contrato de seguro - novos paradigmas - walter a. polido

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Walter A. Polido CONTRATO DE SEGURO CONTRATO DE SEGURO Novos Paradigmas Novos Paradigmas Contrato De Seguro Contrato De Seguro

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Page 1: Contrato de seguro - novos paradigmas - Walter A. Polido

Walter A

. Polido

ISBN 978-85-98028-33-0

9 788598 028330

Walter A. Polido

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Contrato De SeguroContrato De Seguro

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Walter A. Polido

São Paulo / 2010

Contrato De SeguroNovos Paradigmas

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© 2010 Walter A. PolidoDireitos desta edição reservados à Editora Roncarati Ltda.

É expressamente proibida a reprodução total ou parcialdesta obra sem prévia autorização do Autor e da Editora.

1ª Edição2010

PREPARAÇÃO DE ORIGINALArmando Olivetti

EDITORAÇÃO ELETRÔNICASergio Gzeschnik

CAPALuciana Roncarati

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Polido, Walter A.Contrato de seguro: novos paradigmas / Walter A. Polido.

— São Paulo : Editora Roncarati, 2010.

ISBN 978-85-98028-33-0

1. Seguro - Contratos e especificações 2. Seguros - Leis e legislação - Brasil I. Título.

10-04444 CDD-347.764.001.1

Índice para catálogo sistemático:

1. Contrato de seguro: Teoria geral: Direito comercial 347.764.001.12. Teoria geral do contrato de seguro: Direito comercial 347.764.001.1

2010

Editora Roncarati Ltda.Rua Clodomiro Amazonas, 89 – casa 8 – Itaim Bibi

04537-010 – São Paulo/SPFone: (11) 3071-1086

www.editoraroncarati.com.br

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Sumário

Prefácio .................................................................... 9Apresentação ............................................................ 13

1 Fundamentos norteadores da evolução do pensa - mento contratual ................................................. 21

2 O contrato de seguro nos séculos XIX, XX e XXI 492.1 Trajetória histórica do seguro no Brasil ................. 492.2 Importância do seguro para a sociedade moderna .... 612.3 Mudanças do setor securitário no Brasil ................ 64

3 Função social do contrato de seguro .................... 673.1 Do patrimonialismo liberal ao coletivismo metain-

dividual ................................................................. 673.2 Função social do seguro ........................................ 793.3 Socialização racional dos prejuízos ........................ 893.4 Mutualismo ........................................................... 92

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4 A boa-fé objetiva como princípio fundamental do contrato .............................................................. 97

5 Interesse segurado ................................................ 1055.1 Garantia de interesse legítimo – objeto imediato do

contrato de seguro ................................................ 1055.2 Despesas de contenção e de salvamento de sinistros

– obrigação acessória ............................................ 114

6 A concepção comunitária acerca do contrato de seguro .................................................................. 1296.1 Aleatoriedade e comutatividade ............................. 1296.2 Teoria da imprevisão (rebus sic stantibus) e da

onerosidade excessiva. A lesão contemporânea ao contrato. Empresarialidade e Responsabilidade go-

vernamental .......................................................... 1396.3 Justiça social .......................................................... 1466.4 Fundo comunitário e discussão a respeito da titula-

ridade do fundo de provisões técnicas, garantidor das indenizações de sinistros ................................. 1506.5 Fraude contra o seguro .......................................... 167

7 Contrato de seguro de Responsabilidade Civil ..... 1877.1 Seguro de Responsabilidade Civil: um dever social 1877.2 Obrigatoriedade dos seguros de Responsabilidade Civil ...................................................................... 1927.3 Responsabilidade Civil pressuposta – fator único determinante ......................................................... 2097.4 Responsabilidade Civil pela perda de confiança – tutela da expectativa do segurado ......................... 224

8 Das limitações da autonomia privada empreende- dora das operações de seguros: coletivização dos interesses – nova perspectiva social e jurídica do contrato de seguro ................................................ 231

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8.1 O Direito impõe restrições na liberdade de contratar 2318.2 Pressupostos essenciais do contrato em face da nova ordem ................................................................... 2338.3 Patologias encontradas no mercado segurador nacional e as limitações impostas pelo ordenamento jurídico ................................................................. 2458.3.1. Exemplos de práticas comerciais que podem

gerar conflitos jurídicos ................................... 250

9 Abertura do mercado de resseguro no Brasil ........ 3019.1 Lei Complementar nº 126, de 15.01.2007 – Reflexos

sobre o contrato de seguro ............................... 3019.2 Cláusula de insolvência ......................................... 3119.3 Cut-through Clause – caminho direto .................... 319

10 Conclusões .......................................................... 329

Bibliografia ............................................................... 359Índice alfabético-remissivo ....................................... 377

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Prefácio

Recebi com muita honra e alegria o convite do Dr. Walter Polido para prefaciar a obra Contrato de seguro: no-vos paradigmas.

A vasta experiência do autor no ramo de seguros e sua eficiente atividade acadêmica foram ingredientes princi-pais desta obra que será indispensável para os profissionais do direito. Por merecimento recebeu a nota máxima na obtenção do título de mestre, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Tivemos a honra de compor sua ban-ca examinadora.

O livro constituirá relevante ferramenta para juízes, promotores de justiça, advogados e estudantes, para a com-preensão do contrato de seguro, que se qualifica como um dos mais importantes negócios jurídicos da atualidade. E o autor observou com maestria sua evolução, até os dias atuais. E, neste passo, situa-se o primeiro predicado da obra: discute o contrato de seguro não somente à luz do Código Civil de 2002, mas também do Código de Defesa

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do Consumidor.Há uma perfeita harmonia no desenvolvimento do

pensamento do autor, para que o leitor sempre tenha a pre-ocupação com o sistema de normas – o chamado diálogo das fontes. A socialidade do contrato de seguro é percebida sob uma nova perspectiva de paradigmas.

A organização do livro também configura outra qua-lidade essencial. Cada capítulo da obra tem como suporte uma rica doutrina e a citação pertinente de precedentes dos tribunais. E o autor demonstra preocupação com os leitores fora da área de seguros, apresentando informações históricas e conceituais.

Como salientado anteriormente, o Dr. Walter Polido busca estudar o contrato de seguro de maneira destacada. Depois de apresentar os fundamentos e a história do contrato de seguro, centra sua atenção sobre dois pontos fundamen-tais: a) a função social do contrato (capítulo 3) e b) a boa fé objetiva (capítulo 4). A hermenêutica moderna do contrato de seguro é moldurada naqueles dois princípios, o que de-monstra a atualidade do pensamento do autor.

Os demais capítulos abordam temas igualmente re-levantes, como o interesse do segurado (5), a concepção comunitária do seguro (6), o seguro de Responsabilidade Civil (7), limitação da autonomia privada (8) e abertura do mercado de resseguros (9).

E a maestria do autor se coloca em vários pontos da obra, como na análise do legítimo interesse do segurado e no estudo desta nova visão de comutatividade do contrato de seguro, a partir do Código Civil de 2002. Enfrenta com coragem o tema da comutatividade do contrato de seguro, contrapondo-se ao dogma da aleatoriedade.

E toca em outros pontos polêmicos: a) ação direta contra a seguradora nos seguros facultativos e obrigatórios; b) cancelamento unilateral do seguro saúde; c) quebra do

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monopólio de resseguros e seus efeitos no mercado brasilei-ro etc. Uma contribuição importante para a doutrina e que, certamente, reflete um marco.

Parabéns ao autor e à editora pela feliz iniciativa, desde logo aplaudida pela comunidade jurídica!

