95751067 teoria do contrato novos paradigmas teresa negreiros

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Teresa Negreiros Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da Pontificia Universidade Cat(Rica do Rio de Janeiro — PUC-Rio. Mestre em Direito Constitucional e Teoria Geral do Estado pela PUC-Rio. Doutora em Direito Civil pela Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro — UERJ J aCC-1 ,4 TEORIA DO CONTRATO: NOVOS PARADIGMAS RENOVAR Rio de Janeiro • Sao Paulo 2002

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Page 1: 95751067 Teoria Do Contrato Novos Paradigmas Teresa Negreiros

Teresa Negreiros Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da Pontificia

Universidade Cat(Rica do Rio de Janeiro — PUC-Rio. Mestre em Direito Constitucional e Teoria Geral do Estado pela PUC-Rio.

Doutora em Direito Civil pela Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro — UERJ

J aCC-1,4

TEORIA DO CONTRATO: NOVOS PARADIGMAS

RENOVAR

Rio de Janeiro • Sao Paulo

2002

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Introducao

Mudam-se os tempos, mudam-se as vonta- des...

Luiz de Camoes

1. Do individuo a pessoa, da liberdade individual a solidariedade social: o carciter historic() do direito civil e a mudanca de valores; 2. Renovaccio dos principios do

contrato; 3. Fragmentacao da teoria contratual e o pa-radigma da essencialidade; 4. Plano de trabalho.

1. Do individuo a pessoa, da liberdade individual a solidariedade social: o carater historico do direito civil e a mudanca de valores

A ideia de que as palavras e seus sentidos originais podem manter-se inalterados apesar de desaparecidos os contextos epistemologicos a que se reportam e invocada por Gregorio Robles quando observa que, apesar da revolu-cao de Copernico, continuamos convictamente a dizer que

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o sol sobe pela manha e desce ao entardecer.' A utilizacio de termos como "autonomia privada" e "liberdade contra-tual" revela, no ambito da reflexao juridica acerca do con-trato, a ocorrencia de urn fenomeno algo semelhante: refe-rimo-nos a essas nocoes como se o seu conteudo se houves-se mantido tal e qual, como se mantidas estivessem as condicoes culturais que as forjaram. 2

1. Gregorio Robles, Los derechos fundamentales y la etica en la sociedad actual, Madrid: Civitas, 1997, p. 19. 2. "Autonomia privada" e "autonomia da vontade" sao express5es em tomb das quais a doutrina parece ainda nao ter chegado a urn consenso, seja quanto ao significado que uma e outra guardam relativamente, seja

quanto a sua origem. Segundo Judith Martins-Costa, "A expressao 'auto-nomia da vontade' Trio deve ser confundida com o conceito de 'autonomia privada', e nem corn a sua expressao no campo dos negOcios juridicos, qual stir+, a 'autonomia negocial'. 'Autonomia da vontade' designa uma constru-can idec,logica, datada dos finais do seculo passado [seculo XIX] por alguns juristas para opor-se aos excessos do liberalismo econemico (...) Modernamente (...) designa-se, comb 'autonomia privada' (dita, no campo dos negOcios, 'autonomia negocial') seja urn fato objetivo, vale dizer, o poder, reconhecido pelo ordenamento juridico aos particulares, e nos limites tracados pela ordem juridica, de auto-regular os seus interesses, estabelecendo certos efeitos aos negocios que pactuam, seja a fonte de onde derivam certos direitos e obrigacoes (fonte negocial), seja as normas criadas pela autonomia privada, as quais tern um conteudo proprio, deter-minado pelas normas estatais (normas heteronomas, legais ou jurisdicio-nais) que as limitam, subtraindo ao poder privado autonomo certas mate-rias, certos grupos de relacoes, reservadas a regulacao pelo Estado" ("Mer-cado e Solidariedade Social entre Cosmos e Taxis: A Boa-fe nas Relacoes

de Consumo", A Reconstrugio do Direito Privado, Sao Paulo: Revista dos

Tribunals, 2002, p. 611-661, p. 614-615). Neste mesmo sentido, Fernan-do Noronha observa que "... foi precisamente ern conseqiiencia da revisdo

• titir (MIMI stabmetidos o liberalismo econOmico e, sobretudo, as concep-tevi volontarigas do nritOcio juridico, que se passou a falar em autonomia

ptyleti' ► la a mais antiga autonomia da vontade" (0 Direito t #ittfitit)1 tOut PrOtt 1pios Fundamentais Autonomia Privada,

NOW 'Wits rofsttfituo1 , Sio Paulo; Suitiva, 1994, p. 113). Tambem *Motor o terns hirer la* i) Amaral ili►fir►imo de autonomia da vontade

para grande parte da doutrina contemporanea, com ela porem nao se confunde, existindo entre ambas sensivel diferenca que se realca corn o enfoque do fenomeno em apreco na perspectiva da nomogenese juridica. Poder-se-ia logo dizer que a expressao autonomia da vontade tem uma conotacio mais subjetiva, psicologica, enquanto que a autonomia privada marca o poder da vontade de urn modo objetivo, concreto e real, como ja referido" ("A Autonomia Privada como Principio Fundamental da Ordem juridica. Perspectivas Estrutural e Funcional", in Revista de Direito Civil, n° 46, Sao Paulo: Revista dos Tribunais, out.-dez. 1988, p. 7-26, p. 15). Ji a expressio "autonomia da vontade" e atribuida a E. Kant, que a teria introduzido em 1796 na obra Critica da Raz& Pratica. Antonio Junqueira de Azevedo, contudo, discorda, sustentando que a expressao nao teria migrado da filosofia para o Direito, antes se teria originado no direito internacional (artigo sem titulo, in Estudos em Homenagem ao Professor Silvio Rodrigues, Sao Paulo: Saraiva, 1989, p. 3-22, p. 14). Mireille Baca-che-Gibeili sustenta que a expressio "autonomia da vontade" so ganhou utilidade a partir do momento em a ideia assim expressada passou a ser objeto de contestacio, designadamente a partir do desenvolvimento do direito do trabalho. Seguindo-se este raciocinio, teriam sido os detratores do valor traduzido pela "autonomia da vontade" os maiores difusores da expressio. (La relativite des conventions et les groupes de contrats, Paris: LC DJ, 1996, p. 236). Neste trabalho, a expressio "autonomia privada", reportada ao direito contratual, sera utilizada como o poder atribuido as pessoas de, por meio de contratos, auto-regularem os seus interesses, estando, pois, diretamente relacionada ao principio da liberdade contra-tual. O use da expressao "autonomia da vontade" sera feito tambem na acepcao de "poder de o individuo produzir direito" (cf. Antonio Junqueira tie Azevedo, ob. cit., loc. cit.) ou de "poder, reconhecido ou concedido pelo ordenamento estatal a urn individuo ou a um grupo, de determinar vicissitudes juridical (...) como conseqiiencia de comportamentos (...) livremente assumidos" (Pietro Perlingieri, Perlis do Direito Civil, Intro-ducao an Direito Civil Constitucional, trad. Maria Cristina De Cicco, Rio vie Janeiro: Renovar, 1997, p. 17). A rigor, entendernos que ambas as expressOes exprimem uma mesma realidade, embora a autonomia da von-tade esteja historicamente mais associada ao voluntarismo juridico que em determinado momento nela se legitimava. Assim, optou-se por utilizar a expressao "autonomia da vontade" ou "principio da autonomia da vonta-de" sempre que se tivesse em mira o modelo de contrato classic°, no qual, como sera amplamente demonstrado no decorrer do trabalho, o poder

