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Curso de direito civil 1 - parte geral - fabio ulhoa coelho

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Coelho, Fábio UlhoaCurso de direito civil : partegeral, volume 1 /Fábio Ulhoa Coelho. — 5. ed.— São Paulo : Saraiva, 2012.1. Direito civil 2. Direito civil -Brasil I. Título.CDU-347

Índice para catálogo sistemático:1. Direito civil 347

Diretor editorial Luiz Roberto CuriaGerente de produção editorial Lígia Alves

Editor Jônatas Junqueira de MelloAssistente editorial Sirlene Miranda de Sales

Produtora editorialClarissa Boraschi Maria

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Preparação de originais Ana Cristina Garcia / MariaIzabel Barreiros Bitencourt Bressan / Daniel Pavani

NaveiraArte e diagramação Cristina Aparecida Agudo de

Freitas / Claudirene de Moura Santos SilvaRevisão de provas Rita de Cássia Queiroz Gorgati /

Amanda Maria de CarvalhoServiços editoriais Camila Artioli Loureiro / Vinícius

Asevedo VieiraCapa Roney Camelo

Produção gráfica Marli RampimProdução eletrônica Ro Comunicação

Data de fechamento da edição:6-11-2011

Dúvidas?Acesse www.saraivajur.com.br

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Nenhuma parte desta publicação poderá serreproduzida por qualquer meio ou forma sem a

prévia autorização da Editora Saraiva.A violação dos direitos autorais é crime estabelecido

na Lei n. 9.610/98 e punido pelo artigo 184 doCódigo Penal.

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A Beatriz

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ÍNDICE

PRIMEIRA PARTEPARTE GERAL DO DIREITO CIVIL

CAPÍTULO 1A TECNOLOGIA DO DIREITO CIVIL

1. Ciência e tecnologia jurídica2. Classificações

2.1. Argumentos jurídicos2.2. Aproximações e distanciamentos

3. Direito público e direito privado3.1. Pessoas de direito público e de direito privado3.2. Interesses públicos e privados3.3. Positivação e autonomia da vontade3.4. Insuficiência dos critérios

4. Unidade do direito privado5. Divisões do direito civil6. Direito civil e teoria geral do direito7. Código Civil

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CAPÍTULO 2A LEI

1. Fontes do direito2. Referências do direito3. A lei como referência do direito4. Processo legislativo5. Vigência6. Constitucionalidade

6.1. Controle da constitucionalidade das leis6.2. O direito civil e a Constituição

7. Eficácia8. Revogação

8.1. Revogação expressa ou tácita8.2. Repristinação

9. A obrigatoriedade da lei

CAPÍTULO 3NORMAS JURÍDICAS E ORDENAMENTO

1. Introdução2. Hierarquia das normas jurídicas

2.1. Os graus de hierarquia das normas jurídicas2.2. Leis da União e de outros entes federados2.3. Normas internacionais e supranacionais

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3. Princípios4. Conflito entre normas5. Lacunas6. Atributos da norma jurídica7. Normas cogentes e normas supletivas8. Onde estão as normas jurídicas?9. Flexibilização das normas jurídicas

CAPÍTULO 4INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO DA LEI

1. Introdução2. Métodos de interpretação

2.1. Gramatical2.2. Lógico2.3. Sistemático2.4. Teleológico2.5. Histórico2.6. Conclusão: há uma interpretação verdadeira?

3. Tipos de interpretação4. Interpretação e flexibilização das normas5. Aplicação da lei

5.1. Aplicação da lei no espaço5.2. Aplicação da lei no tempo

5.2.1. Disposições transitórias5.2.2. Retroatividade da lei

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5.2.3. Direito adquirido, negócio jurídico perfeito ecoisa julgada

5.3. Aplicação da lei e equidade6. Subsunção

CAPÍTULO 5DIREITOS SUBJETIVOS

1. Direito subjetivo e direito objetivo2. Direito subjetivo e dever3. Conceito e classificações do direito subjetivo4. Direitos adquiridos e expectativa de direitos5. Exercício dos direitos

CAPÍTULO 6OS SUJEITOS DE DIREITO

1. Introdução2. Espécies de sujeitos de direito3. Sujeitos personificados4. Sujeito despersonificado humano: o nascituro

4.1. Natureza jurídica do embrião in vitro4.2. Direitos do embrião in utero

5. Sujeitos despersonificados não humanos

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CAPÍTULO 7A PESSOA FÍSICA

1. Introdução2. Capacidade3. Pessoas físicas incapazes

3.1. Incapacidade em razão da idade3.1.1. Menor impúbere3.1.2. Menor púbere3.1.3. Emancipação

3.2. Incapacidade com interdição3.2.1. Pródigo3.2.2. Viciado3.2.3. Deficiente mental3.2.4. Mentalmente enfermo3.2.5. Impedido de expressar a vontade3.2.6. Negócios jurídicos anteriores à interdição

3.3. Algumas situações específicas3.3.1. Velho3.3.2. Deficiente físico3.3.3. Índio

4. Direitos da personalidade4.1. Direito ao nome

4.1.1. Alteração do nome4.1.2. Proteção do nome

4.2. Direito à privacidade

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4.2.1. Inviolabilidade da vida privada e seus limites4.2.2. Privacidade na internete

4.3. Direito sobre o corpo4.3.1. Transplantes4.3.2. Esterilização4.3.3. Mudança de sexo

4.4. Direito à imagem4.4.1. Direito extrapatrimonial à imagem-retrato4.4.2. Direito extrapatrimonial à imagem-atributo4.4.3. Direito patrimonial à imagem

4.5. Direito à honra5. A morte

5.1. Comorientes5.2. Direitos do falecido

6. Ausência6.1. Curadoria dos bens do ausente6.2. Sucessão provisória e definitiva6.3. O retorno do ausente

7. Domicílio da pessoa física

CAPÍTULO 8A PESSOA JURÍDICA

1. Introdução2. Conceito de pessoa jurídica3. Classificação das pessoas jurídicas

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4. Início e término da personificação5. Desconsideração da personalidade jurídica6. Formação da vontade das pessoas jurídicas7. Pessoas jurídicas de direito privado

7.1. Associações7.1.1. Constituição e dissolução7.1.2. Direitos e deveres dos associados7.1.3. Assembleia geral dos associados

7.2. Sociedades7.3. Fundações

7.3.1. Instituição da fundação7.3.2. Fiscalização do Ministério Público

8. Organizações Não Governamentais (ONGs)9. Direitos da personalidade da pessoa jurídica10. Domicílio da pessoa jurídica

CAPÍTULO 9OS BENS

1. Bens e coisas2. Bens considerados em si mesmos3. Bens reciprocamente considerados4. Bens públicos

CAPÍTULO 10

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OS NEGÓCIOS JURÍDICOS

1. Fatos jurídicos2. Relação jurídica3. Conceito e atributos do negócio jurídico4. Classificação de negócio jurídico5. A vontade e sua declaração

5.1. Interpretação da declaração5.2. Reserva mental

6. Representação6.1. O conceito de representação6.2. Os poderes de representação

7. Modulação do negócio jurídico7.1. Condição7.2. Termo7.3. Encargo

8. Existência do negócio jurídico8.1. Prova do negócio jurídico8.2. Negócio jurídico inexistente

9. Eficácia e validade do negócio jurídico10. Requisitos de validade do negócio jurídico

10.1. Sujeitos do negócio jurídico10.2. Objeto do negócio jurídico10.3. Forma do negócio jurídico

11. Defeitos dos negócios jurídicos11.1. Defeitos internos do consentimento

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11.1.1. Erro11.1.2. Lesão11.1.3. Direitos do declaratário

11.2. Defeitos externos do consentimento11.2.1. Dolo11.2.2. Coação11.2.3. Estado de perigo

11.3. Defeito social: fraude contra credores12. Invalidade do negócio jurídico

12.1. Diferenças entre negócios nulos e anuláveis12.2. Normas gerais sobre negócios jurídicos inválidos12.3. Negócios jurídicos nulos12.4. Negócios jurídicos anuláveis12.5. Negócios simulados

12.5.1. Simulação e negócio dissimulado12.5.2. Simulação e reserva mental12.5.3. Simulação e negócio indireto

CAPÍTULO 11ATOS ILÍCITOS

1. Ilicitude da conduta2. Abuso de direito3. Exclusão da ilicitude4. Responsabilização por atos ilícitos

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CAPÍTULO 12PRESCRIÇÃO E DECADÊNCIA

1. Introdução2. Diferenças entre prescrição e decadência

2.1. Critérios de diferenciação2.2. Regimes jurídicos2.3. Os incapazes e os prazos extintivos

3. Suspensão e interrupção da prescrição

Bibliografia

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Primeira Parte

PARTEGERAL DO

DIREITOCIVIL

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Capítulo 1

ATECNOLOGIADO DIREITO

CIVIL1. CIÊNCIA E TECNOLOGIA JURÍDICA

Uma das preocupações marcantes da filosofia do direito,ao longo do século XX, foi discutir as condições pelas quaisse poderia conhecer cientificamente o conteúdo das normas

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jurídicas. Como a filosofia do direito é uma disciplina surgidanos meados do século XIX, pode-se até mesmo dizer queessa preocupação tem sido o seu tema central. O maisconhecido dos filósofos do direito, Kelsen, propôs que oestudo científico do direito somente poderia ser resultado darigorosa observação de um princípio fundamentalmetodológico. Esse princípio sustenta que não podem serconsiderados, no exame do conteúdo das normas jurídicas,de um lado, os valores envolvidos em sua edição eaplicação, e, de outro, os fatores sociais, econômicos,históricos, culturais e psicológicos interferentes com aprodução normativa. O estudioso das normas jurídicas quese deixasse influenciar pelos valores morais não estaria, navisão kelseniana, fazendo ciência, e sim política do direito; oque se preocupasse em compreender as relações entre ocontexto histórico e o surgimento da norma não estariaconstruindo ciência jurídica, mas outro conhecimento, ahistória; se dedicado a examinar a interferência quefundamentos econômicos manifestam num dispositivo de lei,seria economia, e não direito, a ciência em construção; eassim por diante. Chamou Kelsen a sua proposta de TeoriaPura do Direito (1960).

Outras formulações, além da kelseniana, poderiam serreferidas, para ilustrar o empenho da filosofia do direito emdelinear as condições a partir das quais seria cabível atribuirao estudo das normas jurídicas o estatuto científico (por

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exemplo: a lógica deôntica, o realismo escandinavo e aanálise econômica do direito).

Nenhum dos projetos de construção da ciência jurídicamostrou-se frutífero. Em Kelsen, o cientista do direitoapenas deve relacionar as muitas interpretações possíveisde cada norma jurídica, sem valorá-las minimamente. Seconcluir que uma das interpretações encontradas, porqualquer razão, deve ser tida como mais apropriada aveicular o sentido da norma interpretanda, o estudioso terádeixado de ser cientista e estará manifestando um ato devontade (a interpretação que quer ver prevalecendo), e nãode conhecimento. Em última instância, a contribuição de umaciência do direito construída estritamente como indicado porKelsen acabaria não apresentando meios rigorosos decontrole de resultados. Isto é, na aplicação de qualquernorma jurídica prevaleceria a interpretação escolhida pelaautoridade e não a apontada pelo conhecimento jurídico.Ora, o objetivo que inspirara a busca do conhecimentocientífico das normas jurídicas era justamente encontrar overdadeiro sentido delas, para submetê-las a controle queimpedisse disparidades em sua aplicação. A frustração doprojeto kelseniano resulta inquestionável quando se percebeque nenhum estudioso do direito, no mundo todo, segueexatamente o preconizado pela Teoria Pura do Direito, isto é,não se encontra nenhum livro de direito que se resuma alistas de interpretações de normas positivas (Coelho, 1995).

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Na verdade, a preocupação cientificista da filosofia dodireito apenas reflete, no campo do conhecimento jurídico,um projeto bem mais ambicioso e antigo, com o qual se vemdebatendo a cultura ocidental: o de transpor para aschamadas ciências do homem (psicologia, história, economiaetc.) o mesmo rigor metodológico e certeza de resultadosalcançados relativamente às ciências naturais (química,física, biologia etc.). O extraordinário poder de dominaçãoconquistado sobre a natureza busca-se também sobre aorganização econômica e social. O marxismo, surgido no fimdo século XIX, representa a última grande manifestaçãodesse projeto, com pretensões voltadas a todas as searasdas humanidades.

O projeto cientificista das ciências humanas está, hoje,desprestigiado. A filosofia do nosso tempo não mais insisteem amoldar os diversos conhecimentos existentes ao modelorigoroso e fechado da geometria, mas, ao contrário, procuraidentificar níveis de saber com características e limitespróprios. Em Habermas, por exemplo, distinguem-se asracionalidades da interpretação histórica, das ações comrespeito aos fins e das ações comunicativas no interior demarcos institucionais (1968:66/108). Na filosofia do direito,alguns autores abandonam a reflexão sobre o métodocientífico de investigação do verdadeiro significado dasnormas jurídicas e abrem trilhas novas no emaranhado dadiscussão epistemológica. Ensaiam, por assim dizer, uma

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ruptura anticientificista.

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A doutrina reúne conhecimentos decaráter tecnológico e científico. Aoafirmar que determinada normajurídica deve ser interpretada numsentido, o doutrinador constrói umsaber tecnológico, insuscetível deverificação pelos valoresverdade/falsidade. Apenas aoexaminar as razões pelas quais umasociedade gerou determinadasnormas jurídicas, e não outras, eledesenvolve um conhecimentocientífico, cuja veracidade oufalsidade pode sermetodologicamente verificada.

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Das formulações que questionam a cientificidade dosaber concernente às normas jurídicas interessa destacar,por enquanto, a identificação, por Tércio Sampaio Ferraz Jr.,do caráter tecnológico desse conhecimento (que ele chamad e dogmática jurídica). Como tecnologia, o problema dadogmática jurídica não é o típico das ciências, qual seja, averdade ou falsidade de seus enunciados; seu problema é adecidibilidade, a oportunidade de certas decisões(1980:81/94).

Partindo da formulação de Tércio, mas seguindo outrosrumos, considerem-se dois diferentes objetivos aimpulsionar os que se dedicam ao estudo de normasjurídicas: o dos estudiosos interessados em descobrir asrazões pelas quais determinada sociedade, num específicomomento de sua história, produziu certas normas jurídicas, enão outras; e o dos interessados em circunscrever asdecisões fundamentáveis nas normas jurídicas em vigor.

Na primeira situação, a da investigação das origens dodireito positivo de uma sociedade historicamente localizada,as respostas que o estudioso apresentar às questõesrelacionadas ao seu propósito serão verdadeiras ou falsas.Em suma, se adotar determinado método, ele estaráconstruindo um conhecimento científico. Não podemconviver, nesse conhecimento, dois ou mais enunciadoscontraditórios ou mesmo conflitantes. Se for verdadeiro que

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“o fato x determinou o surgimento da norma y”, será falsoque “a norma y não é resultado do fato x”. A afirmação daveracidade de um enunciado, no contexto do conhecimentocientífico, implica necessariamente a exclusão dosenunciados incompatíveis, contrários ou contraditórios.

Na segunda situação, a do estudioso interessado nasdecisões fundamentáveis numa norma jurídica vigente, asrespostas que apresentar às questões pertinentes a essedesiderato não serão nem verdadeiras, nem falsas. Serãomais ou menos aptas ou inaptas a demonstrar que a decisãoz pode ser sustentada na norma x. Não existe — esta é apremissa de qualquer esforço anticientificista no campo dosaber jurídico — uma verdadeira interpretação da normajurídica capaz de excluir as demais interpretações, as falsas.Existem interpretações mais ou menos justas, mais ou menosadequadas à pacificação social, mais ou menos eficientesdo ponto de vista econômico, mais ou menos repudiadaspelos doutrinadores e julgadores que convivem noconhecimento jurídico, a despeito de seus conflitos,contrariedades ou contraditoriedades. Se for razoavelmenteconvincente, utilizando-se dos recursos argumentativosaceitos pela comunidade jurídica, o estudioso estaráconstruindo um conhecimento tecnológico.

A doutrina é essencialmente tecnologia, embora vez poroutra arrisque-se o doutrinador a alguma ciência. QuandoClóvis Beviláqua, por exemplo, analisando as primeiras

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formas do casamento, diz que

“tem-se observado que, preocupados com apureza do sangue, os povos restringem oscasamentos a um círculo estreito deconsanguinidade. Assim fizeram deuses e heróisnos inícios de todas as civilizações, assim têmgeralmente praticado as famílias reinantes, emtodos os tempos e em todos os países, sejam cultos,sejam de broncos silvícolas. No Japão, outrora, ocasamento com a irmã mais moça era obrigatório,pelo que se deduz de certas narrações e do nome(imo) dado às mulheres, o qual significa — irmãmais jovem. Muitos dos selvagens brasílicos, assimcomo os caraíbas, praticavam a endogamia,efetuando casamentos, mais ou menos necessários,dos tios maternos com as sobrinhas. Esse dever dedesposar parentes próximas se reproduz, emgrande número de regimes jurídicos, na Índia, naArábia, por vários outros países” (1895:41/42),

está produzindo conhecimento científico, destinado àcompreensão da razão determinante das regras queimpunham o casamento endógeno em certos contextoshistóricos. Por outro lado, quando o mesmo ClóvisBeviláqua afirma que a

“prova de que o direito subsiste, apesar da

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prescrição, ainda que privado de um elementoessencial, ainda que impotente, é que a prescrição,depois de consumada, pode ser tacitamenterenunciada, e o direito readquire a sua validade;e ainda que, se o pagamento da dívida for feitodepois de prescrita, é juridicamente válido, nãotendo, em tal caso, o solvente direito de repeti-lo,nem podendo o acipiente ser acusado deenriquecimento ilegítimo. Se o direito estivesseextinto, outras seriam as soluções. A garantia realde uma dívida prescrita não poderia serconsiderada renúncia tácita: seria um ato nulopor falta de objeto. O pagamento de uma dívidaprescrita seria nulo por indébito e autorizaria arepetição” (1908:306),

ele está tomando posição, numa acirrada e inconclusadiscussão entre os civilistas, acerca das marcascaracterísticas da prescrição, que é uma das formas deextinção do direito (Cap. 12, item 2). Argumentar que aprescrição não extinguiria o próprio direito, mas apenas apretensão correspondente, é formular enunciado cujaveracidade ou falsidade simplesmente não se podepesquisar. Está-se diante de conceito operacional cujafunção é auxiliar a fundamentação de decisões. Se alguémpaga dívida quando já transcorrido o prazo prescricional e,depois, quer receber de volta o que pagou (em termos

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técnicos, ele está postulando a “repetição”), o juiz deverádecidir se é o caso ou não de acolher tal pretensão, e adoutrina acima será útil para essa finalidade. Nesse caso,Clóvis Beviláqua construiu uma tecnologia.

E s t e Curso de direito civil é um trabalhoassumidamente tecnológico. Qualquer referência históricaque se encontre sobre os institutos examinados não temoutro objetivo além da ilustração.

2. CLASSIFICAÇÕESA tecnologia do direito civil, em sua parte geral, ocupa-

se do estudo das classificações jurídicas fundamentais.Trata-se de elaborações úteis a todos os ramos do direito, enão apenas ao civil, o que reforça o caráter enciclopédico dadisciplina. De fato, se atentarmos, por exemplo, àclassificação dos tributos construída pelos tributaristas —impostos, taxas e contribuições —, notaremos que ela nãointeressa a nenhuma outra ramificação da tecnologia jurídica(exceção feita, talvez, apenas ao direito previdenciário, nadiscussão do custeio do Seguro Social); por isso, não sequalifica como fundamental. Já a classificação dos direitossubjetivos e objetivos, a das pessoas físicas e jurídicas, ados fatos e atos jurídicos, dentre outras estudadas peloscivilistas, são do interesse de diversos campos — senão detodos — do conhecimento jurídico.

As classificações relevantes para o conhecimento

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jurídico não ostentam rigor científico. Isso não significa,porém, que sejam desprovidas de qualquer consistência.Pelo contrário, elas ostentam certo rigor que se poderiachamar de tecnológico, e se constituem em função deargumentos retóricos (item 2.1), que aproximam e distanciamos objetos classificáveis (item 2.2). Convivem, por essemotivo, com certa margem de imprecisão. As classificaçõesjurídicas, em outros termos, não se sustentam firmes quandosubmetidas ao crivo do raciocínio lógico. Mostram-se,quando testadas em suas últimas consequências,insuficientes. Curiosamente, porém, essa insuficiência nãoimpede sua operacionalização na interpretação e aplicaçãodo direito. Em certo sentido, as imprecisões e insuficiênciasdas classificações são até mesmo necessárias à flexibilizaçãodas normas jurídicas (Cap. 3, item 9).

2.1. Argumentos jurídicosO argumento jurídico costuma tratar de questões de fato

e de direito. Nas primeiras, procura-se descreveracontecimentos (condutas humanas ou fatos da natureza),com o objetivo de demonstrar que as provas reunidas numprocesso judicial (depoimentos, perícia ou documentos)fazem supor que eles se verificaram; ou o oposto: que elesnão se verificaram.

Já nos argumentos pertinentes a questões de direito,discute-se a vigência, validade ou âmbito de incidência de

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uma ou mais normas jurídicas.A delimitação da conduta imputada ao acusado de um

crime é, por exemplo, argumento jurídico pertinente aquestão de fato; a interpretação que deve ser emprestada adeterminado preceito de lei pertence aos argumentosrelativos às questões de direito.

Esses dois níveis argumentativos entrecruzam-se naretórica jurídica. A descrição dos fatos deve ser feita comdestaque apenas para os elementos tidos por relevantes pelanorma jurídica a aplicar. No contexto de um discurso jurídico,nenhuma descrição é isenta, distanciada; ao contrário, é jáargumentativa. Na denúncia por furto, o promotor de justiçanão descreve os fatos em sua inteireza, mas unicamentenaqueles pontos que revelam ter o réu subtraído coisa móvelda vítima. Aliás, rigorosamente falando, toda descrição fáticapressupõe necessários cortes na realidade (ela deve iniciar-se e concluir-se em momentos e espaços precisos), e oscritérios para tais cortes nas questões jurídicas de fato dão-nos as normas jurídicas. Por sua vez, nenhuma interpretaçãopode ser meramente formal, deslocada da realidade. Quem sedebruça sobre um texto da lei, para entender-lhe osignificado, ambienta-se necessariamente em situações —reais ou hipotéticas — esclarecedoras do sentido e alcancedo preceito (Sanchís, 1987:82/101) (Cap. 4, item 6).

O entrecruzamento desses níveis deve ser abstraídoquando a distinção entre questões de fato e de direito

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ganha relevância prática (em particular, para o direitoprocessual). De fato, para terem cabimento determinadosrecursos (especial ou extraordinário) junto a instânciasjudiciais superiores ou certos procedimentos (o mandado desegurança por exemplo), é necessário que a controvérsia selimite às questões de direito. Nestes e noutros casos, asolução tecnológica não pode inibir-se com a fragilidade daseparação entre os dois níveis de argumentação jurídica, edeve encontrar um conceito operacional capaz de nortear asdecisões dos profissionais do direito. O advogado só devedecidir pela impetração do mandado de segurança se estiverconvencido de que inexistem questões de fato controversasno problema levado por seu cliente. Para tomar essa decisão,ele precisa de instrumentos tecnológicos que abstraiam oentrecruzamento dos dois níveis de argumentação e definamas questões pertinentes a cada um.

2.2. Aproximações e distanciamentosA retórica jurídica desenvolve-se no patamar

argumentativo das questões de direito, muitas vezes commovimentos de aproximação e distanciamento. A estruturade grande parte das argumentações de direito construídaspela tecnologia jurídica (em obras didáticas, petiçõesjudiciais, sentenças etc.) procura incluir ou excluirdeterminado fato do âmbito de incidência de certa normajurídica. No movimento de aproximação, o argumento

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sustenta que um fato — alguém prestou serviços medianteremuneração para outra pessoa — está disciplinado pelodireito do trabalho, isto é, inclui-se no âmbito de incidênciadas normas desse ramo jurídico. A prestação de serviços,dirá o argumento, caracterizou-se pelas notas dasubordinação pessoal e não eventualidade, razão pela qual aqualificação jurídica do vínculo existente entre prestador etomador dos serviços é a de um verdadeiro contrato detrabalho, regido pela CLT (Consolidação das Leis doTrabalho). No movimento de distanciamento, o contra-argumento sustenta que aquele mesmo fato não estádisciplinado pelas normas do direito do trabalho, por faltar,por exemplo, um dos elementos do vínculo empregatício: asubordinação pessoal.

O argumento de distanciamento do fato das normas dedireito do trabalho pode ser, simultaneamente, o de suaaproximação às de outro ramo jurídico. Se o contra-argumento destaca, imagine-se, que o prestador dosserviços era um representante comercial autônomo(registrado no órgão profissional) e foi assinado pelas partesum contrato escrito, concluirá que a referida relação jurídicaestá sujeita ao direito comercial. Se o primeiro argumentoprevalecer, o prestador dos serviços terá certos direitos(FGTS, férias, décimo terceiro salário etc.); se vingar ocontra-argumento, terá outros (indenização e prévio avisobaseados no valor das comissões recebidas).

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São recorrentes, na retóricajurídica sobre questões de direito,movimentos de aproximação edistanciamento, que reclamamclassificações.

Para operar com a aproximação e o distanciamento, aretórica jurídica necessita de classificações. No exemploacima, essa necessidade é visível, já que argumento econtra-argumento se assentam em dois ramos jurídicosdiferentes, o direito do trabalho versus o comercial; e adivisão do direito em ramos resulta de uma classificação.Outras classificações muito úteis e frequentes na tecnologiajurídica são, por exemplo: direito pessoal ou real, normas deordem pública ou supletivas, lícito ou ilícito etc. Aproximarou distanciar é, em suma, classificar.

Esses movimentos de ligação ou dissociação — quenão são exclusivos do argumento jurídico (Perelman-Tyteca,1958:550/597) — representam, por outro modo de os

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descrever, a inclusão de algo (ou de alguém) numa dascategorias resultantes de certa classificação, e a suaconcomitante exclusão das demais. Incluir uma relaçãojurídica dada no âmbito das normas do direito doconsumidor é excluí-la dos demais ramos jurídicos, e vice-versa. Afirmar ser algo ou alguém espécie de certo gêneroimplica dizer que ele não o é dos demais. Classificar, nocontexto da argumentação, é sempre aproximar e distanciar,ligar e dissociar.

Aproximações e distanciamentos são puramenteretóricos. Por isso, as classificações jurídicas sãonormalmente incompletas, imprecisas, lacunosas. Pode-seperceber isso, por exemplo, no exame de uma das maisimportantes: a que distingue entre direito público e privado.

3. DIREITO PÚBLICO E DIREITO PRIVADOUma das classificações fundamentais desenvolvidas

pelo discurso argumentativo jurídico é a que distingue entredireito público e privado. Mais de um critério se encontra,na tecnologia, distinguindo essas categorias, mas nenhum éinteiramente satisfatório.

Destaco os critérios que consideram as pessoas, aextensão do interesse e o valor fundamental referentes aodireito público e ao privado. Começo pelo critério subjetivo,em que importa a qualidade das pessoas cujos atos erelações se compreendem no objeto de cada uma dessas

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grandes ramificações jurídicas.

3.1. Pessoas de direito público e de direito privadoO direito público cuida dos atos jurídicos praticados

pelo Estado, inclusive os que importam ou pressupõemvínculos com as pessoas que residem ou atuam no territóriocorrespondente (os “particulares”). No Brasil, a estruturafederativa divide o Estado em entes autônomos, que são aUnião, os Estados-membros, os Territórios, o DistritoFederal e os Municípios. Esses entes são sujeitos de direitocujos atos e contratos inserem-se no objeto do direitopúblico. Além deles, também as autarquias (por exemplo:Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), InstitutoNacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), Ordemdos Advogados do Brasil (OAB) etc.) estão sujeitas àdisciplina correspondente ao direito público.

São sub-ramos do direito público, segundo esse critério,o direito constitucional, cujo objeto é a organizaçãofundamental do Estado e temas que, pela importância, sãoregrados na Constituição Federal; o direito administrativo,que trata da administração do Estado, incluindo regras sobrelicitação, contratos administrativos, funcionalismo,desapropriação, serviço público; o direito tributário, que seocupa dos tributos (impostos, taxas e contribuições)devidos ao Estado; o direito financeiro, especializado nasregras atinentes à realização da receita e despesa públicas

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(isto é, as regras a serem observadas quando o Estadoarrecada e gasta dinheiro); o direito previdenciário,pertinente às contribuições para o Seguro Social e aosbenefícios dele decorrentes (aposentadoria, pensão, auxíliosetc.); os direitos penal e processual penal, relacionados aosfundamentos e procedimentos para a punição, pelo Estado,de particulares, em razão da prática de delitos; o direitoprocessual civil, atinente à atuação do Estado na soluçãodos conflitos de interesses que lhe são apresentados; eoutros como o internacional, da infância e juventude,ambiental, das telecomunicações etc. Em todos esses sub-ramos, o objeto é o exame de atos (licenças, nomeações,contratos, empenho de despesas, instauração de inquéritopolicial, decisões judiciais etc.) praticados pelo Estado oupor um de seus desdobramentos.

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A classificação do direito empúblico e privado é feita a partir decritérios distintos, um dos quais levaem conta a presença ou não doEstado na relação jurídicadisciplinada. O direito público, poresse critério, é o pertinente aos atospraticados pelo Estado, enquanto oprivado cuida dos praticadosexclusivamente por particulares.

Por sua vez, o direito privado trata das relações jurídicasentre “particulares”, que são todos os sujeitos de direito,exceto o Estado (entes federativos) e as autarquias. Estão,desse modo, sob a égide do direito privado atos comocasamento, testamento, adoção, formação de sociedadeempresária, concessão de garantia hipotecária e outros. Denenhum deles o Estado participa como sujeito de direito

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praticante do ato, embora possa participar de um ou outrocomo órgão de registro da vontade das pessoas privadas.

Os principais sub-ramos do direito privado, assim, são ocivil, comercial, do consumidor e do trabalho. O direitocomercial dedica-se ao exercício da atividade econômica porparticulares sob a forma de empresa (concorrência,sociedades, títulos de crédito, negócios entre empresários,marcas e patentes, falência etc.) — pode ser chamado,também, de direito dos negócios, empresarial ou mercantil; odireito do consumidor cuida da relação de consumo, isto é,da aquisição no mercado ou utilização de bens ou serviçospor seu destinatário final (e não por intermediários, atosujeito ao direito comercial); o direito do trabalho, por fim,trata das relações empregatícias. Outros desdobramentos dodireito privado são o autoral, securitário, bancário,agrário etc.

Em razão do critério subjetivo de classificaçãofundamental do direito, pode-se afirmar que o Estado e asautarquias são pessoas de direito público, enquanto asdemais (“físicas” ou “jurídicas”) são de direito privado.

3.2. Interesses públicos e privadosO segundo critério a examinar diz respeito à extensão do

interesse tutelado pelas regras de cada ramo jurídico. Assim,enquanto o direito privado volta-se aos interessesindividuais, o público se ocupa dos que transcendem o

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âmbito destes. De fato, há situações que não constrangemninguém mais além dos diretamente envolvidos, como,exemplifico, a falta de fundos do cheque com que oconsumidor pagou o fornecedor. O emitente do título(consumidor), nesse caso, vai ou não honrar sua dívidajunto ao tomador (fornecedor)? — é questão que nãocostuma interessar às demais pessoas, mas só ao devedor eao credor do cheque. Por isso, os interesses conflitantesnessa situação são individuais, localizados, específicos; emsuma, privados.

De outro lado, se um contribuinte sonega impostos, istojá passa a interessar a um âmbito maior de pessoas, além dosdiretamente envolvidos com a situação, isto é, o credor e odevedor da obrigação tributária. Como, a partir dedeterminado patamar de sonegação, todos serão chamados acontribuir mais para a manutenção do aparato estatal, oregular recolhimento dos tributos pelos devedores em geralé do interesse de todos e de cada um dos contribuintes.Outro exemplo: se dinheiro público está sendo ilicitamentedesviado para contas mantidas pelo governante em bancosno exterior, isto causa indignação a uma quantidadeconsiderável de pessoas. Mesmo que os recursos desviadossejam de certa Prefeitura, os moradores de outras cidades dopaís ficam curiosos com o fato e aguardam que o sistema derepressão estatal funcione adequadamente para punir aautoridade criminosa e desestimular semelhantes

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irregularidades. Aqui, os interesses ultrapassam os dosindivíduos envolvidos diretamente na situação. São, porisso, transindividuais, abrangentes, gerais; em uma palavra,públicos.

Dos interesses privados, cada um cuida dos seus. Se obanco, ao conceder empréstimo, não se cercou das garantiassuficientes e acabou sofrendo prejuízo por não recuperar ocrédito, isto é problema dele só, de seus administradores eacionistas. Enquanto não representar um risco àsobrevivência da instituição financeira, a ninguém maisinteressa a negligência na operação. Dos interesses públicoscuidam as pessoas jurídicas de direito público (o Estado e asautarquias). Se a atividade de uma fábrica polui a nascentede rio, os órgãos estatais competentes (das três esferas degoverno: federal, estadual e municipal) devem multar ouinterditar o estabelecimento, com vistas a punir a causação eevitar o agravamento do dano ambiental. Essas providênciassão adotadas no interesse, a rigor, de pessoas de todo oplaneta (até mesmo o próprio infrator) e das futurasgerações.

Desde as origens da civilização ocidental, eacentuadamente ao longo dos dois últimos séculos, firma-sea ideologia da supremacia do interesse público sobre oprivado. O que interessa somente a um ou a algunsindivíduos não pode prevalecer em detrimento do queinteressa às pessoas em geral.

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Esse valor fundamental da civilização repercute umadiferença marcante entre o regime jurídico de direitoprivado e o de direito público. O regime de direito privadofunda-se na igualdade entre as pessoas; ou seja, se ossujeitos privados são iguais do ponto de vista econômico,terão as mesmas prerrogativas e restrições jurídicas; e, sediferentes, o mais fraco receberá prerrogativas jurídicas queneutralizem sua debilidade econômica (e o torne, por assimdizer, “igual” ao mais forte). Já o regime de direito públicoalicerça-se na desigualdade: ao Estado e suas autarquias(pessoas de direito público) são concedidas consideráveisprerrogativas jurídicas, negadas às pessoas de direitoprivado, porque lhes cabe zelar por interesses maisimportantes que os titularizados por estas últimas.

Outro critério de classificação dodireito em público e privado leva emconsideração a natureza do interessetutelado.