Alexandre David MalfattiJuiz de Direito em São Paulo

Doutor em Direito pela PUC-SPProfessor e Coordenador da

Área de Direito do Consumidor na Escola Paulista da Magistratura

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APreSentAção

O contrato de seguro é pouco explorado no Brasil em termos doutrinários. Nem por isso o mercado segurador é insignificante, uma vez que ele cresce a cada ano. A teoria contratual subjacente à espécie seguro é bastante comple-xa na atualidade, embora embaçada pelo pensamento que a concebeu nos primórdios, notadamente no século XVIII. Na pós-modernidade, à luz do novo pensamento, sob pa-radigmas emergentes que traduzem outros métodos de averiguação e de concreção do Direito, sobressai o da essen-cialidade e, como tal, o contrato de seguro passa a ter função de extrema utilidade para o cidadão e para toda a socieda-de. Determinados tipos passam a ser essenciais, portanto. O Direito, movido por valores erigidos pela sociedade que o cria, passa a ter atenção especial sobre o segmento, determi-nando formulações objetivas e conducentes ao fim social que o contrato de seguro traduz. O formalismo contratual foi re-lativizado, subsumido pela ordem maior da função social do contrato. Este livro, que teve como base minha dissertação

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de mestrado,1 decorre da observação que fiz do mercado se-gurador brasileiro nos últimos anos. Mercado extraordinário que, apesar do tamanho de sua produção, ainda não foi com-pletamente explorado em toda a sua potencialidade. Não é da cultura do povo brasileiro contratar seguros. Esta máxima vem sendo alterada nos últimos anos, mas ainda não foi eli-minada de forma completa. A imagem que a sociedade tem do produto seguro também não é das melhores; talvez em razão dos malfadados montepios de algumas décadas atrás, os quais não só lesaram muitos aderentes, como também macularam a confiança da população sobre o contrato de seguro em geral e por muito tempo. Não há dúvida de que a produção de seguro se acentua a cada período, permeando o cotidiano das pessoas de maneira notória. O processo de ex-pansão de crédito no Brasil tem permitido, somado a outros fatores positivos, que as classes mais pobres também passem a contratar seguros. Há, inclusive, atenção concentrada nos chamados microsseguros, os quais se destinam à população de baixa renda. As seguradoras passam a comercializar os seguros através dos mais inusitados meios e de modo a se estenderem àquelas pessoas não correntistas de bancos: oferecem seguros através de contas telefônicas, de conces-sionárias de serviços públicos, de lojas varejistas. Cada qual com seu interesse particularizado, o cidadão-consumidor busca no seguro garantia e tranquilidade. A moderna con-cepção do contrato de seguro adota esse conceito, ou seja, o objeto imediato desse tipo especial de contrato correspon-de à oferta de garantia ao segurado, de modo instantâneo.

1 Na área de Direito das Relações Sociais, com concentração em Difusos e Coletivos; Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. A dissertação foi defendida no dia 27 de maio de 2008, perante banca examinadora presidida pela Profª Drª Suzana Maria Pimenta Catta Preta Federighi (orientadora), e composta também pela Profª Drª Regina Vera Villas Bôas e pelo Prof. Dr. Alexandre David Malfatti.

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O segurado não deseja viver sob a tensão latente do risco, considerada a possibilidade de sobrevir o sinistro e, então, compra a garantia imediata, tranquilizando-se. Comutação pura e simples: prestação imediata da garantia proporciona-da pela Seguradora e a contraprestação com o pagamento do prêmio, pelo Segurado. A álea, diante da empresarialidade inerente à atividade seguradora – profissional por excelência e requerida pelo Código Civil de 2002 (CC/2002) –, restou apenas no risco predeterminado e definido no contrato.

O Código de Defesa do Consumidor (CDC) exigiu nova configuração da atividade seguradora, assim como de todas as outras atividades econômicas. Microssistema, iman-tou o ordenamento jurídico nacional, qual lei civil genérica – atingindo todo o sistema. O contrato de seguro e a ativi-dade seguradora foram duramente atingidos por esse novo comando legal. Quem não se apercebeu dessa realidade, já sofreu as consequências inerentes e irreversíveis. Todo o jeito de fazer seguro teve de ser alterado. O procedimento que ainda não sofreu alteração está em conflito com a nova ordem positivada, podendo advir consequências, se já não fo-ram materializadas. A Constituição Federal proíbe qualquer retrocesso a esse respeito, uma vez que ela mesma deter-minou ao Estado promover a proteção dos consumidores. Para assegurar a eficácia necessária, neste desiderato, a CF adotou o princípio máximo do respeito à dignidade humana, insuperável em razão de sua magnitude. Qual princípio pode sobrepor este? Certamente nenhum outro.

O Código Civil de 2002, concebido já sobre o rastro inovador deixado pelo CDC, adotou princípios vários em total harmonia solidária com a lei consumerista: boa-fé ob-jetiva, limitação da vontade contratual em razão da função social do contrato, além da responsabilização pelo dano mo-ral, da garantia de interesse legítimo no caso específico do contrato de seguro, entre outros.

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Os conservadores em matéria de pensamento contra-tual, especialmente aqueles apegados aos ideais concebidos nos séculos XVIII e XIX, incluindo os de seguros, vivem per-plexos diante da nova ideologia implantada. Não há dúvida, contudo, de que não cabe qualquer possibilidade de haver concessões, de existir retrocesso. O diálogo das fontes, que prevalece sobre o vetusto e já há muito ultrapassado princípio do pacta sunt servanda, por si só, demonstra a concepção pós--moderna contratual. O eventual conflito de interesse sobre o contrato de seguro não pode mais ser solucionado apenas com base no texto da apólice. A nova ordem determina o di-álogo das fontes: CC/2002, CDC, Estatuto do Idoso e outras. Diante de tal cenário jurídico não resta alternativa se não a de mudar o jeito de fazer seguro no país. Os procedimentos que foram adotados por décadas não podem mais prevalecer.

A empresarialidade, requerida no parágrafo único do artigo 757 do CC/2002, passa a ter renovada e extremada importância neste novo sistema do Direito. Há reserva legal para a empresa seguradora – a qual se estabelece livremente e, por isso mesmo, cumpre a ela ser profissional e eficiente; não cabe amadorismo nesta atividade de relevante interesse social. Esse aspecto é primordial na nova ordem jurídica e expõe consideravelmente o empreendedor da atividade se-curitária no país. Não há lugar para amadores, repita-se. O ordenamento e a nova ordem social impõem rigor na ope-ração de seguros, cuja atividade deve ser fiscalizada pelo Poder Público, com eficiência e de maneira conducente ao objetivo comum: estabilidade do sistema, perfeitamente sol-vente. Também neste aspecto há que se repensar o modelo da ingerência do Estado nas operações securitárias do Brasil. Culturalmente apegado àqueles modelos europeus coloniais o poder executivo, na América Latina, aparelhou-se desme-didamente nos seus organismos burocráticos, fazendo-se prevalecer em relação aos demais poderes. Através de tais

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organismos estatais ele protagonizou sempre a sua vontade e nem sempre da forma mais apropriada. O mercado de segu-ros conclama pela revisão desse sistema de atuação também no Brasil. O mesmo Estado que promoveu a abertura do mer-cado de resseguros, após 69 anos de monopólio estatal no setor, adotará – necessariamente – novo modelo de atuação junto à atividade privada, deixando de determinar a forma de fazer seguro às Companhias Seguradoras. Não é esta a função do Poder Publico na atividade. O modelo brasileiro de regu-lação do setor, voltado muito mais para o dirigismo estatal, não condiz com a modernidade. Resultado de um sistema de mercado fechado, desde a criação do Instituto de Resseguros do Brasil (IRB) em 1939, não mais prospera de maneira efi-ciente. Não há como a Superintendência de Seguros Privados (Susep) pretender, indefinidamente, determinar os modelos de apólices que as seguradoras privadas devem comerciali-zar no Brasil, notadamente em relação àqueles seguros não de natureza obrigatória. Mesmo em razão da proteção dos consumidores, tal tipo de ingerência não é realista e menos ainda producente. Compete ao Estado ingerir no mercado securitário, de maneira firme, objetiva e decisiva, porém com vistas na sua solidez e liquidez. Uma vez mantido sólido o sistema, o Estado terá cumprido o seu dever e o consumidor permanecerá protegido. Determinar modelos de apólices a serem comercializadas não compete ao Estado, notadamen-te a um Estado moderno. A ingerência desmedida e mesmo imprópria, remanescente de autarquias formadas em pe-ríodos ditatoriais nos países da América Latina, não mais condiz com o novo pensamento contratual, cuja persistência repercute no tolhimento da atividade seguradora, impedin-do o seu desenvolvimento criativo e sustentável. Se abusos forem cometidos pela indústria de seguros privados caberá ao Judiciário aplicar a penalização correspondente, como também à própria sociedade consumidora de seguros, pela

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escolha dos melhores produtos e serviços. A sociedade ho-je está muito mais atenta aos seus direitos. Rememora-se a criação de uma Agência para o setor de seguros no Brasil, cuja administração tem parâmetros voltados à especialização dos seus dirigentes e justamente num setor que requer polí-ticas públicas de longo alcance de tempo. Impossível tratar do contrato de seguro e de sua evolução social e jurídica sem perquirir da sua regulamentação estatal, assim como da fis-calização adequada da atividade seguradora.

