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Da memória à presença: práticas do arquivo na cultura contemporânea. Florencia Garramuño Universidad de San Andrés, CONICET “… and the last remnants memory destroys”. Com essas palavras na epígrafe começa na sua tradução para o inglês - que opaca a ambigüidade presente no original alemão-, Os Emigrantes de W. G. Sebald, talvez um dos exemplos mais originais de um impulso por fazer da literatura um espaço no qual convivem restos de histórias diferentes entre si, colhidas e recortadas de espaços heterogêneos, e baralhadas na escritura como memoriais que abdicam de toda restituição. 1 Enigmas proliferantes sem resolução, a escritura se detém no registro de esses resíduos vedando toda pulsão redentora. Os Emigrantes, e tantos outros de Sebald; penso, imediatamente, em Austerlitz: concebida a memória e a rememoração como uma atividade que poderia acarretar a destruição dos restos e vestígios do passado, como poderiam se preservar esses restos, não for através de um dispositivo que, ao se recusar à memória, pudesse conservar, ainda que sob o perigo de que perecesse a 1 Cf. Mark Anderson, “The Edge of Darkness: on W.G. Sebald”, October, no. 106. Diz Tacita Dean –artista que, também ela, trabalha com práticas do arquivo-: “Sebald surveys a modern world so devastated by history as to appear “after nature”: many of its inhabitants are “ghosts of repetition” (including the author) who seem at once “utterly liberated and deeply despondent.” These remnants are enigmatic, but they are enigmas without resolution, let alone redemption. Sebald even questions the humanist commonplace about the restorative power of memory.” Tacita Dean, October, nº 106. 1

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Da memória à presença: práticas do arquivo na cultura contemporânea.

Florencia Garramuño

Universidad de San Andrés, CONICET

“… and the last remnants memory destroys”. Com essas palavras na epígrafe

começa na sua tradução para o inglês - que opaca a ambigüidade presente no original

alemão-, Os Emigrantes de W. G. Sebald, talvez um dos exemplos mais originais de um

impulso por fazer da literatura um espaço no qual convivem restos de histórias

diferentes entre si, colhidas e recortadas de espaços heterogêneos, e baralhadas na

escritura como memoriais que abdicam de toda restituição.1 Enigmas proliferantes sem

resolução, a escritura se detém no registro de esses resíduos vedando toda pulsão

redentora. Os Emigrantes, e tantos outros de Sebald; penso, imediatamente, em

Austerlitz: concebida a memória e a rememoração como uma atividade que poderia

acarretar a destruição dos restos e vestígios do passado, como poderiam se preservar

esses restos, não for através de um dispositivo que, ao se recusar à memória, pudesse

conservar, ainda que sob o perigo de que perecesse a lembrança, esses restos? Restos,

aliás, de que seriam esses vestígios, se o passado ao que convocariam seria esquecido

pela memória que o rememora?

A epígrafe de Sebald abre uma possível contradição entre memória e vestígio

que sua escritura ilumina, e que em várias práticas literárias contemporâneas exibe-se de

formas diversas e com conseqüências teóricas e políticas variadas. Os anos setenta nos

romances argentinos Historia del llanto (2007) de Alan Pauls ou Museo de la

revolución (2006) de Martín Kohan, ou a coleta de uma série de objetos de

temporalidades diversas em Buenos Aires tour (2003) de Jorge Macchi, lampejam em

uma encruzilhada de tempos que tem no presente eterno –de seus discursos, da

enunciação, do ato mesmo da coleta – a figura mais evidente dessa virada para o que

resta e permanece –o que sobrevive- no presente. Também Bernardo Carvalho em

diferentes romances utiliza de formas variadas esta prática do arquivo: recolhendo

histórias, realizando pesquisas, andando percursos, nos textos de Carvalho a narrativa

1 Cf. Mark Anderson, “The Edge of Darkness: on W.G. Sebald”, October, no. 106. Diz Tacita Dean –artista que, também ela, trabalha com práticas do arquivo-: “Sebald surveys a modern world so devastated by history as to appear “after nature”: many of its inhabitants are “ghosts of repetition” (including the author) who seem at once “utterly liberated and deeply despondent.” These remnants are enigmatic, but they are enigmas without resolution, let alone redemption. Sebald even questions the humanist commonplace about the restorative power of memory.” Tacita Dean, October, nº 106.

