almada negreiros - a engomadeira

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José de Almada Negreiros A Engomadeira Novela Vulgar Lisboeta

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A engomadeira

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  • Jos de Almada Negreiros

    A Engomadeira

    Novela Vulgar Lisboeta

  • Preo $25

    EDITOR:

    O AUTOR

    1917

    TIPOGRAFIA MONTEIRO & CARDOSO

  • De Jos de ALMADA-NEGREIROS, Pintor:

    TEATRO:

    O MONHO, ao pintor Eduardo Afonso Viana. Tragdia em 1 acto.

    23, 2. ANDAR, ao sr. Gualdino Gomes. 3 actos, Drama.

    PENSO DE FAMLIA, a Joo do Amaral. 2 actos, grand-guignol.

    LENDA D'IGNEZ, a linda que no soube que foi rainha, a Mele M. G. C. M. (S.

    T.). Prlogo e 3 actos, Bailado.

    BAILADO DA FEIRA, a Alexandre Rey Colao. Prlogo e 3 actos, Bailado.

    LE SECRET DES POUPES, (original francs) - 1 acto, Bailado.

    NOTA: Nos Bailados, as partituras, libretos, dcors, costumes etc., so criaes de

    RUY COELHO, JOS PACHEKO e Jos de ALMADA-NEGREIROS.

    A CIVILISADA, a Amlia Rey Colao. 4 actos, Drama.

    LITERATURA:

    O MENDES, a Cristiano Cruz. Novela.

    A ENGOMADEIRA, a Jos Pacheco. Novela-vulgar lisboeta.

    A SCENA DO ODIO, por Jos de ALMADA-NEGREIROS poeta sensacionista

    e Narciso do Egipto. a lvaro de Campos. (ORPHEU 3)

    SALTIMBANCOS, a Santa Rita Pintor, Contrastes simultneos. (PORTUGAL

    FUTURISTA 1)

    MIMA FATAXA, SYMPHONIA COSMOPOLITA E APOLOGIA DO

    TRIANGULO FEMENINO, a ti para que no julgues que a dedico a outra.

    (PORTUGAL FUTURISTA 1)

    NOTA: O PORTUGAL FUTURISTA N. 1 foi apreendido pela policia apesar de

    respeitadas todas as formalidades legais.

    10 Poemas Portugueses, por M.me Sonia Delaunay-Terk e Jos de

    ALMADA-NEGREIROS.

    K4 O QUADRADO AZUL, ao pintor Amadeo de Souza-Cardoso.

    JOSE, a meu pai. Romance.

  • ORIGINAIS FRANCESES:

    BALLET VERONSE ET BLEU, M.me Sonia Delaunay-Terk, Suite-Style des

    mtal-couleurs.

    LA FEMME ELECTRIQUE: Superlatif d'ele ELLE ELLE. 3 poses Divulgation

    Luxe Extra-Luxe. Invention Europe 1917. Made in Europe.

    ALMADA, inventeur futuriste de l'ARTIFITIAL CO, LTD. Catalogue confidentiel

    1917 net. Ce catalogue annule les prcdents. 30 planches.

  • Meu caro Jos Pacheco

    A vai a minha Engomadeira.

    Terminei-a em 7 de janeiro de mil novecentos e quinze e desde esta data foi agora a

    primeira vez que a reli.

    Reconheo que este meu trabalho que eu muito estimo j no representa hoje em dia

    a avaliao do meu esforo, porm usa muito da minha intuio por isso que a tutelo.

    Reli-a, e se bem que a acelerao das imagens seja por vezes atropelada, isto , mais

    espontaneamente impressionista do que premeditadamente, no desvia contudo, a minha

    inteno de expresso metal-sinttica Engomadeira, em todos os seus 12 captulos onde

    interseccionei evidentes aspectos da desorganizao e descarcter lisboetas.

    V. sabe bem quanto eu contradigo a minha obra anterior, mas tambm sabe que se a

    contradigo no a renego nunca.

    Na Engomadeira no tenho a notar mais que a minha insuficincia literria at 7 de

    Janeiro de 1915, pois que, quanto desorganizao e descarcter lisboetas ainda no tenho

    as garantias suficientes para desmentido oficioso.

    Mas... em todo o meu trabalho ha um facto importante que eu quero sublinhar - a

    dedicatria a Jos Pacheco.

    que muito pouca gente sabe, como eu, bem avaliar aqueles que so uma seleco

    dos bons aspectos de Paris.

    Enfim, escuso de repetir-me neste assumpto que o nosso Mrio de S-Carneiro sabia

    to justamente classificar:

    - Ns trs somos de Paris!

    E somos. Temos esta elegncia, esta devoo, este farol da F.

    Lisboa 16 de Novembro 1917.

  • Em todos os meus trabalhos eu guardo esta pgina para

    dizer o orgulho de ter como Mestre M.me Sonia Delaunay-Terk.

  • I

    Um dia a me comprou chapu para ir em pessoa pedir dona da engomadoria que

    no deixasse a filha passar a ferro as ceroulas dos homens porque parecia mal a uma

    menina decente. Daqui a chacota endiabrada das outras que a no deixavam e at lhe

    chamavam o Quelhas. E eram empuxes e risotas e pisadelas a fingir sem querer e um dia

    at lhe descoseram a saia. E tambm no suportavam que os que espreitavam na rua

    olhassem mais para ela quando j estava resolvido entre todas as engomadeiras que ela era a

    mais feia. E a parva parece que no via nada, que estava a dormir! Era o parvo do Mendes,

    era o estpido do Alves e at o senhor Anastcio! eram todos, e ela... nada! Ento ela no

    foi dizer senhora que o patro lhe tinha oferecido uma carta?! Que parva!... Aquilo s

    como ferro por aqueles olhos! N! no podia continuar assim! Nem ela nem as mais (e por

    causa dela!) j passa da medida! Mata-se a idiota!

    Ela ouvia, ouvia tudo naquele esforo de no querer ouvi-las, s malcriadas. Ainda

    desconfiaram dalgum amante que a sustentasse, algum palerma que lhe desse as coisas...

    mas no dia em que descalas a espreitaram da escada troaram dela e do gato a brincarem

    juntos em cima da cama. Concordaram: no pode ter amante - ainda tem o fato do ano

    passado e as botas, as botas foram do pai com certeza. E o lunch sempre a mesma laranja

    com um pedao de queijo metido num po to reles que nem podia chamar-se sandwich...

    portanto, a parva j no dava. A besta! A besta sim, a besta que era!

    E todos os dias eram queixas e mais queixas por causa da lama daquelas chancas, por

    causa das cascas da laranja e porque soprou o ferro para cima das calas da espanhola e

    porque deu pronta uma camisa do senhor doutor que era uma indecncia de engelhada e

    at porque cheirava mal, sempre no, mas de vez em quando.

    No dia da revoluo foram dizer a um marujo que ela era talassa, que at usava

    bentinhos e Senhoras da Conceio e ela, coitada, teve que pedir de joelhos.

    Verdadeiramente ela sentia uma simpatia muito grande pela causa monrquica desde que

    um dia as outras todas se confessaram democrticas ao policia de servio quando l foi

    pedir um copo de gua do contador. Mas agora, no! Agora no tinha poltica; tinha era

    medo de morrer.

  • Um sero tinha guardado o lunch para a noite, foi abri-lo era um rato podre e as

    outras danaram um vira expontneo. Compreende-se: a senhora tinha ido ao

    cinematografo como o patro. Quando voltaram estranharam aquele silncio e a luz do gs

    muito sumida com o abat-jour todo para a esquerda.

    - Foi ela! gritaram todas de braos estendidos na mesma direco, e um galo que

    tinha na testa tambm tinha sido ela mas de propsito. Ela no disse nada, levantou a saia

    tirou do bolso da saia de baixo um rato podre muito bem embrulhado e pegando-lhe pelo

    rabo at muito perto da luz gritou indignada com aquela evidncia pr a senhora pr

    patro: era o meu lunch! e voltando-se para elas atirou-o violentamente cara duma, que

    todas eram a mesma, e rematou vingativamente... agora que fui eu! E se no fosse o

    patro no tinha sido apenas aquela mancheia de cabelos... era mas era a cabea toda,

    minha... e foi uma enfiada de nomes baixos, que nem se dizem a uma mulher das mais

    ordinrias. E para que ela visse bem que no era para brincadeiras fez um pequeno silncio

    e disse, mas muito a serio: sua talassa!

    - E com muita honra! e fez-lhe frente. As outras deram uma gargalhada descomunal

    e a que riu mais observou: E 'inda o confessa! Ah! Ah! Ah!... mas ela vingou-se em chamar-

    lhes republicanas.

    Entretanto a senhora tinha j endireitado o abat-jour enquanto o patro fazia de

    fronteira entre as inimigas, mas isto que de maneira nenhuma podia ficar assim!

    Acabou de arranjar as ultimas calas da espanhola para concluir o seu sero, pediu ao

    patro para fazer contas com ela, ps a mantilha despreocupadamente e quando j estava

    pronta e na rua virou-se para dentro e acompanhou de um gesto indisciplinado um

    sincerssimo viva Monarquia!

  • II

    Ir ao barbeiro um dever to penoso como assistir aos Sinos de Corneville

    representado pelos velhinhos do Asilo de Mendicidade. Apesar disto o senhor Barbosa

    pedia a barba bem escanhoada porque depois do jantar ia ao Asilo de Mendicidade ouvir os

    velhinhos cantar os Sinos de Corneville e que o Presidente da Repblica tambm ia. E

    depois de ter esboado ao barbeiro o argumento da pea disse-lhe que gostava imenso da

    musica mas p de arroz na cara, no!... que no era desses!

    - Bem me queria parecer, disse com grande contentamento um velhote com culos

    de aros de tartaruga, depois de ter consultado por muito um envelope todo escrevinhado, e

    chegando-se perto do senhor Barbosa com uma palmadinha no ombro: tambm temos os

    Sinos de Corneville e mandou o oficial dar manivela do gramofone que ele que l sabia

    desses engenhos.

    Quando o disco se gastou o senhor Barbosa disse com um A! ao oficial que Wagner

    foi um grande musico mas que ele tinha-o escanhoado pouco por debaixo do queixo.

