edição 33 (completa)

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Entrevista_Adriana Penna_O “Não vai ter copa!” - é um grito democrático ISSN 2236-7969 nº33 R$ 5,00 Qual o direito à cidade das prostitutas? Confira a estreia da reportagem “O Legado da Copa” em quadrinhos por Adriano Kitani e Enio Lourenço “Revitalização” dos centros urbanos R$ 5 edição nº 33 junho/julho 2014 Jornalismo pela diferença, contra a desigualdade Fora dos estádios, a bola rola na Copa das Opressões 250 mil moradias removidas, R$2 billhões em repressão militar, imensos gastos em estádios, ingressos caros... Com conteúdo + MEDIA FAZENDO O Pirikart está na Vírus!

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Edição 33 (junho+julho 2014) da Revista Vírus Planetário completa

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Page 1: Edição 33 (completa)

Entrevista_Adriana Penna_O “Não vai ter copa!” - é um grito democrático

ISSN 2236-7969

nº33 R$ 5,00

Qual o direito à cidade das prostitutas?

Confira a estreia da reportagem “O Legado da Copa” em quadrinhos por Adriano Kitani e Enio Lourenço

“Revitalização” dos centros urbanos

R$5edição

nº 33junho/julho

2014

Jornalismo pela diferença, contra a desigualdade

Fora dos estádios, a bola rola

na Copa das Opressões

250 mil moradias removidas, R$2 billhões em repressão militar, imensos gastos em estádios, ingressos caros...

COPA PARA QUEM?

Com conteúdo

+MEDIAFAZEN

DO

O Pirikart está na Vírus!

Page 2: Edição 33 (completa)

Luta em defesa da educação pública é prioridade da categoria e da população

GREVE UNIFICADA DA EDUCAÇÃO SUSPENSA

37 ANOS NA LUTA EM

DEFESA DA EDUCAÇÃO

PÚBLICA

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Luta em defesa da educação pública é prioridade da categoria e da população

Em 2014, a luta por melhores condições de trabalho e valorização profissional também foi destaque em diversos municípios do estado do Rio de Janeiro. Em cidades como Niterói, São Gonçalo, Duque de Caxias, Nova Friburgo, Cachoeiras de Macacu, os profissionais das escolas municipais realizaram greves. Em outros

municípios como Búzios, Itaguaí, Casimiro de Abreu, Rio das Ostras, Mendes, Paulo de Frontin, Vassouras, Angra dos Reis, Nova Iguaçu, Belford Roxo, São João de Meriti, Petrópolis, entre outras, a categoria realizou mobilizações de rua e fez paralisações durante todo o primeiro semestre. Uma clara demonstração de que a

luta pela escola pública de qualidade está na pauta do dia dos profissionais e da população.

>>>Greve também em outros municípios do Estado

Os profissionais de educação das redes estadual e municipal decidiram suspender a greve unificada des-tas categorias em assembleia, realizada no Clube He-braica, no dia 27 de junho. A greve unificada foi um marco histórico na luta em defesa da educação pú-blica do Rio de Janeiro. Durante 47 dias, os profissio-nais realizaram atos públicos e manifestações de rua para denunciar à população a falta de investimentos na educação pública. Principalmente num ano em que as diversas instâncias de governo (federal, estadual e municipais) gastaram bilhões de reais em obras super-faturadas para a realização da Copa do Mundo no país.

Mesmo com a ameaça de repressão ao movimento, com ataques da PM, prisões de profissionais em ma-

www.seperj.org.br

nifestação e abertura de inquéritos administrativos contra profissionais da rede estadual e lançamento de conceito “inapto” para professores em estágio proba-tório nas escolas municipais a greve se constituiu num significativo marco contra a opressão e as tentativas dos governos de criminalização dos movimentos so-ciais.

Com relação às punições contra os grevistas, a dire-ção do Sepe está se mobilizando junto ao movimento civil, lideranças políticas, além da entrada na Justiça para reverter a situação e obrigar o governador e o prefeito a recuarem dessas decisões arbitrárias que ferem o direito constitucional de todo o trabalhador de realizar greve.

Page 4: Edição 33 (completa)

EXPEDIENTE:Rio de Janeiro: Alexandre Kubrusly, Ana Chagas, André Camilo, Artur Romeu, Bruna Barlach, Bruno Costa, Caio Amorim, Camille Perrisé, Catherine Lira, Chico Motta, Débora Nunes, Didi Helene, Diego Novaes, Eduardo Sá, Fernanda Alves, Joyce Abbade, Julia Campos, Livia Valle, Mariana Adão, Mariana Moraes, Raquel Junia, Thales Messentier | São Paulo: Ana Carolina Gomes, Duna Rodríguez, Gustavo Morais, Hamilton Octávio de Souza, Jamille Nunes, Jéssica Ipólito, Luka Franca, Marcelo Araújo e Sueli Feliziani | Brasília: Alina Freitas, Diogo Cardeal, Edemilson Paraná, João Apolinário Passos, Maiara Zaupa e Thiago Vilela | Minas Gerais: Ana Malaco, Laura Ralola e Paulo Dias | Ceará: Caio Erick, Joana Vidal, Livino Neto e Lucas Moreira | Piauí: André Café, Diego Barbosa, Mariana Duarte, Nadja Carvalho e Sarah Fontenelle | Bahia: Mariana Ferreira | Paraíba: Iarlyson Santana e Mariana Sales | Paraná: Elisa Riemer | Mato Grosso do Sul: Eva Cruz, Fernanda Palheta, Jones Mário, Marina Duarte e Tainá Jara | Rio Grande do Sul: João

Victor Moura, Maiara Marinho e Rafael Balbueno Diagramação: Caio Amorim | Capa: Ilustração de Adriano Kitani (Pirikart)

Conselho Editorial: Adriana Facina, Amanda Gurgel, Ana Enne, André Guimarães, Claudia Santiago, Dênis de Moraes, Eduardo Sá, Gizele Martins, Gustavo Barreto, Henrique Carneiro, João Roberto Pinto, João Tancredo, Larissa Dahmer, Leon Diniz, MC Leonardo, Marcelo Yuka, Marcos Alvito, Mauro Iasi, Michael Löwy, Miguel Baldez, Orlando Zaccone, Oswaldo Munteal, Paulo Passarinho, Repper Fiell, Sandra Quintela, Tarcisio Carvalho, Virginia Fontes, Vito

Gianotti e Diretoria de Imprensa do Sindicato Estadual dos Profissionais de Edução do Rio de Janeiro (SEPE-RJ)

Muitos não entendem o que é a Vírus Planetário, principal-

mente o nome. Então, fazemos essa explicação maçante, mas necessária para os virgens de Vírus Planetário:

Jornalismo pela diferença, não pela desigualdade. Esse é nosso lema. Em nosso primeiro editorial, anunciamos

nosso estilo; usar primeira pessoa do singular, assumir nossa

parcialidade, afinal “Neutro nem sabonete, nem a Suíça.” Somos, sim, parciais, com orgulho de darmos visibilidade

a pessoas excluídas, de batalharmos contra as mais diver-sas formas de opressão. Rimos de nossa própria desgraça e

sempre que possível gozamos com a cara de alguns algozes

do povo. O bom humor é necessário para enfrentarmos com alegria as mais árduas batalhas do cotidiano.

Afinal, o que é a Vírus Planetário?

Curta nossa página! facebook.com/virusplanetario

A Revista Vírus Planetário - ISSN 2236-7969 é uma publicação da Malungo Comunicação e Editora com sede no Rio de Janeiro. Telefone: 3164-3716#Impressão: SmartPrinter

www.virusplanetario.com.br

Anuncie na Vírus: www.tinyurl.com/anuncienavirus

Siga-nos: twitter.com/virusplanetario

COMUNICAÇÃO E EDITORA

O homem é o vírus do homem e do planeta. Daí, vem

o nome da revista, que faz a provocação de que mesmo a humanidade destruindo a Terra e sua própria espécie, acredi-

tamos que com mobilização social, uma sociedade em que

haja felicidade para todos e todas é possível.

Recentemente, unificamos os esforços com o jornal alternativo Fazendo Media (www.fazendome-dia.com) e nos tornamos um único coletivo e uma única publicação impressa. Seguimos, assim, mais fortes na luta pela democratização da comunicação para a construção de um jornalismo pela diferença, contra a desigualdade.

>Envie colaborações (textos, desenhos, fotos), críticas, dúvidas, sugestões, opiniões gerais e sobre nossas reportagens para

[email protected]

Queremos sua participação!

Correio

Viral

Page 5: Edição 33 (completa)

Editorial

Todos os olhos do mundo voltam sua atenção para o Brasil! É isso mesmo! As pessoas não param, a luta não ces-sa e as ruas continuam cheias de brados, de força e sonhos por uma outra sociedade possível. O sentimento gerado desde as jornadas de junho de 2013 mantém-se firme e, mesmo em tempos de Copa (mas será que houve copa? E pra quem mesmo?) categorias, coletivos e movimentos seguem ocupando avenidas no combate às opressões e desigualdades inerentes do sistema.

As mídias contra-hegemônicas maximizam sua impor-tância e responsabilidade, noticiando e denunciando abu-sos, perseguições e uso da força coercitiva ao extremo contra livres e legítimas manifestações, em suma: tudo aquilo que mídias grandes não mostram, pois o interesse destas está concentrado apenas em copa no café, no almoço e jantar. Não temos fome de bola, mas sim fome e sede de revolucionar o mundo!

Como não poderia ser diferente, nós da Vírus constru-ímos esse caminho, mas também estendemos nossos olhares para além do evento esportivo, pois, com ele ou não, ainda persistem os padrões de comportamentos estabelecidos e impostos por esferas políticas, sociais e culturais, como vemos na matéria sobre a relação mu-lher, corpo e tatuagens e na matéria sobre a repressão às prostitutas de Niterói. Entretanto, persistem as lutas de coletivos e grupos culturais, que fomentam o uso dos espaços públicos para a livre expressão artística, como com a banda gaúcha Geringonça; persistem os problemas, mas também toda contracultura de resis-tência e de ação coletiva.

Nesta edição trazemos um especial do que essa Copa significa para o país de forma crítica em arti-gos, na matéria de capa e na entrevista Inclusiva. É também um marco o lançamento da nossa primeira reportagem em quadrinhos que aborda O LEGADO DA COPA, realizada por Adriano Kitani (o Pirikart) e Enio Lourenço, que está realmente imperdível.

Agora a Vírus também conta com conteúdos da revista o Viés, de Santa Maria - Rio Grande do Sul. Materiais da revista gaúcha, que já tem quase cin-co anos de existência na internet, já vinham saindo nas últimas edições, e agora essa parceria fica ainda mais firme, com destaque para ‘o Viés’ na nossa capa. Acesse e conheça também na internet:

www.revistaovies.com.