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vai se desenrolando a partir da exibição dos restos. Restos que, as vezes, pertencem a

um passado identificável e se mostram como restos de uma história possível que poderia

ser reconstruída a partir desses restos; outras vezes, no entanto, eles encontram no puro

presente de sua exibição o sentido último da escritura.2 Nos casos mais extremos, essa

prática da coleta recusa absolutamente a reconstrução de uma história no sentido de

elaboração de uma trama, de uma intriga, como acontece, por exemplo, em Eles eram

muitos cavalos (2001), de Luiz Ruffato. Nesse romance, uma grande coleção de retalhos

de diálogos, textos variados, recortes jornalísticos, monólogos e acontecimentos

-“minicontos”, tem sido chamados- organizam o caleidoscópio cambiante de um dia na

megalópole paulista.3 Na prática que Rosangela Rennô vem desenvolvendo há alguns

anos, ao construir grandes arquivos fotográficos de pessoas desconhecidas, e articulando

essas fotografias em obras que testemunham o esquecimento, também essas políticas do

arquivo lembram, no privilégio que dão à noção de contingência, mas a presença que a

rememoração ou a reconstrução do vestígio.

Buenos Aires Tour, de Jorge Macchi é um livro objeto mais, também uma

instalação –e, gostaria de propor, livro e instalação não são nem indistinguíveis nem,

talvez, equivalentes. Além das diferentes formas nas quais Buenos Aires Tour tem sido

exibido em diferentes museus do mundo, uma série de objetos achados, os objet trouvé

(assim são chamados por Macchi), alguns dos quais são reproduzidos facsimilarmente

no livro, exibem na instalação sua materialidade como “quadros” pendurados da parede

ou em vitrines erigidas nas salas: duas cartas do baralho espanhol, um dicionário inglês-

espanhol escrito a mão, selos com o retrato de Eva Perón –entre outros-, objetos que

Macchi foi recolhendo ao realizar o percorrido pela cidade que fora marcado pelo

itinerário fortuito criado num vidro pelo baque de uma pedra. Esses objetos acham na

instalação um espaço no qual já não se rememora mas se coleta. Entenda se bem: não se

trata de cópias; são os objetos mesmos, esses objets trouvés, os que acham seu lugar por

2 São vários os romances de Carvalho que incluem agradecimentos às pessoas que tem colaborado nessa coleta. Em Nove Noites os restos que compõem o romance são de diversa índole: a história de Quain, as suas fotografias, o diário; em Mongólia, trata-se do diário de um jornalista que o fotógrafo utiliza para seguir as pegadas de sua desaparição; em O sol se põe sobre São Paulo, trata-se da história que conta a japonesa e que o escritor escreve. A estrutura caleidoscópica de O filho da mãe, conjugada com o apêndice final que situa os agradecimentos, e os dados da viagem no blog criado pelo projeto “Amores Expressos” que fora origem do romance também apontam a essa idéia de literatura como arquivo de restos. 3Luiz Ruffato, Eles eram muitos cavalos, São Paulo, Boitempo, 2001. Flávio Carneiro, en No País do Presente, reconhece esta prática arquivística de Ruffato: “Feito um fotógrafo lambe-lambe -aponta Carneiro-, Ruffato sai pela cidade clicando os rostos que, depois, colocados em cuidadosa montagem, vão formar o rosto maior da própria cidade, oferecido ao leitor para uma montagem final, sujeita a variações conforme o olhar de quem o veja.” Carneiro, No país do presente, Rio de Janeiro, Rocco, 2005, p. 71.

