esta-dunidense, mas, sobretudo, em função do crescimento do poder político da no-va burguesia. Como na Líbia ou no Egi-to, a Irmandade Islâmica da Síria está de olho nas possíveis mudanças políticas que possam determinar a participação de seus homens na esfera governamental.

Não é por acaso, evidentemente, que enquanto cerca de 50 mil moradores de Deera atacavam as dependências do partido Baath, destruindo os prin-cipais monumentos do velho líder Ha-fez al-Assad, em Damasco, 15 mil viatu-ras paralisavam as ruas da capital gri-tando “Viva Bashar! Abaixo Al Jazeera mentirosa!”.

Um contexto que – diferentemente da Líbia – encontrou o exército e a po-lícia preparados e dispostos a reprimir os protestos, sobretudo nas localidades onde os homens da Irmandade Islâmica tentavam criar uma explosão insurrecio-nal. Os analistas admitem que neste mo-

mento prevaleceu a rígida formação do exército, que encarna o espírito naciona-lista e anti-imperialista do partido Baa-th, de forma que o sonho do ministro do interior da Arábia Saudita, Bandar Bem Sultan, de provocar um golpe de Estado palaciano, a partir de protestos sociais, não teve nenhum efeito prático.

Por sua parte, o presidente Bashar al-Assad, após ter demitido Muhammadal Utri, nunca perdeu sua postura ins-titucional e logo voltou a ter o contro-le do país, após ter libertado 250 pre-sos políticos e ter, também, anunciadoaumentos salariais, um maior controlesobre a corrupção e a realização de re-formas sócio-econômicas.

EUA e Arábia SauditaApesar dos 150 manifestantes mortos

pela polícia síria durante os protestos deDeera, Homs, Latakya e Sueida, a secre-tária do Departamento de Estado dosEUA, Hillary Clinton, pouco falou da Sí-ria e nada disse contra a legitimidade do presidente Bashar al-Assad. Também orei da Arábia Saudita, Abdullah, perma-neceu em silêncio amargando a derrota de não poder impor nenhuma zona deexclusão aérea contra a Síria.

Este silêncio é signifi cativo. Se a Ará-bia Saudita fi zesse contra a Síria o mes-mo que fi zera na Liga Árabe contra a Lí-bia e se os EUA obrigassem o Conselhode Segurança das Nações Unidas a vo-tar uma resolução belicista contra o re-gime sírio, as consequências seriam de-sastrosas para os EUA. E o Oriente Mé-dio seria ainda mais incendiado do que está hoje.

De fato, a Síria, mesmo produzin-do muito pouco petróleo, é estrategi-camente importante porque no seu ter-ritório estão a maior parte dos oleodu-tos e gasodutos que transportam petró-leo e gás destinados aos países europeus a partir de seus terminais petrolíferosno mar Mediterrâneo. Em segundo lu-gar, atacar a Síria implica, também, aruptura do acordo para a estabilidade em Beirute e, sobretudo, no sul do Lí-bano, onde os homens do Hizbollah po-dem atacar o norte de Israel com fogue-tes a qualquer momento. Além disso, seo exército sírio fosse obrigado a deslo-car para o interior os 10 mil soldados que mantém ao longo da fronteira como Iraque, cerca de 15 mil combatentes poderiam entrar no Iraque e recomeçar uma guerrilha que custou aos EUA a vi-da de 20 mil soldados.

Enfi m, atacar a Síria signifi ca também atacar o Irã, determinando um cenáriobélico praticamente inimaginável para os estrategistas do Pentágono, que nes-te momento não sabem mais o que fazer para garantir estabilidade e segurança a Israel e, ao mesmo tempo, sair ilesos doIraque e, sobretudo, do Afeganistão.

Achille Lollo é jornalista italiano, editor do

programa TV “Quadrante Informativo”.

OPINIÃO Sob infl uência da Irmandade Islâmica, Sul e Leste do país pedem saída do presidente Assad; protestos na capital Damasco defendem regime

Como na Líbia e Egito, a Irmandade Islâmica síria está de olho nas possíveis mudanças políticas que possam levar seus homens à esfera governamental

A TV Al Jazeera passou a divulgar somente as manifestações da oposição, fazendo com que a imprensa ocidental sentenciasse o fi m do regime sírio

Apesar dos 150 manifestantes mortos pela polícia síria durante

os protestos, a secretária do Departamento de Estado dos EUA,

Hillary Clinton, pouco falou da Síria

Atacar a Síria signifi ca também atacar o Irã, determinando um cenário bélico praticamente inimaginável para os estrategistas do Pentágono

Síria, um país cindido Síria, um país cindido Cartaz com o rosto do presidente sírio Bashar al-Assad nos arredores de Damasco

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Bruno HubermanJerusalém (Palestina)

“MINHA MÃE plantou esse limoei-ro há 50 anos”, aponta Nassar Gha-wi enquanto caminhávamos em frente de onde costumava ser a sua casa, em Sheikh Jarrah, bairro árabe de Jerusa-lém Oriental. Hoje a casa está decora-da com bandeirolas israelenses e uma gigante menorah (espécie de candela-bro judaico) em seu topo. Famílias ju-dias ocupam os sete cômodos antes ha-bitados pelos Ghawi, muçulmanos. Es-te é um dos vários assentamentos ju-deus que se espalham pelos bairros ára-bes do lado leste da cidade sagrada, que deveria vir a ser a capital do futuro Es-tado Palestino.