    Nesta altura a porta entreabriu-se e uma cabea de senhora de chapu pedia licena,

    se podia entrar. porque estava muito farta de andar a p, os elctricos no andavam, e

    porque gostava muito dos Sinos de Corneville e que at daria qualquer gratificao mas

    propunha como condio que deixassem entrar tambm a filha que estava l fora,

    coitadinha. Foram todos l fora buscar a filha. O senhor Barbosa que foi dar manivela

    depois de a ter visto e no se pde conter sem acender um charuto com cinta de oiro que

    queria guardar pr sada do espectculo. S quando estava quase a acabar de o fumar que

    se lembrou de perguntar se as incomodava o fumo. Que no, mas visto isso era altura de

    perguntar filha se tambm gostava dos Sinos de Corneville porm ela ficou toda

    encarnada, abaixou os olhos e a cabea e comeou a contar segundos com o p direito. A

    me que disse que ela tambm gostava e que tambm estava cansada por causa dos

    elctricos no andarem. E como nem a me nem a filha tivessem assim grandes desejos de

    conversar o senhor Barbosa j se estava arrependendo de ter acendido o charuto.

    - Ai que lindo, filha! disse a me quando acabou o disco. O senhor Barbosa voltou-

    se e aconselhou-a, ento para que no perdesse a soire no Asilo de Mendicidade, porque

    merece a pena e no assim uma coisa que se possa ver todos os dias... s de quando em

  • quando. A ultima vez, dizia o senhor Barbosa, que tinha sido ha mais de um ano e por

    acaso no mesmo Asilo de Mendicidade, e continuava crescente:

    - onde se v a educao de uma pessoa na msica. Eu adoro a msica! por

    excelncia a arte sublime! Mas espera... eu conheo esta cara no sei donde?! e ficou-se a

    fitar a filha franzidamente... No ha dvida! No me engano.

    A rapariguita ergueu os olhos para ele e outra vez muito ruborizada fez com cabea

    que sim. Bem lhe queria parecer ao senhor Barbosa que no lhe era estranha aquela cara.

    Era justamente a, na engomadoria.

    - Mas no porque ela precise, dizia a me com um felizmente, para se aperfeioar

    na arte a que ela se dedica.

    - A que arte se dedica sua filha, minha senhora?

    - Arte de engomadeira.

    - Ah! sim, fez o senhor Barbosa e ps-se a meditar a complexidade de passar a ferro.

    Contudo a me fez-lhe ver que a grande vocao dela era a musica, que aquilo era s

    ir ao teatro e cantar tudo, tudo, no dia seguinte desde manh at noite. Visto isto o

    senhor Barbosa no poderia permitir que ela esmorecesse da sua grande vocao e como o

    primo dele era ministro do fomento e tinha muitas relaes no meio teatral podiam, contar

    com o primo que era o corao mais bem feito de todo o mundo. Portanto que

    aparecessem l no escritrio a qualquer hora e quando quisessem porque lhe davam imenso

    prazer mas que no fossem l de quinta-feira que vem at outra quinta-feira seguinte

    porque se esperavam barulhos para esses dias.

  • III

    Dos domingos no gostava - sentia uma coisa que era amarelo para dentro e para

    fora que era sujo. E as portas das Igrejas fechadas depois do meio dia tinham a tristeza do

    que j no ha mais. Reparava que esta coisa das mercearias abertas com gente l dentro a

    aviar-se, e criadas de pantufas de ourelo com a garrafa do petrleo e um senhor de coco

    que comprou fsforos de cera, tudo lhe era preciso na alma e no sabia porqu mas sentia-

    o. E hoje, se no fosse a estreia das botas de cano alto, teria ficado na cama com certeza.

    A Avenida j tinha imensa gente, desta que s se v na Avenida. E ela sentada na

    primeira fila de cadeiras a desenfiar um a um os pinhes descascados da mulher do capil

    ps-se a rir para si de si prpria por ter pensado que a musica talvez fosse mais bonita se os

    msicos da guarda republicana no tivessem o chapu na cabea. Dois rapazes bem

    vestidos pararam defronte dela voltados pr coreto e um deles entusiasmado esticou um

    dedo e o brao em direco musica: Ouviste a tal nota que eu te dizia?... No achas bestial

    de boa? e como o outro tivesse dito efectivamente fazendo com a cabea muitas vezes

    que sim, ela ficou muito espantada a destrinar aquela celebridade musical apesar dos

    taces comidos; e quando eles j iam mais abaixo ps-se a procurar na musica uma outra

    nota que ela tambm achasse que fosse bestial de boa. Nesta altura uma mo foi buscar a

    mo dela que estava em cima dum joelho e voltando-se pr direita ouviu a musica acabar

    nos olhos contentes do senhor Barbosa que estava admirado de a ver por ali. Ela ficou um

    nada comprometida com a impresso de que estava a ouvir os Sinos de Corneville

    tocados por um barbeiro cuja flauta fosse a navalha de barba e o senhor Barbosa julgando-

    a ruborizada por causa dos pinhes que ficaram na mo dele depois de a cumprimentar

    sorriu-se e meteu-os uma na boca o que queria dizer mais alguma coisa.

    - A sua mam? - Ela ia para responder mas felizmente... - Quantos lugares deseja V.

    Ex.a? o senhor Barbosa disse um, mas voltou-se para ela e como j tivesse, disse outra vez

    um e que guardasse o resto para ele.

    Pouco depois levantaram-se e desceram juntos a Avenida e foi ento que o velhinho

    dos bilhetes comeou a compreender a marosca da gorjeta.

  • Quanto mais desciam a Avenida mais ela se ia sentindo mal com aquela mo

    impertinente do senhor Barbosa a apertar-lhe o brao e a falar-lhe to convictamente do tal

    primo ministro do fomento que se via perfeitamente que era historia. Era porque tinha tido

    muito que fazer por causa da declarao de guerra no era por se ter esquecido com

    certeza, que ele era muito atencioso coitado!

    - A sua mam? perguntou de novo o senhor Barbosa. Ela ia para responder quando

    se ouviram imensos vivas mesmo ali daquele lado. Escutaram, s se ouviam vivas; os

    morras eram impares. Escutaram melhor e ento todos queriam que a Frana vivesse e

    atiravam os bons ao ar. Outros davam cambalhotas e quando passavam ao p dos policias

    faziam achata o bque! Depois houve um viva guerra e toda a gente deu palmas, de cima

    das arvores, empoleirados nos elctricos, nos apertes e calados e descalos e policias e

    mulheres. O senhor Barbosa subiu acima de um banco ao lado dos canteiros e gritou com

    o coco a cair: Viva a Glia! E a multido assim lisonjeada ergueu em triunfo aos ombros o

    senhor Barbosa, que ia pedindo encarecidamente para que lhe apanhassem o coco.

    Por fim naquela falta de luz, ela apenas viu distante dela um policia que tinha um

    coco na mo.

    Contente por a multido lhe ter roubado o senhor Barbosa ia rindo para si num

    entrecortado de arrotos de pinhes da mulher do capil. Mas depois veio-lhe a tristeza,

    aquele aborrecimento que no se explica que s se sente, que d vontade de ir dormir para

    casa e ficar sempre, sempre a dormir e nunca mais falar a ningum. Meditava no mau passo

    que a me dera como o grumete do S. Rafael e recordava os tempos impossveis da

    engomadoria. E sentia-se uma eleita na infelicidade, nesta coisa de no querer viver e ter

    medo de se matar e ainda por cima o rapaz que a enganou tinha embarcado para Loureno

    Marques e tinha mandado dinheiro a uma dessas para se lhe ir juntar a ele . No que ela

    sentisse saudades dele ou de qualquer outro porque ela sabia muito bem que nascera assim

    sem poder gostar de ningum; para ela tudo era o que no lhe importava. Admirava-se at

    de se ter deixado levar por aquele maldito caixeiro que nem sequer tinha bigode. Mas

    tambm, pensava, se no fosse ele seria outro e ele foi exactamente um qualquer. No h

    teoria mais cmoda do que o fatalismo, porm, ela usava-o no por comodidade mas por

    temperamento indiferente. As trovoadas se eram de dia achava ela que deveria ser noite

    por causa dos relmpagos mas se eram de noite achava estupidez tanto barulho com tanta

    vontade de dormir. Para ela no havia diferenas de espcie alguma - nunca quis mais aos

    garotos por andarem descalos nem lhe invejavam as que tinham automvel. Mesmo esta

    coisa de almoar e jantar era s se tivesse fome, de resto dormir que era bom. A vida no

    lhe era muito difcil nem to pouco muito fcil era justamente aquilo - como um carro do

  • Dafundo que vem Rotunda e volta depois pr Dafundo. E diga-se de passagem o

    caixeiro tinha-lhe feito um grande favor. E como era assim uma mida que entra facilmente

    no gosto de toda a gente e s l de vez em quando que precisava de umas brise-brise

    mais modernas ou umas fitas de cetim para enfeites de camisas no teria que se esfalfar

    muito e bem pelo contrario era rara a noite em que no rezava sozinha o seu Padre-Nosso

    no quarto independente com porta para escada.

  • IV

    Eu tinha-a encontrado quando passava e tinha-lhe dito boas-tardes porque me

    pareceu que ela precisava de que algum que ela no conhecesse lhe desse as boas-tardes. E

    assim foi. Ela teve um sorriso que eu no gostei mas que era precisamente o que ela devia

    ter depois de eu lhe dar as boas-tardes. Nada me encantava nela, nem aquele arremedo da

    moda to ingnuo e inconsciente que lembrava os quartos andares na Estefnia ou os

    prprios figurinos desenhados que vem de Paris, nem o seu qu de jovem que brilhava na

    saliva por entre os dentes, nem mesmo o seu incgnito que no iria alm de um par de

    meias de seda estreadas a semana passada.