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Na verdade, uma e outra tendem a resistir a analises que as enquadrem historicamente, desnudando-lhes os as-pectos conjunturais. E como se, ao contrario, a autonomia privada, na qual se insere a liberdade contratual, integrasse a ontologia do contrato, fosse urn elemento essencial a compor a identidade do direito contratual como urn con-junto de normas destinado a assegurar a cada individuo o direito a autodeterminacao no campo das relagoes patri-moniais. 3

Sob este prisma, nao imports ao direito civil — em particular, ao direito dos contratos — a posicao social que ocupa o destinatario de suas normas. Ao inves, o direito civil caracteriza-se pela absolutizacao do individuo como um "eu" metafisico sem vinculos historicos, dal que, redu-zidos ao "ser", todos somos iguais. Considerada em si mes-ma, esta logica 6 coerente: o individuo — em oposicao ao

jurigeno da vontade era exacerbado, assumindo contornos fundamental-mente diversos dos que hoje se verificam. A expressin "autonomia priva-da" e, sob este prisma, mais generica, nao estando tao essencialmente associada ao voluntarismo e ao individualismo juridicos. 3. Neste sentido, Ludwig Raiser afirma corn toda a propriedade: "La dogmatica civilistica ritiene the l'autonomia privata sia un principio con-naturato alla struttura del diritto civile, in quanto consente al singolo di autoregolamentare i propri rapporti" ("La Liberty Contrattuale Oggi", in 11

compito del diritto privato, trad. Marta Graziadei, Milano: Giuffre, 1990, p. 52). E corn base nesta suposta perenidade da estrutura contratual que ate ha bem pouco tempo se acreditava ser a teoria dos contratos "uma das partes mais estdveis e perfeitas do direito civil. Dependendo, menos do

que outran, dos particularismos de cada epoca e sociedade, Ode ela oh omit como o direito das obrigacaes, em que se integra — a univer-

uabitteir r a tationalidade, que the teem permitido adaptar-se, sem derroga-

4. de rittetittm ou modificacites de sistetna, a novas exigencias econemi-

04. AboOfftot totkition de convlvio social" (F. C. San Tiago Dantas, t oittamporiura Diteno Contratual", in Problernas de Direi-

M-rottivit ittiukti e I'dtecetes, Rio tie Janeiro: Forense, 1953, p. 13-33, p ohm

trabalhador, ao comerciante, ao criminoso, ao contribuin-te, ao administrado, ao consumidor... — define-se por sua irredutibilidade essencial. 0 "ser" é a sua unica e suficiente qualidade.

E hoje plenamente aceito, no entanto, que a realidade das relacoes interprivadas nao mais se concilia corn pers-pectivas segundo as quais o direito civil, que as regula, teria como objeto discriminante a disciplina de um individuo assim abstrato, participe de relacoes juridicas axiornatica-mente fundadas sobre uma igualdade meramente formal. Especialmente no campo do direito contratual, a coerencia interna da logica individualista e incapaz de resistir ao con-fronto corn a realidade e corn os problemas postos pelas tao manifestas quanto profundas desigualdades sociais.

Reconhece-se, pois, a necessidade de rever o ambito da autonomia privada no campo das relacoes juridicas patri-moniais. Neste sentido, fala-se em "limites" a soberania da vontade individual, "restricoes" a liberdade contratual, am-pliacao do conceito de ordem ptiblica, regimes "especiais" ou "excepcionais" de tutela da parte fraca em certas relacoes contratuais..., supondo-se que, afora intervencoes pon-tuais, o significado e a funcao do direito civil permanecem indissociavelmente ligados a protecao de interesses priva-dos, rujo contetido compete aos proprios individuos deter-minar, melhores juizes que sao de seu proprio bem-estar.

Ou seja, mesmo quando se procede a contextualizacao da autonomia privada, e sao identificadas as mudancas cau-sadas pela evolugao historica, permanece a tendencia de circunscrever estas mudancas a uma dimensao exclusiva-mente quantitativa, pondo-se de parte a possibilidade de o relativism° historic° das categorias e teorias juridicas as comprometer essencialmente.

0 apego ao significado classic° do principio da autono-mia privada, expressao da liberdade e da forca jurigena do querer individual, explica o fato de que as teorias contem-

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porfineas — e aqui se tern em mira, particularmente, as teorias contratuais — sejam em geral referidas como "no-vas", como se fosse realmente possivel que nao o fossem (assim novas) pelo simples e inevitavel fato de que novos sao os tempos e os homens a que se destinam. 4 Observa-se, pois, que a contextualizacao do direito civil 6 marcada por uma ainda acentuada resistencia aos efeitos do condiciona-lismo historic° dos seus principios e das suas categorias teoricas.

Estara ai uma primeira explicacao para a enfase dada as transformacoes ocorridas no direito civil, as quais apenas confirmariam a tese, a principio &via, de que o Direito nao esti recluso em si mesmo, e que, por isso, tanto quanto outros ramos, o direito civil responde as demandas sociais, e estas, uma vez alteradas, resultarn em correspondentes alteracoes nos institutos juridicos.