Hoje, Nassar sequer tem permissão para andar em frente ao muro do sobra-do que seus país construíram em 1948, após a Guerra de Independência de Is-rael, quando toda a família Ghawi foi expulsa do vilarejo onde morava, próxi-mo a Tel Aviv. Deslocados, os Ghawi de-cidiram erguer uma casa provisória no campo de refugiados na parte jordania-na de Jerusalém, à espera de um acor-do que lhes garantissem o direito de re-torno ao vilarejo de origem, previsto em resolução da ONU. O que era para ser provisório tornou-se defi nitivo e o cam-po de refugiados virou um bairro: Shei-kh Jarrah.

Em 2009, a Justiça israelense deter-minou que toda a família de Nassar de-veria deixar a casa para dar lugar ao as-sentamento judeu. Desde 1967, quando Jerusalém Oriental passou ao domínio de Israel após a Guerra dos Seis Dias, o pai de Nassar, e depois ele próprio, en-frentaram três diferentes litígios jurídi-cos com associações de assentamentos judias. O derradeiro processo que de-terminou a expulsão da família de Nas-sar durou quase dez anos e foi movido pela Nahalat Shimon International, fi -nanciada por judeus milionários ame-ricanos.

Prova em vãoNassar chegou a provar, com docu-

mentos israelenses, que o terreno era de uma família palestina, enquanto a orga-nização afi rmava que pertencia a uma família judia. “Quando apresentei a pro-va de que tínhamos o direito de conti-nuar em nossa casa, a Corte israelense disse que era ‘tarde demais’ e fomos ex-pulsos à força por mais de 100 policiais israelenses na semana seguinte”. Nas-sar, em protesto, montou uma tenda em frente à casa, de onde também acabou expulso, agora pela segurança particular do assentamento. Hoje, ele e sua família vivem ao norte de Jerusalém, próximo a Ramallah. “O governo de Israel quer ex-pulsar todos os palestinos de Jerusalém para não ter que dividir a cidade com a Palestina”.

“Judaização”A administração do milionário Nir

Barkat, prefeito de Jerusalém, não es-conde de ninguém o desejo de “judai-zar” a cidade com o intuito de não divi-di-la com os palestinos. Desde a unifi ca-ção de cidade em 1967, a prefeitura e o governo de Israel realizam ações siste-máticas para sufocar os bairros árabes e converter o maior número de residên-cias. “Essa é uma questão demográfi ca e não apenas habitacional”, afi rma o vere-ador de Jerusalém Meir Margalit, mem-bro do Meretz, partido de esquerda ju-deu que defende os direitos dos pales-tinos na cidade. “Dos 31 representantes no Conselho Municipal, nenhum é ára-be, portanto cabe a nós garantir os seus direitos.” Quanto ao “nós”, Margalit re-fere-se a ele e o outro representante do Meretz, Yosef Alalu, uma vez que o Con-selho é dominado por partidos de direi-ta e ortodoxos.

“Há uma previsão de que dentro de dez anos os árabes serão maioria em Je-rusalém”, diz o vereador. “Por conta dis-so, Israel está ampliando a pressão em Jerusalém Oriental para tornar a situ-ação insustentável, forçar os palestinos a mudarem-se para os bairros mais pe-riféricos e, unilateralmente, ceder estes bairros para a Autoridade Palestina.” Os 250 mil árabes que vivem em Jerusalém não são israelenses plenos. Alguns di-reitos fundamentais, como votar para o Knesset (o parlamento), lhes são nega-dos. Estes são conhecidos como “arabo-israelenses”. Estima-se que eles repre-sentem 36% da população local e que entre 2015 e 2020 se tornarão maioria.

Muitos deveres e nenhum direitoSIONISMO Palestinos moradores de Jerusalém são tratados como cidadãos de segunda classe e forçados a mudar-se

“Os palestinos pagam a mesma quan-tidade de impostos que os judeus, mas recebem apenas 10% dos serviços públi-cos”, relata Margalit. “Isso está acaban-do com a educação, a saúde e a segu-rança em Jerusalém Oriental”. Um re-latório do Centro de Pesquisa do Knes-set mostra que faltam 1.354 salas de au-las nos bairros árabes. “A justiça chegou a ordenar que a prefeitura fi zesse algo a respeito algumas vezes. No entanto, es-sa história é antiga, nunca acontece na-da”, completa o vereador.