    Tudo nela tinha um limite de grande saldo ou de abatimentos por motivo de obras. A

    no ser os olhos que tinham uma cintilao meridional de beira-mar com dramas de

    marujos daqui a alguns anos, a sua boca e o seu nariz e toda a sua proporo tinham uma

    bitola resumida que nem d direito a reforma. E da, poderia ser! mas nem foi a curiosidade

    que me deteve foi aquilo de eu lhe dar as boas-tardes e seguir. Mais adiante tive vontade de

    voltar atrs, mas nem me lembrava dela, e voltei. Foi ela quem me deu as boas-tardes e

    com um sorriso que lhe mudara completamente toda a figura. Chegou-se perto e disse que

    me conhecia da Figueira da Foz e se eu ainda namorava aquela menina que era to loira e

    to galante. Naquele momento eu tive a impresso de que a Figueira era o nico stio do

    mundo inteiro onde eu nunca tinha estado mas quando ela me perguntou pelo Marques o

    senhor meu pap no tive outro remdio seno dizer-lhe que estava muito bem e que se

    recomendava. Disse-me com as mos nas ancas que no desfazendo achava o Marques

    senhor meu pap um personagem ilustre e tirou as mos das ancas. O que era pena era ele

    ser to jogador mas tambm isso no era o que lhe iria fazer moa nas rendas. Perguntou-

    me se ele ainda usava monculo e quis certificar-se se era no esquerdo se no direito que ele

    costumava usar e apesar de eu lhe ter dito resolutamente que isso era conforme o seu

    estado de espirito ela disse que pois a ela lhe queria parecer que era no esquerdo.

    Quando depois de vrios quiproqus de comdias em trs actos eu lhe respondi

    sobre as grandes fortunas e vrias do Marques senhor meu pap ela meteu pelintramente o

    pedido de trinta ris pr elctrico. Devia ter sido um belo ponto final mas os tais trinta ris

  • no eram pr elctrico dela eram pr elctrico onde eu fosse com ela porque s tinha trinta

    ris.

    - Ento vamos j!

    A meio do Alecrim apeamo-nos. Ela mexeu em chaves que riram uma satisfao que

    era dela; por enquanto eu era apenas o filho do Marques senhor meu pap. No segundo

    andar era uma cancela, depois uma porta, outra porta e ainda a porta do quarto dela. Havia

    chaves para tudo e a mezinha de cabeceira tinha seis gavetas com chaves diferentes. Depois

    uma senhora com avental de dona de casa vem trazer um grande molho de chaves

    pequenas e que muito obrigado, mas que nenhuma serviu, que eram todas pequenas. A

    minha primeira impresso que era um quarto de cama vulgar excepto um retrato de

    senhor e careca com uma dedicatria a tinta roxa e assignada - Amigo e Senhor Barbosa.

    Em cada um dos quatro cantos do retrato estava um prego e em cada prego uma chave

    com fitas de seda com as cores nacionais. Ela veio fechar a janela e a senhora com avental

    de dona de casa voltou com outro molho de chaves ainda mais pequenas e que tambm

    agradecia e que tambm no serviram e que tambm pacincia. Sentei-me cautelosamente

    numa chaise-longue mas ela veio a correr e pedindo-me desculpa levantou a capa da chaise-

    longue e meteu para dentro de uma gaveta onde havia mais molhos de chaves de todos os

    tamanhos todos os molhos de chaves e chaves soltas que estavam espalhadas pela chaise-

    longue. Sentei-me numa poltrona ao lado mas fiquei fortemente magoado nas costas e nos

    quadris; ela veio a correr pediu-me mais desculpas e levantando a capa da poltrona tirou

    vrios molhos de chaves de diferentes feitios, mais ou menos ferrugentas, mais ou menos

    polidas. Em cima da mesa de p de galo havia uma carta registada de Loureno Marques e

    pelo pedao do envelope que estava rasgado li quase sem querer por este paquete s te

    poderei mandar setecentas e trinta e oito chaves... De repente ouvi rumor debaixo da cama

    e ela disse com um toco no sobrado: saia da, Romeu! e logo saiu um gato cor de chave

    com um molho de chaves guisa de coleira.

    Depois deu-me a curiosidade para lhe ir espreitar as toilletes no guarda-vestidos mas

    o guarda-vestidos era uma srie de prateleiras com chaves numeradas e j devidamente

    classificadas e postas cardinalmente pelas alturas desde a minha chave do estojo da rabeca

    at s chaves de So Pedro. A certa altura ela tinha sado do quarto, dei com os olhos numa

    caixa de lata relativamente pequena e relativamente pintada de verde-escuro com letras

    brancas escrevendo chaves. Abri a caixa e qual o meu espanto quando a vejo a ela,

    sentada l dentro a gritar envergonhada para que eu lhe fechasse a porta! Bom, fechei.

    Chego-me junto da cama levanto as roupas e zs, uma chave da altura de um

    mancebo apurado para cavalaria. A prpria cama se a gente reparasse bem era um pedao

  • de uma chave de que eu tambm fazia parte. Cansado j deste ambiente e at com medo de

    tudo isto fui abrir de novo a caixa de lata para lhe pedir que se aviasse mas, longe do que eu

    queria, comearam a transbordar chaves e mais chaves desta vez todas iguais. E j estava o

    oleado todo coberto de chaves e ia crescendo o monte cada vez mais e at j nem podia

    mexer-me com chaves at ao pescoo quando ela entrou e to serenamente por cima de

    todas aquelas chaves como se no fosse nada com ela at que lhe perguntei quase louco a

    razo de tantas chaves.

    Afinal era para brincar aos soldadinhos, mas disse-me muito apoquentada que no

    lhe fizesse mais perguntas porque ultimamente andava muito desgostosa da sua vida.

  • V

    Ela acordou com a passagem do primeiro elctrico. Foi ao espelho esfregar os olhos

    e abri-los muito. Arranjou um carrapito desmanchado e descerrou as janelas com os

    operrios da obra defronte ao sol. A outra banda tinha um aspecto saudvel de outra coisa

    qualquer onde se pode estar e foi beber um gole de cognac na mezinha de cabeceira toda

    semeada de pontas de cigarros. Havia nela uns remorsos distingidos de no ter sido

    elegante e tinha uma quebradela pelos joelhos que lhe fazia apetecer outro gole de cognac

    para fortalecer.

    Comeou de pr carmins nos lbios exageradamente e depois ouvindo a voz da

    peixeira que era a dela veio debruar-se no parapeito a gritar para baixo a como era a

    sardinha. Como estava toda nua puxou um lenol da cama embrulhou-se descuidadamente

    e foi ela prpria abrir-lhe a porta e que entrasse que no estava mais ningum. Que at

    podia vir pr quarto dela e que talvez fosse melhor. A princpio achou muito caro a sete

    vintns a dzia e como reparasse no retrata do senhor Barbosa careca e com tinta roxa

    despregou-o dos pregos e deitou-o para debaixo do sof. Continuou a achar muito caro a

    sete vintns a dzia e olhando fixamente os olhos da varina deixou cair o lenol que at

    parecia sem querer e ofereceu-lhe a dois tostes a dzia com a condio de comprar o

    peixe todo e ainda a de almoar com ela. A varina mexeu as ancas numa arrelia de que j

    no era a primeira vez que lhe sucedia aquela chatice mas ela correu pr varina e beijou-a na

    boca que at lha deixou magoada. Num pice correu a fechar a porta chave por dentro e a

    cerrar de novo as janelas sobre as obras ao sol. Quando o sol da a pouco bateu do lado de

    c e entrou pelo quarto at cama j se no sabia bem qual das duas era a varina - eram s

    pernas nuas e seios a reluzir na saliva. S se ouviam gemidos de cansadas at que o gato

    entrou fortemente convulsionado nas agonias de uma indigesto de sardinha.

    Quando o senhor Barbosa meteu a chave porta e achou o silncio abafado daquele

    quarto meio-iluminado teve a impresso que ela tinha posto um espelho muito grande ao

    comprido sobre a cama e que depois se tinha deitado toda nua com o ventre para baixo.

    Achou estroinice mas no quis bulir o silencio; sentou-se junto da porta a observar. Esteve

    assim perto de meia-hora a gozar aquele Paris-salon mas no se pode conter e foi p-

    ante-p e de chapu na cabea depositar-lhe um beijo mesmo no meio da espinha vertebral.

  • Depois o senhor Barbosa teve um estremeo que sentiu em todo o invlucro do corao

    como se fosse um murro atirado de dentro para fora; comeou a chorar visivelmente e

    tirando o chapu saiu violentamente desgostoso tendo tropeado na canastra vazia.

    Como j fossem duas horas da tarde e alm disso houvesse j muita gente no Rocio

    para uma imponente manifestao s naes aliadas, no quis perder o rendez-vous

    quotidiano e decidi-me a ir ter com ela. A porta estava encostada e estava escuro l dentro.

    Olhei. Tive a impresso que ela tinha posto um espelho grande ao comprido sobre a cama

    e que depois se tinha deitado toda nua com o ventre para baixo. Achei estroinice mas no

    quis bulir o silencio; sentei-me junto da porta a observar. Havia assim disperso pela meia-

    luz como que um cheiro a porto de mar e que fazia frio no peito l em cima no

    tombadilho; desci de novo os olhos sobre a cama e senti-me melhor confortado na cabine

    mas tive um sobressalto como se eu me tivesse enganado e tivesse entrado na cabine da

    sueca que eu namorava. Foi um escndalo a bordo e o prprio marido da sueca chegou a

    partir o cachimbo no ombro do comandante. Depois nunca mais vieram jantar com a

    sineta, era sempre antes ou depois. Um dia o sueco estava mesmo borda a ver os

    golfinhos a saltarem dentro do binculo veio a mulher dele e deu-lhe um empurrosinho

    que foi logo uma tragdia por afogamento. Passados tempos voltou o senhor Barbosa de

    chapu na mo, e os seus olhos tristes tambm tinham o chapu na mo. Havia nele uma

    tragdia submarina que dava a perceber ali qualquer empurrosinho fatal. Havia mesmo at

    um descorajamento que poderia (quem sabe) ter analogias com o incndio do Deposito de

    fardamentos. Adivinhava-se-lhe na gravata negra e despreocupada uma indiferena pela

    gloria de vir a falar nas cmaras, um despeito pela sorte de ser presidente da Propaganda de

    Portugal e scio das comisses de vigilncia.