Corn efeito, e hoje incontestavel o fato de que o direito civil se mostrou tao suscetivel as transformacoes economi-cas, sociais e filosoficas quanto os demais ramos do Direito. Seus principais conceitos, de acordo corn Franz Wieacker, poderiam ser assim resumidos:

"0 direito subjectivo como poder de vontade, o nego- cio juridico como activacao da vontade autonoma das partes, o contrato como estrita ligacao intersubjectiva

4. E como explica Gustavo Tepedino, ao observar que a relativizacao hist6rica "rompe corn o carater absoluto dos institutos jurldicos, obriga-nos a considerar sempre em mutacao nossas categorias e teorias, todas historicamente condicionadas. E, sob este ponto de vista, nem mesmo precisariamos recorrer ao adjetivo novo para qualificar a teoria contratual que floresce das relacoes de consumo, sena() apenas para, em homenagem A ret6rica ou — vA la — a didatica, enfatizar as transformacoes ocorridas nesta mesma dogmatica" ("As Relacoes de Consumo e a Nova Teoria Contratual", in Temas de Direito Civil, Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 199-215, p. 199-200).

entre sujeitos autonomos de direito, a propriedade (...) como urn direito em principio ilimitado e total de do-mini° e de exclusao, cuja funcao social nao vem a luz no seu conceito; as pessoas colectivas como sujeitos de direito segundo a imagem das pessoas humanas (...)". 5

Todos esses marcos do direito civil projetado nas codi-ficacOes foram pouco a pouco, sem excecao, sendo supera-dos ao longo do seculo XX. A comecar pela funcao social da propriedade, passando pela funcao social do contrato — os dois pilares conceituais e ideologicos do direito civil —, indo ate o campo da responsabilidade por atos ilicitos, tendente a objetivizacao, para nao mencionar as mutacoes havidas no direito de familia e a emergencia e o desenvolvi-mento dos direitos da personalidade, por todos esses pon-tos de vista o direito civil refletiu a historia do seculo XX e suas oscilacoes no que respeita a concepcdo do indivicluo frente a sociedade e ao Estado.

Ora, o que ha de tao extraordinario na afirmacao de que o direito civil do inicio do seculo XXI esti muito distante do direito civil codificado a partir do inicio do seculo XIX?; ou na de que a "revolta dos fatos", 6 sentida já na Franca dos anos quarenta, se tenha sucedido urn verdadeiro "terroris-mo" 7 dos fatos contra o direito codificado e sua dogmatica? Ou, ainda: o que ha de especifico nas transformacoes do direito civil para alem do fato de que, como todos os de-

5. Franz Wieacker, Historia do Direito Privado, 2' ed., trad. A. M. Botelho Hespanha, Lisboa: Fundacao Calouste Gulbenkian, 1993, p. 717. 6. Gaston Morin, La revoke du droit contre le Code, Paris: Sirey, 1945. 7. A expressao e de Paulo Cezar Aragio: "Atualizada a imagem classica, poderfamos dizer que vivemos hoje uma fase de verdadeiras manifestacoes de terrorismo dos fatos contra a ordem juridica que aprendemos a conhe-cer" ("A Organizacao Juridica da Empresa", in Revista de Direito Compa-rado Luso-Brasileiro, n° 5, Rio de Janeiro: Forense, 1986, p. 229-232, p. 229).

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mais ramos do Direito, este tambem tern mudado corn o passar do tempo?

Parece-nos que toda essa enfase dada as mudancas in-corporadas ao direito civil atual esta a demonstrar que, na verdade, ainda sobrevive a crenca no sistema cientifico oitocentista e no seu proposito de construcao de urn Direi-to a prova do tempo, dada a sua coerencia e precisao dog-maticas. As categorias abstratas e generalizantes tipicas da civilistica tendem a ser vistas como aptas a conservar a neutralidade deste ramo do Direito diante das injuncOes politicas e economicas, mantendo-o, no limite, infenso as conjunturas historicas. Somente a reminiscencia destes ideais e que poderia justificar dar-se tamanha importancia a um fato que, ao inves, a conseqiiencia natural da simples passagem do tempo: "Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades"; como supor que tambem o Direito nao mu-dasse?8

No entanto, avancando-se nesta reflexao, é possivel perceber que a enfase dos discursos teoricos acerca das transformacaes do direito civil contemporfineo nao recai tanto sobre as mudancas isoladamente consideradas, mas sobre o seu sentido global. Ou melhor, os esforcos do civi-lista contemporaneo atento a tais transformacoes tern se voltado para a recuperacao de uma unidade sistematica atraves da identificacao de urn sentido axiologico comum as multiplas mudancas ocorridas — af reside, em grande parte, a justificativa para que seja tao importante insistir -se

8. Corn a devida enfase, conclui Orlando de Carvalho: "Nenhum direito on ramo de direito admite uma paralizacao no tempo: mesmo que as normas nAt ► mudam, muda o entendimento das normas, mudam os confli-

try► die interesses que Sc tirt de resolver, mudam as solucoes de direito, fitte hili4) diretti, em at react Nenhum direito a definitivamente factum: é

%pitiful. Algoma t mom in fieri" (Para uma Teoria Geral da Relacdo Juridi-1 I. rt1, t nintInit t entrIlta, 1981, p. 50-51).

na afirmacao de que o direito civil de hoje já nao mais se compadece corn os modelos explicativos do passado. 9

9. Este dado qualifica certa reflexao histbrica como uma reflexao essen-cialmente metodologica, da qual vdo resultar efetivas propostas de aplica-clo sistematica de urn direito civil ordenado em torn de principios diver-sos, mas, a preciso reconhecer, ainda voltado para tris nesta sua pretensio unificante e sistematica. No contexto, nao ha qualquer sentido pejorativo

na ideia da "volta atras", jd que, na linha defendida por Claus-Wilhelm Canaris, se cre na justica intrinseca de uma concepcdo sistematica do

Direito, na medida em que garantidora do principio da igualdade (Pensa-

mento Sistenuitico e Conceito de Sistema na Ciencia do Direito, 2' ed.,

trad. Antonio Menezes Cordeiro, Lisboa: Fundacao Calouste Gulbenkian, 1983). Por outro lado, a perspectiva civil-constitucional — acolhida neste trabalho — e igualmente particlaria da metodologia sistematica, sendo esta mais uma razdo para que a "volta atras" em referencia as aspiracoes siste-maticas nao seja, ao contrario, vista aqui como urn retrocesso, ainda que, evidentemente, se trate agora de um sistema aberto e dotado de unidade valorativa. A propOsito da defesa de uma unidade sistematica e valorativa

diante de urn quadro de "estilhacamento" conceitual, conclui Gustavo Tepedino: "... parece-me chegada a hora de buscarmos uma definicao de um conjunto de principios ou de regras que se constituam em normas gerais a serem utilizadas nao de forma isolada em urn ou outro setor, mas de maneira abrangente, em consonfincia corn as normas constitucionais, para que se possa, s6 entdo, e a partir dai, construir o que poderia ser uma nova teoria contratual, ou — por que nao? — uma teoria contratual revita-lizada, constitucionalizada, e ate despatrimonializada, relativizada pela tensalo dialetica incessante entre a producao legislativa e a atividade eco-namica" ("As Relacoes de Consumo e Nova Teoria Contratual", ob. cit., p. 213). De acordo corn Stefano Rodoth., os principios substitufram a tecnica regulativa caracteristica do espirito dos codificadores, mantendo-

se as aspiracoes sistematicas: "... quell'esistenza di regolazione generale, tradizionalmente espressa nella formula del ricorso alla legge, quell'ambi-zione di una disciplina globale e permanente, in cui sempre s'e manifestato lo spirito dei codificatori, si sostanziano oggi nella legislazione per principi,

la sola a prefiggersi ii compito di tracciare le grandi linee direttive della vita sociale, e dunque it vero equivalente modern delle codificazioni" ("Ideologie e tecniche della riforma del diritto civile", in Rivista di diritto

commerciale, n° 3-4, Milano: Casa Editrice Dr. Francesco Vallardi, mar.- aim:. 1967, p. 83-125, p. 98).