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trás dos vidros que, na parede ou sobre as mesas de vitrine, emoldura as diferentes

partes da obra ou instalação.4

Também em Museo de la revolución de Martín Kohan a idéia de museu –desde

o título- dirige os diferentes percorridos pela cidade de México que realiza Marcelo, o

narrador, em 1995, e o trajeto de Buenos Aires para Córdoba de Rubén Tesare em 1975

com o qual começa o romance. De fato, varias das cenas mais importantes na

construção da intriga de Museo acontecem, precisamente, em museus: na casa museu de

Trotzsky – que o narrador decide visitar depois de hesitar entre visitar a casa museu de

Frida Kahlo – e no museu da revolução mexicana.5 Porém, se os museus associam-se no

romance com a morte o silencio que debelam as tumbas, a idéia de arquivo se desloca

4 O MUSAC, en Castilla y León, é o dono da instalação Buenos Aires tour. Ela foi exibida na Bienal de Estambul em 2003. O livro foi apresentado na galeria Distrito4 em fevereiro de 2004 y em ARCO 2004. Foi também exibido duas vezes no Malba, nas exposições "Adquisiciones, donaciones, comodatos," y Florencia Malbrán o exibiu também na mostra “Novel Readings”, no CCS Bard Spring Thesis Exhibitions—Series Three, May 13–27, 2007 y em "The Anatomy of Melancholy: Jorge Macchi”, no Blanton Museum of Art da Universidade de Texas, December 15, 2007 – March 16, 2008. En www.jorgemacchi.com podem se ver fotografias da instalação realizada na galería Distrito4 de Madrid. Reproduzo o “Detalle de la instalación” de Jorge Macchi:“Jorge MacchiBUENOS AIRES TOURInstalación presentada en la Bienal de Estambul 2003 y en la galería Distrito4 Madrid.Concepto, fotografías, objetos y vídeoJorge MacchiTextosMaría NegroniSonidosEdgardo RudnitzkyLa instalación consta de 6 partes y una portada de la instalación.1- mapa original con el vidrio roto: marco de 80 x 80 cm y mapa impreso tamaño A32- mapa mural. Líneas en 8 colores de vinilo. Nombres de las estaciones en vinilo negro. Pintura látex gris y celeste (con muestras). Fotografías montadas sobre aluminio con capa protectora:15 fotografías 20 x 30cm; 11 fotografías 13 x 18 cm; 1 fotografía 13 x 20cm; 3 fotografías 10 x 15 cm. 10 objetos (incluyendo el cuaderno diccionario con su caja de madera y vidrio). 14 puntos con sonido (la instalación sonora incluye: 14 interruptores, cables de sonido, ordenador con interfaz MIDI, amplificador y dos parlantes). Vídeo (la instalación incluye monitor de 20”, DVD player, 2DVDs en español, 2DVDs en inglés). Textos (disponibles en español e inglés, impresión digital sobre foamboard): 3 de 30 x 30 cm y 2 de 20 x 20 cm.Toda la instalación referida al vídeo y al sonido deben ir detrás de un muro de 350 x 420 cm.3- líneas. Líneas de vinilo en 8 colores y texto (impresión digital sobre foamboard tamaño A4).4- links. 5 cajas con objetos. Cada caja tamaño A4. Mapa tamaño A3 con alfileres.5- Bestiario. Textos en vinilo. Fotografías montadas sobre aluminio con capa protectora: 4 fotografías de 26 x 40 cm, 14 fotografías de 20 x 30 cm. $ objetos. Mapa tamaño A3 con alfileres.6- Cruces. 7 fotografías de 66 x 99 cm montadas sobre aluminio con capa protectora.”Agradeço a Florencia Malbrán os dados da instalação e suas diferentes exibições. Ver, da autora, Novel Readings, Annandale-on-Hudson, 2007. 5 O contraponto entre a casa museu da artista e o museu da revolução é significativa, e a narrativa sublinha a eleção: “Quedan muy cerca una de otra, como cerca llegaron a estar, de hecho, en la vida, ellos dos. Pero la falta de tiempo me obliga a optar por una o por otra (a las ocho pasa Norma por el hotel y yo antes quiero bañarme y cambiarme la ropa, como se hace después de un viaje). Tres veces sobre cuatro yo habría optado por la casa de Frida Kahlo, pero la vez restante es la que ahora se impone, por razones evidentes.” Martín Kohan, Museo de la revolución, op. cit., p. 55.