    A Ptria mesmo, neste instante, era lhe desinteresse quaternrio. Quanto mais se vive

    mais se aprende, pensava, e tambm pensava que felizmente estava armado porque sentia a

    browning no bolso de traz entre a ombreira da porta e a ndega direita. S tinha pena de

    deixar o seu lugar de alferes miliciano talvez a algum incompetente. Sentia que afinal a sua

    vida tinha ficado careca ao mesmo tempo que ele prprio mas morreria com o orgulho de

    ter sido um dos maiores apologistas dos Sinos de Corneville. Na cama houve um

    minsculo movimento e ela disse para mim e pr varina num contentamento de sorte-

    grande: Ainda bem que o estpido do Barbosa no se lembrou de vir. Depois uma senhora

    de avental de dona de casa veio trazer um molho de chaves e que muito obrigada mas que

    tambm no serviram. Imediatamente se ouviu um berreiro na escada que dizia que dois

    ainda se admitia, agora, trs que era demais. E a senhora de avental de dona de casa fechou

    a porta.

  • VI

    Estar em Sintra agradvel no pelo facto de se estar em Sintra mas pelo facto de se

    poder dizer que se est em Sintra. E tambm porque um incidente to provisrio como a

    prpria vida; o definitivo que desconsola ainda que surpreendente saber-se que o

    definitivismo absoluto no existe ou que dispensvel como o artigo de fundo do jornal

    que se compra porque se no lem os jornais ha muito tempo. E verdade tinha Santo

    Agostinho em afirmar que tudo se paga neste mundo - um jornal de vintm tem pelo

    menos uma torre de marfim e os de dez ris depois da quarta pagina ainda tm mais duas

    de anncios.

    - O senhor tem bilhete? voltei-me e percebi uma figura de fato escuro que por um

    sinal que trazia perto do bigode era com certeza o revisor; e eu que j ia nas ultimas linhas

    das ultimas noticias com canhoneio em Verdun, desloquei-me de repente para muito mais

    perto de mim - na nica linha para Sintra com uma folha solta de dicionrio onde o revisor

    queria dizer indivduo que rev os bilhetes dos comboios e que usa fumos no bon de pala

    e um sinal de cabelos no queixo.

    Ao lado falavam ingls-sem-mestre e eu para escutar melhor fingia ler a crnica do

    bem quando de repente li no jornal no sei onde o meu nome inteiro justamente quando

    o comboio parava na Amadora. Outra vez o meu nome mas desta vez era uma senhora

    chic e loira que ia diante de mim e que lia em voz alta o nome de uma cautela de prego que

    tinha encontrado no cho.

    - Perdo, minha senhora! fiz eu com certos acanhamentos de sangue-frio

    propositado, esse nome de meu irmo; e foi ele quem pagou os extraordinrios juros

    daquele emprstimo. Desde ento a senhora chic e loira comeou de olhar para mim como

    eu queria que ela me olhasse antes de me ter notado a cautela de prego e deixou cair o

    leno e a malinha, e o leque e a sombrinha, e no deixou cair mais nada porque em Belas

    apeou-se o magote do ingls-sem-mestre. Infelizmente da a Sintra foi um instante e nem

    houve tempo para ver a paisagem bonita ao p do Cacm; apenas posso garantir que quase

    me chegaram as lgrimas raiva por o tnel do Rossio iluminado e grande no ser no tnel

    de Sintra pequeno mas s escuras Que em Sintra no lhe falasse porque era casada na

  • Estefnia todos os veres com um titular de dinheiro mas que fosse pelos Pises todas as

    noites ou aos Seteais se fossem de luar.

    Quando cheguei vila tive a triste notcia de que tinham assassinado o barbeiro por

    questes de altas finanas do estado em que ele como revolucionrio civil estava envolvido

    com destaque; porm, a noticia no foi to desoladora que eu no soubesse quase

    imediatamente e sem perguntar nada a ningum que o infeliz barbeiro era nem mais nem

    menos que o titular de dinheiro casado na Estefnia com uma senhora chic e loira. At

    adiantei os meus psames ao jantar e fui pessoalmente garanti-los desolada viuva que

    andava pelas diagonais da sala de visitas a fazer figas e a dar vivas republica com lgrimas

    e sapateados de irremedivel. A minha presena deu-lhe duas coisas bem ntidas e

    proporcionais nestas ocasies aflitas - alento e alarido. E avanando para mim toda erguida

    pr frente com os braos rgidos no ar veio repousar a cabea sobre o meu peito que at

    me desbotou a gravata azul pr colete branco. Todos os seus solavancos de desesperada

    iam desfalecendo lentamente numa alegria intima que data de antes de Afonso Henriques:

    rei morto, rei posto. Se fssemos to independentes como o nosso estmago no teria eu

    tido a necessidade de me despedir com tanto apetite de me ver livre daquele

    sentimentalismo (alis to humano) para ir jantar sozinho mesa estrangeira do Laurence's

    Hotel; mas a verdade que quanto mais no fosse isto j era uma razo de ter vindo para

    Sintra.

    O criado disse-me o menu com muita pena do barbeiro e que considerava o

    assassinato um vandalismo mas que se eu no quisesse potage la valencienne tambm tinha

    pur de legumes la mexicaine. Pobre barbeiro!

    E eu j tinha remorsos de que talvez o tivessem assassinado no momento preciso em

    que ela lia o meu nome na cautela de prego que me cara do bolso. Mas fosse pelo que

    fosse a sopa vinha a escaldar e no se sabia ainda quem foram os assassinos e agora v se l

    saber... E verdade que seria to difcil dar com o paradeiro dos malfeitores que a ele j se

    lhe afigurava um fcies to criminoso como o do revisor da linha de Sintra de quem eu

    seria testemunha da sua inocncia to evidente como os fumos no bon de pala ou o sinal

    de cabelos no queixo. E at ao arroz tive tempo de meditar na falibilidade da justia atravs

    dos tempos at ao assassinato do barbeiro em Sintra no Castelo dos Mouros c em baixo

    ao lado da cisterna. A prova que tudo tem razo de ser neste mundo que eu j estava

    observando que efectivamente o Castelo dos Mouros este vero tinha a barba por fazer.

    Depois veio galantine de perdiz e um envelope fechado na outra mo e era para mim.

    Era a senhora chic e loira que me mandava dizer que naquele lance fatal tinha medo de

    ficar sozinha de noite na cama e portanto que me demorasse a jantar que ela viria ainda

  • prs doces. Estas coisas para uma sensibilidade como a minha que s sabe resolver as

    coisas depois de resolvidas fizeram-me pensar profundamente enquanto pasmava os olhos

    numa reproduo litogrfica do Imperador da Alemanha to embaraado como eu neste

    assumpto diplomtico. Imediatamente tive uma boa ideia que nunca mais me lembrou por

    ter entornado sobre a toalha branca meia garrafa de vinho verde que ficou a alastrar-se

    como o azar a denunciar-me de estar pensando em dormir com uma viuva sem saber se

    sim ou se no. Ainda no eram os doces e ela entrou com a salada. Trajava rigorosamente

    de luto mas o apetite do seu sorriso e o cinzento das olheiras pintadas trajavam

    rigorosamente de adltera. No quis caf - o seu estado de esprito apoquentado e triste

    preferia uma garrafa de champagne. Comeou a declarar-se-me absolutamente desiludida

    sobre a morte do marido e de tal maneira que as lgrimas rebentaram-lhe espontaneamente

    por eu ainda no ter acabado de jantar.

    Contou por alto a histria do seu infeliz marido que era estabelecido com loja de

    barbeiro na Praa da Alegria, loja muito conhecida e estimada de todos por servir de sala de

    espera quando os elctricos no andavam e que ainda por cima tocava no gramofone os

    Sinos de Corneville e de graa. Disse-me tambm uma histria de uma filha que tinha em

    Lisboa e que um malandro qualquer tinha tirado da engomadoria onde trabalhava para

    viver custa dela e ainda por cima obrig-la a fazer indecncias com as mulheres do peixe.

    E demais, seguia, tendo tido um bom conselheiro como era um sujeito careca que eu havia

    de conhecer de vista com toda a certeza e por sinal at se chamava senhor Barbosa e ainda

    por cima era primo do primo dela que era ministro do fomento do Terreiro do Pao. O

    criado fez estalar a rolha do champagne num arrepio meu que parecia o ultimo suspiro do

    barbeiro ou o estalo da corda partida do gramofone dos Sinos de Corneville. A histria

    era muito triste e ainda mais extensa que a garrafa de champagne mas enquanto o criado me

    aconselhava o puding de cozinha que estava delicioso, que at tinha sido feito pelo Augusto,

    ela prometeu beber outra garrafa de champagne no s para acompanhar com o puding

    como para esquecer aquela infelicidade que lhe cortava o corao s tiras de salame com

    uma navalha de barba com trinta anos de servio.

    Depois do caf fomos distrair pr quermesse. A mim a quermesse pareceu-me uma

    quermesse e a ela pareceu-lhe um pio. Confessou-me que aquela boneca de vestidinho

    azul tinha um ar muito engraado; um ar que era muito peculiar ao marido todos os

    sbados meia-noite quando fechava mais tarde. Depois afastmo-nos da quermesse, sem

    dar por isso e ela ia-se-me confessando sugestionada pela ideia da morte; que sempre tivera

    uma enorme simpatia pela obra do Dumas pai e a do filho e perguntou-me se o Dumas

    gravador era da mesma famlia. Gabriel Dannunzio no conhecia mas havia outro poeta

  • que a fazia chorar e por quem daria a prpria honestidade de viuva desolada talvez

    condenada a ter que procurar outro barbeiro mas que no tivesse poltica partidria. Esse

    outro poeta, dizia ela numa contoro de trgica cinematogrfica ao mesmo tempo que me

    pisava um calo, era eu, era eu e mais ningum. S eu o preferido das vivas dos

    barbeiros! O poeta maior que os Dumas todos, mesmo superior ao Dantas e ao Noivado

    do Sepulcro. Mas por fim estreitando-me num abrao declarou que realmente o que ela

    estava era bbeda e sem mais nada comeou a correr pela escurido e pum... um tiro! Fui

    ver. A tresloucada criatura numa dor cruciante e fatal tinha acertado no umbigo, num

    instante de revolta, uma bala que a pusera repentinamente horizontal com a cabea sobre

    uma bosta de boi.