HistóricoO maior problema enfrentado pelos

palestinos em Jerusalém é histórico. Desde 1967, mais de 24 mil casas foram demolidas na Cisjordânia, em Gaza e em Jerusalém Oriental, estima o Comitê Is-raelense Contra a Demolição de Casas (ICAHD, no original em inglês). Apenas em Jerusalém Oriental, entre 2004 e 2008, 3.753 lares foram destruídos. “Is-so acontece porque o governo não con-cede aos palestinos o direito de ergue-rem suas casas, obrigando-os a constru-írem ilegalmente”, afi rma a ativista An-gela Goldfrey-Goldstein, integrante do Comitê desde a sua criação, em 1997. “A prefeitura de Jerusalém demarcou inú-meras ‘zonas verdes’ nos bairros árabes, o que proíbe os palestinos de construí-rem novas residências.”

Em fevereiro, conforme a política lo-cal de “judaização” dos bairros árabes, o Comitê Municipal de Planejamento e Construções de Jerusalém aprovou a instalação de dois edifícios, com 13 apartamentos, para residentes judeus em Sheikh Jarrah, em uma área até en-tão considerada “verde”, próximo ao assentamento onde antigamente era a casa de Nassar. Mais recentemente, no início de abril, a mesma comissão apro-vou a construção de 950 novas casas no bairro judeu de Giló. “Os terrenos estão por trás da Linha Verde e foram desa-propriados dos palestinos por leis isra-elenses”, disse o vereador pelo Meretz, Yousef Alalo. “Este projeto nos afasta um pouco mais de uma possível recon-ciliação entre os dois povos.”

A resolução do Comitê segue a deci-são de 2001 da Suprema Corte israe-lense que deu permissão aos judeus de requererem propriedades privadas em bairros da parte oriental da cidade. Até mesmo a ONU, na resolução 478 de seu Conselho de Segurança, “proíbe qual-quer alteração administrativa ou legis-

lativa por Israel que mude o caráter e o status de Jerusalém”. No entanto, em fevereiro, o presidente americano, Ba-rack Obama, vetou uma resolução na ONU que condenava e tornava ilegal os assentamentos israelenses em territó-rios ocupados.

“Deus quem mandou”A justifi cativa utilizada para estes no-

vos assentamentos em Sheikh Jarrah, como no processo de Nassar, é que em 1948, ou seja, antes da criação de Isra-el e a divisão da cidade, judeus mora-vam no bairro. “Quando fui falar com a organização que tomou a minha casa, eles disseram que foi Deus quem man-dou”, relata Nassar. “Eu reconheço o direito dos judeus viverem nesta área, pelo que sofreram no Holocausto, mas o que estão fazendo neste bairro é mui-to errado”.

Sheikh Jarrah é um bairro muito bem localizado em Jerusalém, a pou-cos minutos do portão de Damasco, a principal entrada do bairro muçulma-no na Cidade Velha. Muitos palestinos de classe média, embaixadas e orga-nizações internacionais, como a ONU e a Cruz Vermelha, o escolheram pa-ra estabelecer-se. Até 1967, lá passa-va a fronteira entre Israel e Jordânia, a divisa entre o lado oriental e ociden-tal da cidade. Desde 2001 assentamen-tos judeus, ortodoxos em sua maioria, se espalharam pelas suas ruas empoei-radas. Justifi cável, uma vez que a ape-nas cinco minutos de caminhada está Mea She’Arim, bairro ortodoxo, onde até mesmo judeus não religiosos não são bem vindos.

A convivência entre os colonos ju-deus e os palestinos é amistosa, mas não é raro ver uma discussão ininteligí-vel em hebraico e árabe . “Aqui é tran-quilo, acontecem problemas uma vez por mês em média, mas apenas bri-gas de vizinhos, nada com caráter reli-gioso”, relata o segurança dos assenta-mentos Netaniel Swissa, judeu, cuja fa-mília veio do Iêmen. “O negócio é que eles não gostam de nós e não nos que-rem aqui”. Para Mohamad Nabulsi, frentista e cuja família também se esta-beleceu no bairro após a Guerra da In-dependência, não há problemas com os judeus. “Às vezes até jogamos bola jun-tos.” Nenhum colono quis falar com a reportagem.

Cidade pobrePara Dawood Hamoudeh, pesquisa-

dor do The Grassroots Palestinian An-ti-Apartheid Wall Campaign, o plano para Jerusalém é maior do que a impo-sição de assentamentos em bairros ára-

bes. “A cidade chegou a um ponto emque um terço é árabe, portanto, inimi-go, outro terço é ortodoxo, ou seja, im-produtivo e bancado pelo governo. Je-rusalém tornou-se uma das cidadesmais pobres de Israel e não é atraentepara os não religiosos”, afi rma o pales-tino, residente em Ramallah, na Pales-tina, contudo nascido em Jerusalém.

