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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE LONDRINA CENTRO DE ESTUDOS SOCIAIS APLICADOS MESTRADO EM DIREITO NEGOCIAL ANA CÉLIA DE JULIO SANTOS DA VIDA HUMANA E SEUS NOVOS PARADIGMAS: A MANIPULAÇÃO GENÉTICA E AS IMPLICAÇÕES NA ESFERA DA RESPONSABILIDADE CIVIL LONDRINA 2006

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  • UNIVERSIDADE ESTADUAL DE LONDRINA

    CENTRO DE ESTUDOS SOCIAIS APLICADOS

    MESTRADO EM DIREITO NEGOCIAL

    ANA CLIA DE JULIO SANTOS

    DA VIDA HUMANA E SEUS NOVOS PARADIGMAS:

    A MANIPULAO GENTICA E AS IMPLICAES

    NA ESFERA DA RESPONSABILIDADE CIVIL

    LONDRINA 2006

  • ANA CLIA DE JULIO SANTOS

    DA VIDA HUMANA E SEUS NOVOS PARADIGMAS:

    A MANIPULAO GENTICA E AS IMPLICAES

    NA ESFERA DA RESPONSABILIDADE CIVIL

    Dissertao apresentada Universidade Estadual de Londrina UEL, para a obteno do ttulo de Mestre em Direito Negocial. Orientadora: Prof. Dr. Valkiria Aparecida Lopes Ferraro

    LONDRINA 2006

  • ANA CLIA DE JULIO SANTOS

    DA VIDA HUMANA E SEUS NOVOS PARADIGMAS:

    A MANIPULAO GENTICA E AS IMPLICAES

    NA ESFERA DA RESPONSABILIDADE CIVIL

    COMISSO EXAMINADORA: Prof. Dra. Valkiria A. Lopes Ferraro Prof. Dra. Rozane da Rosa Cachapuz

    Prof. Dr. Clayton Reis

    Londrina, 28 de junho de 2006.

    LONDRINA 2006

  • Em memria de minha Giovanna, sonho em forma de ddiva Divina, que em apenas dois meses me ensinou o sublime significado das palavras Amor e Me.

  • AGRADECIMENTOS

    A DEUS, que em seu infinito Amor nunca deixou de me abenoar e proteger. Olvia, filha querida, que apesar de to tenra idade, aceitou minha ausncia nas horas em que buscava o conhecimento. Aos meus pais, Clio e Lgia, por permanecerem comigo, lado a lado, em todos os caminhos por mim escolhidos, ensinando-me com total propriedade a honestidade, perseverana e f. Aos irmos Jos Renato e Viviane, pelo incentivo e compreenso. Aos colegas do mestrado e ao Francisco Carlos Navarro, os quais s acrescentaram e me honraram com sua convivncia. Aos amigos Carlos e Juliana, verdadeiros irmos, pelo apoio incondicional em todas as horas. A Professora Doutora Rozane da Rosa Cachapuz, pelas palavras sempre positivas e carinhosas e conhecimentos transmitidos; A minha orientadora Professora Doutora Valkiria Aparecida Lopes Ferraro, meus sinceros agradecimentos, pela sua firme e segura orientao na elaborao deste trabalho e principalmente pela confiana dispensada em todos os momentos. Ao Querido Professor Doutor Clayton Reis, por ter me dado a honra de aceitar o convite como membro convidado para a avaliao do presente trabalho.

  • A inteligncia sem amor, te faz perverso; A justia sem amor, te faz implacvel; O xito sem amor, te faz arrogante; O trabalho sem amor, te faz escravo; A vida sem amor, no tem sentido.

    (Autor desconhecido) SANTOS, Ana Clia de Julio. Da vida humana e seus novos paradigmas: a manipulao gentica e as implicaes na esfera da responsabilidade civil. 2006.

  • Dissertao (Mestrado em Direito Negocial), ****p. Universidade Estadual de Londrina UEL, Londrina.

    RESUMO

    A anlise da responsabilidade civil frente s inovaes biotecnolgicas hodiernas permite o resgate do questionamento acerca da verdadeira funo do direito perante a sociedade, principalmente em decorrncia da velocidade de informaes e das constantes descobertas cientficas do Mundo Contemporneo. Nesse dilogo entre as inovaes cientficas e a adequao jurdica aos comportamentos delas advindos, depreende-se que o direito no pode mais ficar espera de casos concretos para regulamentar o assunto. Ao contrrio, deve o direito ter o condo de trazer mecanismos assecuratrios eficientes s relaes contratuais e extracontratuais firmadas entre as partes envolvidas, e tambm da sociedade de forma geral, se pensarmos na proteo da vida das geraes futuras. De uma forma ou de outra, seu objetivo principal continua sendo a proteo dos direitos fundamentais, principalmente o direito vida digna. Tal tarefa no fcil, pois o problema encontrado no presente tema que tampouco a cincia tem resposta quando inquirida sobre as provveis conseqncias das pesquisas que envolve a manipulao gentica clulas vegetais e humanas. Refrear tais pesquisas no se faz oportuno, ante esperana da cura de doenas e de maior qualidade de vida. Por outro lado, brincar de Deus tarefa preocupante, ante os danos que porventura possam causar humanidade. A legislao global, na grande maioria, no tem apresentado posies favorveis manipulao gentica de clulas de embries. No Brasil, atravs da Lei 11.105/2005, a chamada Lei de Biossegurana, que trata da permisso da utilizao de clulas-tronco embrionrias em pesquisas cientficas, inaugurou-se um grande marco legislativo na histria brasileira, apesar de conter imperfeies e lacunas. Mas a questo, mesmo regulamentada, ainda objeto de acaloradas discusses no mbito da sociedade como um todo, principalmente entre a comunidade cientfica e a religiosa. O presente trabalho vem de encontro com as lacunas deixadas pela Lei e as situaes que reclama maior ateno: a questo do dano gentico e sua reparao civil, principalmente com relao aplicao, nesses casos, da Teoria Objetiva da responsabilidade civil. Palavras-chave: proteo da vida humana; dano gentico; responsabilidade civil.

    SANTOS, Ana Clia de Julio. Da vida humana e seus novos paradigmas: a manipulao gentica e as implicaes na esfera da responsabilidade civil. 2006.

  • Dissertao (Mestrado em Direito Negocial), ****p. Universidade Estadual de Londrina UEL, Londrina.

    ABSTRACT

    SUMRIO

  • INTRODUO ..................................................................................................... 08 1 A REVOLUO BIOTECNOLGICA ............................................................... 12 1.1 A tica, a Biotica e o nascimento do Biodireito ............................................ 25 1.1.1 tica ............................................................................................................ 27 1.1.2 Biotica........................................................................................................ 28 1.1.2.1 Macrobiotica e microbiotica .................................................................. 30 1.1.2.2 Princpios Basilares da Biotica ............................................................... 31 1.1.3 Biodireito ..................................................................................................... 33 1.1.3.1 Princpios do Biodireito............................................................................. 35 2 ENGENHARIA GENTICA, DIREITOS HUMANOS E CONSTITUIO: O PATRIMNIO GENTICO HUMANOS COMO DIREITO DE 4 DIMENSO...... 38 2.1 Da proteo dos direitos fundamentais classificao das geraes ou dimenses de direitos humanos.......................................................................... 44 2.1.1 Direitos Humanos Fundamentais de 1 Dimenso...................................... 46 2.1.2 Direitos Humanos Fundamentais de 2 Dimenso...................................... 47 2.1.3 Direitos Humanos Fundamentais de 3 Dimenso...................................... 48 2.1.4 Direitos Humanos Fundamentais de 4 Dimenso...................................... 49

  • 3 PROJETO GENOMA ........................................................................................ 54 3.1 Consideraes sobre o Projeto Genoma........................................................ 54 3.2 A Declarao dos Direitos do Homem e do Genoma Humano ...................... 57 4 A VIDA HUMANA COMO CENTRO DA TUTELA JURDICA .......................... 61 4.1 O Relatrio Warnock ...................................................................................... 68 4.2 Argumentos Jurdicos para a questo do Incio da Vida ............................... 69 4.3 A Vida e a Dignidade Humana como objeto do Direito................................... 71 4.4 A Vida como pressuposto dos Direitos da Personalidade .............................. 74 5 EVOLUO LEGISLATIVA ACERCA DOS DIRIETOS INERENTES VIDA 77 5.1 O direito do nascituro ..................................................................................... 79 5.2 O direito integridade fsica do nascituro ...................................................... 85 5.3 O direito imagem e honra do nascituro..................................................... 87 5.4 O Aborto ......................................................................................................... 88 6 EVOLUO LEGISLATIVA ACERCA DA MANIPULAO GENTICA ........ 90 6.1 A Manipulao Gentica e seus limites............................................................... 6.2 Panorama geral acerca do tema manipulao gentica no Brasil.................. 90

  • 6.3 A regulao jurdica brasileira e os novos fatos da engenharia gentica.......101 7 A QUESTO DA LIBERAO DE PESQUISAS COM CLULAS-TRONCO.108 7.1 Panorama global................................................................................................... 7.2 Manipulaes do embrio in vitro...................................................................108 7.3 Clulas-tronco adultas e embrionrias...........................................................109 7.4 Argumentos prs e contras a manipulao gentica de clulas-tronco embrionrias.........................................................................................................109 8 RESPONSABILIDADE CIVIL E O DANO GENTICO....................................110 8.1 Importncia do Tema na Modernidade................................................................. 8.2 Breve histrico sobre a Responsabilidade Civil e seu desenvolvimento no

    Direito Brasileiro..........................................................................................................

    8.2.1 Desenvolvimento Doutrinrio da Responsabilidade Civil..................................

    8.3 A Questo do Dano e do Dano gentico........................................................110 8.3.1 Dano Gnico, Dano Genmico e Dano Gentico........................................112 8.3.2 Alguns aspectos para a preveno do dano................................................121 8.3.3 Os requisitos de certeza e atualidade em face ao dano gentico...............121 8.4 Anlise do dano gentico nos dispositivos da Lei 11.105/2005.....................122

  • 8.5 Alguns exemplos de Responsabilidade Civil envolvendo manipulao gentica.

    8.5.1 Responsabilidade civil nas pesquisas cientficas..............................................

    8.5.2 Responsabilidade civil nos casos de inseminao artificial...............................

    8.5.3 Responsabilidade civil das empresas de engenharia gentica......................... 8.5.4 Responsabilidade civil nos casos de transplantes de rgos............................ CONCLUSO.......................................................................................................139 REFERNCIAS....................................................................................................143 ANEXOS...............................................................................................................146 INTRODUO

    O homem contemporneo assiste a uma poca de incontestvel

    desenvolvimento tcnico-cientfico, capaz de promover significativas mudanas

    nos domnios da vida.