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Feita esta justificativa, pode-se afirmar corn alguma tranqiiilidade que este livro e, sim, urn trabalho (mais um) dedicado ao exame das transformacoes do direito civil —em especial daquelas que mais diretamente afetam a disci-plina contratual. Nao se trata, contudo, de enfatizar cada uma das mudancas ocorridas, minudenciando seus efeitos, mas de lhes conferir uma direcao comum, tracada a partir da identificacao de quais sejam os principios e valores fun-damentais nesta materia.

E ambicao do presente trabalho sustentar que o sentido unificante, capaz de articular as tantas e tao numerosas transformacoes ocorridas no direito civil contemporineo e de lhes conferir coerencia valorativa, se constrOi por meio da permanente remodelacao do direito civil a imagem da Constituicao Federal e do projeto social ali plasmado.

Afinal, ao assumir a sua historicidade, o direito civil assume, conseqiientemente, o seu papel politico, e isto decisivo para aproxima-lo da normativa constitucional. Re-conhece-se como inadequada a concepcao do direito civil como sendo politicamente neutro, da sociedade como apartada do Estado e, sobretudo, da Constituicao como indiferente as relacoes interprivadas. De fato, seria mesmo ingenuidade, nos dizeres de Ludwig Raiser, admitir a histo-ricidade da dogmatica civil e, ao mesmo tempo, negar que esta mesma dogmatica assuma contornos politicos. A poli-tizacao do direito civil aproxima o direito public° ao direito privado, a sociedade ao Estado, o direito civil a Constitui-cao:

"E un'ingenuita supporre che it diritto privato si possa comprendere in base all'evoluzione dei suoi istituti come conseguenza di condizioni sociali storicamente determi-nate ed, al tempo stesso, sia opportunamente protetto dal campo della politica, quasi esistesse uno steccato che li separi. diritto privatto ha pertanto sicuramente

una funzione politica, la quale va ridefinita nuovamente per ogni diversa epoca costituzionale" (grifou-se). 10

0 processo de constitucionalizacao do direito civil im-plica a substituicao do seu centro valorativo — em Lugar do individuo surge a pessoa. E onde dantes reinava, absoluta, a liberdade individual, ganha significado e forca juridica a solidariedade social."

to. Ludwig Raiser, "La Costituzione e it diritto privato", in Il compito del

diritto privato, ob. cit., p. 174. Em traducao livre da autora, le-se que é uma ingenuidade supor que o direito privado possa ser compreendido corn base na evolucio das suss instituiceies, como conseqiiencia de condicoes sociais determinadas historicamente e, ao mesmo tempo, esteja oportuna-mente protegido do campo da politica, quase como se houvera urn muro que os separasse. Q 0 direito privado tern portanto seguramente uma funcio politica, a qual, a cada epoca constitucional, é novamente redefini-da. 1. Por outras palavras, mas num sentido semelhante, Stefano Rodota

atribui a historicidade do direito civil alcance capaz de alterar os criterios de valoracio dos institutos juridicos: "... la riconosciuta storicita dei con-

cetti giuridici, se vuole avere un senso, non pub non comportare pure una modifica del metodo della loro elaborazione, e dunque un abbandono dei tradizionali procedimenti dommatici, a tutto vantaggio di una costruzione sistematica capace di modellarsi piU direttamente sulla realta storica dell' ordinamento legislativo. D'altra pane, it valore di direttive interne del sistema privatistico, assunto da alcuni fondamentali principi costituziona-li, comporta la necessita di considerare proprio come i dati fondamentali per la costruzione del nuovo sistema, mutando it criterio di valutazione degli istituti intesi come i fondamenti dell'ordine civilistico, in primo luogo dell'autonomia privata, della proprietd e della responsabilitd civile: questi, spogli ormai di quel piit generale significato ordina tore che assumevano in prensenza di una diversa gerarchia delle fonti e di un diverso contenuto dei testi costituzionali, devono essere esaminati nelk particolatird di una nor-mativa che va ben oltre gli articoli del codice civile. Ne , infine, l'interesse publico o sociale put) essere identificato con una fascia esterna dei rapporti privati, per tal via riservata alla collettivita, o risotto in semplice strumento di modificazione qualitativa degli stessi interessi individuali, porche in quell'interesse deve soprattutto riconoscersi ii segno di un ordine normativo

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De fato, diversamente da pessoa cuja dignidade a Cons-

tituicao pretende assegurar, impondo ao Estado e a socie-

dade o compromisso de erradicar a pobreza e as desigualda-des regionais, o individuo a cuja tutela se destina o direito civil codificado fora concebido como urn ser atomizado e mesmo pre-social. Tanta e que o individuo projetado nos

Codigos e considerado titular de direitos inatos para cuja garantia foi necessario urn pact° social e juridico: o "con-trato social", tal coma denominado pela teoria politica mo-derna, atraves das obras de Hobbes, Locke e Rousseau. A precedencia do individuo frente a sociedade, e a do direito subjetivo frente ao dever e ao sistema normativo estatal,

vao marcar a modernidade como a era de absolutizacao da vontade individual em contraposicao a absolutizacao da

vontade do Estado: o homem tern direitos e o Estado tern deveres, o que, em termos da classica dicotomia direito privado/direito public°, e expresso pelas projecoes antag6 -

nicas do principio da legalidade em um e outro campos da normatividade (no direito privado, tudo o que nao é proibi-

do por lei e permitido; no direito public°, tudo o que nao

for permitido por lei e proibido).' 2

the sfugge ormai alla schematizza7ione tradizionale diritto pubblico-diritto privato" ("Ideologie e tecniche della riforma del diritto civile", ob. cit., p.