Sumário

6 Hamilton Octávio de Souza_A disputa

pelo legado da copa vai além das eleições

9 Reportagem em Quadrinhos Pirikart_O

Legado da Copa

17 O Sensacional Reporter

Sensacionalista

18 Entrevista Inclusiva_Adriana Penna

22 CAPA_Reporagem_Copa Pra Quem?

29 Sórdidos Detalhes

32 Fazendo Media_Ser rico e dono da mídia

34 Bula Cultural_Banda Geringonça

38 Bula Cultural_Indicações e

Contraindicações

39 Reportagem_Tatuagem é coisa de mulher,

sim!

42 Reportagem_Qual o direito à cidade das

prostitutas?

46 Traço Livre

Page 6: Edição 33 (completa)

O legado, pelo lado do governo, seria um amontoado de coisas posi-tivas. A começar dos próprios aero-portos e estádios, as obras da cha-mada mobilidade urbana, os gastos de milhares de turistas, a divulga-ção do país nas redes mundiais de comunicação, até a ação articulada das Forças Armadas – treinadas no Haiti – com as polícias federais, es-taduais e municipais.

Na defesa do evento, a presi-dente da República enfatizou que o

Independentemente da seleção campeã da Copa do Mundo, o Bra-sil vive acirrada disputa em torno do legado do torneio organizado pela FIFA, entidade privada que con-venceu o governo brasileiro a inves-tir a bagatela de 30 bilhões de reais em ações e obras como a remoção de comunidades pobres, ocupação militar de bairros populares, cons-trução de aeroportos e estádios de futebol, e forte aparato de segu-rança para proteger os segmentos mais privilegiados da sociedade.

HAMILTON OCTÁVIO DE SOUZA

Disputa por legado daCopa vai além das eleições

Hamilton é jornalista e professor na Pontifícia

Univerdade Católica de São Paulo (PUC-SP) e membro

da equipe da Revista Vírus Planetário

legado está no fato de que a FIFA e os turistas não poderão levar na bagagem as obras dos estádios, ae-roportos e da mobilidade urbana. Elas ficarão no país para os brasi-leiros.

É evidente que a FIFA e seus pa-trocinadores não colocaram na ba-gagem as mazelas do caos social, político e jurídico que causaram ao país, como, por exemplo, corrom-per os poderes da República para a aprovação de leis e normas que

Os efeitos do campeonato de futebol independem da polarização retórica, afetam concretamente o povo e deixam marcas profundas

nos conflitos políticos dos próximos anos

Ilustração: Tiago Silva | facebook.com/quadrinhosimpossiveis

Vírus Planetário - junho/julho 20146

Page 7: Edição 33 (completa)

contrariam o regime jurídico exis-tente.

As forças da situação, em es-pecial de sustentação do governo federal, querem tirar o máximo proveito político do futebol para fins eleitorais, como já aconteceu inúmeras vezes no Brasil e em muitos outros países.

O legado revela também a fra-gilidade intelectual de importantes setores da esquerda, em especial de pesquisadores universitários, acadêmicos e de jornalistas que acompanharam o desenrolar do circo da FIFA sem se posicionar de forma clara e sem fazer críticas, apenas para manter o alinhamen-to automático com um governo de composição com o que há de mais atrasado no país. Ao contrá-rio, muitos intelectuais que outro-ra criticavam o futebol como sen-do o ópio do povo, agora silenciam na covardia.

As oposições neoliberal e de centro-direita têm grande interes-se em desgastar o atual governo (uma composição de PT, PMDB, PTB, PP e mais uma dezena de siglas) com vistas às eleições ge-rais de 5 de outubro, mas atuam basicamente no campo institucio-nal, no Congresso Nacional, nas redes sociais e na grande mídia empresarial – que nutre simpatias pelas candidaturas lançadas pelo PSDB e pelo PSB, na expectativa de uma decisão no segundo turno.

Para essas oposições, o maior legado da Copa do Mundo está na incapacidade gerencial do go-verno federal, na incompetência de planejar e executar um projeto de tamanha grandiosidade dentro dos orçamentos e prazos estabe-lecidos. Os neoliberais centram a crítica nos aspectos relativos ao desvio de recursos públicos, su-perfaturamento das obras e na denúncia da corrupção – ou pelo menos na suspeita de financia-mento das campanhas eleitorais com propinas das empreiteiras

que fizeram obras e das empresas que gozaram de isenções de impos-tos e outros benefícios previstos nas leis especiais para o campeonato de futebol.

As oposições no campo da esquerda e os movimentos sociais popu-lares criticam principalmente os danos sociais e políticos da Copa para o país. Nunca antes neste país se ocupou bairros inteiros com tropas militares e policiais como aconteceu no complexo da Maré, no Rio de Janeiro, com autorização genérica do Poder Judiciário para a realização de operações de busca e apreensão em 40 mil residências, uma violên-cia sem precedentes e em flagrante violação dos direitos democráticos e humanos previstos na Constituição Federal.

Ainda precisam ser computados no legado social os incentivos ao turismo sexual, a exploração da prostituição infantil e o aumento da

Ilustração

: Gu

stavo M

orais

Legado social

Vírus Planetário - junho/julho 2014 7

Page 8: Edição 33 (completa)

segregação dos que podem frequentar os novos estádios de futebol no padrão FIFA e os que ficarão de fora do espetáculo depois da Copa. Tudo indica que o maior legado esportivo e cultural é mesmo a ex-pulsão dos pobres e negros dos estádios, no processo de seleção pelo poder aquisitivo, na busca de um novo público eleito – notadamente branco. Para os anunciantes e patrocinadores já estava na hora dos es-tádios serem ocupados pelas classes médias, “limpas e educadas”, sem a ameaça das torcidas integradas pelas “classes perigosas”.

Ainda que o governo comemore a injeção de dinheiro advinda do tu-rismo, a verdade é que a maior parte da grana fica mesmo com a FIFA e seus associados, que recolhem o caixa dos estádios e dos pacotes internacionais. No bojo desse legado estão também as empreiteiras, os patrocinadores e, muito provavelmente, alguns espertinhos que desco-briram brechas para tirar algum trocado da FIFA.

Nunca antes neste país se inaugurou tantas obras inacabadas. Na véspera da abertura do mundial pelo menos 50% das obras estavam inconclusas. O problema desse legado não é apenas o custo financeiro futuro para que tais obras sejam devidamente entregues. O legado está no reforço de uma prática política que remete aos tempos de mando absolutista do coronelismo e das oligarquias. Imaginar que isso tudo está sendo comandado pelo PT e pelo PCdoB, outrora partidos comprometidos com a transformação cultural e política, é mesmo um grande retrocesso.

Como legado para o povo brasileiro vai ficar a conta de tudo aquilo que a administração direta gastou com o evento, aquilo que foi fi-nanciado de forma subsidiada, e aquilo que teve isenção tributária e aumentou a evasão dos cofres públicos, sem contar o risco de picos de inflação em função de um brutal aumento nos preços em aluguéis e na alimentação. Uma coisa é certa: o trabalhador brasileiro vai sentir na própria carne o legado da Copa ainda por vários anos.

Um exemplo bastante singelo é comparar o custo do estádio do Real Club Deportivo Espanyol, em Barcelona – inaugurado recentemen-te, no valor total de 100 milhões de euros (aproximadamente 300 mi-lhões de reais), um estádio moderno, confortável, para 60 mil lugares, com sistemas de energia solar e captação e reaproveitamento de água da chuva – com o custo do Itaquerão, um estádio bem acanhado e inacabado, que já custou mais de 1,1 bilhão de reais, quase quatro vezes mais do que o estádio espanhol. Isso significa que a nação corintiana terá que saldar a dívida com o estádio nos próximos anos não apenas

com o repasse dos preços dos in-gressos, mas também com o endi-vidamento do clube.

Sem maiores chances nas elei-ções de outubro e com espaços reduzidos no jogo institucional, as oposições de esquerda apostam que o maior legado da Copa será, em primeiro lugar, tirar mais algu-mas máscaras do governo federal, que de um lado exerce forte influ-ência nas classes trabalhadoras e nas camadas de menor renda (de-vido a programas sociais e alianças com diferentes setores políticos), e de outro lado continua favore-cendo o grande capital, nacional e internacional, com políticas ne-oliberais, com pagamento de juros altos e a total liberdade dos mer-cados e do fluxo dos capitais.

Além disso, as oposições de esquerda e os movimentos po-pulares apostam também no as-censo das lutas sociais. O legado da Copa, para as oposições de esquerda, é a possibilidade de um salto quantitativo e qualitativo de conscientização e organização das lutas populares, com cobranças cada vez mais firmes junto aos governos e poderes públicos.

Essa disputa extrapola o dis-curso e a perspectiva puramente eleitoral. Independente de quem ganhe o pleito de 5 de outubro, o que importa para os setores mais combativos da esquerda é manter e ampliar os caminhos alternati-vos para a construção de uma ou-tra sociedade – mais democrática, mais justa e mais igualitária.

Esse legado não se confunde com a retórica ufanista e enga-nadora da crônica oficial e nem com a crítica superficial e oportu-nista das oposições neoliberais e de direita. As verdadeiras batalhas políticas vão muito além do jogo eleitoral.

copa das opressões

“ O maior legado esportivo e cultural é mesmo a expulsão dos pobres e negros

dos estádios”

Legado econômico

Legado político

Vírus Planetário - junho/julho 20148

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Desde as “Jornadas De Junho”, a Juventude brasileira não mais se aquietou frente ao que consiDera problema social Do país. se em 2013, a priori, as lutas estavam associadas às melhorias Do transporte público, neste ano, as reivindicações Difusas (saúDe, educação, moradia, etc.) canalizaram-se no antagonismo à realização Da copa Do mundo Da fifa. os manifestantes, Dessa vez, saíram às ruas para Denunciar os gastos excessivos Dos governos com o evento privado transnacional, feito sem consulta pública, e os impactos em populações Já marginalizadas.

O LEGADO

DA COPApor

adriano

Kitani

e enio lo

urenço

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De 25 De Janeiro até 12 Junho, Data De aber-tura Da copa Do mundo, coletivos e entiDades De esquerda organizaram 10 atos na ciDade De são paulo, para protestar contra a realização Do evento esportivo. reclamando melhorias nos serviços públicos e contestando as imposições Da fifa no brasil, milhares De pessoas ousaram retomar as ruas, como fora feito em 2013, sob a palavra De ordem: “não vai ter copa”. apa-rentemente, o movimento parecia mais simbólico Do que efetivo a barrar o mundial De futebol, pretendendo Dar visibiliDade as reivindicações, principalmente com os holofotes Da imprensa es-trangeira que Desembarcava no país.

porém, os Discursos e as ações Dos manifestan-tes atemorizaram radicalmente os governantes, que não titubearam em orquestrar forte repres-são policial, inclusive testando novos métodos e equipamentos - sobrando também para os profis-sionais Da imprensa. nesses seis meses, uma série De Direitos civis foi violada, como afirmaram organizações internacionais De Direitos humanos. militantes foram feriDos e presos em nome Dos lucros Das grandes empresas envolviDas com a copa, endossados por antigos íDolos Do esporte bretão, como ronalDo e pelé, que contemporiza-ram a violência Do estado e a morte Dos traba-lhadores na construção Dos estáDios.

esta reportagem em quadrinhos foi baseaDa no “9o ato - se não tiver Direitos, não vai ter copa”, realizado no Dia 31 De maio. como a Di-nâmica Dos protestos envolveram Diversos pro-tagonistas, pretendemos ilustrar aqui algumas Das proposições Dos manifestantes, que segui-ram firmes aos seus obJetivos até o Dia Do Jogo De abertura na arena corinthians.

e a força Das ruas era tão assustadora aos mandatários, mesmo tendo reuniDo no máximo cinco mil pessoas em um único ato (bem me-nos Do que em 2013), que uma segunDa nar-rativa foi forJada para contrapor aqueles que eram contrários a copa: o “vai ter copa”. seJa pelos iDeológicos ou pelos amantes Do futebol, criou-se uma DualiDade similar aos anos mais obscuros De nossa história recen-te: “brasil, ame-o ou Deixe-o”.