A solução encontrada pelo governofoi ocupar os espaços vazios na porçãooriental da cidade com pontos turísti-cos e comerciais, vide Sheikh Jarrah.“Querem transformar Jerusalém emuma cidade essencialmente turística eque o capital estrangeiro banque essatransformação”. Prova disso é o mono-trilho que ligará a parte ocidental da ci-dade aos primeiros assentamentos ju-deus na Cisjordânia.

A companhia que o construiu e quemanterá seu funcionamento é a france-sa Veolia. “Fica mais difícil para os pa-lestinos lutarem contra o lobby de cor-porações internacionais do que contraempresas israelenses”, afi rma Hamou-deh. “Os governos estrangeiros fi camcom o rabo preso na hora de pressionarIsrael uma vez que ali tem grandes em-presas do seu país”.

A ampliação do território israelen-se por meio da ocupação de territóriosantigamente árabes mostrou-se efi caz,como revelou os denominados “papéispalestinos”, vazados pela rede de tele-visão do Qatar, Al-Jazeera, em janei-ro deste ano. Alguns documentos mos-tram o relaxamento da Autoridade Pa-lestina nas frustradas tratativas de pazcom Israel acerca de algumas áreas deJerusalém Oriental que já estão sob odomínio judeu.

“Com os atuais governantes que te-mos, nunca conseguiremos chegar emuma solução sobre Jerusalém”, avaliao conselheiro municipal Meir Margalit.“Um dia o consenso terá de ser uma di-visão funcional da cidade e não física,assim como o previsto por Clinton emOslo”. A proposta apresentada pelo ex-presidente dos EUA nas negociações depaz de 1993 com o israelense YitzhakRabin e o palestino Yasser Arafat pre-via que os bairros árabes de JerusalémOriental fi cassem sob o auspício da Pa-lestina, enquanto os bairros judeus soba tutela israelense.

“O que os judeus não entendem é quenunca cansaremos de lutar e não aban-donaremos Jerusalém. Isso daqui tam-bém é nosso”, afi rma Nassar ao entrarem seu carro e partir para o norte, ru-mo a sua nova, e provisória, casa.

“O governo de Israel quer expulsar todos os palestinos de Jerusalém para não ter que dividir a cidade com a Palestina”

“Israel amplia a pressão em Jerusalém Oriental para tornar a situação insustentável”

“O que os judeus não entendem é que nunca cansaremos de lutar e

não abandonaremos Jerusalém. Isso daqui também é nosso”

“Os palestinos pagam a mesma quantidade de impostos que os judeus, mas recebem apenas 10% dos serviços públicos”

Tratores derrubam construção em Sheikh Jarrah, bairro árabe de Jerusalém Oriental

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de 14 a 20 de abril de 2011 1especial

Igor Ojedade Dakhla, 27 de Febrero,

Smara e Tifariti (Saara Ocidental)

VENCIDA A TIMIDEZ, Salka levanta do colchão onde está sentada e caminha ao outro lado do cômodo. Senta-se ao nos-so lado. “Oi”, diz. “Qual o nome de vo-cês?”. Estamos dentro de uma gran-de tenda verde de pano, sustentada por dois grossos bambus, cada um medindo cerca de quatro metros. Não há móveis, apenas tapetes e pequenos colchões es-tendidos no piso.

Alta, pele curtida, olhos grandes, cas-tanhos, cabelo longo e preto, dividido em duas tranças, Salka, apesar de ára-be, fala castelhano perfeitamente. Tem 12 anos, dos quais dois e meio viveu na Espanha. A menina conta gostar muito de livros. “Gosto de ler quadrinhos, não os livros que têm muitas letras. Leio um inteiro em dois dias”. Espera um sinal de aprovação.

Mas onde vive atualmente não há bi-bliotecas, lamenta. Então, não lê tanto.

“Aqui não tem muito o que fazer. Há poucos lugares para brincar.” Onde Salka vive não há playgrounds para ir, piscinas para mergulhar, árvores para trepar. Pudera. Ela não está em sua ter-ra. “Queria muito conhecer meu povo. Porque nasci aqui e não o conheço. Que-ria ir para lá, porque tem mais lugares para brincar”. Salka, assim como milha-res de jovens conterrâneos seus, já nas-ceu no exílio.

Ao todo, na região onde Salka vive, no sudoeste da Argélia, em pleno deserto do Saara, habitam cerca de 170 mil refugia-dos do Saara Ocidental, país do noroes-te africano ocupado pelo Marrocos há 35 anos. Todos na esperança de, algum dia, voltar a sua terra, mesmo que nunca a tenham conhecido.