86). 12. Como resultado da tabua axiologica instituida pela Constituicao, po-rem, outros sentidos devem ser atribuidos ao principio da legalidade, e outras sao as relacoes entre o direito public° e o direito privado. E a tese defendida por Maria Celina Bodin de Moraes, nos seguintes termos: "0 que parece, a primeira vista, ser a mais relevante distincao entre o direito public° e o direito privado consubstancia-se, na verdade, em uma regra tanto para as relacoes entre o Estado e os particulares quanto nas relacoes juridicas intersubjetivas, entre particulares. 0 que o principio constitutio-nal [principio da legalidade — art. 5°, II, da CF] esta a garantir nao e 0 antigo 'reino da liberdade' mas, sim, o Estado Democratic° de Direito, (pie sr op6e a° Estado de Policia, ou do Arbitrio. No Estado Democreitico

Neste cenario, contemporfineo a formulacdo dos pri-meiros Codigos, aos direitos do individuo nao correspon-dem, como contrapartida, deveres sociais. Estes tiltimos estabelecem-se em relacao exclusivamente ao Estado (e nao em relacao aos demais individuos), que lhes deve res-peito, e cuja atuacao, neste sentido, e tanto mais legitima quanto menos repressora do livre exercicio da vontade individual.

E curioso observar que a conversao da individualidade em um valor nao a exclusiva da realidade juridica, podendo tambem ser constatada em outras manifestacoes culturais (artisticas e filosoficas) da idade moderna. Na literatura, por exemplo, Luiz Costa-Lima assinala a historicidade do genero literario "autobiografia", no sentido de que tal gene-ro so surge a medida que se passa a valorizar o individuo e suas experiencias pessoais. Dal ser anacronica a utilizacao do termo autobiografia na Antigilidade, epoca em que:

"Uma vida adquiria sentido a medida que se amoldasse a urn modelo comunitariamente vigente. Enquanto pri-vada, a existencia era indigna de consideracao publica. Ou seja, a categoria 'individualidade' nao se confundia e, na verdade, nada tinha a ver corn individualismo.

de Direito, o poder do Estado esta limitado pelo Direito; mas nao so: o

poder da vontade do particular, em suas relacoes corn outros particulares, tambem o esta. Limita-o nao apenas a eventual norma imperativa, contida nas leis ordinarias, mas, sobretudo, os principios constitucionais de solida-riedade social e dignidade humana que se espraiam por todo o ordenamen-to civil, infra-constitucional. Evidentemente, permanecem espacos aber-tos de liberdade mas esta liberdade (autonomia) e consentida e jd nao

serve mais a definir o sistema de direito privado" ("Constituicao e Direito

Civil: Tendencias", in Revista Direito, Estado e Sociedade, n° 15, Depar-tamento de Direito da PUC-Rio, ago.-dez. 1999, p. 95-113, p. 104,

grifou-se).

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Este nao entrava em cogitacao, aquela supunha a cana-lizacao direta corn um papel publico". 13

Tampouco na Idade Media se pode vislumbrar a "auto-biografia" como genero literario, pois:

"... o caminho autobiografico se torna impossivel onde um modelo ou modelos de vida de tal maneira se afir-mem que a opcao individual consista apenas na escolha de urn deles. Em si mesma, a idiossincrasia individual desaparece para que se integre em urn modelo de con-duta geral e, por conseguinte, impessoal"."

Em correspondencia ao raciocinio que, no campo da teoria juridica, associa os ideais jusracionalistas aos ideais individualistas que inspiram a codificacao civil, na teoria literaria a justamente a obra "autobiografica" de Jean-Ja-cques Rousseau — Confessions, escrita entre 1764 e 1770 — a eleita por Costa-Lima como marco inaugural deste g'enero da literatura, cujo surgimento e difusdo estao inti-mamente relacionados a uma renovada e valorizada con-cepcdo do individuo.

0 Codigo Civil e a "autobiografia" do individuo bur-gues. Afirma-se, sem exagero, que nao apenas o direito civil, mas todo o Direito da modernidade tern como ponto de partida o individualismo e o liberalismo. Nesta medida, justifica-se o significado constitucional de que eram dota-dos os Codigos Civis:

"Esse significado `constitucional' dos codigos civis do inicio do seculo XIX (...) e imanente neles, se se fixar a

I i LUIZ Costa-Lima, Sociedade e Discurso Ficcional, Rio de Janeiro: (Mankind, 1986, p. 252. I4 1.11ii( 'data Lima, Sociedade e Discurso Ficcional, ob. cit., p. 256.

ideia de que a propriedade privada e o contrato, que constitufam, como se disse, as colunas do sistema, vi-nham, por assim dizer, `constitucionalizar' uma deter-minada concepcdo da vida economica, ligada, notoria-mente, a ideia liberal". 15

Corn efeito, nesta etapa da evolucao do direito civil, as relacoes do individuo frente a sociedade e frente ao Estado

sao, respectivamente, de indiferenca e de resistencia. Nao se desconhece a categoria de interesse public°, mas este e concebido como resultado da soma aritmetica da satisfacao de interesses particulares, o que confere as codificacOes civis uma estatura ou um significado "constitucional", pois que a propria concepcao e o proprio fundamento do Estado partem do individuo.

Em sentido analogo, confirma Konrad Hesse: "As( lleg6 el Derecho Privado a ser el Derecho constitutivo de la Socie-dad burguesa, junto al cual el Derecho Constitucional tenia una importancia secundaria. Le correspond-1a incluso una primada material frente al Derecho Constitucional" .'6

Refletindo urn projeto politico de indole burguesa, a codificacao civil apreende este individuo abstratamente considerado como titular de vontade e garante-lhe prote-cao patrimonial. A identificacao entre as recem conquista-

das liberdades ptiblicas e a propriedade esti nao apenas na origem das reivindicacoes e conquistas da classe burguesa, mas tambem, de forma muito nitida, nos sistemas de direi-to civil entao codificados. A propriedade privada erige-se em fundamento e simbolo da liberdade, ao mesmo tempo

15. Michele Giorgianni, "0 Direito Privado e as suas Atuais Fronteiras", trad. Maria Cristina de Cicco, in Revista dos Tribunais, n° 747, Rio de

Janeiro: Revista dos Tribunais, jan. 1998, p. 35-55, p. 41. 16. Konrad Hesse, Derecho constitucional y derecho privado, traduccion e introduccion Ignacio Gutierrez Gutierrez, Madrid: Civitas, 1995, p. 38.

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que o exercicio daquele direito se supOe igualmente livre, assim como a sua circulagao, atraves do livre exercicio da autonomia negocial. Todos podem casar, ser proprietarios, contratar e testar; todos sao iguais. 17 0 patrimonio nao constitui, em oposicao aos titulos nobiliarquicos e clericais, fator de segregacao e de estagnacao sociais, mas de liberta-cao conquistada, ou, quando menos, conquistavel, por to-dos em igualdade de condicoes.