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Imagine que o proprietário de certo terreno tem interesseem conservá-lo em seu patrimônio. Não pretende vendê-lo,por preço nenhum, tendo em vista motivos que só lhe dizemrespeito. Se uma pessoa privada tiver interesse sobre omesmo imóvel, para nele edificar sua residência, não disporáde meio jurídico para obrigar o proprietário a transferir-lhe obem. Se a este último não interessa dispor do imóvel, aquelasimplesmente não poderá satisfazer sua pretensão. A únicamaneira, nesse caso, para que o terreno passe a ser dodomínio da pessoa privada interessada é a compra, quedepende da vontade de vender do proprietário. Vê-se, pois,que, sendo os interesses em choque privados, nenhum delespode preponderar sobre o outro. Exatamente porque taisinteresses são de pessoas iguais.

Mas se ao Estado interessar o mesmo imóvel, paraconstruir uma rodovia, o proprietário pode ser obrigado atransferir-lhe o bem por meio da desapropriação. Aprerrogativa jurídica é concedida ao Estado, porque ointeresse público (a construção da rodovia) preponderasobre o privado do proprietário (manter o imóvel em seupatrimônio).

3.3. Positivação e autonomia da vontadeO terceiro critério para a classificação do direito em

público e privado atenta para o valor fundamentalprestigiado em cada ramo jurídico. No campo do direito

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público, a segurança jurídica é o bem mais importante a sepreservar; no do privado, a liberdade. Chamemos este decritério axiológico.

A classificação de acordo com o valor fundamentaltraduz-se, por exemplo, na forma pela qual opera alegalidade. Note que a obediência à lei exige-se de todos ede cada um, qualquer que seja o ramo jurídico a aplicar. Masé diferente o modo pelo qual essa obediência se expressa.Explico. É preceito assente na tecnologia de direitoadministrativo que o Estado só pode fazer o que estiverautorizado em lei (Mello, 1980:36/37). Ao contrário dosparticulares, que podem fazer tudo o que não estiverproibido por lei. Em outros termos, o Estado obedece a lei sepratica atos nela previstos, e os particulares obedecem-naquando não fazem o que nela se proíbe.

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O terceiro critério de distinçãoentre o direito público e o privadoencontra-se no valor fundamentalprestigiado em cada grande ramojurídico. No direito público,privilegia-se a segurança e, noprivado, a liberdade.

Se alguém não paga um imposto, o Estado não temliberdade para decidir se promove ou não a cobrança judicialcontra o contribuinte devedor. Ele está obrigado a praticaruma sequência de atos jurídicos previstos em lei para essahipótese (inscrição na dívida ativa, expedição da certidão eajuizamento da execução fiscal). Já se o consumidor nãopaga a dívida junto ao fornecedor, este pode não exercer seudireito ao crédito, caso entenda ser esta a melhor alternativaaos seus interesses. Na primeira situação, sob a égide dodireito público, a legalidade se manifestou por meio dasucessão de atos administrativos referidos na lei que oEstado — titular do crédito — é obrigado a praticar; na

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segunda, à luz do direito privado, a legalidade se expressoupela inexistência de proibição à renúncia (ou não exercício)do direito pelo titular do crédito.

“Enquanto na administraçãoparticular é lícito fazer tudo que alei não proíbe, na administraçãopública só é permitido fazer o que alei autoriza” (Meirelles, 1964:57).

O valor fundamental do direito público, foi dito, é asegurança. O Estado, nos atos que pratica, não podetranspor as balizas da legalidade — isto é, só faz oautorizado pela lei e não pode deixar de fazer o nela previsto— porque todos queremos ver atendida a expectativa de quea defesa do interesse público não será negligenciada. A seuturno, o valor fundamental do direito privado é a liberdade.Como cada particular é o exclusivo senhor de seusinteresses, tem o direito de ponderar sobre a conveniência eoportunidade de praticar ou omitir atos jurídicos em defesa

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deles.A diferença entre as classificações fundamentais do

direito pelo critério axiológico aclara-se na referência a casosque envolvem concomitantemente interesses públicos eprivados na responsabilização de certa pessoa. Se, porexemplo, um médico está provocando a morte assistida depacientes terminais, mesmo a pedido destes, ele cometecrime e contraria a ética profissional. O Estado devepromover a responsabilização penal desse médico,observando o devido processo legal, e o Conselho Regionalde Medicina, por sua vez, tem a obrigação de apurar os fatose aplicar a sanção administrativa (multa, suspensão oucassação da inscrição etc.). É o interesse público que orientaa atuação da Polícia, do Ministério Público e da autarquiaprofissional nesses casos. Não há nenhuma margem paraponderação da oportunidade de agir ou não. A pessoa dedireito público é titular do interesse público, mas não temdisponibilidade sobre ele. A segurança que todos querem terno sentido de ver devidamente punidos os infratores é ovalor fundamental perseguido pelo direito público.

De outro lado, os familiares das vítimas, no caso domédico que praticou eutanásias, gozam de direito àindenização material e moral, com a qual satisfarão interesseexclusivo deles, individual. Se um ou outro, desejando evitarmaiores sofrimentos com o assunto, resolve não processar omédico, pode perfeitamente fazê-lo; e nada nem ninguém

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possuem meios para alterar tal decisão, já que o interesse,aqui, é privado. A proteção da liberdade do familiar querenuncia ao seu direito indenizatório é o valor fundamentalprestigiado no campo do direito privado.

Em síntese, o direito público, com vistas a prestigiar ovalor fundamental da segurança, elege como um de seusprincípios a indisponibilidade do interesse público (avontade do Estado é o direito positivado na Constituição,lei, decreto e demais normas jurídicas). A seu turno, o direitoprivado assenta-se no princípio da autonomia da vontade (afaculdade outorgada aos particulares de autorregularemseus interesses), em homenagem ao valor fundamental daliberdade. Em decorrência, o direito público é pleno denormas cogentes, aquelas cuja aplicação independe davontade dos sujeitos envolvidos; enquanto no direitoprivado, predominam as normas supletivas, aplicáveisapenas se os sujeitos envolvidos não manifestaram vontadea respeito do objeto em conflito.

3.4. Insuficiência dos critériosComo afirmado de início, nenhum dos critérios de

classificação dos ramos fundamentais do direito éinteiramente satisfatório.

O critério subjetivo falha porque há casos em quepessoas jurídicas de direito privado são investidas deprerrogativas próprias do regime de direito público, como,

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por exemplo, nas concessões para a exploração de serviçosde telecomunicações, saneamento básico e rodovias.

O critério da extensão do interesse revela suasinsuficiências, ao se levar em conta os interesses difusos (osdos consumidores em relação à veracidade daspropagandas, por exemplo) e coletivos (os dos mutuários doSistema Financeiro da Habitação relacionados aos critériosde correção dos saldos devedores, por exemplo), que,embora transindividuais, não se consideram públicos. Aliás,por vezes, esses níveis transindividuais de interessesconflitam com o próprio interesse público. Se a todosinteressa a redução do déficit nas contas do Estado, essameta pode não se compatibilizar, por exemplo, com ointeresse coletivo dos mutuários do SFH na supressãoparcial ou total dos saldos devedores dos contratos deaquisição da casa própria quando esses saldos foremcobertos por dinheiro público.

Por fim, o critério axiológico não explicaconvenientemente certas limitações à autonomia da vontadeverificadas na disciplina de relações privadas entre sujeitosde igual potência econômica. Ilustro: para atender àsnecessidades do tratamento tributário da operação, ocontrato de leasing não pode ser amplamente negociado,mesmo entre dois grandes empresários, e não há dúvidas deque o regime aplicável na disciplina das relações entre estesé de direito privado.

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Os três critérios de classificaçãoentre direito público e privado sãoinsatisfatórios; isto, porém, nãoimpede a sua cotidianaoperacionalização pelos argumentosjurídicos.

A insuficiência das classificações, registre-se, émuitíssimo comum no direito. Curiosamente, isso não impedea operacionalização dos conceitos pertinentes às categoriasdelineadas. A tecnologia jurídica representa um tipo desaber com extrema habilidade para operar com categoriasimprecisas, a despeito da imprecisão. A falta de rigor lógiconas classificações jurídicas não tem sido empecilho àsolução de conflitos de interesses reais guiada por elas.Quer dizer, mesmo identificadas incongruências nessaclassificação fundamental, a distinção entre direito público eprivado por um ou mais dos critérios acima é largamente

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difundida e utilizada pela tecnologia jurídica em sua funçãode auxiliar as decisões jurídicas.

4. UNIDADE DO DIREITO PRIVADOQuando se voltam os olhos para o processo de

consolidação do poder da burguesia como classedominante, percebe-se diferença entre o verificado naInglaterra e em França. Enquanto a burguesia conseguiu,com a Revolução Gloriosa de 1688, firmar-se econômica epoliticamente na Ilha por meio de alianças com a realeza —cujos efeitos benéficos para esses dois segmentos sociaisaté hoje se podem notar —, no Continente, foi necessárioum golpe de estado, a Revolução Francesa de 1789, para elaobter o mesmo resultado.

Essa diferença na oposição entre os modos de produçãofeudal e capitalista manifesta-se no direito privado doOcidente. Enquanto na Inglaterra a common law não geranenhuma distinção na disciplina jurídica das atividadeseconômicas, a França napoleônica edita códigos distintospara tratamento desse tema: o Code Civil (1804) e o Code deCommerce (1808). As atividades econômicas ligadas à terraeram exploradas pela classe feudal, contra a qual tivera quese opor revolucionariamente a burguesia francesa; típicas daclasse burguesa, por sua vez, eram as atividades econômicasligadas ao comércio. A feroz luta da burguesia francesacontra o feudalismo refletiu-se na edição de leis diferentes

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para as atividades ligadas à terra (Código Civil) e aocomércio (Código Comercial). As alianças da burguesiainglesa tornaram ideologicamente dispensável a duplicidadede regimes.

A edição de sistemas legais próprios para cada grandegênero de atividades econômicas criou uma forte tradiçãojurídica, que influenciou direitos em todo o mundo, inclusiveo brasileiro. Até 2003, conviveram em nosso ordenamento oCódigo Comercial de 1850 e o Civil, de 1916 (ClóvisBeviláqua, autor do projeto, era convicto defensor dadualidade de regimes no direito privado — 1934:65/79).Assim, surgem dois grandes sistemas europeus de direitoprivado: num deles, inspirado pelo modelo francês, asatividades econômicas são agrupadas em dois grandesconjuntos, as civis e as comerciais; noutro, filiado à tradiçãoda common law, desconhece-se a separação.

Superadas, no entanto, as razões históricasjustificadoras da dicotomia do direito privado, esta começa aser questionada. Na Itália, teve grande repercussão aopinião de famoso comercialista, Cesare Vivante,manifestada na aula inaugural do ano letivo de 1892 daUniversidade de Bolonha, em defesa da unificação do direitoprivado. Eram então cinco os seus argumentos. No primeiro,criticou a aplicação a não comerciantes (os consumidores)de normas jurídicas formuladas no interesse doscomerciantes. Na sequência, Vivante deplorou a

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desnecessária litigiosidade nas discussões acerca do direitoa aplicar, se civil ou comercial. Também lhe pareceu criticávela insegurança decorrente da imprecisão nos contornos doâmbito de aplicação do direito comercial, em vista do caráterexemplificativo da lista de atos de comércio. Por outro lado, aexistência de soluções diversas para questões semelhantesno campo de cada ramo do direito privado gerava, segundoseu entendimento, dificuldades desnecessárias aosprofissionais do direito. Finalmente, a dicotomia eraapontada como obstáculo ao progresso científico, na medidaem que os comercialistas se afastavam das noções gerais dodireito das obrigações (1922:1/25).

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O direito privado brasileirocompreende o direito civil e ocomercial. Desde a edição doCódigo Civil de 2002, há apenas umdiploma legislativo para disciplinaresses dois ramos jurídicos. Aunificação legislativa, porém, nãojustifica o fim da separação delescomo diferentes capítulos doconhecimento jurídico.

Retratou-se, contudo, o famoso tecnólogo italiano,quando convidado, em 1919, a presidir comissão incumbidade elaborar um projeto de reforma do Codice di Commerciode 1882. Ao apresentar seu projeto preliminar, Vivanterenuncia às críticas de quase trinta anos antes e passa aconsiderar a alegada diferença de métodos (parece-lhe“indutivo” o do direito comercial, e “dedutivo”, o do civil),

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justificativa bastante para a dicotomia do direito privado.De qualquer modo, foi também na Itália, com o Codice

Civile de 1942, que surgiu, no interior dos direitos detradição romana, um sistema novo de disciplina dasatividades econômicas. Denominado teoria da empresa,veio acompanhado pela união, num código único, de toda amatéria de direito privado. As atividades econômicasexploradas empresarialmente passaram a ser disciplinadaspor um regime único, superando-se a distinção entre as civise as mercantis (Coelho, 1998, 1:16/20).

No Brasil, a primeira grande manifestação em prol daunificação legislativa do direito privado é de Teixeira deFreitas. Encarregado em 1859 de elaborar um projeto deCódigo Civil, o maior jurista brasileiro do século XIXapresentou um Esboço contemplando também a matériatradicionalmente reservada ao direito comercial. A unificaçãoigualmente foi a fórmula adotada nos anteprojetos deCódigo de Obrigações de 1941 (de Orozimbo Nonato,Philadelpho Azevedo e Hahnemann Guimarães) e 1965 (CaioMário da Silva Pereira). Mas, por razões diversas, não seconverteu em lei nenhuma dessas propostas. Apenas com aedição do Código Civil de 2002, o Código Reale, querevogou tanto o Código Beviláqua como a parte primeira doCódigo Comercial do Império, opera-se, no Brasil, aunificação legislativa do direito privado.

Mas é necessário atentar em que a simples

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concentração, num único diploma de lei, das matériastradicionalmente tratadas pelo direito civil e comercial nãoelimina a dicotomia por completo. A rigor, essa concentraçãocaracteriza apenas a unidade desses ramos jurídicos sob oponto de vista legislativo. Nos planos didático eprofissional, persevera a diferença de áreas. Mesmo na Itália,passadas mais de seis décadas da unificação legislativa,direito civil e comercial continuam sendo disciplinasjurídicas autônomas nas faculdades; também permanecem,enquanto especializações profissionais, distintas as doscomercialistas e civilistas. O mesmo quadro deve reproduzir-se no Brasil.

5. DIVISÕES DO DIREITO CIVILO direito civil é vocacionado ao estudo de normas

jurídicas pertinentes às relações privadas entre as pessoas.Sob a influência do racionalismo ocidental, alguns povosprocuraram concentrar, em grandes diplomas jurídicosdenominados “código civil”, pretensamente todas as regrasdisciplinares dos conflitos de interesses privados. Mas, coma crescente complexidade da organização econômica, políticae social do homem, também o modo de se resolverem osconflitos no interior dessa organização vem-se tornandomais complexo, obrigando a formação de profissionaisacentuadamente especialistas. Esse processo subtraipaulatinamente temas do campo do direito civil. O direito do

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trabalho, por exemplo, cuida hoje de relações privadas que,no início do século XX, no Brasil, encontravam-sealbergadas na legislação civil (Nascimento, 2001:65).

O movimento consumerista, iniciado nos anos 1960,também conduz ao surgimento da especialização em direitodo consumidor, desmembrado em parte do direito civil.Assim, a pretensão racionalista de regular todas as relaçõesprivadas entre as pessoas num único diploma legal, paraconferir à correspondente disciplina jurídica a natureza desistema (isto é, dotar-lhe de congruência lógica), frustra-sepela crescente complexidade dessas mesmas relações —abstraída aqui a discussão da inviabilidade intrínseca desistematização rigorosamente lógica do direito.

Por outro lado, certas áreas da tecnologia jurídica têmresistido à tendência de especialização, e, menos pelaatração lógico-sistemática do direito civil e mais em razão datradição legislativa, apresentam-se como divisões dessadisciplina.

Nesse sentido, o direito civil se desdobra, inicialmente,em parte geral e especial. Na parte geral, encontram-seconceitos cuja importância alcança, muitas vezes, outroscampos do direito como os de pessoa física ou jurídica, atoe negócio jurídico, prescrição etc. Sobrepõem-se, num certosentido, o objeto da parte geral do direito civil e o da teoriageral do direito (os objetivos e cortes de cada conhecimentosão, entretanto, diversos: item 6).

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Por sua sobreposição com o objeto da teoria geral dodireito, o direito civil é considerado também o direito comum— condição que justifica, inclusive, a denominação dodiploma legislativo disciplinador das leis como “Lei deIntrodução às Normas do Direito Brasileiro” (LINDB).

A parte especial, por sua vez, segmenta-se em direitodas obrigações, dos contratos, das coisas, da família e dassucessões.

O direito das obrigações cuida das situações jurídicasem que um sujeito (devedor) está constrangido a prestaralgo (dar coisa, fazer ou omitir) para outro (credor). Abrangeo exame tanto das situações dessa natureza decorrentes demanifestação da vontade do devedor (declaraçõesunilaterais ou contratos), como das oriundas de ato ilícito(indenização por danos) ou de certa função ou posiçãoeconômica (responsabilidade civil objetiva).

O direito dos contratos dedica-se a determinadasobrigações, as constituídas por manifestação convergentede vontade do devedor e credor. Alerte-se que nem todos oscontratos têm a correspondente disciplina estudada pelodireito civil. Os vínculos contratuais que envolvem pessoasjurídicas de direito público são, no plano das relaçõesinternacionais, objeto do direito internacional público, e, nodas internas, do direito administrativo. Mesmo entre oscontratos firmados apenas por sujeitos privados há os detrabalho (caracterizados pela subordinação pessoal,

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remuneração e não eventualidade referidas pelo art. 3º daCLT), os mercantis (celebrados entre empresários) e os deconsumo (de que são partes o consumidor e o fornecedor,tais como definidos pelos arts. 2º e 3º do CDC), dos quaisnão se ocupa a tecnologia civilista.

Já o direito das coisas é a divisão do direito civildedicada às formas jurídicas de uso, apropriação eaproveitamento econômico dos bens. Envolve temas comoposse, propriedade, usufruto, outorga de garantias e outrosinstitutos classificados como “direitos reais”.

A seu turno, o direito de família ocupa-se das relaçõesjurídicas entre pessoas ligadas por específicos vínculosbiológicos ou afetivos (pais e filhos) ou sociais (cônjuges ecompanheiros). Esse sub-ramo do direito civil trata, porexemplo, da constituição e dissolução do casamento, regimede bens entre os cônjuges, direitos dos companheiros,poder familiar, dever de alimentos, visita e temas correlatos àorganização nuclear da sociedade: a família.

Enfim, o direito das sucessões tem por objeto asconsequências da morte de homem ou mulher. Compreende,assim, temas como a transferência da titularidade de bens dofalecido, pagamento de dívidas deixadas, respeito às últimasvontades do sujeito de direito humano.

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O direito civil se divide em partegeral, obrigações, contratos, direitodas coisas, da família e dassucessões.

Para encerrar, anote-se que o direito civil é umadisciplina jurídica enciclopédica; no sentido de sedesmembrar em campos autônomos, didática eprofissionalmente falando. De fato, nada impede estudar odireito de família antes do das coisas, o de sucessões antesdos contratos, ou o inverso. Tirante o estudo da parte geraldo Código — que, na verdade, transcende o âmbito dodireito civil —, a ordem de abordagem dos temas civilistas éirrelevante. Por outro lado, raramente se encontra hoje oprofissional da advocacia especializado em todos os temasdo direito civil.

6. DIREITO CIVIL E TEORIA GERAL DO DIREITOHá temas jurídicos comuns à parte geral do direito civil e

à teoria geral do direito (estudados, nos cursos degraduação, na disciplina Introdução ao Estudo do Direito).

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Assuntos como lacuna, conflitos normativos, sujeitos dedireito e outros são objeto das duas disciplinas. Não há,contudo, nenhuma redundância nessa sobreposição, porqueo enfoque e os objetivos são diferentes. Enquanto o direitocivil, em razão de sua natureza de conhecimento tecnológico,deve oferecer meios para a solução de conflitos sociais, ateoria geral do direito pode-se permitir reflexõesdescompromissadas, de natureza quase filosófica.

Veja-se o tratamento da questão das lacunas no âmbitodas duas disciplinas. Os compêndios de direito civilcentram-se na interpretação do art. 4º da LINDB, examinandoos instrumentos conferidos ao juiz em caso de omissão da lei— analogia, costumes e princípios gerais de direito. É assimtambém neste Curso de direito civil (Cap. 3). Já em obras deteoria geral do direito, problematiza-se a mesma questão detal modo que se chega a identificar, por exemplo, a lacunanão com a falta, mas sim com a abundância de normasjurídicas (Bobbio, 1960:148/157; Coelho, 1992:65/71).

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O direito civil trata de questõestambém estudadas pela teoria geraldo direito, como lacunas eantinomias. As abordagens, porém,são diversas, preocupando-se odireito civil em criar instrumentostecnológicos que auxiliam aaplicação das normas jurídicas.

As duas abordagens devem preservar seus estilos eobjetivos, porque são igualmente úteis. O direito civil nãopode perder-se em reflexões quase filosóficas, porque seespera dos tecnólogos que ofereçam pautas para superaçãodos conflitos de interesses que surgem diariamente entrepessoas casadas (direito de família), possuidor e proprietáriodo mesmo terreno (direito das coisas), credor e devedor(direito das obrigações) e assim por diante. A seu turno, ateoria geral do direito deve manter-se suficientementeafastada destes e de outros interesses, para que possa

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refletir sobre os limites e características do complexomecanismo de solução dos conflitos em sociedade a quechamamos direito. Um ramo do conhecimento jurídico, assim,não substitui o outro.

A tecnologia civilista deve pôr entre parêntesis, porassim dizer, as elucubrações da teoria geral do direito,quando tratar de temas comuns aos dois campos deconhecimento. Não se pode criticar o tecnólogo, incumbidode fornecer pautas para a solução de conflitos de interesse,por ignorar reflexões sobre a historicidade e limites dosmeios que a sociedade construiu para esse fim.

7. CÓDIGO CIVILQuando uma lei é denominada “Código”, isso significa

que ela procura reunir de modo sistemático (isto é, comcongruência lógica) toda a disciplina de determinado ramodo direito, ou pelo menos a de seus aspectos fundamentais.Difere-se, assim, da “Consolidação”, em que a reunião deregras jurídicas sobre certo assunto não tem a pretensão desistematicidade. O Código de Defesa do Consumidor (CDC— Lei n. 8.078/90) presumivelmente concentra as normasjurídicas fundamentais de regência das relações de consumoe as sistematiza, conferindo-lhes unidade e coerência. Porsua vez, a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT —Decreto-Lei n. 5.452/43) unificou, ao ser editada, num únicotexto legislativo o conjunto até então disperso de normas

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sobre as relações empregatícias, mas sem a pretensão desuprir eventuais lacunas ou mesmo hierarquizá-las.Enquanto a codificação pressupõe um esforço em busca dacompletude e congruência das normas fundamentais de umamatéria jurídica, a consolidação é mero instrumento defacilitação da consulta às normas em vigor sobredeterminado assunto.

Se o Código alcança ou não o objetivo de sistematizarseu objeto de disciplina — quer dizer, se esse objetivo émesmo factível —, trata-se de assunto altamentecontroverso. O espírito racionalista que inspirou acodificação do direito civil na França pós-revolucionária nãoecoa mais nos dias de hoje. Mesmo no fim do século XIX, aoportunidade de se codificar o direito civil alemão já eraveementemente posta em questão por juristas daenvergadura de Savigny. Na verdade, o esforçosistematizador que acompanha qualquer trabalho decodificação tem-se mostrado crescentemente inócuo. Acomplexidade das relações sociais acaba por frustrar oobjetivo de reunir num único diploma legal, de modosistemático, completo e congruente, toda a disciplina decerta matéria jurídica ou ao menos seus fundamentos. Adiferença entre codificação e consolidação, assim, vaiperdendo a relevância que teve no passado (exceto notocante às regras regimentais de tramitação do projetolegislativo).

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No Brasil, o primeiro Código Civil vigorou de 1917 a2003. O elaborador do projeto foi, como visto, ClóvisBeviláqua, um dos grandes juristas da República Velha(sobre a história da tramitação desse Código, ver Beviláqua,1934:9/59). A principal fonte de inspiração do seu trabalhofoi o Código Civil alemão de 1896. O segundo Código Civilentrou em vigor em 12 de janeiro de 2003 e resultou doprojeto de autoria de comissão presidida por Miguel Reale.Foi enviado ao Congresso Nacional em 1975 e aprovadoapós longa tramitação. Infelizmente, quando entrou emvigor, estava já envelhecido. A codificação de 2003 éinfluenciada também pelo Código Civil italiano de 1942.

A divisão do Código Civil é a mesma adotada pelodiploma alemão do fim do século XIX, isto é, contempla duaspartes: a Geral (arts. 1º a 232) e a Especial (arts. 233 a 2.046).

A Parte Geral procura tratar de conceitos basilares detodo o direito, como as pessoas, os bens e os negóciosjurídicos. Subdivide-se em três livros. O Livro I é dedicadoaos sujeitos de direito e se desdobra em três títulos,reservados à pessoa física (Título I, com três capítulos), àpessoa jurídica (Título II, também com três capítulos) e aodomicílio (Título III). O Livro II cuida de um dos objetos dodireito, isto é, os bens. Possui um “Título Único”, com trêscapítulos, dedicados aos bens considerados em si mesmos(Capítulo I), aos bens reciprocamente considerados(Capítulo II) e aos bens públicos (Capítulo III). Por fim, o

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Livro III da Parte Geral disciplina os fatos jurídicos em cincotítulos, pertinentes aos negócios jurídicos (Título I, comcinco capítulos), atos jurídicos lícitos (Título II), atos ilícitos(Título III), prescrição e decadência (Título IV, com doiscapítulos) e prova (Título V).

A Parte Especial traz a disciplina mais detalhada damatéria civil e reparte-se em cinco livros: direito dasobrigações (Livro I), direito de empresa (Livro II), direito dascoisas (Livro III), direito de família (Livro IV) e direito dassucessões (Livro V).

O livro do direito das obrigações (arts. 233 a 965) estáestruturado em dez títulos, pertinentes às modalidades dasobrigações (Título I, com seis capítulos), transmissão dasobrigações (Título II, com dois capítulos), adimplemento eextinção das obrigações (Título III, com nove capítulos),inadimplemento das obrigações (Título IV, com seiscapítulos), contratos em geral (Título V, com dois capítulos),contratos em espécie (Título VI, com vinte capítulos), atosunilaterais de vontade (Título VII, com quatro capítulos),títulos de crédito (Título VIII, com quatro capítulos),responsabilidade civil (Título IX, com dois capítulos) epreferência e privilégios creditórios (Título X).

O livro do direito de empresa (arts. 966 a 1.195)compreende quatro títulos, que versam sobre o empresário(Título I, desdobrado em dois capítulos), a sociedade (TítuloII, com um capítulo único e dois subtítulos, sendo o primeiro

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com dois capítulos e o segundo, com onze), oestabelecimento (Título III) e os institutos complementares(Título IV, repartido em quatro capítulos).

O livro do direito das coisas (arts. 1.196 a 1.510) tem deztítulos: posse (Título I, com quatro capítulos), direitos reais(Título II), propriedade (Título III, com nove capítulos),superfície (Título IV), servidões (Título V, com trêscapítulos), usufruto (Título VI, com quatro capítulos), uso(Título VII), habitação (Título VIII), direito do promitentecomprador (Título IX) e penhor, hipoteca e anticrese (TítuloX, com quatro capítulos).

O livro do direito de família (arts. 1.511 a 1.783) organiza-se em quatro títulos. Disciplinam o casamento (Título I,Subtítulo I, com onze capítulos), relações de parentesco(Título I, Subtítulo II, com cinco capítulos), regime de bensentre os cônjuges (Título II, Subtítulo I, com seis capítulos),usufruto e administração dos bens de filhos menores (TítuloII, Subtítulo II), alimentos (Título II, Subtítulo III), bem defamília (Título II, Subtítulo IV), união estável (Título III),tutela e curatela (Título IV, com dois capítulos).

O livro do direito das sucessões (arts. 1.784 a 2.027) édesmembrado em quatro títulos: sucessão em geral (Título I,com sete capítulos), sucessão legítima (Título II, com trêscapítulos), sucessão testamentária (Título III, com quatorzecapítulos) e inventário e partilha (Título IV, com setecapítulos).

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Não se confundem o objeto do direito civil, comotecnologia, e o do Código Civil. De um lado, assuntosregulados em leis complementares, como os direitos autoraise a locação predial urbana, também são estudados porcivilistas. De outro, embora tratado em grande parte no LivroII da Parte Especial do Código Civil, o direito de empresapertence ao campo de interesse dos comercialistas, isto é, datecnologia do direito comercial.

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Capítulo 2

A LEI1. FONTES DO DIREITO

Uma metáfora bastante usual nos manuais de matériajurídica — não só de direito civil, mas de outros ramos — é adas fontes do direito. Pretende-se, com ela, identificar o quepode legitimamente gerar direito (meu, seu, de todos...).Assim como a água verte de fontes, o direito tambémsurgiria de algo (cf., por todos: Carvalho, 2004:46/79;Requião, 1971:24; e Gomes, 1957:39/51).

A primeira ordem de fatores de que o direito se origina,na apresentação dessa metáfora pela tecnologia jurídica,aponta para a própria contextualização histórica e social dodireito. As regras de conduta refletem várias condicionantes(de natureza cultural, moral, ideológica, econômica,psicológica, religiosa etc.) características da sociedade queas adota. Na civilização ocidental de tradição europeia donosso tempo, por exemplo, admite-se apenas a monogamia,no plano moral e cultural, para as uniões afetivas entre

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homens e mulheres. Consequentemente, as leis editadaspelas sociedades nela inseridas coíbem a bigamia e oadultério. As condicionantes características da sociedadeseriam, assim, as fontes materiais do direito.

A tecnologia jurídica não dispensa às fontes materiaismaiores atenções. As ligações entre as regras de condutapostas ou vivenciadas e suas condicionantes sócio-históricas costumam ser entendidas como irrelevantes àexata compreensão do direito. Seriam, por assim dizer,matéria própria dos sociólogos, economistas, historiadores,teólogos e outros estudiosos dedicados a área deconhecimento distinta da dos juristas.

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A metáfora das fontes procuraauxiliar a compreensão dos fatoresque geram legitimamente o direito.As fontes materiais do direito seriamos elementos econômicos, sociais,culturais, históricos e morais queinfluenciaram o surgimento dodireito. Já as fontes formais seriam alei, os costumes e os princípiosgerais de direito.

Ocupa-se, então, a tecnologia jurídica exclusiva ouprincipalmente das chamadas fontes formais do direito (cf.Pereira, 1961:60/67), isto é, as fontes que o próprio direitoposto reconhece.

Apontam os autores, no direito brasileiro, as seguintesfontes formais: a lei, o costume e os princípios gerais dedireito. Lembram-se do art. 4º da LINDB, que dispõe sobre a

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superação de lacunas legais (“quando a lei for omissa, o juizdecidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e osprincípios gerais de direito”), e concluem que, nele, há adefinição da lei como a fonte principal do direito. Quandoela não tratar de determinada matéria (isto é, for omissa), odireito será dito por meio da aplicação de outra lei,disciplinadora de casos análogos (esta é a “analogia”).Somente não existindo lei nenhuma sobre o assunto emquestão, o direito emergirá do costume ou dos princípiosgerais de direito. Veremos, à frente (Cap. 3), que se trata, arigor, não da lei, mas da norma jurídica (conceito quealcança também a Constituição Federal, os decretosautônomos etc.), a principal fonte formal do direito a que serefere a doutrina.

O costume é referência às regras de condutavivenciadas como obrigatórias pela sociedade ou por umsegmento desta. Raros são os exemplos atuais de direitoconsuetudinário (isto é, de costume juridicamentereconhecido), porque a globalização econômica, odesenvolvimento científico e tecnológico e a complexidadedas relações sociais exigem crescente precisão nadelimitação da regra de conduta a observar. Cabe, porém, oexemplo das feiras internacionais de empresas de televisão,em que são negociados os formatos de programastelevisivos, por valores consideráveis, sem que essa matériase encontre, hoje, regrada especificamente em nenhuma

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ordem jurídica. Nessas feiras, as empresas de televisãoreconhecem-se recíprocos direitos sobre os formatos quecriam e os tornam, assim, bem jurídico suscetível de negócio.

Quando a metáfora das fontesindica a lei como a principal fonteformal do direito, ela está-sereferindo, na verdade, às normasjurídicas positivas, isto é, àseditadas por autoridades investidasde competência. A noção abrange,desse modo, além da lei, também aConstituição, as medidasprovisórias, os decretos e outrasnormas jurídicas.

Quando não há norma jurídicaespecífica sobre determinado

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específica sobre determinadoassunto, nem outra que verse sobretema análogo, o direito é geradopelo costume ou por seus princípiosgerais.

Princípios gerais de direito seriam regras de conduta nãoeditadas por autoridade nem vivenciadas como obrigatóriaspela sociedade ou segmento desta, mas decorrentes danatureza dos seres humanos. Equivalem ao chamado direitonatural. No Brasil, um juiz poderia decidir processo sobredescumprimento de contrato de clonagem humana,considerando-o negócio jurídico inválido, porqueincompatível com a natureza dos homens e mulheres. Nessahipótese, de fato, desde que verificado não existir normajurídica disciplinando a matéria, específica ou analogamente,nem costume jurídico de que pudesse socorrer-se o julgador,restaria apenas solucionar o processo com base nosprincípios gerais de direito (Cap. 3, item 3).

Não há consenso, entre os autores que discutem aquestão das fontes do direito, sobre a natureza dajurisprudência (conjunto de decisões judiciais proferidassobre certa matéria) e da doutrina. Corrente é a noção de

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que exercem, na elaboração do direito, mera funçãocolaboradora (Gomes, 1957:39) e, assim, não poderiam serconsideradas fontes formais. Lembre-se, porém, que ajurisprudência, como repositório dos julgados precedentes,influencia fortemente a interpretação dos textos normativosa que se refere. A seu turno, também os doutrinadoresinfluenciam a forma como as normas jurídicas sãointerpretadas e aplicadas. Quanto a estes últimos, valeconsiderar a técnica de elaboração legislativa de largaaceitação, segundo a qual as normas jurídicas devem evitardefinir os conceitos com que opera, sendo a definiçãodestes tarefa de que se desincumbe melhor a doutrina; seassim é, sempre que observado esse critério na elaboraçãode uma lei, aos doutrinadores caberá delimitar, ainda que emparte, o seu âmbito de abrangência.

