da fronteira a “fronteriça”: observações do eu e do … estrada é na maioria das partes...

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Da fronteira a “fronteriça”: observações do eu e do outro na (di)visão entre Brasil e Paraguai * Marcos Leandro Mondardo Universidade Federal da Grande Dourados [email protected] Índice 1 Introdução 2 2 Fronteira: entre Brasil(eiros) e Para- guai(os) 3 3 Considerações Finais 22 4 Referências 22 “(...) não existe espacialidade que não organize a determinação de fronteiras” (Michel de Certeau) “A fronteira é uma porteira que está aberta. (...) Morar na fronteira é esperar de tudo um pouco” (Padre Miguelito) “Ser fronteiriço é compartilhar de uma cultura diferente” (Vereador Marcelino) * Indicamos no título fronteriça, pois na língua guarani, oriunda do Paraguai, fronteira é fronteriça. Por este motivo evocamos a (di)visão (entre Brasil e Paraguai) com fronteira do lado brasileiro e fronteriça do lado paraguaio. Resumo Este artigo analisa, através da observação e da percepção, a relação entre brasileiros e paraguaios na fronteira entre Brasil e Paraguai, especialmente entre as cidades fronteiriças de Ponta Porã (Brasil) e Pedro Juan Caballero (Paraguai), e, Bela Vista (Brasil) e Bella Vista Norte (Paraguai). Compreendemos que na fronteira ocorre a (re)produção de uma espacialidade envolta em um modo de vida singular, híbrido. São cotidianos produzidos através de uma (di)visão: de territórios, de culturas, de identidade, de nacionalidade, ordens e desordens. São relações diferentes que se unem e se dividem demonstrando a dialética da fronteira: a vida (entre) o lado de cá e o lado de lá. Desse modo, através de um trabalho de campo é que construímos nossa observação, aqui apresentada, sobre os sujeitos e seu espaço na fronteira. Palavras chave: fronteira; Brasil; Para- guai; observação; identidade.

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Da fronteira a “fronteriça”: observações do eu e dooutro na (di)visão entre Brasil e Paraguai∗

Marcos Leandro MondardoUniversidade Federal da Grande Dourados

[email protected]

Índice1 Introdução 22 Fronteira: entre Brasil(eiros) e Para-

guai(os) 33 Considerações Finais 224 Referências 22

“(...) não existe espacialidade que nãoorganize a determinação de fronteiras”

(Michel de Certeau)

“A fronteira é uma porteira que está aberta.(...)

Morar na fronteira é esperar de tudo umpouco”

(Padre Miguelito)

“Ser fronteiriço é compartilhar de umacultura diferente”

(Vereador Marcelino)∗Indicamos no título fronteriça, pois na língua

guarani, oriunda do Paraguai, fronteira é fronteriça.Por este motivo evocamos a (di)visão (entre Brasil eParaguai) com fronteira do lado brasileiro e fronteriçado lado paraguaio.

ResumoEste artigo analisa, através da observaçãoe da percepção, a relação entre brasileirose paraguaios na fronteira entre Brasil eParaguai, especialmente entre as cidadesfronteiriças de Ponta Porã (Brasil) e PedroJuan Caballero (Paraguai), e, Bela Vista(Brasil) e Bella Vista Norte (Paraguai).Compreendemos que na fronteira ocorre a(re)produção de uma espacialidade envoltaem um modo de vida singular, híbrido.São cotidianos produzidos através de uma(di)visão: de territórios, de culturas, deidentidade, de nacionalidade, ordens edesordens. São relações diferentes que seunem e se dividem demonstrando a dialéticada fronteira: a vida (entre) o lado de cáe o lado de lá. Desse modo, através deum trabalho de campo é que construímosnossa observação, aqui apresentada, sobreos sujeitos e seu espaço na fronteira.

Palavras chave: fronteira; Brasil; Para-guai; observação; identidade.

2 Marcos Leandro Mondardo

AbstractThis article analyzes, through the observa-tion and of the perception, the relationshipbetween Brazilians and Paraguayans inthe border between Brazil and Paraguay,especially among Ponta Pora frontier cities(Brazil) and Pedro Juan Caballero (Para-guay), and, Bela Vista (Brazil) and BellaVista Norte (Paraguay). We understood thatin the border happens the (re)produção ofa wrapped up espacialidade in a singular,hybrid life way. They are daily producedthrough a (di)vision: of territories, of cul-tures, of identity, of nationality, orders anddisorders. They are different relationshipsthat join and he it divides demonstrating thedialetices of the frontier: the life (among)the side of here and the side of there. Hegave way, through a field work it is that webuilt our observation, here presented, on thesubjects and its space in the frontier.

Key words: frontier; Brazil; Paraguay;observation; identity.

1 IntroduçãoA observação faz parte da vida das pes-soas. Observa-se para viver, para se relacio-nar, para analisar, para criticar... A observa-ção, além de ser elemento fundante da vidadas pessoas, é um fator importante na Ge-ografia. Através da observação, o geógrafomostra sua “sensibilidade” na análise socio-espacial. Pela sensibilidade o geógrafo uti-liza sua “crítica reflexiva” perante elementosem que homens e mulheres criam para re-produzirem suas relações no cotidiano dose/ou nos lugares.

Observar desse modo é pesquisar. Obser-

vações importantes já foram historicamentedemonstradas por grandes geógrafos e ci-entistas sociais sobre a análise da socie-dade. De acordo com Suertegaray (2002:3),a pesquisa de campo compõem “um sistemamundo da qual faço parte como observa-dor/transformador de mim e de mim nele”.Ainda, segundo a autora “pesquisar é busca”.“Pesquisar pressupõe reconhecer para inter-vir. (...) A pesquisa de campo é o conheci-mento feito através da vivência em transfor-mação” (SUERTEGARAY, 2002: 2).

Desse modo, utilizamos como metodolo-gia, no presente trabalho de campo, nossoolhar sobre a realidade, sobre contextos esituações da vivência dos sujeitos que op-tamos por olhar, enfatizar, destacar, dis-cutir, problematizando as questões que de-notam (con)tradições que se mostram vi-gentes no(s) lugar(es), por nós visitados,(trans)passados e experienciados. Nesse sen-tido:

A pesquisa de campo constitui para o geó-grafo um ato de observação da realidade dooutro, interpretada pela lente do sujeito na re-lação com o outro sujeito. Esta interpretaçãoresulta de seu engajamento no próprio objetode investigação. Sua construção geográficaresulta de suas práticas sociais. Neste caso, oconhecimento não é produzido para subsidiaroutros processos. Ele alimenta o processo,na medida em que desvenda as contradições,na medida em que as revela e, portanto, crianova consciência do mundo. Trata-se de ummovimento da geografia engajada nos movi-mentos, sejam eles sociais agrários ou urba-nos. Enfim, movimentos de territorialização,desterritorialização e reterritorialização (SU-ERTEGARAY, 2002: 3, [grifo nosso]).

Assim, munidos da observação é que par-timos para trabalho de campo do mestrado

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de Geografia - da Universidade Federal daGrande Dourados -, para as cidades frontei-riças de Ponta Porã (Brasil) e Pedro JuanCaballero (Paraguai); e, Bela Vista (Bra-sil) e Bella Vista Norte (Paraguai). Saí-mos em busca, pois, como afirma Suertega-ray (2002: 5) “pesquisar é o fundamento denossa busca”. Neste contexto, é que parti-mos em busca para entender as relações esta-belecidas no dia-a-dia entre brasileiros e pa-raguaios na fronteira. Principalmente, nos-sas observações consistem em compreenderas relações “mais escondidas”, camufladaspelos e para os detentores do poder na e dafronteira. Nosso objetivo consiste, portanto,em analisar e entender como se fazem nesseprocesso, homens e mulheres da e na fron-teira, brasileiros e paraguaios.

2 Fronteira: entre Brasil(eiros) eParaguai(os)

Foi pela manhã, por volta das 7:30, dia 15de junho de 2007, quando saímos do cam-pus da Universidade para nossa pesquisa decampo. Pela estrada os colegas animados,todos lendo jornais, mostram a busca tão di-luída em nossa sociedade atual da informa-ção. A intelectualidade paira sobre e dentroda Van que nos leva. A estrada é na maioriadas partes formada por longas retas, “infin-dáveis” às vezes ao olhar humano. Ao ladodesta, se mostram, com o passar do tempo edo espaço, monoculturas de milho, cana-de-açúcar, áreas de reflorestamentos com pinuse eucalipto, além de pastagens e terras re-cém preparadas para o plantio. A paisagemparece demonstrar, ou até mesmo “falar”,que existe pouca vida humana morando nocampo. Passamos por grandes fazendas, mas

pouquíssimas casas avistávamos ao lado doasfalto. A paisagem se modifica no tempo eno(s) lugar(es), e, como afirma Santos (1988:61), “A dimensão da paisagem é a dimensãoda percepção, o que chega aos sentidos”. As-sim, percebíamos no deslocamento pela es-trada elementos naturais e humanos, isto é,humanizados.

Dentro da Van um clima de euforia ali-mentava os colegas. Entre apertos (por faltade espaços nos bancos), calor e sono, o pes-soal continuava firme em suas leituras dejornais e observações das paisagens. “Láfora”, as linhas de alta tensão pareciam que-rer nos acompanhar, pois se mostravam se-guidamente paralelas à estrada. A “paisagemdo progresso” continua alimentar nossa vi-são, mas já podíamos ver com mais freqüên-cia casas e bares abandonados à beira da es-trada. A vida havia passado por estas paisa-gens, com seu movimento e cores, pois, se-gundo Santos (1988: 61), a paisagem “não éformada apenas de volumes, mas também decores, movimento, odores, sons etc”.