    Os avanos da biotecnologia alcanam, no mundo, polmicas

    discusses filosficas, sociais, econmicas e jurdicas. O impacto na sociedade,

    em relao aos avanos trazidos pelo desenvolvimento cientfico e tecnolgico

    nos campos da biologia, da sade e da vida, de modo geral, notvel, levando a

    humanidade a deparar-se com as mais diversas e inusitadas situaes at pouco

    tempo inimaginveis.

  • Se por um prisma todas essas conquistas trazem na sua esteira

    renovadas esperanas de melhoria da qualidade de vida dos indivduos, por outro

    criam uma srie de contradies que necessitam ser criteriosamente estudadas,

    visando no s ao equilbrio e ao bem-estar futuro da espcie como prpria

    sobrevivncia do planeta. Por essa razo, as teorias atuais da justia e da moral

    trilham por caminhos prprios, diferentes dos da tica em seu sentido clssico de

    uma doutrina da vida correta.

    Falar-se em responsabilidade para com a vida implica um

    retrocesso a princpios bastante antigos, regentes do plano da eticidade humana.

    Nesse sentido, o pensamento platnico constituiu-se num marco da crena grega

    tradicional, segundo a qual caberia aos deuses a deciso sobre o destino do

    homem e de sua vida.

    PLATO tratou do chamado mito de Er, onde fez aluso quilo

    que estaria reservado ao homem no curso de sua vida. Para ele, o homem no

    seria livre para escolher entre viver ou no. Mas, esse mesmo homem, dizia o

    filsofo ateniense, teria a liberdade de escolha entre viver ou no de acordo com a

    virtude ou sob o domnio do vcio. Segundo PLATO1:

    Almas efmeras, vai comear outro perodo portador da morte para a raa humana. No um gnio que vos escolher, mas vs que escolhereis o gnio. O primeiro a quem a sorte couber, seja o primeiro a escolher uma vida a que ficar ligado pela necessidade. A virtude no tem senhor; cada um ter em maior ou menor grau, conforme a honrar ou a desonrar. A responsabilidade de quem escolhe. O deus isento de culpa.

    1 PLATO. A Repblica. 9 ed. Lisboa: Funcao Calouste Gulbenkian, 2001. p. 490.

  • No texto, PLATO afirma que a divindade no teria mais nenhum

    comprometimento com a responsabilidade humana. Caberia, ento, ao prprio

    homem deliberar sobre suas aes e omisses, responsabilizando-se pelas

    conseqncias de suas escolhas.

    Ento sobre os ombros do homem, para Plato, pesa a rdua

    tarefa de decidir sobre sua vida, sendo ele o prprio agente tico apto a responder

    por seus atos.

    Vale ressaltar que no pensamento platnico destaca-se a

    responsabilidade humana sempre projetada para uma dimenso atemporal, ou

    seja, direcionada para o transcendente, cuja marca seria a eternidade. Plato

    ento buscava a responsabilidade humana sempre direcionada ao destino final do

    homem.

    J no pensamento filosfico contemporneo, HANS JONAS

    representa com louvor os pensadores que se dedicaram a discutir a

    responsabilidade na era tecnolgica, afastando-se dos pensamentos platnicos

    sobre a responsabilidade em dimenses atemporais e transcendentais, para focar

    seus argumentos na responsabilidade temporal.

    Em linhas gerais, para HANS JONAS2, a responsabilidade a ser

    exigida nos dias de hoje se subsume na temporalidade. Tanto assim que

    asseverou: ipsis litteris: O Eros platnico, orientado eternidade e no

    2 JONAS, Hans. El principio de respobnsabilidad: ensayo de uma tica para la civilizacin tecnolgica. Traduo de Javier Maria Fernndez Retenaga. Barcelona: 1995.

  • temporalidade, no responsvel de seu objeto. Aquilo ao que nele se aspira

    algo superior, que no ser, seno que j .3

    Ento para HANS JONAS no se trata de preocupao imediatista

    em relao responsabilidade, ou seja, aquela que se baseia s no presente ou

    mesmo em um futuro prximo. Trazendo-se tona aes passadas, que devem

    ser consideradas, a responsabilidade projeta-se no presente, ou seja, neste

    mundo de agora.

    Mas isso no significa que tal responsabilidade envolva apenas o

    mais imediato, mas sim que tal responsabilidade deva ser nas aes de hoje, mas

    por um mundo vital longnquo, isto , pela vida que se projeta em direo ao mais

    distante futuro.

    Em sntese, para esse filsofo a era tecnolgica contempornea

    faz com que o homem de tempos atuais no possa desprezar a necessidade de

    ser responsvel tanto pelo tempo presente, como tambm pelo futuro que foge

    aos seus olhos, ou seja, o mais distante que se consiga dimensionar. Tal

    responsabilidade, vale dizer, deve sempre existir na mesma escala da capacidade

    de interferncia do homem no tocante vida.

    diante desse quadro que passa-se a tratar, agora, de

    empreender esforos que orientem e afirmem a conduta responsvel de todos

    aqueles cujas aes possam interferir nos amplos domnios da vida. E essa

    exigncia deve levar em conta o prisma temporal dessa responsabilidade, porque

    necessariamente envolve o comprometimento com as geraes atuais bem como

    3 JONAS, Hans. Opus cit., p. 209. No original: El Eros platnico, orientado a la eternidad y no a la temporalidad, no es responsable de su objeto. Aquello a lo en que en l se aspira es algo superior, que no ser, sino que ya es.

  • com as futuras, sendo que pelo termo futuras se entenda as mais longnquas

    que o pensamento imediato seria apto a projetar. Esse um dos grandes desafios

    da biotica, indubitavelmente.

    Em relao a temas como a proteo jurdica do nascituro, ou do

    paciente terminal, o direito vida, um aspecto que no pode ser resolvido de

    forma voluntarista, seja por parte do legislador, pelos mdicos ou pela famlia.

    Vislumbra-se sob esse ngulo o aspecto moral, ou seja, o momento em que se

    comea a resolver a questo da vida e da morte sob a tica moral.

    O direito contemporneo, especialmente o biodireito, enfrenta

    dificuldades para lidar com essas novas realidades justamente pelo fato de que

    no se reconhece nas questes da cincia e da engenharia gentica uma

    dimenso moral. A questo emergente, destarte, a que remonta ao tema da

    responsabilidade para com a vida.

    O ordenamento jurdico, portanto, passa a ter a obrigao de

    mostrar solues para esses anseios, sendo forado a movimentar-se para

    atender a esta nova demanda. fundamental que existam leis e mecanismos de

    vigilncia que controlem o uso de novas tecnologias.

    Desse modo, imprescindvel que, alm de se editarem normas

    regulamentadoras da questo da possibilidade de fazer pesquisas cientficas com

    material gentico, mormente o humano, necessrio sejam feitas consideraes

    sobre os reflexos atinentes essa regulamentao, principalmente em relao

    negociao envolvendo o patrimnio gentico humano e da responsabilidade civil

    oriunda dos servios prestados, das empresas ligadas terapia gentica, sob

    pena de prejuzos considerveis a toda a sociedade.

  • Ao se associar os direitos de personalidade existentes e previstos

    em nosso ordenamento jurdico com a verificao das formas de negociao que

    visam ao desenvolvimento e a um dito avano da sociedade, principalmente no

    que tange a utilizao do corpo humano, percebe-se que limites devem ser

    impostos.

    Nesse diapaso, FRANCISCO AMARAL4 entende:

    [...] questo preliminar reconhecer-se que o progresso cientfico deve-se orientar para promover a qualidade de vida individual e social, pessoal e ambiental, mas tambm que tais descobertas podem causar problemas que o Direito chamado a resolver, elaborando estruturas jurdicas de resposta que se legitimem pelo respeito aos direitos fundamentais da pessoa humana.

    No contexto da regulamentao da questo da manipulao

    gentica, alm de se levar em conta principalmente a proteo incondicional

    vida, o presente trabalho tratar desses temas atuais envolvendo a questo da

    proteo da vida em razo dessa nova perspectiva legislativa, em especial a

    responsabilidade civil dos entes ligados manipulao gentica, por ser

    imprescindvel que se tracem parmetros chamada responsabilidade civil

    objetiva, j que o Cdigo Civil trata da responsabilidade civil subjetiva.

    Para que se alcance concluso plausvel, faz-se necessria a

    anlise de vrias nuances relacionadas ao patrimnio gentico, tais como os

    avanos da cincia gentica, o papel do princpio da dignidade da pessoa

    humana, a proteo conferida personalidade, bem como os limites da

    manipulao do genoma, delineados pelo ordenamento jurdico, seja no campo

    4 AMARAL, Francisco. In: CARNEIRO, F (Org.). A moralidade dos Atos Cientficos: questes emergentes dos comits de tica em Pesquisa. Rio de Janeiro, Fiocruz, 1999.

  • Constitucional, seja no infraconstitucional, haja vista a Lei 11.105/2005 a Lei de

    Biossegurana, regulamentada pelo Decreto 5.591/2005.

    Assim, considerando o homem como centro do ordenamento

    jurdico, pretende-se interpretar as normas reguladoras do tema, bem como os

    princpios que norteiam a questo, levando-se em considerao quais sejam os

    parmetros legais e doutrinrios para chegar-se a uma responsabilizao dos

    entes praticantes de engenharia gentica, de forma a manter-se equilbrio entre o

    ressarcimento, reparao dos danos e o no cometimento de avanos capazes de

    ensejar enriquecimento sem causa por parte das vtimas.

    Por bvio no se pretende esgotar a questo, mas to somente

    proceder a investigaes que levem a posicionamentos consistentes e possam

    fundamentar uma regulamentao rgida da matria, sob pena de que o vazio

    jurdico5 no promova precipitaes ou omisses, com escopo mnimo de

    construir-se seres humanos eticamente responsveis.

    5 Expresso adotada por FRANCISCO AMARAL nos estudos decorrentes do I Simpsio de Biotica e Biodireito Por um estatuto jurdico da vida humana a construo do Biodireito, conferncia proferida no Simpsio de Biotica e Biodireito, realizado em Londrina (PR), apoiado pela UEL Universidade Estadual de Londrina, e pelo CONPEDI Conselho Nacional de Pesquisa e Ps-graduao em Direito, em maio de 1997.

  • 1 A REVOLUO BIOTECNOLGICA

    Nas ultimas dcadas, os avanos trazidos pelo desenvolvimento

    cientfico e tecnolgico nos campos da biologia, da sade e da qualidade de vida,

    de modo geral, tem levado a humanidade a deparar-se com as mais diversas e

    inusitadas situaes at pouco tempo inimaginveis.