Vírus Planetário - junho/julho 201410

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theatro municipal31/05/2014, 15h

chegamos ao ponto De encontro Da manifestação, onde cerca De 200 pessoas pintavam cartazes, entregavam panfletos e se revezavam em um megafone Durante a concentração Do ato intitulado “indignação popular”.

reconhecemos um militante Da corrente território livre, que está presente Desde as primeiras manifestações contra a copa. pedimos para ele fazer um balanço Da conJuntura política Do momento.

rafael padial, 26 anos

a copa nem começa e Já acabou. não tem Dinheiro pra hospital.

isso é realiDade e não Dá pra acreditar. eu sou brasileiro, Desculpaaí neymar.

existe uma situação concreta para aliar as lutas econômicas Dos trabalhadores, por salários e empregos, com uma luta política contrária aos governos, uma vez que se está Descendo o cacete para fazer a copa. o pessoal aqui está ciente Dos riscos. muita gente Já foi presa ou está respondendo processo, mas ninguém vai sair Das ruas por causa Da repressão. existe uma sensação De revolta que alguma hora vai estourar.

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vãnia 53 anos

padre Júliolancellotti65 anos

eu quero que a copa se Dane. o povo está sendo

humilhado. um monte De pai De família morre na mão De bandiDo e nunca

tem policial. olha o tanto que tem aqui.

estou vendo pela primeira vez esse grupo paramentado, que parece

uma legião romana perfeita: sanguinários, violentos, exibindo uma força Do

Descomunal Do estado.

pra que? pra calar a

boca Da gente? tá errado! não Deveria acontecer a copa. se DepenDesse Do povo, não

aconteceria.

esse é o símbolo Da covardia, Do medo Do povo, Do

medo Daqueles que Dizem não! É assustador De ver o tamanho Da covardia.

ainda antes Das 16 horas, vários pelotões Da polícia militar surgiram Das ruas paralelas ao theatro municipal e exibiram suas novas armaduras para os paulistanos que circulavam na região Da praça ramos De azevedo. aproximadamente 500 policiais foram saudaDos por intensas vaias e xingamentos Dos manifestantes.

Vírus Planetário - junho/julho 201412

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vãnia 53 anos

padre Júliolancellotti65 anos

eu quero que a copa se Dane. o povo está sendo

humilhado. um monte De pai De família morre na mão De bandiDo e nunca

tem policial. olha o tanto que tem aqui.

estou vendo pela primeira vez esse grupo paramentado, que parece

uma legião romana perfeita: sanguinários, violentos, exibindo uma força Do

Descomunal Do estado.

pra que? pra calar a

boca Da gente? tá errado! não Deveria acontecer a copa. se DepenDesse Do povo, não

aconteceria.

esse é o símbolo Da covardia, Do medo Do povo, Do

medo Daqueles que Dizem não! É assustador De ver o tamanho Da covardia.

ainda antes Das 16 horas, vários pelotões Da polícia militar surgiram Das ruas paralelas ao theatro municipal e exibiram suas novas armaduras para os paulistanos que circulavam na região Da praça ramos De azevedo. aproximadamente 500 policiais foram saudaDos por intensas vaias e xingamentos Dos manifestantes.

eu vou a todos os atos contra a copa Do mundo.

a copa Dos empresários, Dos ricos, Dos Demagogos, que o povo não vai participar. o

ouro ninguém sabe para onde foi.não vamos barrar a copa, mas vai ser tumultua-Do. o mundo inteiro está sabenDo o que aconteceu aqui. temos que conquistar avanços sociais com as manifestações, porque só em estáDios foram gastos mais De rs 9 bilhões. estáDio que ago-

ra mudou o nome para arena. arena era no tempo Do homero. a humaniDade

não mudou em nada...

José De freitas, 87 anos

há um Descontentamento muito grande Da população, mesmo que nem todos se manifestem. a gente percebe a exorbitância Dos gastos. o povo Da rua é o primeiro eliminado Da copa Do mundo. ele está sendo varriDo, afastado Dos centros, trataDo com extrema cruelDade e violência.para a nossa realiDade, para a nossa consciência, não vai ter copa. vai ter um grande circo e uma grande palhaçada. nós não podemos entrar na gramática Deles. não vai ter copa. e se esse bolo estava com a cereJinha, nós vamos chutar essa cereJinha.

enquanto entrevistávamos o padre, um morador De rua chamou a atenção De todos ao redor para Dizer que Júlio lancellotti o acolheu em sua casa, auxiliando-o com alimentação e roupas Durante um momento De maior DificuldaDe.

logo na sequência, os manifestantes entoaram: “Ô, o seu José chegou, o seu José chegou”. o aposentado é referência pela Disposição e argumentação.

i

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por volta Das 17h30, cerca De 500 manifestantes iniciaram a passeata pelas ruas Do centro De são paulo.

mas um pouco antes Da saíDa, um Jovem nos chamou atenção com uma bandeira vermelha e preto, símbolo Do anarcossindicalismo. ele preferiu não se iDentificar, mas falou porque estava ali.

nos primeiros metros percorriDos, o rapaz que cantava funK na concentração nos relata que a polícia Disse que vai pegá-lo “quando o pau comer”.

o ato toma as ruas com grande fôlego e uma bateria que não para De tocar. porém, os próprios manifestantes reconheciam entre si que havia DiminuíDo o número De pessoas em relação aos protestos anteriores.

a míDia brasileira mente quando fala Dos protestos

querem Jogar o povo contra o povo

aqui se faz De tudo para Deslegitimar os movimentos populares.

tacham a gente De vândalos e ignoram as nossas causas

Vírus Planetário - junho/julho 201414

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por volta Das 17h30, cerca De 500 manifestantes iniciaram a passeata pelas ruas Do centro De são paulo.

mas um pouco antes Da saíDa, um Jovem nos chamou atenção com uma bandeira vermelha e preto, símbolo Do anarcossindicalismo. ele preferiu não se iDentificar, mas falou porque estava ali.

nos primeiros metros percorriDos, o rapaz que cantava funK na concentração nos relata que a polícia Disse que vai pegá-lo “quando o pau comer”.

o ato toma as ruas com grande fôlego e uma bateria que não para De tocar. porém, os próprios manifestantes reconheciam entre si que havia DiminuíDo o número De pessoas em relação aos protestos anteriores.

a míDia brasileira mente quando fala Dos protestos

querem Jogar o povo contra o povo

aqui se faz De tudo para Deslegitimar os movimentos populares.

tacham a gente De vândalos e ignoram as nossas causas

perto Do final, as liDeranças pediram para todos se abaixarem e realizaram um Jogral, explicando as motivações Do protesto e anunciando seus inimigos.

esse é um ato legítimo, expressão Da revolta Da população pelas várias DemanDas, como saúDe, educação, trabalho. infelizmente, alguns movimentos que aJudaram a organizar os atos no início não estão mais participando. se todas as manifestações contra a copa tivessem siDo feitas em conJunto, teríamos 30, 40 mil pessoas nas ruas.

greve geral, piquete e ocupação.

a mensagem é clara: quem não nos representar vai cair. os interesses Das empreiteiras não são os nossos. os interesses Dos governos são os Das empreiteiras, não nossos. viemos pela nona vez gritar contra a copa Do mundo, contra a fifa, contra a globo. o brasil se transformou em uma nação De indignados. não tem arrego. se não tiver Direitos, não vai ter copa.

carioca, militante Da corrente proletária estudantil, comentou o esvaziamento Da manifestação.

em certo momento, os manifestantes avistaram uma repórter Da rede globo, que foi rechaçada pela imensa maioria até a sua saíDa escoltada pela pm.

pela luta, pelamobilização.

fora pm, não à repressão.

contra ogoverno, fifa e o patrão.

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oito operários foram mortos nas obras Dos estáDios Da copa sp: fábio hamilton Da cruz, 23, ronalDo oliveira Dos santos, 43, fábio luiz pereira, 41 am: marcleudo De melo ferreira, 22,antônio José pita martins, 55, raimundo nonato lima Da costa, 49 mt: muhammad’ali maciel afonso, 32 Df: José afonço De oliveira rodrigues, 21

e ainda rolou um “catracaço” no metrô barra funda. a história não para...

o ato ocorreu sem repressão policial. o encerramento foi em frente à federação paulista De futebol, no bairro Da barra funda, com uma performance em homenagem aos oito operários mortos nas obras Dos estáDios. independentemente Dos balanços econômicos que os especialistas farão, os 10 atos contra a copa Do mundo Já Deixaram um legado: a consoliDação Das ruas como novo espaço De se fazer política no brasil.

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oito operários foram mortos nas obras Dos estáDios Da copa sp: fábio hamilton Da cruz, 23, ronalDo oliveira Dos santos, 43, fábio luiz pereira, 41 am: marcleudo De melo ferreira, 22,antônio José pita martins, 55, raimundo nonato lima Da costa, 49 mt: muhammad’ali maciel afonso, 32 Df: José afonço De oliveira rodrigues, 21

e ainda rolou um “catracaço” no metrô barra funda. a história não para...

o ato ocorreu sem repressão policial. o encerramento foi em frente à federação paulista De futebol, no bairro Da barra funda, com uma performance em homenagem aos oito operários mortos nas obras Dos estáDios. independentemente Dos balanços econômicos que os especialistas farão, os 10 atos contra a copa Do mundo Já Deixaram um legado: a consoliDação Das ruas como novo espaço De se fazer política no brasil. Por Rodrigo de

Constantinopla

Rodrigo de Constantinopla é imperador-privatista, já privatizou o ar, o mar e os

rios, entre outros.

Parece impossível de acreditar, mas parece que eles estão cada dia mais perto de conseguir o sucesso no #gol-pecomunista2014. Se você acha que tudo parece igual quando olha a sua volta e anda bastante satisfeito com os jogos da Copa do Mundo, leia com mui-ta atenção e esse artigo. Depois dele você nunca mais verá o Brasil da mes-ma forma.

Depois de conseguirem emplacar o vermelho do PT na nossa TV todos os dias com a desculpa de transmitir a Copa (reparem no 2014 no logo da Copa, qual a cor dele?), tenho notado diversos indícios inquestionáveis de que os petralhas estão perto de conseguir

dar o golpe derradeiro. Acompanhem comigo os 5 motivos irrefutáveis que comprovam que o marxismo cultural está vencendo.