Mais adiante, passamos por um posto mi-litar. Observávamos os elementos consti-tuintes da fronteira formal. Da legalidadefrente à ilegalidade na fronteira. Ali fize-mos uma parada para alongarmos as pernas.Mais adiante a placa anunciava: “Ponta Porãa 43 Km”. Estávamos mais próximos denossa primeira parada. Seguindo em frente,nos deparamos com uma comunidade rural:igreja, escola..., enfim, a vida organizada noformato de comunidade. Logo em frente,a placa anunciava a propaganda do ShopingChina, e mais adiante, passávamos por maisum posto fiscal. A fronteira parecia um lugarde muita fiscalização, de muita ordem. Porque? Enquanto anotava, um andarilho mi-

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grava em direção contraria a nossa. A vidaenfim se mostrava e se fazia na estrada.

E, foi assim que nos aproximávamos dafronteira. Quanto mais chegávamos perto,mais movimentos de gentes iam se mos-trando, iam se fazendo. Nos lados da es-trada apareciam placas de anuncio com maisfreqüência, barracas de venda de frutas, deartesanatos... Os sem terras marcavam pre-sença também. Motéis e/ou os “lugares doprazer” apareciam com freqüência.

Na entrada da cidade de Ponta Porã avis-tamos algumas indústrias, vendas de produ-tos e de máquinas agrícolas. Logo passamospelo marco entre Brasil e Paraguai, em queum encontro entre o chimarrão e o tereré pa-recia mostrar os costumes da fronteira. Ahospitalidade diferenciada dos costumes pa-recia estar misturada. Já dentro do perímetrourbano de Ponta Porã víamos do outro ladoda fronteira, isto é, no Paraguai, o shoppingChina. Este nos passava a imagem do es-plendoroso, do moderno, do “espaço da mo-dernidade”, das redes mundiais de circulaçãode produtos. Da China, dos EUA...

Chegamos a Ponta Porã e fomos para o ho-tel. Lá pedimos desconto nas diárias, coisasde estudante, “sempre quebrados economi-camente”. E após deixarmos as malas nohotel, fomos para o trabalho empírico: co-nhecer a fronteira. Atravessamos a fronteiraentre Ponta Porã (Brasil) e Pedro Juan Cabal-lero (Paraguai) buscando perceber e entenderas relações da/na fronteira. Partimos parao lado paraguaio a pé. Pois, como nos dizuma das máximas da Geografia, esta se faz apé. No Paraguai, observamos os policiais be-bendo o tereré em meio às pessoas com nor-malidade. O espetinho de carne sendo pre-parado no meio da rua com muita fumaça. Otrânsito parecia maluco, (des)organizado. Os

motociclistas andavam sem capacetes, masninguém se acidentava. Parecia haver muitobem definido uma ordem na desordem notrânsito de Pedro Juan Caballero. A ordemdo trânsito do Paraguai.

O vento era forte e continuávamos nossa“peregrinação geográfica”. Percebíamos quea paisagem urbana de Pedro Juan exibia pré-dios com fachadas desgastadas, com estrutu-ras mais antigas. O velho parecia prevale-cer em relação ao novo. A frota de carrosparecia ser mais velha que a do Brasil. Nacalçada da rua, eram feitos remédios de er-vas na hora: picão, gengibre... tudo serviapara curar os males humanos e mundanos.Logo em frente, na praça de Pedro Juan, es-tava exibido o monumento de independênciada cidade. O herói Pedro Juan Caballero erare-produzido e “re-vivido” com uma grandeestátua, em que na lápide dizia: 1811 a 1920.Segundo Becker (1990: 11), “a fronteira é,pois para a nação, símbolo e fato político deprimeira grandeza, como espaço de projeçãopara o futuro”. Assim, a fronteira é onde ossímbolos são demonstrados, demarcando ter-ritórios. É comum vislumbrarmos frases nafronteira como: “um país começa pela fron-teira”.

Adiante, caminhando pelas ruas, percebía-mos que o asfalto era diferente das estradasbrasileiras. O asfalto paraguaio, poderia sedizer era feito da calçada brasileira. O as-falto parecia a calçada do Brasil. A “ordem”do terreno invertia-se. No comércio pareciahaver mais solidariedade. Percebíamos pes-soas conversando em frente às lojas, aos ba-res, as casas, com maior freqüência. Pare-cia que as pessoas se conheciam mais queno Brasil. Outro elemento importante eramos semblantes dos paraguaios. Somos todosseres humanos, mas temos diferenças corpo-

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rais uns com os outros. E com os paraguaiospodemos perceber isso “cara a cara”, “corpoa corpo”.

No comércio, havia de tudo para todos osgostos. Uma variedade de coisas vendidasdentro e fora das lojas. Nas calçadas, pendu-rado, no chão, em cima, em baixo, grande,pequeno, moderno, artesanal, quente, frio,bonito, barato... Vende-se de tudo! As lo-jas eram na maioria das vezes pequenas, masabarrotadas de mercadorias. Porém, exis-tiam também as grandes, mas em menorquantidade, com variados produtos. A movi-mentação nesse setor era grande de pessoas:vendedores e consumidores se misturavam.Circulação e consumo. Tudo é mostrado!Tudo é vendido.

Percebe-se que na fronteira a heterogenei-dade de pessoas, de coisas, de seres, de re-lações são maiores. A diferença é elementoformador e transformador na fronteira. Se-gundo Martins (1997: 30) na fronteira ocorre“(...) uma situação de convivência marcadapela pluralidade cultural e social e pelo esta-belecimento de um espaço inteiramente novona relação com o outro, que seja um espaçode afirmação e reconhecimento da diferençaque dá sentido à existência dos diferentes po-vos”. Aliado a isso, a unidade da diversi-dade, aferida por Marx (1985), parece fazerparte de maneira acentuada na fronteira! Atéo cheiro da fronteira é diferente. Um cheirode novo e de velho misturados. De merca-dorias novas e de prédios antigos. De brasi-leiros e de paraguaios. De uma mistura queredunda no diferente, pois, como afirma Raf-festin (2005: 10), “A fronteira nasce da dife-rença”.

Nesse momento, percebemos nas relaçõesque começávamos a desenvolver, que a lín-gua é grande elemento de distinção. Eu sou

brasileiro, o outro é paraguaio. A língua dáum sentido de pertencimento àquela naçãoou à outra, apesar de o espanhol e o portu-guês sejam línguas “fáceis” de entendimentopela sua proximidade de termos. A línguadá sentido a “eu” ser desta ou daquela naci-onalidade. Por eu falar esta ou aquela lín-gua eu sou de outro povo, de outro costume,de outra cultura. Eu sou diferente do outro.Segundo Raffestin (1993: 97), “A língua é,sem nenhuma dúvida, um dos mais podero-sos meios de identidade de que dispõem umapopulação. Por essa razão ela ocupa um lu-gar tão fundamental na cultura e é, por simesma, um recurso que pode dar origem amúltiplos conflitos” e, “como tal, língua éum recurso, um trunfo, e por conseqüênciaestá no centro de relações que são, ipso facto,marcadas pelo poder” (p. 98).

Assim, após uma breve caminhada, para-mos numa lanchonete paraguaia para comer-mos o raulito. Espécie de pastel, apenas numformato mais arrendondado. Neste local, vi-mos que, apesar deste estabelecimento serpequeno, as relações que se faziam nele deconsumo, de comércio eram intensas. Umentra e sai de gentes a todo o momento. E,o raulito era muito bom! Depois saímos emdireção ao comércio, onde caminhamos maisum pouco, porém, logo voltamos para o ladobrasileiro onde estava a Van. Iríamos para aIgreja de Ponta Porã (Brasil). Não para re-zar, mas para pesquisar. Entramos todos naVan, e lá fomos nós.

Chegando na Igreja, logo percebemos suaarquitetura num formato bem arredondado.Fomos entrando e rapidamente fomos aten-didos pelo Padre Miguelito, o qual iria con-versar conosco. Este nos levou para uma saladentro da Igreja, em que de primeira mão,pediu quem era o cacique da turma. Nas pa-

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lavras do Padre: “Quem está comandando?”.A busca pelo poder numa sociedade hierár-quica é nítida nas relações. O chefe, a auto-ridade maior. Como afirma Foucault (1985:19) “(...) o poder é produtor de individuali-dade. O indivíduo é uma produção do podere do saber”, criadores de hierarquias na soci-edade.

Dentro da sala, num ambiente envelhe-cido, o professor Jones começou o diálogocom o padre perguntando onde ele havia nas-cido, e por onde havia passado antes de che-gar ao município de Ponta Porá? Respon-deu que nasceu na cidade de Paranaguá noParaná e que passou por várias cidades doParaná antes de vir para Ponta Porã. “Euvim do primeiro mundo, do Sul”, afirmou or-gulhoso o Padre. Afirmou que lá no Sul opessoal participa mais da Igreja: “são itali-anos, alemães, poloneses”. “Aqui em PontaPorã não vão para frente na religião”, falouo Padre. Disse-nos ele também que existeum intercâmbio entre as paróquias da fron-teira de Ponta Porã e Pedro Juan Caballero.Que o rito das missas é o mesmo nos doispaíses, mudando somente a língua, do portu-guês, para o espanhol. O guarani não parti-cipa da missa. É uma língua excluída, mar-ginalizada, segundo o padre.

Para o Padre, no Paraguai existem mui-tos feriados. Por isso, para ele “o paraguaioé preguiçoso”. No entanto, nos diz que “opovo paraguaio é muito religioso”, e, essa re-ligiosidade passa para o lado brasileiro, pois,existem muitos paraguaios morando no Bra-sil. Ele comenta que a região de fronteira éabandonada, que é “o fim do mundo”. Nosrelatou também que a Congregação de suaIgreja é dos Padres Redentoristas. Estes vi-eram dos EUA nos anos de 1930 para a re-gião de fronteira, para atender aos mais po-

bres. A congregação até certo tempo per-tencia aos EUA, agora ela é da província deCampo Grande (MS) e do estado do Paraná.Segundo ele, até 1930 não havia padres nafronteira.