  • VII

    Ultimamente inquietava-me por ver que o porteiro fazia m cara quando saam da

    quarto dela magotes de varinas que vinham afogueadas. Apoquentei-me mais quando uma

    tarde em que eu entrava no quarto dela esbarrei com um ano sebento que ia a sair. De

    feito, ela j nem se queria levantar da cama - gostava de almoar, jantar e fazer tudo ali sem

    ter que se vestir. As contas da farmcia s tinham ampolas de morfina. Um dia o senhorio

    mandou-me chamar e tendo-me dito que tinha imensa considerao por mim estava,

    porm, absolutamente disposto a no consentir naquela indecncia de varinas e senhoras

    casadas e meninas de lbios pintados at para cumulo s vezes casais de garotos de ps

    descalos. Efectivamente ela transformara em absoluto o quarto independente com porta

    pr escada: Bons tapetes de cores escuras, lmpadas elctricas de todas as cores, gravuras

    de ninfas perseguidas por faunos, apologias da inverso a cores e em todas as posies, e as

    gavetas da toilette em vez de vestidos e roupas s tinham batons de maquillage e frascos

    de todos os tamanhos com aparncias de mais de cinco mil ris. Uma vez riu-se muito e

    como grande novidade levantou a camisa e mostrou-me no ventre um contorno de sexo

    masculino que ela, prpria tinha desenhado a encarnado e enchido de verde esmeralda.

    Quando eu voltei de Sintra a senhora de avental de dona de casa veio contar-me que isso

    tinha sido um grande desgosto para ela que nem sequer nunca mais recebera varinas nem

    mesmo at o guarda-porto. E dizia-me que ela, coitada, via-se bem que era minha amiga

    porque era ver que apenas eu chegasse era certo ela receber outra vez as varinas, os pinocas

    e a filha da senhora Baronesa. Um dia fiz-lhe ver que ela j estava na cama havia perto de

    ano e meio e que portanto tomasse cautela. Ela foi at janela e logo a primeira impresso

    foi de que o Alecrim que dantes subia pr aquele lado agora era ao contrario subia pr

    outro lado. E depois numa festa gentil pediu-me encarecidamente para eu lhe ir arranjar

    aquela pretinha das cautelas que tinha muletas, e foi de tal maneira gentil o seu pedido que

    eu no tive outro remdio que o de ir ajudar a pretinha a subir a escada para descansar um

    pouco no quarto independente com porta pr escada.

  • VIII

    Cada vez creio mais que a vida obedece a um princpio quadrado que se resolve

    dentro desse prprio quadrado e fora dele em xadrez. Por isto que o quadrado sempre o

    mesmo e inconstante de posio as transparncias lucidam-se em diagonais galgando.

    Teoricamente irrealizvel de planos que apenas praticamente existem moveis na fantasia.

    O qu disto a incompreenso em todos. Eu quero explicar: Todos os sentimentos so

    conscientes e inconscientes e simultaneamente! Assim, eu posso ter imediatamente a

    conscincia de um sentimento que acordou na minha inconscincia e logo essa conscincia

    pode vir a definir-se to nitidamente que se resolva em absoluta inconscincia.

    Nada, absolutamente nada, em todos os tempos comum ainda que se restrinja a

    uma nica sociedade e definida. Esta coisa de haver uma lei que tenha a vaidade de se

    impor a todos to irritantemente estpida como a de haver uma s medida para todos os

    chapus.

    Tudo o que eu estou dizendo de tal maneira a expresso da verdade que o prprio

    leitor h-de ter certamente reparado que no percebe nada do que eu venho expondo.

    Pois foi ontem mesmo que o senhor Barbosa me deu a honra de me apresentar sua

    Ex.ma esposa. E de tal maneira eu no quis crer que foi esta a primeira vez que tive

    considerao pelo meu amigo senhor Barbosa.

    Comemos pela rebelio da Irlanda depois derrotmos os turcos da sia-Menor

    mas quanto aos destinos das nossas baterias Canet, a Ex.ma esposa do meu amigo apenas

    sabia que o sol de Lisboa fazia-lhe apetecer um duche de sorvetes. Entretanto como a

    conversa do senhor Barbosa no tivesse jeitos de recuar em Verdun coube-me a sorte de

    convidar sua Ex.ma esposa pr que quisesse tomar c mais perto de ns, no Martinho. A

    greve dos carroceiros era pr senhor Barbosa to infame como a violao da Blgica e

    sempre que por azar havia de fechar um perodo dava um viva Frana sem pestanejar. A

    Espanha tambm se tinha portado mal, no sei como, com o meu amigo senhor Barbosa e,

    em verdade, j era com uma certa razo que apetecia outra salsa com sifo sua Ex.ma

    esposa. E talvez porque em Espanha haja muitos germanfilos (a maioria!), coube-me

    ainda minha pessoa o convite pr segunda salsa.

  • - E depois, dizia-me o senhor Barbosa, no sei se sabe que os alemes no so nada

    decentes. Ora esta frase que a princpio me pareceu descabida tinha afinal razo de ser

    porque sua Ex.ma esposa retirou suavemente o p de cima da minha bota. Como exemplo

    de mulheres honestas apontava com os braos erguidos o meu amigo as russas, as de Viseu

    e as aliadas. - Estas, sim, fanatizava-se o meu amigo, estas sabem ser mes quando mandam

    os filhos prs fronteiras para defender a Ptria! e dizia esta ultima palavra com um A to

    sonoro que pareceu-me terem os carroceiros grevistas apedrejado as vitrines do caf. Os

    alemes, segundo o senhor Barbosa, tinham de fugir s mes para irem para debaixo das

    patas do Kaiser, e entornou meia salsa com sifo com uma palmada bem aberta sobre o

    mrmore cheio de cinza.

    - Veja o meu amigo as francesas que mesmo quando so cocotes sabem de cor a

    Marselha! O senhor Barbosa falava to gesticuladamente que um senhor da Baixa que tem

    tabacaria e chapu de palha e uma aparncia melhor que ele-prprio chegou-se mesa e

    disse baixinho ao ouvido do meu amigo:

    - O gajo germanfilo?

    Ento o senhor Barbosa entesou-se num destes nos que querem dizer - 'ts doido! e

    eu juro que nunca mais esquecerei este meu amigo que me salvou da morte. Entretanto sua

    Ex.ma esposa retirava pela segunda vez e mais suavemente ainda o seu p pequenino de

    cima da minha bota.

    Depois houve um silncio exttico com o criado a perguntar se o tinham chamado e

    o meu amigo senhor Barbosa virando-se repentinamente pr porta chamou muito alto:

    Marcos! e preveniu como quem no quer ter remorsos e com o brao o mais alto que

    podia: no penses nisto, hein!? Era a minha inocncia. Ainda houve um segundo silncio

    exttico, sem o criado a perguntar se o tinham chamado, mas no contente o meu amigo

    foi a correr e ainda agarrou esquina do Rugeroni o tal senhor da Baixa que tem tabacaria e

    chapu de palha e uma aparncia melhor que ele-prprio. Eu queria seguir todos os seus

    gestos para perceber dali de dentro do caf aquela segunda confisso do meu dedicado

    amigo senhor Barbosa mas sua Ex.ma esposa comeou a observar mexendo o meu relgio

    de pulseira e sem olhar para mim disse que eu tinha uns olhos muito bonitos. Ainda julguei

    que fosse outra salsa que ela quisesse mas no, desta vez era caf com leite. Perguntou

    quem me tinha dado aquela pulseira to gentil e quando eu lhe disse que foi uma alem ela

    escondeu um lacinho preto, amarelo e vermelho que tinha pregado no lado direito com

    uma andorinha azul de esmalte.

    - Ento o senhor germanfilo?

    - Tambm tenho um pijama de seda que me deu uma senhora francesa.

  • De repente o senhor Barbosa entrava no caf e sua Ex.ma esposa virando-se para

    mim disse-me apressadamente como se fosse o final de uma conversa que tivesse

    forosamente de ser acabada: Ento aparea hoje meia noite em ponto que o Barbosa

    est nas comisses de vigilncia. E o senhor Barbosa com ares de ter tido uma luta

    movimentada mais do que permitia a fora humana sentou-se limpando o suor da testa

    num alvio: Felizmente est tudo resolvido! e voltando-se para mim declarou-me que

    meia-noite ia jurar a um stio secreto que eu no era germanfilo.

    As avenidas ali naquele s stios mal iluminados faziam-me, no sei porqu, lembrar

    dos apaches de Paris. As linhas dos elctricos brilhavam vazias e o guarda-nocturno com as

    mos nas costas, pensando talvez no almoo de depois de amanh, fitava vagamente o

    zimbrio mais perto da praa de touros que lhe parecia uma cabaa de dois litros e meio de

    tinto. Eu s tinha frio na cara onde acabava o coco e comeava a gola levantada do casaco

    e pensando se por acaso teria as meias rotas, cada esquina que eu dobrava me parecia que

    eu ia do escuro para um quarto iluminado onde estivesse uma mulher em camisa a pr o

    despertador prs horas em que acabassem os seres das comisses de vigilncia. Como

    sentisse mais frio em cheio nas faces lembrei-me com mais frio ainda que aquele muro

    cinzento com as ameias quadradas j tinha sido jardim zoolgico com lees que comem

    carne sem ser cozida. Afinal nem era da Nordisk, era da Sines aquela fita da domadora que

    era assassinada pelo prprio marido dentro da jaula dos tigres. Do lado das tabernas veio

    uma brisa sumida e morna de fadinho de melenas com questes revolucionarias; o prprio

    ramo de loureiro pregado na porta tinha um movimento indeciso de se querer raspar. Mais

    adiante que eram as letras F. G. H. To enigmticas como mane, tessel e fare... to

    atarracadas e luzidias como o meu amigo e careca senhor Barbosa. Um patamar, dois

    degraus, mais outros dois degraus, trs lanos para traz e para diante sempre a subir, a

    porta da rua encostada... um candeeiro de petrleo em cima de um mxo de cozinha l

    onde acabava a passadeira verde do corredor e muitos cheiros a p de arroz, esquerda,

    depois de uma canelada num caixote lacrado com Viseu em cima e cautela em baixo.