“É difícil esperar. Sem estar em sua terra natal, enquanto os marroquinos se aproveitam dela, dos recursos naturais, de sua pesca. E nós aqui. É um inferno”, defi ne Saleh Habub, cuja idade é a mes-ma da ocupação marroquina.

A palavra inferno, usada para se refe-rir ao local dos cinco campos de refugia-dos saarauis – como é chamado o origi-nário do Saara Ocidental – em território argelino, não é mera força de expressão. Estamos no deserto de Hamada, a par-te mais seca, inóspita e hostil do maior deserto do mundo, o Saara. É neste am-biente insalubre que um povo exilado e “esquecido” pela comunidade interna-cional luta e espera pela independência de seu país.

Saleh nos leva a um morro de não mais que 20 metros de altura nos arredores de um dos acampamentos – como os cam-pos de refugiados também são chama-dos –, o 27 de Febrero. Seu topo é o úni-co lugar onde há o sinal de celular que buscávamos para poder fazer uma liga-ção, garante.

Do alto, pode-se ter uma boa ideia da geografi a local: o nada. Ou quase nada. Vê-se, de um lado, as precárias casas do 27 de Febrero. Ladeando-o e afastando-se, uma estrada de asfalto parece rumar ao infi nito. Alguém acende uma fogueira ao longe. Duas mulheres caminham len-tamente em outra direção. Até onde a vis-ta alcança, só há areia e pedra. O deserto de Hamada é o horizonte contínuo. Pra-ticamente 360 graus de nada. Saleh con-ta que existe uma maldição árabe que re-sume o habitat dos refugiados saarauis: “Que Deus te mande ao Hamada!”

Dois colonizadoresNão foi o par de anos vivido na Es-

panha que fez com que a menina Salka aprendesse castelhano. Assim como to-das as crianças dos campos de refugia-dos, todos os dias ela tem aulas do idio-ma na escola. Isso porque, depois do árabe e do hassanya – uma variação do árabe introduzida pelas antigas tri-bos beduínas da Mauritânia e do Saara Ocidental – o castelhano é a língua mais usualmente falada pelos saarauis.

Pois o reino espanhol foi o colonizador do Saara Ocidental por nove décadas. Entre 1884 e 1976, manteve o domínio sobre o território quase todo desértico, mas banhado pelo oceano Atlântico.

Em fi ns de 1975, quando muitos paí-ses da África já haviam conquistado sua independência ou estavam a caminho, e o ditador espanhol Francisco Franco es-tava prestes a morrer, a Espanha anun-ciou sua retirada. Aproveitando-se desse momento, e invocando supostos direitos ancestrais, o então rei marroquino Has-san II ordenou o deslocamento de 350 mil soldados ao território saaraui. Foi a chamada Marcha Verde.

“Estavam todos em sua casa, com tranquilidade, quando, no meio da noite, o exército marroquino entrou e expulsou nossas mães, irmãos e familiares à for-ça”, conta Saleh. Segundo ele, seus qua-tro avós, que não conseguiram fugir, fo-ram mortos pelos bombardeios do Mar-rocos. “Os que podiam correr, fugiram, os que não podiam, fi caram lá e os mar-roquinos os mataram”.

O governo espanhol até esboçou uma tentativa de impedir a ocupação, che-gando a fazer tal promessa aos saarauis. No entanto, em 14 de novembro do mes-mo ano, por baixo dos panos, assinou, em Madri, o que fi cou conhecido como Acordo Tripartite, por meio do qual ce-dia o Saara Ocidental ao Marrocos e à Mauritânia, país localizado na fronteira sul, em troca de participação na explora-ção dos recursos naturais.

A população do Saara Ocidental rea-giu imediatamente e iniciou a defesa de seu território, organizada em torno da Frente Polisario (Frente Popular de Li-bertação de Saguia el Hamra e Río del Oro), movimento que desde 1973 lutava

pela independência. A tarefa não era fá-cil. Os saarauis eram obrigados a guer-rear com o Marrocos no fl anco nor-te, com a Mauritânia ao sul e, ao mes-mo tempo, garantir a segurança de seus cidadãos, que fugiam em massa rumo à Argélia.

Em 26 de fevereiro de 1976, a Espanha saía ofi cialmente do território. No dia se-guinte, para que não fi casse nenhum va-zio legal que “legitimasse” a nova ocupa-ção, a Frente Polisario, baseada em ple-no deserto, na parte oriental do país, pa-ra onde havia sido “empurrada” pelo exército marroquino, decidiu proclamar a República Árabe Saaraui Democráti-ca, conhecida simplesmente como Rasd. Era o grito de independência saaraui.

República no exílio Reconhecida atualmente por 82 paí-

ses e membro da União Africana, a Rasd é o governo do Saara Ocidental no exí-lio. Tem jurisdição sobre o território sa-araui liberado durante a guerra – que durou até 1991 – no leste do país, e so-bre os campos de refugiados do sudo-este da Argélia, localizados nos arredo-res da cidade de Tindouf, principal ci-dade da região que abriga bases milita-res do país.