Esta obra apresenta panorâmica evolucionista do contrato de seguros, a partir dos primórdios do Direito ro-mano, alcançando as alterações conceituais introduzidas pelo Código de Defesa do Consumidor, pelo Código Civil de 2002 e pelo Estatuto do Idoso, notadamente nos segu-ros de massa. Embora não explícita e tampouco subjacente a pretensão única de sobre-elevar os ideais consumeristas em face dos privatistas, a explanação do tema pode conduzir o assunto a tal confronto, em face do estágio atual de desen-volvimento não só das doutrinas nacional e estrangeira, mas também da jurisprudência brasileira. Patologias e práticas conservadoras existentes no modus operandi do mercado segurador brasileiro, ainda bastante voltado para o sistema do pacta sunt servanda, têm sido flagrantemente fulminadas pelas Cortes de Justiça do país, tendendo a reconduzir as práticas para a modernidade que a nova ordem não só social, mas também jurídica impõe.

A abertura do mercado de resseguro no país, cujo monopólio estatal remonta a 1939, traz alento e também paradigmas inovadores para o mercado de seguro direto, be-neficiando toda a indústria de seguros e, por via indireta, o consumidor final.

O objetivo principal desta obra é demonstrar, de ma-neira prática e franca, a nova ordem social e jurídica imposta pela sociedade brasileira, a qual modificou substancialmente

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os procedimentos que vinham sendo adotados pelo mercado segurador há décadas. Parece não haver caminhos alternati-vos, até porque a própria sociedade, a promotora e a razão de ser de todo o mercado de seguros, determinou o novo pensamento contratual prevalecente.

O Autor

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1fundAmentoS norteAdoreS dA evolução do PenSAmento

contrAtuAl

Sem pretender construir ideia meramente retórica, o seguro, em face de sua complexa abrangência e largo es-pectro econômico-social, constitui o maior instrumento de garantia para uma sociedade, em se tratando de prote-ção contra riscos e infortúnios de toda natureza. Embora não esteja classificado como ciência de conhecimento típi-co, o seguro requer, de quem o opera, especialização no segmento, uma vez que não está assentado apenas em um amontoado de princípios técnicos de fácil manipulação. Ele se estende para muito além da técnica que o materializa, sofrendo também as influências da evolução de cada so-ciedade onde se situa e é comercializado. Na vasta teoria jurídica contratual subjacente, comum a todos os demais tipos de contratos, o seguro se destaca por possuir grande número de especificidades. Neste trabalho, algumas dessas características típicas serão demonstradas e analisadas.

De ampla abrangência, o seguro invade a vida do ho-mem moderno, garantindo-o nas mais diversas situações

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de riscos que, uma vez assumidas individualmente, podem repercutir em perdas irreparáveis e atingir não só aquele que não se precaveu através da realização do seguro, como também a sociedade que o cerca – de pequena ou grande proporção. Todo dano ou perda sofrida por alguém tem repercussão extrínseca, uma vez que há, quase sempre, capilaridade comunicativa entre os membros da moderna sociedade. O homem não vive mais só. A sua relação com a sociedade é mais ou menos ampla, mas dificilmente ela inexiste. O pai de família, exemplo mais evidente que pode ser lembrado, reflete em várias pessoas a sua situação de infortúnio, não individualizando o dano físico ou a perda efetivamente sofridos. O pai – chefe de família – na mo-derna concepção da finalidade social da empresa, tem na sua demissão do trabalho a repercussão em vários setores e pessoas, tal como se apresenta: situação de constrangi-mento e penúria dos familiares dependentes – relações enquanto pai, esposo e filho de pais desprovidos de sus-tento próprio adequado; cidadão que deixa de contribuir para com a sociedade através de sua força de trabalho e o pagamento de impostos e tributos; consumidor que sai da cadeia de consumo; político em relação à sua possível atua-ção em associações sindicais, esportivas; entre outras. “Esse plexo de relações lhe faz sujeito e lhe dá identidade. Sujeito enquanto ser social que estabelece contatos sociais. Assim, se lhe falta a característica de empregado, as relações de pai, marido, consumidor, sujeito político, etc., serão sen-sivelmente abaladas. E é isso que pretende o direito evitar, cuidando de regrar essas relações de acordo com a sua fun-ção social” (Cavalli, 2005, p.25). O exemplo, simples na sua essência, demonstra a interligação acentuada das pes-soas na sociedade moderna, ao passo que qualquer fator superveniente pode desequilibrar a estabilidade necessária. As sociedades, em épocas anteriores, mas não muito longe

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do atual século XXI, viam o indivíduo independentemente de suas relações sociais, na mais pura perspectiva liberal. Essa situação influenciou também as relações contratuais, cujos valores foram todos moldados de acordo com a mes-ma concepção individualizada. Para analisar o contrato de seguro, suas finalidades e importância para cada sociedade, torna-se necessário pesquisar o pensamento contratual que o permeia, situando-o na linha do tempo.

Em breve panorâmica, segue a evolução histórica do pensamento contratual, cujos paradigmas influenciaram o contrato de seguro ao longo do desenvolvimento da socie-dade e continuam influenciando num movimento dinâmico e constante.

O patrimonialismo, caracterizador do movimento liberal, prestigiava a autonomia da vontade, especialmen-te no âmbito das relações contratuais. O individualismo, já evidenciado, é a marca patente do liberalismo clássico. Compreensível se analisada com vistas na linha históri-ca das sociedades pré e pós-industrializadas, a autonomia da vontade coroou o direito dos indivíduos, antes fragili-zado pela decisão dos mais poderosos, a qual prevalecia sempre, independendo os acordos antes pactuados. Ainda no século XVII, quando foi promulgado o Bill of Rights na Inglaterra, exatamente um século antes da Revolução Francesa, ele

pôs fim, pela primeira vez, desde o seu surgimento na Europa renascentista, ao regime de monarquia absoluta, no qual todo poder emana do rei e em seu nome é exercido. A partir de 1689, na Inglaterra, os poderes de legislar e criar tributos já não são prerrogativas do monarca, mas entram na esfera de competência reservada do Parlamento. Por isso mesmo, as eleições e o exercício das funções parlamentares são cercados de garantias especiais, de modo a preservar a

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liberdade desse órgão político diante do chefe de Estado. (Comparato, 2006, p.90)1

Nem mesmo a França, país que comandava o ideário do mundo ocidental, dispunha de tal modernidade, e apenas em 1789, com a Revolução Francesa, os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade passaram a vigorar. Mesmo assim, a “Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão”, ape-sar de derrubar o Ancien Régime, deixou também patenteada a máxima burguesa da garantia da propriedade privada con-tra expropriações abusivas, no seu artigo 17. A partir de tais pensamentos, as nações ocidentais foram influenciadas pela Revolução Francesa, muito mais do que pelo Bill of Rights da Inglaterra, até porque à época de sua promulgação aquele Reino não tinha a mesma importância ideológica e tampou-co econômica da França. O Bill of Rights, embora muito mais voltado para questões de liberdades do cidadão perante o Estado, não afetou o direito de estipular contratos: quando, como e com quem se desejava negociá-los. Segundo Roppo, um juiz inglês exprimiu sugestivamente esse pensamento: “se há uma coisa – afirmou sir George Jessel na fundamentação de uma sentença de 1875 – que o interesse público (public policy) requer mais do que qualquer outra, é que homens adultos e conscientes tenham a máxima liberdade de contra-tar, e que os seus contratos tenham a tutela dos tribunais”

1 “Embora não sendo uma declaração de direitos humanos, nos moldes das que viriam a ser aprovadas cem anos depois nos Estados Unidos e na França, o Bill of Rights criava, com a divisão de poderes, aquilo que a doutrina constitucionalista alemã do século XX viria denominar, sugestivamente, uma garantia institucional, isto é, uma forma de orga-nização do Estado cuja função, em última análise, é proteger os direitos fundamentais da pessoa humana ... O Bill of Rights, enquanto lei fun-damental, permanece ainda hoje como um dos mais importantes textos constitucionais do Reino Unido” (Comparato, 2006, p.90-91)

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(Roppo, 1988, p.36).Em 1776, quando da independência das antigas treze

colônias britânicas da América do Norte, que passaram logo em seguida à forma constituída de Estado Federal (1787), inaugurou-se a democracia moderna, combinando regime constitucional com representação popular e limitação dos poderes governamentais, sob a égide do respeito aos direitos humanos.