    Dia-a-dia a mdia traz notcias de inovaes biotecnolgicas, tais

    como o clone de uma clula, o mapeamento gentico humano, a duplicao de

    mamferos, a pesquisa em utilizao de clulas-tronco capazes de se

    reproduzirem em tecidos de quaisquer outros rgos, etc. At mesmo produes

    cinematogrficas foram realizadas em torno do tema, expondo a situao de pais,

    v.g., que perderam o filho em acidente de trnsito, e atravs de clonagem de

    clulas dessa criana, deram a existncia de sua cpia, ou de seu clone6. Idia

    absurda??? Dir-se-ia que no.

    Hoje no se pode mais duvidar ou asseverar que uma ou outra

    tcnica possvel apenas em telas de fico. bom lembrar que at pouco tempo

    no se imaginava a criao de animais clonados, ou de bate-papo on line

    atravs de programas de informtica, ou da possibilidade de se tornar me ou pai

    mesmo se tendo problemas com fertilidade. Seria isso tudo apenas o incio?

    Chegar o tempo em que o homem far compras tranqilamente em um

    supermercado gentico?

    6 Godsend, 2004 by Lions Gate Films. Extrado do site www.godsendthefilm.com\ . Cita-se outros longa-metragens referentes ao tema: Gattacca, Meninos do Brasil, A Ilha, entre outros.

    http://www.godsendthefilm.com/

  • Se por um lado todas essas conquistas trazem na sua esteira

    renovadas esperanas de melhoria da qualidade de vida para a humanidade, por

    outro, criam uma srie de contradies que necessitam ser criteriosamente

    estudadas, visando no s ao equilbrio e ao bem-estar futuro da espcie como

    prpria sobrevivncia do planeta. O desenvolvimento responsvel deve ser a viga-

    mestra de toda a evoluo.

    O tema se faz to complexo, que levou JRGEN HABERMAS7 a

    inquietar-se diante de uma pergunta aparentemente simples: O que o homem faz

    com o tempo de sua vida?

    A partir dessa questo, discorre sobre se ainda so possveis

    respostas ps-metafsicas sobre o que seja a vida correta, j que por muito

    tempo os filsofos acharam que dispunham de conselhos adequados para as

    perguntas sobre a conduta de vida pessoal ou at coletiva, entendendo que hoje,

    aps a metafsica, a filosofia j no se julga capaz de dar respostas definitivas

    sobre o assunto, pois a tica regrediu cincia, j que no mximo, permite sejam

    feitas reflexes dispersas, retidas na forma aforstica e originadas da vida

    prejudicada (termo utilizado pelo autor).

    Embasando suas reflexes, afirma:

    [...] enquanto a filosofia ainda acreditava que podia se assegurar da totalidade da natureza e da histria, ela dispunha de uma posio supostamente consolidada, na qual a vida humana dos indivduos e das comunidades devia se inserir. A estrutura do cosmo e a natureza humana, as fases da histria universal e da histria sagrada forneciam elementos impregnados de normas, que aparentemente tambm

    7 HABERMAS, Jrgen. O futuro da natureza humana. So Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 3-4.

  • ofereciam elucidao sobre a vida correta. Correto tinha aqui o sentido exemplar de um modelo digno de imitao para a vida, seja pelo indivduo, seja pela comunidade poltica. Do mesmo modo como as grandes religies apresentavam a vida dos seus fundadores como o caminho para a salvao, a metafsica tambm oferecia seus modelos de vida para a minoria, certamente um caminho diferente daquele da maioria. As doutrinas da boa vida e da sociedade justa, como a tica e a poltica, eram ainda doutrinas com uma base nica, que formavam um todo. Todavia, com a acelerao da transformao social, tambm os perodos de declnio desses modelos da vida tica se tornaram cada vez mais curtos independentemente de sua orientao, que podia ser para a polis grega, para as classes da societas civilis medieval, para o indivduo universal do Renascimento urbano ou, conforme Hegel para a estrutura da famlia, da sociedade civil e da monarquia constitucional.

    Em sntese, HABERMAS enfatiza o fato de que a teoria moral

    contempornea abandonou todo o conceito pr-social de pessoa, concluindo que

    a pessoa o resultado da juno de relaes humanas e sociais, no tendo

    sentido a padronizao de um tipo universal de pessoa, mas somente ao indivduo

    dotado de valores e direitos, que lhe so atribudos pela sociedade.

    Partindo desse pensamento, de se constatar que ento no

    existem valores universais, representados pela pessoa humana, mas somente

    valores e direitos variveis de acordo com cada sociedade, cada estado. Esse

    argumento, no entendimento de VICENTE DE PAULO BARRETO8 resulta de

    referncias culturais que impregnam o nosso direito, influenciado ainda por uma

    biologia ultrapassada, pouco diferente da embriologia aristotlica.

    Sob um enfoque mais elaborado, JOHN RAWLS9 considera a

    idia de pessoa inserta na chamada teoria da justia. Esse filsofo norte-

    americano visualiza a idia de pessoa concebida numa determinada sociedade

    para, ento, afirmar que esse conceito fundamentalmente poltico. Afirma que a

    8 BARRETO, Vicente de Paulo. A idia de pessoa humana e os limites da biotica. In: Novos temas de biodireito e biotica. So Paulo: Renovar, 2003. p. 250. 9 RAWLS, John. Uma Teoria da Justia. So Paulo: Martins Fontes, 2000.

  • sociedade um sistema de cooperao eqitativa entre grupos sociais e

    indivduos, atravs de geraes.

    Citado por VICENTE DE PAULO BARRETO10, quando trata de

    tema de biotica, o filsofo JOHN RAWLS entende que a idia de pessoa, como

    alicerce da sociedade eqitativa, uma concepo normativa, quer legal, poltica

    ou moral, ou mesmo filosfica ou religiosa, dependendo do arcabouo global no

    qual est inserida.

    Associa ento, com fundamento nesse entendimento da natureza

    da sociedade, a idia de pessoa vinculada idia de cidadania, sendo ento o

    cidado aquela pessoa que pode participar da vida social atravs do exerccio de

    direitos e o respeito a deveres. Atravs de seu pensamento poltico-liberal, tira

    concluses a partir dos fracassos das tentativas filosficas de determinar modos

    de vida como exemplares ou universalmente decisivos.

    Segundo RAWLS, a sociedade justa deixa ao critrio de todas as

    pessoas aquilo que elas querem iniciar como tempo de suas vidas, garantindo a

    todos a mesma liberdade para desenvolver uma autocompreenso tica, a fim de

    formar uma concepo pessoal da boa vida segundo capacidades e critrios

    prprios.

    Mas isso no significa que a filosofia prtica renuncie totalmente

    s reflexes normativas; limita-se, entretanto a questes sobre a justia,

    esforando-se especialmente para elucidar o ponto de vista moral adotado para

    10 BARRETO, Vicente de Paulo. A idia de Pessoa Humana e os Limites da Biotica. In: Novos temas de biodireito e biotica. So Paulo: Renovar, 2003. p. 250-251.

  • julgar normas e aes sempre que se trata de estabelecer o que de interesse

    comum de cada um e igualmente bom para todos.

    Entende, destarte, que para tentar se chegar a uma resposta do

    que seja bom para ns, preciso tambm se questionar sobre o que seja bom

    para mim, e bom para mim hoje e a longo prazo o que seja bom para todos ns.

    Claramente observa-se que no se chega a uma resposta conclusiva, pois

    existem paradoxos subjetivos a serem analisados.

    Por essa razo, as teorias atuais da justia e da moral trilham por

    caminhos prprios, diferentes dos da tica em seu sentido clssico de uma

    doutrina da vida correta.

    A teoria moral, por seu plano, sofre profundas transformaes por

    dividir seu trabalho com uma tica especializada nas formas da autocompreenso

    existencial, pois assim se desfaz a conexo com as narrativas preexistentes

    metafsicas e religiosas, as quais eram as nicas a garantir aos julgamentos

    morais a motivao para agir corretamente.

    As convices morais s condicionam efetivamente vontade

    quando se encontram insertas numa autocompreenso tica, que coloca a

    preocupao com o prprio bem-estar a servio do interesse pela justia.

    HABERMAS11 afirma que as teorias da justia, desatreladas da

    tica, s podem esperar pela transigncia de processos de socializao e formas

    polticas de vida.

    Subsiste, todavia, em relao ao direito vida, seja do nascituro,

    seja do paciente terminal, um aspecto que no pode ser resolvido de forma 11 HABERMAS, Jrgen. Opus cit. , p. 7.

  • voluntarista, seja por parte do legislador, seja pelos mdicos, governantes e a

    famlia. Esse aspecto exatamente o aspecto moral; ou seja, o momento em que

    se comea resolver a questo da vida e da morte sob a tica moral.

    O biodireito contemporneo enfrenta dificuldades para lidar com

    essas novas realidades justamente pelo fato de que no se reconhecem nas

    questes da cincia e da engenharia gentica as suas dimenses morais.

    RONALD DWORKIN12 assevera que para constatar a idia de

    pessoa atravs da tica da moral preciso apenas responder a duas questes: 1)

    quando a criatura humana adquire direitos e passa a ter deveres?; e 2) quando a

    vida da pessoa humana dotada de valor intrnseco e quais as suas

    conseqncias?

    Para esse filsofo, ao responder-se essas indagaes, no se faz

    necessrio decidir-se se um feto uma pessoa completa desde a sua concepo

    ou em que ponto da gestao torna-se um ser humano. O estado pessoal no

    pode, dessa forma, ser determinado pela cincia e o direito no tem resposta para

    essa questo por ser eminentemente de cunho moral.

    Sob a mesma tica definiu a pessoa humana o filsofo alemo

    IMMANUEL KANT13, partindo da formulao de Bocio, mas ampliando a sua

    abrangncia e buscando uma justificativa inteiramente racional, sem a

    interferncia de fatores externos ao prprio ser humano, para a idia de pessoa.

    12 DWORKIN, Ronald. Domnio da vida: aborto, eutansia e liberdades individuais. Traduo Jefferson Luiz Camargo. So Paulo: Martins Fontes, 2003. 13 KANT, I., Immanuel. Traduo Leopoldo Holzbach. Fundamentao da Metafsica dos Costumes e outros escritos. So Paulo: Martin Claret, 2004.

  • Vincula, assim, a idia de pessoa humana questo da liberdade racional como

    ncleo da vida moral dos indivduos.

    KANT entende ento que uma pessoa o sujeito cujas aes so

    suscetveis de imputao. A personalidade moral nada mais do que a liberdade

    de um ser racional obediente a leis morais.

    Assim, a referncia do que vem ser pessoa humana, em termos

    kantianos, o qual ir se expressar constitucionalmente no princpio da dignidade

    humana no se resume a uma simples definio dogmtica, mas uma definio

    antes de tudo racional, de caractersticas prprias do ser humano, prprias para

    diferenci-lo das coisas e que ir dotar cada um deles de valores essenciais para

    a existncia da comunidade humana.