A população exilada no deserto argeli-no, estimada em 170 mil, divide-se basi-camente em cinco acampamentos: Sma-ra, Layounne, Auserd, 27 de Febrero e Dakhla, onde vive a menina Salka. Outro campo, Rabouni, abriga a sede da Rasd – presidência, ministérios, parlamento, tribunais e outras instituições – e pou-cos habitantes.

Por já existirem há 35 anos, os campos de refugiados saarauis já não estão mer-gulhados no caos característico de um acampamento recém-estabelecido. A or-ganização impressiona. Governados pe-la Rasd, funcionam como um país “nor-mal”, com escolas, hospitais e divisões administrativas.

No entanto, as condições de mora-dia ainda são bastante precárias. As ru-as, de maneira geral, não são asfalta-das. Só há luz elétrica em um dos acam-pamentos (27 de Febrero). Não há rede de esgotos ou água encanada. As casas, em sua maioria, são erguidas com tijo-los de barro (adobe) e telhados de zin-co. A impressão que se tem é a de que, para além da falta de recursos que pos-sam ser utilizados em melhorias, os sa-arauis que esperam voltar para casa te-mem que tais avanços deem um aspec-to permanente a um local que deve sersempre provisório.

Famílias divididasAlém da espera, os refugiados, prin-

cipalmente os mais velhos, são obriga-dos a conviver com a dor da separação. No deserto de Hamada, não há uma úni-ca família saaraui completa. Todos, sem exceção, têm parentes no território ocu-pado pelo Marrocos. Parentes às vezes distantes, mas, muito frequentemente, próximos, como pais, irmãos, avós, tios e primos.

“Tenho muitos familiares no territó-rio ocupado. Meus tios e tias fi caram lá, e nunca os vi. Não sei a cara das minhas tias”, conta Saleh Habub. A tristeza vem também por saber que os que fi caram sofrem com a forte repressão marroqui-na. “Muita gente teve a família morta lá. E matam a gente olhando no olho. Eles estão lá sob o colonialismo, sem liberda-de para dizer ‘Saara livre’”.

A Organização das Nações Unidas (ONU), que mediou o cessar-fogo de 1991, mantém um programa de encon-tro entre familiares saarauis divididos pela ocupação. Os que vivem nos cam-pos de refugiados vão ao território ocu-pado e vice-versa. No entanto, os “bene-fi ciados” reclamam que são apenas cin-co dias de visita para quem espera dé-cadas para rever um parente. Na práti-ca, cada saaraui é contemplado pelo pro-grama da ONU apenas uma vez na vida, já que é preciso esperar que todos sejam atendidos para que se inicie uma segun-da “rodada”.

A diásporaO trajeto entre o inferno da invasão do

Marrocos e o inferno do ambiente do de-serto de Hamada que separou as famí-lias saarauis foi particularmente dra-mático. Mais de 100 mil pessoas tive-ram que percorrer centenas de quilôme-tros pelo Saara, durante dias, em meio a bombardeios da Força Aérea marroqui-na. Parte da população subiu nos poucos carros e caminhões que havia. Outros ti-veram que vencer a distância a pé. Mui-tos sequer puderam fugir.

“Eu saí caminhando. Era jovem, po-dia andar bastante. Mas algumas mu-lheres de idade avançada fi caram, mui-ta gente fi cou por falta de transporte”, lembra Mohamed Saleh, hoje motoris-ta da presidência saaraui. “Muita gente fechou suas tendas com o que tinha e fu-giu. Vieram com muito pouco”, conta o senhor de 63 anos.

Já o artista plástico Saleh Brahim Mo-hamed tinha apenas três anos na ocasião da invasão marroquina, mas recorda de detalhes da fuga de sua família. “Lembro que subimos em um caminhão, que não sabíamos de quem era e nem para onde ia. Era um Mercedes grande, de dez ro-das. Éramos um grupo de seis ou sete fa-mílias”. Por sorte, ele e seus parentes vi-viam a apenas 80 quilômetros do local onde hoje estão instalados os campos de refugiados. A viagem durou cerca de 11 horas. “Meu pai fi cou lá com as milícias que estavam sendo organizadas para en-frentar a ocupação marroquina”, conta.

Saleh Habub, por sua vez, pode ser considerado um “fi lho da diáspora”. Ele nasceu durante a fuga de seus pais da cidade de Boucraa, a sudeste da capi-tal, El Aaiún. Veio ao mundo pouco an-tes de chegarem aos campos de refugia-dos, em 1976.