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para os pátios –o pátio do hotel, o pátio do museu- e é ali em todo caso onde, a través da

leitura de um diário escrito nos anos setenta, mas lido em presente, e por uma

sobrevivente que a história acaba por se impor. Uma nova história, a história que

Marcelo irá a escrever sobre o final do romance não é a mesma história que conta o

romance, mesmo quando esta primeira história a precipite e a inclua. É como se no

intervalo que habita entre o museu e a vida houvesse qualquer coisa que o arquivo

pudesse captar, e que isso seria em todo caso o que o romance gostaria de transmitir.

Pergunto-me se a noção de arquivo –uma particular noção de arquivo- não seria

apropriada para pensar nas formas em que esses restos e vestígios aparecem e são

utilizados em algumas obras argentinas e brasileiras mais contemporâneas. E a

contraposição entre arquivo e memória, entre a presença material –deflagrada em

objetos e discursos fisicamente presentes- que o arquivo exibe, e a rememoração que

tece a memória seria –pelo menos para estas obras que estou discutindo hoje-

fundamental. Embora seja necessário para a rememoração, o arquivo é anterior à

recordação e nessa anterioridade fica encerrada, aliás, uma persistência. O arquivo

possibilita a memória, mas está sempre atentando contra as memórias já construídas,

contra as historias já contadas, posto que em suas prateleiras e estantes pode sempre

morar escondido um documento ou objeto que desdiga ou corrija essas histórias.6 Até

poderia se postular que o arquivo –algum tipo de arquivo, presente ou ausente,

substancial ou insubstancial- é indispensável para a memória. Mas o arquivo abriga

sempre também uma ameaça para a memória. Como aponta Charles Merewether em

“Introduction: Art after the archive”,

“the archive is not one and the same as forms of remembrance, or as history.

Manifesting itself in the forms of traces, it contains the potential to fragment and

destabilize either remembrance as recorded, or history as written, as sufficient

means of providing the last Word in the account of what has come to pass.”7

Mas não é só desestabilizando totalidades ou recompondo passados que o

arquivo age, pelo menos não nas obras que eu quero discutir aqui. Fosse só isso, estas

obras não se diferenciariam de outras –múltiplas, diria- que tem questionado formas da

6 Hal Foster analisa esta relação dentro de uma analise mais general do que ele chama de “archival impulse” na arte contemporânea en “An Archival Impulse”, October, 110, p. 16.7 Charles Merewether, “Introduction: Art after the Archive”, en Charles Merewether (ed.), The Archive. Documents of Contemporary Art, Cambridge, the MIT Press, 2006.

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memória e da rememoração, sobre tudo nos últimos anos. Não se diferenciariam, digo,

de essa obsessão pelo passado que tem acontecido nas últimas décadas. Nem se

diferenciariam estes arquivos –se estas fossem as suas únicas conseqüências- de outras

formas “posmodernas” de deconstruir e questionar totalidades. A diferença da noção de

arquivo com que trabalham estas obras é a insistência na materialidade dos restos, a

obstinada conservação dos vestígios e resíduos que na preservação e insistência

conduzem ao surgimento de outras historias, de outra “realidade” construída com esses

fragmentos do passado e impelidas por esses fragmentos do passado, mas que abandona

o passado em favor da presença.