1) Mc Donald’s, patrocinador oficial da Copa tem como sua cor predominan-te o vermelho. Com propagandas repe-titivas e uma música que gruda como chiclete na cabeça e diz “eu estou feliz porque você veio” o restaurante fast food preferido dos vermelhinhos não en-gana: ele está se referindo à felicidade da chegada do golpe comunista!

2) Budweiser, outra marca patrocinadora da Copa é também... vermelha! O objetivo, é claro, é embebedar o maior número de brasileiros honestos para que não consigamos resistir ao golpe que se aproxime. Já tivemos um confrade que ao beber a cerveja com almadiçoada com a cor diabólica na logo quase foi capturado para trabalhar como escravo no Gulag que fica escondido nos subterrâneos do estádio Itaquerão. Não acredita? Leia com seus próprios olhos o relato – www.tinyurl.com/relatocopa , a fonte consegue ser mais confiável do que a nossa linda, maravilhosa e querida VEJA. Querem uma dica de irmão? Não bebam Budweiser! Ou vocês acham que o slogan “Rise as one” não é um código para que os comunazi se levantem e façam o golpe?

3) Nem a Veja está a salvo! Ao que parece os editores da nossa grande revista, que detém a moral e os bons

*Improvável, mas não impossível.

costumes da nossa pátria varonil tam-bém sofreram um golpe. O logo da me-lhor publicação do país é também ver-melho. Já dei um ultimato, se a revista sair mais uma vez com a cor vermelha, peço demissão.

4) Pacientes atendidos pelos médi-cos cubanos relatam estar sofrendo estranhas inquietações durante a noite. Nossas pesquisas revelam que eles tem implantado chips nos pacientes e, depois do atendimento, eles se tor-nam soldados da revolução comunista. Fique atento! Melhor morrer do que se render aos PTralhas!

5) Só não vê quem não quer: as sele-ções da América Latina têm consegui-do resultados inexplicáveis na Copa. Não acredite em coincidências nem na desculpa dos investimentos dessas seleções no futebol. Está claro que a Copa foi comprada pelos PTismo-cha-vista-bolivarianista-esquedólatra. Assim, qualquer um dos times que ganhe pode-rá implantar o comunismo internacional no continente das bananas.

Imprima esse artigo antes que ele seja excluído de todas as mídias. Só a verdade poderá nos salvar e a verdade é que eles estão ganhando. A escolha é sua: ou você foge pra Miami ou vai viver na ditadura comunista. Eu fui!

Vermelho, estão vendo? Os comunistas estão chegando!

A MARÉ VERMELHA CADA VEZ MAIS FORTE. FUJA ENQUANTO É TEMPO!

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“ O grito ‘não vai ter copa’

é um grito democrático”

Foto: Bibiano Girard

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benefícios à estrutura do sistema capitalista num momento novamente de aprofundamento de crise. Os megaeventos têm servido a essa expan-são tão necessária ao capital.

Parecem existir duas vertentes dentro das criticas à copa: uma ver-tente mais conservadora e o pessoal do ‘não vai ter Copa’. Elas se encontrariam em algum ponto?

A princípio, não deveriam se encontrar, porque, de fato, e sobretudo na mídia brasileira, no campo enorme hegemonicamente conservador, em defesa da Copa, e que de vez em quando precisa dar um “tonzinho de crí-tica”, mas que a mídia nunca esteve tão perigosa. Ela constrói um otimis-mo que ‘qual é o papel do esporte?’. O papel do esporte moderno é trazer uma pátria forte, unida em prol de um projeto de país e a mídia está aí. Nunca se viu em outra Copa um desânimo tão grande em se enfeitar rua, pintar ruas – isso era uma constante em qualquer outro evento mundial de futebol. Então, o ‘não vai ter Copa’. Eu penso que não se encontra com o conservadorismo, no entanto, eu acho que é um grito que foi assumido pela esquerda de forma geral, mas que — aí, sim — dentro da esquerda tem uma bifurcação. Porque tem uma grande ala que, inclusive, faz crí-tica ao grito ‘não vai ter Copa’ e diz que seria uma certa ingenuidade ou uma diluição política ou uma fragmentação na discussão política dizer que não vai ter Copa quando a gente sabe que vai ter — e aí defendem a ideia de que não Copa, vai ter é luta. Primeiro, é preciso que fique claro que a gente entende perfeitamente que a Copa vai existir. Com todo o aparato repressivo que esta aí justamente para acontecer, a gente não tem a menor dúvida de que a Copa vai acontecer. Vai acontecer para

Como a senhora analisa o atual governo que, teorica-mente, propõe-se a defender a classe trabalhadora, mas prioriza a iniciativa privada no caso especifico da FIFA na Copa do Mundo?

Tendo em vista que eu não entendo mais [o PT] como um instrumento de representação da classe trabalhadora nesse país, não se torna uma surpresa nem entendo como uma contradi-ção esse fenômeno. Meus estudos nesse campo foram avançando de 2004 para cá e me levaram a per-ceber que o esporte no país, já des-de o primeiro governo Lula, é uma política de Estado antes de tudo. E uma política de um Estado que não tem, em si, nenhuma ou pouca au-tonomia perante as relações con-temporâneas no mundo e perante a força do capitalismo atual e sua crise. Então, falar do PT e das con-dições que esse governo tem propi-ciado ao avanço do grande capital, das grandes corporações dentro do país é algo que está muito bem articulado com as propostas do governo Lula-Dilma. Faz parte de um Estado que tem compromissos que não podem ser esquecidos com forças que estão acima do Estado brasileiro e que, portanto, tem que conceder essa série de benefícios que não são exclusivos nem à FIFA nem ao COI, mas, acima de tudo,

ENTREVISTA INCLUSIVA:

A partir da repercussão das manifestações de junho de 2013, surgiu o grito ‘Não vai ter Copa’. Tanto propagado quanto criticado, tornou-se a máxima síntese de milhões de brasileiras e brasileiros que, em meio a velhas promessas de mudança, veem-se reprimidos violentamente ao passo que tomam os espaços públicos em protesto. A Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas do Rio de Janeiro de 2016 são bons exemplos, de acordo com a professora Adriana Penna, da lógica de expansão e manutenção capitalista através de megaeventos esportivos, com os quais, além de lucros exorbitantes, constrói-se também um sentimento nacionalista sob o qual o país está indiscutivelmente unido.

ADRIANA PENNAPor Bibiano Girard, Gregório Mascarenhas e Marina Martinuzzi, da Revista O Viés

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ENTREVISTA INCLUSIVA_ADRIANA PENNA

o turista estrangeiro, vai acontecer para as classes médias do Brasil e, infelizmente, para a classe operária, que vai ficar sem comer um mês, mas muitos vão comprar ingressos para ir à copa — tamanha a força da ideologia que está contida nesse elemento. No entanto, é importante esse grito, que, de certa forma, ameaça isso que está aí, no sentido de que é um grito que denuncia, que promove uma certa abertura e limpeza de campo, no sentido que mostra onde é que estão as contradições. Então, ‘não vai ter Copa’ é no sentido de dizer ‘nós não queremos Copa’ e, mais ainda, não é só no Brasil, a classe trabalhadora está no mundo. É um fe-nômeno que não traz à classe trabalhadora benefício qualquer.

De que forma o futebol contribui para o apaziguamento da classe trabalhadora nesse momento? Como a senhora analisa a influência da imagem de que o ‘Brasil é o pais do futebol’ tem sobre a expectati-va que se gera no país-sede?

De fato, o fenômeno do esporte é esse elemento que agrega, histori-camente tem sido assim no capitalismo. Recentemente, se a gente for olhar nos anos 60, 70, as ditaduras e todo a Operação Condor se valeram do esporte, das Copas, nessa perspectiva de trazer a tolerância, de apa-gar as contradições e usar ideologicamente o esporte como o elemen-to unificador da pátria. Quando, por baixo dos panos, a gente bem sabe tudo que aconteceu, o terror, os porões da ditadura, como tudo se deu. Se utilizavam até de elementos da história antiga e das Olimpíadas an-tigas, fazendo uma relação completamente mecânica, como se aquelas Olimpíadas pudessem ser comparadas às Olimpíadas modernas, que não têm relação qualquer. Então, fazem essa transposição mecânica, porque ‘as olimpíadas são capazes de parar as guerras’? Não são, né. A gente vai fazer uma aqui debaixo de uma guerra, certo? Se a gente pegar, por exemplo, um evento do porte das Olimpíadas nos anos 30, lá na Alema-nha com o Hitler. Ali estava presente esse elemento ideológico de passar para o mundo o exemplo de uma raça forte, vitoriosa e unida em prol de um projeto. O que eu penso que acontece em meados de 90, início de 90 pra cá? Esse elemento ideológico não se perde, no entanto, junto a ele ganha muita força a questão econômica.

Então, a gente tem agora uma perspectiva de alavancar a questão eco-nômica do capitalismo na medida em que o Estado garantidor de toda essa infraestrutura possibilita aquilo a que a gente já vem assistindo há algum tempo: a expansão do setor de serviços. E é justamente nesse se-tor de serviços que as grandes empresas e megacorporações estão atuan-do, com todo o aparato preparado com o dinheiro que é nosso.

Há uma crise na imagem da Copa, pelo menos em comparação com as mais recentes. De onde ela surgiu?

Temos que trabalhar, nesse caso, com a categoria de ‘contradição’. Por mais que esses movimentos te-nham sido diluídos, despolitizados, com a negação de partidos e de suas bandeiras, como assistimos, ele de fato conseguiu furar um bloqueio midiático muito forte. Atravessou e tem atravessado o mundo. Nesse sentido, essa crise se implementou. Nem na ditadura, nem na Copa de 70 se viu isso no país. O Brasil é o país do futebol, mas a gente viu milhões de pessoas na rua gritando que não querem Copa. O grito ‘Não vai ter copa’, sobretudo da forma como ele foi assimilado, é um grito democrático. Esse grito extrapolou os limites do Brasil. No entanto, já estão sendo preparados os eventos em outros países. Por mais que es-sas reivindicações tenham tomado vulto, não é um impedimento para que esses eventos se realizem em outros países.

Tem havido, nas cidades-sede, uma reconfiguração urbana. No Rio, sobretudo, é uma mudança de modelo de cidade. Qual leitura pode ser feita dessa reconfigura-ção?

Primeiro, é uma necessidade do capitalismo. Criar padrões de ci-dade. David Harvey fala sobre isso, sobre o padrão de cidade global. O Rio de Janeiro vai ficar igual à Nova Iorque nesses aspectos. As capitais brasileiras todas ficarão muito pa-recidas. É uma demanda dos cen-tros econômicos, que eles sejam colocados na mesma condição, com uma mesma aparência. É a circulação livre da qual o mercado precisa. Essa reconfiguração, que não vem só em nome dos megae-ventos, diz respeito a todo um pro-jeto de globalização. São cidades

“ O Brasil é o país do futebol, mas a gente viu milhões de pessoas na rua

gritando que não querem Copa”

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que esse momento não fique em branco. Que possa haver qualidade de transformação. Temos, sim, que utilizar esse momento em prol da classe trabalhadora.

iguais, com um modelo empresarial. O que importa é que os negócios possam ser encaminhados. E a clas-se trabalhadora tem que abrir espa-ço para os avanços do capital.