Uma luta invisível“Esquecido” pelo mundo em pleno deserto do Saara, um povo árabe e muçulmano busca sua independência do Marrocos. A partir desta edição, o Brasil de Fato publica uma série de reportagens sobre o

Saara Ocidental, a última colônia da África

“Aqui não tem muito o que fazer. Há poucos lugares para brincar”. Onde Salka vive não há playgrounds para ir, piscinas para mergulhar, árvores para trepar

A palavra inferno, usada para se referir ao local dos cinco campos de refugiados em território argelino, não é mera força de expressão

“Estavam todos em sua casa, com tranquilidade, quando, no meio da noite, o exército marroquino entrou e expulsou nossas mães, irmãos e familiares à força”

Por já existirem há 35 anos, os campos de refugiados saarauis já não estão mergulhados no caos característico de um acampamento recém-estabelecido

A saaraui Marian Zega: “quero o Saara livre!”

Igor Ojeda

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especialde 14 a 20 de abril de 20114

Guerra no desertoTalvez por isso mesmo que o Marro-

cos tenha angariado tanto apoio duran-te a guerra contra a Frente Polisario, en-tre 1976 e 1991. No período, as forças marroquinas receberam armamentos, recursos fi nanceiros e assessoramento tático de potências como Estados Uni-dos, França, Espanha, Grã-Bretanha e Itália, entre outras.

Em tempos de Guerra Fria, o regime monárquico do então rei Hassan II era considerado um satélite do bloco capi-talista no norte da África. Além disso, os interesses sobre os recursos naturais saarauis despertaram a atenção do Oci-dente. O Saara Ocidental possui uma das maiores reservas mundiais do fos-fato – mineral utilizado, principalmen-te, na fabricação de fertilizantes para a agricultura – e um dos mais cobiçados bancos de pesca do planeta.

Foi uma guerra desigual. O Marrocos tinha arsenal bélico, quantidade de sol-dados e recursos fi nanceiros muito su-periores. “Mas havia algo que o Marro-cos não tinha: a disposição, a vontade e a fé dos combatentes saarauis”, re-lembra Bucharaya Beyun, delegado da Frente Polisario na Espanha, ele pró-prio um ex-combatente.

“Conhecíamos o terreno. Sabíamos como e onde atacar. Atacávamos ao meio dia, com 50 graus de temperatu-ra. Os soldados marroquinos, meninos de 20 anos, nascidos no mar Mediter-râneo, não conseguiam combater num deserto, a 50 graus. Preferiam se entre-gar. Com poucos homens e armas, con-seguimos infringir grandes derrotas ao Marrocos”, explica.

Por perceber que não conseguiria do-minar todo o território militarmente e devido ao fato de que a guerra estava custando muito dinheiro, o Marrocos acabou aceitando o cessar-fogo media-do pela ONU, opina Bucharaya.

Mas a Frente Polisario tampouco es-tava sozinha. Foi apoiada por alguns países africanos, principalmente, a Ar-gélia. De Cuba, recebeu ajuda em saú-de e educação. “Na verdade, foram os marroquinos que mais nos ajudaram”, conta o delegado saaraui na Espanha. “Em todos os combates em que ha-via marroquinos mortos, pegávamos blindados, metralhadoras, morteiros. Grande parte do nosso arsenal de guer-ra era marroquino”.

O museu militar localizado no cam-po de Rabouni é bastante didático pa-ra se entender a realidade descrita por Bucharaya. É lá onde estão expostos os armamentos e equipamentos bélicos capturados das forças marroquinas du-rante os 15 anos de confl ito. Jipes mili-tares estadunidenses, tanques e lança-morteiros de vários países e destroços de aviões Mirage franceses – dois de-

les estampando a bandeira marroqui-na em vermelho – preenchem o pátio do edifício.

Em um galpão ao lado, pode-se obser-var restos de mísseis, morteiros, bom-bas de fragmentação e minas antipesso-ais ainda sem explodir, de origem italia-na, belga, estadunidense e israelense.

No mesmo galpão, o guia do museu nos leva até uma maquete onde estão representados os cinco enormes mu-ros construídos pela monarquia marro-quina ao longo da década de 1980 pa-ra impedir a passagem dos combatentes da Frente Polisario à parte ocidental do país. Segundo ele, as construções foram idealizadas por Israel e erguidas em seis anos. Feitos de terra e pedra, eles são vi-giados por 180 mil soldados marroqui-nos, divididos em tropas estáticas e de intervenção. São auxiliados por radares, tanques de guerra e cinco milhões de minas terrestres colocadas a sua frente – desde o cessar-fogo, quatro milhões já foram retiradas pela organização Land Mine Action, em parceria com a Frente Polisario.

Mais impressionante do que ver a ma-quete do muro é observá-lo “ao vivo”. Saindo de Rabouni, pelo meio do de-serto de Hamada, o trajeto até a parte mais ao leste do muro mais oriental – o maior deles, com 2.400 quilômetros de extensão – leva cerca de uma hora. O ji-pe chega a no máximo 100 metros de distância, o sufi ciente para despertar a atenção dos soldados marroquinos, que

surgem sobre a construção de cerca de quatro metros de altura. O motorista queima a embreagem para provocá-los. Mais militares surgem do nada. Duran-te os aproximadamente seis quilôme-tros que percorremos, pudemos cons-tatar a presença de seis bases, uma mé-dia de uma a cada quilômetro de muro. Estima-se que o Marrocos gaste, diaria-mente, 4 milhões de dólares com ele.