O padre nos conta também que no Para-guai na Sexta Feira Santa não se faz comida.Faz um dia antes. Não se pode trabalharneste dia. “Nem pentear o cabelo”. “É coisaantiga, costume antigo”. Fala ele que o povodo Paraguai é sofrido, e daí vem esta religio-sidade maior, mais presente. E ainda afirmaque, quanto mais “para dentro” do Paraguai,mais pobreza se encontra. Podemos perce-bem na fala do Padre que, na fronteira, asrelações de comércio atribuem uma maior ri-queza para os moradores. A “borda” do paísé mais rica que o “interior”?

Para o Padre, o paraguaio venera mais osmortos pela sua cultura espanhola. Pergun-tado sobre as diferenças dos dois países, so-bre a fronteira, o padre é enfático: “Sãoduas realidades diferentes: não há uma mis-tura, precisa separar”. Fala-nos tambémque na fronteira existem “gentes de todos oslugares”. Quanto aos evangélicos no Para-guai, o padre nos diz que existem em menorproporção que no Brasil, mas que existem.Relata-nos também que os índios são a classemais baixa no Paraguai, que “perderam suaidentidade”. São “seres humanos perdidos”.Quanto aos jovens, este nos diz que dos doislados os jovens usam drogas, bebem demais,usam o som alto nas avenidas. “Os jovens doParaguai vem bagunçar do lado de cá e a po-lícia fica ressabiada de coibir”. Percebemos,com esta fala, que as relações são complexasna fronteira. São áreas de ordem e desordem.De fuga. Do viver de um lado e de outro. Doestar num lugar como estrangeiro, e do ou-tro como nacional. A fronteira se torna uma

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área de fuga, tanto de um lado como de ou-tro. Para o padre, “A fronteira é uma porteiraque está aberta”. Assim, segundo Certeau(1994: 214), “Lugar terceiro, jogo de intera-ções e de entrevistas, a fronteira é como umvácuo, sim-bolo narrativo de intercâmbios eencontros” e, podemos dizer, de desencon-tros.

Afirma, também, que na fronteira existemuita criminalidade. Mortes acontecem se-guidamente. “Antigamente aqui era terra deninguém”. Era perceptível que o padre, emcertos momentos, tem medo de falar. Porque? Ocorre, como ele nos relata, roubo decarros, tráfico de drogas. Para ele, quandohavia homens que mandavam na cidade nãohavia mortes. A lei “fora da lei” era obede-cida. A lei da fronteira. Quando a polícia en-trou na cidade, ocorreram mais mortes, maisroubos. A “ordem ilegal” tem maior poderdo que a legal na fronteira? De acordo como Padre, a igreja sofre pressão dos homensque comandam a cidade. As indústrias (aspoucas que existem) também sofrem. A vidadas pessoas tem influência. “A Igreja sofrepressão dos donos da cidade”. “A igreja falano geral, sabe os nomes, mas não pode fa-lar, Por que corre o perigo de receber umabala”. Neste contexto, “a fronteira é demons-tração de como os homens inventam a par-tir de suas sociedade modos de diferenciaçãosocial no contexto espaço-temporal, modosque condicionam toda uma ordem vivente,tanto social, econômica, política e cultural-mente (RAFFESTIN, 2005: 12).

Outro elemento importante é que para a“alta sociedade da fronteira” é mais chiquecasar no Brasil. Para o padre, dá mais status.O poder simbólico se mostra presente nas re-lações da fronteira, também, enquanto po-der de distinção. Segundo Bourdieu (1998:

145), “As distinções, enquanto transfigura-ções simbólicas das diferenças de facto, emais geralmente, os níveis, ordens, graus ouquaisquer outras hierarquias simbólicas, sãoproduto da aplicação de esquemas de cons-trução que, como por exemplo os pares ad-jectivos empregados para enunciar a maiorparte dos juízos sociais (...)”.

Segundo o Padre, também existem muitosgaúchos em Ponta Porã. Vieram do Sul ese estabeleceram aqui há muito tempo. Se-gundo Martins (1997), através da frente deexpansão e depois frente pioneira migraraminúmeros sulistas para o Mato Grosso do Sule Paraguai. Além disso, no Paraguai, deacordo com o Padre, as mulheres têm umaimportância muito grande em comparaçãocom o Brasil. Isso se deve em virtude quemorreu muitos homens na Guerra do Para-guai e, por isso, as mulheres assumiram vá-rias responsabilidades que antes eram doshomens, pela falta dos mesmos nas relaçõescotidianas.

Quanto ao trabalho, o padre nos relatouque existe uma troca de trabalhadores. Brasi-leiros vão para o lado do Paraguai trabalhar,e paraguaios vão para o lado do Brasil tra-balhar. Ocorre uma troca de mão-de-obra.Em relação à língua, o padre nos diz queesta no Paraguai é diferente, mas que podese entende-la. Fala ele que há uma interaçãocom as línguas. Existem pessoas que falamportuguês, espanhol, guarani, sendo que estaúltima, para o padre, é uma língua margina-lizada. Portanto, a fronteira é diferenciadapois é nela que se encontram sujeitos híbri-dos. Quando perguntado, “o que seria morarna fronteira?”, o padre nos responde que “éesperar de tudo um pouco, radicalismo nãoleva a nada. É ter jogo de cintura para levaras coisas”. Assim, percebemos que a flexibi-

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lidade nas relações é um elemento para serfronteiriço. Para conviver e, principalmente,“(sobre)viver”.

Assim, depois desta conversa com o Pa-dre, e após tirarmos uma foto com ele, emfrente a sua igreja, nos dirigimos para o res-taurante do hotel. Neste almoçamos todos.Ali percebi que as mulheres nos serviam ra-pidamente. Recolhiam de maneira rápida osobjetos. A ordem da fronteira, era a ordemdo espaço fluído (SANTOS, 1996). Da ra-pidez e da “servidão” dos seres humanos aocapital (LA BOÉTIE, 1982). O restauranteestava cheio de gentes da fronteira, e de fo-rasteiros como nós.

Depois do almoço, partimos para a Câ-mara Municipal de Ponta Porã (Brasil). Lá,ao chegar, nos deparamos com um prédiotodo “esculturado”. Uma obra de arte exi-bia o chimarrão e o tereré. Pinturas do ladode fora do prédio da Câmara exibiam gentese a cidade de Ponta Porã. Logo na entradada câmara, nos deparamos com murais, comfotografias de colonizadores da cidade. Defiguras importantes visitando o lugar, comoo presidente Getulio Vargas. Com fotos doexército... Logo fomos convidados a entrarna câmara de vereadores. Já na entrada nosdeparamos com um lugar moderno, bonitopara os padrões do “novo”. Bem arejado,e com pinturas ao fundo e nas laterais dacâmara muito interessantes e intrigantes aomesmo tempo. Ao fundo era exposta a pin-tura mais chamativa. Representava com mui-tas corres, resumidamente, as gentes que co-lonizaram o lugar: gaúchos, árabes, mineirose a cidade de Ponta Porã, com alguns pré-dios e a igreja, além, é claro, da erva-mate,do chimarrão, do tereré e da harpa.

Depois de fotografarmos as pinturas, logochegou o vereador Marcelino Nunes de Oli-

veira. Sujeito disposto exibindo bom humore hospitalidade. Logo falou que iria trazertereré para nós e, colocar “rodar” músicastocadas na harpa, a denominada polca pa-raguaia, música típica da fronteira de PontaPorã (Brasil) e Pedro Juan Caballero (Para-guai).

Assim, embalados por polca paraguaia etereré, o vereador Marcelino começou aquiloque ele mesmo denominou de “conversa en-tre amigos”. Na sua apresentação, Marcelinodisse que era brasiguaio, e logo começousua fala sobre aspectos históricos de PontaPorã. Segundo ele, em 1777 houveram asprimeiras expedições dos colonizadores parao lugar. Mais tarde, no início de 1900, osgaúchos começaram a sair do Rio Grandedo Sul, consumindo erva-mate e iam che-gando até a laguna Ponta Porã, que naquelaépoca era uma paragem para estes “desbra-vadores”. Na laguna existia um mercadinho,onde os gaúchos paravam para comprar se-cos e molhados. Estes (os gaúchos) passa-vam por Ponta Porã por causa da erva-mate– que existia em abundância no lugar –, e al-guns, nesse processo, fixavam residência nolocal. No entanto, segundo Marcelino, o lu-gar onde hoje se encontra localizada PontaPorã, era, antes da Guerra do Paraguai, soloparaguaio.

Marcelino nos relata sobre tesouros. Oclima de desconfiança e chacota por partedos mestrandos paira no ar, mas, o vere-ador afirma com veemência o mito. Deacordo com ele, os tesouros eram abando-nados quando a Guerra do Paraguai estavaacontecendo. Antonio Lopez, um dos íconesda Guerra do Paraguai, saqueava os grandesfazendeiros da época, e com a Guerra, teveque abandonar seu tesouro, na esperança denão perdê-lo totalmente. Segundo o vere-

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ador, Antonio Lopez mandava um capangaseu enterrar o tesouro em diversos lugares,e que marcasse estes lugares com algumacoisa, para que depois da Guerra pudes-sem reencontrá-lo. Porém, de acordo coma lenda, Antonio Lopez matava seu capangadepois que o mesmo enterrava o tesouro. Apartir dessa lenda, que Marcelino fala que“acha que é verdade”, muitas pessoas iamatrás do ouro, procurar o tesouro enterrado.Aqui percebemos que a busca dos homenspelo tesouro, pelo dinheiro, pelo poder, estápresente historicamente nas relações de fron-teira, através de suas lendas, “lendas verda-deiras”, pois, “A história da fronteira é enrai-zada nos antigos ritos e práticas” (RAFFES-TIN, 2005: 10).