    Depois muita luz, muitos biombos, muitos retratos a carvo assignados Fonseca, muitos

    espelhos, muitos lacinhos frisados e ela na cama quadrada a fingir que dormitava numa

    gracinha travessa de camisa curta pelas virilhas e pegas de rapaz muito justas no cor de

    rosa duro. Antes de chegar cama havia um papel no meio do cho e escrito a lpis - era a

    conta da engomadeira... sete colarinhos 37, dois 39 e um 40, marca Wagner. No fim da

    conta em ar confidencial dizia sublinhado: conta particular de madame Barbosa. Apaguei

    de repente a luz e comecei a atirar pr lado o casaco, o colarinho, a camisa e talvez porque

  • tivesse atirado um pouco mais alto as calas tive o desprazer de ouvir um acorde de piano

    em d maior e fuga do gato assustado.

    Acordei com um tiro dentro do quarto. O senhor Barbosa tendo aberto a janela dava

    tiros queima roupa no belo ar da manh enquanto gritava para a cama os maiores insultos

    premeditadamente hostis. Enfim, nem tive tempo de me vestir descansadamente nem

    sequer de fazer a toillette e at perdi um mao por encetar de La Deliciosa com uma caixa

    de fsforos de cera de luxo com senha e tudo. Quando cheguei rua tinham comparecido

    ali um sem nmero de revolucionrios civis que em nome da lei me intimavam a entregar-

    me priso por ter incorrido no crime de ser germanfilo na pessoa de um funcionrio do

    Estado e casado.

  • IX

    Nesse dia de Agosto com toda a gente nas praias, Lisboa tinha o aspecto nu e vazio

    de um ascensor parado que j no funciona. E eu que sentia isto do agosto de Lisboa,

    refrescava-me do calor e do tdio que ascendia por mim acima at nitidez de ser a

    expresso exacta de estar desempregado de mim prprio. E concordava que isto de se

    existir para provar que o tdio existe em Portugal, todos os meses e todos os dias,

    continuava a ser tdio porque j estava provado desde a fundao da monarquia lusitana.

    E quantas vezes sem se saber porqu a gente pensa na batalha de Alccer-Quibir

    quando estamos espera da resposta e do galego! E tambm, como quase sempre sucede,

    chega sempre primeiro que o galego um amigo que esteve na escola connosco e apesar

    disto nunca esteve na escola connosco.

    E pergunta-nos como estamos quando ns apenas nos lembramos de termos tido

    bexigas brancas com cales e perna vela. Todavia se erguemos os olhos para ele

    reconhecemos naquela cara estupidamente alentejana o primeiro classificado nas

    matemticas do nosso curso. Justamente como o meu amigo Cunha que janta fora por

    pandega, este antigo condiscpulo era a manifesta metamorfose daquela imbecilidade. O

    que um facto que se eu no tivesse resolvido graficamente esta ligao no teria tambm

    explicado o ter pensado ha pouco na funesta batalha de Alccer-Quibir. E de tal maneira eu

    cria nesta transmisso de pensamento que fosse pelo que fosse o galego no se poderia

    chamar seno Sebastio.

    Ele, o condiscpulo, ainda estava diante de mim com todas as suas reminiscncias da

    escola to alentejanas como ele at que abriu muito os olhos numa falta de lembrana que

    era minha:

    - No te lembras do Sebastio?

    - Qual? o galego?

    - No!

    - Ah! sim... o outro. O outro era ele com uma imbecilidade trigueira que teve o

    mximo na classificao das matemticas do meu curso e ainda que o galego j pudesse

    deixar de ser Sebastio, este Sebastio era galego com certeza.

    - Ento o que fazes agora?

  • - Sou engenheiro. E esta blague deu-me logo as vantagens de poder ter sido

    educado na Alemanha ainda que estava j resolvido a no dar gorjeta ao Sebastio pela

    demora to demasiada que me parecia j um condiscpulo que eu no via desde a escola

    essa carta que eu esperava impertinente.

    - Pois eu estou no Algarve... (tinha-me enganado, era o Algarve)... nas herdades de

    meu pai prximo de Olho.

    - A senhora manda dizer que o no pode atender porque chegou um primo dela do

    Algarve, que veio de Olho, disse o galego num segredo que metia x. em todas as palavras.

    - Bom, quanto ? que no podia ser menos de dois tostes e se no fosse o

    condiscpulo podia ter a certeza que ningum lhe pagava o dobro do que pedia num gesto

    to milionrio.

    - Ento adeus! Vais para cima?... tenho pena, eu vou para baixo. Adeus.

  • X

    Talvez que o leitor no saiba mas eu tambm sou conhecido como caricaturista.

    Outros dizem que eu tenho maus costumes, mas isso para me arreliar, Ora tendo-se dado

    o caso extraordinrio de no dia 7 de Abril de 1800 e tantos ter havido uma trovoada sobre

    o paquete e o comandante logo essa manh ter mais um passageiro a bordo quando todos

    eram unanimes que tinha cado uma fasca na sala de jantar, o resto da viagem fez-se em

    sobressalto continuo. Todas as noites os fenmenos fosfricos se intensificavam

    perturbantemente apesar do dr. alemo ter revelado a existncia de animlculos onde

    predominava essencialmente o iodo. Os companheiros de viagem conheciam-me l entre

    ele s por o recm-nascido. Depois desta a maior trovoada a que eu assisti foi em Campolide

    quando estava fechado chave de castigo na retrete dos professores. Eu era tido como

    elemento indisciplinvel e perturbador at ao dia em que um frasco de tinta verde se

    entornou por cima do livro de missa quando eu estava a copiar um Cristo gravado que eu

    achava muito bonito. Nesse mesmo dia fui expulso por causa dum amigo meu que foi

    esconder as bolas de bilhar que ainda se no tinham estreado dentro das bolas de bilhar que

    j estavam muito velhas. Pela noite, infelizmente, amnistiaram-me.

    Recentemente, tendo-me encontrado em Barcelona com o doutor alemo que tinha

    umas barbas encaracoladas em iodo cortmos as relaes por causa de uma acirrada

    discusso sobre Niewtch apesar de ele ter ficado encantado com o meu belo jogo de

    combinao no desafio de foot-ball contra o Racing de Madrid. Hoje, porm, tive uma

    alegria que eu no tinha desde a ultima trovoada - a engomadeira, que se tem ido

    civilizando pouco a pouco com o estar comigo, ao almoo veio lindamente arranjada e

    beijei-lhe a boca diante dos outros hspedes s por ela ter trazido os lbios pintados de

    verde esmeralda!

    Que belo! Achei-lhe mesmo um ar casto de Samaritana que apertou bem a cinta

    sobre o ventre - Ah! e que lindos so os limos do poo de Jerusalm!

    A velhota que era dona da penso veio dizer-me com o chocolate esta manh que

    estava c um hospede que era muito meu amigo e que tambm lhe tinha dito que eu era o

    poeta de mais valor que andava por a. Jantmos juntos e entre coisas que recordmos foi

    um passeio que demos ao stio do Calvrio numa tarde de vero justamente hora do raio-

  • verde. Ele tambm se lembrava de umas tourinhas que houve nas eiras dos Serres e que

    at o Virgilio quando ia a marrar no Cunha tinha ido, coitado, contra a trincheira e tinha

    escangalhado a cara toda que nem se lhe viam olhos, nem boca, nem nariz, nem nada... um

    horror! Fazia sofrer. Perguntou se eu ainda tinha boa voz e se no tinha pena daquelas

    serenatas ao luar pelo rio todos muito apertados com as primas da Eira de Pedra no bote

    do tio dele . Ele achava que se calhar eu j tinha esquecido todos aquele s fadinhos to

    catitas e ficou com um O maisculo na cara toda quando eu lhe disse que j no namorava

    a Alice. Tambm queria saber o que eu tinha feito do cavalo que era to airoso que um

    domingo at deixara de ouvir missa por ter ficado a ver a dar galopes no adro e a saltar uma

    oliveira que tinham tirado por causa da barraca da quermesse. A propsito perguntou-me

    se eu tambm no achava que a Alice se parecia imenso com a minha amante e ai que os

    olhos ento eram tal e qual. Para ele era um exerccio que ele tinha que fazer para amanh

    de manh o eu ter deixado a Alice e com tanta cortia! Teve imensa curiosidade em saber

    se eu ainda era muito distinto em matemtica mas alm disso todos ns os trs achmos

    boa ideia irmos tomar o caf fora, Brasileira. Pouco depois ouvimos grosso tiroteio no

    Largo do Directrio e ele nem sequer ainda tinha deitado acar na chvena e j estvamos

    outra vez na penso com aparncias plidas de cardacos com uma escada bestial at a um

    quarto andar. Eram umas duas horas da madrugada ainda ele estava a dizer que eu, quando

    foi a festa da Senhora da Saudade, talvez que eu me no lembrasse mas ele ainda estava a

    ver uma Nossa Senhora que eu tinha pintado com anilina em dois metros de patente e que

    tinha ficado mais bonita que uma estampa e que at o prior me tinha feito um elogio

    rasgado no sermo da Paixo dizendo que era uma pena se eu no continuasse os estudos;

    mas o que ele achava mais extraordinrio que tendo sido expulso de Campolide a nica

    medalha que eu tivesse ganha fosse justamente de catecismo. A dizer a verdade eu j tinha

    saudades de ter sido caricaturista mas como ela se tivesse ido deitar porque j no podia

    mais com sono ele disse-me que ainda bem porque trazia uma carta da Alice que era para

    mim com a condio de eu dar resposta. A carta em questo afirmava sem prembulos que

    quando chegasse at ele j a tua Alice nem comia, nem bebia, nem via, nem cheirava, o que

    queria dizer que estava morta.