Para alguns tecnólogos, também adoutrina, a jurisprudência e aequidade deveriam ser classificadascomo fontes formais do direito.

A doutrina é o repositório dosensinamentos dos mais respeitados

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ensinamentos dos mais respeitadosestudiosos do direito. Todos osprofissionais dessa área, inclusive ojuiz, formam-se e estudam nas liçõesda doutrina, razão pela qual estaexerce inegável influência naelaboração e aplicação do direito.

A jurisprudência é a reunião dosprecedentes judiciais. Nela se podeencontrar como os juízes jádecidiram casos iguais ou parecidos,fator que também influenciaconsideravelmente o estudo eaplicação do direito.

A equidade é a superação deconflito de interesses por meio deuma solução não prevista em lei

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escrita ou consuetudinária, masrazoável para os litigantes.

Há, também, quem repute fonte do direito a equidade,isto é, a distribuição razoável de direitos e obrigações paraas partes, sem estrita observância de eventual solução legalou consuetudinária (Cap. 4, item 5.3).

2. REFERÊNCIAS DO DIREITOA metáfora das fontes é ligada à questão da validade do

direito e se insere na discussão sobre o poder (Ferraz Jr.,1988:222/227). Quem detém o poder legítimo na sociedade,de acordo com a sua organização política e institucional, criao direito (Reale, 1973:139/181). Nessa metáfora, como visto, alei — elaborada e aprovada pelos membros do PoderLegislativo e sancionada pelo Chefe do Poder Executivo — éconsiderada a principal fonte, discutindo os manuais em quemedida também os costumes, os precedentes judiciais(jurisprudência), a doutrina, a equidade e até mesmo o direitonatural também poderiam ser considerados como origemlegítima do direito.

Descarto a metáfora. É possível — e mais apropriado —estudar e compreender o tema da gênese do direito sem ela.

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Homens e mulheres possuem interesses. Queremdeterminadas coisas e, sabendo ou não por que querem,normalmente buscam satisfazer suas vontades. Por vezes, oatendimento ao interesse de uma pessoa importa odesatendimento ao de outra. Nesses casos, não há comoconciliar as querências, satisfazendo inteiramente as duaspessoas. Ocorre, então, conflito de interesses. As duasvontades não podem atender-se simultaneamente e umadelas deve ceder lugar à outra, ou as duas devem recuar acerto ponto de equilíbrio. Se alguém aprecia ouvir gravaçõesde óperas em volume elevado, mas isso desagradaprofundamente ao seu vizinho; se o devedor não paga ocredor, sob a alegação de ser excessiva a cobrança; se tantoa antiga companheira homossexual da mãe como o avôdisputam a guarda de menor órfão, verifica-se o choque deinteresses.

Uma sociedade é organizada quando possui sistemas desuperação dos conflitos de interesses; aliás, é tanto maisorganizada quanto mais eficientes forem tais sistemas.Desde os rudes procedimentos de eliminação física doinimigo na sociedade tribal até os Tribunais PenaisInternacionais para julgamento de crimes contra ahumanidade do nosso tempo, os sistemas sociais de soluçãodos conflitos de interesses desenvolvidos ao longo dahistória evoluíram em complexidade. Institucionalizaram-se.

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Pode-se entender a gênese dodireito mesmo sem auxílio dametáfora das fontes.

Os interesses conflitantes, muitasvezes, não podem conviver. Se nãohouver um ponto de equilíbrio quesatisfaça às pessoas envolvidas, umdos interesses deve ser sacrificado.Nas sociedades organizadas, asuperação dos conflitos de interessesalcança-se por um complexo sistema,que é o Direito.

Por esse sistema, certasreferências institucionalizadas —como a lei, a doutrina e ajurisprudência — orientam a

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jurisprudência — orientam asuperação dos conflitos.

Para tentar antever ou para decidir como devem sersuperados os conflitos de interesses, na sociedadedemocrática do início do século XXI, incluindo a brasileira, ap rin c ip a l referência é a norma jurídica positivada(Constituição, lei etc.). Isto é, a superação dos conflitosorientam-se principalmente por padrões gerais de condutadescritos por autoridades investidas de poder (osconstituintes, para a Constituição; os membros dos PoderesLegislativo e Executivo, para a lei etc.), com observância deum procedimento formal e bastante complexo.

Quando o cliente submete ao seu advogado umaquestão jurídica, o que deseja é antever como seria julgada amatéria, caso o assunto fosse objeto de um processojudicial. Se ele adquiriu, como consumidor, um produtomediante financiamento e está achando altos os juroscobrados, sua consulta ao profissional tem por objetivosaber se um juiz poderia, por exemplo, dispensá-lo dopagamento ou reduzir a taxa cobrada num eventual processojudicial. O advogado, ao responder a consulta do cliente,levará em conta diversos fatores (se já há precedente judiciala favor ou contra a tese que beneficiaria o cliente, se há

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elementos para desenvolver uma tese nova, a lição de umdoutrinador respeitado na comunidade jurídica etc.); mas,principalmente, tomará por referência a norma jurídicapositivada, isto é, o que dispõe a lei sobre os juros aoconsumidor ou a validade das cláusulas do contrato.

Esse procedimento é o adequado para o advogadotentar antever, para o seu cliente, como seria solucionado oconflito de interesses, porque reproduz essencialmente omesmo procedimento que o juiz adotará, ao julgar oprocesso no futuro, decidindo qual deve prevalecer (ointeresse do consumidor de pagar juros menores, ou o doagente financeiro de continuar recebendo os mais elevados).Quer dizer, também o juiz levará em conta muitos fatores (osprecedentes judiciais, seu valor próprio de justiça, a doutrinaetc.), mas tomará por referência, ao decidir, principalmente anorma jurídica positivada.

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A lei e demais normas jurídicas sãoas principais referências do direito.Na superação dos conflitos deinteresses, busca-se orientaçãofundamentalmente naquilo que elasestabelecem (ou naquilo que adoutrina ou a jurisprudência dizemque elas estabelecem).

A norma jurídica baixada pela autoridade competente(Constituição, lei etc.) é a principal referência do sistema desolução dos conflitos de interesses desenvolvido nassociedades democráticas atuais. Esse sistema se denominadireito e é muito complexo. Tanto assim que, em razão desua complexidade, conhecê-lo adequadamente pressupõeanos de estudo, de prática profissional e de introjeção devalores. O direito, portanto, não pode ser definido como umconjunto de normas editadas pelas autoridades competentesde acordo com a organização política e institucional do

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Estado. Direito não é só lei, nem essencialmente a lei. Ele émais do que o conjunto de normas jurídicas positivadas; é,repetindo, um complexo sistema de solução de conflitos deinteresses, em que as normas positivas servem de principalreferência.

Quer dizer, não raras vezes os conflitos de interesses sesuperam por fórmulas não previstas nas normas positivasou mesmo que as contrariam; e isto ainda assim é Direito.

3. A LEI COMO REFERÊNCIA DO DIREITOAs normas jurídicas são enunciados, elaborados pela

autoridade competente de acordo com a organização políticado Estado, com o objetivo de orientar a superação deconflitos de interesses. Por uma questão de ordem didática— isto é, com o objetivo de inicialmente simplificar o objetode estudo (as normas jurídicas) para progressivamentecompreendê-lo em sua complexidade —, concentro-me, deinício, numa das diversas normas, a lei. O conteúdo da leiorienta a superação de conflitos de interesses, definindo,direta ou indiretamente, qual deve prevalecer e qual deveceder. Se o locatário não paga o locador porque consideraincorreto o valor da correção do aluguel, verifica-se umconflito de interesses cuja superação é orientada pela lei.Nesta, se encontrará a regra da prevalência do contratadoentre as partes na definição do índice e periodicidade decorreção do valor do aluguel. Se divergem as interpretações

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que locatário e locador dão para a mesma cláusula docontrato (o que é muito provável), o juiz deverá definir qualdelas deve ser tida como a mais fiel à vontade das partes.

Para adequadamente cumprir sua função de orientadorada superação dos conflitos de interesses, a lei deve serconsiderada, pelas pessoas em geral, como de aplicaçãoobrigatória; isto é, deve-se acreditar que quem não secomporta como deve expõe-se às consequências previstasno ditado legal. A lei determina que cada um de nósentregue ao Estado uma parcela dos ganhos que tiver (istoé, pague o Imposto de Renda); quem não o faz pode perderbens de seu patrimônio para garantir o pagamento devido aoEstado e pode também ir preso. A lei municipal proíbe ainstalação de atividades comerciais numa determinada zonada cidade; se algum comerciante descumpre a proibição,pode ter o seu estabelecimento lacrado pela Prefeitura. Écrime, pela lei, matar alguém; quem mata pode ser preso. Seas pessoas em geral não acreditarem que essasconsequências são reais ou, pelo menos, muito prováveis, alei não mais conseguirá cumprir sua função de orientar asolução dos conflitos de interesses. Se as pessoas em geralpensarem que o descumprimento da lei não é punido, osis tema Direito perderá operacionalidade. Note bem: se odescumprimento da lei é ou não efetivamente punido temimportância menor; o que interessam, para regularfuncionamento do Direito, são as crenças que as pessoas em

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geral têm sobre a obrigatoriedade da orientação legal. Deforma mais precisa, é a crença na crença da maioria daspessoas, de que as sanções previstas em lei serão aplicadas,que faz do Direito um mecanismo eficiente de superação deconflitos de interesses.

O principal elemento desustentação do Direito é a confiançana sua capacidade de superar osconflitos em sociedade, por meio daaplicação das sanções previstas emlei (não tanto a crença de que elerealmente tenha essa capacidade,mas a de que goza da confiança damaioria das pessoas).

Podemos descrever qualquer lei dando destaque não à

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sua observância pelo destinatário, mas sim à atuação daautoridade competente para fazê-la cumprir. Em outrostermos, alguns funcionários do Estado — juiz, promotor dejustiça, delegado de polícia, policial, oficial de justiça eoutros — devem atuar de modo que as pessoas acreditemque as leis devem realmente ser obedecidas; que asdesobedecer não é compensador, tendo em vista as sançõesque esses mesmos funcionários podem legitimamente impor(restrição à liberdade, perda de bens, prestação forçada deserviços comunitários e outras). Nos três exemplos acima, asmesmas regras jurídicas poderiam ser descritas de outromodo: à pessoa que, tendo auferido renda, não entregou aoEstado a parcela correspondente ao imposto, o juiz cíveldeve aplicar a sanção de perda de bens, em quantidadesuficiente ao pagamento do tributo devido, e o juiz criminaldeve impor a perda da liberdade; ao comerciante que seinstalar em zona estritamente residencial, a Prefeitura deveaplicar a sanção de fechamento do estabelecimento; quemcometeu homicídio deve ser considerado culpado peloTribunal do Júri e condenado à reclusão pelo juiz.

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As leis podem ser descritas comoordens a determinados funcionáriosdo Estado (juiz, fiscal de trânsito,oficial de justiça etc.) no sentido deque apliquem certas sanções(penalidades) contra quem asdesobedecer. O Direito deixaria defuncionar se a maioria das pessoasnão mais acreditasse que a maioriadas pessoas acredita que taisfuncionários vão realmente aplicaras sanções previstas na lei.

Se um dia a maioria das pessoas deixassem de acreditarque há uma crença, difundida na sociedade, de que as leissão mesmo aplicadas coercitivamente por esses funcionários

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do Estado, o Direito não mais funcionará. Numa situação decrise como esta, o sistema de superação dos conflitossociais (incluindo o aparelho de Estado policial e judiciário)precisaria ser reinventado, ou seja, passar por alteraçõesconsideráveis capazes de lhe restituírem a legitimidade, pormeio da recuperação da crença na crença em seufuncionamento.

A organização política do Estado democrático, desde aRevolução Francesa, reproduz uma fórmula concebidadurante o século XVIII e sintetizada inicialmente peloiluminista francês Montesquieu (1748:156/162). Trata-se dateoria da separação dos poderes, segundo a qual asautoridades do Estado encarregadas de elaborar as leis nãopodem ser as mesmas incumbidas de sua aplicação.Segundo a configuração atual da teoria, os membros doPoder Legislativo, com a participação do chefe do PoderExecutivo, editam-nas, e os integrantes do Poder Judiciáriojulgam a partir delas. Quer dizer, uma das fórmulas básicasda organização política do Estado democrático da atualidadesintetiza-se no enunciado o juiz deve aplicar a lei (existemoutras fórmulas, que, no momento, não interessam: osmembros dos Poderes Legislativo e Executivo devem sereleitos pelo povo; o Poder Legislativo fiscaliza a atuaçãodos outros Poderes; na chefia dos Poderes deve-seobservar regra de alternância etc.).

Uma das decorrências da teoria da separação dos

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poderes, sistematizada por Montesquieu no século XVIII apartir de sua visão sobre a monarquia britânica, é a de quedevem ser funções independentes, no Estado, as de elaborare aplicar as leis. O Poder Legislativo, com o concurso doExecutivo, elabora as leis que os juízes devem aplicar.

“Não haverá liberdade se o poderde julgar não estiver separado dopoder legislativo e do executivo. Seestivesse ligado ao poder legislativo,o poder sobre a vida e a liberdadedos cidadãos seria arbitrário, pois ojuiz seria legislador” (Montesquieu,1748:157).

Mas, atente-se, o enunciado o juiz deve aplicar a lei,embora corresponda a uma das fórmulas básicas da atualorganização política do Estado democrático, não deve ser

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considerado uma descrição verdadeira de como funciona oDireito. A lei, como dito anteriormente, é a principalreferência que se adota na superação de conflitos deinteresses. Mas, algumas vezes, tal superação se verificacontrariando a orientação legal; ou seja, de vez em quando,o juiz não aplica a lei e, a despeito disso, sua decisão, desdeque observadas determinadas condições, é válida edefinitiva. O que torna o Direito um mecanismo eficaz desuperação dos conflitos de interesses não é o seufuncionamento de acordo com a fórmula fundamental o juizdeve aplicar a lei, mas o fato de a maioria das pessoasacreditarem que a maioria das pessoas acreditam nessafórmula.

Isso tudo pode parecer muito confuso, principalmentepara um aluno de primeiro ano do curso de bacharelado.Afinal, o juiz aplica ou não aplica a lei? Deve-se terpaciência. A confusão é natural, no início, porque, comoafirmado, o Direito é um sistema social altamente complexo;para compreendê-lo bem, são necessários anos de estudo,prática profissional e introjeção de valores. Por enquanto,são suficientes as assertivas de que o juiz deve cumprir alei, mas quem decide se o juiz cumpriu ou não a lei é oPoder Judiciário (ou seja, outros juízes).

4. PROCESSO LEGISLATIVOA lei passa a existir após o cumprimento de

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determinados procedimentos e formalidades. Os objetivosdesses pressupostos procedimentais e formais são vários.De início, visam garantir a adequada discussão do conteúdode que deve revestir-se a lei, para que esta, se e quandoaprovada, venha a atender de modo satisfatório àsfinalidades pretendidas. Além disso, o conteúdo da lei nãopode contrariar o disposto na Constituição Federal e certosprocedimentos destinam-se a verificar a compatibilizaçãoentre essas normas. Outros objetivos daquelespressupostos estão relacionados ao controle do exercício dopoder. Como a lei é aprovada por um colégio de pessoasinvestidas de autoridade (isto é, titulares de fatias do poderdo Estado), é necessário assegurar que a vontade da maioriadelas prevaleça. Finalmente, há formalidades voltadas àdivulgação da lei, principalmente para os profissionais dodireito. É a publicação do seu texto na imprensa nacional(Diário Oficial).

Enquanto não verificados os pressupostosprocedimentais e formais estabelecidos para a sua regularelaboração, não existe lei. Por isso, vale a pena, ainda que embreves observações, examiná-los um pouco maisdetidamente.

Define-se processo legislativo como o conjunto deregras que regulamentam todo o percurso de elaboração dalei (e de algumas outras normas jurídicas). Isto é, o processode apresentação, discussão, votação, aprovação e veto do

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projeto de lei, bem como a sanção, promulgação epublicação da lei (cf. Ferreira Filho, 1995:191/243). Parasimplificar a exposição da matéria, interessemo-nos apenaspelo processo legislativo no plano federal. Nos planosestadual e municipal, com algumas alterações, o processo ésemelhante.

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A lei passa a existir após umprocedimento formal disciplinado naConstituição e no Regimento Internodas Casas do Poder Legislativo.Esse procedimento, de grandecomplexidade, é denominado“processo legislativo” e compreendea apresentação, discussão, votação,aprovação e veto de projetos de lei,bem como a sanção e publicação dalei. Enquanto não cumpridos ospressupostos procedimentais e asformalidades do processolegislativo, a lei não existe.

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As regras do processo legislativo encontram-se naConstituição Federal (arts. 59 a 69) e nos RegimentosInternos da Câmara dos Deputados e do Senado Federal.

O processo legislativo tem início com a apresentação deum “projeto de lei”. Note-se que nem todos têm o direito dedeflagrar o processo legislativo, mas apenas as pessoas aquem a Constituição atribuiu essa faculdade. Trata-se dopoder de iniciativa, de que estão investidos os deputados eos senadores (atuando isoladamente ou em Comissões),além do Presidente da República e algumas outrasautoridades. Em certas matérias, o poder de iniciativa éprivativo de uma pessoa. Ninguém mais, nem mesmo seestiver investido desse poder para outras matérias, poderádar início ao processo legislativo. A fixação ou modificaçãodos efetivos das Forças Armadas, por exemplo, é matéria delei que apenas o Presidente da República pode propor.

Prevê, por fim, a Constituição, o projeto de lei derivadode iniciativa popular. Para se inaugurar o processolegislativo por essa via, o projeto de lei deve ser assinadopor uma quantidade significativa de brasileiros regularmentealistados perante a Justiça Eleitoral, a saber, por eleitores emquantidade equivalente a, no mínimo, 1% do eleitoradonacional, distribuído em pelo menos cinco Estados ecorrespondente a não menos que 0,3% dos eleitores de cadaum deles (CF, art. 61, § 2º). Esse expediente não foi utilizadosenão algumas poucas vezes, porque demanda dos que o

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organizam um esforço hercúleo. É muito mais fácil convencerum ou alguns parlamentares, identificados com a causa emfoco, a assinarem o projeto de lei.

Atendidas as regras sobre a iniciativa do processolegislativo, passa o projeto a tramitar. O Brasil, a exemplo demuitas outras democracias ocidentais, adota o sistemabicameral. Quer dizer, o Poder Legislativo federal é compostopor dois órgãos legiferantes (também chamados de“Casas”), que são a Câmara dos Deputados e o SenadoFederal. A Constituição prevê, em determinadas hipóteses, areunião conjunta dos membros de ambas as Casas. Em taishipóteses, como, por exemplo, na votação de algumas leisorçamentárias, diz-se que está reunido o CongressoNacional. Na maioria das vezes, contudo, a lei, para existir,deve ser aprovada pelas duas Casas Congressuais emreuniões próprias de cada uma; isto é, deve ser aprovadapela maioria dos deputados federais e pela maioria dossenadores.

Em cada Casa, antes de ser votado pelo Plenário, oprojeto de lei é discutido em Comissões. Inicialmente, numaComissão que emite parecer sobre a sua constitucionalidadee outros aspectos legais (na Câmara, é a “Comissão deConstituição e Justiça e de Redação”; no Senado, a“Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania”). Emseguida, o mérito da lei que se pretende aprovar é discutidoem uma ou mais Comissões temáticas ligadas ao assunto em

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foco; em geral, tais Comissões são permanentes (Comissãode Agricultura, de Direitos Humanos, de Relações Exterioresetc.), mas, se a complexidade do tema do projeto de leijustificar, pode ser composta uma Comissão Especial para asua discussão (o Código Civil, por exemplo, foi discutido poruma Comissão temporária específica).

As leis são resultantes da aprovação dos seus textospor membros de dois poderes, o Legislativo e o Executivo.No plano federal, após a maioria dos integrantes da Câmarados Deputados e do Senado Federal, que compõem o PoderLegislativo, aprovar o projeto de lei, este segue para oPresidente da República, que é o chefe do Poder Executivo.Se concordar com o projeto, praticará o ato denominado“sanção”; caso contrário, se entender que háinconstitucionalidade ou que não está atendido o interessepúblico, o Presidente da República praticará o “veto”. Nahipótese de veto integral, o projeto de lei não se converte emlei, mas se for parcial, quer dizer, incidir apenas sobre algunsdos dispositivos (artigos, incisos, parágrafos etc.), a lei serásancionada e passará a existir somente com os demais.Tanto os vetos totais quanto os parciais podem serrejeitados pelo Congresso Nacional, por maioria absoluta deseus membros, em voto secreto. Rejeitado o veto doPresidente da República, a lei será promulgada tal comoaprovada pelo Poder Legislativo.

Para concluir o processo legislativo, a lei sancionada ou

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promulgada é tornada pública, por meio da imprensa oficial.A partir da publicação, a lei passa a existir.

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A lei, depois de aprovada pelosPoderes Legislativo e Executivo,passa a existir com a sua publicaçãona imprensa oficial. Antes desse ato,não se deve considerar existenteainda a lei, mesmo que inteiramenteconcluído o processo de suaaprovação pelos Poderes Legislativoe Executivo; isso porque osdestinatários da lei não podem terconhecimento de seu conteúdoenquanto não realizada apublicação.

Afirmar, como fiz acima, a coincidência entre publicaçãoe existência da lei não é inteiramente indiscutível. Ao

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contrário, muitos autores consideram que a lei passa a existircom o término do processo formal de sua aprovação pelasautoridades competentes, sendo a publicação o atodestinado a torná-la pública (cf. Ascensão, 1997:294/298).Como a existência da lei não implica necessariamente suavigência (item 5), e esta não pode dar-se antes dapublicação, a questão, rigorosamente falando, não temdesdobramentos práticos.

5. VIGÊNCIAA existência da lei não se confunde com a sua vigência.

Para vigorar, é claro, a lei precisa antes existir (no sentidodelimitado no item anterior, isto é, precisa ser aprovada,sancionada e publicada com observância das regras doprocesso legislativo), mas nem toda lei existente está emvigor.

Vigência é a aptidão de produzir efeitos juridicamenteválidos. Após a publicação na imprensa oficial, a lei existe,mas isso não significa que esteja já produzindo efeitos. Emoutros termos, ela já é conhecida, mas não pode ainda seraplicada. Assim, se estabelece a obrigação de determinadaconduta, as pessoas já podem ter conhecimento de seuconteúdo, mas ainda não estão obrigadas a se comportaremem consonância com os seus preceitos. Quem atua emdesconformidade com o prescrito em lei existente que aindanão entrou em vigor não pode sofrer nenhuma sanção.

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Exatamente porque a lei, antes de sua vigência, ainda nãopode ser aplicada, os juízes não podem apenar quem venha aadotar conduta contrária à determinada por ela. Só depois dea lei adquirir aptidão para produzir efeitos (entrar em vigor) éque os sujeitos ao seu comando devem obedecê-la.

Precise-se que a vigência é apenas a aptidão paraproduzir efeitos. Se a lei produzirá ou não os efeitos que delase esperam, ou seja, se será ou não eficaz, é questão diversa.Uma lei vigente pode ser ineficaz (item 7).

A regra, no direito brasileiro, é a de que a lei entra emvigor em quarenta e cinco dias após a sua publicação. É oque prevê o art. 1º da LINDB. Desse modo, a menos que aprópria lei estabeleça outro termo para o início de suavigência, ela passa a vigorar depois de transcorridosquarenta e cinco dias da data da edição do Diário Oficial emque ela foi publicada. A lei publicada no Diário Oficialdatado de 1º de março, se não contiver regra diversa sobresua entrada em vigor, passa a viger no dia 15 de abril domesmo ano.

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Vigência é a aptidão da lei deproduzir efeitos. A lei publicadaainda não está necessariamente emvigor, isto é, não possui força paraser aplicada. O início da vigência severifica, em princípio, na data emque a própria lei indicar ou, em casode omissão, nos quarenta e cincodias seguintes à data da publicação.

É muito comum a lei contemplar regra de entrada emvigor fixando termo diverso do estipulado no art. 1º daLINDB, maior ou menor que este. Na grande maioria doscasos, aliás, o último artigo da lei preceitua que ela entra emvigor “na data de sua publicação”. Isso significa que estáapta a produzir efeitos desde o dia em que é tornada pública.

Quando a lei não entra em vigor na data da publicação,haverá forçosamente um período a separar sua existência de

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sua vigência. Esse interregno denomina-se “vacância da lei”(em latim, vacatio legis), que convém seja tanto maiorquanto mais complexa for a matéria regulada. Fazer coincidira vigência com a publicação da lei nem sempre érecomendável. Se versa sobre tema de rala repercussão, nãohá maiores problemas em viger assim que publicada, já quetodos os sujeitos a seu comando podem, em princípio,facilmente se ajustar às novidades introduzidas. Porém,quando se trata de lei de alguma repercussão, convém que oinício da vigência se verifique depois de transcorrido, após apublicação, um prazo razoável para que os seusdestinatários se preparem para obedecê-la (LC n. 95/98, art.8º). O Código Civil, por exemplo, em vista de suaextraordinária abrangência, entrou em vigor um ano após asua publicação (CC, art. 2.044).

De qualquer forma, como já mencionado, nãoestabelecendo a própria lei a data em que entrará em vigor,aplica-se o art. 1º daLINDB e sua vigência se dará quarenta ecinco dias depois da data da edição do Diário Oficial emque se encontra publicada.

O prazo da vacância fixado em dias conta-se comodeterminado no art. 8º, § 1º, da LC n. 95/98; ou seja, com ainclusão da data da publicação e do último dia do prazo.Assim, a lei é vigente a partir da zero hora do diaimediatamente seguinte à consumação integral do prazo. Seo prazo é fixado em função de interregnos temporais

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diversos de dia (em mês, meses, ano etc.), a lei entra emvigor a partir da zero hora do dia seguinte aocorrespondente no mês ou ano indicado. O Código Civil foipublicado na edição do Diário Oficial de 11 de janeiro de2002. No dia seguinte ao transcurso do prazo de um ano, istoé, em 12 de janeiro de 2003, ele entrou em vigor. Quer dizer, asucessão da pessoa falecida às 23:59 horas do dia 11 dejaneiro de 2003 verificou-se segundo as regras do antigoCódigo Civil, de 1916, enquanto a da falecida às 00:01 horado dia 12 de janeiro de 2003 seguiu já as regras do atualCódigo Civil.

Por mais cuidado que tomem os setores burocráticosenvolvidos com o processo legislativo, pode ocorrer de a leiser publicada com incorreções. Nesse caso, deve serprovidenciada a pronta correção do texto divulgado, pormeio de inserções pontuais ou, se recomendável, pelarepublicação completa da lei. Se esta é novamente publicada,para fins de correção de seu texto, durante a vacância, oprazo para início da vigência volta a correr da republicação.Por outro lado, se feita a correção de texto já em vigor,considera-se editada uma nova lei (LINDB, art. 1º, §§ 3º e 4º).Essas prescrições têm importância na medida em queatendem à necessidade de segurança jurídica ínsita àmatéria. Se o texto corrigido não tivesse o efeito de renovar avacatio ou não fosse considerado lei nova, os fatosverificados antes da publicação da correção estariam

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sujeitos a disciplina ainda desconhecida, ao seu tempo, oque certamente acarretaria insegurança para as pessoasacerca da consequência jurídica exata de suas condutas oudecisões.

Termina a vigência da lei com ofim do prazo (leis temporárias), coma suspensão da execução (leiinconstitucional) ou com arevogação.

A tecnologia jurídica denomina “princípio dacontinuidade das leis” o primado segundo o qual a lei é aptaa produzir efeitos até que venha a ter sua vigência suprimidapor determinadas causas juridicamente reconhecidas (cf.Pereira, 1961:117/119). No Brasil, a lei deixa de vigorar em trêshipóteses: decurso do prazo, revogação e suspensão daexecução em razão da declaração de inconstitucionalidade.Assim, a lei que entrou em vigor continuará vigendo até quetranscorra o prazo nela fixado (se for o caso), seja revogada

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ou tenha sua execução suspensa. Tratarei das duas últimassituações adiante (itens 6 e 8), cabendo aqui algumasobservações breves acerca da primeira, que diz respeito àsleis temporárias. Na maioria das vezes, a lei é aprovada paravigorar por prazo indeterminado, mas pode verificar-se asituação em que se deve ou convém estabelecer um termofinal para sua vigência. A lei orçamentária, que fixa a receitae a despesa dos entes públicos (isto é, quantifica osimportes que a União, Estados e Municípios devem receberao longo de um ano, bem assim os gastos em que podemincorrer nesse período), é típico exemplo de lei temporária,pois tem vigência anual, correspondente ao exercício a quese refere. Quando editada, já se sabe que entrará em vigor noprimeiro dia do ano fiscal e deixará de vigorar no último dia.

6. CONSTITUCIONALIDADETodo Estado, sob a perspectiva da tecnologia jurídica,

tem uma Constituição, no sentido de possuir normas sobre asua própria organização. Essas normas, na maioria das vezesdesde a Era Moderna, encontram-se escritas numdocumento denominado também “Constituição”. Há, porém,Estados em que as normas constitucionais não sãonecessariamente escritas ou se espalham por diversosdocumentos produzidos ao longo do processo histórico desua formação, como a Inglaterra. Por esse largo conceito deConstituição, até mesmo os Estados governados por

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monarquias absolutistas, no século XVII, podem serconsiderados constitucionais (Bobbio-Matteucci-Pasquino,1983, 1:247). Também em função desse conceito, a questãosobre o que está na origem e o que é originado, se umEstado ou se a respectiva Constituição, torna-se insolúvel.Se o Estado produz sua Constituição ou se esta é que oorganiza, trata-se de alternativa que não se pode resolver,mesmo nos meandros da tecnologia jurídica.

Numa perspectiva histórica, a Constituição surge, noséculo XVIII, como o instrumento de equilíbrio de poderesconflitantes. Naquele tempo, a burguesia estavaconsolidando o seu processo de afirmação, enquanto classesocial com interesses próprios e condições de fazê-losprevalecer, em diversas partes da Europa. Entrava emchoque, naturalmente, com as classes dominantes do arcaicomundo feudal e, por vezes, com o poder real. Com asConstituições, nesse período, procuravam-se limitar ospoderes do Rei e assegurar alguns para representantes dossegmentos organizados da sociedade (cf. Dallari,1984:10/12). Serviu também a Constituição, ao longo dosséculos XVIII e XIX, de instrumento de afirmação daindependência das colônias americanas. Inicialmente, porisso, os documentos constitucionais versavam basicamentesobre a organização do poder político do Estado. Foi aConstituição norte-americana a primeira a ostentardeclarações de direitos fundamentais, por meio das emendas

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feitas, a partir de 1791, com o objetivo de promover suavigência, por meio da adesão mínima de nove dos trezeEstados que a haviam proclamado, alguns anos antes, naConvenção de Filadélfia (Afonso da Silva, 1976:142/157).

Durante o século XIX, as Constituições passaram aadotar, no seu próprio texto e sob a forma de comandosnormativos, a enunciação dos direitos fundamentais daspessoas por ela albergadas. A primazia na incorporação dosdireitos fundamentais como regras do texto constitucionalcaberia, segundo José Afonso da Silva, ao Brasil, que, emsua Constituição de 1824, outorgada pelo Imperador DomPedro I, já enunciava, no art. 179, a inviolabilidade dosdireitos civis e políticos dos cidadãos brasileiros.Finalmente, no decorrer do século XX, também os direitossociais dos trabalhadores e a organização da economiapassaram a ser tema constitucional, tendo sido aConstituição mexicana de 1917 a primeira a disciplinar aordem econômica (Afonso da Silva, 1976:666).

Constitucionalismo é ummovimento de largo espectro queorientou juridicamente não só a lutada burguesia contra o absolutismo

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da burguesia contra o absolutismofeudal, na Europa, como também aemancipação das colônias europeiasna América como naçõesindependentes. Desde o século XX,as Constituições contemplam normasnão só sobre a organização do poderpolítico do Estado, mas tambémsobre os direitos e garantiasfundamentais e a disciplina daordem econômica e social. AConstituição brasileira de 1988trata de todas essas matérias.

A Constituição brasileira em vigor foi promulgada em 5de outubro de 1988. A exemplo das demais constituições deseu tempo, ela disciplina não só a organização do Estadobrasileiro como também assegura os direitos fundamentais

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dos brasileiros e estrangeiros residentes no Brasil e dispõesobre a ordem econômica e a social.

6.1. Controle da constitucionalidade das leisÉ inerente à noção jurídica de Constituição a de sua

supremacia, relativamente às demais leis e normas adotadaspelo mesmo Estado (por ela organizado). Em outros termos,todas as leis de determinada ordem jurídica devem sercompatíveis com a Constituição em que esta ordem seassenta. Diz-se, por isso, que a Constituição é normahierarquicamente superior à lei (Cap. 3, item 2.1). Assim, a leié constitucional quando o seu conteúdo é compatível com oda Constituição. Caso contrário, quando a lei contraria odisposto na Constituição, ela é inconstitucional.

Constitucionalidade é, desse modo, o atributo da lei quese apresenta compatível com a Constituição.

O controle da constitucionalidade das leis é feito, noBrasil, pelo Poder Judiciário. Lembre-se que, na tramitaçãodo projeto de lei no âmbito do Poder Legislativo, uma dasComissões Permanentes se dedica a apreciar aconstitucionalidade da propositura; também no âmbito doPoder Executivo, se se entender que o projeto de leiaprovado contempla dispositivos inconstitucionais, elesdevem ser vetados. São, num certo sentido, controles deconstitucionalidade prévios à publicação da lei (“controlepreventivo”). Uma vez publicada esta, no entanto, sua

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constitucionalidade só pode ser suprimida ou restringidapelo Poder Judiciário (“controle repressivo”).

Há duas vias de controle judicial da constitucionalidade:a difusa e a concentrada. A primeira tem lugar em qualquerprocesso judicial em que uma das partes suscite comofundamento de sua pretensão a inconstitucionalidade dedeterminada lei. O juiz daquela causa, em vista disso, deveráenfrentar a questão ao proferir sua sentença. Parareconhecer o direito da parte que alegou ainconstitucionalidade, deverá, em princípio, considerar a leiem foco inconstitucional; para negar o direito a essa parte,deverá reputar a mesma lei constitucional. A decisãoproferida nesse caso não tem efeitos além das partes doprocesso. Quer dizer, mesmo que o Judiciário, por qualquerde suas instâncias, juízes ou tribunais, declarereiteradamente a inconstitucionalidade da lei em diversasações judiciais, isso não compromete a vigência dela. Ocontrole judicial difuso da constitucionalidade produzefeitos limitados aos da lide em que teve lugar (exceto, comose verá à frente, quando exercido pelo STF).