No momento em que essas teorias são acolhidas pe-la primeira vez por um legislador, o que ocorre com as Declarações de Direitos dos Estados Norte-Americanos e da Revolução Francesa (um pouco depois), e postas na base de uma nova concepção do Estado – que não é mais abso-luto e sim limitado, que não é mais fim em si mesmo e sim meio para alcançar fins que são postos antes e fora de sua própria existência –, a afirmação dos direitos dos homens não é mais expressão de uma nobre exigência, mas o ponto de partida para a instituição de um autêntico sistema de direitos no sentido estrito da palavra, isto é, enquanto di-reitos positivos ou efetivos. (Bobbio, 2004, p.49)

Com base em tais ideais foi promulgado o Código Civil francês em 1804, o Código Napoleão, propriamente a primeira codificação moderna – desde o direito romano.

Os grandes pilares de fundo do Código Napoleão residiam nos seus artigos 544 e 1134/1, assim concebidos: A propriedade é o direito de gozar e de dispor dos bens da forma mais absoluta, desde que não se faça deles um uso proibido pelas leis e pelos regulamentos. – e – As convenções legalmente formadas valem como leis para aqueles que as fi-zeram ... Estes preceitos tiveram, contudo, o simples mérito de proclamar com clareza aquilo que já era bem conhecido

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no Direito anterior. A propriedade remonta ao Direito ro-mano; o facto de se lhe reconhecerem, à partida, limites, denota bem uma preocupação moderadora. O relevo dos contratos ou, mais precisamente, da autonomia privada era, por seu turno, sublinhado já em fases antecedentes. (Menezes Cordeiro, 2005, p.77)

Sucedeu ao Código Civil francês o Código Alemão, em 1896 (conhecido pela sigla BGB – Bürgerliches Gesetzbuch). “Nas palavras de Hans Dölle, o BGB não abriu o portão do século XX; fechou o do século XIX” (ibidem, p.82, nota 175), na medida em que nada acrescentou em relação ao Código Napoleão de 1804. A partir dos códigos francês e alemão surgiram o que a doutrina chama de codificações tar-dias, entre elas o Código Civil Brasileiro em 1916, com forte influência dos dois códigos europeus.

Naquele momento histórico a economia brasileira era basicamente agrícola e nada industrializada. O CC/1916 – ao tratar do contrato de seguro, naquela ocasião, certa-mente se mostrou extravagante e moderno, pois que pouco ou nada existia sobre o tema e até mesmo sobre a própria atividade securitária no país, exceto os seguros marítimos, que já eram regulamentados pelo Código Comercial de 1850. Perfeitamente compreensível, uma vez situado o có-digo naquele determinado contexto histórico e econômico do país, a assimilação de todas as bases estabelecidas, mo-tivadas por valores principiológicos da época e certamente importados de outros países, muito mais avançados que o Brasil em matéria de seguros. Importante destacar que nem o Código Civil francês, nem o alemão, dispuseram sobre o contrato de seguro, e que os respectivos países promulgaram leis especiais posteriormente. Esta particular situação voltará a ser comentada mais adiante, neste trabalho. Difícil acredi-tar, entretanto, que a mesma base estrutural do contrato de

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seguro tenha se mantido por 86 anos, até a entrada em vi-gor do CC/2002, que alterou substancialmente o cerne desse contrato específico. De caráter indenizatório para garantia imediata de interesse, de aleatório para comutativo, além de outras significativas alterações que serão comentadas do de-correr deste trabalho.

No contexto atual – da new economy – desponta outro modo de produzir, outro modo de consumir, outro modo de trabalhar e de viver, aflorando na mente do jurista o problema da fonte normativa. Se deve tratar de uma fonte negociada ou de uma fonte impositiva, e também em qual nível essa fonte deve se situar: nacional, supranacional ou planetária. Ainda, globalização e revolução digital oferecem ao jurista matéria para: reformular as molduras tradicionais do direito privado; reorganizar a própria atividade; pro-mover os valores da pessoa (Alpa, 2006, p.12). Os seguros também se enquadram nessa nova moldura econômica, tec-nológica e social, requerendo revisão de conceitos jurídicos em consonância com as demais atividades e mesmo exigên-cias da sociedade pós-moderna.

A reflexão sobre o contexto histórico mundial e brasileiro mostra-se imprescindível, de maneira que os co-mentários sobre a evolução do pensamento jurídico em sede contratual não se tornem meras referências, desarticuladas do objetivo principal deste texto que é tratar do contrato de seguro no Brasil e de sua evolução conceitual. Pari passu, portanto, o contrato de seguro brasileiro na ambiência da evolução histórica do pensamento contratual ocidental.

Na doutrina de Díez-Picazo,

corresponde a Kelsen o mérito de ter estabelecido a distin-ção entre o contrato como ato e o contrato como norma. A palavra ‘contrato’ encerra um equívoco, pois se refere tan-to ao ato que os contratantes realizam (v.g., se diz celebrar

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um contrato), como o resultado normativo ou regulamentar que com esse ato se produz (v.g., se diz cumprir um contra-to). Desde o primeiro ponto de vista, o contrato nos parece como um ato jurídico, isto é, como uma ação dos interessa-dos para que o ordenamento atribua alguns determinados efeitos jurídicos. Desde o segundo ponto de vista, o contra-to nos parece como um preceito ou uma regra de conduta (lex contractus, regra contratual), é dizer, como uma deter-minada ordenação à qual as partes submetem sua própria conduta. (Díez-Picazo; Gullón, 2005, p.29)

Ainda na visão sistemática e positivista de Kelsen, importante destacar a necessidade de as partes aderirem e real mente desejarem o contrato, de forma a criarem normas contratuais e, mesmo assim, podendo haver discrepâncias de entendimentos.

Entre a vontade real de uma das partes e a sua decla-ração por qualquer modo exteriorizada, pode existir uma discrepância, na medida em que a esta declaração é atribuí-do, pela contraparte no contrato ou pelo órgão aplicador do Direito, um sentido diferente daquele que a própria parte quis exprimir com a sua declaração ... Mas a ordem jurídi-ca também pode determinar que uma tal discrepância não tem qualquer incidência sobre a validade da norma contra-tualmente criada, que ela é juridicamente irrelevante, que apenas importa o sentido que, no entender do órgão apli-cador do Direito – em caso de litígio – pode normalmente ser atribuído à declaração pela outra parte. A ordem jurídica pode conferir mais peso à vontade real do que à declaração. A resposta à questão de saber qual das duas soluções do pre-sente problema deve ser preferida depende dos princípios de política jurídica que determinam o legislador. (Kelsen, 2003, p.286-287)

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Essa possibilidade da relativização da vontade contra-tual – manifestada justamente por um dos maiores criadores do pensamento jurídico positivista mundial – pode desorien-tar os operadores do Direito de índole mais conservadora, na medida em que Kelsen concebeu a sua teoria pura em 1934, reelaborando-a em 1960. Apesar de a teoria se apresentar desprovida de qualquer ideologia ou mesmo de valor, pre-valecendo a subsunção do fato à norma, a relativização da vontade ponderada pelo autor e reproduzida neste tópico facilmente pode induzir à consideração do papel preponde-rante do julgador nas questões em litígio e mais ainda da ordem jurídica reinante. Importante ainda citar Kelsen, mais uma vez, para reforçar a questão comunitária do Direito – e não só o individualismo aparentemente impresso na norma posta: “não é apenas – e talvez não seja tanto – o interes-se do credor concreto aquilo que é protegido pela norma jurídica que vincula o devedor ao pagamento: é antes o in-teresse da comunidade – apreciado pela autoridade jurídica – na manutenção de um determinado sistema econômico” (ibidem, p.35).