Será possível tomar esse mo-mento para o reconhecimento da própria classe trabalhadora como tal?

Eu penso que é esse o momento de conseguir isso. Não é porque muitos serão presos ou mortos que isso vai acontecer. Não vem como uma má-gica. Penso que é um momento para construir a retomada de consciência

da classe trabalhadora. Para isso, a gente precisa se organizar, a gen-te precisa mostrar as contradições. Para isso, a gente precisa de um par-tido que, de fato, desempenhe esse papel, de organizador da classe. Para

“ Os megaeventos têm servido a essa expansão tão necessária ao capital”

Foto: Bibiano Girard

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sórdidos detalhes

A verdade varrida pra debaixo do tapete...

Durante mais de trezentos anos de história o Brasil foi marcado por um dos mais cruéis sistemas que a humanidade já conheceu. A escravidão foi um processo extremamente cruel para centenas de milhares de africanos que, retirados de suas raízes, vieram para o Brasil nas piores condições possíveis para exercer os trabalhos mais desumanos e estando sujeitos as mais cruéis formas de ex-ploração e tortura. Foi necessário muita luta, entre negociação e conflito, para que o povo negro conquistasse sua liberdade.

Dia 25 de julho é o dia Internacional da Mulher Negra Latino Americana e Caribenha. A data foi criada em 1992 durante o Primeiro Encontro de Mulheres afro-latinas americanas e afro-caribenhas, em Santo Domingo, Repú-blica Dominicana.

Numa conjuntura que diversas mulheres negras po-bres periferadas e faveladas perdem seus filhos, maridos e também são assassinadas pelo Estado genocida ou pelos seus familiares, a luta é ainda mais árdua. Na próxima edi-ção da Vírus, vem matéria especial sobre mulheres negras.

A ESCRAVIDÃO NÃO ACABOU, O FEITOR VIROU DONO DE EMPREITEIRA

DIA DA MULHER NEGRA, LATINO-AMERICANA E CARIBENHA

Mas a escravidão não acabou de fato. Ela ainda é uma realidade na vida de muitas pessoas. Cento e vinte e seis anos após a assinatura da Lei Áurea, centenas de homens, mulheres e crianças trabalham em condições análogas a escravidão em canaviais, cafezais, fábricas de roupas, canteiros de obras, entre outros.

O mais recente caso de empresa denunciada por trabalho escravo e tráfico de pessoas foi a conhecida Odebrecht, acusada de manter cerca de quinhentos trabalhadores brasileiros em condições de trabalho análogas a escravidão na construção de uma usina em Angola. O Ministério Público do Trabalho de São Paulo pediu a condenação do grupo sob pena de pagar indenização de 500 milhões de reais por dano coletivo.

Vale lembrar que a Odebrecht é uma das prin-cipais empreiteiras amiga dos Governos Estadual e Municipal do Rio de Janeiro, possuindo as licitações de obras no complexo esportivo do Maracanã e nas obras do sistema viário do Porto Maravilha. Licita-ções essas, concedidas pela administração de Sérgio Cabral e Eduardo Paes, que hoje permanece com Luiz Fernandão Pezão, atual governador do Rio de Janeiro.

Além das inúmeras remoções, violações de Direi-tos Humanos, genocídios nas favelas, elitização dos estádios e encarecimento da cidade, essa Copa do Mundo tem sido sustenta pelo suor da exploração do proletariado.

Dono da construtora Odebrecht, a maior beneficiada da Copa é um figurão do álbum de figurões da Copa, intervenção urbana realizada em postes em Brasília

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Em protesto anti-copa realizado no Rio de Janeiro (15/06), nas proximidades do Estádio do Maracanã, mais uma vez a repressão se fez presente. E entre bombas de gás lacrimo-gênio, efeito moral, balas de borracha e spray de pimenta, tivemos tam-bém a presença de armas de fogo sendo disparadas contra manifestantes.

Midiativistas que es-tavam no local flagra-ram o momento em que um policial salta de uma moto, saca sua pistola e dispara na direção de manifestantes, sem se intimidar com a presen-ça das câmeras, disparos feitos para quem quises-se ver.

Em um segundo mo-mento, um homem des-ce de um carro, discute

com trabalhadores da mídia e em seguida saca sua pistola e dispara tiros para o alto a menos de um quilômetro do estádio do Maracanã. Um disparo de arma de fogo nestas condições, pode ser letal para quem estiver em um raio próximo, pois corre grande risco de ser atingindo por uma bala perdida (ou seria endereçada aleatoriamente?)

A prática de utilizar armas de fogo pelas forças repressoras do Estado é bem conhecida, sobretudo nas favelas, onde o Estado promove o genocídio da juventude negra e pobre. Seu uso em manifestações é mais uma forma de mostrar que da ditadura até os dias atuais, a única coisa que mudamos foi o nome, pois as práticas de assassinatos, torturas e repressão a todo forma legítima de manifestação continuam enraizadas nas instituições e no pensamento de uma parcela da popula-ção que apoia tais práticas.

Durante a transmissão dos jogos da Copa do Mundo, a reporter Sabina Simonato, em dois momentos distintos, foi beijada por dois torce-dores enquanto fazia sua transmissão ao vivo. O constrangimento da jornalista é visível pelo beijo recebido sem seu consentimento.

Alguns sites ditos de humor replicaram a cena inúmeras vezes como forma de piada. É necessário lembrar que beijar uma mulher sem o seu consentimento é inconveniente, cons-trangedor e machista.

A mídia hegemônica, como de costume, tra-tou o fato como bonitinho, engraçadinho, de só mais um torcedor animado que quer fazer festa no Brasil. Mas imagine o constrangimento que a jornalista passou ao ter seu ambiente de tra-balho perturbado por um estranho que a beija sem seu consentimento na frente de toda sua equipe de trabalho e de todos telespectadores que assistiam a cena ao vivo?

As mulheres são as uma das prin-cipais vítimas de eventos que atraem milhares de turistas para o Brasil em busca de turismo sexual, prostituição infantil e tráfico de pessoas. Não podemos naturalizar o discurso que coloca a mulher na condição de mercadoria e produto de exploração, reforçando o machismo que faz vítimas diárias. É preciso repudiar toda forma de violência contra a mulher.

Machistas não passarão!

A NATURALIZAÇÃO DO MACHISMO EM FULL HD

sórdidos detalhes

A verdade varrida pra debaixo do tapete...

TÁ TENDO COPA, BALA DE BORRACHA, PROJÉTIL DE

ARMA DE FOGO...

#VaiTerCopa

Ilustração: Rafael Balbueno

reprodução de tv

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Na manhã de terça-feira (17/06), Recife acordou com o barulho de bombas atiradas contra um gru-po de jovens que sabem da importância de pensar o modelo de cidade que necessitamos e que ousam lutar contra a privatização dos espaços públicos.

A ocupação do Cais José Estelita tem como proposta debater o modelo de cidade, criticando o projeto Novo Recife que pretende privatizar um dos mais belos pontos da cidade Pernambuco, colocan-do torres que prejudicariam a paisagem, a circula-ção de ar e daria as costas para a cidade.

O que esperar de uma conven-ção do PSDB que lança a candidatu-ra de Aécio Neves a presidência? Um monte de neoliberais defendendo os privatismos, grandes corpora-ções, exaltando o grande capital e fazendo discursos sensacionalistas para tentar tocar corações e men-tes? Sim, na convenção de Aécio Neves não foi diferente, teve tudo isso. E quem assistiu ainda foi obri-gado a ouvir o candidato se com-

parando com Juscelino Kubitschek e Tancredo Neves,

RECIFE: CAIS JOSÉ ESTELITA: MAIS UMA DESOCUPAÇÃO VIOLENTA EM DEFESA DOS INTERESSES PRIVADOS

QUE PAPELÃO, AÉCIO!

O espaço da ocupação passou a ser um rico ambiente de produção cultural e intelectual, contando sempre com a presen-ça de variados artistas e de uma juventude que propõe debates políticos e democráticos para pensar o modelo ideal de cidade, que reduza as explorações e contradições provocadas pelo ca-pital.

Mas na manhã do dia 17, os cães de guarda do Capital entra-ram em ação, utilizando de chicotadas, tiros de borracha, bom-bas de efeito moral e todo tipo de covardia contra um pequeno grupo de manifestantes que não ofereciam resistência. Alguns manifestantes ficaram feridos, outros foram detidos e o gover-no de Recife promoveu mais uma cena trágica de violação aos Direitos Humanos e a democracia, atacando um amplo espaço democrático de debate e produção cultural.

A música de Criolo com Mulatu Astatke define de forma magistral os lamentáveis acontecimentos daque-la triste manhã de terça-feira onde a democracia mais uma vez esteve em luto:

“Doze torres no cais Doze torres a mais

Erro das estatais O sangue jorra no Cais

A lama que trama na cama dos car-tões postais

O drama que banca a fome des-ses animais

O povo protege o Recife e seus ancestrais Corais que se quebram e choram a beira do Cais”

defendendo o nacional-desenvolvimentismo das décadas de 30 à 60.

Mas nada disso foi capaz de roubar a cena da conferência. Na ver-dade todos esses discursos já eram mais do que esperados. Nem o próprio Aécio conseguiu roubar a cena. Quem teve maior destaque foi seu display feito de papelão em tamanho real para que os tucanos pudessem tirar fotos ao lado do Aécio de papelão.

Este episódio mostra muito sobre quem é Aécio Neves e sobre seu governo. O que esperar de um candidato que coloca bonecos de papelão em seu lugar como forma de evitar contato com os militan-tes de seu próprio partido? Qual tratamento esperar deste candidato para com o povo? Não há nada a se esperar de Aécio além de um tremendo papelão!

Acima, Ocupação Estelita com suas atividades culturais e abaixo momento da expulsão violenta realizada pela polícia

Foto: Ytallo Barreto

Foto: Ytallo Barreto

Foto: Eric Gomes

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Que mal tem?

Junho de 2014 | Ano 11 | Número 116 | www.fazendomedia.com | [email protected]

MEDIAFAZEN

DO

a média que a mídia faz

Ser rico e dono da mídia

arte: naya4

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*Bruno Marinoni é repórter do Observatório do Direito à Comunicação, doutor em Sociologia pela UFPE e integrante do Conselho Diretor do Intervozes.

Por Bruno Marinoni

“ Os governos pós-ditadura não ousaram mexer com os magnatas da

comunicação”

No último dia 13 de maio, a Re-vista Forbes divulgou seu ranking de “ricaços” do Brasil. Os Marinho lideram a competição com uma fortuna estimada em US$ 28,9 bi-lhões. Qual o problema de a fa-mília mais rica do Brasil ser dona dos principais meios de comunica-ção do país? Resposta: poder de-mais. Poder econômico e cultural (ideológico, simbólico ou como se quiser chamar). Isso se falarmos genericamente.