    Contudo a resposta era para ela porque em post-scriptum afianava que estava

    disposta a esquecer aquela infame caricatura que eu tinha dito que era o retrato dela para

    reatarmos outra vez aquela paixo intensa com passeios aos pinheiros e merendas no

    bosque e pescas ao candeio e, enfim, aquela pouca vergonha toda que inevitvel pelas

    ferias com a barraca dos banhos mesmo ao lado da dela. No mesmo post-scriptum pedia-

    me o obsquio de lhe ir comprar um chapu da moda que no fosse alm de dois mil ris

  • que era para estrear na feira por causa das Delgados que faziam troa dela por eu a ter

    deixado e que quando eu fosse para l em Agosto que iria pedir ao tio Pedro dois mil ris

    emprestados. O mesmo post-scriptum ainda dizia e com c cedilhado que no pensasse mais

    nela caso eu no lhe quisesse responder; porm, incitava-me indisciplina com mais

    passeios aos pinheiros e merendas no bosque e pescas ao candeio, enfim aquela pouca

    vergonha toda que tinha custado um tiro de arma caadeira no ouvido do primo dela que

    recitava monlogos de Joo de Deus e glosava todos os pensamentos com a condio do

    faroleiro o acompanhar guitarra. No fim do post-scriptum dizia-me que no tivesse

    duvidas absolutamente nenhumas que ela ainda era a mesma Alice que eu tinha deixado no

    club sem par para danar e que tambm no tinha dvidas absolutamente nenhumas que o

    tio Pedro lhe emprestaria pela certa os dois mil ris. C no canto do papel dizia muito

    baixinho em hipotenusa de tringulo rectngulo - volte. Eu voltei e ela perguntou-me l em

    cima do outro lado se eu achava que ela devia tomar as plulas pink ou comprar um

    vigsimo da lotaria do Natal com esse dinheiro e que gostava da minha opinio. Depois

    contava laconicamente uma excurso que um tio dela tinha feito Torre do Pombal que

    tem vinte e cinco metros a pino e que, coitado, cara e logo por infelicidade quebrara uma

    perna que tinha ficado ao contrario. Pedia tambm desculpa de me no escrever em papel

    de luto mas que por desgraa das desgraas o pai dela tinha desaparecido quando num

    passeio pela estrada vinha a correr para c uma manada de bois bravos. Enfim, a

    infelicidade era tanta, tanta que a prpria me at j tinha abandonado a sua carreira de

    prostituta em Beja e at j lhe propusera para se amancebar com um senhor Barbosa que

    era de Lisboa e que me conhecia muito bem e que j no tinha muito cabelo. Contudo

    tinha preferido montar uma engomadoria com o dinheiro que um grumete do S. Rafael

    que era o nico amante que felizmente a me dela tinha agora e podia ir pagando aos

    poucochinhos. Mas no! preferia continuar aquela vida com ele . Aquela vida sria que no

    se pode voltar atrs, ir... no lhe dizer nada e deixar. E o relgio deu horas que eu contei

    mas no eram quatro nem cinco era um algarismo que eu nunca vi escrito e que s agora

    que eu reparei que existe realmente entre o quatro e o cinco. Mais ningum tinha ouvido

    seno eu. Felizmente que o relgio era de repetio e eu pedi a ateno de todos e estavam

    todos atentos e s eu que ouvi. De repente partiu-se a fita e l adiante comearam a dar

    pateada. Depois comecei a sentir muito frio s no ombro direito, tinham-se esquecido de

    fechar a janela. Vinha muita gente a fugir pelo Chiado a baixo e o Chiado parecia naquela

    noite sem arcos voltaicos uma ponte levadia sobre uma barbac descomunal. Do outro

    lado a Alice tinha chegado tarde. O post-scriptum tinha na ultima pagina escrito em letra

    romana 33. Depois ia a andar, a andar pela margem fora e comeou a ver uma bola muita

  • sumida que ia crescendo, crescendo em tamanho mas que ficava sempre sumida; tornava a

    comear c debaixo e j no crescia, subia toda deitada pr esquerda a diminuir a

    velocidade, a diminuir para azul, para azul at comear a ser devagarinho um boneco mal

    desenhado a danar uma imitao do fantoche. Depois a cabea do fantoche comeou a

    inchar molemente sem firmeza nenhuma e quando j era um balo muito grande que vinha

    cair ao p de mim tocou num bico de alfinete que estava no tecto e entornou-se um balde

    de sangue que nunca acabava de se entornar mesmo no meio das merendas no bosque. De

    repente os andaimes comearam a desabar sobre mim. Os garotos apregoavam nas ruas A

    Capital... muito longe, sem cho, alargava-se apressadamente uma cova de luz com as

    arvores nas nuvens de pernas pr ar, e a cova furou tudo pr lado de l e ia abrindo mais

    depressa, muito mais depressa do que eu lhe fugia. Desta vez bati mesmo com a cabea na

    esquina da mesa e o meu amigo diante de mim dizia-me que eu devia por todas as razes

    fazer as pazes com a Alice.

    Eu que j no podia mais; pedi-lhe imensas desculpas mas que estava era com um

    destes sonos de subir a escada s escuras com o sol a nascer nos mercados. Quando

    cheguei ao quarto estavam todas as lmpadas acesas e a engomadeira dormia a respiraes

    baloiadas tendo aberto entre os dedos na gravura do Cristo um livro de missa todo

    ensopado em tinta verde e que era a nica recordao que eu trouxera de Campolide. Os

    lbios dela estavam fortemente pintados de verde-esmeralda!

  • XI

    Era muito para l do cemitrio mesmo na volta das furnas. Os carros da estrada

    quando passavam por ali iam mais depressa e de noite no passavam. De noite a volta das

    furnas ficava sozinha. Um dia apareceu uma cruz negra muito malfeita e ainda ha muita

    gente no lugar que diz que viu com os prprios olhos a cruz negra do moinho velho toda

    acesa de noite. Uma noite foi to grande o claro que at houve sinos a rebate julgando ser

    fogo. Doutras vezes to grande a gritaria que vem de l do moinho que as mulheres,

    coitadas, pem-se a chorar baixinho com medo de fazer barulho. At o senhor prior que

    no acreditava foi l sozinho para desencantar o bruxedo com gua-benta porque as

    mulheres gritavam para no deixar ir os maridos... e fizeram bem porque o senhor prior,

    no se sabe dele! Uma velhinha que voltou tarde da feira e no se lembrou e passou por l

    prendeu-se-lhe uma r nas voltas das saias e apareceu morta na estrada s sobre um p.

    Depois que nasceu o castanheiro que l est no sitio. A gritaria que vem de l do moinho

    como o coaxar das rs com o regato a correr filtrado. E cabra que paste por ali s d

    peonha. Um dia uma escola de repetio quis fazer tesa e os canhes foram fumados pelo

    comandante que se tinha esquecido de comprar charutos. Quando rompeu a manh os

    batalhes j eram rs que se tinham calado. Por isto mesmo, e bastante, j no ha aldeia

    nenhuma neste stio de que estou falando. Apenas existe um poo de cimento armado com

    balde e gua salobra onde eu e a minha desditosa amante amos gastar as tardes longe da

    cidade consoante a recomendao do meu medico que por deferncia que nunca esquecerei

    foi neste caso o mdico dela.

    No sei positivamente a razo daquela mudana to repentina no espirito irrequieto

    da minha amante que quase j nem sabia falar e quando falava era para me pedir amndoas

    sentadas ou pr levar a passear onde caem os bales. A sade fsica antes de a perder, pelo

    contrrio, desenvolvera-se-lhe extraordinariamente sem uma constipao apesar de preferir

    andar por toda a parte sempre nua. Uma manh quando acordei no chalet que eu alugara

    sozinho naquele monte longe de toda a gente reparei que ela no estava na minha cama!

    A preta, a cozinheira, tambm no sabia nada. De todas as janelas que eu espreitasse

    ela s poderia estar das que eu no espreitasse. Se descia ao rs-do-cho ouvia passos no

    outro andar mas se estivesse no outro andar ouvia passos no rs-do-cho. Tambm, se por

  • acaso, eu dava uma volta pela quinta pr procurar quando voltasse era certo que ela ainda

    no tinha acordado. s vezes a luz tambm faltava de repente com o frio de uma janela que

    se abria mas quando a luz voltava as portas de dentro das janelas tambm estavam

    fechadas. Uma noite eu estava a escrever um conto realista e o aparo da caneta era uma

    vespa. Pensei toda a noite na vespa e na manh seguinte o meu conto realista estava

    acabado com letra da minha amante que, mais extraordinrio , nunca aprendeu a ler. A

    cozinheira preta chegou-se um dia junto de mim a chorar como doze cozinheiras pretas e

    disse-me que tinha medo de dormir no sto porque as telhas de noite punham-se todas

    em brasa e que depois quando se derretiam caam em picadelas de alfinetes. Tambm

    contou que uma madrugada tendo-se sentido mal que se tinha ido ver ao espelho e que vira

    com os dois olhos da cara a agua do contador a cair para cima. No dia seguinte o carteiro

    trouxe uma carta registada que quando eu a abri foi logo um estojo de barba com sabonete

    e tudo, e quando eu fui para mostrar este presente minha amante encontrei-a sentada

    sobre uma vela acesa a cortar reflexos com uma tesoura das unhas que j faltava no meu

    estojo da barba quando eu o abri. Quando a vela ardeu toda comearam a aparecer pelas

    parede s escuras imensos t t que vinham uns depois dos outros e cortados por estrelas

    cadentes que eram uma nota de msica quando acabavam. Imediatamente entrou a

    cozinheira e vinha com um castial de cobre aceso mas trazia a cabea s avessas; vinha

    perguntar-me se eu sabia, por acaso, onde que eu tinha lido aquela frase que ela j se no

    lembrava se era i ou de chumbo. Mas pior do que nunca, foi quando naquela manh de

    Maio eu acordei no meio de um sonho em que vira a minha amante como sendo cozinheira

    preta da cintura para cima e sendo apenas a minha amante da cintura para baixo. Quis

    certificar-me. Sentei-me na cama e tive um grande prazer em verificar que tinha sido apenas

    um sonho aquele horror. Porm, quando ela se ergueu era efectivamente, ainda que ao

    contrario do meu sonho, a minha amante da cintura para cima e a cozinheira preta da

    cintura para baixo.

    Desci preocupado as escadas, tive a noo exacta da profundidade at onde estavam

    pregados os pregos dos degraus; compreendi como um degrau pode ser um mundo se ns

    quisermos e um mundo real mesmo que ns o no queiramos. Achei mesmo dois

    mundos diferentes dentro de um mesmo prego - um era a cabea do prego, o resto era o

    outro. O que me interessou mais foi justamente o que era apenas a cabea do prego. E logo

    havia outro mundo noutra cabea de prego... e outro numa cabea de prego maior... e

    outro noutra cabea de prego ainda maior, e outro numa cabea de prego da altura da

    Torre Eiffel e um prego cuja cabea fosse a Terra e apesar disso ainda houvesse outros

    pregos muitssimo maiores.