Com base em tais perspectivas, no pensamento do jurista espanhol José Puig Brutau “o Direito não pode se converter em um sistema dedutivo perfeito. A perfeição sis-temática não se pode alcançar, em razão dos mesmos fins a cujo serviço está o ordenamento jurídico. As mudanças que continuamente são produzidas pela realidade social não lhe permitem estabilizar-se em sistema perfeito” (Brutau, 1983, p.33). Na conclusão de Canaris, conhecida a evolução so-cial e a incompletude do conhecimento científico, “subjazem mudanças no sistema objectivo, isto é, na própria unidade da ordem jurídica, e de que ele, por isso, deve ser aberto” (Canaris, 2002, p.107). Assim expressado, propugnam os pensadores do Direito pela abertura do sistema, de modo

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que as incompletudes das normas possam ser colmatadas pela jurisprudência, pela norma individual que é fruto da apli-cação do Direito pelas cortes de justiça. Sabe-se, contudo, que o positivismo formalista se manteve de maneira exacer-bada nos países codificados, praticamente matematizando o Direito, com exceção daqueles da common law – cuja tra-dição anglo-saxônica privilegiou o caso precedente. Neste cenário, os contratos tiveram força normativa no decorrer do século XX, exaltada que foi a liberdade de convenção das partes, na mais pura autonomia da vontade. A bilateralidade contratual é patente nesta ordem de pensamento, fomentada e sustentada pelo individualismo liberal. O tempo, contudo, inexoravelmente avançou e a sociedade evoluiu, motivada por outros interesses e necessidades. Não foi possível persis-tir o pensamento individualista, na então designada sociedade pós-moderna.

No exemplo inicial citado neste trabalho – do pai desempregado – a nova Lei de Falências (nº 11.101/2005) inova ao separar as noções de empresa e de empresário, até mesmo punindo o empreendedor se ele deu causa à falência, mas mantendo a empresa – em razão do cunho social que ela apresenta. Nessa visão contemporânea e ampliada da função da empresa na sociedade (antes ela pertencia ao seu dono, exclusivamente), o sistema jurídico procurou resolver de fato problemas sociais que eram criados a partir do fechamen-to de uma fábrica, evitando-os através da continuação das atividades da empresa deficitária e em prol principalmen-te não só dos credores, mas também dos empregados – os quais deixarão de perder os seus postos de trabalho, se ela puder ser recuperada. A citada Lei, com base nesse objetivo bastante claro e eminentemente socializante, declara no seu Artigo 47: “A recuperação judicial tem por objetivo viabili-zar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora,

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do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica”. Na visão de Suzy Koury, e de modo a consubstanciar efetivamente a nova ordem, “havemos, então, de insistir na necessidade de per-sonificação da empresa, a fim de que o Direito Comercial torne-se, efetivamente, o Direito da Empresa” (Koury, 2005, p.286). A grande novidade da Lei de Falências de 2005 é, sem dúvida, a possibilidade de se promover a recuperação da empresa, que antes não existia.

A legislação e a doutrina demonstram, de maneira ir-refutável, o despertar de uma nova consciência jurídica toda ela voltada para o social – o coletivo. Atinge essa ordem, de forma drástica, as relações contratuais e, como tal, não poderia ficar apartado o contrato de seguro. Ele tem sido en-tendido fundamentalmente sob o aspecto da socialidade. O dever social que emana da obrigação de reparar ou recompor o prejuízo causado a outrem, assim como a garantia pluri-forme em relação aos próprios danos ou infortúnios sofridos pelo segurado, mas que podem afetar outras pessoas que com ele se relacionam ou que apresentam algum grau de depen-dência econômica ou financeira. Ainda, a socialidade – termo que pode ser clivado –, abrange a ideia de proteção social, de garantia de interesses que, mesmo com núcleo individu-alista, se referem aos cidadãos que compõem determinada sociedade e que portanto requerem que sejam tutelados – pois que é do desejo e do interesse comum a mencionada tutela. O seguro se reveste integralmente de socialidade, seja qual for a sua concepção. Aqueles tipos de seguros voltados para pessoas e comercializados de forma maximizada têm especial atenção da nova ordem jurídica, e este trabalho en-fatizará a análise de todas as situações concernentes e que têm despertado a atenção não só da sociedade, mas também do judiciário. O Prof. Sílvio Venosa enfatiza a importância

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da finalidade social da atividade seguradora, com base nos aspectos indicados: “Cabe à seguradora estruturar-se para atender à finalidade social a que se propôs. Quanto maior o desenvolvimento econômico e tecnológico da sociedade, maior será o campo de atuação do segurador. Há até os que sustentam que, em futuro próximo, toda atividade humana será segurada, em prol de uma garantia de ressarcimento ge-ral de prejuízos” (Venosa, 2005, p.371).

A autonomia da vontade – expressão máxima da co-dificação moderna, desde o final do século XVIII e início do século XIX, sintetizada no brocardo latino pacta sunt servanda – comandou o pensamento jurídico contratual, praticamente até os dias atuais. Para Pontes de Miranda, resumindo o pensamento aqui expresso, “rege, no direito privado, o princípio do autorregramento da vontade, se-gundo o qual, se não há regra jurídica especial em sentido contrário, se podem concluir contratos de qualquer con-teúdo” (Miranda, 1964, p.271). Conhecidos os fundamentos caracterizadores da época, não poderia ser outra a concep-ção dogmática do liberalismo clássico, a qual não levava em conta se o indivíduo (e não tanto a pessoa) se relacionava com diversos outros indivíduos e tampouco se esse plexo relacional trazia consequências diversas que não meramen-te individualizadas ou egoísticas. Ficou demonstrado – no exemplo do pai de família que perde o emprego – que várias pessoas são igualmente afetadas pelo infortúnio daquele, mas esse tipo de inter-relação subjuntiva não fazia parte do pen-samento concebido no século XIX.

Um contrato, seja qual for a sua natureza e o con-teúdo avençado, pode interferir na esfera de interesses de outros indivíduos, coletiva ou difusamente. O magistério de Cássio Cavalli, já citado no início desta obra, ao discorrer sobre a função social da empresa no moderno direito, indica que “a sociedade não mais resulta da afirmação autônoma

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do indivíduo perante o grupo social, com o isolamento dos vínculos havidos pelo indivíduo. Ela resulta da manutenção do equilíbrio do conjunto das relações do sujeito com os de-mais sujeitos. Esse conjunto de relações estabelece interesses difusos” (Cavalli, 2005, p.24). Também na visão moderna da ilustre jurista portuguesa Ana Prata, “pode-se, pois, di-zer, em conclusão, que a noção de autonomia privada não é atemporal, nem imutável. Ela ganha autonomia e relevo conceitual ligada à concepção jurídica do liberalismo econó-mico, como pressuposto da noção de negócio jurídico, e vai sofrendo uma desvalorização que acompanha o transformar deste último conceito” (Prata, 2003, p.25).

Na linha do tempo, as relações humanas evoluem e a proteção do Estado é instada a se estabelecer sobre seg-mentos específicos, como saúde e educação, ao passo que os indivíduos – mesmo propugnando pela liberdade de con-tratação e sem regulamentação excessiva – desejam dispor de determinadas garantias que lhes assegurem respeito à própria dignidade, saúde e segurança, proteção de seus in-teresses econômicos, melhoria da qualidade de vida, bem como transparência e harmonia nas relações de consumo. A promulgação do Código de Defesa do Consumidor no Brasil, em 1990, representou a consagração de tais anseios da sociedade, na medida em que todos eles estão expressos no art. 4° da Lei nº 8.078/90 – marco decisório desses novos tempos, dessa nova ideologia.

A dignidade da pessoa humana – do latim dignus – aquele que merece estima e honra, aquele que é importante – passa a ser o princípio que fundamenta a tutela do direito do indivíduo de ser respeitado quando contrata, quando efetiva um negócio. Portanto, no ensinamento do Prof. André Andrade, “a dignidade não é algo que alguém precise postular ou reivindicar, porque decorre, como já observa-do, da própria condição humana ... O que se pode exigir

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não é a dignidade em si – pois cada um já a traz consigo –, mas respeito e proteção a ela” (Andrade, 2006, p.17). No decorrer deste trabalho, o princípio aqui enunciado será re-prisado muitas vezes, em razão de sua importância no novo contexto contratual.