0 "ter", neste momento historic° de hegemonia dos valores liberais da burguesia, 6 urn elemento de paridade em oposicao ao "ser": "... do status ao contrato", dird Mai-ne, exultante pela libertacao do individuo das amarras so-ciais-estamentais do Antigo Regime.

Supera-se o Estado absoluto; ergue-se o individuo abso-luto. "0 Estado sou eu" (Luiz XIV) e "0 inferno Sao os outros" (Sartre) bem poderiam ter-se como falas apropria-das a esse personagem, que vivia numa era de absolutismo esclarecido do Eu. Em face da exacerbacao da liberdade individual, a intervencao estatal tendia a ser considerada arbitraria: a protecao a liberdade incluiria, numa visao as-sim extremada, ate mesmo a liberdade de nao ser livre.

17. Acerca desta reducao da pessoa ao individuo, sujeito de direito, capaz de direitos e obrigacoes — um reducionismo que hoje nao mais se concilia coin a afirmacio constitucional da dignidade da pessoa humana sao preciosas as palavras de Judith Martins-Costa: "Submergida a idea de 'pessoa' na de 'individuo' (ao senso 'egoista' do termo) e nao-visualizada a de 'personalidade' pela preeminencia do conceito ti cnico de 'capacidade', tracaram-se as tramas semanticas que acabaram por fundir o `ser pessoa' corn o 'ser capaz de adquirir direitos e contrair obrigacoes'. Em outras palavras, instrumentalizou-se a personalidade humana, reproduziu-se, na sua conceituacao, a logica do mercado, o que conduziu a desvalorizacao existential da ideia juridica de pessoa, para torn-la mero instrumento da tfcnica do Direito (...)" ("Os Danos a Pessoa no Direito Brasileiro e a Nittlite7.0 <1a sua Reparacio", in Judith Martins-Costa (org.), A Reconstru-00 tin Dortnto Privado, Sao Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 408- 44(4, p 411)

Juridicamente, uma eloquente ilustracao da ideologia liberal-individualista pode ser percebida na forte rend() a Lei que, na Inglaterra, tornava compulsoria a ligagao das casas a rede de esgoto recem construida, mediante o paga-mento de urn tributo. 0 Economist, na edicao de 13 de julho de 1850, vociferava contra o "movimento sanitario", alegando que as pessimas condicoes de habitacao e os altos indices de mortalidade nas cidades

"... provem de duas causas, as quais serao agravadas por estas novas leis. A primeira é a pobreza das massas que, se possivel, sera aumentada pela tributacao imposta pelas novas leis. A segunda a que as pessoas nunca puderam cuidar de si mesmas. Elas sempre foram trata-das como servos ou criancas e tornaram-se imbecis prin-cipalmente corn relacao aos objetivos que o governo deci-diu realizar por elas. (...) Ha urn mal pior que o tifo ou a colera ou a eigua contarninada que e a imbecilidade mental" (grifou-se) ) 8

E ocioso demonstrar-se que esta mesma Lei esta em perfeita harmonia corn a tutela da dignidade da pessoa humana, nao sendo passive! de criticas sob esta otica. Afi-nal, o que ha de diverso na tutela da dignidade da pessoa quando comparada a tutela da liberdade do individuo e, precisamente, o fato de que, enquanto esta Ultima se da em termos formais, a primeira se materializa em atencao as concretas necessidades humanas, cuja satisfacao integra o substrato da dignidade da pessoa.

18. Jacob Oser e William C. Blachfield, Historia do Pensamento Econe-mico, trad. Carmen Terezinha Santoro dos Santos, Sao Paulo: Atlas, 1983,

p. 53.

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O direito civil voltado para a tutela da dignidade da pessoa humana a chamado a desempenhar tarefas de prote-ção, e estas especificam-se a partir de diferenciagoes nor-mativas correspondentes a diferenciacoes que implodem a concepgao outrora unitaria de individuo, dirigindo-se, nao a urn sujeito de direito abstrato dotado de capacidade ne-gocial, mas sim a uma pessoa situada concretamente nas suas relacoes economico-sociais (e o caso, no Ambito do direito contratual, das normal de protecao ao consumidor, ao locatario, ao usuario de piano de saude etc. — as chama-das person-oriented rules). 19

Neste sentido, enquanto a liberdade individual se dirige a urn indivicluo tornado de forma abstrata e atomizada, a solidariedade social — nos quadros da ordem constitucio-nal em vigor — supoe, ao inves, a relevancia da condicao social do destinatario da norma e, deste modo, mostra-se incompativel corn a concepcao abstrata e formal de sujeito de direito. E o ponto assinalado por Maria Celina Bodin de Moraes:

"0 abandono da perspectiva individualista, nos termos em que era garantida pelo Codigo Civil, e sua substitui-cdo pelo principio da solidariedade social, previsto constitucionalmente, acarretou uma profunda transfor-macao no Amago da propria logica do direito civil — que se faz notar nas mais reconditas minudencias do siste-ma. Corn efeito, o legislador codicista estava voltado para garantir a igualdade de todos perante a lei — igual-dade representativa, a epoca, de significativo avanco social —, posicao que era, no entanto, incompativel corn o reconhecimento de quaisquer aspectos particu-lares ou especificos, relativos aos destinatarios das nor-

Sobre este on( en°, encont ratio na obra de Thomas Wilhelmsson, e set;! Helios %obrr a trorta untratual, remete-se ao Capitulo Ill, infra.

mas. Por seu turno, o legislador constituinte teve a pretensio, apoiado nos principios da dignidade humana e da solidariedade social, de querer enfrentar as desi-gualdades concretas do contexto da sociedade brasilei-ra contemporfinea, ao propugnar, como objetivo funda-mental da Republica — art. 3°, III —, a erradicacao da pobreza e da marginalizagdo social". 20

Diferentemente da sociedade formada por individuos em si mesmos considerados, cujos interesses particulares coexistiam, justapondo-se uns como limites dos outros, a comunidade de pessoas constroi-se juridicamente a partir de relacoes de solidariedade e de responsabilidade mUtuas, nao so de direitos mas tambem de deveres, que tomam em conta as necessidades reais e concretas da pessoa humana. Neste contexto:

"Tornou-se significativo da evolucao do direito privado o facto de a solidariedade social nao se ter circunscrito a limitacao dos direitos privados pelo direito publico, mas ter tambern comegado a insinuar-se, atraves da jurisprudencia, na concepcdo das relacoes contratuais intersubjectivas, dos direitos patrimoniais e, sobretudo, do direito de propriedade nas suas relagoes corn os outros particulares". 21

Corn efeito, a tutela da dignidade da pessoa humana correspondem nao apenas os tradicionais direitos indivi-duais mas igualmente os chamados "direitos sociais", que

20. Maria Celina Bodin de Moraes, "0 Principio da Solidariedade", in Os Principios da Constituicao de 1988, Manuel Messias Peixinho, Isabella Franco Guerra e Firly Nascimento Filho (orgs.), Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, p. 185. 21. Franz Wieacker, Historia do Direito Privado, ob. cit., p. 719.