Mas, saindo das lendas de tesouros, e noclima da polca paraguaia regada a tereré,continuamos a ouvir. Para o vereador, oódio do paraguaio em relação ao brasileirovem da Guerra. Inúmeros paraguaios forammortos por brasileiros na Guerra. Marcelinocomenta que depois da Guerra no Paraguai“existiam 40 mulheres para cada homem”.Por isso a mulher paraguaia é forte. Tornou-se historicamente o chefe das casas depois daGuerra. No Paraguai, “filho homem é um rei.Pela falta de homem ele é mimado”.

Após isso, Marcelino nos explica comosurgiu a idéia da integração. Para ele, pelotereré, que é de cultura indígena (um re-frescante), o projeto de integração nasce nacâmara. “Você toma tereré com amigos,você escolhe com quem toma tereré”. Parao vereador, “você toma tereré com aquelesque você escolhe, isto é, com seus amigos”.Você toma “pra jogar conversa fora”. As-sim, percebemos que há uma solidariedadeentre vizinhos por causa do tereré. O tereréé uma relação. Relação de amigos, de vi-

zinhos. O tereré dá um sentido todo espe-cial de pertencimento ao lugar, da identidadefronteiriça, isto é, dos homens e mulheres dafronteira, na qual nos debruçamos empirica-mente. Como afirma Oliven (1992: 27), “asidentidades – enquanto propriedades distin-tivas que diferenciam e especificam grupossociais – precisam ser moldadas a partir devivencias cotidianas”.

Em relação ao trabalho, Marcelino apontaalguns elementos interessantes. Segundo ele,na fronteira entre Ponta Porã (Brasil) e Pe-dro Juan Caballero (Paraguai), durante o dia,paraguaios migram para o Brasil trabalhar;e, durante a noite, brasileiros migram parao Paraguai estudar em várias Universidades“dali”. Há, portanto, uma migração sazo-nal para o estudo e para o trabalho na fron-teira. Cada país é aproveitado em suas espe-cificidades. Os sujeitos da fronteira encon-tram formas de se relacionar com esta, e ti-rar dela o maior proveito possível para suasvidas. Contudo, o vereador afirma que o ci-dadão brasileiro que faz curso no Paraguainão tem seu certificado reconhecido. “Eleaté pode ser reconhecido”, reitera Marcelino,mas passa por uma burocracia no Brasil, quepode levar o indivíduo a gastar muito di-nheiro e muito tempo.

Contudo, vamos ao projeto de integraçãodo vereador. Marcelino começa explicando.O que é o PARLIM? Nos diz que é “um pro-jeto de integração entre duas comunidades”.A sigla quer dizer: Parlamento Internacio-nal Municipal. Um projeto de Integração.Segundo o vereador, este “busca discutir osproblemas de forma conjunta: saúde, educa-ção...., sem perder a soberania nacional. Dis-cutir os problemas conjuntamente, mas semintervir nas leis dos dois países” envolvidos,isto é, Brasil e Paraguai. “Viver em harmonia

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tranqüilamente, viver em amizade”, enfocaMarcelino. Aqui, percebemos que o projetodo vereador busca integrar as comunidadesentre dois povos. Sua disposição em criarisso se deve talvez ao seu amor ao lugar, porser brasiguaio. Esta sua miscigenação o fazamar os dois povos, e a defendê-los eloqüen-temente. Para Marcelino, seu projeto, resu-mido no Parlamento, é a “semente de inte-gração”. Reitera orgulhoso de seu lugar: “vi-ver na fronteira é diferente”, e abre um sor-riso largo.

Ainda, o vereador comenta mais umpouco sobre o tereré. Defendendo-o sobrepessoas que querem se apropriar da cultura.Segundo ele “o tereré é nosso, é meu, é seu,é cultural”, enfim, faz parte do cotidiano deum povo, de um viver. Aliado a isso, oufundamentalmente a partir do tereré é queMarcelino fala que surgiu a idéia da integra-ção. Através das rodas de conversa, do batepapo do dia, é que a idéia do PARLIM tomoucorpo e significado. Conta-nos, ainda ele,que no Paraguai tem “índio branco”. Há umamiscigenação de índios. Que existem “índioscalvos”. Relata-nos coisas diferentes queexistem no Paraguai. De acordo com Mar-celino, “A fronteira é fantástica, tem muitahistória”. Existem comidas típicas na fron-teira. Comidas que refletem os costumes e oviver da fronteira. A junção de elementos co-tidianos do Brasil e do Paraguai implica emcomidas diferentes. Assim, podemos perce-ber que “(...) os relatos cotidianos contamaquilo que, apesar de tudo, se pode aí fabri-car e fazer. São feituras de espaço” (CER-TEAU, 1994: 207).

Também, outro elemento presente diferen-ciadamente na fronteira é o ensino. Segundoo vereador, “O ensino no Paraguai e no Bra-sil é diferente”. No Brasil, segundo ele “o

ensino é mais forte”. Percebemos elementosde distinção na educação de brasileiros e pa-raguaios. Mas quais serão? Segundo Bour-dieu (1999: 14), os referenciais de distinçãoconstituem “(...) a independência relativa dosistema de atos e procedimentos expressivos,ou por assim dizer, das marcas da distinção,graças às quais os sujeitos sociais exprimem,e ao mesmo tempo constituem para si mes-mos e para os outros, sua posição na estru-tura social (e a relação que eles mantêm comesta posição) operando sobre os “valores”(...)”.

Aliado a isso, quando perguntado sobreo que significa morar na fronteira, seu dis-curso é enfático e cheio de amor e elogiosao lugar: “Ser fronteiriço é compartilhar deuma cultura diferente”, isto é, morar em umlugar rico em elementos que dão um cará-ter todo singular e importante ao viver. Po-demos entender, a partir da fala de Marce-lino, que “um” se faz na cultura do “outro”,ou seja, um brasileiro se apropria de ele-mentos da cultura paraguaia, como um pa-raguaio se apropria de elementos da culturabrasileira. Há nesse ponto, algumas mistu-ras (trans)formadoras de híbridos. SegundoMartins (1997: 12), “É na fronteira que sepode observar melhor como as sociedadesse formam, se desorganizam ou se reprodu-zem”.

Também, outro elemento importante nafronteira para o vereador é a língua. “A lín-gua abre portas. O cara te trata como igual.Não te trata como estrangeiro”. Como dizRaffestin (1993: 100), a língua é um instru-mento de distinção e de poder: “(...) todamediação lingüística é subentendida por umarelação extralingüística na qual circula o po-der consubstancial a toda relação. A lingua-gem, como sistema sêmico, não é lugar do

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poder, mas, ao contrário, manifesta o poder.É o meio de encenar o espetáculo do po-der”. Assim, o vereador Marcelino terminasua fala lendo um poema de sua autoria queretrata o viver na e da fronteira.

Em seguida, nos dirigimos para a pre-feitura de Ponta Porã (Brasil). Nos dirigi-amos para um conserva com a professoraVandi. Esta nos acompanhou no trabalhoempírico, isto é, conhecer a fronteira cami-nhando. Deste modo, a professora Vandi nosacompanhou a pé, atravessando a “fronteiraseca”. Esta nos fala que “há 27 anos atrásPonta Porã era uma cidade muito ‘bairrista’.Não se aceitava pessoas de fora”. Mas paraVandi, isso hoje mudou. O comércio de fron-teira influenciou muito nesse processo. Pre-cisa atender bem as pessoas para que elasvoltem a comprar aqui.

A professora nos diz que a cidade é for-mada por gaúchos, em sua maioria. Adiante,caminhando, atravessamos a linha internaci-onal, isto é, a faixa denominada “faixa deninguém”, que é a linha divisória entre osdois países. Vandi nos fala que nessa faixa“ninguém pode construir”. Contudo, estafaixa de terra nos dá a impressão da diferençade organização dos dois lados. As diferençasse mostram de maneira mais nítida. Ou tal-vez, o invisível apareça nesse visível. Logo,a professora nos leva a uma loja no Paraguaipara comparar a diferença de preços perfu-mes com o Brasil. Segundo a vendedora daloja do Paraguai, que nos atendia, a diferençade preço depende do produto e do câmbio,mas, a diferença de preços pode chegar a 30,40 e até 50% em relação ao Brasil.

Continuando nossa caminhada, nos deslo-camos em meio ao comércio, onde percebe-mos que o comerciante paraguaio vive no co-mércio tranqüilo. Há uma aparente tranqüili-

dade nas relações do comércio. Alguns cor-tam as unhas no seu local de serviço, outrosdormem, comem, bebem, tudo no seu localde vendas. A vida se faz nos locais mais vari-ados. Segundo Vandi, são os chineses, japo-neses, coreanos que dominam, que coman-dam o comércio no Paraguai. A fronteira étransnacional. Mas, não entra gente diferenteno comércio pelas tensões que existem ca-mufladas. É claro, que existem algumas ex-ceções... Mas, como afirma Martins (1996:10), na fronteira “todo estranho é inimigo”.

Mudando de rumo, agora percorremos arua 14 de Maio no Paraguai, onde verifica-mos pessoas com aparência de chineses, ja-poneses, coreanos, falando línguas que nãoconhecemos, e que nos dão o aspecto deestarmos realmente em outro país. Vemostambém, ao lado, pobreza. Uma senhorabem idosa se destaca pelo seu corpo todotorto, e pela sua idade avançada empurrandoum carrinho de lixo. É uma figura singularneste lugar mundano que exploramos empi-ricamente!