Importante registrar que nem mesmo a versão rea-cionária à nova ordem, dentro do pensamento denominado neoliberalismo – que pretendeu instaurar nova onda priva-tista pelo mundo –, conseguiu se manter de forma perene, pois que o pensamento com contornos coletivos e difusos já ganhara espaço suficientemente expressivo nas sociedades pós-modernas. O direito do consumidor e mesmo as questões ambientais do planeta alargaram os conceitos mais conser-vadores dos ordenamentos jurídicos, refletindo em todas as demais áreas do Direito – numa escala crescente de coletiviza-ção – em detrimento do individual. Para Mancuso, “dir-se-ia que, enquanto o interesse geral ou público concerne primor-dialmente ao cidadão, ao Estado, ao direito, os interesses difusos se reportam ao homem, à nação, à percepção do jus-to” (Mancuso, 2004, p.87). O neoliberalismo respalda-se na

liberdade de mercado, desregulamentação, respeito à auto-nomia privada, restrição da atividade dos juízes na revisão e modificação do contrato, reconhecimento da possibilidade de limitar indenizações, impugnação de toda ideia relacio-nada com o abuso do direito, a lesão, e outros instrumentos protecionistas. Este modelo resistiu a toda norma protecio-nista; por exemplo, não considerava que os trabalhadores necessitavam de proteção; se podem se casar, votar em eleições políticas, por que haveriam de protegê-los quando celebram um contrato? (Epstein, 1995, p.82)

A nova ordem, coletiva, contudo, não se rendeu a tais ideais reacionários. A legislação caminhou a passos largos na

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proteção do indivíduo, até mesmo limitando direitos, e mais com vistas na tutela dos interesses supraindividuais, a partir de uma ótica muito mais coletiva e que no final protege os sistemas, as estruturas construídas pela sociedade: liquidação de empréstimos de financiamentos imobiliários limitados a determinado percentual de renda do mutuário-trabalhador, por exemplo, com flagrante limitação de direitos; proteção do sistema financeiro imobiliário; garantia de subsistência individual da pessoa e da família. Este exemplo, certamente, repugna qualquer ideal neoliberal.

Na lição de Boaventura de Sousa Santos, “a Constituição de 1988, símbolo da redemocratização brasileira, foi respon-sável pela ampliação do rol de direitos, não só civis, políticos, económicos, sociais e culturais, como também dos chamados direitos de terceira geração: meio ambiente, qualidade de vi-da e direitos do consumidor” (Santos, 2007, p.17). A partir do movimento consumerista iniciado nos Estados Unidos e logo acompanhado pela Europa e outros países ocidentais, os velhos parâmetros contratuais – concebidos no século XIX – passaram a ser contestados ou simplesmente revogados pelos modernos ordenamentos pertinentes, diante da construção de novos paradigmas. O pacta sunt servanda, com a sua her-meticidade que predominava, relativizou-se a tal ponto que, contemporaneamente, a função social do contrato deixa pouca margem para a sua prevalência. De qualquer modo, os novos paradigmas, mais do que relativizar os pactos contra-tuais, passaram a exigir que a formulação deles acontecesse de maneira transparente, clara e objetiva – de modo a não ensejar desequilíbrio nos negócios realizados. Operadores do direito, de índole privatista e ainda contestadores das bases microssistêmicas implantadas pelo Código de Defesa do Consumidor, não conseguem visualizar este ponto que diferencia e muito a nova ordem posta: mais do que punir o fornecedor que incorre nas más práticas insertas no novo

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ordenamento, está o convite às boas práticas. Nada diferen-te da já consagrada boa-fé objetiva, com deveres-anexos. No ensinamento da Profª Claudia Lima Marques,

trata-se, portanto, de uma nova visão da obrigação, como um complexo de atos, condutas, deveres a se prolongarem no tempo, do nascimento à extinção do vínculo. Aceitar a existência de deveres de conduta anexos aos contratos, de-veres anexos contratuais ou obrigações acessórias oriundas do princípio da boa-fé objetiva (como o dever de informar, de cooperar, dever de cuidado, de sigilo, de conselho, de lealdade, etc.), significa reconhecer a imposição de um novo patamar de boa-fé criadora de deveres de conduta contra-tual. (Marques, 2006, p.104)

No seguimento deste trabalho, os novos paradigmas serão particularmente analisados naquilo que afetam os con-tratos de seguros, de maneira geral.

Outro fenômeno transformador da sociedade con-sumidora moderna diz respeito aos contratos de duração prolongada ou cativos, como também são denominados pela atual doutrina, ou ainda contratos relacionais, que se con-trapõem ao contrato descontínuo (Porto Macedo Jr., 2007).

O fenômeno – contratos de prolongada duração – é muito importante na economia atual: os serviços públicos privatizados, as escolas privadas, os serviços de saúde, os seguros, o contrato de trabalho, as locações de imóveis são vínculos temporalmente dilatados ... Também os contratos de fornecimento entre empresas provedoras de insumos ou mercadorias e os contratos de assistência tecnológica são de longa duração. (Lorenzetti, 2004, p.727)

Os contratos de adesão – nos quais o consumidor nada

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interfere na pactuação das regras – praticamente passaram a constituir a grande maioria dos contratos celebrados, em todo tipo de relação comercial. Os seguros são contratos de adesão.

Para Francesco Carnelutti (2000b, p.104), a função do Direito é, pois, reduzir a economia à ética. O pensamento confirma os princípios da solidariedade e da equidade que devem permear as relações humanas, por mais egoísticos que possam ser os objetos regulados pelo direito, ressaltando a socialidade do contrato de seguro, nesta obra enfatizada. No segmento deste trabalho, a assertiva aqui expressa ba-sicamente conduz grande parte do entendimento moderno acerca da atividade seguradora, na medida em que o volun-tarismo contratual tem sido limitado por novos paradigmas sociais e jurídicos, ao passo que as seguradoras não podem mais dispor livremente de seus produtos securitários, con-duzidas que são por essa limitação. A natureza social dos contratos de seguros e especialmente aqueles voltados para garantir pessoas – Vida – Saúde – têm especial significado para a sociedade e, assim, a regulamentação não é só mais severa, como também os princípios norteadores do direito e com viés consumerista são mais exacerbados em relação a esse segmento. A sociedade pós-moderna determinou tal valor e a atividade deve se submeter a tal paradigma, uma vez operando livremente no setor. Pode gerar perplexidade a não igualdade dessa equação: atividade livre, porém limitada por valores coletivos erigidos pela sociedade consumidora. Há, portanto, confronto entre valor econômico e valor so-cial. O Direito, cumprindo seu papel jurisdicional, impõe limites em prol dos valores traçados pela própria sociedade, segundo a axiologia de cada momento histórico. Quando da promulgação da nova lei de seguros em Portugal, Decreto-lei nº 72, de 16 de abril de 2008, o legislador lusitano deixou registrada a necessidade, que se tornou premente naquele

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país, de reconfiguração das bases legais do contrato de segu-ros, em face da evolução, não só do próprio segmento, como também dos interesses da sociedade portuguesa. Os termos insertos na exposição de motivos do mencionado ordena-mento português traduzem os pensamentos expressos nos parágrafos anteriores: “em suma, em especial nos seguros de riscos de massa, importa alterar o paradigma liberal da legis-lação oitocentista, passando a reconhecer explicitamente a necessidade de proteção da parte contratual mais débil”.

Este trabalho versará também sobre a justiça distributi-va, a qual é essencialmente respaldada pelos anseios sociais os quais impõem limitação nos lucros da atividade econômica, e não fica apartada dessa realidade a atividade seguradora, cer-tamente. O Direito não atrapalha a economia, mas a conduz para caminhos socialmente aceitáveis e segundo os paradig-mas traçados pelos cidadãos.