  • Tive mesmo dentro do meu crebro as dimenses de um prego em que a Terra fosse

    o tomo mnimo do ferro que pesasse em toneladas a capacidade do mundo astral com

    todas as suas distancias.

    E mais ainda: eu sentia que cada poro do meu corpo, cada molcula isolada, era uma

    srie de mundos diferentes onde cada mundo mesmo os das ultimas subdivises tivessem

    um mapa e leis e onde cada ser fosse to complicado como o homem e mais ainda do que

    o homem, como eu. No era somente este segredo que j fazia parte da minha riqueza,

    havia outro. Era eu ter conduzido a minha sensibilidade (educada exclusivamente pelos que

    me educaram na psicologia humana) pelos timbres dos metais... Ah! os mundos

    interessantssimos que so aos milhares nos timbres dos metais, e nas cores dos metais e na

    ferrugem e na duracidade e em todas as partes do corpo mineral e em todas as sensaes da

    alma mineral muito mais independente que a psicologia humana pela nica razo de aquela

    ser independente. E que exrcitos to mais gloriosos e que Alexandres e Napolees bem

    mais deuses desfilam nesta histria imensa, muito mais antiga que a nossa, e com

    historiadores que sendo poetas vivem num mundo inteiramente mais perfeito, apesar de

    existirem talvez apenas no bico do alfinete que o senhor Barbosa traz espetado na gravata

    encarnada e verde. Isto vem a propsito do senhor Barbosa ter comunicado num bilhete

    postal minha amante que ia escrever um livro sobre... sobre qu!? O senhor Barbosa que

    por ser senhor Barbosa toda a gente, quer seja senhor Barbosa na Arte, quer o seja na

    Poltica ou na Individualidade ou em tudo neste mundo o mesmo que um remdio que

    nunca haver de livrar as pessoas da morte. Digo nunca haver porque no creio em

    absoluto na inteligncia humana por isto que o homem s vive exclusivamente a vida

    nitidamente animal ou a misteriosamente espiritual porque nem esta mesmo na sua

    metafsica soube definir quanto mais a vida mineral, a vegetal, a fluida, a do orvalho, a da

    fosforescncia, todas as infinitas vidas sintetizadas na cor verde e em todas as outras cores

    e em todos os tons provveis e impossveis de todas essas cores e de todos os seus

    contrastes simultneos... etc., etc. Ora como quer o senhor Barbosa escrever um livro se

    nem mesmo como transeunte o senhor Barbosa completo ou competente. Ou como

    pode o Papa ser infalvel em matria de Deus se o meu Deus diferente do dele e do de

    todos os seus catlicos e at diferente do Deus de todos os ateus. Deus h tantos quantos

    os instantes de todas as vidas de todos os mundos e esse ningum pode adora-lo porque o

    no pode conceber. S esse prprio Deus que o pode conceber, e mesmo Este no

    admite a sua prpria concepo porque se a Terra por destino tiver fim os outros mundos

    subsistem e se o fim for uma lgica das determinantes daqui a um milho de anos os

    mundos sero todos outros com as metamorfoses de outros mundos ainda.

  • Mas nem preciso ir to longe, vamos vida, restrinjamo-nos. Eu se dou a minha

    opinio republicana a um republicano acha ele que sou talassa. Se um monrquico que

    me ouve as teorias conservadoras desliga-se de mim por causa de eu ser revolucionrio. Se

    um artista que discute apressa-se em dizer-me que a arte dele diferente da minha como

    se houvesse duas artes, como se Deus fosse dois como as aproximaes da lotaria. O que

    esse artista no sabe que essa tal arte dele to pouca coisa como o mercrio fechado

    dentro de um termmetro centgrado e que s pode subir at cem assim como se cem fosse

    o limite do vcuo e onde comea justamente uma formao de mundos onde a atmosfera

    rgida com relao nossa impenetrabilidade.

    Ora o senhor Barbosa vai escrever um livro sobre qu?! O senhor Barbosa aprendeu

    no catecismo ou na educao cvica que o homem tem cinco sentidos e foi no bote como

    qualquer ministro quer seja de Deus ou da Republica. Ora foi justamente o senhor Barbosa

    um dos primeiros que me veio dar os parabns por causa de um Cristo por mim publicado

    numa revista de rapazes a Ideia Nacional cuja nica particularidade para os outros foi ser

    verde e no ter cabea.

    Justamente como se eu tivesse tido a ideia de fazer uma cabea de Cristo e no um

    Cristo inteiro. No me dir o senhor Barbosa o que ter percebido do meu Cristo? Julgou

    que fosse partida aos catlicos? Julgou que era a minha adeso Repblica? Julgaro

    tambm os catlicos que me merece alguma considerao essa sua arcaica restrio

    religiosa? Julgaro acaso os catlicos que eu pretendi cantar-lhes a devoo? Julgaro os

    monrquicos tambm alguma coisa em seu favor?

    Cristo, cuja nica ndoa consiste em andar recentemente a dar extenso a apelidos de

    pessoas que no so muito extensas, tem outras grandezas das quais no so os catlicos

    nem os cristos que partilham delas, A Lenda de Cristo a nica profecia exacta de toda a

    Histria Universal. simultaneamente a histria da Humanidade desde o primeiro homem

    at ao ultimo de todos os homens e a vida interior, consciente e inconsciente, de cada um

    dos homens separadamente. A Lenda de Cristo edificada talvez sobre a vida de um homem

    cujo descritivo simbolizava essa prpria Lenda, canta a Personalidade, as lutas pela vitria

    da Inteligncia, os sacrifcios pelo Bem dos outros admitindo entre estes todos os que a

    esttica comparou. Teria mesmo muito mais que dizer a este respeito mas como a minha

    amante, coitada, j se est a afligir demais, porque embirra imenso que esteja a discutir

    poltica, eu paro hoje por aqui porque alm disso ainda tenciono ir ao Chiado Terrasse

    com ela, coitadita!

  • XII

    O ano j no era o mesmo - morrera o bobo das tabernas, o poeta mendigo da

    Torre. Pobre ano corcunda dobrando as pernas curtas cansadas de um ventre enorme. Os

    largos ps sem abrigos calejavam as solas a arrastarem-se em desequilbrios que at

    pareciam de propsito. Os braos inteiros fingiam metades e ajudavam-lhe os passos a dar-

    a-dar. Os dedos curtos e cabeludos em cima no eram os dedos das mos eram os dedos

    dos pulsos. A cabea tinha a expresso de no estar bem cheia, mal-ajeitada sobre os

    ombros subidos a susterem-lhe as faces inchadas com uma barba rala de ferrugem de prego

    torto no meio da estrada depois da chuva. O nariz soprado metia mais para dentro uns

    olhos escondidos como toupeiras nos buracos espera da noite. O ritmo do deslocamento

    total era o mximo de intensidade teatral num drama socialista e o casaco negro, verde de

    velho, vestia-o todo e ainda se espojava por detrs dele num movimento de andar menos

    depressa e no ter rodas. s vezes com o sol em chapa chegava a ter a imponncia do

    manto arrogante de um rei. E o povo todo ao v-lo esgueirar-se tmido pelas vielas j no

    ria os gestos cortados do bobo das tabernas, todos recordavam as graas mortas do outro

    ano do mesmo casaco comprido. Dantes pedia esmola ou vendia cautelas, ou estropiava

    num fandango de ir cair, as coplas mais indecentes das revistas; agora fugia dos outros e

    no mendigava, tinha mesmo um orgulho de saber uma coisa que os outros no sabiam. s

    vezes quando encontrava os mendigos punha-se a chorar e convidava-os para ir prs terras

    e dava-lhes uma moeda de prata. Porm, continuava a morar naquela torre j quase sem

    base e no ultimo quarto mais perto de onde caa a chuva, uma cela imunda sem postigos

    onde o sol de medo e de nojo nunca fora. E todas as noites, todas ia subindo de gatas a

    contar com o ventre a chocalhar os degraus comidos que o cansavam at ao ltimo quarto

    da torre. Ento gemia a cancela na monotonia do grito do seu viver corcunda e tombava-se

    sempre vestido nas palhas apodrecidas sentindo-se rei no hlito fedorento da enxovia que

    arruinava as pedras interiores num hlito viscoso de urina de sapos.

    Passa da meia-noite. A torre em cuidados tinha-se sentado embrulhada no xaile

    espera do seu ano porta da prpria torre.

    Quase manh viu-o a torre nos fins do caminho a cambalear. Cantava indecncias

    aos zig-zags de dissonantes no luar cansado da manh. Com chapeladas e gargalhadas

  • saudava com exageros desconjuntados as arvores medrosas que guardam os caminhos. Por

    vezes julgava-se elegante e andava dois passos sem zig-zags e se esbarrasse em alguma

    arvore comentava logo sem premeditao: Croia! s vezes abraava-se a um tronco para

    precisar um pensamento obsceno e demorava-se naquela sua opinio de osgas em que

    todas as mulheres eram uma s e descala e desgrenhada cujo sexo fosse uma sanguessuga

    cor de rosa. Depois seguiu com os olhos uma seta da cor da estrada e que seguia pela

    estrada fora e que depois chegava a uma torre e que subia at l cima e acabava em palhas

    s escuras. Trazia tambm saudades da Torre. E como sempre l ia subindo a contar com o

    ventre a chocalhar os degraus cansados da escada magra e cega sentina dos gatos vadios.

    Na cancela mais an do que ele aliviou-lhe as trancas em fatigantes demoras e

    aprumou-se dono e rei ao ouvir tilintar os ferros nas lajes hmidas. Contente ia rindo

    aquela felicidade de ter encontrado o seu solar de sombra. Sentiu um peso no bolso do

    casaco que ficou preso num prego espetado ao contrario, e com um vomito de champagne

    tirou do bolso um frasco elegante de Chevalier d'Orsay. Esbofeteou-lhe o gargalo e teve

    um gesto de o atirar pelas escadas abaixo. A torre, porm, vomitou na rua um ano

    corcunda emaranhado nas vestes e que foi parar defronte num marco geodsico sobre o

    precipcio. No peito cavado e nu sujo de cabelos negros a branquear repousava obsceno o

    verde esmeralda postio dos lbios de uma mulher.

    Lisboa, 7 de Janeiro de 1915.

    FIM