A professora nos fala em frente a uma lojade móveis para casa, que este tipo de seg-mento de loja começou a se instalar agorana fronteira. Antes não existiam. São ven-didas mesas, cadeiras, armários... Fizemosmais uma parada, e Vandi nos explica queavíamos transpassado as três ruas do comér-cio, agora estaríamos adentrando em lugaresem que predominavam as moradias dos pa-raguaios, principalmente. “No interior da ci-dade há pequenos comércios, mas predomi-nantemente casas”. Podemos, assim, enten-der que as três ruas do comércio no Paraguaimais próximas da linha de fronteira com oBrasil é uma “área de transição” entre umpaís e outro. Vandi nos diz que no interiorda cidade de Pedro Juan, a maior parte das

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casas é de trabalhadores, são casas humil-des. Mas, também, existem algumas man-sões onde perpassa o ilícito.

De acordo com nossa guia, a “periferiade Pedro Juan é muito pobre”. São pessoas“sem perspectiva”. Também, o voto no Pa-raguai não é como no Brasil, onde se votaem candidatos. No país vizinho vota-se emchapas. Andando pela cidade, vemos ar-mas. Muitos homens em frente a vários esta-belecimentos comerciais seguram armas im-pondo a “ordem da fronteira”.

Caminhando por Pedro Juan, verificamosesgoto misturado com lixo escorrendo nomeio da rua. As pessoas caminham em al-guns pontos por cima de esgotos soltos. Se-gundo a professora, “a população de modogeral é mais pobre que a brasileira”. Esta nosexplica que em um certo ponto da cidade,“tudo começou na represa”, se referindo àimportância da represa para a gênese e for-mação da cidade de Pedro Juan Caballero(Paraguai). Segundo ela, na cidade “exis-tem muitos córregos. A água flui com facili-dade”.

Continuando nossa pesquisa, percebe-mos que uma paraguaia caminha carregandochipa na cabeça. A vida e os costumes tí-picos do Paraguai se fazem cotidianamente.Também, de acordo com Vandi, a família pa-raguaia é constituída por quatro a cinco fi-lhos. Percebemos que, em algumas casas,parecem existir até mais. Muitas crianças semostram em algumas casas. Vemos, tam-bém, alguns carros sem placas. Por que?Percebemos também alguns comércios, ououtras atividades, com donos brasileiros. Adiferença se combina, ou se espraia?

Também, segundo a professora, PontaPorã (Brasil) arca com a saúde de vários pa-raguaios, mas, em contrapartida, Pedro Juan

Caballero (Paraguai), vende produtos maisbaratos para os brasileiros. Há uma intera-ção das possibilidades e/ou potencialidadesde cada país. Ocorre uma verdadeira trocadas potencialidades de cada lugar, que sãoapropriadas por brasileiros e paraguaios.

Outro elemento de distinção na fronteiraé o futebol. A rivalidade entre paraguaiose brasileiros é muito clara neste lugar. Deacordo com Vandi, “se o Brasil perde no fu-tebol, o paraguaio adora”. Chega a pontode estourar foguetes para comemorar a der-rota do brasileiro. Mas, a professora comple-menta que isso ocorre também de certo modono Brasil. Se o Paraguai perde, os brasileiroscomemoram a derrota dos vizinhos. Perce-bemos que a rivalidade no futebol se ascendeainda mais na fronteira. A nacionalidade éexplicita no esporte. Como afirma Bourdieu(1998: 4), “(...) a dinâmica da distinção so-cial não se esgota no conflito simbólico pelaimposição de uma dada representação da so-ciedade, mas prolonga-se na produção inces-sante de novos gostos socialmente diferenci-adores e no abandono progressivo das práti-cas culturais entretanto aplicado pelas cama-das subalternas”.

Segundo Vandi, a língua do comércio dePedro Juan Caballero é o português, ou, sequisermos o “portunhol”. “O público alvo éo brasileiro”. Também ela nos fala que mui-tos vendedores do Paraguai são brasileiros,e destes, muitos têm casas nos dois ladosda fronteira, tanto no Brasil como no Para-guai. Dependendo do interesse e das neces-sidades, este migra de um lado para o ou-tro. Por que? A fronteira seria uma áreade fuga?... Como afirma Raffestin (2005:11), “Espaço-temporal, a fronteira é tambémbio-social: ela delimita um ‘para cá’ e outro

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‘para lá’, um ‘antes’ e um ‘depois’, com umlimite marcado e uma área de segurança”.

Outro elemento importante que podemosobservar no comércio de Pedro Juan Cabal-lero é aquela velha/nova máxima de Marx(1985), quantos mais produtos têm no mer-cado, isto é, em um lugar, mais baixo é ovalor destes produtos. No comércio da fron-teira percebemos isso. Lojas com uma in-finidade de produtos, que se repetem, quese vendem, que se comercializam por preçoscada vez mais baixos. “Vende-se seis DVDspor 10 reais, cinco DVDs por 10 reais, quatroDVDs por 10 reais...”, e assim vai... Os pro-dutos de um dia para o outro, dependendo doestoque que existe, são vendidos em promo-ções que atraem os compradores num movi-mento grande e rápido.

Caminhando pelo comércio nos depara-mos com um vendedor insistente, que bus-cava nos atrair para a compra. Aderindo asua insistência, paramos e olhamos seus pro-dutos e começamos a conversar um poucocom ele. Começamos a pedir se seria fácilarrumar emprego ali no Paraguai. Logo nosrespondeu: “se tiver estudo, sim”. E, já nosfez a pergunta: “Vocês têm formação? Vocêssão formados em que?”. Falamos para eleque estávamos estudando para sermos pro-fessores de geografia. O paraguaio nos con-fessou que também é professor, e que traba-lha meio período do dia no comércio e meioperíodo lecionando em escola pública no Pa-raguai. Perguntamos o por que dele traba-lhar em dois empregos. Se ele ganhava maisno comércio do que como professor. Nessemomento foi quando ele nos faz uma revela-ção. Segundo ele, “ganho o salário de pro-fessor do mês trabalhando oito dias no co-mércio do Paraguai”. Perguntando a partirdisso, o porquê dele não trabalhar só no co-

mércio se ganha muito mais que professor, oparaguaio afirmou: “Por que precisa ter di-nheiro para abrir um comércio aqui, muitodinheiro. E eu não tenho. Meu patrão es-tudou só até a quarta série, e é dono dissoaqui”. Assim, percebemos como que a pro-fissão de professor no Paraguai é desvalori-zada. Na fronteira pode-se ganhar muito di-nheiro, tanto trabalhando como empregadoe, muito mais, se o sujeito tiver dinheiro epuder, assim, abrir seu próprio empreendi-mento comercial. Esse foi o relato do comer-ciante, e, segundo Certeau (1994: 203), “osrelatos efetuam portanto um trabalho que,incessantemente, transforma lugares em es-paço ou espaços em lugares. Organizamtambém os jogos das relações mutáveis queuns mantêm com os outros”.

Continuando nossa pesquisa (nossabusca), encontramos outro comerciante.Dessa vez um comerciante “mirim”, seassim pudermos chamar, que nos ofereceprodutos. O vendedor, um menino, tinha 13anos de idade, mas vendia seus produtos me-lhor que muitos adultos. Aqui entendemosque o comércio torna algumas crianças nafronteira adultas mais cedo. Mais adiante, ocomerciante oferta, “leve o produto, é maisbarato que no Brasil”. Ou seja, o vendedorusa o argumento que existe na realidade paraconvencer a comprar. A comparação comos preços do Brasil é explorada de maneiraintensa. As diferenças na fronteira existem.Existem e são utilizadas ao seu máximo emproveito de alguns. Assim, as diferençasocorrem em função de uma comercializaçãonão só econômica, mas também simbólica:“o campo de produção simbólica é ummicrocosmos da luta simbólica entre asclasses: é ao servirem os seus interesses naluta interna do campo de produção (e só

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nesta medida) que os produtores servem osinteresses dos grupos exteriores ao campode produção” (BOURDIEU, 1998: 12).

Assim, acabando nossa caminhada pelasruas de Pedro Juan Caballero (Paraguai),partimos para o Hotel em Ponta Porã (Bra-sil). Na fronteira, começava a escurecer. Ofrio começava a aumentar bruscamente, e énesse cenário de frio ao anoitecer da fron-teira que nos inspirou pensar e escrever estafrase: a fronteira é fria à noite como o é nassuas relações de poder mais íntima.

O hotel onde estávamos era estratégico.Do meu quarto visualizava a linha de fron-teira entre Ponta Porã (Brasil) e Pedro JuanCaballero (Paraguai). O vento na janela eraforte. O frio também. Estou no apartamento702, do Palace Hotel Portal do Sol. A par-tir da janela observava e percebia a linha defronteira entre Brasil e Paraguai, à noite. Ob-servava as três avenidas do comércio direci-onadas para o Brasil. Estas demonstravam, ànoite, o espaço fluído. Percebia as luzes doscarros que se movem intensamente entre es-tas avenidas de Pedro Juan à noite. O fluxo éintenso. A movimentação que se estabeleciana fronteira é muito maior que no interior dePedro Juan Caballero. Porém, após estas trêsavenidas comerciais meu olhar se espraiavaa ver luzes fixas, refletindo apenas os objetosimóveis da fronteira. O interior da cidade dePedro Juan Caballero contém vida e movi-mento, mas não aparenta à noite tanta fluidezquanto na “área de transição” entre Brasil eParaguai.

Nos reunimos na recepção do hotel e par-timos de Van para o Shopping China. Che-gando em frente do shopping nos deparamoscom um amontoado de carros no estaciona-mento. O fluxo de pessoas e objetos é in-tenso nesse lugar. Na entrada percebemos

que ali é o “espaço moderno”. Ponto de re-ferencia de uma rede mundial de comércio.Comércio de importados. Os produtos quesão comercializados são de várias partes domundo.