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Há duas vias de controle judicialda constitucionalidade da lei. Aprimeira, chamada difusa, éacionada por qualquer pessoa quesuscite, como autor ou réu dequalquer processo judicial, ainconstitucionalidade de certa leicomo fundamento de sua pretensão.Se o Judiciário acolher essaargumentação, a declaração deinconstitucionalidade surtirá, emprincípio, efeitos limitados ao litígioem que a matéria foi discutida.

Já a via concentrada de controle refere-se à açãoproposta perante o Supremo Tribunal Federal (STF) com o

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objetivo de declarar certa lei constitucional ouinconstitucional. Também se insere na via concentrada decontrole judicial da constitucionalidade a ação visandosuprir falta de lei necessária à efetividade da Constituição(Piovesan, 1995; Moraes, 2000:242/247). As ações deconstitucionalidade, de inconstitucionalidade ou deinconstitucionalidade por omissão só podem ser promovidaspor algumas autoridades ou entidades (Presidente daRepública, Procurador-Geral da República, Conselho Federalda Ordem dos Advogados do Brasil etc.). Quer dizer,enquanto o controle difuso pode ser acionado por qualquerlitigante, autor ou réu de qualquer medida judicial, oconcentrado apenas pode sê-lo por determinadas pessoasindicadas na Constituição (CF, art. 103).

Desse modo, se, por exemplo, é publicada lei comconteúdo que contraria a Constituição, a Ordem dosAdvogados do Brasil (OAB) pode, por meio de deliberaçãodo seu Conselho Federal, ajuizar perante o STF uma açãocom o objetivo de declará-la inconstitucional. Após ouvir oAdvogado-Geral da União (que tem o dever de defender a leiimpugnada) e o Procurador-Geral da República (quemanifestará sua opinião favorável ou desfavorável à lei),esse Tribunal julga a ação, declarando ou não aquela leiinconstitucional.

Além do controle concentrado da constitucionalidade, oSTF também pode exercer, como qualquer outra instância do

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Poder Judiciário, o controle difuso. Quando declarainconstitucional certa lei exercendo essa via de controle, oSTF deve comunicar a decisão ao Senado Federal, ao qualcompete suspender a sua execução (CF, art. 52, X). Asuspensão da execução tem o efeito de suprimir a vigênciada lei, isto é, sua aptidão para produzir efeitos.

A via concentrada de controlejudicial de constitucionalidade sópode ser acionada por algumasautoridades ou entidades indicadasna Constituição Federal. Nesse caso,é proposta, perante o SupremoTribunal Federal, uma açãoespecificamente destinada adeclarar a constitucionalidade ouinconstitucionalidade da lei. Se oSTF julgar procedente a ação, a

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declaração de inconstitucionalidadeproduzirá efeitos ‘erga omnes’. Poroutro lado, se o STF, no exercício docontrole difuso, considerarinconstitucional certa norma legal,deve comunicar a decisão ao SenadoFederal, ao qual compete suspendersua execução.

Para alguns tecnólogos do direito constitucional, a leiinconstitucional não existe. A incompatibilidade entre ela e aConstituição é de tal forma grave, para esses autores, que odispositivo de conteúdo inconstitucional simplesmente nãoexiste para o direito (cf., por todos, Bastos, 1982:46/48). Nãoé este, contudo, o melhor entendimento. Na verdade, o quese encontra em discussão, no tema do controle daconstitucionalidade, é a validez da lei (Barroso, 2008:13). Alei inconstitucional é inválida, não vale; e por esta razão nãopode servir de fundamento a nenhuma decisão judicial(controle difuso) e deve ter, pelo procedimento apropriado,

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sua inconstitucionalidade declarada (controle concentrado)e a vigência extinta. Alguns outros constitucionalistasreputam absoluta a invalidade da lei inconstitucional, nosentido de que não produziria qualquer efeito. Para essesautores, a lei inconstitucional é nula (cf., por todos, FerreiraFilho, 1978:40). As duas formulações (inexistência ounulidade da lei) são, a rigor, muito próximas e, por seusimplismo, não conseguem explicar convenientemente umamatéria de alta complexidade (cf. Afonso da Silva, 1976:53).

Para compreender a complexa discussão sobre anatureza da lei inconstitucional, cabe, de início, considerarque a validade da lei não se confunde com sua existência,vigência e eficácia. São atributos diferentes e relativamenteautônomos. A lei existente (isto é, aprovada de acordo como processo legislativo e publicada) pode ser válida ouinválida (constitucional ou inconstitucional); a lei válidapode estar vigente (quer dizer, é já apta a produzir efeitos),ou não, e pode ser eficaz (ou seja, observada pelas pessoassujeitas ao seu comando), ou não; a seu turno, a lei inválidapode ser eficaz ou ineficaz. Note-se, porém, que a autonomiadesses atributos é relativa, no sentido de que somente sepode discutir a validade, vigência e eficácia de leisexistentes. Essa afirmação já permite desconsiderar a tese dainexistência da lei inconstitucional. O objeto da açãodeclaratória de inconstitucionalidade não pode ser algo quenão existe. Ademais, o que não existe numa ordem jurídica

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não precisa ser extirpado dessa mesma ordem.

A lei incompatível com aConstituição é inválida, mas, desdeque tenha sido observado o processolegislativo, ela existe; se está apta aproduzir efeitos, vigora; e, se temsido observada, é também eficaz.Após a suspensão da sua execuçãopelo Senado Federal, a leiinconstitucional perde vigência edeixa de ter aptidão para produzirefeitos. Se, porém, mesmo assimcontinuar a ser observada,conservará sua eficácia.

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Na verdade, a lei incompatível com a Constituição existe,embora seja inválida. Invalidade esta que reclama decretaçãojudicial e, portanto, não pode ser classificada como absoluta.Essa lei, por outro lado, pode não ser aplicada em razão docontrole difuso de constitucionalidade, caso em que não teráeficácia total. Por fim, enquanto não tiver suainconstitucionalidade declarada pelo STF e sua execuçãosuspensa pelo Senado Federal, continuará vigente. Desseemaranhado de relações entre os atributos é que se podeconcluir o estatuto jurídico da lei inconstitucional: inválida,porém vigente até sua suspensão pelo Senado Federal, eeficaz enquanto estiver sendo obedecida.

6.2. O direito civil e a ConstituiçãoA Constituição Federal brasileira é detalhista. Ela

procura disciplinar uma vasta gama de assuntos nãosomente em seus contornos genéricos e fundamentais, mastambém, muitas vezes, em relação a aspectos bemespecíficos. Os pormenores com que se preocupa são maisnumerosos do que os costumeiramente encontrados namaioria das constituições dos outros países.

Em matéria de direito civil, por exemplo, encontram-seem dispositivos constitucionais, de um lado, princípioscomo o da igualdade entre filhos havidos dentro e fora docasamento (art. 227, § 6º) ou o da função social da

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propriedade (art. 170, III), e, de outro, especificidades comoo meio de dissolução do casamento (art. 226, § 6º) ehipóteses de usucapião (arts. 183 e 191).

Em razão do excessivo detalhamento da Constituição, atecnologia civilista brasileira não pode deixar de se ocupar,em certa medida, de argumentos que envolvem temasconstitucionais. São de duas ordens esses argumentos.

Em primeiro lugar, há os atinentes àconstitucionalidade de dispositivos da legislação de direitoprivado, isto é, à adequação ou inadequação da norma dedireito civil (lei ordinária, na maioria das vezes) à daConstituição. O art. 977 do CC, por exemplo, éinconstitucional. Ele faculta a contratação de sociedadeentre marido e mulher desde que o regime de bens docasamento não seja o da comunhão universal ou o daseparação obrigatória. Em outros termos, ele proíbe acontratação de sociedade entre cônjuges casados nessesregimes de bens. Ora, a Constituição assegura, como direitosfundamentais, o da igualdade perante a lei (art. 5º, caput) e ode livre associação para fins lícitos (art. 5º, XVII). O CódigoCivil, lei ordinária, não pode suprimir direitos que aConstituição outorgou; o dispositivo que proíbe acontratação de sociedade entre cônjuges casados emregimes de comunhão universal ou separação obrigatória é,assim, inconstitucional, porque discrimina indevidamenteesses cônjuges e suprime o livre exercício do direito de

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associação para fins lícitos.O segundo tipo de argumento, na tecnologia civilista,

que envolve temas constitucionais diz respeito àinterpretação conforme a Constituição. Sempre que umdispositivo de lei ordinária comporta mais de umainterpretação, sendo apenas uma delas compatível com anorma constitucional, deve prevalecer esta. De fato, se sedescarta a interpretação compatível para privilegiar aincompatível, seguir-se-á a inconstitucionalidade da normainterpretanda. Como o esforço de exegese deve orientar-seno sentido de preservar a sistematicidade do ordenamento,salva-se a norma ordinária atribuindo-lhe a únicainterpretação que a concilia com os ditames constitucionais.

Desse modo, em decorrência da interpretação conformea Constituição, todo e qualquer dispositivo do Código Civilque atribua direito a pessoa casada deve ser interpretadoextensivamente, no sentido de aplicá-lo também aos homense mulheres ligados por vínculo de união estável. O art. 226, §3º, da CF reconhece a união estável entre o homem e amulher como entidade familiar e, por isso, a interpretação acontrario sensu daqueles dispositivos levaria àdiscriminação inaceitável desses homens e mulheres. Colha-se o exemplo do art. 25 do CC, que assegura a curadoria dosbens do ausente ao seu cônjuge (exceto se dele já se haviaseparado de fato por mais de dois anos). Essa garantia étambém do homem ou da mulher vinculados por união

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estável, na hipótese de ausência de um deles (Lotufo,2003:90).

Em razão do caráter detalhista daConstituição brasileira, a tecnologiacivilista, por vezes, deve transitarpor argumentos que envolvem temasconstitucionais. Verifica-se isto emduas situações: na discussão sobre ainconstitucionalidade de preceito doCódigo Civil (ou de outra leiordinária civilista) ou na suainterpretação conforme aConstituição.

Note-se que a Constituição não reconhece

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expressamente a união estável entre pessoas do mesmo sexocomo entidade familiar, de modo que a equiparação a estadas uniões estáveis entre homem e mulher não é imediata eexige um esforço argumentativo mais sofisticado, comsocorro do princípio da igualdade. Assim sendo, a extensãodos dispositivos legais do Código Civil atinentes ao cônjugeaos homossexuais vinculados por união estável pode sersustentada com base no argumento da interpretaçãoconforme a Constituição que entrelace os arts. 226, § 3º, e 5º,caput, como decidiu o STF em 2011.

7. EFICÁCIAA eficácia é o atributo da norma jurídica relacionado à

sua aplicação. Eficaz é a norma obedecida pelas pessoas aquem se dirige e aplicada pelos juízes. Uma norma pode sereficaz, sem ser válida. A proibição para a venda de bebidasalcoólicas nos dias de eleição, por exemplo, a chamada leiseca, é exemplo de norma jurídica inválida e eficaz. Por setratar de uma proibição, apenas uma lei ordinária poderiaestabelecer a norma; mas ela vem sendo reiteradamenteveiculada por meio de diplomas infralegais (Portarias deSecretários Estaduais de Segurança Pública). A despeitodessa grave impropriedade formal que compromete avalidade da norma, não há dúvidas de que ela é eficaz: nosdias de eleição, a expressiva maioria dos comerciantes(restaurantes, bares, supermercados etc.) obedece-a com

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rigor e não vende bebidas alcoólicas.Por outro lado, considera-se ineficaz uma lei quando ela

não é aplicada. Existe, vigora, vale, mas sua observânciapelas pessoas a ela submetidas não é exigida pelos órgãosaplicadores do direito. A ineficácia é, por certo, umaanomalia, porque, se a lei foi regularmente aprovada epublicada, entrou em vigor e não apresenta vício deinconstitucionalidade, os juízes devem aplicá-la sempre queverificado o fato nela descrito como pressuposto. Ocorreque, pelas mais variadas causas (por exemplo, deficiênciatécnica, inadequação com a realidade que pretende regularetc.), a lei acaba não sendo obedecida.

Exemplo de dispositivo legal ineficaz encontra-se no art.501 do Código Comercial. Por esse dispositivo, ocomandante de navio mercante deve manter a escrituraçãoregular de todos os eventos importantes relativamente àadministração e navegação da embarcação. Se não mantiveressa escrita, diz a lei que o comandante irá responder pelasperdas e danos resultantes da omissão. Essa norma não éobservada há muito tempo. Os comandantes apenascomunicam os fatos relevantes à autoridade marítima, sem osregistrar em livros mercantis. Trata-se, assim, de normavigente e válida, mas ineficaz.

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Ineficaz é a lei que, emboraexistente, válida e vigente, não temsido obedecida pelas pessoas a elasujeitas porque o Poder Judiciárionão a tem aplicado. Essa anomaliaderiva, normalmente, dainadequação da lei à realidade quepretende regular. A lei ineficaz, emsuma, deve ser aperfeiçoada,alterada ou revogada.

A ineficácia da lei pode ser total ou parcial, de sorte quehá graus de eficácia. A lei totalmente ineficaz é aquela quenenhum advogado ou promotor pleiteia a aplicação enenhum juiz aplica. Trata-se de uma lei esquecida. Já a leiparcialmente ineficaz é aplicada em certa medida por algunsjuízes.

A alegação ou mesmo a prova de ineficácia, total ou

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parcial, da lei não serve de escusa ao seu cumprimento.Ninguém pode desobedecer à lei porque ela não tem sidoaplicada há muito tempo. Da inobservância, ainda quereiterada, de determinado preceito legal não se segue suainexistência, invalidade ou perda de vigência; e, de fato, se alei é existente, válida e vigente, não há razões para deixar deser obedecida pelas pessoas a ela sujeitas, nem deixar de seraplicada pelo Poder Judiciário. Em princípio, portanto, parecenão haver relevância em se discutir a eficácia ou ineficáciada lei, porque, seja qual for a circunstância, sua aplicaçãofica a depender de outros atributos. Não é bem assim,contudo; há duas situações em que a discussão sobre aeficácia da lei ganha importância.

A primeira hipótese em que é pertinente dimensionar aeficácia da lei diz respeito à discussão sobre a oportunidadede sua mudança. Se a lei existente, válida e vigente não temsido aplicada, sempre vale a pena procurar entender ascausas dessa anomalia. Definido o problema, pode-seapontar a solução no seu aprimoramento técnico, revogaçãoou mesmo na readequação à realidade regulada. Apermanência da lei ineficaz no direito positivo é sempre umapotencial fonte de incertezas.

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Discutir o grau de eficácia da leinão é desprovido de importância. Emdois casos, cabe dimensioná-lo: nadiscussão sobre a oportunidade demudança da lei e na definição deestratégias judiciais.

A segunda hipótese está relacionada à estratégiajudicial. Se determinada lei é ineficaz, o advogado pode levarem conta esse fato na discussão, com seu cliente, dasalternativas a adotar em determinado caso. Retomando oexemplo anterior, o advogado do comandante processadopelos danos derivados da falta de escrituração regular podedefender seu cliente com base no desuso da norma, se eletiver feito a comunicação às autoridades marítimas como secostuma fazer. Se esse advogado levar em consideraçãounicamente os outros atributos da lei (existência, vigência evalidade), não conseguirá dar ao seu cliente o melhoratendimento.

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8. REVOGAÇÃONo direito brasileiro, a lei perde vigência em três

hipóteses: decurso do prazo, suspensão da execução erevogação. Em outros termos, a lei deixa de ostentar aptidãopara a produção de efeitos por três diferentes razões.

A primeira verifica-se quando a própria lei (ou aConstituição) estabelece prazo determinado de vigência,fixando um limite temporal para a sua aptidão para produzirefeitos. Trata-se de lei temporária, em que o término davigência é fixado, de antemão, pela própria lei (emdispositivo preceituando a vigência até determinada data oupor certo período) ou por disposição constitucional (casodas leis orçamentárias, por exemplo).

A segunda hipótese de perda de vigência decorre de atodo Senado Federal e tem por objeto a lei declaradainconstitucional, em termos definitivos, pelo SupremoTribunal Federal. Nesse caso, a lei deixa de vigorar emvirtude de sua invalidade, reconhecida e proclamada peloprocedimento constitucional apropriado (item 6.1).

A terceira razão para o término do vigor da lei é, por fim,a revogação. Aqui, não está em questão a prévia limitaçãode vigência (lei temporária) ou a invalidade dos preceitoslegais (lei inconstitucional). Na revogação, o legisladorapenas considera oportuno fazer cessar a aptidão da lei paraproduzir efeitos. Por exemplo: quando, em 2003, entrou emvigor o novo Código Civil, este revogou o de 1916.

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A lei perde vigência em trêshipóteses, no direito brasileiro: a)fim do prazo preestabelecido paravigorar; b) suspensão da execuçãopelo Senado, em razão dadeclaração de inconstitucionalidadepelo STF; c) revogação.

Quando a lei é revogada, issosignifica que ela perde a aptidãopara produzir efeitos não porquehavia limites temporais previamenteestabelecidos para ela vigorar, nemporque se apresenteinconstitucional. A revogaçãodecorre do entendimento do

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decorre do entendimento dolegislador no sentido de que avigência da lei não correspondemais à melhor alternativa paranortear eventuais conflitos deinteresses nela refletidos.

A revogação da lei normalmente vem acompanhada daedição de uma nova lei em substituição. Não é necessárioque seja assim, porém. O legislador pode revogar certa leisem aprovar nenhuma outra para regular a mesma matéria nolugar da revogada. Caracteriza-se, então, uma lacuna, paracuja superação a lei estabelece determinado procedimento(Cap. 3, item 5).

A revogação pode implicar a perda de vigência de todosos dispositivos de uma lei ou de apenas parte deles. Noprimeiro caso, denomina-se ab-rogação, e no segundo,derrogação. A revogação do Código Civil de 1916 pelo de2002 resultou na perda de vigência da totalidade dosdispositivos daquele. Foi, assim, uma revogação do tipo ab-rogação. Por outro lado, o mesmo Código de 2002 pôs fim àvigência dos dispositivos da “Primeira Parte” do Código

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Comercial de 1850. Nesse caso, operou-se revogação do tipoderrogação, já que os dispositivos da “Segunda Parte” doCódigo Comercial permanecem em pleno vigor.

8.1. Revogação expressa ou tácitaClassifica-se a revogação em expressa ou tácita.Na maioria das vezes, a própria lei traz dispositivo

relativo às revogações que empreende. É, nesse caso,expressa. Faltando, porém, qualquer dispositivo legalconcernente às revogações produzidas por certa lei, emexistindo, serão tácitas.

O art. 2º, § 1º, da LINDB dispõe sobre ambas ascategorias de revogação: “a lei posterior revoga a anteriorquando expressamente o declare, quando seja com elaincompatível ou quando regule inteiramente a matéria de quetratava a lei anterior”. Encontra-se a categoria expressa noditado pela primeira frase desse dispositivo, isto é, naostensiva declaração legal de que se está procedendo àrevogação de um ou mais preceitos normativosanteriormente editados. Das hipóteses de revogação tácitatrata o restante da norma em foco.

A revogação expressa pode ter formulação genérica ouespecífica. No primeiro caso, o dispositivo revogadorindividualiza a lei ou os dispositivos revogados; nosegundo, não há individuação da lei ou dos dispositivosque perdem vigência. Em outros termos, é genérica ou

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específica a formulação da revogação expressa segundo seidentifiquem ou não os preceitos normativos revogados pelaprópria norma revogadora. Veja-se o art. 2.045 do CC:“revogam-se a Lei nº 3.071, de 1º de janeiro de 1916 —Código Civil, e a Parte Primeira do Código Comercial, Lei nº556, de 25 de junho de 1850”. Esse dispositivo opera arevogação expressa específica do Código Civil de 1916 e departe do Código Comercial de 1850. Quer dizer, a lei e osdispositivos revogados encontram-se claramenteidentificados no preceito revogador. Veja-se, agora, o art.119 do CDC (Código de Defesa do Consumidor — Lei n.8.078/90): “revogam-se as disposições em contrário”. Taldispositivo ostenta uma formulação genérica, em que não seidentificam exatamente as normas cuja vigência cessou.Todo e qualquer dispositivo legal ou mesmo lei, anterior aoCódigo de Defesa do Consumidor, que conflite com oprescrito neste último, está revogado.

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A revogação pode ser expressa outácita. Expressa é a revogaçãoderivada de dispositivo que apreceitua. Sua formulação pode sergenérica (sem identificação da lei oudispositivos revogados, como, porexemplo, na fórmula “revogam-se asdisposições em contrário”) ouespecífica (com a identificação dalei ou dispositivos revogados).

A melhor técnica de elaboração de leis recomenda autilização apenas da revogação expressa por formulaçãoespecífica. De fato, estabelece o art. 9º da LC n. 95/98 que “acláusula de revogação deverá enumerar, expressamente, asleis ou disposições legais revogadas”. Dispositivosrevogatórios como o do Código de Defesa do Consumidor (ede tantas outras leis) devem ser evitados. A razão de ser da

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preferência pela formulação específica é clara. Quando arevogação se faz por fórmula genérica, remanesce comoincumbência da tecnologia jurídica ou da jurisprudência adefinição dos dispositivos legais (ou mesmo das leis) quedeixaram de vigorar. Controvérsias doutrinárias e dissensosjurisprudenciais no trato da matéria podem acarretarinsegurança sobre a vigência ou revogação de determinadasnormas legais. Quando o próprio legislador indica asdisposições revogadas, esse tipo de insegurança nãocostuma ocorrer.

Claro que a inobservância do art. 9º da LC n. 95/98 nãotem nenhuma consequência. Se a lei ordinária ostentadispositivo revogatório em formulação genérica, isso nãocompromete nenhum de seus atributos (existência, vigência,validade e eficácia). A única implicação dessa formulaçãoserá a eventual incerteza quanto ao exato alcance darevogação empreendida.

Verifica-se, a seu turno, a revogação tácita quando a leianterior é incompatível com a posterior ou se esta regula, deforma exaustiva, a mesma matéria daquela. Exemplificando: oprimeiro Código Civil brasileiro, de 1916, fez-se acompanharde um conjunto de preceitos introdutórios sobre vigência,eficácia, interpretação e territorialidade das leis, denominado“Introdução ao Código Civil”. Vigorou até 1942, quando foidecretada a Lei de Introdução às Normas do DireitoBrasileiro (LINDB — Decreto-Lei n. 4.657/42), atinente à

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mesma matéria. Pois bem, a entrada em vigor da LINDB, nosquarenta e cinco dias seguintes à sua publicação, importou arevogação tácita dos preceitos da Introdução ao CódigoCivil de 1916, embora não se encontre nela (na LINDB)nenhuma norma revogadora expressa, genérica ouespecífica. A perda de vigência daqueles preceitosintrodutórios de 1916 decorreu da circunstância de a LINDBregular, por inteiro, a mesma matéria.

A revogação é tácita quando,inexistindo dispositivo revogadorexpresso, a lei anterior éincompatível com a nova ou se estaregula exaustivamente a mesmamatéria daquela.

Note-se que não se confundem a revogação expressa deformulação genérica e a tácita. Naquela, a lei contempladispositivo em que é prescrita a revogação das disposições

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em contrário. Na tácita, não há dispositivo nenhumpreceituando a revogação de qualquer outra norma,operando-se a perda de vigência em razão do previsto no art.2º, § 1º, da LINDB.

8.2. RepristinaçãoRepristinação é a recuperação de vigência por uma lei

revogada. Por meio dessa operação, a norma legal objeto derevogação tem a vigência restabelecida por uma terceiranorma. Para que se verifique a repristinação, no direitobrasileiro, é indispensável expressa referência darevigoração da norma revogada pela norma repristinatória. Éo que decorre do art. 2º, § 3º, da LINDB: “Salvo disposiçãoem contrário, a lei revogada não se restaura por ter a leirevogadora perdido a vigência”.

Antes de 1942, não existia no direito brasileiro odispositivo em tela, nem qualquer outro sobre arepristinação. A doutrina, então, discutia os efeitos darevogação da norma revogadora (Pereira, 1961:126/127). Defato, como visto, a revogação é uma das causas desupressão de vigência da lei. A perda de vigência da leirevogadora significa, portanto, o fim de sua aptidão paraproduzir efeitos. Como um dos efeitos projetados eraexatamente a revogação da lei anterior, pela lógica, arevogação da norma revogadora deveria implicar arestauração da norma revogada. Quer dizer, não havendo

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mais nenhuma norma com aptidão para suprimir a vigênciada anterior, esta deveria ter sua capacidade de produzirefeitos recuperada.

A norma revogada não recupera,em princípio, sua vigência emvirtude da revogação da normarevogadora. Essa recuperação(“repristinação”) só se verifica seexpressamente prevista em lei.

A partir de 1942, com o art. 2º, § 3º, da LINDB, adiscussão restou superada. A recuperação de vigência emrazão apenas da revogação da lei revogadora, embora lógica,não foi a solução adotada pelo legislador brasileiro. Entrenós, não havendo expressa disposição legal repristinando alei revogada, a revogação da lei revogadora não produz oefeito de restaurar-lhe a vigência.

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9. A OBRIGATORIEDADE DA LEIA lei obriga todas as pessoas que se encontram no

território correspondente ao Estado que a edita. A leibrasileira obriga a todos no Brasil (melhor dizendo, obrigapelo menos a todos no Brasil, já que pode projetar efeitostambém para além do território nacional). Sujeitam-se, assim,aos comandos legais do nosso direito positivo tanto osbrasileiros e estrangeiros que aqui residem como todas aspessoas que passam por território sob jurisdição do Estadobrasileiro — seja a passeio, trabalho ou a que título for. Taldecorre do princípio da obrigatoriedade da lei, que se abrigano art. 3º da LINDB: “Ninguém se escusa de cumprir a lei,alegando que não a conhece”.

Essa formulação do princípio da obrigatoriedade da leiremonta ao direito romano (Pereira, 1961:114/117). É certoque ninguém hoje conseguiria conhecer todas as leis emvigor num país como o Brasil. Nem mesmo o mais arguto dosprofissionais do direito seria capaz de dominar tão vasto ecomplexo campo de conhecimento. Não se presume,portanto, que as pessoas deveriam, de algum modo, intentartal empreitada. Não se pode presumir, de fato, que alguémconheça todas as leis a que deve obediência.

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Uma das formulações do princípioda obrigatoriedade da lei se podeencontrar no art. 3º da LINDB:“Ninguém se escusa de cumprir alei, alegando que não a conhece”.

Qual, então, o significado daquela prescrição legal?O princípio da obrigatoriedade da lei é um dispositivo de

clausura encontrado na maioria dos direitos ocidentais. Senão existisse, qualquer um poderia furtar-se à sanção legalsimplesmente alegando desconhecê-la. Restaria inoperante odireito como sistema social de superação de conflitos deinteresses. Assim, mesmo aqueles que não conhecem a leiestão obrigados a obedecê-la. E, por mais estranho que talcomando possa parecer — obrigando algo aparentementeimpossível de ser atendi-do —, é ele indispensável à plenaefetividade do sistema jurídico.

Claro que a maioria das leis necessárias ao convíviosocial tem o seu conteúdo assimilado pela generalidade daspessoas no transcorrer do processo de educação. Todos, apartir de bem cedo, aprendem que não devem pegar as

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coisas alheias sem permissão do dono. Também se aprende,logo, que as dívidas devem ser pagas. Sabe-se, porexperiência de vida, que fica obrigado a indenizar os danosquem os provoca. A existência de impostos e o dever depagá-los também se conhecem no mais tardar ao iniciar avida adulta. Aliás, confundem-se, em muitos desses casos, alei e os preceitos morais, e, por isso, embora apenas osprofissionais do direito consigam normalmente precisar oconteúdo dela, de algum modo todos estão cientes daconduta a ser seguida. Em relação às leis de conteúdo maisdirecionado, como as que ditam obrigações tributáriasinstrumentais, impõem padrões de qualidade na fabricaçãode determinados produtos (alimentos, fármacos etc.) ou deproteção ao meio ambiente, disciplinam o procedimento derealização da despesa pública e muitas outras, em geral aspessoas diretamente alcançadas pela obrigação buscamesclarecimentos junto aos profissionais (contador,advogado, ambientalista etc.).

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Pelo princípio da obrigatoriedadeda lei, como está ao alcance dequalquer pessoa informar-se sobreas leis de seu interesse, não hámotivos para deixar de aplicá-las emrazão da alegada ignorância acercade sua existência ou conteúdo.

Desse modo, se ninguém, efetivamente, conhece todasas leis, é certo que as relevantes para determinada pessoa(em certo momento de sua vida) podem ser por elaconhecidas. É este o sentido do princípio da obrigatoriedadeda lei. De qualquer modo, se alguém não tem conhecimentode que devia, por lei, agir de um jeito, nem procurouinformar-se a respeito, tal ignorância ou descaso não obstama aplicação das sanções legalmente previstas para o caso.

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Capítulo 3

NORMASJURÍDICAS E

ORDENAMENTO1. INTRODUÇÃO

Como examinado no capítulo anterior, as normasjurídicas são as principais referências do direito. Asuperação dos conflitos de interesses, em outros termos,norteia-se principalmente pelas normas jurídicas. Porém, elasnão são editadas, interpretadas e aplicadas isoladamente.Consideram-se, ao contrário, integrantes de um conjuntochamado ordenamento jurídico.

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Cada país (Estado), no exercício de sua soberania,possui seu próprio ordenamento. A comunidade das naçõestambém tem seu ordenamento integrado pelas normasdecorrentes de tratados internacionais ou baixadas porentidades supranacionais (ONU, OMC, OIT, ComunidadesEconômicas Regionais etc.). Essas normas, embora geradaspor acordos ou entes externos, passam a integrar o direitodos Estados a elas submetidos (item 2.3). Por exemplo, aoaderir, em 1884, à Convenção de Paris sobre propriedadeintelectual, o Brasil introduziu no seu direito as normas deproteção às invenções, desenhos industriais, marcas enomes de comércio.

O ordenamento jurídico não é um conjunto qualquer denormas, aleatório e desestruturado. Pelo contrário, como opróprio nome sugere, há uma “ordem” no entrelaçamentodas normas nele reunidas. Alguns consideram que essaordem é lógica; outros, que é passível de descrição lógica.Não é o caso de entrar, aqui, nessa discussão. Registro,apenas, que penso ser o ordenamento jurídico um conjuntode normas com congruência pseudológica, retórica (paraaprofundamento dessa questão, ver Coelho, 1992).

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As normas jurídicas de vigênciareconhecida por um Estado soberanointegram o ordenamento jurídicodesse Estado. Trata-se de umconjunto de normas organizadas deacordo com determinados padrões.Tais padrões são, para algunsestudiosos do direito, lógicos; paraoutros, retóricos. Qualquer que sejaa natureza desses padrões, porém,existe certa ordem nas relaçõesentre as normas jurídicas.

A organização das normas jurídicas no ordenamentosuscita diversas questões. Convém, por enquanto, enfrentarquatro: hierarquia entre as normas (item 2), princípios (item

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3), antinomias (item 4) e lacunas (item 5).

2. HIERARQUIA DAS NORMAS JURÍDICASAlém da lei, são normas jurídicas a Constituição, o

decreto regulamentar, a instrução normativa e outras. Variamas normas de acordo com a autoridade competente paraeditá-las, o processo de elaboração e o objeto. A nossaConstituição foi elaborada pelos constituintes eleitos em1986, de acordo com o regimento interno aprovado tambémpor eles, e tem por objeto a organização do Estado brasileiroe os direitos fundamentais que ele procura assegurar; já odecreto regulamentar é da competência do chefe do PoderExecutivo (Presidente da República, Governadores dosEstados ou do Distrito Federal e Prefeitos dos Municípios) etem por objeto a fiel execução da lei (CF, art. 84, IV).

As normas jurídicas são hierarquizadas, isto é,dependendo da autoridade competente para editá-las, nãopodem conflitar com outras normas, as que se encontram emposição hierárquica superior. Quando autoridadesadministrativas baixam, por exemplo, suas resoluções ouinstruções, não podem contrariar o disposto na lei, porqueesta é norma jurídica hierarquicamente superior; a lei, porsua vez, deve obedecer à Constituição, que é a norma demais elevado grau hierárquico, e assim por diante. Se umanorma jurídica conflitar com outra de hierarquia superior, elapode ter sua validade questionada perante o Poder

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Judiciário e sua vigência e eficácia podem ser suspensas.

As normas jurídicas integrantes deum ordenamento mantêm relações dehierarquia. Certas normas devemobservar o que já vem disposto emoutras. Não podem ultrapassar oslimites estabelecidos por estasúltimas. Diz-se, então, que aquelassão hierarquicamente inferiores.

A discussão sobre hierarquia das leis é importante porvárias razões e repercute em diversos temas da teoria dasnormas. Se, por exemplo, duas normas jurídicas disciplinamdeterminado objeto de forma diferente, é necessário decidirqual delas deve prevalecer. Imagine que a norma A proíba aprisão por dívidas, enquanto a norma B estabeleça que odevedor está sujeito, em determinadas condições, à prisão.

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Obedecer à norma A significa necessariamente desobedecera B, e vice- -versa. Pois bem, a decisão sobre qual dospreceitos conflitantes deve ser respeitado orienta-se,inicialmente, pela posição hierárquica das normas que oscontêm. Quando se situam no mesmo grau hierárquico —quer dizer, não há hierarquia entre elas —, prevalece a normajurídica mais recente. Considera-se, nesse caso, que a normaposteriormente editada altera a anterior; opera-se, em termostécnicos, a “revogação” (Cap. 2, item 8). Mas se as normasconflitantes são de graus hierárquicos diferentes, prevalecea superior, ainda que mais antiga.

2.1. Os graus de hierarquia das normas jurídicasCostuma-se utilizar a imagem de um triângulo equilátero

para descrever as relações de superioridade e inferioridadeentre normas jurídicas — que refletem, grosso modo, ahierarquia das autoridades com competência para produzircada uma delas. O ordenamento jurídico tem, por essaimagem, uma estrutura triangular, em que, no ápice, situa-sea norma de hierarquia mais elevada no direito brasileiro, aConstituição Federal; as demais são localizadas emcamadas inferiores do triângulo. As normas de determinadacamada não podem contrariar as das camadas superiores enão podem ser contrariadas pelas das inferiores. Na verdade,como é a própria Constituição que estabelece a hierarquiadas normas jurídicas, qualquer desconformidade entre

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normas infraconstitucionais de graus hierárquicos diferentesé, a rigor, um desrespeito a preceito constitucional. Porexemplo: a Constituição Federal estabelece, comomencionado, que o decreto regulamentar é baixado para ofiel cumprimento da lei; se o decreto regulamentar contrariauma lei, então ele contraria também a Constituição.