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reordenam as relacoes entre o Estado e a sociedade, im-pondo a todos o onus de tornar a sociedade mail justa. Neste sentido, observa Fabio Konder Comparato:

"A ideia de que a protecao da pessoa humana nao se realiza apenas pelos institutos das liberdades publicas, pedra angular do Estado liberal, mas exige tambem a promocao compulsoria da igualdade social, permeia todo o direito constitucional contemporaneo. Em pai- ses subdesenvolvidos, cuja sociedade e fundamental-mente desarticulada por um processo de desigualdade progressiva, a questa() dos chamados direitos sociais crucial"."

A dignidade da pessoa humana nao e apreendida, pois, como um polo de irradiacao de direitos, somente, mas tambem de deveres. No campo do direito civil, como ja referido, esta mudanca valorativa deriva para a construcao de uma nova etica em termos de relacoes privadas:

"La dignidad del ser human no consiste en que cada un de nosotros exija sus derechos y todo le parezca poco para alit-mar su personalidad, sin, sobre todo, en que assuma sus deberes como persona y como ciudadano y se exija a sf mismo su cumplimiento permanente" . 23

Nota-se, pois, que a tutela da dignidade da pessoa hu-mana como centro valorativo do direito civil contempora-neo — a justificar que o valor da pessoa seja preservado, ate mesmo, contra a sua propria vontade — representa uma inversdo de perspectivas quando comparada a tutela do indivicluo e de sua autodeterminacao.

22. Fabio Konder Comparato, "A Nova Cidadania", in Revista Lua Nova, n° 28/29, Sao Paulo: Cedec, mar. 1983, p. 93., p. 85-106. 23. Gregorio Robles, Los derechos fundamentales..., ob. cit., p. 185-186.

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Ainda pouco veiculada pela doutrina e pela jurispru-dencia nacionais, 24 a tutela da dignidade da pessoa humana

24. De fato, sac) raras na jurisprudencia brasileira as decisoes que, dispon-do sobre situagoes litigiosas de natureza civil, remetam o seu fundamento decisorio a clausula geral de tutela da pessoa humana. Um dos raros exemplos e comentado por Mauricio Antonio Ribeiro Lopes: "E \Tali& toda doacao feita ao outro pelo c6njuge que se casou sexagenario, porque, sendo incompativel corn as clausulas constitucionais de tutela da dignida-de da pessoa humana, da igualdade juridica e da intimidade, bem como a garantia do justo processo da lei, tornado na acepcio substantiva (substan-

tive due process of law) ja nao vige a restricao constante do art. 258, § 11, do CC. (Ap 007.512-4/2-00 — 2' Cam. do TJSP — J. 18.08.98 — rel. Des. Cezar Peluso)" ("A Dignidade da Pessoa Humana: Estudo de urn Caso" (jurisprudencia comentada), in Revista dos Tribunais, n° 758, Rio de Janeiro: Revista dos Tribunais, dez. 1998, p. 106-117, p. 106). Diante deste estado de coisas, Mauricio Antonio Ribeiro Lopes expressa nestes termos o seu desapontamento: "Nem consulta ao site do STF corn a Integra de seus acordaos dos tiltimos anos, nem a pesquisa em base de dados corn oitenta anos de sua jurisprudencia em ementas pode revelar fundamentacao de alguma decisio calcada expressamente na tutela da dignidade da pessoa humana como parametro. Isso nos levou a verificar que raras vezes a jurisprudencia busca fundamentos anteriores aos estabe-lecidos no art. 5° da CF para solucao de conflitos que, em grande parte dos casos, apenas poderiam ser solucionados corn o recurso das interpretac6es axiologicas ou principiologicas da Constituicdo. Urge que se a leia nao apenas como urn documento juridic°, mas tambem como urn glossario de valores politicos fundamentais de uma especial maneira de ser do Estado brasileiro, qual seja, de urn Estado Social e Democratico de Direito" (ob. cit., p. 112). Mesmo em ambito estritamente academico, constata-se certa parcirnonia no tratamento da materia, especialmente se utilizado coma parametro de comparacao o nivel de producao doutrinaria que a seu respeito se verifica no estrangeiro. 0 artigo de Jose Afonso da Silva, "A Dignidade da Pessoa Humana como Valor Supremo da Democracia" (in Revista de Direito Administrativo, n° 212, Rio de Janeiro: Renovar, abr.-jun., p. 89-94, 1998), bem como o comentario a jurisprudencia de Mauri-cio Antonio Ribeiro Lopes, ja citado, constituem excecoes a tendencia acima referida. Na literatura estrangeira, dentre as obras monograficas dedicadas especificamente ao tema, pode-se referir exemplificativamente as de Jesim Gonzalez Perez, La dignidad de la persona, Madrid: Civitas,

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é expressamente invocada pela jurisprudencia em outros paises, virando pelo avesso as premissas do individualismo liberal que marcaram o direito civil codificado. Especial-mente pela via das construcoes hermeneuticas levadas a cabo pela jurisdicao constitucional, a dignidade da pessoa humana a interpretada como uma clausula que reflete uma nova concepcao do ser humano. Neste particular, o Tribu-nal Constitucional alernao tem sido precursor no esforco de releitura da ordem juriclica a luz dos principios e valores constitucionais, notadamente do principio da dignidade da pessoa humana. Veja-se, a proposito, o testemunho de Bal-dassara, ele proprio juiz da Corte Constitucional italiana:

"Non e un caso che, ragionando in questi termini, la Cone costituzionale tedesca e giunta ad affermare che 'l'idea di uomo' (Menschenbild) propria della Legge Fondamentale non coincide con quella dell'individuo sovrano, (poiche) la Costituzione (tedesca) ha piuttosto determinato la tensione individuo-comunita (= genera-lity) nel senso della relativity-alla-comunita (Gemeins-chaftsbezogenheit) e della vincolativita-alla-comunita (Gemeinschaftsgebundenheit) della persona, senza di che non si pue• percepire it particolare valore della stes-sa' (aggiunte tra parentesi nostre). E non e neppure un caso che, coerentemente corn cio, la stessa Corte abbia

1986, e de Dominique Rousseau, Les libertes individuelles et la lignite de la personne humaine, Paris: Montchrestien, 1998. Temos noticia de outros tantos trabalhos produzidos no estrangeiro que se inserem nesta tematica sem, contudo, serem tic, especificamente destinados ao estudo da "digni-dade da pessoa humana". Tal 6 o caso da obra, de Antonio G. Baldassarre, Diritti della persona e valori costitucionali, Torino: Giappichelli Editore, 1997, e, bem assim, do estudo filos6fico-juridico de Sergio Cotta, intitu-lado Diritto. Persona. Mondo Umano, Torino: G. Giappichelli Editore, 1989.

ritenuto che i diritti fondamentali dei singoli spettino all'uomo in quanto 'membro della comunita e percio nel pubblico interesse' e siano condizionati nel loro effetivo esercizio, e percio mediati, da particolari valori comunitari, specialmente dall'ordinamento fondamen-tale liberal-democratico'.""