    Direcionando-se a anlise filosfica para o tema da manipulao

    gentica e o incio da vida humana, parte-se da premissa de que o embrio

    adquire o estatuto de pessoa potencial quando ocorre a formao fsica do crtex

    no processo de gestao.

    Esse fato fsico, entretanto, no suficiente para a constituio da

    pessoa humana, mas unicamente da pessoa em potencial, j que a cincia

    biolgica identifica o processo evolutivo em fases: at o 14 dia de gestao o

    embrio um conjunto de clulas humanas; em seguida um indivduo humano,

    depois uma pessoa potencial e, enfim, depois de seu nascimento com vida, como

    estabelece o Cdigo Civil de 2002, art. 2 14, uma pessoa. A reduo dessa idia

    14 Art. 2 CC A personalidade civil da pessoa comea do nascimento com vida; mas a lei pe a salvo, desde a concepo, os direitos do nascituro.

  • de pessoa a um fator fsico leva limitao com que se defronta a biotica

    contempornea.

    Essa perplexidade filosfica que levou o pensamento

    contemporneo a procurar outros fundamentos ou classificaes para a idia de

    pessoa humana, em virtude de se estabelecer gradativamente essa idia mais

    relevante para a cultura poltica e jurdica do estado democrtico de direito.

    HABERMAS, por outro turno, enfatiza o fato de que a teoria moral

    contempornea abandonou todo o conceito pr-social de pessoa, concluindo que

    a pessoa o resultado da tessitura de relaes humanas e sociais, no tendo

    sentido a referncia a uma categoria universal de pessoa, mas somente ao

    indivduo dotado de valores e direitos, que lhe so atribudos pela sociedade.

    Nesse caminhar filosfico, SREN KIERKEGAARD15 foi o

    primeiro a responder questo tica e fundamental sobre os xitos e fracassos da

    prpria vida com um conceito ps-metafsico do poder de si mesmo. Para os que

    seguem KIERKEGAARD, tais como HEIDEGGER, JASPERS e SARTRE, tal

    filsofo, protestante inclinado admisso de um Deus misericordioso, quando

    discutiu o pensamento especulativo de HEGEL, deu questo sobre a vida

    correta conotao de nuance acentuadamente religiosa, apesar de ps-metafsica.

    Entretanto, os filsofos existencialistas, comprometidos com um

    atesmo metdico, reconheceram em KIERKEGAARD o pensador que reformula a

    questo tica de um modo surpreendentemente inovador e a responde de maneira

    15 KIERKEGAARD, Sren. Entweder/Oder, organizado por H. Diem e W. Rest, Kln e Olten, 1960, p. 827-830. Apud HABERMAS, Jrgen. Opus Cit., p. 11.

  • substancial e com formalismo suficiente no sentido de proibir-se quaisquer tutelas

    em questes ticas.

    Ao enfrentar a dicotomia da concepo tica e esttica da vida,

    KIERKEGAARD desenha a imagem de uma existncia jocosa em seu

    egocentrismo, com tons de ironia e regada ao prazer desejado e ao momento,

    tendo assim chegado ao conceito de uma resoluta conduta tica de vida, que

    exige do indivduo que se concentre em si prprio e se liberte da dependncia em

    relao a um ambiente dominador.

    Assim, para KIERKEGAARD, o indivduo precisa recobrar a

    conscincia de sua individualidade e de sua liberdade, para ganhar distncia de si

    mesmo. Somente dessa forma, o indivduo, ao se recuperar da disperso annima

    de uma vida num timo reduzida a fragmentos, d a prpria vida continuidade e

    transparncia, sendo ento capaz de assumir a responsabilidade pelos prprios

    atos e contrair compromissos com seus semelhantes.

    Num exerccio temporal, a preocupao consigo mesmo cria uma

    conscincia da historicidade de uma existncia, que se realiza entre o futuro e o

    passado, de forma simultnea. Torna-se, destarte, consciente de que ela mesma

    se torna uma tarefa que lhe fora imposta, mesmo que seja de forma inconsciente.

    Em KIERKEGAARD, ante sua viso ps-religiosa, os enunciados

    universais sobre os modos do poder ser si mesmo no so descries estanques,

    mas possuem um valor normativo e fora de orientao. Na medida em que essa

    tica do juzo se abstm no do modo de existncia, mas do determinismo

    direcionado de projetos de vida individuais e de formas de vida particulares,

    satisfaz-se s condies acerca do pluralismo ideolgico.

  • Interessante deparar-se com o limite que se traa entre esse

    pluralismo ideolgico e a moderao ps-metafsica quando se tratam de assuntos

    sobre uma tica da espcie. Quando a autocompreenso tica de sujeitos

    capacitados para a linguagem e para a ao entram no contexto, a filosofia no

    consegue mais ficar sem tomar decises acerca de questes de contedo.

    exatamente nesse ponto em que se encontra hoje o

    pensamento filosfico, ante ao progresso das cincias biolgicas e o

    desenvolvimento da biotecnologia, as quais ampliam no s as possibilidades de

    ao j conhecidas, mas tambm possibilitam um novo tipo de interveno. O que

    antes era tido como dado pela natureza orgnica e podia, quando muito, ser

    alimentado, move-se atualmente no campo da interveno orientada para um

    objetivo.

    De forma geral, a implementao dessas conquistas

    biotecnolgicas afeta diretamente a autocompreenso como seres que agem de

    forma responsvel, e de que modo isso se d, pois depender da

    autocompreenso de cada sujeito o modo com desejaro utilizar desse novo

    caminho de decises; de maneira autnoma, segundo consideraes normativas

    insertas na formao democrtica da vontade, ou de maneira arbitrria, em razo

    de suas preferncias subjetivas, que sero satisfeitas pelo mercado.

    HABERMAS questiona, a partir das premissas acima trazidas, que

    se deve refletir a possibilidade hodierna de se intervir no genoma humano ser

    apenas em razo de um aumento de liberdade ou se dar como autopermisso

    para transformaes que dependero de preferncias no necessitando assim de

    nenhuma autolimitao.

  • Segundo tal filsofo, s existir uma limitao de uma eugenia

    negativa e voltada eliminao de males quando se responder afirmativamente

    questo atravs do aumento de liberdade, desde que se analise profundamente a

    questo do que seja uma moderna compreenso da liberdade.

    A decodificao do genoma humano promete intervenes que

    lanam, surpreendentemente, uma luz sobre uma condio natural de nossa

    compreenso normativa, condio essa que at agora no fora tematizada, mas

    que essencial16.

    O objetivo dessa recuperao filosfica da idia da pessoa

    humana tem a ver diretamente com a funo moral primordial do Direito, qual seja,

    a de proteger essa pessoa em perigo ou buscar os instrumentos normativos que

    possam preservar a humanidade do homem.

    A partir desse entendimento da funo superior do Direito, retira-

    se o sistema jurdico da funo de servido do voluntarismo individualista ou do

    16 Habermas ainda traz questionamento que o que se observava at os dias de hoje que o pensamento secular da modernidade europia pde, tanto quanto a crena religiosa, partir do princpio de que a constituio gentica dos recm-nascidos e, por conseguinte, as condies orgnicas iniciais para sua futura histria de vida escapavam da programao e da manipulao intencional feitas por terceiros. Certamente, a pessoa em crescimento pode submeter sua histria pessoal a uma avaliao crtica e a uma reviso retrospectiva. Nossa biografia compe-se de uma matria da qual podemos nos apropriar e pela qual podemos, no sentido de Kierkegaard, nos responsabilizar. O que hoje se coloca a disposio algo diferente: a indisponibilidade de um processo contingente de fecundao, com a conseqente combinao imprevisvel de duas seqncias diferentes de cromossomos. Todavia, no momento em que podemos domin-la, essa contingncia discreta revela-se como um pressuposto necessrio para evidenciar o poder de si mesmo e a natureza fundamentalmente igualitria das nossas relaes interpessoais. Com efeito, um dia quando os adultos passarem a considerar a composio gentica desejvel dos seus descendentes como um produto que pode ser moldado e, para tanto, elaborarem um design que lhes parea apropriado, eles estaro exercendo sobre seus produtos geneticamente manipulados uma espcie de disposio que interfere nos fundamentos somticos da autocompreenso espontnea e da liberdade tica de uma outra pessoa e que, conforme pareceu at agora, s poderia ser exercida sobre objetos, e no sobre pessoas. Desse modo, mais tarde os descendentes poderiam pedir satisfao aos produtores do seu genoma e responsabiliza-los pelas conseqncias, indesejveis do seu ponto de vista, desencadeadas no incio orgnico de sua histria de vida.

  • sistema tcnico-econmico, conservando a sua prpria normatividade. Segundo

    LENIO LUIZ STRECK17, esses tipos de normativismos os quais esto sendo

    questionados na contemporaneidade, levaram o jurista perda total da segurana,

    haja vista a morte do cogito cartesiano.

    Alm de tais paradigmas, no entendimento do filsofo tambm

    alemo HANS JONAS18 acerca do presente tema, criou-se um paradoxo entre

    evoluo biotecnolgica e autodestruio, j que assevera que a tica e a filosofia

    contemporneas tornaram-se impotentes diante do chamado homem

    tecnolgico, o qual possui poderes tanto para desorganizar como tambm para

    alterar radicalmente os fundamentos da vida, para a criao e destruio de si

    prprio.

    o que se observa nesse contexto hodierno de descobertas, onde

    anunciam-se novas formas de diagnstico precoce de cnceres e de

    medicamentos potentes para seu controle, e ao mesmo tempo, destri-se a

    camada de oznio, devasta-se as florestas, utiliza-se de potentes pesticidas na

    agricultura. Em uma face da moeda tem-se a descoberta de evoludas tcnicas de

    reproduo assistida, e na outra face, destri-se o meio-ambiente do qual

    depende a manuteno das novas geraes.

    JOS EDUARDO DE SIQUEIRA19 ao analisar as questes

    bioticas e a tecnocincia revela que pela tcnica, o homem tornou-se perigoso

    17 STRECK, Lenio Luiz. Hermenutica Jurdica e(m) crise. 2 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000. p. 273. 18 JONAS, Hans. Il principio responsabilit; untica per la civilit tecnolgica. Turim: Einaudi, 1990. 19 SIQUEIRA, Jos Eduardo de. tica e tecnocincia: uma abordagem segundo o princpio da responsabilidade de Hans Jonas. Londrina: UEL, 1998. p.39.

  • para o homem, somando vulnerabilidade da vida um fator desagregador

    suplementar que a sua prpria obra.

    Isso faz com que as pessoas vivam inseguras, ameaadas por tais

    fatores identificados e provenientes da prpria cincia e de aes vinculadas ao

    manejo das novas tecnologias, sobretudo quando estas so aplicadas no campo

    da medicina e da gentica.