Dentro do Shopping percebemos que esteé organizado por seções. Seções de vinho,de roupa, de eletrônicos... e, também ob-servamos, que sem as promoções, os pro-dutos são bem mais caros que em relaçãoaos dos camelôs e lojas da fronteira, que an-tes havíamos visitado. Parece-nos que osprodutos são direcionados para uma classemédia e alta. Salvo, promoções que sem-pre acontecem. O espaço do shopping égrande. Os funcionários todos uniformiza-dos. O poder invisível paira pelo ar do shop-ping para os funcionários. Como afirmouFoucault (1989), “vigiar e punir”. As re-lações em função do poder, também fazemparte, em grande medida, da fronteira.

Depois de uma breve caminhada e olhadano Shopping, nos direcionamos para suapraça de alimentação. Um espaço grande,bonito e arejado. Nos moldes da moderni-dade. Reunimos-nos em volta de uma dasmesas e “jogamos conversa fora”. As con-versas aumentavam, como os Chopps tam-bém. E ali, sentados entre amigos é que en-tendemos melhor a vida. “A cerveja é umarelação”. As relações se dão porque toma-mos cerveja. A cerveja faz parte de um ritualpara conversarmos, para vivermos. Ficamosali sentados. Até que o Shopping começaa fechar. As luzes se apagam. Parece quequerem que saiamos. Então saímos. Lá foraa neblina e o frio é que comandam a noitena fronteira. Tomam conta. Apropriam-sedos espaços na fronteira. É nesse cenário,utilizando desse elemento natural, que pode-mos dizer que: a neblina embaça a fronteira,

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como os homens e mulheres da fronteira de-tentores do poder embaçam e camuflam suasrelações “invisíveis”. À noite, entre PontaPorã (Brasil) e Pedro Juan Caballero (Para-guai), nos dá a sensação de poderes que semovimentam. De olhos que vigiam. De do-minação e apropriação. De relações de co-mando.

Desse modo, chegando no hotel, nos di-recionamos para um restaurante. A noite énossa e é uma criança..., mesmo com muitofrio, neblina e chuva... São 6:00 horas damanhã do dia 16 de junho de 2007 quandoacordamos. Da janela do quarto observo oamanhecer de Ponta Porã e, especialmente,de Pedro Juan Caballero. Pela manhã a linhade fronteira é mais embaçada que à noite.A neblina da noite anterior teima em ficar.Não se enxerga mais que uma avenida apósa linha de fronteira. Pela manhã a fronteiraainda continua nebulosa, úmida e fria. Dessemodo, logo tomamos café e partimos. Nasaída da cidade de Ponta Porã, percebemosque as pessoas recomeçam seus dias. Reco-meçam como formigas que carregam coisas,vidas, idéias. A luta diária da vida pela vidareinicia. As mulheres e homens do trabalhoda fronteira retornam as suas atividades. Po-rém, a manhã começa preguiçosa, como aspessoas o são.

Próximas paradas, Bela Vista (Brasil) eBella Vista Norte (Paraguai). Lá vamos nós.No início da ida para Bela Vista (Brasil) osono atormenta o pessoal. Todos quietos.Alguns intelectuais lêem jornais. Outros ob-servam a paisagem por onde passamos. A es-trada nos dá a sensação de estarmos na fron-teira. De um lado estava o Brasil e do outroo Paraguai. A paisagem por isso é diferente.Não totalmente. Do lado do Paraguai víamospopulações de índios em suas moradias “rús-

ticas”. Logo percebia a segregação e a preca-rização em que vivem os índios, a que foramsubmetidos. Contudo, ainda a vida indígenafazia-se nesse(s) lugar(s). O viver, apesar detudo, buscava sobreviver.

Por outro lado, no Brasil, avistávamos al-gumas fazendas. Grandes e imponentes fa-zendas como a “Fazenda Brasil”. Nome bempertinente. Exibe na fronteira o naciona-lismo e a grandiosidade da mesma. Do ladodo Paraguai, o que víamos eram fazendasmais modestas. A racionalidade econômica,o moderno, parece que estavam mais presen-tes no lado brasileiro.

Nossa ida era tranqüila. Inicialmente to-dos cansaços da pesquisa e do viver do diae da noite anterior. Tudo era calmo, até queas músicas da festança da noite anterior vol-taram a ser tocadas e embalaram nossa vi-agem. A alegria e as tristezas das cançõesrompiam o silêncio da viagem. Transpassá-vamos espaços e tempos diversos com des-tino a Bela Vista do Brasil e Bella VistaNorte do Paraguai. Mas, apesar da música, aleitura fazia parte da viagem. Jornais ajuda-vam na busca de informação e na alimenta-ção do imaginário de alguns indivíduos pelaviagem.

A neblina do início da viagem havia, en-fim, diluído-se. Mas, o dia continuava “nu-blado”. O sol parecia se esconder na fron-teira. Passamos pelo rio Apa. Famoso riodas pescarias grandiosas. Dos peixes bonitose grandes. Das alegrias à beira do rio. Dascervejas tomadas na pescaria. Logo adiante,chegando na entrada da cidade de Bela Vista(Brasil), um morador acena para o motoristade nossa Van, como se desce as boas vindaspara nós. Paramos num hotel na entrada dacidade e esperamos nossa guia. Uma moçalogo aparece. Uma professora jovem da ci-

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dade será nossa guia. O nome dela é Vânia.E, assim, partíamos novamente.

Entrando no perímetro urbano de BelaVista (Brasil), observamos a placa da cidadeque dizia: “Bela Vista, 86 anos”. Mais adi-ante, em uma borracharia, um cidadão bebiaseu tereré tranqüilamente. A primeira im-pressão na entrada da cidade é que esta é“pobre”. Casas humildes e prédios antigos.Passamos pela Igreja Católica. Esta pertenceà mesma congregação do padre da Igreja Ca-tólica de Ponta Porã, que entrevistamos nodia anterior. São padres que vieram do EUAem 1930. A igreja e a casa paroquial são an-tigas, porém, grandes e imponentes. Uma ar-quitetura muito bonita. A igreja é alta. Im-põe respeito e poder.

De acordo com nossa guia Vânia o comér-cio de Bela Vista (Brasil) é muito fraco. Pas-samos com a Van em frente ao CTG. Obser-vamos a importância da participação do povogaúcho na cidade. Andando mais um poucopela cidade percebemos que está é antiga.Prédios antigos de dois andares compõem apaisagem urbana da cidade. Parece ser umacidade como pouco movimento. Bem maistranqüila em relação à Ponta Porã (Brasil) ePedro Juan Caballero (Paraguai). Os fluxosde pessoas e automóveis são pequenos.

Chegamos em frente a uma praça da ci-dade e fizemos uma parada. Lá conversamoscom a professora Vânia sobre vários assun-tos da fronteira. Segundo a guia, a cidade deBela Vista (Brasil) tem aproximadamente 22mil habitantes. Perguntada sobre as diferen-ças de trabalho na fronteira, a professora co-menta que “há uma certa inversão. Troca-semão-de-obra”. Os brasileiros com uma mão-de-obra mais qualificada vão para Bela VistaNorte (Paraguai) trabalhar; já, os paraguaiosque vem para Bela Vista (Brasil), tem uma

mão-de-obra menos qualificada, são normal-mente pedreiros, serventes, ajudantes... Apartir desses elementos, percebemos que nafronteira há uma troca da mão-de-obra deacordo com as necessidades de cada país, ecom a qualificação da mão-de-obra disponí-vel. O mercado de trabalho se impõe sobre afronteira?

Sobre o ensino na fronteira, Vânia afirmaque as escolas brasileiras de Bela Vista temem média 20% de alunos paraguaios estu-dando. Segundo ela, “eles acham que o en-sino no Brasil é melhor”; isto é, as escolasno Brasil para os paraguaios fornecem umamelhor formação. Será? De acordo com aprofessora há outros elementos para essa mi-gração escolar do Paraguai para o Brasil. Deacordo com ela, a escola paraguaia é umaescola muito tradicional. Muito repressora.Tem costumes rígidos. Por isso, os para-guaios buscam maior liberdade nas escolasbrasileiras, que já não comportam certos tra-dicionalismos e rigidez de antigamente.

Segundo a professora, essa mistura de pa-raguaios na escola brasileira resulta em al-guns contrastes. De acordo com ela, os alu-nos paraguaios sendo ensinados de maneiramais “liberal”, levam para casa ensinamen-tos que contrastam com a cultura e com a for-mação tradicional de seus país. Há implica-ções nesse processo entre família e a escola.Segundo Vânia, a escola no Paraguai é res-ponsável pelos alunos, os pais não precisamparticipar de reuniões. A escola é responsá-vel pelo aluno enquanto este estiver lá. Tal-vez isso seja um dos motivos por ela ser tra-dicional? Em contrapartida, no Brasil, a pre-sença dos pais é requisita em algumas reu-niões e/ou conversas com professores sobreos alunos etc. Nesse processo, parece que o

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pai e a mãe paraguaio, com filho estudandono Brasil, se recusa a participar.

Outro elemento resultante da mistura deparaguaios na escola brasileira é a discrimi-nação. Ocorre, segundo a professora Vânia,a discriminação por parte de brasileiros emrelação aos paraguaios na escola. Segundoela, certas brincadeiras, como por exemplo ofutebol, ou, até mesmo, atividades em gruposna sala, ocorre dos paraguaios muitas vezesficarem isolados. Também, quando é feriadono Paraguai, os alunos paraguaios não vempara a escola no Brasil. O que acontece? Osalunos brasileiros aproveitam e também nãovão para a escola. Há uma influência muitogrande nesse sentido. Segunda a professora,“não adianta dizer que tem aula, mesmo as-sim, não vem ninguém”. A partir disso, en-tendemos que certos costumes religiosos ounão, que redundam em feriados no Paraguai,exercem influência direta em Bela Vista noBrasil.