Se pensamos de forma mais concreta, observando a história do setor da comunicação social no Brasil, responderemos de outra forma. O total domínio do inte-resse privado-comercial, o jogo de influências (e privilégios) políticas, a inexistência de mecanismos de-mocráticos de participação social na comunicação (o que gera um sério problema para a garantia da liberdade de expressão), a extrema oligopolização e uma série de ou-tros problemas nos fazem pensar que a resposta mais correta, na verdade é: dominação demais.

Uma sociedade que pressu-põe que “todo o poder emana do povo”, que se pretende “livre, justa e solidária” e que afirma que “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações” deve fazer os ajustes necessários para que possa garantir liberdade, justiça, solidariedade, igualdade e poder popular. E isso significa não permi-tir que o poder se concentre nas mãos de alguns poucos indivíduos. E dinheiro é poder. E comunicação é poder.

Opa! Ouvi alguém ali comen-tando: “mérito!”. Será? Dos 65 bi-lionários constantes na lista de ricaços do Brasil, 25 são “herdei-

ros”. Assim também acontece coincidentemente com o trio de irmãos Marinho. Ainda que não fosse isso, porém, quem disse que é legítimo o assassinato da democracia pela meritocracia? E que mérito se tem em ser mais poderoso porque se tem mais recursos do que os outros?

Imediatamente atrás dos Marinho, no ranking, estão as famílias de banqueiros. Safra (da família homônima), Ermírio de Moraes (Votoran-tim), Moreira Salles (Unibanco-Itaú). Os governos do Brasil pós-ditadura não ousaram mexer com os primeiros, magnatas da comunicação, e nutriram os últimos, senhores do vil metal. Quem se atreveria a en-frentar tamanho poder, diante de compromissos mais urgentes como a garantia da governabilidade? Já pensou o que seria de um governo deslegitimado por todos os meios de comunicação? Melhor não mexer aí, ganhar confiança, oferecer uma vaga de ministro ao Hélio Costa, não insistir com esse papo de mané projeto de Agência Nacional do Audiovisual… Vai que os Marinho se zangam… Já pensou? Nem pensar!

Aliás, os Marinho já constam no ranking da Forbes desde 1987, pri-meira vez em que foi publicado, acompanhados pelas famílias Ermírio de Moraes e Camargo (Camargo Correa). E, assim, se dá prosseguimen-to à triste tradição brasileira de mandar quem pode (e tem poder) e obedecer quem tem juízo. Ou não.

Família Marinho | Reprodução

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Bula cultural algumas recomendações médico-artísticas

Da Boca do Monte (Santa Maria/RS) para o mundo, a banda Geringonça

Um típico dia de outono em Santa Maria, região central do Rio Grande do Sul: é frio pra caralho de manhã, mas de tarde o Sol obriga todos a irem despindo-se dos casa-cos, um a um. Domingo, aqui, é dia de ressaca. A cidade é cheia de jo-vens e as noites são longas e ébrias. Compreende-se a vontade de ficar baixado em casa, sair só quando a luminosidade já não for tão hostil. Mas hoje a gurizada resolveu de-

ARTE de SORRISO

sentocar. Pela Avenida Liberdade, na altura do bairro Passo d’Areia – um subúrbio tranquilo a cerca de meia hora de caminhada do centro da cidade –, grupos se dirigem com pressa em direção à Praça do Mal-let.

Ninguém quer perder a Geringon-ça tocando em praça pública, de graça. Além do mais, o sinal está fe-chado para a juventude santa-ma-riense; há uma sensação de que to-dos os eventos devem ser aprovei-tados a pleno. Pouquíssimos bares e casas noturnas sobreviveram à

fiscalização da prefeitura, que, des-de o terrível 27 de janeiro de 2013, começou a funcionar de verdade. Esses lugares, é claro, têm um cri-tério em comum para decidir quem entra e quem fica na rua: o con-sumo. Por outro lado, os espaços públicos dispõem de nada ou quase nada em termos de infraestrutura. A “Boate do DCE” – casa noturna mantida pelo Diretório Central dos Estudantes da Universidade Fede-ral de Santa Maria –, por exemplo, funcionava desde 1968, com entrada gratuita e cerveja barata. Fechou as portas ainda no começo do ano passado, e um dos últimos shows foi o da Geringonça.

Por Marina Martinuzzi e Gregório Mascarenhas, da

Revista O Viés

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Em uma estação de trens abandonada, a Geringonça apresentou o espetáculo “Música típica do lado de lá” | Foto: Marina Martinuzzi Marina Martinuzzi

O fato de a apresentação que lançou o segundo EP da banda, intitulado Bico/Pharmacê, ter sido em um espaço público, fora do centro da cidade, não foi uma es-colha aleatória. Faz parte do cará-ter geringonceadoser totalmente a favor da ocupação dos espaços públicos. Talvez essa seja uma das poucas decisões do grupo que passa por um planejamento, uma premeditação. O resto é gam-biarra, improviso, como o próprio nome sugere. Assim foi na Praça do Mallet: um gerador, que insistia em falhar, fornecia a energia aos equipamentos de som que leva-vam animação à plateia. No show de lançamento do primeiro EP, re-

alizado na desativada estação de trens de Santa Maria, não foi muito diferente: a própria banda ajudou a limpar os banheiros depois da festa.

Ao caracterizar a forma geringonceada de musicar, Adriano Taques e Cezar Gomes resumem muito bem o que foi aquela tarde: “Sabendo que é possível, a gente vai lá, tenta fazer, e às vezes dá”. Nesse dia, assim como todos os outros, deu. Apesar da falta de energia elétrica e de banheiros no local, a Geringonça botou o povo para dançar com samba, rock e até bandinha – como é chamado um ritmo tradicional alemão, muito comum nas pequenas comunidades rurais do interior do estado, mas pouco conhecido nos círculos mais alternativos das cidades maiores.

A liberdade musical talvez seja uma das grandes marcas que a Gerin-gonça carrega desde seu nascimento, em 2011. Vinda do bairro Camobi, a personalidade improvisada do grupo adianta a forma como as músi-cas, letras e arranjos são pensados.

Numa mesa de bar, com o embalo ditado pelas cervejas comparti-lhadas, os seis amigos resolveram fazer um som. A partir do momen-

apresenta seu divertido enredo sociopolítico culturalem SORRISO

Misturança artística sobre os palcos

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“ Sabendo que é possível, a gente vai lá, tenta fazer, e, às

vezes, dá”

Bula cultural algumas recomendações médico-artísticas

to em que Evelíny apresentou um material próprio, a Geringonça começava a tomar forma e já deixava para trás a ideia inicial de compor o trio “Genipapo”, que tocaria músicas cover.

A “nonsense legal” que Vinicius usa para caracte-rizar a banda dá-se pelo método nada convencional e totalmente invertido com o qual o processo de construção e criação aconteceu. As músicas foram feitas, depois gravadas e só aí houve a decisão de subir ao palco. Mas só subir ao palco também não se encaixava na proposta, então personagens e en-redo foram inventados para formatar o espetáculo “Música Típica do Lado de Lá”. Evelíny Pedroso é o Pedaço da Natureza, Adriano Taques é o Palhaço Zuli, Cezar Gomes é Ivan Kchowski, Rodrigo Cidade é o Grilo-Cantor, Vinicius Bertolo é Julián Ramirez e Vinicius Nicolini é o Voodoo.

O surgimento das personagens, que também carregam figurinos próprios em toda aparição, sur-preende o público de ambas as maneiras: há quem ame, há quem odeie. De acordo com Evelíny, “É um estranhamento frente ao fato de a gente não lidar só com a música”. Com pouco mais de dois anos de vida, a banda já ultrapassa o repertório de 30 músicas (muitas ainda na fila de espera para serem gravadas) e já tocou no reconhecido palco do Circo Voador, no Rio de Janeiro, através da participação no WebFestValda, em 2013.

Como fazem questão de frisar, nada foi muito pensado para proporcionar o caráter geringoncea-do, e Cezar dita o ritmo com o qual se estabelece o grupo: “Geringonça não é só um nome, uma pala-vra, é um estilo de vida. É o estilo de vida gambiar-rento. Assim, deu uma zica ali, tu vai lá e ata um pedaço de arame e vai funcionando.” Essa forma de encarar o trabalho (e a diversão) é exatamente o que contorna o aspecto indefinido que Geringon-ça tem. É samba, é rock, é blues, é “uma concha de retalhos”, que também conta com um suporte de aproximadamente 40 pessoas de diferentes áreas

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para o projeto manter-se vivo com toda a sua irreverência.

A pesada bagagem de artista in-dependente do interior do Rio Gran-de do Sul, “levando no peito e só conhecendo essa forma”, faz com que a Geringonça tenha uma firme crítica ao mercado que comercializa a cultura. As fórmulas prontas de arranjos não existem e a compo-sição das músicas é sempre hete-rogênea - “A Geringonça é o anti-hipster”, completa Zuli.

Todas as músicas da banda são disponibilizadas para download gra-tuito, mas a necessidade de manu-tenção e avanços no cenário para as apresentações fizeram com que os geringonceados organizassem a venda de materiais para consegui-rem seguir gravando seus sons e realizando novos espetáculos para o público.

Para Julián Ramirez, o jeito ma-temático de produção musical está se esvaindo e proporcionando, cada vez mais, espaço para o composi-tor regional. A aposta é de que por mais 10 anos as produtoras ainda consigam vender bem um “artista pré-fabricado”. Ao contrário dessa lógica, Geringonça defende e expõe a Música Popular Humana (MPH), aquela que não bloqueia nem veta qualquer manifestação musical que seja pensada nos processos de cria-ção – “É a música que se canta no banheiro. Vocês devem se pegar cantando às vezes alguma coisa”, explica Vinicius. E em alto e bom tom, o Pedaço da Natureza en-cerra o ponto que poderia ser um dos componentes dessa engenhoca toda: “Eu acho inadmissível que a cultura seja vendida, entendeu?!”.

Com todos os cacarecos que tocam para frente esse enjambre todo, o trabalho é grande, mas há um consenso entre o grupo de que a recompensa financeira é a que possui menos valor. “O sorriso

das pessoas, sabe? É legal quando as coisas que tu faz tocam outra pessoa de forma positiva. Acho que isso é uma grande recompensa.”, enfatiza Zuli.

Se a banda tem em seu corpo uma parte da natureza, não é de se espantar que suas produções aconte-çam de forma bastante natural, sem se encaixar em prazos ou padrões. Através do suor coletivo e da espon-taneidade, o grupo conta que o pro-cesso da música “Farmacê” delineou uma nova fase de compor. Em uma junção no Salto do Jacuí, cidadezinha a cerca de 130 quilômetros de Santa Maria, a letra inteira foi escrita com “todo mundo junto dando pitaco ao mesmo tempo” e surgiu da ideia de falar sobre a questão do Paracetamol – isso mesmo, aquele medicamento. É que a música, além de questionar sutilmente as diferentes drogas legali-zadas em nossa sociedade, também dialoga com o movimento antiproi-bicionista, demarcando, num refrão muito bem cantado, a hipocrisia que é “proibir a nossa erva da alegria”.