No presente trabalho, a analise da evolucao historica do direito civil e do cambio valorativo assim produzido recai sobre o instituto do contrato. Procura-se identificar como sentido unificante das transformacoes sofridas na teoria do contrato a incidencia, sobre a relacao contratual, de princi-pios e valores constitucionais. Ou seja, pretende-se cons-truir uma ponte que articule a dogmatica contratual con-temporanea caracterizada pela formulacao de principios que visam a tutela do contratante debil e de boa-fe — a concepcao trazida pela ordem constitucional acerca da pes-soa humana e de sua socialidade. Designadamente, a pri-mazia das situacaes existenciais (decorrencia da clausula

25. Antonio G. Baldassarre, Diritti della persona e valori costitucionali, ob. cit., p. 45. Em traducao livre da autora, le -se que nao e acidental, raciocinando nestes termos, que a Corte Constitucional alema esteja pro-xima de afirmar que "A ideia do ser humano" (Menschenbild) pr6pria da Lei Fundamental nao coincide corn aquela do individuo soberano, (pois que) a Constituicao (alema) determinou que a tensio individuo -comuni-dade (=generalidade) seja no sentido de relacao-com-a-comunidade (Ge-meinschaftsbezogenheit) e de vinculacao-com-a-comunidade (Gemeins-chaftsgebundenheit) da pessoa, sem a qual nao se pode perceber o parti-cular valor delta (parenteses acrescidos pelo autor). E nao e tampouco acidental, em coerencia corn este raciocinio, que a mesma Corte haja afirmado que os direitos fundamentais dos individuos competem ao ser humano enquanto "membro da comunidade e, por isso, no interesse p6bli-co", e que esti° condicionados no seu efetivo exercicio, e por isso ligados sos particulares valores comunitarios, especialmente no que tange ao or-denamento fundamental liberal-democratico.

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geral de tutela da pessoa humana) e os deveres impostos pelo principio da solidariedade social — dois dos mais importantes signos da ordem constitucional em vigor —

sao considerados como fundamentos para a emergencia do que neste trabalho se prop& como paradigms da essencia-lidade.

2. Renovacfio dos principios do contrato

A evolucao do pensamento juridic° em direcao a uma nova concepcdo de contrato — identificada como uma con-cepcao social do contrato 26 contrapoe ao modelo liberal classic° o modelo contemporaneo, numa narrativa histori-ca que assinala, sob o ponto de vista dos principios, as transformacaes de maior significado para a renovacao da teoria contratual.

0 ponto de partida da historia que se passa agora a focalizar e o modelo de contrato enunciado pelo individua-lismo filosofico e pelo liberalismo economic°, que surgem no seculo XVIII, triunfam no seculo XIX e se positivam em valores juridicos nas codificacoes francesa e alema, nas

26. A socializacao do contrato insere-se, naturalmente, na socializacao, em geral, do direito civil. A seu respeito, Antonio Pinto Monteiro reporta: "A falada socializacao do direito civil e a formula por que correntemente se designa este fenomeno, de acentuacao da componente social, conse-quente a superacao histOrica (dos pressupostos) do liberalismo e indivi-dualisms juridicos. Pretende-se alcancar uma verdadeira justica material (em consonancia corn as funcoes que se atribuem ao Estado de Direito Social), que nao ignore, antes tome em devida conta, as desigualdades reais, que, de facto, condicionam e limitam as possibilidades de realizacio dos diversos sujeitos. 0 que teve repercussao em todo o direito civil e afectou de modo especial dois principios, o da autonomia privada e o da responsabilidade civil" (Antonio Pinto Monteiro, "0 Direito do Consumi-dor em Portugal", in Revista de Direito Comparado Luso-Brasileiro, Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 128-142, p. 130).

quais se inspirou o nosso Codigo Civil de 1916.27 De acor-do corn este modelo, o formalismo deu Lugar ao consensua-lismo, e a forca obrigatoria dos contratos passou a ser justi-ficada pela ideia de respeito a palavra voluntariamente dada. 0 contrato passou entao a pressupor tao-somente o consentimento rrnituo, sem que uma forma especifica fos-se (em regra) essencial a sua validade.

A vontade passa a ser o cerne do contrato, e este, o cerne do Direito objetivo como urn todo e do proprio Estado. 28 0 cenario juridico-filosofico do seculo XVIII —o seculo das Luzes da liberdade, do individuo e do contrato — vai espraiar-se na teoria juridica desenvolvida ao longo do seculo XIX, resultando na formulacao de principios, categorias e valores que, em tomb da autonomia privada, ate hoje governam correntes significativas do pensamento civilistico.

0 liberalismo economico, 29 tambern ele uma doutrina desenvolvida no seculo XVIII, inspira-se na valorizacao da

27. Para uma justificativa da escolha do Code como sendo o ponto de partida desta pesquisa historica acerca das mudancas ocorridas no Direito Civil, veja-se, por todos, Rosario Nicola, "Diritto Civile", in Enciclopedia del Diritto, XIV, Milano: Giuffre, 1964, p. 904-921, p. 909. 28. A prop6sito do papel central desempenhado pela vontade individual como suporte ideologico para a concepcdo liberal de Estado, Clovis V. do Couto e Silva observa: "No Estado Liberal, com a nitida separacao entre Estado e Sociedade, assumiu extraordinario relevo a autonomia dos parti-culares, sendo-lhes deferida quase totalmente a formacao da ordem priva-da. Pela teoria do Direito, a vontade passou entao a ser considerada como elements natural a explicacao das figuras juridicas, extensiva ate aquelas que nao a pressupunham" (A Obrigaccio como Processo, Sao Paulo: Jose

Bushatsky, 1976, p. 18). 29. Adam Smith e a principal referencia do pensamento economic° libe-ral, denominado por Escola Classica, cujas bases estao "na liberdade pes-soal, na propriedade privada, na iniciativa industrial e no controle indivi-dual da empresa, apoiadas na doutrina do laissez-faire" (Jacob Oser e William C. Blachfield, Historia do Pensamento Economics, ob. cit., p. 51).

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