De acordo com Vânia, um elemento im-portante na cidade é o quartel do exército.Este, para manter a segurança e soberanianacional, está instalado na fronteira. Este ór-gão atrai um contingente de indivíduos quevem para servir pela pátria. A maior parte,segundo a professora, são gaúchos e cario-cas. Há uma rotatividade de indivíduos noquartel. Parece que poucos militares ficamno quartel por um tempo longo. A maio-ria cumpre seu tempo destinado de serviço elogo pede transferência para outro lugar. Porque será? A fronteira é um lugar perigoso?Não é bom viver na fronteira?

Quanto à perspectiva de ensino. O ensinoé limitado. Faculdade e/ou Universidade emBela Vista (Brasil) ou Bela Vista Norte (Pa-raguai) não existe. O que existe raramentesão cursos de especialização. Assim, boa

parte das pessoas formadas com cursos su-periores são de fora. Porém, a professora nosafirma: hoje o mercado em Bela Vista (Bra-sil) com professores formados está saturado.“Todo mundo ‘briga’ por aula aqui”. “An-tigamente, não era assim, eram poucos osprofessores formados”. Percebemos, nas de-clarações da professora, algumas situaçõesinteressantes: ao mesmo tempo em que omercado está saturado para professores for-mados, boa parte desses têm suas formaçõesuniversitárias realizadas fora da cidade; istoé, vieram para Bela Vista (Brasil) de outroslugares. Assim, como atração de mão-de-obra para o ensino, a cidade foi um foco atra-tivo.

Quanto à migração de jovens para outroslugares, Vânia nos diz que ocorreu muito.“Muitos amigos meus de juventude já nãomoram mais aqui”. Ela afirma que mesmo osparaguaios que moram em Bela Vista (Bra-sil) e Bela Vista Norte (Paraguai) saem paraoutros centros maiores do Brasil. No es-tado do Mato Grosso do Sul, segundo Vânia,Campo Grande e Dourados, são duas cida-des para onde se deslocaram muitas pessoasde Bela Vista.

Quando perguntada sobre as tensões queexiste na fronteira, a professora nos diz que“os brasileiros sabem até onde podem ir aoParaguai. As tensões existem, mas são ca-mufladas”, portanto, escondidas. Nos falaque no Brasil há o preconceito sobre para-guaios, mas este é camuflado, escondido. “Opreconceito existe, mas não é explícito”.

Também, de acordo com nossa guia no co-mércio do Paraguai em Bela Vista Norte, sefala o espanhol. Já no interior da cidade alíngua falada é o guarani. Em virtude do co-mércio com o Brasil a língua nesse setor é o

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espanhol. Segundo a professora, “quem falasó guarani se isola”.

Vânia nos fala sobre os bailes no Paraguai.Estes, segundo ela, são melhores e mais or-ganizados que no Brasil. “Os bailes do Pa-raguai são melhores que os daqui”. Isso sedeve a um maior tradicionalismo ainda pre-sente nos bailes do Paraguai. “São bailestradicionais e de família”. “Lá as meninassão melhores que as daqui. São ‘moças di-reitas”’. Já no Brasil as meninas são maisjovens e não são “tão direitas” como no Pa-raguai. Não são “moças de família”.

Segundo a professora, quanto à escolhade homens e mulheres para namorar e ca-sar, há uma mistura: “o brasileiro gosta deparaguaia e o paraguaio gosta de brasileira”.Há uma mistura nos gostos na fronteira. Pa-rece que o brasileiro busca o tradicionalismoe a fidelidade da paraguaia; enquanto o para-guaio busca a liberdade e a malícia da brasi-leira. Será que isso acontece assim mesmo?

Assim, depois de uma conversa com a pro-fessora Vandi, entramos na Van e partimospara Bela Vista Norte (Paraguai). Desem-barcarmos em frente ao rio Apa, que marca adivisa entre as duas cidades, e atravessamosa pé a fronteira. Nesse trajeto, vemos gen-tes com semblantes diferentes. Estas passampor nós em cima da ponte e nos empreitamcom seus olhares. Olhares que dizem que so-mos estrangeiros, forasteiros, diferentes emrelação a eles. Algumas carroças puxadaspor burros circulam, até que chegamos dooutro lado do rio onde o primeiro comerci-ante vende improvisadamente DVDs. Vendeao lado da rua, junto da ponte. Seria só umcamelô que vende DVDs?

Assim, chegamos em Bella Vista Norte noParaguai. A primeira visão é dos produtosexpostos de todos os jeitos em frente e dentro

das lojas do comércio. Tudo se mostra, tudose vende. Voltamos a pisar na rua de calçada.Motos circulam com pessoas sem capace-tes. Estamos no Paraguai novamente. Re-alidade já re-conhecida. Andamos por umarua principal. A rua do comércio de BellaVista Norte (Paraguai). O comércio é bemmais modesto em relação ao de Pedro JuanCabelleiro (Paraguai), que visitamos um diaantes. As lojas são antigas. As pessoas sãomais fechadas. Não nos oferecem tanto osprodutos como em Pedro Juan Caballero. Asdiferenças entre uma fronteira e outra exis-tem. Andamos pelo comércio, entramos emalgumas lojas e constatamos: os paraguaiosde Bela Vista Norte são mais frios em suasrelações com os brasileiros. São mais “fe-chados”.

Não vemos tantas armas como víamos emPedro Juan. Parece que ficam escondidas.Aqui trafegam muitas motos. Percebemosque algumas estão sem placas. Ficamos sa-bendo que são do Brasil e só podem circulamno Paraguai sem placa. Por que? Caminha-mos mais e entramos num mercadinho. Opessoal estava com fome. Compramos co-quitos. Recebe este nome pela semelhançacom o coco. De acordo com uma paraguaia,“é como uma bolacha do Brasil”.

Assim, após comermos muitos coquitos,saímos da rua do comércio e adentramospara o “meio” da cidade de Bella Vista Norte(Paraguai). Andamos por ruas de terra, ondenos deparávamos com muita pobreza. Ca-sarões de madeira antigos eram os fixos dolugar. Pinturas com cores fortes e desgasta-das caracterizavam estes fixos. Caminhamosaté a Igreja Maria Auxiliadora. Uma Igrejaantiga, feita de pedra. Igreja grande, bonita.Ao redor, casas de paraguaios humildes, po-bres, uma miséria grande. Na porta da igreja

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um papel colado com o resumo da últimafesta feita pela igreja. O relatório dos gas-tos e lucros estava exposto em três línguas:espanhol, guarani e português. Percebe-se aheterogeneidade das relações na fronteira edentro de Bela Vista Norte no Paraguai. Astrês línguas fazem parte das relações do coti-diano, da vida e dos viveres deste povo fron-teiriço.

Conversando com Vânia, esta nos diz quea frieza nas relações conosco, com nós bra-sileiros por parte dos paraguaios se deve, so-bretudo, historicamente, a partir da Guerrado Paraguai. Ali foram mortos por brasilei-ros muitos paraguaios. Esta Guerra, segundoa professora, alimenta o imaginário dos para-guaios, que criam representações e estereó-tipos de brasileiros, até hoje. “A visão daGuerra está ainda hoje muito presente. Cadapaís vai dar sua visão, sua interpretação daGuerra”, afirma a professora.

Assim, saímos de frente à igreja em dire-ção de volta para o Brasil. “Saímos do ladode lá e voltamos para o lado de cá”. Navolta, passamos pelo comércio novamente,onde uma boa parte dos alunos comprarammais coquitos. Nos reunimos na Van e de-cidimos a programação. Na conversa desco-brimos que o costume dos moradores de BelaVista (Brasil) é o de tirar a “sesta” depoisdo almoço. Ou seja, os moradores da cidadesó iniciam suas atividades após o meio-dia,depois de um sono, de um descanso depoisdo almoço, que perdura até as 14:30. Então,avisados sobre a “sesta”, fomos almoçar emBela Vista (Brasil). Paramos em frente a umaespécie de bar. O lugar não tinha aparênciade ter comida. Mas tinha. Lugar barato paraalmoçar, lá fomos nós.

Depois do almoço, partimos para o cemi-tério da cidade, afinal, a história do muni-

cípio se encontra lá! Nos reunimos dentrodo cemitério, em frente a um monumentoem memória à Guerra da Tríplice Aliança,onde ouvimos as histórias e estórias do lu-gar. Segundo a professora Vânia, em umabatalha da Guerra da Tríplice Aliança todosmorreram: morreram em torno de 2.000 pa-raguaios e, em torno de 2.000 brasileiros.Talvez, esse mito da morte de todos seja umamaneira de empatar a Guerra e amenizar asconseqüências da mesma. “Foi uma maneirade a história contornar o fato”. Esta Guerra,de acordo com a professora, está muito pre-sente nas relações da fronteira. “A Guerracria representações na cabeça das pessoas”.Como afirma Lefébvre (1983: 28), “Las re-presentaciones circulan, pero en torno a fije-zas: las instituciones, los símbolos y arque-tipos. Interpretan la vivencia y la práctica:intervienen en ellas sin por ello conorcelasni dominarlas”. E, ainda, segundo o autor“(...) as representaciones son productos de lamente humana, de la división social del tra-bajo. Interpretaciones de la práctica, mutilá-dola o transponiéndola, se utilizam política-mente” (LEFÉBVRE, 1983: 29)

De acordo com Vânia, o “resgate histó-rico está em processo” na fronteira. “Nãose dá valor histórico”. As pessoas do lu-gar, principalmente do lado brasileiro, “en-tendem pouco sobre a Guerra da TrípliceAliança”. Nesse sentido, percebemos queo povo brasileiro não se preocupa muito emmanter viva sua história.