Para entrar de vez na cachola, a rara característica de a Gerin-gonça tratar assuntos políticos de modo menos grave do que o habitual é outro ponto destacá-vel dessa caranguejola toda. No samba “Florisbela”, por exem-plo, e nas letras de “Batom” e “Maquinário”, a desconstrução de padrões se faz presente em agradáveis tons. Assim, de ma-neira descontraída e se posicio-nando criticamente em debates do contexto social, a Geri con-quista cada vez mais sorrisos e alegrias da fiel plateia, sem dei-xar de impressionar também as pessoas que simplesmente reco-nhecem o potencial artístico da banda, independente da identi-ficação musical com os estilos tocados.

Para conhecer todas as novi-dades, histórias e músicas des-sa gente refinada, acesse o site www.vivageringonca.com e curta a fanpage – Viva Geringonca – da banda no Facebook.

Entre arranjos e desarranjos

A integrante Pedaço da Natureza em ação

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Bula cultural algumas recomendações médico-artísticas

IndicaçõesDomínio Público

Em ano de Copa do Mundo, o lançamen-to do documentário Domínio Público é de imensa importância. Acompanhando os mo-vimentos de resistência da cidade do Rio de Ja-neiro desde 2011 até o início de 2014, o do-cumentário consegue mostrar as injustiças e opressões existentes na cidade que culminaram nos protestos de

junho de 2013 e se estenderam pelo resto do ano. A partir dessa

análise, conseguimos perceber a ligação direta entre essas injusti-

ças e a realização dos Megaeventos.

Assista em nosso site: www.tinyurl.com/dominio123

Lugar de mulherIndicação de um site feito para

mulheres? Sério mesmo, Vírus?

Pois bem, o nome é uma ironia e

uma provocação com aqueles que

afirmam que lugar de mulher é na

cozinha ou coisas semelhantes. No

entanto, é mesmo um “lugar” feito

para as mulheres, por mulheres.

Só que absolutamente diferente de

qualquer site feminino que você

já viu. Ali, ninguém vai te ensinar

a agradar aos homens ou se vestir “de acordo com seu corpo”.

Muito pelo contrário! As autoras Clara Averbuck, Mari Messias

e Polly estão subvertendo a ordem em um espaço que grita por

autonomia feminina, body positive e feminismo, muito além das

teorias.

Corre lá: www.lugardemulher.com.br

ingerir em caso de marasmo

ingerir em caso de repetição cultural

ingerir em caso de alienação

POSOLOGIA

manter fora do alcance das crianças

nocivo, ingerir apenas com acompanhamento médico

extremamente nocivo, não ingerir nem com prescrição médica

Contraindicações

Coronel TelhadaMais um

dia se levanta para tantas pes-soas com uma angústia no pei-to sem fim; en-quanto tantos enfrentam a vio-lência do Estado pelas mãos das polícias, prin-cipalmente da militar, há quem tenha coragem de transformar um conhecido sanguinário em herói.

A editora K9 é responsável pela publicação que foi encomendada pelo próprio vereador coronel Telhada. Inclusive, ao que tudo indi-ca, os quadrinhos foram pagos com a verba de gabinete do vereador. O valor? R$52 mil!

Os discursos silenciosos da ditadura rever-beram feito urros na farda polida, na vesti-menta que representa o jazigo de qualquer ordenamento jurídico quando há tentativa sem nexo de construção da imagem do herói vinculada a figura do policial. Não se trata de heroísmo ou qualquer coisa semelhante. Polí-cia serve o sistema, polícia é o sistema, com a mira engatilhada sempre para os pretos, po-bres e todos que lutam contra ele. Esperamos que essa ideia não siga enfrente e que nossas crianças cresçam com verdadeiros heróis lu-tadores do povo.

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Ilustração: Pedro Lucena

Por Lu Sudré

Tatuagem é coisa de mulher, sim!

feminismo

A opressão de gênero não está à margem das agulhas

colaborou Rosa Donnangelo

Caracterizada como algo moderno, a prática de marcar o corpo é quase tão antiga quanto a própria humanidade. Espalhada pelo mundo, a prática da tatuagem possuí diversas finalidades, sejam elas objetivas ou subjetivas, como rituais religiosos, identificação de grupos sociais, camu-flagem, entre outras. A artista plástica Célia Ma-ria Antonacci Ramos, da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc), autora do livro Teoria da Tatuagem, declara que um dos objetivos da tatuagem seria permitir ao indivíduo registrar sua própria história, carregando-a na pele em seus constantes deslocamentos.

Provas arqueológicas afirmam que tatuagens foram feitas no Egito entre 4000 e 2000 A.C, e também por nativos da Polinésia, Filipinas, Indo-nésia e Nova Zelândia em rituais ligados a religião. O termo tatuagem tem origem em línguas poli-nésia, mais especificamente o taitiano, na pala-vra tatau. Proibida pelo Papa e banida da Europa pela Igreja Católica na Idade Média, a prática de tatuar o corpo foi considerada - e por alguns setores extremistas da sociedade ainda é - como uma prática demoníaca, um ato de vandalismo contra seu próprio corpo, que segundo a religião, é um templo que não deve ser modificado.

As primeiras tatuagens que se assemelham ao conceito e imaginário de tatuagem que

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feminismo

Ilustração: Carol Rosseti - www.facebook.com/carolrossettidesign

possuímos hoje foram espalhadas por ma-rinheiros ingleses após entrarem em conta-to com polinésios. A palavra “tattoo”, ex-pressão pela qual a tatuagem é conhecida, foi elaborada pelo capitão James Cook. A reprodução de caveiras, animais marítimos e navegações que se popularizaram entre guetos, prostíbulos e tavernas, agregaram um tom marginal à prática. Para a tatuado-ra contemporânea e americana Katherine Von Drachenberg, está é uma das principais formas de auto expressão e, mais do que a música, as tatuagens com suas variedades de estilos e razões tem a capacidade de dar uma visão geral do que está acontecendo na sociedade.

Estamos inseridos em uma organização social em que padrões de comportamentos são estabelecidos e impostos por esferas políticas, sociais e culturais. Sendo assim, o diferente é criminalizado. Como um símbolo contestatório, de ousadia e personalidade, somente na segunda metade do século XX a tatuagem foi incorporada aos ideais da cul-

“ Há uma opressão de gênero histórica que não

está à margem das agulhas dos tatuadores”

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Enquanto os mais conservadores acreditam que a tatuagem na mu-lher seja sinônimo de promiscuidade, em contrapartida, há quem diga que tatuar o corpo é uma das maiores atitudes de libertação e que mulhe-res tatuadas são exemplos. Porém, o último conceito ainda está muito restrito a pequenos grupos que cul-tuam a arte corporal ou trabalham com ela. “Ainda existe associação da tatuagem com promiscuidade ou com um lado mais “masculinizado”, principalmente com quem tem ta-tuagem grande. Acham que é um pedido de atenção,” pontua a es-tudante de publicidade, de 19 anos, Milena Louise.

Há ainda o fetichismo por mulhe-res tatuadas, fomentado pelo com-portamento machista e de posse. Além de ser encarada como um pe-dido de atenção, a tatuagem auto-máticamente vira um ato dedicado ao prazer masculino, sem ser con-siderada a vontade – apenas pela vontade, pela autonomia do próprio corpo – de se fazer uma tatuagem. As mulheres são expostas em condi-ção submissa aos interesses sexuais dos homens, anulando totalmente suas expressões corporais, prazeres e vontades.

A recorrente não aceitação de uma tatuagem pelo sexismo expõe uma questão estrutural. O precon-ceito só prova que a sociedade é machista, que o homem ainda é visto como superior, nunca sendo questionado sobre seu próprio cor-po e atitudes perante a ele. Nesta sociedade, o homem detém privilé-gios, apenas por ser homem.

Milena acredita quem, aos pou-cos, conquistas podem ser alcan-çadas. “Assim como quebrei para-digmas dentro do meu ciclo familiar, penso que muitas outras possam, sem perceber, quebrar mais alguns paradigmas no meio social”. Para Milena, enquanto mulher, não existe um grito de liberdade maior do que usar o próprio corpo.

ilustrações: Pedro Lucena

tura ocidental. Em 1879, o governo da Inglaterra adotou-a como uma forma de identificação de criminosos, o que foi incorporado aos presídios e até hoje persiste como uma linguagem. Há um preconceito cultural contra aqueles que possuem tatuagem, no sentido da criminalização propria-mente dita.

Nesse contexto, assim como em qualquer outro, é preciso dar visibili-dade para a discriminação de gêne-ro. Frases como “tatuagem é coisa de homem”, “mulher direita não tem o corpo marcado”, “tatuagem é coi-sa de mulher da rua, de prostituta” são repetidas constantemente. Ou-tras como “minha filha não faz tatu-agem”, “não deixo que minha mulher tenha tatuagem”, apenas explicitam a condição de inferioridade que as mulheres enfrentam em uma socie-dade patriarcal, machista e conser-vadora.

Há uma opressão de gênero his-tórica que não está à margem das

agulhas dos tatuadores. Di-

versas questões como a prostitui-ção, o aborto e a cultura do estupro

demonstram que a autonomia do corpo

das mulheres é cada vez mais embrulhada pelo conser-vadorismo e pelo patriarcalis-mo. A autonomia do corpo da mulher é praticamente inexis-tente em uma organização so-

cial cuja lógica é de que a mu-lher existe apenas para exercer o papel de mãe e esposa, não tendo li-berdade para alterar seu corpo do jeito que bem entender.

A mulher é vis-ta como propriedade

desde seu nascimento. De filha passa para a es-posa, presa a família nú-clear, heteronormativa e monogamica. As únicas marcas aceitas e permi-tidas no corpo são as que

reforçam esse conceito de propriedade e de feminilida-

de, como brincos e principalmente alianças de casamento.

A distinção é clara. Ações do sexo masculino perante o corpo não são vistas de forma ruim ou a elas não são atribuídos qualquer sentido pejo-rativo. A mulher, sempre vista como “sexo frágil”, sofre com os estereótipos e carrega o “dever” de ser delicada. O corpo com rabiscos foge desse pa-drão imposto, perpetuado pela mídia cotidianamente. A tatuagem já acar-retou alguns problemas para Marciely Oliveira, 19, estudante de Filosofia na Universidade de Brasília. “Sofri precon-ceito no ciclo familiar. Choquei todo mundo porque tenho um rostinho “meigo”, aparência “inocente” e perso-nalidade tranquila, então ninguém es-perava que uma pessoa assim fosse fazer uma tatuagem”, comenta.

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Qual o direito à cidade das prostitutas?

sociedade

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As revitalizações de centros urbanos e a segregação da prostituição

Qual o direito à cidade das prostitutas?relativas à exploração sexual, tráfi-co de drogas e a condição estrutu-ral do prédio. Maria, prostituta no prédio da Caixa, relata: “Hoje (23 de maio) não foi muito diferente do dia primeiro de abril. Começou 3h da tarde. Eles começaram batendo e em seguida arrombando as portas. Não se identificaram, não apresen-taram mandado. Me mandaram fi-car calada, me botaram na parede, puxaram o meu cabelo, revistaram a minha bolsa e pegaram o meu di-nheiro. Quando estava no corredor falei com outras garotas que me disseram que alguns dos policiais as obrigaram a fazer sexo oral no ba-nheiro. Viemos todas para a delega-cia iguais a bicho. Não temos onde dormir. Sequer temos dinheiro para ir na casa de alguém”.