No Brasil, a organização dasnormas jurídicas situa como a demais alta hierarquia a ConstituiçãoFederal de 1988. Todas as demaisnormas jurídicas devem sercompatíveis com os seus preceitos.As incompatíveis não têm validade,são inconstitucionais.

Voltando à imagem do triângulo, na primeira camadaimediatamente inferior à Constituição Federal encontram-se

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normas jurídicas de três espécies: a lei, a medida provisóriae o decreto autônomo. Entre elas não há hierarquia.

A lei pode ser de três categorias: complementar,ordinária ou delegada. Não há, igualmente, hierarquianenhuma entre estas. A lei complementar não é superior àordinária. A rigor, não há sequer possibilidade de conflitoentre normas dessas espécies, já que a Constituiçãoestabelece específica e expressamente as matérias objeto delei complementar (cuja aprovação depende do votoafirmativo da maioria absoluta dos parlamentares). Veja, porexemplo, o art. 192 da CF. Nele, são previstas leiscomplementares para disciplina da estruturação do sistemafinanceiro nacional. Uma lei ordinária não pode, portanto,tratar desse assunto. Por outro lado, a lei complementar nãopode cuidar de matéria não reservada constitucionalmentepara ela. Se o fizer, será considerada uma lei ordinária, isto é,passível de alteração pelo processo legislativo próprio destaúltima (em que a aprovação depende do voto afirmativo damaioria simples) e não pelo das leis complementares (em queo quórum de aprovação é a maioria absoluta). Apenas sob oponto de vista formal, pode-se admitir uma hierarquia entre aLC 95/98, que dispõe sobre a elaboração, redação, alteraçãoe consolidação das leis, e as de nível ordinário (cf. Carvalho,2004:207/212). A lei delegada, por sua vez, é baixada peloPresidente da República nos limites de autorizaçãoespecífica dada pelo Congresso (Poder Legislativo) por meio

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de uma resolução (CF, art. 68). O âmbito da lei delegada élimitado pela Constituição; não pode dispor, por exemplo,sobre organização do Poder Judiciário, cidadania, direitosindividuais ou eleitorais etc. Dentro desse âmbito, noentanto, ela pode alterar o preceituado em lei ordinária oucomplementar.

A medida provisória é adotada pelo chefe do PoderExecutivo Federal, nas hipóteses de relevância e urgência, etem força de lei; isto é, a medida provisória tem a mesmahierarquia e objeto da lei ordinária (CF, art. 62). A medidaprovisória é votada pelo Poder Legislativo e, caso aprovada,com ou sem alterações, converte-se numa lei ordinária.Trata-se, porém, de instrumento de criação de norma jurídicaexcepcional, já que, não havendo relevância e urgência, oPresidente da República deve optar pelo envio de umprojeto de lei ao Congresso. Enquanto vigora, a medidaprovisória pode mudar disposição de lei anterior sobre amesma matéria.

O decreto autônomo, por sua vez, pode dispor sobreorganização e funcionamento dos órgãos públicos federais(desde que não implique aumento de despesas nem criaçãoou extinção de órgãos) e sobre extinção de funções oucargos públicos vagos (CF, art. 84, VI). Dentro dessasmatérias, o decreto autônomo pode alterar o disposto na lei(complementar, ordinária ou delegada) e ser alterado poresta. Não existe entre lei e decreto autônomo nenhuma

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hierarquia. Claro que, se um decreto autônomo dispusersobre matéria estranha à delimitação constitucional de seuobjeto, deve ser tratado como decreto regulamentar e, nessecaso, não poderá contrariar o que vem disposto na lei.

A organização hierárquica dasnormas jurídicas situa comoimediatamente inferiores àConstituição Federal normasjurídicas de três espécies: lei(complementar, ordinária oudelegada), medida provisória edecreto autônomo. Entre elas não háhierarquia.

Na segunda camada imediatamente inferior àConstituição, no triângulo da hierarquia das normas jurídicas

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( o u ordenamento jurídico), encontra-se o decretoregulamentar (ou de execução). Sua função é especificar anormatização legal. É fácil perceber que a lei não tem meios,muitas vezes, de disciplinar todos os aspectos específicosda matéria sobre a qual versa. Em outras ocasiões, adinâmica própria da matéria disciplinada recomenda que odetalhamento deva ser feito e possa ser revisto porprocedimentos normativos mais ágeis que os da lei. Odecreto regulamentar tem a função de normatizar em detalheo que a lei preceituou genericamente. Veja, por exemplo, aLei n. 9.434/97, que dispõe sobre a remoção de órgãos,tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante etratamento. Nela se encontra a regra de que os transplantessó podem ser realizados por estabelecimentos de saúdeautorizados (art. 2º). No Decreto n. 2.268/97, que aregulamentou, encontra-se a forma de requerer a autorização,a definição do Ministério da Saúde como órgão competentepara concedê-la (art. 8º), bem como as obrigações dosestabelecimentos de saúde autorizados a realizar ostransplantes (art. 9º). Note que a lei e o decreto regulamentarnormatizaram a mesma matéria, mas aquela se dedicou aregras de conteúdo mais genérico que as deste. Tanto odecreto regulamentar como a lei, é bom ressaltar, são normasgerais, mas o conteúdo daquele é mais específico que odesta. Por isto, diz-se que o decreto regulamentar não inovao direito, apenas detalha o que já está prescrito na lei

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(Bandeira de Mello, 1969:357; Mello, 1980:309/310).

Na organização da hierarquia dasnormas jurídicas, o decretoregulamentar é inferior às leis, àsmedidas provisórias e ao decretoautônomo. Por sua vez, as normasadministrativas, baixadas porautoridades singulares ou órgãoscolegiados, são hierarquicamenteinferiores ao decreto regulamentar.

Na terceira camada abaixo da Constituição (a última dotriângulo), estão as normas administrativas baixadas porautoridades do Poder Executivo dos mais variados níveishierárquicos. Elas também integram o ordenamento jurídico.São normas editadas por autoridades singulares (ministro,

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secretário, diretor, chefe etc.) ou órgãos públicos colegiados(Conselho, Comissão, Grupo Interministerial etc.) e ostentamdesignações variadas (portaria, circular, instrução normativa,resolução, deliberação etc.). Costumam tratar de matérias departicular especificidade, normalmente do interesse de umsegmento econômico bem delimitado. Exemplificando, aAgência Nacional de Telecomunicações (ANATEL) expedenormas para cumprimento das empresas prestadoras deserviço de telecomunicação; a Comissão de ValoresMobiliários (CVM), para sociedades anônimas com açõesnegociáveis na Bolsa de Valores; a Agência Nacional deVigilância Sanitária (ANVISA), para indústria alimentícia oufarmacêutica; o Banco Central (BACEN), para instituiçõesfinanceiras, e assim por diante. A circunstância de seencontrarem essas normas administrativas na base dotriângulo da hierarquia normativa não significa que tenhampouca importância. Pelo contrário, em razão do acentuadoconteúdo técnico e da relevância do assunto disciplinado,elas têm sido, cada vez mais, objeto de estudos e atuaçãoprofissional. Essas normas devem, claro, obedecer aodisposto em decretos (regulamentar ou autônomo), leis,medidas provisórias e na Constituição, em razão dahierarquia.

2.2. Leis da União e de outros entes federadosNa discussão sobre a hierarquia das normas no

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ordenamento jurídico brasileiro, cabe tratar da classificaçãodas leis, segundo o critério do ente federativo que as edita.O Brasil é uma Federação integrada pela União, os EstadosFederados, o Distrito Federal e os Municípios. Comodecorrência do princípio federativo, cada um desses entespossui competência para editar suas próprias normasjurídicas, observada a discriminação prevista naConstituição Federal. Assim, os Estados se organizamconforme suas próprias constituições, e os Municípios, deacordo com as respectivas leis orgânicas; direito civil, porexemplo, é matéria da competência legislativa privativa daUnião (CF, art. 22, I), não podendo os Estados ouMunicípios editar normas sobre esse ramo jurídico; já aproteção do meio ambiente insere-se tanto na competêncialegislativa da União como na dos Estados e do DistritoFederal (CF, art. 24, VI); os Municípios, por sua vez, legislamsobre matéria de seu peculiar interesse, como o zoneamentourbano e os gabaritos das construções (CF, art. 30, I).

Em decorrência da distribuição de competêncialegislativa, pela Constituição Federal, entre os entes daFederação, são editadas leis pela União (nacionais oufederais), pelos Estados Federados ou pelo Distrito Federal(leis estaduais) e pelos Municípios (leis municipais).

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Entre as normas jurídicas editadaspela União, Estados Federados,Distrito Federal e Municípios nãohá hierarquia, exceto em duashipóteses: na das leis nacionaisprevistas na Constituição Federal eeditadas pela União (às quais sesubmetem os demais entesfederativos) e na das derivadas doexercício de competênciaconcorrente (em que as da Uniãoprevalecem sobre as dos Estados oudo Distrito Federal).

As relações hierárquicas entre essas leis geradas emníveis diferentes da Federação obedecem a critérios de

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alguma complexidade. Não existe nenhuma hierarquia, porexemplo, entre leis estaduais e municipais. Se lei do Estadode São Paulo proíbe a concessão de certa vantagem aofuncionário público, isto não impede que lei do Município deSão Paulo a conceda ao seu corpo funcional. Mas entre a leieditada pela União e a de outro ente federado pode haverhierarquia. São duas as situações em que lei aprovada noâmbito da União é hierarquicamente superior à de outro ououtros entes federados.

Em primeiro lugar, se a lei tem caráter nacional. Note-se,a lei federal não é superior à estadual ou municipal, mas a leinacional prevalece sobre estas. Ambas são editadas pelaUnião, mas, de acordo com regras da Constituição Federal,enquanto uma (a nacional) deve ser obedecida pelos demaisentes federativos, a outra (a federal) não os vincula. Exemplode legislação nacional é a Lei n. 4.320/64, que estabelece asregras gerais do direito financeiro (isto é, referentes àarrecadação da receita e realização de despesas pelo PoderPúblico). Um Município não pode criar, mesmo por normalegal própria, categoria contábil de realização de despesaestranha às reguladas naquele diploma nacional. Exemplo delei federal, por sua vez, é o estatuto do funcionalismopúblico federal. Os benefícios concedidos ao pessoal daUnião não podem ser reclamados, por exemplo, por umservidor público do Estado do Rio de Janeiro com base noestatuto federal.

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A segunda hipótese de superioridade da lei editada pelaUnião em relação à de outros entes federados decorre dacompetência concorrente para legislar sobre determinadasmatérias. Como dito acima, em matéria de proteção do meioambiente, podem legislar tanto a União como os EstadosFederados e o Distrito Federal. Há muitas outras hipótesesde competência concorrente: educação, cultura, produção,consumo, proteção ao patrimônio histórico etc. Nessashipóteses, a lei da União deve dedicar-se ao estabelecimentode normas gerais, e a dos Estados Federados ou DistritoFederal, às suplementares (CF, art. 24, §§ 1º a 4º). Se preceitode lei estadual conflitar com o disposto na lei editada pelaUnião, prevalece esta em razão de sua superioridadehierárquica.

Exceção feita a essas situações — lei nacional ecompetência concorrente —, porém, não há qualquerhierarquia entre as leis editadas pela União e a dos demaisníveis da Federação (Estados, Distrito Federal eMunicípios).

2.3. Normas internacionais e supranacionaisNormas internacionais ou de direito internacional são as

geradas por acordos entre Estados soberanos. Essesacordos recebem, em geral, a denominação de tratados ouconvenções e podem versar sobre quaisquer questões deinteresse dos Estados participantes, de natureza econômica,

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social, política ou jurídica. O Mercado Comum do Sul(MERCOSUL), por exemplo, foi criado pelo Tratado deAssunção, que Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguaiassinaram em 1991. As normas internacionais são, assim,produto da convergência de vontade de Estados soberanosdispostos a administrarem consensualmente alguns de seusinteresses comuns. Cada Estado envolvido no processo decelebração da norma internacional indica seusrepresentantes e estes identificam os interessesconvergentes e divergentes, transigem e negociam umdocumento representativo do encontro de vontades. Asnegociações podem ser bilaterais (entre dois Estados) oumultilaterais (entre três ou mais Estados). O resultado danegociação é um conjunto de normas que devem serobservadas pelos Estados envolvidos, para sedesincumbirem dos compromissos então assumidos, cadaum perante os outros.

Normas supranacionais são as editadas por organismosinternacionais, como a Organização das Nações Unidas(ONU), a Organização Mundial do Comércio (OMC), a UniãoEuropeia e outras. Quando o Conselho de Segurança daONU edita resolução condenando determinada agressãoterritorial de um país contra outro, ou os órgãos legiferantesda União Europeia aprovam diretiva para harmonização dosdireitos internos de seus países-membros, produzem-senormas supranacionais. Diferem das internacionais na

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medida em que não provêm diretamente de acordo devontade entre os Estados-partes, mas de ato de autoridadesupranacional cuja competência para normatizar éreconhecida por alguns Estados soberanos. A validade denormas supranacionais encontra fundamento, imediato oumediato, numa norma internacional, porque os organismosinternacionais recebem autoridade para editar normas de umacordo de vontades (tratado ou convenção) firmado pelosEstados soberanos que os criam.

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As normas jurídicas externaspodem ser de duas espécies:internacionais, quando resultantesdiretamente de acordo de vontadeentre Estados soberanos (tratados);supranacionais, quando provenientesde autoridade internacional comcompetência reconhecida por algunsEstados soberanos e apenasindiretamente resultantes de acordode vontade entre eles.

Os ordenamentos jurídicos dos Estados, em geral,preveem um procedimento legislativo para a introdução dasnormas externas no direito positivo interno. No Brasil, ostratados, convenções e atos internacionais celebrados peloPresidente da República devem ser referendados pelo

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Congresso Nacional (CF, art. 84, VIII). Além dessasformalidades, a doutrina recomenda o respeito à secularpraxe de o Presidente da República, após o referendo doPoder Legislativo, “promulgar” o tratado, por meio dedecreto (regulamentar). Pois bem, cumpridas tais premissas einternalizada a norma externa, cabe indagar qual o seu grauhierárquico? Em outros termos, o tratado internalizadoencontra-se em que nível da hierarquia das normas jurídicas?

A questão é relevante, na medida em que não podehaver conflitos entre normas internacionais ousupranacionais, de um lado, e norma interna de maior grauhierárquico, de outro. Essa matéria, a rigor, somente estáregrada no direito positivo brasileiro relativamente aostratados internacionais que versem sobre direitos e garantiasfundamentais não previstos na Constituição Federal. Deacordo com o art. 5º, § 2º, da CF, esses tratados têm a mesmahierarquia de preceito constitucional, prevalecendo,portanto, sobre a lei (cf. Piovesan, 1996:114/127). Em relação,contudo, às normas externas não pertinentes a direitos egarantias fundamentais, sobrevive a questão: elas têm amesma hierarquia da lei ordinária ou são superiores?

Muitos dos internacionalistas que debatem a questãoda hierarquia da norma externa internalizada ainda acontextualizam na discussão, nascida na doutrina alemã dosanos 1920, entre monistas e dualistas. Para os primeiros, odireito positivo interno e o externo integram um único

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sistema jurídico; a celebração de um tratado gera norma jápertencente ao direito do Estado envolvido,independentemente de qualquer procedimento deinternalização. Para os dualistas, por sua vez, não seconfundem as ordens jurídicas externa e interna; as normasoriginárias da primeira devem ser internalizadas para vigorar.A rigor, porém, a discussão entre monistas e dualistas —inclusive a travada entre moderados e radicais de cadacorrente — tem importância apenas relativamente à validadee eficácia das regras procedimentais de internalização e nãoresolvem a questão da hierarquia da norma internalizada (cf.Araujo-Andreiuolo, 1999).

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As normas externas sãointernalizadas, no direito brasileiro,na mesma hierarquia das leis; excetoas que ampliam os direitos egarantias fundamentais, que sãointernalizadas como normasconstitucionais.

A norma externa internalizada (tratado, convenção ounorma supranacional) deve ser considerada no mesmo níveldas leis. Dessa definição, seguem-se diversasconsequências. Em primeiro lugar, a norma externa não podecontrariar a Constituição Federal; nem mesmo se tratar dedireitos e garantias fundamentais (se assegurar direito ougarantia não previsto na Constituição, ela é internalizadacomo norma constitucional, como já visto; mas se restringirdireito ou garantia assegurado na Constituição, ela éinconstitucional). Em segundo, a norma externa internalizadaprevalece sobre as leis (e normas infralegais) anteriores àsua internalização, revogando-as. Terceiro, a norma externa

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internalizada é revogada por lei ordinária posterior.Na metáfora do triângulo da hierarquia das normas

jurídicas, portanto, a norma externa internalizada pode situar-se em duas posições diferentes: se proteger direito ougarantia fundamental, é entronizada no ápice, junto àsnormas constitucionais; nas demais hipóteses, na primeiracamada imediatamente inferior à da Constituição Federal, aolado das leis, medidas provisórias e decreto autônomo.

3. PRINCÍPIOSDe início, devem-se distinguir princípios de direito e

princípios do direito. A primeira expressão designapreceitos que preexistiriam ao ordenamento jurídico e aosquais este deveria sempre se conformar. São os preceitos dedireito natural. Uma fortíssima tradição do pensamentojurídico, com raízes na Antiguidade Clássica, considera o serhumano sujeito a determinadas leis naturais, como as queasseguram o direito à vida, à propriedade, à revolta contratiranias, ao tratamento igualitário e outros. Para essa tradição— chamada “jusnaturalista” —, assim como estamos todosinvoluntária e necessariamente sujeitos à gravidade (e aoutras forças físicas, químicas, biológicas etc.), em razão denossa natureza de um evoluído animal habitante do planetaTerra, também estaríamos, na mesma medida, submetidos acertos padrões de conduta por nossa natureza.

Para a tradição jusnaturalista, as nações, ao elaborarem

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seus direitos positivos, isto é, ao editarem normas jurídicas,deveriam atentar aos princípios de direito. Se umordenamento jurídico porventura contemplasse normascontrárias aos preceitos de direito natural, embora pudesseaté mesmo existir por algum tempo, cedo ou tarde, cederialugar à força advinda da natureza do ser humano. Por outrolado, o conhecimento jurídico descobriria e estudaria as leisjurídicas do mesmo modo que a física, a química e a biologiadescobrem e estudam suas próprias leis (atração dasmassas, conservação da matéria, seleção natural etc.).

Os princípios de direito, assim, seriam normas nãopositivas — quer dizer, não editadas por autoridadeinvestida de competência —, relevadas pelos estudiosos dodireito, a partir do estudo da natureza do ser humano, e àsquais deve conformar-se o ordenamento jurídico.

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Os princípios de direito sãopreceitos revelados, pela doutrina, apartir da natureza do ser humano(direito à vida, à liberdade etc.). Osprincípios do direito são regras,expressas ou reveladas, queinspiram todo o ordenamento oudeterminada área do direito.

A tradição jusnaturalista vem perdendo prestígio desdeo século XIX. Hoje em dia, a rigor, são pouquíssimos os queainda se valem dos argumentos típicos dessa tradição, nafundamentação de lições doutrinárias, postulações oudecisões judiciais. Isso não quer dizer, contudo, que aargumentação jurídica não comporte mais nenhuma alusão apreceitos transcendentes ao ordenamento positivo. Aocontrário, para cumprir adequadamente sua função desistema social de superação de conflitos de interesses, odireito depende da necessária convivência de visões

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contrárias sobre seu conteúdo e funcionamento; visões deapego e de desapego ao texto das leis. Mesmo sem procurarconvencer o interlocutor da existência de um conjunto depreceitos morais preexistentes ao ordenamento jurídico emvigor, por vezes o estudioso ou profissional do direitoargumenta no sentido de que, na lei (ou melhor, no direitopositivado), não está todo o direito (Coelho, 1992:105/107).

Mas, se a argumentação jurídica lastreada nosprincípios de direito não tem, hoje, o mesmo prestígio deoutrora, a fundada nos princípios do direito, ao revés,apresenta crescente importância, no Brasil e no exterior,desde o início dos anos 1990 (Grau, 2002:36 e 120/121). Osprincípios do direito são preceitos gerais (expressos emdispositivos ou deles decorrentes) cujo comando se projetaem normas jurídicas atinentes a certa matéria, informando-as.Têm sido apresentados, noutra metáfora também corrente nadoutrina, como alicerce do edifício jurídico. Contrariar umprincípio, por essa perspectiva, seria pior que contrariar umparticular dispositivo expresso do ordenamento, porqueimportaria pôr em risco os próprios fundamentos do direito(Mello, 1980:772).

Os princípios do direito têm a mesma natureza dasnormas jurídicas (Sanchís, 1992), isto é, são enunciados queprescrevem condutas.

Alguns princípios do direito se encontram expressos emregras positivas (isto é, em dispositivos da Constituição ou

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da lei). O Capítulo I do Título VII da Constituição Federal,por exemplo, abriga os “princípios gerais da atividadeeconômica”, que são os da livre iniciativa, valorização dotrabalho humano, soberania nacional, propriedade privada esua função social, defesa do consumidor, proteção ao meioambiente e outros (art. 170). O Código de Defesa doConsumidor, outro exemplo, especifica os princípiosnorteadores da Política Nacional de Relações de Consumo,que são os do reconhecimento da vulnerabilidade doconsumidor no mercado de consumo, harmonização dosinteresses dos participantes das relações de consumo,racionalização e melhoria dos serviços públicos etc. (art. 4º)(cf. Filomeno, 1991:37/51). Quando é este o caso — osprincípios se expressam em dispositivos do ordenamento —,considerá-los normas jurídicas não costuma gerarcontrovérsias na doutrina ou jurisprudência.

A questão, porém, ganha contornos diversos quando sepropõe a existência de um princípio que nenhuma lei (ouqualquer outra norma jurídica) afirma expressamente. É ocaso, por exemplo, dos princípios da supremacia dointeresse público (direito administrativo), da preservação daempresa (direito comercial), da proteção do hipossuficiente(direito do trabalho) e outros mais.

O princípio do direito não expresso em dispositivo é —tal como os princípios de direito — revelado pelosestudiosos do direito. Claro que o ponto de partida não é a

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natureza humana, mas o direito positivo, editado pelasautoridades no exercício de suas competências. Odoutrinador, então, debruça-se sobre o ordenamentovigente, no pressuposto de que representa ou érepresentável por um conjunto lógico-sistemático deenunciados, e conclui, a partir dos dispositivos expressos,quais teriam sido os grandes parâmetros norteadores de suaedição. Quais teriam sido, em outros termos, os valoresfundamentais prestigiados pelas autoridades responsáveispela edição das regras de direito quando as elaboraram.Formula-os, então, como preceitos gerais que não podem serdesconsiderados na interpretação das leis e outras normas.

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Os princípios do direito, quandonão se expressam por um dispositivo,são revelados pela tecnologiajurídica. Debruçam os tecnólogossobre o ordenamento positivo eprocuram encontrar os valoresfundamentais que o inspiram.Sintetizam, então, esses valores empreceitos com a mesma estrutura dasnormas jurídicas.

A afirmação de que o ordenamento jurídico (ousegmento dele) possui princípios não expressos emdispositivos pressuporia, como dito, que esse ordenamentofora construído (ou, pelo menos, seria passível dereconstrução pela interpretação doutrinária) de forma lógica;representaria, em outros termos, um sistema congruente denormas. Sem tal pressuposição, não se poderiam sustentar

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os princípios não expressos em dispositivos.Aparentemente, se o direito positivo não pode ser elaboradoou descrito como um todo sistemático dotado deconsistência lógica, não há como postular que dosdispositivos expressos seria possível extrair os parâmetrosgerais norteadores de sua edição. De fato, sem aquelapremissa, simplesmente não existiriam tais parâmetros geraise, por consequência, a pesquisa dos princípios nãoexpressos seria despropositada. Argumentar no sentido deque o direito positivo apresenta tal característica — é lógicoou, pelo menos, descritível como lógico — parece revelar-seindispensável à articulação nos discursos jurídicos dosprincípios não expressos em dispositivos. Na verdade,porém, com ou sem ostentar o direito positivo realmente amarca da logicidade, transita pelos argumentos jurídicos anoção de que a intelecção do sentido e alcance de leis eoutras normas jurídicas deve ser feita em consonância comos parâmetros gerais que nortearam (ou deveriam ternorteado) a sua edição.

4. CONFLITO ENTRE NORMASO ordenamento jurídico de um país e a interpretação das

normas que o compõem resultam do trabalho de diversaspessoas. Tome-se o exemplo do Brasil e pense-se,inicialmente, nas muitas autoridades investidas decompetência para editar leis e outras normas. É um conjunto

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vasto de pessoas, em que se encontram os membros doCongresso Nacional (Câmara dos Deputados Federais eSenado), das 27 Assembleias Legislativas e das milhares deCâmaras de Vereadores; também nele estão os ocupantes decargos públicos com funções normativas, que representamalgumas centenas de milhares de pessoas. Se considerarmosque vigoram, no Brasil, leis e normas editadas há muitotempo, constataremos que também pessoas já falecidascolaboraram, ao seu tempo, com a elaboração doordenamento jurídico nacional aplicável atualmente.

As normas jurídicas, por outro lado, precisam sersistematizadas e interpretadas. Esse trabalho é feito porprofissionais do direito, doutrinadores e julgadores. A formacomo se interpreta determinada norma, no âmbito doutrinárioou jurisprudencial, influi na sua aplicação e, por isso,também deve ser considerada um trabalho de formação doordenamento jurídico. É incalculável, portanto, o número depessoas, vivas e mortas, que ajudam a formar o direitopositivo de um país da dimensão e complexidade do Brasil.

Claro que um trabalho coletivo dessa magnitude nãoconsegue gerar um produto lógico. Mesmo que algumdoutrinador tenha a pretensão de haver conferido logicidadeao direito nacional — ou à área a que se dedica —, ébastante provável que o resultado de seu esforço não sejaunanimemente aceito pelos demais doutrinadores ou pelosjulgadores. Haverá, com certeza, visões diferentes para a

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organização sistemática do mesmo material normativo, sejana compreensão global, seja em aspectos pontuais daqueleramo jurídico; e, a rigor, não há como decidir qual das visõestotal ou parcialmente contrapostas corresponderia à“verdadeira” sistematização daquele campo do ordenamentojurídico.

Desse modo, o direito, resultado do trabalho de umnúmero incomensurável de pessoas, é, por essência,desprovido de lógica. Normas são editadas por pessoasdiferentes, que vivem ou viveram em tempos diferentes, esão, após, estudadas e aplicadas por outras tantas pessoasdiferentes. Seria impossível pretender que o resultado dessaatuação coletiva fosse totalmente isento de incongruências.Quer dizer, em qualquer ordenamento jurídico há sempre apossibilidade de encontrar normas conflitantes queestabeleçam consequências diversas para o mesmo fato.

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O ordenamento jurídico écomposto de normas produzidas poruma imensa gama de pessoas(algumas delas já falecidas) einterpretadas e aplicadas por outrastantas pessoas. É, por isso,inevitável que apresenteincongruências. O conflito entrenormas (antinomias) deve sersuperado, para que o direitoaparente ostentar a segurança quedele se espera.

Dá-se o nome de “antinomia” à situação em queconflitam duas ou mais normas jurídicas. Se um dispositivolegal obriga certa conduta e outro proíbe a mesma conduta,

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está-se diante de um exemplo de antinomia.As antinomias devem ser superadas. Normas de

conteúdos inconciliáveis não podem ser aplicadassimultaneamente. A segurança que o direito positivo deveinspirar nas pessoas sujeitas às suas regras de condutapressupõe a existência de critérios para a eliminação dasantinomias. Uma das normas conflitantes deve prevalecersobre a outra. Em certos casos, o acionamento dos critériosde superação de antinomias implica concluir que uma dasnormas em conflito não vigora mais, foi revogada; emoutros, importa afirmar que uma delas é inválida; por fim, háhipóteses em que a superação da antinomia faz-se peladiscriminação dos limites de incidência de cada norma emconflito.

Os critérios de superação das antinomias são três:cronológico, hierárquico e o de especialidade.

Pelo critério cronológico, prevalece a norma antinômicaposterior em detrimento da anterior. Aqui se opera oreconhecimento de que a norma jurídica mais antiga foirevogada, ainda que tacitamente, pela mais nova. Supera-seo conflito pela negativa de vigência à norma anterior (Cap. 2,item 8).

O critério hierárquico, por sua vez, determina aprevalência da norma antinômica superior em prejuízo dainferior. Como visto acima (item 2.1), as normas jurídicas sãoorganizadas, no ordenamento, de forma hierárquica. A

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Constituição Federal, por exemplo, situa-se em grau dehierarquia superior ao das leis. O dispositivo de lei comconteúdo conflitante com o de norma constitucional não temvalidade. O que vem determinado na norma constitucional,portanto, deve ser obedecido em detrimento da previsãolegal em contrário.

Por fim, pelo critério de especialidade, a norma jurídicaespecial prevalece sobre a geral. Nesse caso, trata-se apenasde discriminar os âmbitos de incidência de cada preceito.Sempre que para um caso específico houver norma jurídicaprópria (especial), não se aplica o disposto em norma deâmbito de incidência mais largo (geral). No próprio CódigoCivil encontra-se exemplo. De acordo com o art. 1.033, II,depende do consenso unânime dos sócios a dissolução desociedade em duas hipóteses: a) quando contratada porprazo indeterminado; b) quando, contratada a sociedade porprazo determinado, quer-se dissolvê-la antes do vencimentodesse prazo. Chega-se a tal interpretação na medida em quea dissolução das sociedades contratadas por prazodeterminado já vencido vem disciplinada no inciso I daqueleart. 1.033. No mesmo Código Civil estabelecem os arts. 1.071,VI, e 1.076, I, que a dissolução da sociedade limitada, emqualquer caso, depende de votos correspondentes a trêsquartos do capital social. Pois bem, tendo-se em conta que oart. 1.087 prevê que a sociedade limitada dissolve-se nashipóteses do art. 1.044 e que este, por sua vez, reporta-se ao

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art. 1.033, configura-se a antinomia: de um lado dispositivoslegais que exigem unanimidade dos sócios para certashipóteses de dissolução de sociedade e, de outro, os quesubmetem a dissolução da sociedade limitada à vontade desócios que titularizem três quartos do capital social. Diantedesse conflito de normas, cabe indagar: se um sócio desociedade limitada com prazo indeterminado quiser dissolvê-la, ele deve convencer quantos dos demais sócios: todos(arts. 1.078, 1.044 e 1.033, II) ou os que bastem àcaracterização do quorum de três quartos do capital social(arts. 1.071, VI, e 1.076, I)? A superação da antinomia pelocritério da especialidade importa a prevalência da normaespecífica da sociedade limitada (especial) sobre asatinentes à generalidade das sociedades (geral).

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As antinomias são superadas pelaoperacionalização de três critérios:i) cronológico, que prestigia anorma posterior em detrimento daa n t e r i o r ; ii) hierárquico, queinvalida a norma inferior em vistado disposto na superior; iii) daespecialidade, que faz prevalecer anorma especial sobre a geral.

Quando os próprios critérios de superação dasantinomias entram em conflito, verifica-se uma antinomia desegundo grau. Se a norma A, anterior superior, conflita com an o r ma B, posterior inferior, a aplicação do critériocronológico leva à prevalência de A; mas, a se observar ocritério hierárquico para superação do mesmo conflito,resulta prevalente a norma B. Do mesmo modo, se as normasC, anterior especial, e D, posterior geral, são antinômicas, o

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critério cronológico aponta para a prevalência de C sobre D,mas o da especialidade indica o inverso, isto é, a da norma Dsobre C. Está-se, aqui e ali, diante de conflito não só entreduas normas, mas também entre dois critérios de superaçãode antinomias: de um lado, conflitam o cronológico e ohierárquico (A versus B) e, de outro, o cronológico e o daespecialidade (C versus D).

O conflito entre o critério cronológico e o hierárquicoresolve-se em favor deste último. Uma lei ordinária não podecontrariar preceito constitucional, mesmo que seja esteanterior. O critério da hierarquia é, por assim dizer, mais forteque o cronológico. Está relacionado à necessidade desegurança do direito, valor reputado mais importante que oaprimoramento dos preceitos normativos justificador docritério cronológico.

Por sua vez, o conflito entre o critério cronológico e o daespecialidade deve ser superado pela prevalência desteúltimo. Considera-se mais justa a disposição veiculada emnorma especialmente editada para determinadas situações. Anorma especial, em outros termos, não é revogada pelanorma geral. Nem esta, a rigor, por aquela. São diferentes osâmbitos de incidência da norma geral e da especial, aindaque coincidente o tema nelas versado. Aliás, no art. 2º, § 2º,da LINDB, o direito positivo brasileiro estabeleceu essasuperação da antinomia de segundo grau entre os critérioscronológico e da especialidade: “A lei nova, que estabeleça

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disposições gerais ou especiais a par das já existentes, nãorevoga nem modifica a lei anterior”.

Por fim, para a superação do conflito entre os critérioshierárquico e da especialidade (norma superior geralconflitante com inferior especial) não existe solução segura.Entram em choque, nesse caso, valores igualmenteimportantes, que são os da segurança jurídica e da justiça.Cabe, na verdade, à filosofia do direito discutir esta e outrashipóteses, em que os critérios de superação de antinomiasse mostram inoperantes, quer dizer, insuficientes àsuperação do conflito normativo (cf. Coelho, 1992:60/65). Otratamento tecnológico do tema não tem recursos paraavançar sobre essas searas.

5. LACUNASNo tratamento do tema das lacunas, distinguem-se

nitidamente as abordagens da filosofia do direito e datecnologia jurídica. Partindo de premissas diferentes enorteadas por objetivos distintos, tais abordagens sãoindependentes uma da outra. Enquanto a filosofia do direito— em particular, seu capítulo voltado à lógica jurídica —discute se existem ou não lacunas no ordenamento, atecnologia jurídica as admite sem grandes indagações e tratacomo ficção a afirmação da completude do ordenamentojurídico (cf., por todos, Rodrigues, 2002, 1:20/21); além disso,enquanto a filosofia do direito entrelaça a questão das

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lacunas e das antinomias numa conclusão aporética(Bobbio, 1960; Coelho, 1992:69), a tecnologia jurídica apontae estuda os meios de preenchimento (colmatação) daslacunas do ordenamento.