    Assim, tais inovaes constantes e paradoxais resultam em custos

    psquicos para a humanidade, fazendo-se mister uma adaptao social e a

    adoo de novos posicionamentos compatveis com as mudanas possibilitadas

    pela cincia, seja para recepcion-las, seja para repudi-las. No fcil mudar

    repentinamente conceitos pr-estabelecidos sobre a prpria natureza humana.

    No se faz inoportuno lembrar das anlises conceituais de

    SIGMUND FREUD20:

    A questo fatdica para a espcie humana parece-me ser saber se, e at que ponto, seu desenvolvimento cultural conseguir dominar a perturbao de sua vida comunal causada pelo instinto humano de agresso e autodestruio. Talvez, precisamente com relao a isso, a poca atual merea um interesse especial. Os homens adquiriram sobre as foras da natureza um tal controle, que, com sua ajuda, no teriam dificuldades em se exterminarem uns aos outros, at o ltimo homem. Sabem disso, e da que provm grande parte de sua atual inquietao, de sua infelicidade e de sua ansiedade. Agora s nos resta esperar que o outro dos dois Poderes Celestes, o eterno Eros desdobre suas foras para se afirmar na luta com seu no menos imortal adversrio. Mas quem pode prever com que sucesso e com que resultado?

    20 FREUD, Sigmund. O mal estar na civilizao. Rio de Janeiro: Imago, 1997, p. 111-112.

  • A seu passo, toda essa mudana paradigmtica e axiolgica traz a

    relativizao das normas ticas, de forma que os conceitos tradicionais de bem e

    mal, justo e injusto, j no se apresentam de forma unnime para orientao do

    agir humano. Hoje a flexibilidade e o respeito diversidade firmam-se como

    qualidades fundamentais para a vida do homem ps-moderno. Situaes relativas

    a adoo de crianas por casais homossexuais, o aluguel de tero, transplante de

    rgos, entre outras, so realidades que j no causam tanto espanto como

    antigamente.

    Cumpre ressaltar-se que a cincia no funesta e sim o

    comportamento humano, ou seja, o que o homem pode fazer com descobertas

    cientficas. Por isso preciso encontrar limites, estabelecer distines entre bem e

    mal no uso das novas tecnologias, aplicando-se o direito no apenas para

    inscrever as proibies, mas tambm para reconhecer e absorver as

    transformaes operadas na vida, consolidando os pilares ticos orientadores das

    condutas relativas ao avano da cincia.

    Essa preocupao constante de se controlar a tecnologia tem

    reaproximado a tica e o conhecimento, ou seja, os valores morais e a cincia. Tal

    interao sempre ser permeada pelo Direito, consolidando conceitos bioticos j

    existentes, bem como dando novo sentido aos que forem atingidos pelas

    descobertas tcnico-cientficas.

    Segundo MARIA AUXILIADORA MINAHIM21, ao ensinar sobre o

    estudo da Biotica, preleciona:

    21 MINAHIM, Maria Auxiliadora. Direito Penal e Biotecnologia. So Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005. p. 28-29.

  • [...] antes de ingressarem no campo do direito, porm, essas questes, introduzidas pelos avanos tcnico-cientficos e os conflitos que suscitam, passam por discusses em um campo mais amplo que o da Biotica. A tica, alis, sempre foi ponto de encontro de saberes como o Direito, a moral, a religio. Esse terreno comum abriga discusses sobre situaes que podem ensejar diferentes escolhas morais, embora nem sempre as perspectivas sejam coincidentes. Assim foi com os temas da pena de morte, do aborto e, atualmente, com a clonagem, a fecundao assistida, a terapia gnica e outros da mesma natureza.

    Assim, a tica aplicada enseja a promoo de uma interao entre

    a cincia e o valor nsito vida humana. Essa capacidade de interlocuo da

    Biotica com a religio, a moral e o direito ir preencher lacunas deixadas pelos

    princpios jurdicos.

    Mas a Biotica, ao contrrio do Direito, no procura estabelecer

    ordens gerais para as aes, no possuindo fora coercitiva capaz de coibir certos

    comportamentos; ela vem discutir a funo da tecnocincia para o bem-estar da

    humanidade, validando-a, na medida em que serve ao ser humano, intermediando

    os conflitos morais trazidos pelas novas tecnologias, bem como oferecendo

    suporte para as aes mdicas e cientficas.

    1.1 A TICA, A BIOTICA E O NASCIMENTO DO BIODIREITO

    O Direito contemporneo est enfrentando novos problemas, que

    nem sempre so resolvidos pelos instrumentos tradicionais de proteo vida. Os

    estudos de Cincias Biomdicas, Biotica, Filosofia e Direito esto cada vez mais

    amplos, em virtude dos avanos da tecnologia, da medicina e das investigaes

  • que surgem na cincia contempornea. Tais pesquisas levam ao conhecimento e

    exame dos resultados das investigaes e suas aplicaes em seres humanos.

    Temas como o anncio de resultados fascinantes da biologia

    molecular e da engenharia gentica, inclusive em seara ambiental; novas prticas

    biomdicas resultantes do descobrimento do DNA recombinante contm em si

    mesmos o poder de criao e destruio da vida e da natureza, o que fatalmente

    traz problemas tico-jurdicos relacionados vida, morte, ao paciente terminal,

    sexualidade, reproduo humana, s tecnologias conceptivas, paternidade,

    maternidade, filiao, ao patrimnio gentico, correo de defeitos fsicos e

    hereditrios, ao uso de material embrionrio em pesquisas, eugenia, s

    experincias farmacolgicas e clnicas com seres humanos, ao equilbrio do meio

    ambiente, criao de produtos transgnicos, clonagem, ao transplante de

    rgos e tecidos humanos, transfuso de sangue, ao mapeamento seqencial

    do genoma humano, ao patenteamento da vida, mudana de sexo, entre outros.

    Nos dizeres de MARIA HELENA DINIZ22:

    [...] essa nova faceta criada pela biotecnocincia, que interfere na ordem natural das coisas para brincar de Deus, surgiu uma vigorosa reao da tica e do direito, fazendo com que o respeito dignidade da pessoa humana seja o valor-fonte em todas as situaes, apontando at onde a manipulao gentica da vida pode chegar sem agredir.

    Destarte, a gentica coloca questes cruciais para a sociedade

    que, por sua vez, desejaria v-las reguladas juridicamente, isto , consoante uma

    22 DINIZ, Maria Helena. O estado atual do biodireito. 2 ed. aum. e atual. conforme o novo Cdigo Civil (Lei 10.406/2002). So Paulo: Saraiva, 2002. p. XXIV.

  • ordem, uma pauta normativa que preservasse valores ticos fundamentais

    concernentes proteo da dignidade humana.

    1.1.1. tica

    Inicialmente, deve-se conceituar o que seja o objeto do presente

    estudo e, para se conceituar "Biodireito", deve-se, antes, explicitar uma idia do

    que seja "Biotica", o que, por sua vez, exige um breve conceito de "tica".

    Em decorrncia do desenvolvimento atual da biotecnologia, a

    tica e a Moral tm sido amplamente discutidas pelos mais variados profissionais,

    tais como bilogos, juristas, religiosos e filsofos. De forma simples, pode-se dizer

    que tica algo estabelecido para possibilitar a convivncia em sociedade.

    FTIMA OLIVEIRA23 define tica da seguinte forma:

    A tica construda para estabelecer as normas de convivncia com o conjunto da sociedade em um dado momento. Comporta a microtica (pessoal/privada o ser humano) e a macrotica (coletiva/pblica a humanidade). A tica representa o consenso possvel no interior de uma cultura plural, com valores diversos e divergentes; ou seja, a tica deve refletir os traos de unidade entre os diferentes valores morais.

    Aplicando-se este conceito no campo profissional, "tica mdica"

    seria, por exemplo, uma relao de normas de conduta que visasse regular o

    comportamento dos profissionais da medicina de modo a resguardar o bem da

    prpria profisso, atravs de uma conduta que se pretenda seguida, a fim de

    garantir a imagem da profisso perante toda sociedade, e, ao mesmo tempo, seria

    o estabelecimento de um rol de condutas que fossem capazes de resguardar a 23 OLIVEIRA, Ftima. Engenharia Gentica O Stimo dia da criao. 5 ed. So Paulo: Ed. Moderna, 1995, p. 118.

  • boa relao pessoal, profissional e recproca entre os profissionais da rea

    mdica.

    Ainda segundo FATIMA OLIVEIRA24, o sentido etimolgico de

    tica o mesmo que o de moral, sendo que tica vem do grego, e moral do latim.

    Ambos significam costumes, que por sua vez significa os valores relativos a

    determinado agrupamento social, em algum momento da sua histria.

    Todavia, possvel fazer distino entre o que especfico em

    cada uma delas, o que se faz imprescindvel para o estudo da biotica e do

    biodireito. Em brilhante estudo sobre o tema, SIMONE BORN DE OLIVEIRA25 cita

    os conceitos de tica e moral de MARIA DO CU PATRO NEVES, a qual traduz

    tica como sendo a cincia dos fundamentos ou dos princpios da ao, e a

    moral como o conjunto de normas que regulam a ao humana.

    De uma forma ou de outra, inconteste que a tica e a moral so

    valores que no sobrevivem de forma independente; culminam, no mnimo, em

    conceitos entrelaados aptos para legitimar a ao humana com enfoque

    primordial no equilbrio e bom-senso no tratamento jurdico das situaes que

    envolvam as inovaes biotecnolgicas.

    1.1.2 Biotica

    Como o prprio termo indica, a Biotica est vinculada tica,

    com todas as suas regras, seus dogmas, identificando-se com a idia de

    24 OLIVEIRA, Ftima. Opus cit. p. 118. 25 OLIVEIRA, Simone Born de. Da Biotica ao Direito: Manipulao Gentica e Dignidade Humana. Curitiba: Juru Editora, 2002. p. 42.

  • conscincia, delineando os valores fundamentais que devem reger as cincias

    biolgicas, tendo em vista conciliar o desenvolvimento da tecnocincia com as

    exigncias morais da sociedade.

    Os primeiros questionamentos acerca das justificativas dos

    avanos cientficos e a importncia da proteo dos direitos e do bem estar das

    pessoas se deram por volta de 1967 quando, segundo EDUARDO DE OLIVEIRA

    LEITE26, Christian Barnard transplantou um corao humano de uma pessoa

    falecida em um cardiopata em estado terminal.

    Narra PESSINI E BARCHIFONTAINE27 que cinco anos antes, a

    revista Life publicava um artigo intitulado Eles decidem quem vive e quem

    morre, trazendo a histria de um comit em Seattle com o escopo de selecionar

    pacientes para o programa de hemodilise crnica. Como havia mais pacientes

    que capacidade do programa, a soluo foi criar esse comit, composto pela

    maioria de profissionais no mdicos, para determinar critrios para escolha dos

    pacientes que receberiam o tratamento. Tais fatos marcaram a problematizao

    acerca dos valores humanos em virtude do rpido desenvolvimento cientfico.