De igual importância, relevante nesta parte introdu-tória do trabalho, estabelecer a diferença entre legislação e jurisdição. A legislação constitui a mais alta função do Estado e se situa além da vontade das partes, produzindo direito através das normas de conduta. A jurisdição, também exer-cida pelo Estado, produz preceitos, aplicando o direito em cada caso individualizado. Ambas como modalidades da atividade jurídica do Estado – na jurisdição importa o fa-to concreto e particularizado. Na sua apreciação e análise, visando a subsunção à lei geral, o aplicador do direito o considerará e valorizará todas as circunstâncias próprias que o cercaram; assim, não haverá apenas o processo pela via positivista da legislação. Se assim não fosse, qualquer má-quina pré-programada poderia fazer ou dizer o Direito entre as partes conflitantes. Não se pode olvidar que também a arbitragem, embora não relacionada à atividade Estado-juiz, tem função jurisdicional. Esse instituto, moderno na sua essência, ainda é pouco desenvolvido no Brasil, mas ganha

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espaço cada dia mais e muito em determinadas áreas espe-cíficas: no segmento de resseguro, por exemplo, a utilização da arbitragem é fator mundialmente reconhecido e pratica-do, até mesmo em razão das especificidades desse tipo de negócio. Mister tratar, ainda que superficialmente, do te-ma correlacionado à jurisdição que é o acesso à justiça. Há um movimento mundial que pretende promover melhorias tais nos sistemas jurídicos – de modo que todos possam ter acesso à justiça, como condição de igualdade social. Neste aspecto, reformas são empreendidas não só no campo do direito processual, mas também na forma de interpretação do direito positivado. Há, mesmo, correntes que se insur-gem contra a imposição dogmático-formalística do direito que impõe a interpretação do fenômeno jurídico somente sob a ótica da norma. O Direito pelo direito é a máxima da corrente positivista, atualmente rechaçada pelo moderno pensamento doutrinário. Na lição de Mauro Cappelletti, “o movimento do acesso à Justiça, no entanto, prende segura-mente a mobilidade da crítica rea lística do formalismo e do dogmatismo jurídico, com a sua absurda pretensão de uma ‘pureza’ que nada tem a ver com a realidade, se propõe ob-jetivos dos mais diferenciados e mais fiéis à complexidade da sociedade humana” (Cappelletti, 1991, p.146). A moderni-dade impõe o acesso fácil do cidadão à Justiça e não só dele individualmente, mas dos grupos socialmente organizados. Os obstáculos são retirados, a cada evolução, ao passo que a democracia exige acesso imediato e sem qualquer barrei-ra ou constrangimentos. Com tal desiderato, as sociedades elegem meios alternativos de solução de conflitos: direitos sociais, por exemplo, guindados à condição de direitos co-letivos e difusos, de modo a atingir uma grande massa de pessoas, de uma só vez, facilitando a busca de seus direitos tutelados. Ações coletivas – com especial legitimação confe-rida para agir, não só ao Ministério Público, mas também às

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Associações de Consumidores ou outras criadas para prote-ger o meio ambiente, a família, as crianças, os deficientes etc. A arbitragem, a mediação e a conciliação são outros métodos que simplificam a jurisdição e o acesso à justiça. Buscando novamente no ensinamento de Cappelletti, pode-se concluir este breve tópico relativo ao acesso à justiça afirmando que

devemos estar conscientes de nossa responsabilidade; é nosso dever contribuir para fazer que o direito e os remé-dios legais reflitam as necessidades, problemas e aspirações atuais da sociedade civil; entre essas necessidades estão seguramente as de desenvolver alternativas aos métodos e remédios, tradicionais, sempre que sejam demasiado caros, lentos e inacessíveis ao povo; daí o dever de encontrar alter-nativas capazes de melhor atender às urgentes demandas de um tempo de transformações sociais em ritmo de velocidade sem precedente. (Cappelletti, 1994, p.97)

Em que pese o fato de existirem vários tipos de téc-nicas interpretativas, mister destacar a da interpretação sistemática – através da qual a norma passa por uma in-vestigação ampla, que busca a sua verdadeira teleologia –, a sua razão de ser ou mesmo as finalidades para as quais ela foi construída. Na lição de Tercio Sampaio Ferraz, “a percepção dos fins não é imanente a cada norma tomada isoladamente, mas exige uma visão ampliada da norma den-tro do ordenamento” (Ferraz Júnior, 2006, p.79). Desta maneira, na esfera contratual – inclusive a securitária –, a dogmática enseja que não se pode considerar apenas a le-gislação pertinente; o caso concreto deve ser analisado e interpretado com base nas normas do sistema jurídico, ou seja, deve ser investigada a razão de ser das normas den-tro do ordenamento global no qual elas estão inseridas. Assim, a questão individualizada deve ser perscrutada sob

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os princípios gerais que regem os contratos, muito além da norma legislativa específica e isolada: as exigências de justiça, equidade e boa-fé objetiva insertas no Código de Defesa do Consumidor; o respeito à dignidade da pessoa humana – como condição e premissa maior – e de outros direitos fundamentais da Constituição Federal Brasileira, entre outros. Para Tercio Sampaio Ferraz, esse modelo hermenêutico transforma-se num modelo de integração do direito. Ressalta-se, ainda, a necessidade do intérprete e aplicador do direito de recorrer ao princípio da razoa-bilidade, em face da busca da igualdade: idênticos exigem tratamento igual, e diferentes requerem tratamentos dife-renciados. A escola moderna italiana estabelece o seguinte sobre os novos paradigmas: “é a conquista interpretativa do princípio da igualdade, distinção maior, talvez, entre o Estado Liberal Clássico e o Estado Democrático de Direito. Indubitavelmente, sua aplicação passa por um juízo axioló-gico de escolha, entre o que é discriminação injustificada e tratamento razoável entre fattispecies diversas, revelando o rompimento com o sistema lógico-matemático, neutro por excelência, em sublimação ao pensamento ideologicamente comprometido e transparente” (Giuliani; Palazzo; Ferranti, 1996, p.272-273, apud Nalin, 2006a, p.50). E por fim, por ser extremamente relevante neste trabalho, mais um fundamento que será utilizado na análise dos temas afetos, a interpretação que considera as exigências socioeconômi-cas da lei, com base no art. 5º da Lei de Introdução ao Código Civil.2 Na dicção de Maria Helena Diniz, “o ideal dos juristas é descobrir o que está implícito no ordena-mento jurídico, reformulando-o, apresentando-o como um

2 LICC. Art. 5º. Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às expectativas do bem comum.

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todo coerente e adequando-o às valorações sociais” (Diniz, 2007a, p.145). Todos esses conceitos dogmáticos refleti-rão na apresentação deste trabalho, na medida em que o seu conteúdo enseja interpretação material não só dos tex-tos legais, mas também e necessariamente da teleologia da lei – no pensamento pós-moderno em relação ao contra-to de seguro. Assim sendo, o fato de o contrato de seguro constituir ciência fundada em teorias próprias, a ponto de justificar série de situações hodiernamente suscitadas, não equivale a uma verdade absoluta quando coletivamente considerada. Mesmo que se advogue a defesa do grupo se-gurado, de modo a justificar alterações supervenientes ao contrato do tipo relacional e cativo que é o seguro de vida em grupo, por exemplo, e de modo mesmo a viabilizar a continuidade e liquidez da cobertura securitária, devem-se levar em conta outros aspectos concernentes e não menos importantes: a razoabilidade das alterações pretendidas; a boa-fé objetiva; a expectativa do segurado-consumidor diante de um seguro de longa duração; a situação financeira do segurador, incluindo o seu lucro e a sua performance pro-fissional ao longo dos últimos anos nos quais se manteve o programa de cobertura securitária em questão, entre outros fatores jurídicos, sociais e econômicos. Além da legislação securitária deverão ser apreciados outros valores de modo a ser aplicada a jurisdição adequada, razoável e justa. Se apreciada a questão de uma só vertente, notadamente no aspecto legislativo, a concretude do direito pode não ser, em princípio, alcançada, mantendo-se a injustiça. O pacta sunt servanda, expressão máxima da revolução burguesa, certamente não é mais o único princípio condutor da her-menêutica no campo securitário; a sociedade evoluiu e a empresarialidade legal – pressuposto constitutivo de grande parte das atividades econômicas do homem pós-moderno – atribuiu novo grau de responsabilidade ao empreendedor