Por lacuna deve-se entender a ausência, numordenamento jurídico determinado, de qualquer normajurídica que verse especificamente sobre o fato em questão.É fácil perceber que os elaboradores do direito não sãocapazes de antever absolutamente todas as situações deconflito de interesses. A evolução dos costumes, odesenvolvimento da ciência e tecnologia, o aumento dacomplexidade das relações sociais dão ensejo aoaparecimento de situações não reguladas (de formaespecífica) pelo direito. Não há, por exemplo, norma jurídicaem vigor no Brasil, hoje, que discipline a gestação de óvulofecundado alheio (a “barriga de aluguel”), emboracorresponda a técnica já plenamente dominada pela ciênciamédica e a prática não repudiada pela moral. Se surgirconflito de interesses entre os envolvidos — discussão, porexemplo, sobre quem deve pagar despesas médico-hospitalares decorrentes de complicações pós-parto —, e aquestão for submetida ao juiz, como deve ser decidida?

De acordo com a lei brasileira (LINDB, art. 4º), diante deuma lacuna, o juiz deve decidir o caso de acordo com aanalogia, os costumes e os princípios gerais de direito. Istoé, a ausência de norma específica sobre a matéria em

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discussão judicial não justifica que o conflito de interessesreste infindável. Pelo contrário, o juiz sempre deve proferiruma decisão que ponha fim ao conflito. Dispositivosemelhante encontra-se na maioria dos direitos estrangeiros(Diniz, 1981:118/120). Desse modo, no exemplo dado, o juiznão pode deixar de decidir quem irá arcar com as despesasimprevistas sob a alegação de que não há norma jurídica emvigor disciplinando a matéria. Deverá, pelo contrário, imputaraos pais geradores do óvulo fecundado ou à gestante aobrigação de suportar tais despesas.

Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro

Art. 4º Quando a lei for omissa, ojuiz decidirá o caso de acordo com aanalogia, os costumes e osprincípios gerais de direito.

Pela analogia, o juiz deve buscar, no ordenamento emvigor, uma norma jurídica que diga respeito a situaçãosemelhante à do caso em julgamento. Já que não existe

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nenhuma norma que trate especificamente do caso,determina a lei que o juiz se valha de norma aplicável a fatosassemelhados. O emprego da analogia pressupõe que aautoridade com competência para disciplinar em termosgerais aquela matéria, quando fosse fazê-lo, tenderia aprestigiar os mesmos valores ou adotar iguais critérios aosque a inspiraram na edição de outra norma para uma situaçãopróxima.

A semelhança ou proximidade entre duas situações (anormatizada e a não normatizada) dependefundamentalmente da apreciação valorativa do juiz. Nãoexistem dois fatos tão diferentes que não se possa encontrarentre eles pelo menos um ponto de contato, assim como nãoexistem dois fatos tão iguais que não se possa distingui-losem pelo menos um aspecto. Postula, por isso, a doutrina quenão basta, à analogia, qualquer ponto de proximidade entreos fatos considerados; é necessário que seja essencial oelemento de semelhança entre eles (Diniz, 2002, 1:72/73). Ora,esse critério de pesquisa da essencialidade do fator deaproximação entre os fatos acaba reintroduzindo aapreciação valorativa do juiz na aplicação da analogia. Serãopróximos, em sua essência, os fatos que ele valorar comotais.

Não há, portanto, como estudar o emprego da analogiana colmatação de lacunas a não ser por exame dajurisprudência. Ilustro, assim, a matéria com o julgado que

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aplicou o art. 640 do Código Civil de 1916 (correspondenteao art. 1.324 do Código Civil atual) analogicamente ao casode administração de bens por um dos cônjuges separados.Naqueles dispositivos, a lei preceitua que a administração debem em condomínio por um dos condôminos faz presumirque ele é o representante de todos os outros, enquanto nãohouver oposição destes. Nada diz a lei, porém, relativamenteà administração dos bens de cônjuges separados (antes dapartilha). Suprimindo a lacuna pela aplicação analógica danorma referente ao condomínio, o referido julgadoconsiderou que o cônjuge que administra os bens ainda nãopartilhados sem a oposição do outro deve ser reputadorepresentante deste último (cf. Diniz, 2002:71).

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A analogia é o procedimento decolmatação de lacunas em que o juizdecide o caso para o qual não existenorma específica segundo o dispostoem norma atinente a caso análogo(isto é, semelhante). O fato nãoregrado e o regrado devemapresentar um ponto de aproximaçãoessencial, que autorize concluir queo legislador, se fosse normatizar oprimeiro, provavelmente adotariaregra similar à que adotou para osegundo.

Outro instrumento de superação de lacunas é a decisãodo caso não normatizado de acordo com os costumes.

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Aplica-se, aqui, uma regra consuetudinária, isto é, resultantede uma prática reiterada e difundida entre determinadossegmentos sociais e tida, pelas pessoas que a observam,como conduta obrigatória. Para que o costume possa suprira lacuna, é necessária a convergência desses doisrequisitos: o uso reiterado (face externa) e a convicção deque aquele comportamento é socialmente obrigatório (faceinterna). Apenas a reiteração de certa prática, sem aconvicção, pelas pessoas que a adotam, de suaobrigatoriedade, não é suficiente para a caracterização docostume de que trata o art. 4º da LINDB.

O costume pode ser referido pelo próprio direitopositivo como o critério para o juiz decidir determinadaquestão. O art. 569, II, do CC, ilustre-se, estabelece que, senão tiver sido ajustado o prazo para pagamento do aluguel,o locatário deve pagá-lo “segundo o costume do lugar”. Oart. 445, § 2º, do CC, prevê que, à falta de lei especial, será odos “usos locais” o prazo para o comprador de animaisreclamar por vícios. Cuida-se, nesses dois exemplos, decostume secundum legem.

Há, por outro lado, o costume sedimentado em sentidooposto ao prescrito no direito positivo. É chamado, então,de costume contra legem. Nesse caso, a norma é ineficaz —já que as pessoas observam como juridicamente obrigatóriaa conduta oposta à prescrita — e convém à autoridadelegiferante verificar se não seria melhor substituí-la ou

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simplesmente revogá-la (cf. Maximiliano, 1924:192). Atecnologia civilista repudia prestigiar o costume contralegem, porque isso significa negar aplicação à norma jurídicaque, embora ineficaz, é existente, vigente e válida (Pereira,1961:75). Há, porém, julgados que prestigiam os costumescontra legem e deixam de aplicar a norma positiva, porconsiderarem o respeito às práticas locais uma solução maisjusta e fiel às intenções das partes.

Por fim, o costume pode ser compatível com as normaspositivadas, no sentido de completá-las em suas omissões.Veja-se o costume das empresas produtoras de programastelevisivos, reunidas nas feiras internacionais do setor, deatribuírem a propriedade sobre o formato destes a quemprimeiro investir, no mundo, na sua concepção e produção.Trata-se de costume praeter legem — é ele o referido naregra de colmatação de lacunas.

O costume (ou aplicação da regraconsuetudinária) é o procedimentode colmatação de lacunas em que ojuiz decide com base numa práticareiterada (elemento externo)

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reiterada (elemento externo)vivenciada como socialmenteobrigatória (elemento interno).Apenas o costume praeter legem (istoé, o compatível com o direitopositivo) deveria servir aopreenchimento das omissões legais,uma vez que o respeito ao costumecontra legem (o incompatível com odireito posto) importa a negativa deeficácia a norma jurídica existente,válida e vigente. Muitas vezes,porém, o juiz considera a regraconsuetudinária decorrente desteúltimo mais justa e fiel às intençõesdos sujeitos envolvidos, e a aplicaem detrimento da solução legal.

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A referência aos costumes na solução de conflitos deinteresses está perdendo importância em decorrência doprocesso econômico de globalização. A eliminação dasfronteiras nacionais na realização do comércio faz-se pelaharmonização das normas jurídicas que influenciam o preçodos produtos ou serviços (Coelho, 1998, 1:47/62). Aharmonização é um processo de positivação de normas eimplica necessariamente o sacrifício de práticas dedeterminados segmentos da economia incompatíveis com ospadrões globais das mais fortes economias capitalistas. Emoutros termos, a globalização exige a regência das relaçõeseconômicas por normas jurídicas harmonizadas, de igualcomando, e isso é incompatível com a sobrevivência decostumes localizados (necessariamente plurais) dotados deeficácia jurídica.

Os princípios gerais de direito são também meio decolmatação de lacunas previsto no art. 4º da LINDB. Como jávisto (item 3), são os princípios de direito os preceitosafirmados pela doutrina como derivados da natureza do serhumano. A afirmação do direito à vida, à liberdade, àpropriedade, de que todos nós seríamos titulares, nopreenchimento de lacunas, exemplifica o emprego dessemeio.

Não se deve, contudo, considerar que nos meios legais

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de superação de omissões, o art. 4º da LINDB descarta, porcompleto, os princípios gerais do direito não expressos emdispositivos. Como se lembra, a afirmação desses princípiosdo direito pressupõe um ordenamento lógico (ou, pelomenos, passível de descrição como tal). Fundamentam-se,assim, nas normas positivadas alguns preceitos gerais que,além de auxiliarem na interpretação destas, também podemnortear os julgamentos sobre casos não regradosespecificamente no ordenamento. Na medida em que se tomaesse ordenamento como um conjunto lógico- -sistemático denormas, dotado de congruência, deve-se considerar que, setal ordenamento fosse contemplar uma nova normaespecífica sobre determinada matéria, ela certamenteobedeceria aos princípios gerais nele adotados. Servem osprincípios, assim, também para revelar qual seria a norma queo ordenamento a que se referem ostentaria caso viesse a sereditada. A ausência de normas específicas sobre um caso emjulgamento pode, portanto, ser suprida também pelosprincípios concluídos do ordenamento jurídico incidente.

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Os princípios (de direito ou dodireito) são meios de preenchimentode lacunas. Ambos são reveladospela doutrina, sendo que osprincípios de direito decorrem danatureza humana (direito à vida, aotrabalho, à felicidade etc.), enquantoos princípios do direito derivam dasnormas positivadas (princípio datutela do hipossuficiente pelo direitodo trabalho, por exemplo).

As soluções legais de colmatação de lacunas sãohierarquizadas. Quer dizer, em primeiro lugar, o juiz, diante daausência de norma específica para o caso em apreciação,deve valer-se da analogia. Se não existir, no ordenamento,nenhuma norma aplicável a situação semelhante, ele deve

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pesquisar se há costume que indique a regra para a soluçãodo conflito. Não havendo costume, o juiz deve socorrer-sedos princípios gerais. Claro que, revelando-se frutífera aaplicação analógica, não deve o juiz invocar costumes (a nãoser para reforçar a fundamentação da decisão já adotada);assim como somente se obriga à dedução dos princípiosgerais se não pôde preencher a lacuna sucessivamente pelaanalogia e costumes.

No exemplo acima, da “barriga de aluguel”, diante daomissão da lei sobre o sujeito a quem deve ser imputada aobrigação de arcar com as despesas médico-hospitalaresderivadas das complicações pós-parto, deveria o juiz,inicialmente, buscar norma pertinente a situação análoga.Digamos que, para os valores desse juiz, haja similitudeentre a situação da gestante e a de empregada. Nesse caso,ele poderia entender as complicações pós-parto como algosimilar a um acidente de trabalho e decidir que caberia aospais geradores do embrião, como contratantes em posiçãopróxima a de empregadores, o pagamento dessas despesas.Se, contudo, para os valores do juiz, a situação da gestantese aproxima à de um prestador de serviços autônomo, eletenderia a concluir que são dela os riscos da atividade,incluindo o pagamento de despesas médico-hospitalaresimprevistas. Considerando, por outro lado, esse mesmo juizque a situação da gestante não se aproxima da de nenhumoutro sujeito de direito, seu entendimento seria o de que não

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existe, no ordenamento jurídico, norma pertinente a qualquersituação semelhante à dela. Não se poderia operar, dessemodo, a analogia. Caberia, em seguida, pesquisar aexistência de costume.

Deveria, então, o juiz nortear sua pesquisa sobre aexistência de costume pela indagação “os demais casais quecontrataram a gestação de seus embriões por outra mulhersentiam-se obrigados a pagar eventuais despesas médico-hospitalares imprevistas?” Se encontrar resposta a essapergunta e considerar que existe certo costume, o juiz julgaráo caso segundo a regra consuetudinária (isto é, segundo aprática reiterada tida por obrigatória). Quer dizer, se concluirque a maioria daqueles casais tinha como deles a obrigaçãode pagar por eventuais despesas imprevistas, decidirá nessesentido; caso contrário, imputará à gestante a obrigação dearcar com tais despesas.

Mas, em não encontrando o juiz resposta àquelaindagação, deve reputar inexistente qualquer costume (e,portanto, regra consuetudinária) capaz de auxiliá-lo nasuperação da lacuna e, em seguida, valer-se dos princípiosgerais para resolver a questão. Ele pode, por exemplo,invocar o princípio de repúdio ao enriquecimento sem causa,entender que os titulares do embrião estão auferindovantagem indevida e favorecer a gestante com sua decisão;ou, pelo contrário, invocar o princípio da autonomia davontade e concluir que, se as partes não contrataram sobre a

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matéria, cada um deve arcar com as despesas para amanutenção da própria saúde.

Em qualquer dessas hipóteses e independentemente dequem acabe suportando o ônus pelas despesas imprevistas,o juiz terá proferido uma decisão válida.

Para concluir, cabe indagar: e se o emprego dos trêsmeios de colmatação de lacunas indicados no art. 4º daLINDB revelar-se infrutífero? Quer dizer, como deve o juizdecidir o processo se não encontrar nenhuma norma jurídicaespecífica ou atinente a situação análoga no ordenamento,se não existir costume sedimentado e vivenciado comosocialmente obrigatório e se também não puderem auxiliar denenhum modo os princípios de direito ou do direito? Nessecaso, responde a doutrina, ele deve guiar-se pela equidade(Maximiliano, 1924:174/175). Em outros termos, deve decidira demanda pela distribuição do objeto do litígio entre oslitigantes, segundo alguma regra de proporcionalidade(patrimônio, participação no evento, importância dointeresse etc.). No exemplo acima, o juiz poderia, porexemplo, determinar que as despesas seriam rateadas entreas partes, cabendo metade aos titulares do embrião emetade, à gestante. Estaria julgando por equidade (Cap. 4,item 5.3).

6. ATRIBUTOS DA NORMA JURÍDICAAs normas jurídicas ostentam quatro diferentes

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atributos: existência, vigência, validade e eficácia (Cap. 2,itens 4 a 7). São atributos relativamente independentes, nosentido de que a falta de um ou mais deles não implica,necessariamente, a de outro.

A existência da norma jurídica é atributo relacionado àregular conclusão dos procedimentos e formalidades de suacriação. É no próprio ordenamento jurídico que se encontramtais procedimentos e formalidades, que são os pressupostosjurídicos de sua elaboração. Para que exista norma jurídica énecessário observá-los. Uma resolução do ConselhoMonetário Nacional (CMN) só passa a existir, por exemplo,depois que o texto dos dispositivos correspondentes éaprovado pela maioria dos membros daquele órgão(reunidos em atenção à convocação feita com determinadosrequisitos) e é, em seguida, objeto de publicação pelaimprensa nacional a cargo do Banco Central. Enquanto nãocumpridos esses procedimentos e formalidades, a resoluçãoem foco não existe. Note-se que, antes da reunião do CMN,os setores técnicos do governo preparam um rascunho ouminuta da resolução, cujo nome técnico é “projeto”. Épossível, também, que o projeto receba as contribuições eobjeções de todos os membros do CMN, ou de suaassessoria. Antes mesmo da reunião convocada para adiscussão e aprovação formais da resolução, é provável quetodos os membros do órgão já estejam de acordo com otexto; isso, porém, não basta para conferir existência à

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norma. Será indispensável a obediência aos pressupostosjurídicos de criação (previstos em leis, decretos ou outrasresoluções) para que ela ostente tal atributo.

A norma jurídica pode ostentarquatro atributos relativamenteindependentes: existência, vigência,validade e eficácia.

A existência é o atributo ligado aoatendimento dos pressupostosjurídicos de criação da norma,como, por exemplo, a publicação naimprensa oficial. Quando atendidostais pressupostos, a norma existe.

Uma vez cumpridos regularmente os procedimentos eformalidades estabelecidos para a criação de uma norma

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jurídica, pode-se dizer que ela existe. Variam osprocedimentos e formalidades de norma para norma.Examinaram-se já, com vagar, os pertinentes aos da leiordinária (Cap. 2, item 4). Qualquer que seja a norma,contudo, os pressupostos jurídicos de sua criaçãoestabelecem, sempre, a formalidade da publicação naimprensa oficial (nacional, estadual ou municipal). Destina-se a garantir o conhecimento da norma por quem tenhainteresse em fazê-lo.

O atributo da vigência está relacionado à exigibilidadedo comando normativo. Quando a norma está em vigor, seuspreceitos são exigíveis. Antes da vigência, ao contrário, nãotêm força ainda para se impor. Em outros termos, a norma emvigor é a que já se encontra apta a produzir os efeitosjurídicos que dela são esperados. Se vai realmente produzi-los ou não é questão ligada a atributo diverso (o da eficácia).A vigência, pois, é a aptidão para produzir efeitos.

Para entrar em vigor, a norma deve existir,necessariamente. Não há vigência sem existência.Entretanto, a norma jurídica pode existir e ainda não estarvigendo. O Código Civil, por exemplo, existe desde o dia 11de janeiro de 2002, quando seu texto foi publicado no DiárioOficial da União. Não vigorou, porém, pelo prazo de um ano(art. 2.044). Somente em 12 de janeiro de 2003, isto é, no diaseguinte ao prazo de um ano após a publicação, começarama vigorar as normas jurídicas nele abrigadas.

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A vigência é o atributo relacionadoà aptidão para produzir os efeitosesperados da norma jurídica.Quando a norma está apta aproduzir efeitos, ela vigora;enquanto não tem aptidão, mesmoexistente, ainda não entrou em vigor.Se ela irá mesmo produzir os efeitosque dela se esperam, é questãoligada a outro atributo, o daeficácia.

O tempo entre a publicação da norma jurídica e o inícioda vigência é referido pela expressão vacatio legis. Oobjetivo desse intervalo é o de possibilitar que todos os

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sujeitos à nova norma possam estudá-la e se prepararadequadamente para o seu cumprimento. Na maioria dasvezes, a norma jurídica entra em vigor na data de suapublicação. Dependendo, contudo, da complexidade queencerra, faz-se necessário postergar a vigência em dias,meses ou até mesmo anos. Sendo este o caso, a próprianorma jurídica deve estabelecer o início de sua vigência(Cap. 2, item 5).

O terceiro atributo da norma jurídica é a validade. Dizrespeito à sua conformação ao ordenamento jurídico a quepertence. Se o conteúdo de certa norma jurídica contraria ode outra norma hierarquicamente superior, a primeira éinválida. Atende aos pressupostos jurídicos de sua criação(existe) e está apta a produzir efeitos (vigora), mas não vale.

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A validade da norma jurídica éatributo pertinente à suacompatibilização com as normas dehierarquia superior. A lei é inválidase tem conteúdo contrário ao daConstituição, por exemplo.

Em geral, a norma jurídicaexistente e em vigor é válida. Masela pode existir, ter vigência e nãoser válida.

A validade da norma jurídica é questão a ser decididapelo Poder Judiciário. Enquanto não for proferida decisãodefinitiva e de efeitos gerais que invalide determinadanorma, não se deve considerá-la inválida. A norma jurídicade validade discutível é válida. Quem não se conforma emobedecê-la deve, na ação própria, pedir ao juiz que declare asua invalidade. Se o juiz não acolher o pleito ou mesmo

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enquanto ele não se pronunciar, a desobediência à normaexporá o sujeito às sanções correspondentes. Ninguémpode, por sua própria iniciativa, desobedecer norma jurídica(existente e vigente) porque a considera inválida. Dequalquer forma, se o Poder Judiciário concluir que a normaem questão não conflita com nenhuma outra de superiorhierarquia, sua validade será — por assim dizer —confirmada.

O último dos atributos da norma jurídica é o da eficácia,ligado à sua aplicação. Eficaz é a norma que produz osefeitos dela esperados. Quando o direito penal tipificava oadultério como crime (até 2005), esperava-se, em primeirolugar, que pessoas casadas não mantivessem relaçõessexuais fora do casamento; em segundo, que fossempunidos os adúlteros. Se esses efeitos não se verificavam,podia-se dizer que aquela norma era ineficaz; se severificavam, eficaz.

A eficácia é atributo independente da vigência e davalidade.

Em geral, a norma vigente é eficaz. As pessoas que adescumprem são punidas, de acordo com as sanções civis,penais ou administrativas cabíveis. Se a norma de direito dotrânsito obriga todos os passageiros do automóvel a usaremo cinto de segurança, ela será tanto mais eficaz quanto maismultados forem os que a descumprirem. Mas a normajurídica pode viger, isto é, estar apta a produzir os efeitos

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dela esperados e, por várias razões, não os produzir. Ela évigente e ineficaz. Geralmente, isso se verifica quando anorma é dissociada da realidade que se pretende regular. Seo governo resolve tabelar o preço de determinado bem deconsumo e segue-se o desabastecimento, só quem sedispuser a pagar preço superior ao tabelado encontraráquem lhe venda o produto com qualidade. Nesse caso, anorma de tabelamento dos preços vigora, mas não temeficácia. Não há, assim, imediata correlação entre vigência eeficácia.

Igual independência apresenta a eficácia diante davalidade. Se a norma jurídica contraria o disposto em normade maior hierarquia e, mesmo assim, é observada, ela éinválida e eficaz. Se respeita as normas de maior hierarquia,mas não é obedecida, será válida e ineficaz. Se confrontacom a norma superior e não produz seus efeitos, ostenta osatributos da invalidade e da ineficácia. Finalmente, se écompatível com as demais normas do ordenamento e osefeitos que dela se esperam são alcançados, a norma jurídicaé válida e eficaz.

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A eficácia da norma jurídica dizrespeito à produção dos efeitos delaesperados. Ineficaz é a normajurídica que, embora dotada deaptidão para tanto (isto é, vigente),não alcança os efeitos pretendidospela autoridade que a editou.

Validade e eficácia não sãointerdependentes. A norma comvalidade pode ser eficaz ou ineficaz,assim como a norma com eficáciapode ser válida ou inválida.

Note-se que a eficácia comporta graduações. Umanorma jurídica pode ser parcialmente eficaz, no sentido deque produz seus efeitos em algumas regiões do País e não

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em outras; ou é obedecida e aplicada por pessoas dedeterminado padrão cultural, e não por outras etc. Dessemodo, quando o direito do trabalho obriga que osempregadores registrem os seus empregados, o objetivo éassegurar os direitos destes últimos, bem assim orecolhimento regular das contribuições para o Seguro Social(INSS). Quando o empregador registra seus empregados,tais efeitos se verificam; quando não registra, dá-se oinverso. Como, no Brasil, parte dos empregadores obedecema esta regra (as grandes empresas, bancos etc.) e parte, não(os agentes da economia “informal”), pode-se dizer queaquela norma do direito do trabalho é parcialmente eficaz.

7. NORMAS COGENTES E NORMAS SUPLETIVASPara o direito privado (particularmente o civil), é

importante distinguir as normas jurídicas cogentes e assupletivas. As primeiras (também chamadas de normas deordem pública) são as normas cuja aplicação não pode serafastada pela vontade dos sujeitos de direito. Trata-se depreceitos que atendem a interesses que transcendem os daspessoas diretamente envolvidas ou que pressupõem sergrandemente arriscado deixar apenas ao arbítrio do própriosujeito a administração de alguns de seus interesses.

Ao proibir o casamento de pessoas casadas, o art. 1.521,VI, do CC tutela interesse da sociedade brasileira em verpreservado determinado valor moral e cultural expresso na

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monogamia como base das relações matrimoniais. É normacogente. Assim, mesmo que três ou mais pessoas queiram,de forma consciente e inequívoca, constituir uma relaçãopoligâmica, não poderão todas elas se casar. Ou, por outravia, ainda que nenhum deles se sinta prejudicado pelapoligamia, não poderão, pelo direito brasileiro, estabelecermúltiplos vínculos matrimoniais. Não se encontra emquestão, aqui, apenas a tutela dos interesses individuais dossujeitos diretamente envolvidos, mas os da sociedadebrasileira quanto à preservação de um de seus tradicionaisvalores.

Aqui a norma cogente restringe os efeitos jurídicos davontade das pessoas em defesa da sociedade.

Quando, por outro lado, o art. 1.707 do CC estipula queo credor dos alimentos não pode renunciar ao seu direito,estabelece também uma norma cogente. Considera-se queninguém é suficientemente senhor do próprio destino aponto de poder decidir sobre o assunto. Se, hoje, o credordos alimentos se encontra em situação econômica epatrimonial que lhe permite viver sem apertos, pode ocorrerde, no futuro, deparar com graves dificuldades até mesmopara sobreviver. A lei pressupõe que deixar a administraçãodesse interesse (“futura necessidade de ser alimentado”)simplesmente à vontade do sujeito não é a melhor soluçãojurídica para o caso. Desse modo, se alguém manifesta —oralmente ou por escrito — a vontade de renunciar ao direito

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aos alimentos, esse ato, por mais inequívoco que seja, nãoproduz efeito nenhum; quer dizer, em precisandofuturamente de alimentos, essa pessoa poderá reclamá-los eo devedor não poderá furtar-se à obrigação com fundamentonaquela pretensa renúncia.

Em casos tais, a norma cogente restringe os efeitosjurídicos da vontade de uma pessoa com o objetivo deprotegê-la.

Desse modo, se os interesses objeto de tutelatranscendem os dos sujeitos diretamente envolvidos ou se aadministração do interesse pelo próprio interessado éconsiderada arriscada demais, a vontade das partes não temo efeito de evitar a aplicação da norma. É esta, nesses casos,cogente.

As normas supletivas são as que podem deixar de seraplicadas por vontade das partes diretamente envolvidas.Destinam-se, como sua designação sugere, a suprir avontade dos sujeitos de direito. São muito comuns nadisciplina dos contratos. Considera-se, nesse caso, quenenhum valor social está em risco e as partes têm plenascondições de administrar os respectivos interesses. Assim, anorma jurídica deve cuidar apenas dos aspectos a respeitodos quais, por desatenção ou intencionalmente, não houvemanifestação de vontade. Veja-se o art. 132 do CC, quepreceitua a regra sobre contagem dos prazos e exclui dacontagem o primeiro dia. Ela é expressa no sentido de que

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não se aplica a regra de exclusão se houver “disposiçãoconvencional” (isto é, cláusula do contrato) em contrário.Assim, se os contratantes limitam-se a estabelecer quedeterminada obrigação deverá ser cumprida em trinta dias acontar da data do contrato, incide a regra do art. 132 do CC,e se exclui do cômputo o primeiro dia. Mas os contratantespodem chegar a acordo no sentido de que a contagem seráfeita por critério diverso, que compute o primeiro dia noprazo contratado. Se assim fizerem, não se aplica odispositivo legal. Trata-se, então, de norma supletiva.

As normas jurídicas sãoclassificadas em supletivas oucogentes.

As normas supletivas, por seupróprio conteúdo ou combinadascom o princípio da autonomia davontade, não são aplicadas se ossujeitos interessados pactuarem emsentido contrário. Sua aplicação é

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sentido contrário. Sua aplicação ésempre subsidiária à vontade daspartes do negócio jurídico. Apenasnão tendo havido manifestaçãodestas, aplica-se a norma jurídica denatureza supletiva.

Já as normas cogentes (ou deordem pública) são aquelas cujaaplicação não pode ser afastada pormera vontade dos sujeitos de direitoenvolvidos.

Outros exemplos de normas supletivas podem serencontrados nos arts. 233, 287, 296, 327, 354, 450, 485, 490,502, 533, I, 551, 552, 566, I, 578, 619, 631, 698, 704, 711, 713,714, 728, 770, 812, 917, 989, 1.331, § 5º, 1.334, § 2º, 1.348, § 2º,1.352, parágrafo único, 1.392, 1.411, 1.421, 1.427, 1.488, § 2º, e1.507, § 2º, do CC. Em todos eles (e em muitos outros), aprópria norma é expressa no sentido de que ela se aplica

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exceto se os sujeitos de direito estabeleceram diversamente.Nessas hipóteses, em que a natureza supletiva da normajurídica decorre de expressa menção no dispositivocorrespondente, não costuma gerar controvérsia a suaaplicação subsidiária ao contrato (isto é, apenas nosaspectos que o instrumento contratual não disciplina). Mashá normas supletivas em que a aplicação subsidiária não éexpressa, mas deriva da articulação do dispositivocorrespondente com o princípio da autonomia da vontade.

8. ONDE ESTÃO AS NORMAS JURÍDICAS?As normas jurídicas estão na memória de algumas

pessoas.Considero essa questão muito importante. A norma

jurídica não se encontra no papel impresso em que foipublicada, nem em qualquer outro lugar fora da mente dealgumas pessoas.

Costuma-se entender o ordenamento jurídico (e asnormas que o integram) como dotado de existência separadadas ideias que sobre ele (e elas) fazem os estudiosos dodireito. Afirma-se que o ordenamento é resultado da vontadedas pessoas investidas de autoridade para editar normas(constituintes, legisladores, administradores comcompetência normativa etc.), vontade esta que atende adeterminados pressupostos formais (aprovação solene,publicação etc.) e é descrita pela doutrina por meio de

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enunciados científicos. O ordenamento, por essa concepção,seria algo diferente do conjunto de lições doutrináriasesclarecedoras do conteúdo das normas nele existente. Estaé a concepção dos seguidores de Kelsen, entre outros.

Contudo, a separação entre o ordenamento jurídico, deum lado, e a interpretação que a doutrina faz das normasjurídicas, de outro, é falsa. O que existe é a apropriaçãomental, por algumas pessoas, das normas jurídicas em vigor.Quer dizer, nem todos conhecem o direito, mas apenascertos homens e mulheres que o estudam, com ou semmétodo, ao longo de vários anos. Proponho designá-los pelaexpressão “comunidade jurídica”, um difuso conjunto depessoas cujo trabalho ou função são ligados à superaçãodos conflitos de interesses em sociedade. Em razão dasprofissões ou funções que exercem os membros dacomunidade jurídica (professores de direito, advogados,juízes, peritos judiciais etc.), são eles que definem (ouajudam a definir) o significado das normas, bem como suaexistência, vigência, validade e reconhecimento do grau deeficácia.

As normas jurídicas estão, pois, na memória dosmembros da comunidade jurídica.

Se os doutrinadores consideram que uma norma temdeterminado conteúdo, mesmo que a autoridade responsávelpor sua edição tivesse tido a vontade de lhe conferirconteúdo diverso, acabará, pelo funcionamento do sistema

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jurídico (isto é, do sistema de solução de conflitos deinteresses desenvolvido pelas sociedades democráticas donosso tempo), prevalecendo o entendimento doutrinário. Osestudantes se formarão lendo os livros escritos pelosdoutrinadores e, quando forem exercer a profissão deadvogado, promotor de justiça ou juiz, farão uso dosensinamentos aprendidos. A vontade daquela autoridadeperder-se-á nas brumas do tempo. Restará apenas a formacomo os membros da comunidade jurídica (ou os seusintegrantes especializados na área ou a maioria destes)entendem e aplicam a norma. No final, os conflitos deinteresses serão normalmente resolvidos a partir da normajurídica, de acordo com o significado que lhe é atribuído pelacomunidade jurídica.

As normas jurídicas encontram-sena memória de algumas pessoas, quesão homens e mulheres comprofissão ou função ligada aofuncionamento do direito. Elescompõem a comunidade jurídica.

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Se os membros da comunidadejurídica especializados emdeterminada área (ou a maioriadeles) passam a compartilhar de ummesmo entendimento sobre osignificado de certa norma jurídica,este prevalecerá, ainda que nãocoincida com o significado imediatodo texto dos dispositivos em que seassenta.

Também a existência, vigência,validade e eficácia da normajurídica resultam de entendimentopredominante sobre esses atributosentre os especialistas da área queintegram a comunidade jurídica.

Não existe norma jurídica fora da

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Não existe norma jurídica fora damemória dessas pessoas.

Não existindo ordenamento jurídico fora da memória demembros da comunidade jurídica e tendo as normas oconteúdo que lhes emprestam esses membros, conclui-seque a norma pode mudar de significado em decorrência deprocessos (retóricos) de disseminação de convencimento.Se os membros da comunidade jurídica especializados naárea pertinente alterarem seu entendimento sobredeterminada norma jurídica, o seu conteúdo se altera, já queela não existe senão na memória daquelas pessoas.

Isto não quer dizer, porém, que a norma jurídica nãotenha conteúdo nenhum ou, melhor, que pode comportarqualquer conteúdo. Há balizas que nem o maior esforçoargumentativo consegue ultrapassar. Tais balizas sãoerguidas pelos valores (ideologia) e conceitos incorporadospelos membros da comunidade jurídica.

Argumentar contra o entendimento imediato da norma,largamente aceito pela comunidade jurídica, é tarefa árdua,plena de obstáculos e desafios. Vencidos uns e outros,porém, podem-se convencer algumas outras pessoas dacomunidade jurídica a partilhar do novo entendimentoproposto; pode-se, até mesmo, conquistar a opinião damaioria dos especialistas da área pertinente. Dependendo do

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número ou da qualificação dos que passam a adotar oargumento, chega mesmo a se modificar o conteúdo danorma. Se essa difusão, entretanto, não se verifica, atendência é a comunidade jurídica considerar aqueleargumento um equívoco na intelecção da norma.

9. FLEXIBILIZAÇÃO DAS NORMAS JURÍDICASO direito, como visto, é um complexo sistema de

superação de conflitos de interesses manifestados emsociedade. É o sistema criado por meio de um longoprocesso histórico e aperfeiçoado pelas sociedadesdemocráticas consolidadas no século XX. Nofuncionamento desse sistema, a norma jurídica é a principalreferência. O advogado decidirá por certas estratégias nadefesa das pretensões de seu cliente, em função da normaou normas aplicáveis ao caso. Os advogados, no processojudicial, sempre que se discutirem questões “de direito”,afirmarão categoricamente que a norma jurídica ampara ointeresse de seu cliente e não o da parte adversa. O juizsempre argumentará no sentido de que está aplicando anorma. Nos livros de doutrina encontrar-se-ão lições queprocuram fixar o adequado significado de normas em vigor.Em suma, o centro das atenções, em qualquer argumentojurídico, é sempre a norma (existente, vigente, válida, eficaz eaplicável).

Contudo, para que possa cumprir satisfatoriamente sua

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função de superar os conflitos de interesses manifestadosem sociedade, a partir da norma jurídica, o direito necessitaflexibilizá-la. A rigidez na atribuição de conteúdo às normasimpede a concretização de valores quando a organizaçãosocial apresenta crescente complexidade.