    Surge, assim a Biotica.

    O neologismo Biotica derivado das palavras gregas bios

    (vida) e ethike (tica), tendo aparecido inicialmente no ttulo da obra de VAN

    RENSSELAER POTTER Bioethics: bridge to the future, em 1971, mas no com

    o sentido que hoje se d ao instituto. Pesquisador da rea de oncologia, POTTER

    26 LEITE, Eduardo de Oliveira. Procriaes artificiais: biotica e biodireito. In: Repensando o Direito de Famlia/ coordenador: Rodrigo da Cunha Pereira. Belo Horizonte: Del Rey, 1999, p. 145. 27 PESSINI, Lo; BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Problemas atuais de biotica. So Paulo: Loyola, 1996, p. 16.

  • utilizou o vocbulo para designar uma participao racional, mas cautelosa, da

    humanidade, no processo da evoluo biolgica e cultural.

    Em um primeiro momento, PESSINI E BARCHIFONTAINE28

    definiram biotica como sendo o estudo sistemtico da conduta humana no

    mbito das cincias da vida e da sade, enquanto essa conduta examinada

    luz de valores e princpios morais (...). Mas tal conceito se atualizou e vem se

    atualizando dia a dia, haja vista as constantes inovaes da biomedicina,

    abrangendo hoje as mais diversas reas, tais como o relacionamento profissional-

    paciente, sade pblica, reproduo humana, pesquisa biomdica e

    comportamental, terapia gnica, sade mental, sexualidade e gnero, morte e

    morrer, gentica, tica da populao, doao e transplante de rgos, bem estar e

    tratamento de animais, meio ambiente, etc.

    O vocbulo Biotica hoje indica um conjunto de pesquisas e

    prticas pluridisciplinares tendentes a solucionar questes ticas que o avano da

    tecnocincia biomdica tem provocado, ultrapassando os limites da medicina,

    alcanando a Psicologia, a Biologia, a Antropologia, a Sociologia, a Ecologia, a

    Teologia, a Filosofia, o Direito, dentre outras.

    1.1.2.1 Macrobiotica e a microbiotica

    A Biotica divide-se em dois grandes ramos: Macrobiotica e

    Microbiotica. Por Macrobiotica entende-se a tica que visa o bem da vida em

    28 Opus Cit., p. 30.

  • sentido amplo, direcionada ao macrossistema da vida, estando ligada diretamente

    ao meio ambiente e ao direito ambiental.

    Neste contexto, MARIA HELENA DINIZ29 em sua obra O estado

    atual do biodireito subdivide a Biotica em macro e micro, vindo a

    macrobiotica tratar de assuntos tais como preservao do meio ambiente,

    ecodesenvolvimento, biopirataria, patenteamento de organismos geneticamente

    modificados, responsabilidade civil por dano ecolgico, entre outros.

    Assim, em decorrncia da macrobiotica ter-se-ia um cdigo de

    condutas que deveriam ser seguidas em todo tipo de ao humana,

    principalmente nas experimentaes cientficas, que pudesse trazer como

    conseqncia alteraes benficas ou prejudiciais ao meio ambiente.

    J a microbiotica, surgiu de uma restrio do objeto da biotica:

    a tica da vida humana. Dando seqncia ao seu pensamento, MARIA HELENA

    DINIZ30 tambm trata de questes relativas microbiotica em seu contexto

    tico-jurdico: proteo vida humana, direito ao nascimento, direitos do embrio

    e do nascituro, maternidade e paternidade responsvel, planejamento familiar,

    esterilizao humana artificial, sade fsica e mental, transfuso de sangue,

    transexualidade, transplante de rgos e tecidos, morte digna, experincia

    cientfica em seres humanos, fertilizao humana assistida, entre outros.

    Neste contexto, Biotica seria um modelo de conduta a trazer o

    bem Humanidade como um todo, e, ao mesmo tempo, a cada um dos

    29 DINIZ, Maria Helena. O estado atual do Biodireito. 2 ed. aum. atual. conforme o novo Cdigo Civil (Lei n. 10.406/2002). So Paulo: Saraiva, 2002. p. 607-764. 30 Opus Cit., p. 21-606.

  • indivduos componentes da Humanidade. neste sentido que, perante os

    avanos mdico-cientfico-tecnolgicos, tem-se utilizado os termos "Biotica" e

    "Biodireito", no sentido de proteo da vida humana, principalmente com o intuito

    de proteger todos os seres humanos que estejam direta ou indiretamente

    envolvidos em experimentos cientficos.

    1.1.2.2 Princpios Basilares da Biotica

    Para que se entenda a importncia do estudo dos princpios

    informadores da Biotica, bem como do Biodireito, necessrio se faz partir-se,

    como ponto inicial, das seguintes concluses doutrinrias trazidas por LUIS

    ROBERTO BARROSO31, de que:

    [...] princpios so normas e as normas compreendem os princpios e as regras; - a norma constitui o gnero, do qual o princpio e a regra so espcies; - que os princpios gerais, em sentido e substncia, correspondem aos princpios constitucionais e que as regras, igualmente normas, possuem baixo grau de generalidade.

    Diante de tais premissas, observa-se que a biotica possui os

    seguintes princpios basilares, capazes de fornecerem orientao s situaes do

    caso concreto:

    31 BARROSO, Lus Roberto. Interpretao e Aplicao da Constituio. So Paulo: Saraiva, 1996. p. 141, afirma ainda que ... j se encontra superada a distino que outrora se fazia entre norma e princpio. A dogmtica moderna avaliza o entendimento de que as normas jurdicas, em geral, e as normas constitucionais, em particular podem ser enquadradas em duas categorias diversas: as normas-princpio e as normas-disposio (...) tambm referidas como regras, tm eficcia restrita s situaes especficas s quais se dirigem. J as normas-princpio, ou simplesmente princpios, tm, normalmente, maior teor de abstrao e uma finalidade mais destacada dentro do sistema.

  • a) o da autonomia ou do respeito s pessoas por suas opinies e escolhas,

    segundo valores e crenas pessoais;

    b) o da beneficncia, que se traduz na obrigao de no causar dano e de

    extremar os benefcios e minimizar os riscos;

    c) o da justia ou imparcialidade na distribuio dos riscos e dos benefcios, no

    podendo uma pessoa ser tratada de maneira distinta de outra, salvo haja entre

    ambas alguma diferena relevante.

    Tais princpios so pontos de partida obrigatrios para qualquer

    discusso concernente eutansia, aos transplantes de rgos, ao genoma

    humano, experimentao em humanos, ao emprego das tcnicas de

    reproduo assistida e a todas as demais questes porventura advindas do

    assunto biotica.

    Esses princpios surgiram atravs de uma Comisso Nacional

    criada pelo Congresso dos Estados Unidos, em 1974, encarregada de identificar

    os princpios ticos bsicos dirigentes da investigao em seres humanos pelas

    cincias do comportamento e pela biomedicina. Quatro anos aps o incio dos

    trabalhos, tal Comisso publicou o chamado Relatrio de Belmont, donde

    estavam contidos.

    Segundo HELOIZA HELENA BARBOZA32, a esses princpios Tom

    L. Beauchamp e James F. Childress acrescentaram outro, em obra publicada em

    1979: o princpio da no-maleficncia, segundo o qual no se deve causar mal a

    outro e se diferencia assim do princpio da beneficncia que envolve ao de tipo

    32 BARBOZA, Heloiza Helena. Princpios do Biodireito. In Novos Temas de Biodireito e Biotica. BARBOZA, Heloiza Helena; MEIRELLES, Jussara M. L. de; BARRETO, Vicente de Paulo. (Orgs). Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 55.

  • positivo: prevenir ou eliminar o dano e promover o bem, mas se trata de um bem

    de um contnuo, de modo que no h uma separao significante entre um e

    outro princpio.

    Tais princpios atuam de forma ampla, disciplinando tanto a

    experimentao com seres humanos at a prtica clnica e assistencial. Devem

    ser obrigatoriamente observados desde que no haja conflitos entre si. Se

    porventura ocorrer conflitos, no existe regra especfica de hierarquia entre os

    mesmos, devendo ser observado o consenso entre os envolvidos no caso

    concreto.

    1.1.2 Biodireito

    Quando se menciona temas como os acima transcritos, tanto os

    atinentes macrobiotica quanto os de microbiotica, imediatamente faz-se

    reflexo acerca dos valores e do respeito devidos ao ser humano e ao meio-

    ambiente. Esse raciocnio delineia limites morais que devem existir diante dessas

    prticas e investigaes biocientficas e que influem substancialmente na

    formao do Direito.

    A partir do sculo XX os conceitos, categorias e institutos do

    direito civil clssico revelaram-se insuficientes para regular as relaes sociais

    que surgiram na esteira dos avanos cientficos e tecnolgicos da biologia e,

    especialmente, da engenharia gentica. Surge assim o biodireito, o qual ir tratar

    dessas novas realidades e relaes sociais, que colocam em causa o homem no

    somente como ser individual, mas como parte da espcie humana.

  • Chega-se ao conceito de "Biodireito", como sendo a positivao

    das normas bioticas. Em outras palavras, biodireito a positivao jurdica de

    permisses de comportamentos mdico-cientficos e de sanes pelo

    descumprimento destas normas.

    O Dicionrio Enciclopdico de Teoria e de Sociologia do Direito33

    registra que o biodireito o ramo do direito que trata da teoria, da legislao e da

    jurisprudncia relativas s normas reguladoras da conduta humana face aos

    avanos da biologia, da biotecnologia e da medicina.

    Mas o conceito de biodireito, como instituio independente ou um

    tipo de microssistema no apoiado pela unanimidade de autores. MARIA DO

    CU PATRO NEVES34 ensina que a denominao biodireito um fenmeno

    tipicamente europeu, sem correspondente exato na cultura anglo-saxnica,

    devendo constituir-se em espao de interao interdisciplinar e no em mais um

    ramo do ordenamento jurdico.

    VOLNEI GARRAFA35 tambm entende que deve existir um

    equilbrio entre a liberdade do pesquisador e a severidade da imposio legal

    proibitiva. Diz para tanto que no processo de criao do biodireito, ao se

    judicializar a biotica, devem ser elaboradas normas positivas, afirmativas,

    evitando-se regras sobre proibies que podem deter a fora libertadora da

    33 ARNAUD, Andr-Jean (org.). Dicionrio Enciclopdico de Teoria e de Sociologia do Direito. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 69-73. 34 NEVES, Maria do Cu Patro. Biotica e biodireito. In: NEVES, Maria do Cu Patro. (Coord.). Comisses de tica: das bases tericas actividade quotidiana. 2 ed. Coimbra: Grfica de Coimbra, 2002. p. 499-502. 35 GARRAFA, Volnei. Biotica e Cincia: at onde avanar sem agredir. In: COSTA, Sergio Ibiapina Ferreira; OSELKA, Gabriel; GARRAFA, Volnei. (Orgs.) Iniciao Biotica. Braslia: Conselho Federal de Medicina, 1998. p. 105.