Segundo as prostitutas e repre-sentantes da ONG DAVIDA no dia 1º de abril, policiais militares invadiram as salas onde elas atendiam seus clientes de forma truculenta, sem mandado judicial, autuando-as em flagrante pelo artigo 229 do Códi-go Penal (Casa de Prostituição), e prenderam 11 mulheres acusando-as de Rufianismo. Essas mulheres passaram a noite na delegacia de Polícia e foram levadas no dia se-guinte para o presídio de Bangu. Há inúmeras denúncias de que tenham sofrido violência na delegacia. Elas foram levadas à Bangu sem direito a julgamento.

O delegado titular da 76ª DP, Gláucio Paes afirmou: “O comba-te à prostituição naquele prédio vai continuar, pois trata-se de um

Invasão a domicílio, socos, gritos e estupros. Desde março deste ano a polícia militar tem realizado, com extrema violência, inúmeras opera-ções contra prostitutas do “Edifício Nossa Senhora da Conceição” na Avenida Amaral Peixoto em Niterói, Rio de Janeiro.

Diversas intervenções do poder público afetaram áreas tradicionais de prostituição na cidade do Rio. Isso porque a política de “limpeza social” dos governos que apoiam os investimentos trazidos pelos Mega-eventos busca uma reorganização do espaço urbano, sobretudo os centros das cidades. Reorganização esta que exclui as camadas margi-nalizadas na sociedade.

Niterói também vive o seu pro-cesso “revitalização” favorável, claro, aos interesses da especulação imo-biliária. Da mesma forma que outros projetos de renovação urbana, ex-pulsa os “indesejados” aos investi-mentos imobiliários, sobretudo as prostitutas. Gabriela Leite, prostitu-ta, militante e fundadora do movi-mento das prostitutas no Brasil, afirmava que as primeiras a serem expulsas pela gentrificação eram as pessoas que trabalham com pros-tituição.

Segundo a polícia militar e civil, a operação coordenada pelo Minis-tério Público investiga denúncias

Uma das portas quebradas e lacradas pela policia em Niteroi no dia 23 de maio | Foto: Laura Rebecca Murray

edifício residencial”. Esta afirmação demonstra o objetivo claro da ação, colocando a atividade da prostitui-ção como impossibilitada de estar lado a lado de residências, ou mes-mo de uma prostituta ter casa.

Outra garota de programa do prédio declarou a um jornal local “A polícia chegou do nada e nos levaram sob alegação de estarmos cometendo exploração sexual. Não é exploração porque é consentido. Eu alugo o apartamento com a mi-nha amiga e me prostituo no local. A profissão tem que ser legalizada”.

No dia 23 de maio de 2014 hou-ve mais uma operação. Uma força-tarefa de 150 policiais, comandada pelo Ministério Público, 76ª DP e DEAM Niterói e em conjunto com delegacias de São Gonçalo e Rio de Janeiro, invadiram apenas os 4 pri-meiros andares do prédio onde fun-cionavam as salas de prostituição. Sem mandado judicial os policiais adentraram seus espaços de traba-lho - e moradia em muitos dos ca-sos - e à força conduziram mais de 100 mulheres e clientes à delegacia em micro-ônibus superlotados.

Todos os bens destas mulheres foram apreendidos. Há relatos de agressões e estupros. As mulheres denunciaram que foram forçadas a fazerem sexo oral e policiais co-locaram as mãos nas suas vaginas e partes íntimas. Durante a averi-guação na delegacia os advogados que se prestaram a auxiliá-las foram impedidos de acompanhar seus de-poimentos.

Mais de 300 pessoas desalojadas ilegalmente e sem trabalho. Todo o comércio que existia também no local e que sobrevivia prestando

O caso de Niterói

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sociedade

“ O trabalho independente como trabalhador do sexo não é crime no Brasil”

serviços às prostitutas foi também lacrado. “Vi hoje uma mulher com sua filha de 6 ou no máximo 8 anos refugiadas em sua residência/comércio tudo arrebentado e elas assustadas sem saberem o que fazer e a que horas eles voltariam, produtos roubados da lojinha delas vendia perfumarias, acessórios de cabelos e outras pequenas coisas pras prostitutas. Vi mulheres com os filhos no colo sem saber o que fazer, outras amamentando na calçada, outras que dormiram na rua e que estão expostas a todo tipo de violência agora. Vi a miséria que

o braço armado do estado provo-cou. Travestis desesperadas sem rumo, gay sem saber o que fazer da vida. O prédio teve o elevador desligado, moradores estão sen-do obrigados a subir os mais de 9 andares, pessoas idosas estão aprisionadas em seus apartamen-tos por não poderem descer e su-bir escadas, pessoas doentes. E a sociedade calada”, disse Indianara Siqueira.

O prédio foi interditado sob alegação de problemas estrutu-rais na sua engenharia, ainda que apenas os quatro primeiros anda-res tenham sofrido a intervenção policial. O “Edital de Interdição Par-cial”, pregado em todas as portas, dizia que a interdição parcial foi justificada em virtude do “péssimo estado de conservação das insta-lações” e por ter “confirmação de utilização do local de forma reite-rada para prática de crime”. Tanto os mandados de intimação como de interdição são genéricos e não indicam o crime.

O movimento de sororidade e apoio a estas mulheres começou a articular-se com a ONG DAVIDA, com a Marcha das Vadias de Nite-rói e Indianara Siqueira (prostituta e assessora parlamentar de Jean Wyllys). Elas não estavam mais so-zinhas.

Revoltadas com a série de pri-sões de suas companheiras e a violência extrema da polícia mili-tar, as prostitutas se organizaram, realizaram manifestações nos dias 2 e 15 de abril e pararam o Centro de Niterói. Desde a primeira ma-nifestação, as prostitutas foram ameaçadas por agentes da Polícia e Judiciário de Niterói: se fizessem mais um ato seriam presas por formação de quadrilha.

No dia seguinte a operação, dia 24 de maio, prostitutas e diversos movimentos sociais como a pró-pria DAVIDA e a Marcha das Vadias

Resistência

Passeata do dia 16/04 (segunda manifestação das prostitutas em Niterói)

Foto: Laura Rebecca Murray

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Niterói fizeram uma manifestação e colaram cartazes de contestação na fachada. Movimentos sociais e prostitutas levaram ao conhecimen-to da Comissão de Direitos Huma-nos da ALERJ os acontecimentos de Niterói e uma audiência pública aconteceu no dia 04 de junho.

A delegada da DEAM Niterói se-quer respondeu ao ofício de convo-cação para a audiência. O delegado de 76ª DP respondeu tomando ci-ência, mas preferiu não comparecer.

Segundo o deputado Marcelo Freixo na audiência pública na Alerj no dia 04 de junho, “nunca houve inspeção de avaliação estrutural do prédio por parte da Defesa Civil. Nada foi constatado em relação às denúncias de rufianismo, tráfico de drogas e o que mais eles tentassem inventar. Fica claro a fragilidade dos argumentos para essa operação e a intenção criminosa de ‘faxina so-cial’”.

Vale lembrar que o trabalho in-dependente como trabalhador do sexo não é crime no Brasil. Mais que isso, é uma ocupação reconhe-cida pelo Ministério do Trabalho, conquista do movimento organiza-do das prostitutas no Brasil.

A tentativa de incriminar as pros-titutas de Niterói não é um fato isolado. O uso ambíguo do argu-mento da “legalidade” é uma ação recorrente da polícia em relação à prostituição. Nos locais que se de-seja expulsar a prostituição, o poder público tenta coagir as prostitutas a saírem perseguindo os locais dos quais elas dependem para trabalhar e realizando prisões arbitrárias.

Os grandes eventos esportivos aumentam a demanda de servi-ços sexuais, mas as prostitutas são expulsas dos locais onde acontecem os investimentos nos grandes centros. Isso acarreta no aumento da vulnerabilidade das

prostitutas que trabalham por conta própria nas ruas.

O estigma que persegue a pro-fissão, e a invisibilidade desse deba-te de forma mais ampla, também auxilia essas operações policiais, visto que é fato pouco conhecido, mesmo entre prostitutas e outros trabalhadores sexuais, que o ato de prostituir-se não é crime.

“O que não dá, diante da persegui-ção e do assédio, é negar solidarieda-de. Justamente os movimentos que declaram ser contra a prostituição, mas a favor das prostitutas foram os que desapareceram na hora que o bicho pegou. Garantir dignidade é o que queremos para todas as tra-balhadoras, putas ou não. O feminis-mo, principalmente o de esquerda, não pode ser seletivo na sororidade.”, critica a militante feminista, LGBT e também membro do PSOL, Evelyn Silva, expondo uma das visões do movimento feminista sobre o tema.

Mesmo na esquerda o debate sobre a questão da regulamen-tação da prostituição é um as-sunto árduo, sobretudo entre as feministas. Na luta em defesa da vida da mulher, o movimento feminista se divide quando esse assunto entra em pauta.

Enquanto uma parte enten-de a prostituição como ex-pressão maior da opressão do homem sobre a mulher, outra parte defende o direito da li-berdade de se prostituir e vê a prostituição como um traba-lho, que como diversos outros é extremamente vulnerabiliza-do pelo capitalismo patriarcal. O primeiro acredita que é pre-ciso proteger as mulheres da prostituição, o segundo luta na esfera da institucionalização e desmarginalização da profissão. Entre eles existe ainda o pro-tagonismo do movimento das prostitutas brasileiro, iniciado em 1987, que por muito tempo teve pouquíssimo apoio de gru-pos feministas em geral.

Marcas dos arrombamen-tos nas portas

que podem ser vistas nas fotos

transparecem a truculência

e violência da ação policial

Foto: Laura Rebecca Murray

Perseguição às prostitutas

Diferenças e vulnerabilidade

Puta Dei Niterói - Desfilata

DASPU 31/05 na Avenida

Amaral Peixoto, uma

das principais do centro

niteroiense. Ao megafone, uma

das lideranças do movimento,

Indianara Siqueira

Foto: Laura Rebecca

Murray

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traço livre

Por Adriano Kitani | Veja mais em: www.pirikart.com.br

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Notícias da campanha:

www.apn.org.br www.tvpetroleira.tv www.sindipetro.org.br

organização:

Em defesa do projeto dos movimentos sociais para o petróleo, com monopólio estatal, Petrobrás

100% pública e investimento em energias limpas.

DILMA, LEILÃO DO PRÉ-SAL É GOL CONTRA O BRASIL!

Page 48: Edição 33 (completa)

A transformação

só vem com

educação de qualidade!

Contra a precarização da Educação do Rio de Janeiro!

Uma educação de qualidade só vem com a valorização do educador

e com infra-estrutura.

Confira notícias sobre nossa luta:

www.seperj.org.br

37 anos

Sindicato Estadual dos Profissionais de Educação do Rio de Janeiro