A confrontação de esta noção de arquivo face à memória e à rememoração me

interessa especialmente para pensar os dois romances argentinos, Historia del llanto de

Alan Pauls e Museo de la revolución de Martín Kohan. Se bem é verdade que até há

alguns anos teria existido uma obsessão com o passado e um determinado império da

memória em diversas construções da cultura argentina – e não só da cultura argentina,

segundo Andreas Huyssen, entre outros pensadores que tem elaborado sobre essa

questão- é claro que essa paisagem tem mudado nos últimos anos em uma direção que

vale a pena interrogar porque alguma coisa pode estar nos dizendo sobre o modo no

qual habita, em muitas versões da estética contemporânea, uma lógica da presença que

desloca toda pulsão de restituição.8

Muito embora o passado em tanto tal não tenha desaparecido –o passado em

tanto objeto, o passado em tanto matéria de reflexão, o passado em tanto material

concreto utilizado como blocos duros de uma construção maleável- estes dois romances

colocam sua enunciação e suas histórias no presente. De fato, os dos romances se

contrastam neste sentido com outros dos romances de cada um destes autores nos quais,

pelo contrário, o passado é objeto de reconstrução e de reflexão: El pasado, de Alan

Pauls, y Dos veces junio, de Martín Kohan.9 Os romances anteriores trabalham uma

8 Cf., entre outros, Andreas Huyssen, Present Pasts. Urban Palimpsests and the Politics of Memory, Stanford, Stanford University Press, 2003; Hugo Vezzeti, Pasado y Presente, Buenos Aires, Siglo XXI editors, 2009 ; Beatriz Sarlo, Tiempo pasado. Cultura de la memoria y giro subjetivo: una discusión, Siglo XXI editores, México, 20069 Alan Pauls, El pasado, Barcelona, Anagrama, 2003 y Martín Kohan, Dos veces junio, Buenos Aires, Sudamericana, 2002. São múltiplas e interessantes as diferenças no modo de elaborar o passado entre estes dois romances e o modo em que cada um deles estabelece uma relação possível como esses romances posteriores que discuto neste trabalho. Em El pasado, por exemplo, é evidente uma clara ausência da politica que, pelo contrário, adquire protagonismo no romance posterior Historia del llanto. No caso de Martín Kohan, o romance que claramente se propõe como reconstrução de um episódio da ditadura argentina em passado, Dos veces junio, é referido em Museo de la revolución a través da menção da editora Amauta, que publicou em português Duas vezes Junho.

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reconstrução do passado que encontra no tempo passado o modo com o qual perfazer

uma sorte de restituição e colocar em cena a memória como protagonista principal do

relato. Nestes últimos romances, junto com muitas outras diferenças que não posso

enumerar aqui, impera –em contraste- o presente. É desde o presente que se procura, em

Museo de la revolución, uma história ou, mais precisamente, um diário. É em presente

também que se contam cada um dos fragmentos temporais diferentes que compõem o

romance: 1975, a viagem de Tesare, sua relação com Fernanda Aguirre, que é Norma

Rossi; e 1995, a viagem de Marcelo –o narrador-, sua relação com Norma Rossi, que é

Fernanda Aguirre. O romance está construído pela superposição de capas temporais de

diferentes estratos que, no entanto, convivem na narrativa em uma única escritura em

presente. Junto com esse presente, é importante no relato a reflexão sobre o tempo –e

sobre o tempo da revolução- que Tesare discute em seu caderno. O texto começa

diretamente com esse caderno de Tesare escrito em presente, logo segue o relato que

narra Norma, e posteriormente a escritura de Marcelo. O romance é ambíguo sobre se o

final do romance –no qual o narrador se dispõe a escrever- é o começo deste romance, o

que nós estamos lendo, ou o começo de outro romance que não conheceremos nunca, e

nessa ambigüidade fundamental funda a idéia de um presente contínuo que jamais

poderia se considerar como um presente histórico.