As normas jurídicas devem serflexíveis, para que possam, numasociedade democrática complexacomo a brasileira do nosso tempo,cumprir sua função de nortear asuperação dos conflitos deinteresses.

Por isso, a tecnologia jurídica desenvolve e acomunidade jurídica opera diversos padrões argumentativosque flexibilizam o conteúdo das normas jurídicas, semcomprometer sua condição de principal referência do direito.Duas interpretações diversas sobre a mesma norma

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convivem, sem dificuldades, no interior do discurso jurídico.A inexistência de norma específica sobre determinadaconduta pode significar que ela é permitida (já que ninguémé obrigado a fazer ou deixar de fazer algo, senão em virtudede lei, diz o art. 5º, II, da CF) ou, ao contrário, que ela éproibida ou obrigatória (já que se trata de lacuna a serpreenchida pela aplicação de norma análoga, costumes ouprincípios gerais de direito, como preceitua o art. 4º daLINDB). São exemplos de padrões argumentativos quepossibilitam manusear o significado das normas jurídicassegundo as conveniências ditadas pelos valores a seprestigiarem na superação de conflitos de interesses. Muitosoutros padrões existem, todos eles tendo por objetivo, aomesmo tempo, preservar a norma como principal referênciado direito e dotar-lhe de flexibilidade suficiente para norteara superação dos conflitos de interesses.

A norma jurídica, mais que flexível, é flexibilizável.

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Capítulo 4

INTERPRETAÇÃOE APLICAÇÃO DA

LEI1. INTRODUÇÃO

A simples leitura do dispositivo em que se expressa anorma jurídica não é, por vezes, suficiente para possibilitar acompreensão exata do seu sentido e alcance. Em primeirolugar, porque não raramente se depara com expressõestécnicas, que apenas a satisfatória formação profissionalpossibilita conhecer. Termos como “prescrição”,“condição”, “comoriente”, “solidariedade” e tantos outros

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possuem, ao lado de seu significado corrente, uma ou maisdefinições técnicas, que, via de regra, apenas osprofissionais do direito dominam com familiaridade.

Além disso, nem sempre a norma jurídica se abriga numúnico dispositivo, sendo necessário articular o sentido destecom o de outro ou outros para a adequada delimitação doalcance do comando. Quem lê, isoladamente, o art. 174 doCC não consegue extrair todo o sentido da norma jurídica.Nele, a lei dispôs que “é escusada a confirmação expressa,quando o negócio já foi cumprido em parte pelo devedor...”.Ora, isolado de outros dispositivos, esse artigo sugeriria quetodo e qualquer negócio ainda não cumprido pelo devedorprecisaria ser objeto de confirmação expressa, o que não écorreto. Prestando-se atenção, agora, ao disposto no art. 172desse mesmo Código, aclara-se o comando. Neste último,estabeleceu a lei que “o negócio anulável pode serconfirmado pelas partes...”. Articulando-se os doisdispositivos, chega-se à norma jurídica: o cumprimento,ainda que parcial, pelo devedor de um negócio jurídicoanulável equivale à confirmação expressa deste.

Por fim, como é resultado de obra humana, a normajurídica nem sempre está perfeitamente escrita; quer dizer, hánormas que não se expressam por dispositivo oudispositivos claros e de boa redação. É mais comum do queseria desejável, no Brasil, a aprovação de leis e outrasnormas jurídicas mal redigidas. Se a imprecisão linguística e

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mesmo a falta de estilo não chegam a confundir ou acomprometer a intelecção da norma, não há nenhumproblema para o direito: lamenta-se o empobrecimento doportuguês e aplica-se a regra. Quando, porém, obscurecer osentido que a autoridade pretendia externar, gerandoambiguidades ou falta de sentido, a norma só poderá seradequadamente aplicada após a precisão de seu conteúdopela doutrina ou jurisprudência.

Nesses casos — aclaramento dos termos empregados,articulação de dois ou mais dispositivos ou eliminação deobscuridades ou falta de sentido — e em alguns outros, asimples leitura do texto normativo nem sempre é suficientepara compreender a norma e, se for o caso, aplicá-laeficientemente na superação de conflitos sociais. Para essassituações, desenvolveu a tecnologia jurídica certas técnicasargumentativas, cuja utilização costuma ser expressa pelaideia de que a norma está sendo interpretada. Trata-se deprocesso de extrema complexidade e fundamentalimportância para a conveniente superação dos conflitos deinteresses.

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Quando a simples leitura dodispositivo ou dispositivos por que anorma se expressa é insuficientepara sua exata compreensão oueficiente aplicação na superação deconflitos de interesses, ela deve ecostuma ser interpretada.

A interpretação é conceituada, nos manuais, como oprocesso de definição do sentido e alcance das normasjurídicas (cf., por todos, Diniz, 1983:381). Na verdade, porém,o processo da interpretação não é tão simples assim,podendo, em certos casos, servir como processo demudança do sentido e alcance das normas. Antes deenfrentar essa questão, porém, devem-se examinar osmétodos (item 2) e tipos (item 3) de interpretação.

2. MÉTODOS DE INTERPRETAÇÃOAo indicar o significado de uma norma jurídica, por

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vezes não basta ao tecnólogo ou profissional do direitosimplesmente afirmar que a sua leitura do dispositivocorrespondente desperta-lhe o sentido indicado. Em especialse o significado em questão não é largamente difundido nacomunidade jurídica, tal afirmação será ineficiente,desprovida de qualquer força de convencimento. Nessescasos, é necessário, para que consiga convencer seuinterlocutor a partilhar da mesma interpretação, que otecnólogo ou o profissional se valha de argumentos aceitospela comunidade jurídica sobre a melhor maneira de sedelimitar o sentido e alcance das normas. Esses argumentossão conhecidos como os métodos (ou processos) deinterpretação.

A hermenêutica é o campo da tecnologia jurídicadedicado ao estudo dos métodos de interpretação. Nelaencontram-se regras e procedimentos que municiam ointérprete dos instrumentos hábeis à sustentação deargumentos destinados a atribuir certo significado à normainterpretanda. A exegese (interpretação) da norma deve serfeita com observância desses métodos, para que oargumento construído em função dela seja capaz desustentar a conclusão alcançada.

Os principais métodos de interpretação são o gramatical,lógico, sistemático, teleológico e histórico. Ressalto, apropósito, que a doutrina diverge sobre as designações edelimitações dos métodos, adotando cada autor posições

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particulares nessa matéria. Há, por exemplo, os que admitemmais um método de interpretação, o sociológico. Trata-se,porém, de mera variação de nomenclatura, visto que chamamde sociológico o que, abaixo, será apresentado como um dosaspectos do método teleológico (cf. Ráo, 1977, I.III: 477;Carreiro, 1976:242/251).

2.1. GramaticalO gramatical (também chamado filológico) é o mais

elementar dos métodos de interpretação. Consiste no examedas palavras empregadas pela norma interpretanda, com oobjetivo de delimitar-lhe o sentido. Se a norma estabelece,por exemplo, que determinada providência pode serrequerida ao juiz pelo credor ou devedor, a interpretaçãogramatical indicará se a alternativa é inclusiva ou exclusiva.Em outros termos, se a conjunção ou foi empregada emsentido inclusivo, a providência poderá ser requerida tantopelo credor como pelo devedor, em conjunto ouseparadamente; mas se foi utilizada em sentido exclusivo, seum deles já requereu a providência, o outro não mais poderáfazê-lo.

No emprego do método gramatical, deve-ser atentar paraas regras gramaticais da língua utilizada na redação da norma(no Brasil, sempre o português), quando relevantes para aprecisão do sentido desta. O art. 1.521, III, do CC prescreveque “não podem casar o adotante com quem foi cônjuge do

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adotado e o adotado com quem o foi do adotante”. Asregras gramaticais permitem identificar que o pronomesubstantivo o faz as vezes, no fim da frase, de cônjuge.Assim, interpreta-se a norma afirmando a vedação docasamento do adotado com quem foi cônjuge do adotante.

Pela interpretação gramatical, amais elementar, o intérprete sustentao sentido da norma interpretanda apartir do exame de seus vocábulos,com vistas a precisar-lhe osignificado e, quando necessário, acategoria morfológica ou funçãosintática.

Determinadas regras de hermenêutica estãorelacionadas com o método gramatical. Por exemplo: a) seuma palavra constante da norma interpretanda possui

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significado comum diverso do técnico, deve-se privilegiareste último, no pressuposto de que a autoridade o conhece eo emprega assim; b) se possui apenas significado comum,não convém obscurecê-lo ou restringi-lo com tecnicalidades,presumindo-se que a autoridade a empregou em seu sentidocorriqueiro; c) se a parte final do dispositivo liga-se àimediatamente anterior e pode ligar-se também à inicial,deve-se considerar que ela se liga também a esta; d) não há,nas normas, palavras supérfluas ou inúteis.

O método gramatical é tão elementar que se confundenormalmente com a apreensão do sentido imediato da norma.Há quem o considere insuficiente à conclusão do laborexegético, dizendo que seus resultados sempre precisam serconfirmados por outro método de interpretação(Maximiliano, 1924:122). Alguns doutrinadores, por outrolado — e, a meu ver, com razão —, não o considerampropriamente um método hermenêutico, mas meroprocedimento de delimitação do problema a ser resolvidopela interpretação (Ferraz Jr., 1988:287).

2.2. LógicoA lógica é um saber que ajuda a organização e

expressão das ideias. Trata-se de um conjunto de princípiose regras que, rigorosamente observados, assegura averacidade da conclusão de um raciocínio, desde que aspremissas sejam também verdadeiras. Por exemplo, num

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raciocínio lógico, os termos devem ser sempre utilizados comigual significado. Se o raciocínio opera com a mesma palavrapara duas referências semânticas diversas, ele desobedece auma regra da lógica. Por exemplo, a palavra “prescrição” temdois sentidos técnicos diferentes: pode significar a perda dodireito à pretensão pelo decurso do prazo para suaproposição (“a prescrição verificou-se um dia antes doajuizamento da ação”) ou o conteúdo da norma jurídica (“aprescrição da lei não autoriza aquele entendimento”). Assim,se no mesmo raciocínio usa-se ora de um, ora de outrosignificado, sem os explicitar de modo claro, incorre-se emerro lógico. A ambiguidade do termo compromete alogicidade do raciocínio.

O método lógico emprega os preceitos da lógica naidentificação de incongruências nos dispositivosnormativos. Se a norma usa a mesma expressão paradesignar objetos diferentes, a denúncia dessa impropriedadese faz pelo método lógico de interpretação.

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O emprego do método lógicorevela as incongruências nas normasjurídicas, isto é, imprecisões nosenunciados normativos que obstamum raciocínio rigorosamente lógicoacerca de seu significado. Aambiguidade no uso das expressões éexemplo desse tipo de imprecisãoque o método lógico está apto adesnudar.

O alcance desse método é, na verdade, bem limitado. Eleserve, basicamente, para apontar incongruências da norma(à luz dos rigorosos postulados da lógica). Não vai além;quer dizer, não as soluciona indicando o significado que lhecaberia atribuir após o descarte da imprecisão. Por isso,também é posta em questão sua natureza de métodoexegético (Ferraz Jr., 1988:288). É, a rigor, tal como o

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gramatical, apenas um procedimento de identificação doproblema a resolver via interpretação.

2.3. SistemáticoO emprego do método sistemático de interpretação

pressupõe o ordenamento jurídico como um conjuntologicamente organizado, em sua origem ou, pelo menos, emsua descrição pelos estudiosos do direito. Esse pressupostonão corresponde (não pode corresponder) à realidade. Asnormas jurídicas que compõem o ordenamento são editadaspor autoridades as mais diversas, inclusive em momentoshistóricos distantes e substancialmente distintos. Imaginarque a atuação, isolada ou conjunta, desses homensresultaria sempre textos não só harmoniosos masestruturados com estrita observância do rigor dos preceitoslógicos é desconhecer características evidentes da naturezahumana, como, por exemplo, a falibilidade.

Para alguns juristas mais percucientes, como Kelsen, alogicidade do direito não se manifesta em sua origem. Asnormas, ao serem editadas pelas autoridades, não se inter-relacionam necessariamente de forma lógica. Os “cientistas”do direito, porém, têm a incumbência de as sistematizarlogicamente (Coelho, 1995:54/56). Mas essa maneira deentender o assunto também não corresponde à realidade. Osdoutrinadores adotam diferentes visões do direito e de seuconhecimento e frequentemente discordam sobre vários

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aspectos das normas que estudam. O conjunto deproposições materializado na doutrina também não ostentainter-relacionamentos lógicos. Mesmo se considerada a obrade um único autor jurídico, provavelmente não se encontraránela o resultado de um trabalho rigorosamente lógico.

Para que o ordenamento jurídico pudesse serconsiderado um conjunto lógico de normas, serianecessário, pelo menos, que não possuísse lacunas nemantinomias. Somente assim restariam rigorosamenteatendidos dois dos basilares princípios da lógica clássica:terceiro excluído e não contradição (aprofundo o exame doassunto em Coelho, 1992). Pressupor, portanto, como sendoum sistema lógico o conjunto de normas jurídicas vigentesem determinado tempo e lugar é falso.

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O emprego do método sistemáticotem por pressuposto umordenamento dotado de logicidadeinterna. Aceita a premissa, segue-seque as normas devem serinterpretadas sempre emconsonância com as demaisintegrantes do mesmo ordenamento.O método sistemático, assim,recomenda a articulação das normasjurídicas entre si e com os princípiosdo direito como a forma deencontrar seu significado.

Contudo, essa pressuposição não pode deixar de serfeita, a despeito de sua falsidade, quando empregado o

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método sistemático de interpretação. Isso porque elerecomenda interpretar a norma em consonância com asdemais do mesmo ordenamento, tomando-as como resultadode um trabalho harmonioso de organização da sociedade. Ointérprete, ao se valer do método sistemático, articula anorma interpretanda com as outras normas e princípios doordenamento a que pertence e procura extrair, dessaarticulação, o seu significado.

Veja, por exemplo, o art. 1.061 do CC: “A designação deadministradores não sócios dependerá de aprovação daunanimidade dos sócios, enquanto o capital não estiverintegralizado, e de 2/3 (dois terços), no mínimo, após aintegralização”. A hipótese contemplada na parte final dodispositivo diz respeito à designação de administrador quenão é sócio, quando já integralizado totalmente o capital dasociedade; nessa hipótese, ela depende de aprovação de 2/3dos sócios, no mínimo. Pois bem, como se calcula esseíndice, levando-se em conta o número de sócios ou opercentual da contribuição de cada um deles? Imagine que asociedade é constituída por três sócios, sendo que um deles(o majoritário) contribuiu com 70% do capital e os outrosdois (os minoritários) com 15% cada. Se os 2/3 a que serefere a lei diz respeito apenas ao número de sócios, edesconsidera a contribuição de cada um para a formação dasociedade, os sócios minoritários podem designar umadministrador não aprovado pelo majoritário. Mas se os 2/3

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daquele dispositivo legal é uma referência à proporção dacontribuição de cada sócio, inverte-se a situação: omajoritário pode escolher administrador com o qual nãoconcordam os minoritários. Como resolver essa questão?Socorrendo-se das outras normas do ordenamento jurídicobrasileiro, com as quais o art. 1.061 do CC possa serarticulada. Veja, então, o art. 1.010 do CC: “quando, por leiou pelo contrato social, competir aos sócios decidir sobre osnegócios da sociedade, as deliberações serão tomadas pormaioria de votos, contados segundo o valor das quotas decada um”. De acordo com esse preceito, quem contribuiucom mais recursos para a formação da sociedade (isto é,titulariza mais quotas) tem maior participação nasdeliberações sociais. Interpretando-se os dois dispositivosem questão como integrantes de um conjunto sistemático depreceitos, deve-se concluir que o cômputo dos 2/3 exigidospara a designação de administrador não sócio depende daparticipação proporcional de cada sócio no capital; querdizer, o sócio majoritário do exemplo acima pode designarsozinho o administrador não sócio, mesmo sem a anuênciados minoritários.

Não basta a articulação entre dispositivos esparsos parase configurar a interpretação sistemática. É necessário aindaque a articulação esclareça o significado das normasjurídicas inter-relacionadas. Quando leio no art. 145 do CCque o negócio jurídico é “anulável por dolo, se for este a sua

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causa”, e, no art. 171 do Código, que “além dos casosexpressamente declarados na lei” também são anuláveis osnegócios jurídicos nele listados, posso facilmenteestabelecer uma relação entre os dois dispositivos: ambostratam de negócios jurídicos anuláveis. Se o estudioso estáreunindo todas as hipóteses de anulabilidade de negóciosjurídicos, para examiná-las em conjunto, será útil pôr emsintonia tais dispositivos. Essa concatenação, porém, nãoexpressa o emprego do método sistemático de interpretação,já que não se alcança, por meio dela, a definição do sentidode uma ou de outra norma jurídica.

A mera concatenação dedispositivos normativos não implica,necessariamente, a adoção dométodo sistemático. Para tanto, devea concatenação conduzir ointérprete para o significado danorma.

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Mesmo partindo de pressuposto falso, o métodosistemático é importante recurso argumentativo nainterpretação das normas jurídicas. Isso porque o menoresforço que se faça no sentido de harmonizar as normasvigentes contribui para o aperfeiçoamento da ordem positivae segurança nas relações sociais. Se o ordenamento jurídicocomo um todo não será nunca um sistema lógico, isento decontradições e lacunas, isso não significa que pelo menos asnormas sistematizáveis por meio desse método não o devamser. Se parte do ordenamento puder ser editada ou descritacomo conjunto harmonioso de preceitos normativos, issocertamente será proveitoso.

Os doutrinadores costumam distinguir, como fiz aqui,entre o método lógico e o sistemático (Ráo, 1977,I.III:469/471; Maximiliano, 1924:123/130), mas a separaçãopor vezes é questionada (Reale, 1973:275). Há, assim, quemadmita como método de interpretação apenas o lógico-sistemático, uma fusão dos dois processos: identifica-se aincongruência do ponto de vista lógico, e busca-se suasuperação pela sistematização das normas.

2.4. TeleológicoO método teleológico de interpretação das normas

jurídicas busca fixar o significado destas a partir dosobjetivos pretendidos com a sua edição. Pressupõe o seu

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emprego que a produção normativa não é um fim em simesmo, mas, pelo contrário, busca produzir determinadosefeitos nas relações entre as pessoas, estimulando ougarantindo o cumprimento das obrigações, premiando orespeito aos interesses legítimos dos outros, organizando,enfim, a convivência entre os membros da sociedade. Se asnormas destinam-se a produzir certos objetivos, suainterpretação deve ser feita de tal modo que tais efeitos (enão outros) se realizem.

Abriga-se esse método no direito positivo brasileiro:“na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que elase dirige e às exigências do bem comum” (LINDB, art. 5º).Aparentemente, em vista de sua positivação, o métodoteleológico deveria ser o mais fácil de utilizar. Não é bemassim, porém. O significado de expressões como “finssociais” ou “exigências do bem comum” é controvertido,embora todos possam intuí-lo ou mesmo senti-lo.

Para examinar o emprego desse método, e suasdificuldades, colho um exemplo no Código de Defesa doConsumidor (CDC). Nele encontram-se disciplinados oscadastros de pessoas inadimplentes que o comérciocostuma organizar para que os empresários decidam sedevem ou não conceder crédito a determinado consumidor(SERASA, SPC etc.). Normalmente, a pessoa cadastradanesses bancos de dados não consegue obter crédito para acompra de bens ou serviços, porque o empresário avalia

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como sendo maior o risco, nesse caso, de não receber opagamento.

Pois bem, no art. 43, § 3º, do CDC é assegurado aoconsumidor o direito de exigir a correção de dadosincorretos que eventualmente se encontrem nessescadastros. Se o valor da dívida cadastrada é superior àefetivamente devida, o consumidor pode exigir que oresponsável pelo banco de dados corrija a informação. Mas,e se o consumidor está discutindo, em juízo, o valor dadívida? Nada dispõe a respeito o Código de Defesa doConsumidor. Nesse caso, porém, alguns juízes jáconsideraram inadmissível a inclusão do nome doconsumidor devedor nos cadastros de restrição ao créditoenquanto não se decide judicialmente quem tem razão, ele ouo fornecedor credor. Esses juízes interpretam o dispositivolegal com o uso do método teleológico. Se a finalidade da lei,ao disciplinar os cadastros restritivos de crédito, foi protegero consumidor, então ele tem direito de exigir não só acorreção de falsas informações como também a suspensãodo cadastramento de dívidas objeto de discussão judicial.

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Pelo método teleológico,interpreta-se a lei tendo em vista osobjetivos que nortearam sua edição.As normas do Código de Defesa doConsumidor, por exemplo, devem serteleologicamente interpretadas comopreceitos destinados à proteção dosconsumidores em suas relações comos fornecedores.

Não é sempre fácil e consensual a identificação dasfinalidades pretendidas pela autoridade ou autoridades queeditaram a norma interpretanda. É evidente que o objetivo doCódigo de Defesa do Consumidor é proteger osconsumidores, mas a finalidade de outras normas nemsempre se revela óbvia. Os fins da norma jurídica, note-se,são afirmados pelo intérprete a partir de valores partilhadospela sociedade. Ninguém crê que, na democracia do nosso

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tempo, uma lei seja feita com a finalidade de garantir umprivilégio do mais forte em detrimento do mais fraco.Também ninguém afirmará que o objetivo de certa lei é levarao desamparo crianças ou idosos. Tais assertivasesbarrariam frontalmente com os valores difundidos entrenós e, por essa razão, não poderiam nunca ser aceitas comodelimitadoras das finalidades das leis interpretandas. São osvalores cultivados pela sociedade que, incorporados ereproduzidos pelos membros da comunidade jurídica,nortearão a identificação dos fins da norma. A natureza eextensão desses valores, porém, não é assunto acerca doqual todos se ponham facilmente de acordo, daí adificuldade que cerca o emprego do método teleológico.

Uma regra de hermenêutica ligada ao método teleológicoafirma que a interpretação da norma não pode conduzir ointérprete a resultados absurdos. A autoridade editora danorma, presume-se, não poderia ter pretendido como efeitode sua aplicação algo impossível — material, moral oujuridicamente falando. Retomo o exemplo do art. 1.061 do CC.A interpretação de que o índice de 2/3 deveria sercomputado pelo número de sócios, desconsiderando-se opercentual da contribuição de cada um, deve ser afastadaporque levaria a situações absurdas em determinadashipóteses. De fato, se a sociedade é integrada por apenasdois sócios ou por número de sócios não múltiplo de 3, nãohaveria como calcular o índice, já que o resultado levaria à

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absurda situação de fração de sócio.

2.5. HistóricoO método histórico de interpretação consiste na

identificação das circunstâncias em que a normainterpretanda foi editada, com vistas a identificar a vontadeda autoridade ou autoridades que a editaram (occasio legis).Esse método recomenda, em outras palavras, a pesquisa daintenção do editor da norma. Pressupõe que ela deva serinterpretada de modo a reproduzir a vontade da pessoa (oupessoas) com competência para baixá-la, garantindo-se,dessa forma, efetividade e respeito a tal competência.

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O método histórico procuradesvendar, na interpretação da lei, aintenção do legislador. Parte dopressuposto de que a lei deve seraplicada tal como pretendido pelaautoridade que a editou. Essemétodo objetiva garantir estritaobservância à divisão decompetência entre legisladores ejuízes.

É relevante, para emprego do método histórico nainterpretação de uma lei, o exame de registros doprocedimento legislativo e outros elementos relacionados àsua discussão nas Casas do Congresso. As atas dasreuniões das comissões por que tramitara o projeto de lei, asemendas rejeitadas, os dispositivos vetados ou as razões devetos derrubados e, até mesmo, notícias de jornais da época

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são úteis à identificação das intenções do legislador. Defato, se um dispositivo é vetado e o Congresso não derrubao veto, ter conhecimento de seu conteúdo revela o que olegislador não quis aprovar. Já se o veto é derrubado, asrazões que o haviam justificado também ajudam acompreender a intenção do legislador na oportunidade (istoé, a oposta à do veto).

Algumas leis são antecedidas de uma exposição demotivos, normalmente preparada pelo autor do projeto ou doanteprojeto, com a indicação dos principais aspectos dadisciplina que se pretende introduzir. Na exposição demotivos encontram-se referências úteis à contextualizaçãoda iniciativa, mas é necessário sempre verificar se o projetooriginário (a que se refere a exposição) não sofreumodificações relevantes durante sua tramitação noLegislativo.

2.6. Conclusão: há uma interpretação verdadeira?É comum a doutrina ou a teoria geral do direito se

perguntarem qual seria o melhor método de interpretação,aquele capaz de revelar a verdadeira (ou, pelo menos, a maiscorreta) interpretação da norma jurídica.

Autores de inspiração formalista ou positivista tendem aconsiderar o método sistemático o mais adequado,chegando, inclusive, a desqualificar a pesquisa históricacomo método de interpretação. Para esses doutrinadores,

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não há sentido na busca da intenção do legislador (menslegislatoris), porque, a final, prevalecerá sempre a intençãoda lei (mens legis). Se a autoridade pretendia preceituardeterminada norma, mas acabou, qualquer que seja a razão,preceituando outra, o que vigora e deve ser aplicado é anorma efetivamente editada e não a que desejava editar.Paulo de Barros Carvalho, por exemplo, afirma que osistemático é considerado “o método por excelência”, namedida em que, envolvendo todos os planos dainvestigação linguística (sintática, semântica e pragmática), éo único que pode prevalecer isoladamente, sem auxílio dosdemais métodos (2004:98/101).

Por outro lado, autores de inspiração menos formalistapodem eventualmente considerar o método teleológico omais apto à revelação da verdadeira (ou, pelo menos, da maiscorreta) interpretação da norma jurídica. Os argumentosconstruídos a partir do art. 5º da LINDB operam comdiversos valores (segurança, justiça, proteção do mais débil,interesse público etc.) e, em consequência, ampliam onúmero de alternativas (retoricamente viáveis) para ainterpretação de uma mesma norma jurídica. Porto Carreiro,por exemplo, após discutir quatro métodos hermenêuticos(gramatical, lógico, histórico e sociológico), conclui sermelhor a “interpretação dialética”, que os reúne. Ointérprete, nessa perspectiva, deve ser filósofo, sociólogo,historiador e filólogo (1976:221/251).

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Qual dos métodos é o maisindicado para se encontrar averdadeira interpretação da normajurídica? Alguns autores se ocupamdessa questão e procuram qualificarum deles e desqualificar os demais.O pressuposto de tal indagação é aexistência de uma únicainterpretação verdadeira para cadanorma jurídica.

Na verdade, não existe o melhor método deinterpretação. Qualquer um deles pode ser legitimamenteempregado na exegese de normas jurídicas. Isto porque, arigor, não existe a interpretação verdadeira ou mais correta.

Note-se que várias normas jurídicas comportam mais de

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uma interpretação; aliás, os repositórios de jurisprudênciaestão repletos de exemplos de julgados que conferemsentidos diferentes às mesmíssimas disposições legais ounormativas. Pode-se falar, contudo, em sentidos mais oumenos próximos ao da primeira leitura do dispositivo (oudispositivos) em que a norma se assenta. Em outros termos,podem-se identificar o sentido imediato da norma jurídica eum ou mais sentidos mediatos, ou seja, mediatizados porargumentos hermenêuticos. Qual desses sentidosprevalece? A resposta depende de muitos fatoresinterferentes no trabalho dos tecnólogos e profissionais dodireito (culturais, econômicos, psicológicos, técnicos,axiológicos, religiosos, morais etc.). No mais das vezes,porém, tende a prevalecer o sentido sustentado porargumento de potencial retórico superior, isto é, o dotado demaior força de convencimento. Quanto maior for o númerode pessoas da comunidade jurídica que atribuem a dadanorma jurídica certo significado, mais chance existe de queeste prevaleça na superação de um conflito de interesses.

É importante ressaltar que a inexistência de um métodode interpretação melhor do que os outros não implica apossibilidade de se atribuir qualquer significado a qualquernorma jurídica. Não há arbitrariedade absoluta nainterpretação. Se eu construir o argumento de que o art. 5ºda LINDB torna obrigatória a adoção do método sistemáticode interpretação, muito provavelmente a comunidade jurídica

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me tomará por ignorante (ou, se for simpática comigo, por“equivocado”). Isto porque nenhum esforço argumentativoconseguirá fazer com que as pessoas passem a partilhar doentendimento de que naquele dispositivo legal se encontra aobrigatoriedade de uso do referido método.

Há, então, muitíssimos significados (infinitos, talvez)que simplesmente ninguém consegue colar à normainterpretanda. No extremo oposto, há o seu significadoimediato, que se forma no intelecto do intérprete logo àprimeira leitura. Entre um e outro extremo, podem-seintroduzir significados mediatos, resultados da construçãode argumentos hermenêuticos mais ou menos viáveis.

Mais de um método, portanto, pode ser empregadosimultaneamente na interpretação de certa norma jurídica. Háaté mesmo quem considere encerrado o trabalho de exegesesomente após a verificação do significado da norma jurídicapor todos eles. Para Vicente Ráo, por exemplo, o intérpreteperfeito inicia seu trabalho pelo exame do texto a interpretar,para, na sequência, empregar sucessivamente os métodosgramatical, lógico (que se desdobra, na visão desse autor,em três fases: lógico-analítico, lógico-sistemático e lógico-jurídico ou científico), histórico e, ao cabo, o sociológico.Somente depois do uso de todos os métodos, que seriamcomplementares, é que chega a termo, para Vicente Ráo, ainterpretação da norma (1977, I.III:466/479).

Quando os vários métodos de interpretação

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adequadamente empregados conduzem aos mesmosresultados, está-se diante de um argumento hermenêutico deextraordinária força retórica. Cada método confirma efortalece a conclusão dos métodos anteriormenteempregados e, com certeza, será tarefa árdua tentardesconstruir um argumento jurídico dessa envergadura.Quando, entretanto, a adoção de mais de um método deinterpretação leva o intérprete a resultados diferentes, quiçáopostos, os argumentos correspondentes a cada processotendem a ser retoricamente fracos, isto é, não devemconvencer com facilidade vastos setores da comunidadejurídica. Se o método sistemático leva o intérprete a concluirnum sentido, o teleológico pode levá-lo a outro sentido.

A interpretação de uma únicanorma jurídica por meio de dois oumais métodos diversos pode conduzira resultados convergentes oudivergentes. No primeiro caso, oargumento hermenêutico é bastanteforte e tende a convencer vastas

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forte e tende a convencer vastasparcelas da comunidade jurídica. Nosegundo caso, a eventualconvivência entre os doissignificados diferentes não é umdespropósito. Trata-se de recurso dodireito para flexibilizar as normasjurídicas, tornando-as aptas anortear a solução dos conflitos deinteresses.

Ressalte-se que resultados divergentes na interpretaçãode uma mesma norma jurídica, em decorrência do emprego dedois ou mais métodos hermenêuticos, não indicamnecessariamente que houve erro na utilização destes. Claroque convém verificar, numa situação destas, se cada métodode interpretação foi corretamente usado pelo intérprete, como objetivo de afastar a possibilidade de ter sido seu mau usoo responsável pela divergência. Não é, contudo, umdespropósito que os métodos de interpretação, mesmo que

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adequadamente empregados, sustentem significadosdiferentes para uma única norma jurídica. A convivênciaentre tais significados distintos é um dos recursos do direitodestinados à flexibilização das normas jurídicas (item 4).

3. TIPOS DE INTERPRETAÇÃOA interpretação pode ser classificada em três tipos:

especificadora (ou declarativa), restritiva e extensiva. Essestipos variam de acordo com o ajuste ou desajuste entre aintenção atribuída à autoridade editora da norma e aexpressão desta. A interpretação que pressupõe ter aautoridade dito, na norma, exatamente o que pretendia, é dotipo especificadora. Nesse caso, o intérprete assume que háplena correspondência entre a mens legislatoris e a menslegis. Veiculam-na argumentos jurídicos de considerávelforça retórica, uma vez que ninguém questiona, diante deuma interpretação especificadora, se o intérprete não estariaeventualmente extrapolando seu papel de traduzir comfidelidade a norma interpretanda.

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Os tipos de interpretação são três:especificadora, restritiva ouextensiva. Estão relacionados com oajuste ou desajuste entre a vontadedo legislador e a redação da normapositiva. Quando afirma o ajusteentre elas, é especificadora. Quandopressupõe desajuste, é restritiva ouextensiva.

A interpretação que pressupõe desajuste entre asintenções da autoridade editora da norma e o texto de queesta se reveste pode ser restritiva ou extensiva. No primeirocaso, a presunção é a de que a norma disse mais do quepretendia quem a editou e o intérprete corrige o desajusterestringindo seu alcance. No segundo, assume-se que anorma disse menos, cabendo ao intérprete neutralizar odesajuste ampliando-lhe o alcance. Os argumentos que

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sustentam esses tipos de interpretação sempre podem serquestionados no sentido de que teria ocorrido extrapolaçãodo papel do intérprete. Se, via interpretação extensiva, ointérprete acaba alargando a norma mais do que a autoridadedesejara (ou, via interpretação restritiva, acaba reduzindo oalcance do comando normativo para menos do que elapretendera), é claro que se estaria arrogando o intérpreteuma função que não tem poderes para exercer — a de editorda norma.

A interpretação restritiva é recomendada pelahermenêutica na exegese de normas de exceção. Quandodeterminada situação é excepcionada de uma regra geral que,em princípio, a alcançaria, considera-se que isto decorreu daconstatação, pela autoridade editora da norma, de queaquela situação — e apenas ela — apresenta traçosdistintivos que justificam a medida de excepcionalidade.Estender o tratamento excepcional para além dos limites dasituação especificamente descrita na norma de exceçãoresultaria decisões injustas, normalmente limitadoras dedireitos.

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A interpretação restritivapressupõe que a norma positivadisse mais do que a autoridadepretendia. O intérprete recupera avontade da autoridade ao restringiro alcance da norma interpretanda.

As normas excepcionais seinterpretam restritivamente.

Por exemplo, deve ser interpretado restritivamente o art.2º, III, do CC, que estabelece serem absolutamente incapazespara a prática de atos da vida civil as pessoas sem meiospara exprimir a vontade, ainda que transitoriamente. Ainterpretação restritiva se impõe porque a regra geral é a dacapacidade de todas as pessoas (CC, art. 1º). Se alguém, emvirtude de lesões por acidente de trânsito, entra em coma,sua capacidade é suprimida pela norma excepcionalenquanto perdurar o estado. Isto porque o coma impede queaquela pessoa exprima sua vontade. À medida, porém, que

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saia do coma e, ao se recuperar, readquira a capacidadefísico-motora de comunicação, ainda que por gestos oupiscadas de olhos, deve-se considerar — em virtude dainterpretação restritiva da norma excepcional de supressãoda capacidade — que aquela pessoa tornou a serplenamente capaz. Poderá, então, celebrar validamentenegócios jurídicos manifestando sua concordância comgestos previamente combinados. Não convém estender oalcance do art. 2º, III, do CC para além das hipótesesespecificamente nele albergadas, em razão de suaexcepcionalidade.