  • cincia e da tcnica, e mais, que tais benesses tragam benefcios a todos os

    povos.

    Assim, no se deve esquecer que as situaes inovadoras

    trazidas pela biotecnologia devem ser filtradas pelo direito, desde que este esteja

    apto a concretizar o mnimo tico desejado, ou seja, que seja capaz de

    apresentar horizontes que atendam pluralidade axiolgica, respeitando as mais

    variadas culturas e crenas.

    1.1.3.1 Princpios do Biodireito

    Conforme assinalou BOULANGER36:

    [...] separados por suas regras e seus conceitos, os diferentes direitos positivos se renem por seus princpios, que so o essencial... a afirmao dos princpios guiada por um instinto sobre o qual, mediante os direitos positivos da mesma famlia espiritual, os mesmos princpios aparecem.

    Dessa afirmao depreende-se que o biodireito no se trata

    simplesmente de encontrar um correspondente jurdico para assuntos

    relacionados biotica, mas sim de uma inter-relao entre uma cincia e outra.

    No se pode, destarte, hierarquiz-las, j que a biotica tem sido imprescindvel

    para a construo de novas relaes das quais o Direito no pode declinar.

    Assim, ante ao ineditismo dos assuntos tratados pelo biodireito,

    mister se faz a observncia dos princpios vigentes, os quais, segundo HELOIZA

    36 BOULANGER, Jean. La mthode de linterpretation juridique. In Travaux de lAssociation Henri Capitant, VI. Paris, 1952. p. 63. apud BARBOZA, Heloiza Helena. Opus Cit. p. 71.

  • HELENA BARBOZA37 so valores eleitos pela sociedade, que no podem

    sucumbir seduo das muitas vezes promessas de realizao de grandes e

    antigas aspiraes humanas, como a imortalidade, devendo os avanos

    cientficos sejam pormenorizadamente analisados para que no ocorram danos

    irreversveis sociedade.

    Com a promulgao da Constituio da Repblica de 1988, uma

    nova ordem jurdica foi instaurada no Brasil, trazendo os princpios estruturais, os

    chamados princpios constitucionais ou princpios gerais de direito. Nestes

    incluem-se uma srie de valores fundamentais, como a vida, a dignidade humana,

    a liberdade e a solidariedade. Estes so a base principiolgica do biodireito, ou

    seja, os princpios constitucionais devem constituir os princpios do biodireito, por

    serem princpios basilares tambm da biotica.

    sabido que no existe um captulo prprio em nossa

    Constituio a tratar do biodireito, e isso ocorre justamente em virtude de que

    todos os princpios constitucionais atinentes vida humana, sua preservao e

    qualidade, esto entrelaados ao Biodireito, este no se restringindo, por sua vez,

    questes relativas sade, ao meio ambiente ou tecnologia.

    Trata-se ento de algumas regras compreendidas dentre os

    Princpios Fundamentais, como o princpio do respeito dignidade humana; outras

    so encontradas dentre os Direitos e Garantias Fundamentais, quais sejam: direito

    vida, igualdade, sade. Tambm se encontram normas mais especficas no

    Ttulo da Ordem Social, que tambm trata de questes de sade, do meio

    ambiente e a famlia, criana e ao idoso. 37 Opus Cit., p. 73

  • 2 ENGENHARIA GENTICA, DIREITOS HUMANOS E CONSTITUIO: O

    PATRIMNIO GENTICO HUMANO COMO DIREITOS DE 4 DIMENSO

    Dentro da problemtica oriunda da revoluo biotecnolgica,

    temos na engenharia gentica um dos pontos mais crticos ante as disposies

    sacramentadas na Constituio Federal tais como a dignidade da pessoa humana,

    o respeito aos valores mnimos de dignidade, liberdade e igualdade que

    inspiraram o sistema normativo da ordem constitucional de 1988.

    Num primeiro passo, vale ressaltar o conceito de vida sob diversos

    enfoques, revelando sua conexo com vrios ramos do saber. Conceitos tratados

    de forma genrica pela doutrina, tais como vida humana, a dignidade de pessoa e

    sua evoluo em contraposio e adequao aos conceitos de tutela do que vem

  • a ser patrimnio gentico humano, sempre buscando o equilbrio de uma

    gentica voltada ao cumprimento do mandato tico, demonstrando o liame entre

    os pressupostos da biotica e da Constituio.

    Depreende-se, destarte, que uma questo ronda a cultura

    filosfica e jurdica contempornea: o que a pessoa humana. O que antes era

    considerada como um dos conceitos mais pacficos do direito, a idia de pessoa,

    principalmente em virtude dos avanos da biologia e de suas implicaes

    tecnolgicas, sofreu ao longo dos ltimos cinqenta anos um profundo

    questionamento, que se traduz na perplexidade encontrada entre filsofos, juristas

    e cientistas sociais em face dos questionamentos sobre a concepo de pessoa,

    constatando-se mesmo ameaas que colocam a pessoa em perigo.

    Os conceitos que antes serviram como fundamentos para o

    sistema normativo da sociedade liberal-burguesa necessitam de uma releitura de

    significado e de sua funo na estrutura jurdica, em virtude dos avanos do

    conhecimento cientfico e do mundo novo construdo pela engenharia gentica.

    As tentativas, inclusive consagradas no direito positivo, de salvar-

    se no contexto de crise da cultura e do direito contemporneo os valores

    fundantes da cultura do Ocidente fizeram com que juristas e legisladores se

    socorressem da formulao de princpios, como, por exemplo, o princpio da

    dignidade da pessoa humana, considerado referencial obrigatrio para a

    formulao e a base dos sistemas jurdicos da sociedade democrtica.

    A dignidade humana, entretanto, como idia de valor, precisa que

    seus fundamentos tico-filosficos sejam recuperados, para que sejam

    compreendidos e aplicados de forma racional nos sistemas jurdicos, e assim,

  • estejam aptos para o exerccio da funo esperada em um estado democrtico de

    direito.

    Atravs de uma anlise histrica, observa-se que a idia do que

    seja dignidade humana no foi fruto de doutrina ou legislao, mas resultou de

    uma compreenso especfica da natureza da pessoa humana e da sociedade.

    Conforme VICENTE DE PAULO BARRETO38:

    [...] falar da dignidade humana sem que se situe esta idia no quadro de uma tica e antropologia filosfica determinada resulta lanar o valor que ela representa no vazio dos discursos polticos e jurdicos. Isto porque a idia de dignidade humana um conceito tico, que, de acordo com alguns autores expressa-se politicamente no conceito poltico moderno da Democracia.

    No mundo contemporneo, entretanto, depara-se com um

    problema diferente daquele da sociedade helnica clssica, e que se expressa em

    duas questes subjacentes idia de dignidade da pessoa humana: em primeiro

    lugar, determinar-se quais os critrios para que se possam distinguir entre todos

    os seres vivos ou no do universo quais podem ser classificados como

    pertencentes categoria pessoa humana; e em segundo lugar, refere-se ao

    cerne do direito das sociedades democrticas contemporneas, onde se ir

    atribuir a essa pessoa humana uma srie de valores que so determinantes e

    caracterizadores dos direitos humanos, ncleo moral, poltico e jurdico do estado

    democrtico de direito.

    38 BARRETO, Vicente de Paulo. A Idia de Pessoa Humana e os limites da Biotica. In: BARBOSA, Heloisa Helena; BARRETO, Vicente de Paulo. (orgs.) Novos Temas de Biodireito e Biotica. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 220-221.

  • Segundo RITA DE CASSIA RESQUETTI TARIFA39, vive-se

    hodiernamente um momento privilegiado da histria, em sede jurdica. Citando

    NORBERTO BOBBIO40, a autora assevera que os direitos humanos, na forma

    como esto reconhecidos no atual estgio da modernidade, tanto em nvel

    internacional (sistema de proteo internacional) como nos Estados

    Constitucionais de Direito (sobretudo no mundo ocidental) representam uma

    importante conquista histrica. Assim, direitos humanos, democracia e paz so as

    condies para vida digna no mundo moderno.

    A priori, deve-se ter em vista que pensar em questes genticas

    pensar na dignidade do ser humano. Assim, as escolhas feitas pela sociedade

    brasileira que surgiro dever-se-o adequar-se sempre com tal princpio. Mas

    indubitavelmente, desafios sempre viro, dia a dia, para que se reflita sobre o

    tema.

    Desta forma, o desafio colocado pela cincia biolgica

    contempornea para a filosofia e para o direito encontra-se nos prprios avanos

    do conhecimento e da tecnologia relativos ao incio e ao fim da vida humana, a

    exemplo das discusses tericas sobre a natureza do embrio humano.

    Os novos fatos criados pela biotecnologia, aps serem objeto de

    reflexes ticas, devem, portanto, ter ingresso no direito, como instncia capaz de

    concretizar o mnimo tico desejado. certo que o direito, e especialmente o

    direito civil e penal, no devem ser usados para coagir as pessoas em razo de

    39 TARIFFA, Rita de Cssia Resquetti. A proteo da vida humana pelo direito e a evoluo dos direitos fundamentais. In: ______ Autonomia Corporal e Manipulao Gentica Humana. 2004. p. 19. (mestrado em Direito Negocial) Universidade Estadual de Londrina, Londrina, Paran. 40 BOBBIO, Norberto. A era dos Direitos. 12 tiragem. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1992. Apud TARIFFA, Rita de Cssia Resquetti. Opus cit., p. 19.

  • sua posio moral, mas no se pode refutar a estreita ligao entre direito e moral,

    relao que pode ser constatada quando se considera que as mximas morais

    geram os costumes, os quais, por sua vez, servem como fonte material ao

    legislador.

    O direito deve, porm, na medida do possvel, apresentar-se com

    abertura suficiente para atender ao pluralismo moral, realizando o princpio da

    tolerncia e respeito diversidade, incentivado nas sociedades ocidentais

    contemporneas. Esta, porm, uma tarefa delicada, em se tratando de temas

    to impregnados de crenas, religiosidade e valores distintos.

    Certo que as novas ameaas ao indivduo, sua liberdade e

    diversidade impuseram uma reviso profunda no mundo jurdico, que passou a

    centralizar suas atenes na dignidade da pessoa humana.