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frente aos usuários de produtos e serviços. Para colmatar essa preleção, importante frisar o princípio da proibição do retrocesso, ínsito no art. 5º, XXXII, da Constituição Federal, em decorrência do disposto no art. 60, § 4º, tam-bém da Carta Magna. Na medida em que “não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir os direitos e garantias individuais”, conquanto o “Estado pro-moverá, na forma da lei, a defesa do consumidor” (XXXII) – inscrito no Capítulo I, dos direitos e deveres individuais e coletivos da CF, o referido princípio se fundamenta. “A proibição de retrocesso assume, portanto, feições de ver-dadeiro princípio constitucional implícito, que pode ser reconduzido tanto ao princípio do Estado de Direito (âm-bito da proteção da confiança e da estabilidade das relações jurídicas), quanto ao princípio do Estado Social, na condição de garantia da manutenção dos graus mínimos de segurança social alcançados” (Sarlet, 1998, p.371, apud Rêgo, 2007, p.153). Há, sem dúvida, forte e articulada série de novos paradigmas que permeiam as relações contratuais, com vistas na máxima proteção do consumidor, uma vez reconhecida a sua vulnerabilidade na relação (art. 4º, I, do CDC). Não há como subsistir, portanto, qualquer tentativa de burlar es-te ordenamento valorativo, pois que encontrará repulsa da sociedade tal intento, que o construiu ao longo de décadas. Nova jurisprudência de valores, uma nova visão dos prin-cípios do direito civil, agora muito mais influenciada pelo direito público e pelo respeito aos direitos fundamentais dos cidadãos, na dicção de Claudia Lima Marques (2007, p.25).

Com base nessa panorâmica histórico-jurídica sobre a formação do ideário das bases contratuais que regem as relações humanas e também os contornos dos novos para-digmas que vêm movimentando a sociedade pós-moderna, este trabalho visa demonstrar que o contrato de seguro, neste contexto, deixou de ter função meramente indenizatória e

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individualizada, inserindo-se na mais estreita função social que o fundamenta e com base no fundo comunitário que é administrado pela Seguradora – em prol de todos os segura-dos aderentes.

Reconhecida também a natureza comutativa do con-trato de seguro, uma vez que o sinalagma é estabelecido de pronto – na contratação –, a aleatoriedade permanece no risco tão-somente. E o risco, por sua vez, é atuarialmente medido e calculado, e, com o auxílio da estatística, circunscreve-se o perigo da ocorrência. Todos os tipos de contratos de seguros estão sujeitos a tais novos paradigmas, mesmo com a interven-ção judicial de modo a jurisdicionar interesses contrariados? Um contrato de seguro de pessoa individual – v.g. de Vida – tem os mesmos fatores protetivos incidentes que um contrato celebrado por uma grande empresa construtora? O Código de Defesa do Consumidor, por sua vez, aplica-se a todo e qualquer contrato de seguro? Há titularidade subjetiva de ca-da segurado em relação ao fundo comunitário estabelecido e administrado pela Seguradora? Há, também, de acordo com os novos paradigmas contratuais, indisfarçável tolhimento da iniciativa privada seguradora, em face da proteção extrema-da ao consumidor-segurado? É justa tal situação? Ou injusta? O Estado, não cumpridor das obrigações que lhe competem, até mesmo no nível constitucional – v.g. fornecimento de serviços de saúde adequados a todos os cidadãos3 –, pode exi-gir da iniciativa privada a mesma carga obrigacional que a lei lhe impõe? Cabe ao Estado promover a obrigatoriedade da contratação de seguros, visando os aspectos socializantes

3 Constituição Federal. Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

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que esse tipo de contrato proporciona? O contrato de segu-ro, no ideal pós-moderno e sedimentado pelo ordenamento progressista e dinâmico, deve ser visto e entendido de for-ma tridimensional, isto é, de maneira que o seu âmbito de atuação se situe além das bases meramente contratuais? Há, então, obrigações extracontratuais insertas nos contratos de seguros, e a tecnicidade subjacente seria pautada, de modo a estabelecer os necessários limites, na boa-fé objetiva? O mercado segurador brasileiro, no estágio atual de desenvol-vimento, está preparado para absorver e praticar todas essas inovações que já ocorreram, mas que ainda se encontram latentes, até mesmo no âmbito judiciário, uma vez que as Cortes de Justiça ainda não foram instadas a se pronunciarem sobre grande parte das mencionadas inovações? As proposi-ções não param por aqui. O presente trabalho, com os olhos postos no ordenamento jurídico brasileiro, mas sem perder de vista a experiência comparada em determinados aspectos, propõe-se a analisar as questões apresentadas e oferecer res-postas ou mesmo linhas de orientação, diante da realidade que se apresenta no cotidiano do mercado segurador nacio-nal. Não foram ainda pacificados vários entendimentos que serão abordados e emoldurados nas páginas que se seguem. A doutrina sobre o contrato de seguro é bastante escassa no Brasil, limitando-se, com raras exceções, à apresentação de comentários pontuais sobre determinados casos julgados ou ainda sobre a inteligência pertinente aos artigos inscritos no Capítulo XV do CC/2002 (arts. 757 ao 802). Há, na maioria das obras, a indicação de conceitos provenientes do ideário reinante no século XIX, de natureza essencialmente patri-monialista, baseado o contrato de seguro exclusivamente na álea, sem nenhuma diferença aparente em relação ao jogo ou à aposta. O seguro é observado e classificado apenas em face de cada contrato individualmente, sem levar em conta sua necessária relação com os demais, os quais compõem o fundo

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comunitário. De igual raciocínio, o contrato de seguro é vis-to como relação jurídica bilateral, sem levar em conta a sua natureza plurilateral. Repete-se, portanto, tudo aquilo que já foi produzido muito antes em outras épocas, com evidente apego ilógico a determinadas definições sem sentido prático, não se apercebendo os autores que o contrato de seguro não tem mais aquelas características rudimentares, as quais fo-ram modificadas no transcorrer da evolução das sociedades e pela força cogente de novos paradigmas. Não se advoga a mudança de conceitos pela simples afeição a qualquer tipo de onda modernizante, mas sim e necessariamente em razão da estrutura lógico-sistemática observada nos novos cenários que se apresentam: o contrato de seguro foi essencialmen-te modificado, desde a sua concepção a partir das primeiras codificações modernas. É irrefutável tal assertiva. O apego a teorias e conceitos já obsoletos, em que pese a repetição que ainda sofrem por autores renomados, mas que certamen-te não são experimentados no labor securitário diário, não equivale à aceitação inquestionável, qual um axioma eviden-te. Não se pode negar a força receptora e caracterizadora de verdadeira autopoise na qual o contrato de seguro se insere, e, sofrendo pressões do meio e com ele interagindo, siste-maticamente substitui seus próprios conceitos, em contínua e dinâmica articulação. Não poderia ser diferente tal movi-mento. O que justificaria o apego de forma peremptória a determinados conceitos somente porque foram estabelecidos em outras e clássicas épocas, nas quais sequer vivemos e nem mesmo pudemos estabelecer as reais percepções de coerência e de concretude do Direito – de acordo com as necessidades de então? Insistir em teses contrárias à modernidade seria negar a cientificidade que permeia o Direito, o qual é posto para servir à sociedade e não em razão do próprio Direito. Coalizado com a modernidade dos fatos, o Direito visa pro-mover a pacificação dos conflitos, preservando a coexistência

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dos cidadãos em sociedade – de acordo com os valores de cada época. Não seria lógico pretender que o contrato de seguro ficasse fora de tal dinâmica, mantendo-se intocável em conceitos e práticas concebidos nos séculos passados, por puro formalismo apriorístico. Paradoxal seria tal pretensão conservadora, em face do objetivo inserto no contrato de seguro, justamente aquele de prestar garantia aos diversos interesses encontrados na sociedade, os quais também variam de acordo com cada época. Permissa venia, muitas obras dou-trinárias precisam ser reavaliadas e refeitas, em se tratando do contrato de seguro e sua contemporaneidade.

A propedêutica demonstrada nesta introdução visou deixar bastante clara a linha de raciocínio que foi utilizada na elaboração do texto que se segue: a socialidade do contrato de seguro, promovida pelas exigências da sociedade pós--moderna, razão dos novos paradigmas, dos novos conceitos relacionais e contratuais.