Figuradas em um presente constante no qual sobrevive um tempo outro, mas que

não busca ser reconstruído com uma lógica representacional que maniataria tanto ao

presente (no sentido que não poderia se desligar e desprender desse passado) como ao

passado (no sentido em que esta reconstrução teria que dar um sentido –último ou

provisório- a esse passado), estas obras põem em cena uma lógica da sobrevivência –

longe da memória ou a recordação- que pareceria até se contrapor com a

rememoração.10 É por isso que a história de Museo de la revolución é a história de uma

sobrevivente (y sublinho esta palavra), Norma Rossi. Porque se esse presente pode

abranger essas duas temporalidades diferentes, sem distinção, é porque quem conta a

história de Tesare é uma sobrevivente, e é ela quem dá a Marcelo uma história para

contar enquanto vive, com ele, também em presente, outra história que é a que o

romance conta. Deveríamos aceitar, por tanto, que a história que o romance conta não é

10 Fermín Rodríguez contrasta esta novela de Martín Kohan al giro memorialista de la literatura argentina y señala: “Tal vez por no recurrir exclusivamente a la memoria como procedimiento narrativo, el espesor temporal que Martín Kohan (Los cautivos, Dos veces Junio, Segundos afuera) logra darle a su sexta novela, Museo de la Revolución, es inédito dentro del mapa de la literatura argentina contemporánea sobre los años setenta.” En http://www.lehman.cuny.edu/ciberletras/v17/rodriguez.htm.

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a história de Tesare, nem a história da Revolução feita museu - isto é, nas palavras do

narrador, uma coisa morta-, mas a história de Norma Rossi e Marcelo, o narrador: a

história de Norma enquanto Fernanda Aguirre –nom de guerre-, em 1975, e a história de

Norma enquanto Norma, em 1995.

Nessa superposição de presentes, o presente incólume do romance se distancia

drasticamente de um presente histórico: frente à rememoração, instala uma dimensão da

intimidade com os restos –o diário de Tesare é, precisamente isso, o que restou- e os

sobreviventes - no caso, Norma. Uma intimidade que pode ser, aliás, até intimamente

aborrecedora – e não estou dizendo que esse aborrecimento incomodante exclua o

prazer e o gozo.

Pensar neste romance Martín Kohan e Historia del llanto de Alan Pauls a partir

de uma idéia de arquivo tem a vantagem de observá-las sob uma luz diferente à da

rememoração e reconstrução, e distinguir em elas uma pergunta –mais que uma

resposta- sobre o que fazer no presente com os restos e resíduos

Mas acho que esta idéia de arquivo para observar estas práticas tem aliás a

vantagem –e acho que é mais importante- de nos obrigar a pensar na presença e não na

representação quando falarmos de algumas práticas artísticas contemporâneas.

Em algumas das obras brasileiras essa prática do arquivo, ao se situar em um

presente quase contemporâneo à escritura – e penso aqui em Eles eram muitos cavalos,

de Luiz Ruffatto- nos distanciam da idéia de um passado, ainda bem que permaneça

nelas a idéia de arquivo do real e de coleta de retalhos.

Em algumas outras obras, essas políticas do arquivo apontam a fazer

materialmente presente o esquecimento. Nas obras de Rosangela Rennó, como apontou

Maria Angélica Melendi, “as fotos e os textos que a artista arquiva não resgatam a

memória mas testemunham o esquecimento.”11

Em outros casos, como na vídeo-instalação “Time machine”, também de

Macchi, se encena e se distribui no espaço a passagem do tempo para opor resistência à

uma concepção do tempo lineal e cronológica. A instalação dispõe uma mesa com cinco

aparelhos de televisão no seu interior, visíveis a través de janelas de vidro. Cinco

fragmentos dos poucos segundos nas quais as palavras THE END aparecem no final de

cinco filmes norte-americanos dos anos 40 se reproduzem simultaneamente nesses

aparelhos de televisão que não podem serem enxergados todos ao mesmo tempo; muito 11 Maria Angelica Melendi, “Arquivos do Mal – mal de arquivo”. In Suplemento Literário n. 66. Belo Horizonte: dez. 2000, p. 22-30. In Revista Studium n. 11, 2003. www.iar.studium.unicamp.br

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embora o som dos diferentes filmes possa sim ser ouvido simultaneamente, a percepção

sonora é diferente em cada momento porque a duração de cada fragmento é desigual. O

tempo não acaba de passar, os filmes nunca acabam de concluir, e instalados na

memória díspar dos espectadores, espectralmente iluminam uma passagem do tempo

que é sempre diferente e da qual sempre fica e permanece uma composição diferente.