Volta às armas?Do lado saaraui, nos territórios libe-

rados, sete regiões militares “vigiam” a edifi cação. Ao todo, segundo números da Rasd, são 80 mil soldados prepara-dos para um eventual retorno da guerra. A principal região é Tifariti, onde se cos-tuma comemorar o aniversário da pro-clamação da República Saaraui.

Dos campos de refugiados do sudoes-te da Argélia, leva-se cerca de sete ho-ras de uma exaustiva viagem pelo de-serto. Aos poucos, a dura – porém bo-nita – paisagem do Hamada vai dan-do lugar a um ambiente menos hostil. A terra fi ca mais avermelhada, e árvo-res maiores e mais frondosas aparecem com mais frequência.

Após algumas horas de trajeto, uma visão no mínimo surreal. Depois de qui-lômetros de paisagem sem casas ou pes-soas, surge uma espécie de entreposto, repleto de carcaças de carros, ônibus e contâineres enferrujados. Funciona co-mo uma espécie de estação de conveni-ência, com tanques de gasolina e peque-nas vendinhas.

O comboio de militantes estrangeiros pró-Saara e jornalistas chega em Tifa-

riti ao cair da noite. O clima é de fes-ta, embora a sensação seja a de se estarchegando a um campo de guerra, comsuas tendas militares e homens jovensde coturnos e uniformes militares ca-minhando de um lado para o outro.

É na manhã seguinte, como em todo27 de fevereiro, que ocorre a celebraçãomilitar ofi cial da proclamação da Rasd.É no meio do deserto que milhares depessoas assistem e aplaudem efusiva-mente ao desfi le dos diversos pelotõesdas sete regiões militares saarauis.

Famílias inteiras empunham a ban-deira do país, e homens mais velhosvestidos com a roupa tradicional saa-raui e usando turbantes desfi lam so-bre enormes camelos, que correm, le-vantando a poeira. Os saarauis sabemfazer festa. Mas, se necessário, estãoprontos para a guerra.

Que o digam os jovens, os mais im-pacientes com a espera de 20 anos poruma solução pacífi ca para a ocupaçãomarroquina do Saara Ocidental. “Os jo-vens dizem: ‘é melhor morrer lutandodo que de medo, ajoelhado’ Eles que-rem lutar para defender sua pátria, seupovo, que vive mal-tratado, sem direi-tos”, alerta Saleh Habub.

Em novembro do ano passado, após oMarrocos ter desmantelado com extre-ma violência – deixando mortos, pre-sos e desaparecidos – um acampamen-to saaraui que reivindicava melhorescondições de vida em El Aaiún, no ter-ritório ocupado, centenas de jovens doscampos de refugiados foram até a sededa presidência da Rasd em Rabouni pa-ra pedir que a Frente Polisario conside-rasse a opção da volta às armas.

Autoridade saarauis dizem entendera angústia dos jovens e lembram queno próximo congresso da frente, no fi mdeste ano, esse será o principal temaem debate. Se a situação não avançaraté lá, o retorno das hostilidades é umahipótese bastante plausível.

“É uma vergonha. Não se pode espe-rar mais. Não é que não conseguimosresistir. O problema é: até quando? Sevocê me diz que daqui a 20 anos have-rá uma solução, eu espero. Mas semdata, até o infi nito, não dá. A soluçãoé a guerra, é morrer, mas morrer poruma causa, pela dignidade do povo sa-araui”, desabafa o artista plástico SalehBrahim Mohamed. (Colaborou Tatia-na Merlino).

Na próxima edição, a dura vida dos saarauis nos territórios ocupados e a história de Mohamed Mohud, fotógrafo de guerra da Frente Polisario

Como alternativa à falta de profi ssionais da saúde e medicamentos, trabalha-se sempre em conjunto com a medicina tradicional

A Rasd é uma espécie de governo no exílio: controla o território cedido pela Argélia para a instalação dos refugiados e o território liberado durante a guerra contra o Marrocos

A Frente Polisario tampouco estava sozinha. Foi apoiada por alguns países africanos, principalmente, a Argélia. De Cuba, recebeu ajuda em saúde e educação

“Os jovens dizem: ‘é melhor morrer lutando do que de medo, ajoelhado’ Eles querem lutar para defender sua pátria, seu povo, que vive mal-tratado, sem direitos”

Calcula-se que haja cerca de 80 mil militares no exército saaraui

Estrada rumo ao infi nito: um povo isolado pelo deserto

Fotos: Igor Ojeda