Outro elemento importante na fronteirasão os feriados. Segundo a professora, os fe-riados religiosos do Paraguai, de Bela Vista,Norte influenciam na vida, no cotidiano dosmoradores de Bela Vista (Brasil). Os pa-raguaios que moram no Brasil, quando éferiado no Paraguai, se deslocam até este

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país para participar das celebrações religio-sas. “Estes feriados no Paraguai influenciame viram feriados em Bela Vista no Brasil”.Assim, a cidade brasileira é influenciada deacordo com os costumes e as tradições do Pa-raguai. Ocorre, além de diferenciações nafronteira, uma mistura de costumes. Um sefaz no outro.

Desse modo, após a visita ao cemitério, jáeram 14:30 da tarde, e, portanto, podíamosnos deslocar para a casa de nosso último en-trevistado, o Senhor Gentil, um dos comerci-antes mais “antigos” da cidade de Bela Vista(Brasil). Chegando em sua casa, este e suaesposa nos recebem muito bem. Era um se-nhor, aparentando mais de 60 anos de idade,porém muito sereno. Cumprimentou todosos mestrandos, e ouvia o professor Jones, emsuas indagações a respeito da fronteira commuita atenção. Logo de cara percebemos quesua mulher sentou-se atrás dele. A submis-são e obediência da mulher ao homem es-tava explícita. Sua mulher não interviu emnenhuma das respostas do Senhor Gentil.

A casa era antiga, mas com móveis e qua-dros na parede, que provavelmente seriam demaior nível que boa parte das moradias deBela Vista (Brasil). Na parede exibiam-sequadros com lembranças de outras cidades ede outros países para aonde o Senhor Gentilhavia viajado. Mas, além destes, exibiam-se quadros da família, muitos troféus na es-tante, e um quadro com um retrato de umamulher jovem e muito bonita. Deduzimosque fosse de sua mulher quando jovem.

Quando perguntado, o Senhor Gentil foinos respondendo com um número de pala-vras que com o passar do tempo de con-versa foi aumentando. Este nos diz queseus pais vieram do Rio Grande do Sul em1906. Falava-se muito naquela época do

Mato Grosso. “Demoraram dois anos parachegarem aqui de carreto de boi”. O pro-cesso de ocupação, segundo o Senhor Gentil,se deu quando “aqui tudo era sertão”. “Com-pravam terra, demarcava um lugar e ficava”.A terra, ele relatou, que era comprada e/ouganhada do Estado. Contou-nos que seuspais eram fazendeiros, mas que hoje a terranão está mais na mão-da-família. “Hoje estaterra está na mão de mineiros e outros sulis-tas”. Mas como que ele virou comerciantesendo seus pais fazendeiros? Afirma que co-meçou a trabalhar no comércio como empre-gado e depois de algum tempo comprou oestabelecimento e se tornou ele próprio co-merciante, até hoje em Bela Vista (Brasil).Afirma que já tentou montar um comércioem Bela Vista Norte (Paraguai), mas que du-rou pouco. “A economia lá é muito fraca”,diz ele.

Seu Gentil também nos conta sobre a im-portância do exército. O mesmo completouà pouco 100 anos em Bela Vista (Brasil).O exército ajudou na instalação das famíliasnas terras e manteve a segurança na fronteira,afirma ele. E, também nos diz, que foi dele-gado da cidade por 10 anos. Este nos relatouque a cidade de Bela Vista (Brasil) teve umamudança no seu “curso”. Passou da antigapara a nova. A “cidade antiga” é por ondeentramos na cidade vindo do Brasil. Estaporção urbana fica mais distante da linha defronteira com o Paraguai. Lá era onde existiaa cidade anteriormente. Depois, houve umamudança no seu “curso”, onde se construiunovas instalações urbanas mais próximas dalinha de fronteira, sendo chamada esta partede “cidade nova”. Na “cidade antiga” fica-ram as casas, os bancos, e muitos prédiosantigos estão abandonados, em desuso, porcausa da migração de vários setores para a

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“cidade nova”. Para esta parte nova da ci-dade, mais próxima da fronteira, se deslocouo pequeno comércio da cidade, tendo como“carro chefe” o setor de alimentos. Por queocorreu isso?

Segundo o Senhor Gentil, o “Paraguaiproduz muito pouco alimento. Os para-guaios vêm comprar comida aqui”. Dessemodo entendemos que um dos motivos paraessa mudança seria a proximidade com o Pa-raguai para a venda de produtos alimentícios.Será só isso? Ainda, o Senhor Gentil nosdiz que as atividades principais de Bela Vista(Brasil) são o comércio e a pecuária. Pergun-tado sobre as diferenças entre Brasil e Para-guai, nos diz que “a economia do Paraguainão se assemelha a do Brasil”. Que as dife-renças existem. “O Paraguai é muito pobre”.

O comércio em Bela Vista (Brasil) e Bellavista Norte (Paraguai) é o “fim de linha”,afirma o Senhor Gentil. Ou seja, isso nosdá a entender aqui na fronteira é um “fim demundo”, um “fundão”, como afirma Martins(1996: 15) “a fronteira é o confim do hu-mano”. Assim, o comércio nessa fronteiraé fraco. “O turismo aqui tem muita fiscaliza-ção”. E, comparando com Ponta Porã, estenos diz que “lá em Ponta Porã a ‘fronteira éseca’, facilita o comércio”. Aqui, entre BelaVista (Brasil) e Bella Vista Norte (Paraguai),“tem um rio, uma ponte e um posto fiscal,tem mais fiscalização, isso dificulta mais”.Nos diz que o comércio de roupa tem pro-cura, mas ainda é “fim de linha”. “O comér-cio não é chamativo, o comércio é local e apopulação é pobre”, afirma o Senhor Gen-til. Este nos confessa que gosta de morar emBela Vista, no Brasil. “Não gosto de cidadegrande”. Tranqüilidade, conhece todas aspessoas da cidade, aqui está à vontade. “Em

Bela Vista todo mundo se conhece”. “PontaPorã é muito violento”.

Quando perguntado sobre as classes soci-ais que existem na cidade e sua localização,este nos diz que “estão tudo misturadas”. Asclasses sociais estão distribuídas em todos oslugares da cidade. “Ricos, pobres, tudo mis-turado”. “Só o comércio se transferiu maispara perto da fronteira [...] Mudaram paraficar mais perto da fronteira”.

Também nos relata que fala a língua gua-rani. “Isso ajuda no comércio”. E, nos dizque quando paraguaio fala mal de brasileirofala em guarani para que este não saiba, poisnão pode entender. Segundo o Senhor Gen-til, “brasileiro e paraguaio não se dão”. A ri-validade no futebol é muito grande, “terminaem briga”. Quanto ao namoro entre brasi-leiro e paraguaios, este afirma que “antiga-mente tinha muita richa para namorar. Hojeos costumes são quase iguais [...] Pode na-morar, mais com restrições”. Assim, perce-bemos que as relações, mesmo camufladas,escondidas, ainda existem, de muito precon-ceito. De muita (in)diferença. A fala do Se-nhor Gentil diz tudo: “Pode namorar, maiscom restrições”. Existe uma desconfiançamuito grande na relação do eu com o outro.Ainda, este nos diz que a família dele tinharaiva de paraguaio, por que estes haviam ma-tado há anos atrás brasileiros parentes da suafamília. São brigas antigas. “Hoje não temmais tantas brigas”. “O paraguaio não gostade brasileiro, não sei se por inveja”, afirma oSenhor Gentil. “São contra no futebol. Temmuito rancor”.

Para o Senhor Gentil, em relação à bebe-deira, os paraguaios ali na fronteira bebemmais que os brasileiros. Porém, os para-guaios “bebem pinga mesmo”. O nome dapinga mais consumida no Paraguai é Fortim.

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Nome sugestivo! Também nos conta queem relação à saúde, há uma parceria “ilegal”entre as prefeituras de Bela Vista (Brasil) eBella Vista Norte (Paraguai) para aceitar pa-raguaios no posto de saúde de Bela Vista(Brasil). “Há uma parceria das prefeituras‘por baixo do pano’ para aceitar paraguaiosna saúde”. Também quanto ao cumprimentode suas dívidas, o Senhor Gentil nos diz queo brasileiro ‘dá o cano’ nos paraguaios. Tãoressabiados com os cheques dos brasileiros”.Portanto, em matéria de calotes na fronteira,o brasileiro é muito mais malandro que o pa-raguaio. Será? E, assim, terminamos nossaentrevista.

3 Considerações FinaisConhecemos a fronteira, buscamos a fron-teira, observamos a fronteira, caminhamosna fronteira. Vivemos por dois dias na fron-teira. E nesse viver apressado, corrido, po-demos dizer que a fronteira é o lugar do di-verso, do singular, do único, do diferente quese diferencia de um lado da fronteira e dooutro. São pessoas, espaços e lugares quesão produtos e produtores de relações “divi-didas”. São relações que se estabelecem pela(di)visão dos países, dos territórios, das pes-soas, dos produtos etc. São relações que im-bricam união e separação. São relações quese caracterizam através de uma dialética es-paço temporal diversa. Não há espaço únicoe tempo linear. Na fronteira existe váriostempos e vários espaços. São tempos singu-lares, são espaços diversos que compõem omesmo processo: o viver na fronteira. Na(di)visão dos territórios e pessoas, das naci-onalidades e identidades, dos gostos e per-tencimentos, das ordem e desordens.

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Trabalho de Campo realizado no dia 15 dejunho de 2007 nas cidades de PontaPorã (Brasil) e Pedro Juan Caballero(Paraguai); e, no dia 16 de junho de2007 nas cidades de Bela Vista (Brasil)e Bella Vista Norte (Paraguai).

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