Macchi tem se referido a essa atração por “the accident and the leftover”, se

perguntado sobre se o seu trabalho seria -cito a Macchi- “a primitive and degenerate

form of photography; both try to stop or slow down deterioration and vanishing.”12

Nenhuma restituição, por tanto: a operação consiste em apresentar em presente, em

voltar a fazer presentes, em localizar na presença, ou propiciar uma nova presença, a

esses restos e resíduos.

Sobre a possibilidade de publicar –pela primeira vez, vale a pena lembrar- o

diário de Tesare, diz Marcelo:

“Un texto así, agrega Norma Rossi, con un autor así, en circunstancias como las

presentes, puede, eventualmente, reactivar cierto tipo de conciencia política,

sacudir cierto apagamiento y cierto escepticismo que son todo un signo de los

tiempos, puede interesar y hasta motivar a quienes en otro tiempo creyeron en un

futor de cambio o a quienes desconocen por completo lo que es tener en la vida

ese tipo de perspectiva; un texto así con un autor así puede estimular esa clase de

disposición social que en otro tiempo era corriente y ahora, en cambio, se ve

poco menos que eliminada por competo, suplida por el desgano o la mezquindad

del proyecto individual. Es una posibilidad. Norma Rossi la considera. Pero

también considera otra, muy distinta, o antagónica: que un texto así, que en

cierto modo puede adquirir la apariencia de un museo, con un autor así, que vio

caer sobre sí el rigor de un escarmiento irreversible, suscite en los lectores un

efecto de parálisis, toda vez que el ejemplo del escarmentado suele paralizar, que

refuerce el descreimiento de por sí tan bien cimentado acera de l estado de cosas

en el mundo, que confirme lo que por lo demás existe socialmente como certeza:

que las cosas que son no podrían no ser, ni ser de una manera distinta,; y por fin,

más aun, que el destino de quienes se abocaron a transformar ese estado de cosas

ha sido el peor de los destinos posibles: el fondo del río, la tumba anónima o el

12“Jorge Macchi by Edgardo Rudnitzky”, en www.jorgemacchi.com/eng/tex24.htm..

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bloque de cemento integrado a una construcción que ya nadie desgajará

nunca.”13

Frente a essas duas possibilidades antagônicas da edição de um texto do passado

(nenhuma das quais implicam, insisto, reedição nem reconstrução), o romance mesmo,

na sua encruzilhada de presentes (o presente de então, o presente de agora,) interrompe

qualquer ato restitutivo. Nem museu das larvas nem país dos brinquedos –pego as

categorias de Giorgio Agamben às que Martín Kohan faz menção na sua polémica

resenha do filme Los rubios de Albertina Carri-, a lógica da presença em Museo de la

revolución quer ser uma outra coisa, buscar um modo de usar o passado longe dessas

duas possibilidades e de suas conseqüências.

Na discussão sobre o filme de Albertina Carri sobre os seus pais desaparecidos,

Los rubios, Kohan elabora sobre algumas possibilidades de retornar sobre o passado e,

mais como pergunta que como dogma, aponta:

“El testimonio que Los rubios ofrece en primer lugar (…) constituye, no por

voluntad de la testimoniante desde luego, una advertencia, que no

necesariamente la película atiende, acerca de la coartada de una memoria que,

definida, en nombre de la ficción, por la omisión y por el olvido, tenga menos de

memoria y de omisión que de olvido.” 14

Talvez seja essa a pergunta que Kohan procura sondar neste romance que se vale

do presente, não para mitigar o passado mas para explorar outra forma de lidar com os

restos e resíduos. Nesse presente, e esquecendo a reconstrução –o texto de Tesare

finalmente não se publica, muito embora se narre, mais sempre desde a perspectiva de

Norma - Marcelo, o narrador, se converte em testemunho de uma história que lhe é

contada, uma história que longe de reconstruir ele só recebe, e que o deixa no lugar

inconfortável de ser ele participante –agora, de uma nova história-, sem compreendê-la.