    O fato de o ente humano ser tomado como eixo do sistema e de o

    direito mostrar-se aberto para os novos fatos deve significar que o respeito ao ser

    humano se dar alm das crenas e das moralidades, sem o que todo discurso

    no passar de mera retrica. Ao homem pensado pelo Iluminismo como uma

    abstrao descontextualizada, sucede a pessoa e as suas mltiplas

    circunstncias, que devem ser respeitadas em todas as instncias normativas.

    No mundo do Direito, essa tarefa oferece alguma complexidade.

    Os pases democrticos procuram afirmar a igualdade de todos diante da lei, sem

    distino de qualquer natureza, e desenvolvem, nesse sentido, polticas de ao

    afirmativa. O alcance dessa meta no se esgota na superao das desigualdades,

    mas pressupe, reafirme-se, a compreenso e aceitao da multiplicidade de

    valores, crenas e ideologias de todos os cidados.

  • Essa a questo prpria e pulsante das sociedades ps-

    modernas, e onde as diferenas devem encontrar oportunidade de realizao, que

    se espera ocorrer o equilbrio delicado entre a regra jurdica e as liberdades

    individuais.

    Conforme j explanado, dentre todas as mudanas pelas quais

    passa o direito na ps-modernidade, a tendncia benfica traz a emancipao em

    desfavor da regulao, com tendncia at ao abandono das Codificaes

    tradicionais e a consagrao dos minissistemas jurdicos, como o caso do

    Cdigo de Defesa do Consumidor41.

    Mas, mesmo neste contexto renovador, faz-se, ainda, mister no

    se perder de vista a regulao, principalmente diante desses novos fatos e

    avanos da cincia, no campo da engenharia gentica, pelos desafios que

    apresenta nos campos da moral e da tica, que se impem.

    O escopo principal colocar-se freios sede cientfica desmedida,

    dentro do paradigma do personalismo tico, que privilegia a pessoa humana como

    centro da tutela jurdica.

    Nesse ponto, faz-se de importncia singular e fundamental a

    anlise sobre a possibilidade de incurso das normas emanadas da Biotica no

    terreno das Constituies dos Estados e, logicamente, no plano internacional,

    porquanto se trata de uma disciplina identificada como lugar de disparidades

    posicionais, cuja tendncia suscitar um consenso emprico sobre normas a

    serem realmente implementadas.

    41 Cdigo de Defesa do Consumidor: Lei n 8.078, de 11 de setembro de 1990.

  • Assim, torna-se evidente que esses progressos cientficos

    provocaram um processo de criao de normas jurdicas que expressam as

    inquietudes sobre a necessidade de tutelar uma nova relao de equilbrio entre

    direitos fundamentais, mormente, entre o direito vida, integridade fsica,

    liberdade de expresso cientfica e o direito sade.

    Ao analisar-se a evoluo dos Direitos Humanos, ante sua

    independncia vontade humana e universalidade, se tornou necessrio

    classifica-los por Geraes, nominados de forma mais adequada de Dimenses

    de direitos humanos, sendo que hoje existem direitos de 4 e at, para alguns

    autores, direitos de 5 dimenso, sendo que especificamente que os de 4

    dimenso referem-se aos direitos ligados ao chamado Patrimnio Gentico, ou

    seja, situaes ligadas pesquisa gentica, surgidos da necessidade de se impor

    um controle manipulao do gentipo dos seres, em especial o do ser humano.

    Para tanto, surgiu, atravs da UNESCO, a chamada Declarao

    dos Direitos do Homem e do Genoma Humano, a qual, dentre outros, traz

    expresso reconhecimento do respeito dignidade e aos direitos fundamentais dos

    indivduos, quaisquer que sejam suas caractersticas genticas.

    2.1. Da proteo dos direitos fundamentais classificao das geraes

    ou dimenses de direitos humanos

    Num primeiro momento, essencial se faz ressaltar a importncia

    das terminologias: direitos humanos e direitos fundamentais. De forma sucinta,

    pode-se asseverar que os direitos humanos, em se tratando de referncia tica

  • dos homens, so os inerentes pessoa humana, no necessitando que os

    legislem, ou mesmo que os queiram, pois so direitos naturais universais.

    Nas palavras de NORBERTO BOBBIO42: por mais fundamentais

    que sejam, direitos humanos so direitos histricos e nascem de modo gradativo

    em virtude de determinadas situaes.

    J os direitos fundamentais so conformadores do perfil tico do

    Direito e definidores da ao estatal em seus diversos setores, quais sejam os

    Poderes Executivo, Legislativo e Judicirio. Caracterizam-se, segundo KONRAD

    HESSE43, como elementos fundamentais da ordem objetiva da coletividade.

    Em outras palavras, direitos fundamentais so aqueles que cada

    ordenamento jurdico os considera como tais, variando segundo o ordenamento

    jurdico de cada Estado. Os direitos fundamentais, assim, como os direitos

    humanos, visam tutelar a liberdade, a vida e a dignidade da pessoa humana.

    JOS AFONSO DA SILVA44, por sua vez, ensina que a

    terminologia direitos humanos a preferida pelos documentos internacionais.

    Contudo, para este doutrinador, a expresso mais apropriada seria a de direitos

    fundamentais do homem, pois:

    [...] alm de referir-se a princpios que resumem a concepo do mundo e informam a ideologia poltica de cada ordenamento jurdico, reservada para designar, no nvel do direito positivo, aquelas prerrogativas e instituies que ele concretiza em garantias de uma convivncia digna, livre e igual de todas as pessoas.

    42 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1.992, p.5. 43 HESSE, Konrad. Elementos de direito constitucional da Repblica Federal da Alemanha. Trad. Luiz Afonso Heck. Porto Alegre: Fabris, 1998. p. 228. 44 SILVA, Jos Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 12 ed. So Paulo: Malheiros, 1996. p. 176-177.

  • J NORBERTO BOBBIO45, faz uma dicotomia entre direitos do

    homem unicamente naturais, que equivalem aos direitos humanos, e direitos do

    homem positivados, estes correspondendo aos direitos fundamentais, ensinando a

    converso universal em direito positivo dos direitos do homem, realando a

    diferena entre os direitos do homem inerentes a todo ser humano e direitos do

    homem efetivamente reconhecidos pelo ordenamento jurdico-positivo de um

    determinado Estado.

    ALEXANDRE DE MORAES46 traz outra terminologia, qual seja

    direitos humanos fundamentais, definindo-os:

    [...] o conjunto institucionalizado de direitos e garantias do ser humano que tem por finalidade bsica o respeito sua dignidade, por meio de sua proteo contra o arbtrio do poder estatal e o estabelecimento de condies mnimas de vida e desenvolvimento da personalidade humana.

    Por ltimo, importante trazer colao a distino feita por INGO

    SARLET47, j que este defende existirem os chamados direitos do homem (como

    direitos naturais no positivados); direitos humanos (os direitos positivados no

    mbito do direito internacional) e direitos fundamentais (direitos reconhecidos ou

    outorgados e protegidos pelo direito constitucional interno de cada Estado).

    45 BOBBIO, Norberto. Opus Cit., p. 31-32 .Nesta mesma obra, BOBBIO expressa uma caracterstica pretrita dos chamados direitos humanos: quando os direitos do homem eram considerados unicamente como direitos naturais, a nica defesa possvel contra a sua violao pelo Estado era um direito igualmente natural, o chamado direito de resistncia. 46 MORAES, Alexandre. Direitos Humanos Fundamentais. So Paulo: Atlas, 1997. p. 39. 47 SARLET, Ingo Woligang. A Eficacia dos Direitos Fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999, p. 32.

  • Diante disso, num panorama geral, ao analisar-se o roteiro

    histrico referente aos direitos humanos, torna-se evidente seu carter de

    independncia vontade humana e de universalidade, advinda de expresses

    histricas da humanidade, onde se afirma ter sido contedo desses direitos

    constitudos e modificados ao longo do tempo, ensejando, destarte, a classificao

    por geraes de direitos Nesse sentido, tm-se os ensinamentos de INGO

    SARLET48, in verbis:

    [...] a histria dos direitos fundamentais tambm uma histria que desemboca no surgimento do moderno Estado Constitucional, cuja essncia e razo de ser residem justamente no reconhecimento e na proteo da dignidade da pessoa humana e dos direitos fundamentais do homem.

    A referncia da universalidade dos direitos humanos inerente a

    essa espcie de direitos, a qual se manifestou num primeiro momento com a

    promulgao da Declarao Francesa de 1789 e no momento da Declarao da

    ONU. Nos dizeres de PAULO BONAVIDES49, esta Declarao:

    [...] procura, enfim, subjetivar de forma concreta e positiva os direitos da trplice gerao (ainda no existiam os direitos de 4 gerao) na titularidade de um indivduo que antes de ser homem deste ou daquele pas, de uma sociedade desenvolvida ou subdesenvolvida, pela sua condio de pessoa um ente qualificado por uma pertinncia ao gnero humano, objeto daquela universalidade.

    48 SARLET, Ingo Woligang. Opus Cit., p. 36. 49 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. So Paulo: Malheiros, 1995. pg. 527.

  • Assim, partindo dessa reflexo histrica, bem como dos

    ensinamentos de NORBERTO BOBBIO50, classificam-se os Direitos Humanos e

    Fundamentais em geraes, a saber:

    a) direitos de primeira gerao;

    b) direitos de segunda gerao; e

    c) direitos de terceira gerao.

    Convm ressaltar que existem doutrinas divergentes em relao a

    essa classificao, haja vista a distino feita por alguns tericos estender-se

    quarta gerao, bem como da terminologia aplicada gerao, como ensina INGO

    SARLET51, o qual de forma diferente, reconhece a existncia de dimenses de

    direitos e no geraes, j que:

    [...] o reconhecimento progressivo de novos direitos fundamentais tem o carter de um processo cumulativo, de complementaridade, e no de alternncia, de tal sorte que o uso da expresso geraes pode ensejar a falsa impresso da substituio gradativa de uma gerao por outra, razo pela qual h quem prefira o termo dimenses dos direitos fundamentais.

    Com razo o autor acima citado.

    2.1.1 Direitos Humanos Fundamentais de 1 Dimenso

    Chamados de direitos e garantias fundamentais de primeira

    dimenso, tm-se os direitos e garantias individuais e polticos clssicos. Surgiram

    50 BOBBIO, Norberto. A era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992. 51 SARLET, Ingo. Opus Cit., p. 49.

  • no sculo XVIII, tornando-se a base do Estado de Direito, originando o Estado

    Moderno.

    Caracterizavam-se esses princpios pelo lema francs laissez-

    faire, laissez-passer (deixar fazer, deixar passar), o qual pregava a liberdade de

    iniciativa das atividades econmicas, e, pelo contexto histrico, foi transplantado

    para a Poltica e para o Direito, surgindo o Estado Liberal ou Estado de Direito.

    Era um Estado caracterizado pela total submisso dos governantes e pela mnima

    interveno estatal no domnio e