“Mi cuerpo quiere pero yo no” - diz Marcelo no momento em que começa a se definir

sua proximidade física e sexual com Norma. A ausência da vontade do sujeito, a

complicação das vontades com as contingências projeta a imaginação, como acontece

em grande parte da arte arquivística contemporânea, “into sites of testimony,

13 Martín Kohan, Museo de la revolución, p. 52.14 O filme de Albertina Carri foi exibido pela primeira vez em 2003 e gerou uma intensa polémica na qual Martín Kohan foi um dos primeiros em intervir. Cf. Martín Kohan, “La apariencia celebrada”, en Punto de Vista, n°78, Abril de 2004, p. 25.

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witnessing”, no dizer de Okwi Enwezor. É nesse sentido que, também, Historia del

llanto é, como diz o subtítulo do romance de Pauls, um “testimonio”. 15

Talvez a pergunta seja o que fazer no presente com esses restos, mas que o modo

de lhes outorgar sentido. Sugere alguma coisa diferente da cultura da melancolia para a

que o histórico é pouco mais do que um trauma, como sugeriu Hal Foster para o que ele

denominou como “the archival impulse” na cultura contemporânea. 16

Se a presença não é, como sugere Jean Luc Nancy, uma qualidade ou

propriedade das coisas, mas o fato pelo qual uma coisa se apresenta –prae est-; se a

presença implica a recusa do fato de ter passado –ter acontecido-,17 a maneira em que

essas praticas trabalham com o arquivo, fazendo presentes esses restos poderia ser

pensada como uma operação para pensar novos modos de se refletir sobre os fatos e

acontecimentos, históricos ou contemporâneos. Mais do que questionar a história

recebida, além do desejo de exibir a impossibilidade de reconstruir o passado, além,

ainda, de uma reflexão sobre o passado e bem longe ainda de demonstrar –mais uma

vez- a impossibilidade de uma totalidade do sentido, a lógica do arquivo trabalha nestas

obras contemporâneas com uma noção de presença postfundacional que coloca no

presente a sua pedra de toque, que localiza na contemporaneidade a sobrevivência e se

pergunta pelo modo de lidar, no presente, com o esquecimento, os restos, a amnésia e os

vestígios vivos.

“The present in time –aponta Jean Luc Nancy- is nothing: it is pure time, the

pure present of time, and thus it’s pure presence, that is, the negativity of the

passing. From “already no longer” to “not yet”, is a passage without pause, a

step not taken, neither disposed nor exposed, inexposable, only and ceaselessly

deposing all things”.18

E é que a traça e o vestígio –poderíamos dizer parafraseando a Didi Huberman-

podem acolher –ás vezes- mais história que a memória.19 Por isso, poderiamos dizer, o

arquivo desses restos hoje funciona como presença.

Suspeito que essa lógica do arquivo que funciona como presença diz muito

também sobre as formas nas quais a arte contemporânea se imiscui no real –se 15 Okwi Enwezor, en Archive Fever: Uses of the Document in Contemporary Art, p. 22 y 26.16 Hal Foster, P 146.17 El texto más completo que contiene la conceptualización de la presencia de Nancy es The Birth to Presence. Esta cita, sin embargo, está tomada de otro texto, 18 Jean Luc Nancy, “The Technique of the Present”, sobre la exposición de On Kawara, “Whole and Parts, 1964-1995”.19 Didi Huberman, Ante el tiempo, Buenos Aires, Adriana Hidalgo, 2006.

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compromete com ele- e sobre quanto essas formas –esses dispositivos- se distanciam de

toda representação.

BIBLIOGRAFÍA

Anderson, Mark. “The Edge of Darkness: on W.G. Sebald”, October, no. 106.

Carneiro, Flávio. No país do presente. Rio de Janeiro, Rocco, 2005.

Carvalho, Bernardo. Nove Noites. São Paulo, Companhia das Letras, 2002.

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