Não há, na hermenêutica, nenhuma regra que recomendea interpretação extensiva. A doutrina e a teoria do direito,ademais, discutem as diferenças entre esse tipo deinterpretação e a analogia. De fato, concretamente, sãotênues os limites de separação dessas figuras jurídicas, masé possível estabelecer um critério abstrato bem preciso. Nainterpretação extensiva, o intérprete aclara o âmbito deincidência da norma interpretanda, revelando seu exatoalcance. Aplica-se a norma, então, a fato que já seencontrava nela abrangido, embora não suficientementeexternado no dispositivo ou dispositivos em que seexpressara. Já a analogia consiste na superação de lacuna noordenamento por meio da aplicação de norma disciplinadorade situação análoga. Percebe-se, então, que a normaanalogicamente aplicada está alcançando fato que não se

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encontra nela abrigado.

A interpretação extensivapressupõe que a norma disse menosque a autoridade pretendia. Ointérprete recupera a vontade daautoridade alargando-lhe o alcance.

Não se confunde a interpretaçãoextensiva com a analogia. Naquela,a norma interpretanda é vista comodisciplinadora do conflito deinteresse em questão; enquanto naanalogia a norma a aplicar nãodisciplina esse conflito, mas o desituação análoga.

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Em suma, nas duas hipóteses argumentativas, otecnólogo ou profissional do direito estão se batendo pelaaplicação de uma norma a fato não diretamente descrito nela.Quando o argumento se sustenta na interpretação extensiva,diz-se que há um desajuste entre a intenção do editor danorma e seu texto, mas que o fato em questão está neladisciplinado; por outro lado, se se sustenta na analogia, oargumento diz que falta, no ordenamento, norma específicasobre o fato referido, mas que ele pode ser satisfatoriamentedisciplinado por meio da aplicação de norma destinada aregular situação análoga, semelhante.

4. INTERPRETAÇÃO E FLEXIBILIZAÇÃO DASNORMAS

Há duas maneiras de se considerar a interpretação dasnormas jurídicas — a estrutural e a funcional.

Pela maneira estrutural, considera-se a interpretação umprocesso indissociável do de qualquer superação deconflitos de interesses por meio do direito. Nela, ainterpretação é vista como o processo mental queacompanha o estudo, a aplicação e a observância danorma jurídica (cf. Kelsen, 1960:463/473). Pode-se atémesmo afirmar, em razão da relevância nuclear dainterpretação para o direito no contexto da abordagemestrutural, que o trabalho cotidiano de estudiosos e

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profissionais é interpretar as normas jurídicas baixadas pelasautoridades. Não haveria, por outro lado, norma jurídica quenão devesse ser interpretada. Por mais claro que fosse o seusentido, a sua intelecção demandaria interpretação.

De acordo com a maneira funcional de considerar ainterpretação, esta só se encontra em situações especiais.Apenas quando não compreende ou não aceita o sentidoimediato da norma jurídica é que o estudioso ou profissionaldo direito lança mão da interpretação. Nesse contexto, elanão é vista como um processo inerente à compreensão,aplicação e obediência do direito, mas como instrumento deredefinição da norma jurídica (cf. Warat, 1979:93/106). Poressa abordagem, a interpretação cumpre tarefa bemespecífica no funcionamento do sistema jurídico.

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A interpretação pode ser vistacomo algo estrutural ao direito.Nesse caso, não há norma jurídica,por mais clara que seja, que nãopossa ou não deva ser interpretada.

Por outro lado, ela também podeser vista por uma perspectivafuncional. Aqui, ela cumpre a funçãode flexibilizar a norma jurídica,afastando seu sentido imediato eagregando-lhe outro sentido.

Mas como é, afinal, o direito — como descrito naabordagem estrutural ou na funcional?

Observando como atuam os profissionais do direito,percebe-se que nem sempre o advogado, ao postular, ou ojuiz, ao sentenciar, por exemplo, se consideram

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“interpretando” as normas jurídicas a que fazem menção. Osdoutrinadores e professores, ao seu turno, ditam a maiorparte das lições sem mencionar que estão “interpretando”normas. Na maioria das vezes, ao contrário, no estudo eaplicação do direito, os dispositivos são invocados em seusentido imediato, e ninguém, quando assim os invoca, afirmaestar realizando um trabalho de exegese da norma jurídica.Há, inclusive, um aforismo de uso corrente para desmotivaresforços interpretativos na aplicação da norma em seusentido imediato: in claris cessat interpretatio (quer dizer,“disposições claras não comportam interpretação”). Esseaforismo, segundo Carlos Maximiliano, surgiu como reaçãoàs excessivas distinções e subdistinções da escolástica, evisava, ao limitar a interpretação aos dispositivos obscurosou duvidosos, conter abusos que distorciam o sentido danorma jurídica (1924:33/35).

Em suma, a despeito de grande parte dos tecnólogosadotar a postura estrutural da interpretação, defendendo seresta indispensável ao exame e aplicação de qualquer normajurídica, a verdade é que eles próprios (bem assim, os demaistecnólogos e todos os profissionais do direito) só costumamafirmar que estão interpretando determinada normaenquanto constroem argumentos destinados àdemonstração de que o sentido dela não é o imediato.Pratica-se, assim, a maneira funcional de considerar ainterpretação.

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A abordagem funcional dainterpretação corresponde ao que seobserva no trabalho da maioria dosestudiosos e profissionais do direito,embora a abordagem estrutural sejaa mais corrente nos livros dedoutrina.

A norma jurídica, portanto, não é sempre interpretada.Ademais, mesmo sendo claros os seus termos, a normareclama interpretação quando se pretende extrair delasentido diverso do que exsurge da simples leitura. Não será,assim, sempre um processo de aclaramento ou de precisão,mas de convencimento sobre como deve ser entendida eaplicada determinada norma jurídica para que se obtenhacerto resultado na superação dos conflitos de interesses deque cuida.

Lembre-se que as normas jurídicas, para cumprirem

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satisfatoriamente a função de nortear a solução dosconflitos de interesses, precisam ser flexíveis, ou melhor,flexibilizáveis (Cap. 3, item 9). Um dos meios de flexibilizaçãoé o afastamento, a partir de argumentos convincentes nointerior do discurso jurídico (isto é, por meio da utilizaçãodos métodos de interpretação), do sentido imediato danorma jurídica. Aquele sentido que primeiro se forma noespírito do profissional debruçado sobre determinada normaé substituído, por meio desse mecanismo, por um sentidod iv ers o , mediatizado pelo esforço argumentativo datecnologia jurídica ou da jurisprudência. Quando esse novosentido passa a ser aceito pela comunidade jurídica, ou porparte significativa dela, pode-se dizer que a norma mudou deconteúdo por meio de sua interpretação doutrinária oujurisprudencial.

Os instrumentos retóricos amplamente aceitos pelacomunidade jurídica para o afastamento do sentido imediatoda norma jurídica são os métodos (item 2) ou tipos (item 3)de interpretação.

5. APLICAÇÃO DA LEIUm dos objetivos do direito é indicar as condutas que

as pessoas devem observar para contribuir com a pacíficaconvivência em sociedade. Quanto mais pessoas secomportarem como indicado pelas normas jurídicas, menosconflitos de interesses tendem a se manifestar. A estrutura

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da norma jurídica compreende a descrição de um fato e aconsequência que lhe deve seguir. O fato descrito na normanem sempre é a conduta indicada para as pessoasobservarem. As normas que protegem a posse, por exemplo,descrevem esse fato, mas indicam que as pessoas devemrespeitar os direitos do posseiro sobre o bem possuído.Aliás, o fato descrito na norma corresponde frequentementeao comportamento que a ordem jurídica quer evitar. A regrado Código de Trânsito Brasileiro que determina, porexemplo, a imposição de multa a quem atravessar o semáforofechado é uma indicação de que os motoristas não devemfazer isso.

A obediência à lei e a outras normas jurídicas deve serdefinida como a conduta correspondente à indicada por elas.Quem age de acordo com a indicação de comportamentodada por uma ou mais normas jurídicas obedece-as, atende-as, observa-as. Se o devedor paga a dívida no dia dovencimento, ele está obedecendo à lei; se o causador dodano indeniza a vítima, também; se o filho paga ao paiaposentado um valor mensal de complementação daaposentadoria, está observando o disposto na lei sobredever de alimentar, e assim por diante.

Não se deve empregar o conceito de aplicação da lei nareferência às situações em que ela está sendo observadapelos seus destinatários. A lei e demais normas jurídicas sãoaplicadas pelo juiz. Mesmo quando outro Poder do Estado

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(Legislativo ou Executivo) pratica atos em decorrência demandamentos legais, não convém chamar essa situação deaplicação da lei, até mesmo porque tais atos podem, salvo nahipótese de exercício de competência discricionária, serrevistos pelo Poder Judiciário.

A lei indica uma conduta a serobservada. Quando a pessoa secomporta da forma indicada, diz-seque ela obedece à lei. E quando a leié desobedecida, o prejudicado pedeao juiz, por meio de ação judicialprópria, que faça valer a lei. Aojulgar a ação, o juiz aplica a lei.

Note que a aplicação da lei pressupõe, exatamente, a suainobservância, desatendimento, desobediência. Se odevedor não paga a dívida no vencimento, o credor

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normalmente irá promover a cobrança judicial. Ao julgar aação, o juiz aplicará a lei. É irrelevante, para os propósitosaqui em foco, saber se era o credor ou o devedor que estavadescumprindo a lei. Qualquer que seja o sentido da decisãojudicial, a lei estará sendo aplicada. Se o juiz dá razão aodevedor (caso, imagine-se, o valor cobrado fosse excessivo)ou ao credor (se não havia fundamento jurídico para arecusa do pagamento), pouco importa. Um dos dois, deacordo com a decisão judicial que vier a ser proferida, deixoude atender à conduta indicada pela norma legal.

A aplicação da lei, pelo juiz, só se verifica quando elanão tiver sido obedecida. Ela é, pois, definida como o ato doPoder Judiciário que decide o conflito de interesses que lhefor submetido pelo interessado.

5.1. Aplicação da lei no espaçoA edição de normas jurídicas é uma das manifestações

da soberania dos Estados. Pelo princípio daterritorialidade, a norma jurídica vigora e tem eficácia noslimites do território do Estado que a editou. Não pode sertido como soberano o Estado sujeito às normas editadas porautoridade externa à sua própria organização como entidadepolítica. Os limites espaciais de aplicação da lei são dados,assim, pelos contornos do território do Estado que a edita.Lembre-se que, segundo normas de direito internacional,integram o território de um país, ainda que incrustado no de

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outros, as suas embaixadas, consulados e residências dediplomatas. Além disso, também se consideram território deum país os navios e as aeronaves que ostentem a respectivabandeira, desde que atendidas certas condições. São oschamados territórios fictos (Diniz, 2002:100).

As leis editadas por um Estado não podem ser aplicadasno território de outro, a menos que este, no exercício de suasoberania, o autorize. Admitir a aplicação, em certos casos,do direito estrangeiro não significa abdicar da soberania. Odireito estrangeiro é aplicado por determinação do Estadosoberano e não por sua submissão. A qualquer momento,aliás, o Estado pode, por meio de lei própria, passar a obstara aplicação da norma alienígena exatamente porque ainda épleno titular de sua soberania.

No âmbito do território brasileiro, assim, aplica-se a leibrasileira, editada pelas autoridades legiferantesreconhecidas pela Constituição do Brasil. A lei brasileirasomente se aplica a território não pertencente ao nacional seo Estado que ali exercer soberania o admitir por seu própriodireito. Do mesmo modo, a lei de outro Estado só é aplicávelno território brasileiro nas hipóteses admitidas pelo nossodireito.

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Pelo princípio da territorialidade,as leis editadas por um Estado, noexercício de sua soberania, sãoaplicáveis apenas ao respectivoterritório. A lei de um país só podeser aplicada no território de outro seeste último o admitir, por norma deseu próprio ordenamento.

De uma forma ou de outra, cada Estado aplica o seupróprio direito no território sobre o qual exerce soberania.Quando norma jurídica estrangeira é aplicada nesseterritório, deve-se isso também ao disposto no direitodaquele país. Quer dizer, aplica-se a lei nacional que autorizaa aplicação da estrangeira. Assim, na solução dos conflitosde interesses que lhe são submetidos, o juiz brasileiro aplicasempre as leis vigentes no Brasil. Quando estas determinamque se aplique norma de direito estrangeiro, o juiz o fará emobediência à nossa lei.

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As questões atinentes à aplicação da lei no espaço sãoaprofundadas pelo direito internacional privado. Costuma atecnologia civilista, porém, ao tratar da Lei de Introdução àsNormas do Direito Brasileiro, introduzir o exame do tema,apresentando as principais regras do direito brasileiro sobrea matéria.

Assim, estabelece o art. 7º da LINDB que apersonalidade, nome, capacidade e direitos de família sãoregidos pela lei do país em que for domiciliada a pessoa.Assim, aquele que se casou segundo as regras vigentes nopaís de seu domicílio é, para o direito brasileiro, casado,ainda que a disciplina jurídica sobre a matéria divirjasubstancialmente da nossa. Se dois estrangeiros do mesmosexo são casados segundo o direito vigente em seudomicílio também o serão para os fins do direito brasileiro,embora, entre nós, haja dúvidas sobre a admissibilidade domatrimônio entre homossexuais. Se um deles é sucessor, pormorte, de um brasileiro e vem também a falecer no decorrerdo inventário, o outro poderá reivindicar sua parte nos bensa inventariar situados no Brasil, na condição de cônjugesupérstite do sucessor.

A qualificação de bens e a regulação das relações a elesconcernentes seguem o disposto na lei do país em que sesituam (LINDB, art. 8º). Se alguém é demandado, no Brasil,na condição de condômino de imóvel situado em outro país,o nosso juiz deve julgar a ação aplicando a lei vigente no

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lugar da situação do bem tido em condomínio.As obrigações são qualificadas e regidas pela lei do país

em que se constituíram (LINDB, art. 9º). Desse modo, oscontratos celebrados no exterior, quando executados noBrasil, sujeitam-se às normas vigentes no país de celebração.Essa regra, porém, não se aplica se os contratantesescolherem, por cláusula contratual inserta no mesmoinstrumento ou em outro, o direito que desejam ver aplicado.

Também é a lei do domicílio que se aplica nas questõesatinentes à sucessão por morte ou ausência (LINDB, art. 10).Falecido brasileiro domiciliado no exterior, os bens que aquipossuía serão partilhados segundo as regras sucessóriasvigentes no país estrangeiro de seu domicílio. Do mesmomodo, o desaparecimento de um estrangeiro domiciliado noBrasil implicará a declaração de ausência, de acordo com oprescrito no nosso Código Civil. A regra da aplicação da leido domicílio do falecido em caso de sucessão édesconsiderada na hipótese de falecimento de estrangeirodomiciliado no exterior que tenha deixado cônjuge ou filhobrasileiro. Nesse caso, em razão de preceito constitucional,aplica-se, entre a lei brasileira e a do domicílio do estrangeiromorto, a que for mais benéfica aos sucessores brasileiros(CF, art. 5º, XXXI).

As organizações de interesse coletivo, sociedades efundações obedecem à lei do Estado em que se constituírem(LINDB, art. 11). No Brasil, as sociedades anônimas não

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podem emitir ações ao portador, porque exige a lei quetodos os acionistas sejam identificáveis. Há, no entanto,países em que a sociedade anônima pode possuir apenasações com essa forma, sendo, nesse caso, impossívelidentificar os seus sócios. Pois bem, a sociedade anônimaestrangeira, para operar no Brasil, deve obter a autorizaçãogovernamental (CC, art. 1.134). Esta, porém, não pode sernegada à companhia emissora exclusivamente de ações aoportador, a pretexto de não admitir o direito societáriobrasileiro tal forma de ação; isso porque as sociedadesregem-se pela lei do Estado em que se constituíram.

De qualquer modo, as leis de outros países não terãoeficácia no Brasil se ofenderem a soberania nacional, aordem pública e os bons costumes (LINDB, art. 17). NoBrasil, as dívidas de jogo são inexigíveis (CC, art. 814), mas,se um brasileiro contrai dívida dessa natureza em país ondepode ser exigido o seu cumprimento, ele estará, em princípio,obrigado a pagá-la, em razão do art. 9º da LINDB. Aobrigação, como visto, é regida pela lei do país em que seconstituiu. Mas se o juiz brasileiro considerar o jogoatentatório aos bons costumes, poderá deixar de aplicar odireito estrangeiro e não permitir que se cobre do perdedor ocumprimento da obrigação.

5.2. Aplicação da lei no tempoSempre que uma nova lei entra em vigor opera-se uma

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divisão, no tempo, de significativa importância para asolução dos conflitos de interesses: ele é dividido entreantes e depois da vigência da nova lei. Essa divisão éimportante porque, antes da entrada em vigor, a lei não seencontrava apta a produzir efeito nenhum, e, depois, passoua ter plena aptidão para produzir efeitos. Os fatos verificadosanteriormente ao início da vigência são disciplinados deacordo com o direito então vigente; os posteriormenteocorridos, segundo a nova lei. Por exemplo, apenas asucessão correspondente a falecimento ocorrido após aentrada em vigor do novo Código Civil, em 2003, segue asdisposições deste; se a morte ocorreu antes de sua vigência,a sucessão rege-se pelo Código Civil de 1916.

Nem sempre, porém, essa divisão do tempo convém àmelhor disciplina das relações sociais. Há casos, por outrolado, em que ela não pode ser facilmente operacionalizada,porque o dever ou o direito nascem sob a égide de umregime jurídico e seu cumprimento ou realização ocorrem soba vigência de diferente regime. Nestes e em outros casos, emque o fator tempo é essencial, torna-se necessário definir anorma a ser aplicada: a anterior ou a nova. Os critérios paraessa definição são estudados sob a denominação de direitointertemporal, o capítulo do direito civil que cuida daaplicação da lei no tempo.

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Um dos preceitos fundamentais dodireito intertemporal é o de que a leise aplica aos fatos posteriores à suaentrada em vigor. Em disposiçõestransitórias, porém, a lei podeestabelecer que alguns desses fatoscontinuarão regidos pela normarevogada durante certo tempo.

Outro dos preceitos fundamentais éo de que a lei não se aplica aos fatosanteriores à sua vigência. Por meiode dispositivos retroativos, porém,ela pode estabelecer que algunsdesses fatos serão regidos pela novanorma.

São exceções aos preceitosfundamentais do direito

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fundamentais do direitointertemporal.

São duas as questões envolvidas com a aplicação da leino tempo: a das disposições transitórias e a daretroatividade.

Tanto na questão das disposições transitórias como nada retroatividade, excepciona-se a regra geral do direitointertemporal. Como visto acima, em princípio, os fatosverificados antes da entrada em vigor de uma lei regem-sepelo direito anterior, e os ocorridos após a sua vigência,pelas disposições dela — esta é a regra geral. Por meio dasdisposições transitórias, fatos posteriores à entrada emvigor da nova lei continuam regidos pelo direito revogado(circunstância referida pela expressão ultratividade danorma) ou passam a ser disciplinados por regras de vigênciatemporária (que tampouco correspondem às da nova lei);pela retroatividade, ao contrário, fatos ocorridos antes davigência da nova lei são disciplinados de acordo com asnormas desta e não segundo o direito revogado.

5.2.1. Disposições transitórias

A questão das disposições transitórias é sensivelmentemenos complexa que a da retroatividade. O legislador

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identifica os fatos ou situações para os quais a aplicaçãoimediata da nova lei seria inoportuna, e admite que, poralgum tempo, eles continuem regidos pelo direito anteriorou, se não, por regras específicas — diferentes dasestabelecidas pela mesma lei para regular os fatosposteriores à sua vigência.

O Código Civil contempla várias disposiçõestransitórias, incluindo as pertinentes aos institutos que eleaboliu. Esse estatuto extinguiu, por exemplo, um direito realdenominado enfiteuse. Trata-se de vetusto gravame empleno desuso, que a lei entendeu não ser mais necessáriodisciplinar. Desse modo, a partir da vigência do Código Civil,ninguém mais pode instituir esse direito real sobre bensimóveis de sua propriedade. Nenhuma nova enfiteuse, emoutros termos, pôde ser instituída a partir de 12 de janeiro de2003. Mas, e as anteriormente constituídas, as pouquíssimasque ainda existiam naquela data, o que aconteceu com elas?A resposta está no art. 2.038 do CC, que abriga norma decaráter transitório, segundo a qual as enfiteuses existentesquando da entrada em vigor do Código Civil continuarãosubordinadas, até sua extinção, às normas do Códigoanterior, de 1916.

Outro exemplo: o art. 2.028 do CC preceitua que serão osda lei anterior os prazos, quando reduzidos pela nova lei,desde que já tenha transcorrido mais de sua metade quandoda entrada em vigor do Código Civil. Pois bem, o prazo geral

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de prescrição das ações pessoais do Código antigo era devinte anos, enquanto no atual o prazo geral foi reduzido paradez anos, independentemente do tipo de ação (CC, art. 205).Desse modo, se no dia da entrada em vigor do Código Civiljá havia transcorrido, do prazo de prescrição da pretensãocorrespondente a uma ação pessoal qualquer, mais de dezanos (isto é, mais da metade do prazo anteriormente fixadoem lei), ele continuará fluindo de acordo com o Código de1916, quer dizer, prescreverá em vinte anos. Mas, por outrolado, se, na data da entrada em vigor do Código Civil,daquele mesmo prazo havia transcorrido menos de dez anos(menos da metade do prazo previsto na lei anterior), então amesma pretensão prescreverá em dez anos, que é oestabelecido pela lei vigente.

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As disposições transitórias da novalei podem estabelecer que certosfatos continuarão regidos pela leiantiga ou ficarão sujeitos a regrasespecíficas de vigência temporária(diferentes das regras contidas nanova lei para vigência por tempoindeterminado).

Nesses exemplos encontram-se disposições transitóriasque estabelecem a vigência temporária da lei revogada emrelação a determinadas matérias (enfiteuse) ou em algumassituações (na contagem de prazos reduzidos, desde quetenha transcorrido mais de metade deles). Excepcionou-se,dessa maneira, a regra básica do direito intertemporal, parafins de determinar a aplicação da lei revogada a fatosposteriores à revogação.

5.2.2. Retroatividade da lei

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Para bem compreender a questão da retroatividade dalei, importa, de início, aclarar que sempre a norma jurídica éaplicada no presente em relação a fatos ocorridos nopassado. Não é atributo exclusivo da norma retroativa aaplicação a fatos pretéritos. Toda e qualquer norma,retroagindo ou não, é aplicada a fatos que forçosamente seencontram em tempo anterior, já que a aplicação da leipressupõe ter sido ela desobedecida. Se o motorista atropelaculposamente o transeunte, indica a lei que ele deveindenizar os danos causados. Se não o faz, a vítima doacidente deve promover a ação judicial com vistas acondená-lo ao pagamento da indenização. O juiz, ao acolheressa ação, estará aplicando a lei. O julgamento, contudo,ocorrerá necessariamente em tempo posterior ao doacidente. A aplicação da lei sempre se refere a fato verificadono passado, visto que a decisão judicial não pode serconcomitante com o surgimento do direito lesado.

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A aplicação da lei pelo juiz tem porpressuposto a sua desobediência poruma das partes, de que originou oconflito de interesses. Desse modo, alei é sempre aplicada a fatospassados, esteja ou não retroagindoseus efeitos.

A aplicação da lei diz respeito a fato passado (anterior àdecisão judicial) e configura ordem a ser cumpridaevidentemente no futuro (posterior à decisão). Imagine queo consumidor de plano de assistência à saúde não consigainternar-se para determinado tratamento, porque a operadoraconsidera a hipótese não abrangida em seu contrato e, porisso, não assume a obrigação de pagar o hospital. Esseconsumidor pode propor, por meio de seu advogado, açãopara pleitear ordem judicial determinando ao hospital que ointerne e à operadora que custeie o tratamento. Se a obtiver,é porque o juiz entendeu que o contrato de assistência àsaúde contemplava aquela cobertura. Estará, então,

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aplicando a lei a fato passado — coibindo a desobediênciada operadora à norma jurídica que determina o cumprimentodos contratos — e assegurando todos os efeitos dessaaplicação (isto é, a internação pelo hospital e o pagamentopela operadora).

Uma vez que a aplicação da lei sempre diz respeito a fatopassado, o que se discute na questão da retroatividade?Discute-se a lei a aplicar. Se o juiz julgar o fato passado deacordo com a lei então vigente, não se opera nenhumaretroatividade; mas se julgá-lo segundo a lei que entrou emvigor após o fato, considera-se que houve retroatividade.No direito penal, a norma mais benéfica retroage em favor doacusado (CP, art. 2º, parágrafo único). Se, na data em quealguém cometeu certo crime, era este apenado na lei comdois anos de detenção, mas, posteriormente, a lei reduziupara um ano a pena, o criminoso tem o direito de cumprir apena menor. O crime ocorreu no passado, quer dizer, antesda decisão judicial; esta, por sua vez, norteou-se não pelanorma vigente ao tempo do delito, mas pela que entrou emvigor posteriormente. Deu-se, nesse caso, a aplicaçãoretroativa da lei.

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Verifica-se a aplicação retroativada lei quando o juiz decide o fato(necessariamente passado),norteando-se não pela norma entãovigente, mas por norma que entrouem vigor posteriormente àocorrência daquele.

A doutrina costuma abordar a questão da retroatividadenoticiando a existência de duas diferentes abordagens: asubjetivista e a objetivista. De acordo com os adeptos daprimeira, os limites da retroatividade da lei são estabelecidospelos direitos subjetivos, enquanto para os da segunda osão pelo direito positivo (Cardozo, 1995:107/222; Pereira,1961:139/150). Na abordagem subjetivista só há lugar para aconstrução de argumentos próprios à tese do direito naturale referenciados a ordenamentos jurídicos que nãodisciplinam a matéria. Como no Brasil há dispositivosregulando a aplicação da lei no tempo, a abordagem útil é aobjetivista (Pereira, 1961:151).

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No direito brasileiro, são pertinentes à matéria o art. 5º,XXXVI, da Constituição Federal, para o qual “a lei nãoprejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e acoisa julgada”, e o art. 6º, caput, da LINDB, que preceitua: “alei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o atojurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada”.

Convém inicialmente deixar claro que a ConstituiçãoFederal não veda a retroatividade das leis. Uma lei brasileiracom dispositivo retroativo não é inconstitucional, já que oart. 5º, XXXVI, da CF limita-se a proteger dos efeitos da leinova os direitos adquiridos, o ato jurídico perfeito e a coisajulgada. Assim, a lei que retroage sem prejudicar essas trêsgarantias fundamentais será compatível com o preceitoconstitucional.

Ademais, a Lei de Introdução às Normas do DireitoBrasileiro estabelece o princípio geral da irretroatividade aomencionar que os efeitos da lei serão imediatos. Dessaforma, para que uma lei retroaja no direito brasileiro, elaprecisa conter um expresso dispositivo nesse sentido (cf.Cardozo, 1995:320/323). Sendo a lei omissa quanto à suaretroatividade, será irretroativa, por força do art. 6º, caput, daLINDB. A regra, em outros termos, é a de que a lei, no Brasil,não pode ser aplicada a fatos verificados anteriormente àsua vigência, exceto se contiver expressa disposição nessesentido. Mesmo assim, sua aplicação deverá resguardar osdireitos adquiridos, os atos jurídicos perfeitos e a coisa

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julgada. Esse preceito de direito intertemporal não se aplicaàs normas de direito penal, sujeitas, como visto acima, aregramento próprio: retroagem quando são mais benéficasque a revogada, ainda que não contemplem dispositivoexpresso nesse sentido.

No direito brasileiro, para que alei cível retroaja é necessário quecontemple dispositivo expresso nessesentido, já que a regra geral é a dairretroatividade (LINDB, art. 6º).Além disso, a lei retroativa nãopoderá prejudicar o ato jurídicoperfeito, o direito adquirido e acoisa julgada (CF, art. 5º, XXXVI),sob pena de inconstitucionalidade.

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Em suma, a lei cível, no Brasil, pode ser retroativa, desdeque preencha duas condições simultaneamente: a) respeitoao direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada; b)expressa previsão da retroatividade. Se não atender àprimeira, ela será inconstitucional; se desatender à segunda,restará alcançada pela regra geral da irretroatividade.

5.2.3. Direito adquirido, negócio jurídico perfeito e coisajulgada

No exame da questão das antinomias de segundo grau,afirmou-se que, no conflito entre os critérios hierárquico ecronológico, deve prevalecer o primeiro. Entre uma normasuperior anterior e outra inferior posterior antinômicasdeve-se resolver a antinomia em favor da superior, porque ocritério hierárquico corresponde a valor mais importante doque o relacionado ao critério cronológico (Cap. 3, item 4). Orespeito à hierarquia das normas está relacionado àsegurança que deve inspirar o direito, ao passo que aprevalência da norma posterior sobre a anterior justifica-sepelo constante aprimoramento dos preceitos normativos. Alei nova presume-se melhor que a antiga, e somente por estarazão, para substituir a disciplina então existente por outramais aprimorada, é que se a editou. O valor segurança,porém, é tido como mais importante para o direito que ov a lo r progresso; assim sendo, a norma posterior nãoprevalece sobre a superior.

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O mesmo conflito de valores se encontra na discussãosobre a retroatividade da lei. Se a lei nova é presumivelmentemelhor que a antiga, em nome do crescente aprimoramentodo direito, a retroatividade deveria ser a regra. Por outrolado, ao se prestigiar unicamente o valor progresso, aretroatividade não deveria deparar com nenhuma limitação,alcançando todo e qualquer fato verificado anteriormente àsua entrada em vigor. Afinal, a lei nova está sendo editadaexatamente porque se considerou a anterior inadequada àdisciplina dos conflitos de interesses. Assim não é, porém; oaprimoramento trazido pela nova lei não pode despertarinsegurança. Reputa-se mais importante, para o direito,prestigiar o valor segurança do que a melhoria das normas(Pereira, 1961:131).

Em outros termos, a regra deve ser a da irretroatividadee as exceções não podem prejudicar garantias fundamentais(direitos adquiridos, atos jurídicos perfeitos e coisa julgada)porque o direito não inspiraria segurança nas pessoas casotudo pudesse ser radicalmente alterado pela superveniênciade nova lei. O que o credor recebeu do devedor, segundo asleis vigentes ao tempo do cumprimento da obrigação, eleteria que restituir em razão da inovação legislativa; osherdeiros deveriam refazer a partilha, sempre que a leialterasse as normas de sucessão; o que era certo, de acordocom o direito de então, passaria a ser errado, e vice-versa,pelo novo direito, independentemente das ações dos

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envolvidos. Se riscos como estes não ficarem absolutamenteafastados pela ordem jurídica, nenhuma solução jurídica oujudicial poderá revestir-se daquela definitividade inspiradorade segurança.

Os conceitos de direito adquirido, ato jurídico perfeito ecoisa julgada encontram-se nos parágrafos do art. 6º daLINDB.

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Lei de Introdução às Normas doDireito Brasileiro, art. 6º:

§ 1º Reputa-se ato jurídico perfeitoo já consumado segundo a leivigente ao tempo em que se efetuou.

§ 2º Consideram-se adquiridosassim os direitos que o seu titular,ou alguém por ele, possa exercer,como aqueles cujo começo doexercício tenha termo pré-fixo, oucondição preestabelecidainalterável, a arbítrio de outrem.

§ 3º Chama-se coisa julgada oucaso julgado a decisão judicial deque já não caiba recurso.

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Direito adquirido é o definitivamente incorporado aopatrimônio de uma pessoa. Se uma nova lei, por hipótese,aumenta a idade mínima para dirigir automóveis de 18 para 20anos, os jovens de 19 que já estivessem habilitados, na datada entrada em vigor, assim permaneceriam. A lei nova nãopoderia postergar os efeitos da habilitação, nesse caso,porque estaria prejudicando direito anteriormente adquirido.Isto é, estaria dispondo contrariamente à faculdade jáincorporada ao conjunto de direitos que aqueles jovenstitularizam.

Da proteção ao direito adquirido não se pode concluir ainalterabilidade do conjunto de direitos titularizados pelaspessoas. Essa proteção não significa, por outras palavras,que ninguém pode deixar de usufruir os direitos que tivertitularizado um dia. A distinção entre direito adquirido e nãoadquirido é, muitas vezes, difícil, em especial quando taldireito é exercido de modo continuado, mas deve serconsiderada sempre que se discute a aplicação da lei notempo. É necessário identificar se o direito já estáincorporado aos titularizados pela pessoa, em termosdefinitivos, ou se é apenas uma expectativa de direito ouuma incorporação transitória (Cap. 5, item 4).

Assim, se a lei altera o cálculo da remuneração dacaderneta de poupança, todos os poupadores passam a terseus depósitos remunerados de acordo com o novo critério.

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O fato de eles terem, até então, direito a determinadaremuneração não significa que isso não possa ser mudadopela lei. Não há direito adquirido à inalterabilidade do critérioremuneratório desse investimento. Mas, atente-se para omomento em que passam a se aplicar as regras do novocritério. As cadernetas de poupança são remuneradas porperíodos mensais. Se a lei entra em vigor, por exemplo, nodia 1º de determinado mês, as remuneraçõescorrespondentes aos períodos iniciados antes dessa datadevem atender ao critério antigo, ainda que o seuencerramento se verifique em data posterior à da entrada emvigor da lei nova. O período de remuneração de umacaderneta de poupança iniciado no dia 20 do mês anterior aoda entrada em vigor da lei nova encerrar-se-á no dia 20 domês seguinte, quando essa lei já estará vigente. Mas, comose iniciou sob a égide de determinada lei, o poupador temdireito adquirido a ser remunerado, naquele período mensal,de acordo com os critérios desta. Quanto aos períodosmensais de remuneração subsequentes, os que vão iniciar-se sob o pálio da lei nova, não há direito adquirido àinalterabilidade do critério remuneratório.

Outro exemplo: se a lei suprime benefício de umfuncionário público, ela não está lesando direitosadquiridos, desde que reste assegurada a sua fruição a quemjá reunira as condições necessárias para tanto. Explico:imagine que seja suprimido o direito a licença-prêmio de três

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meses a cada cinco anos de serviço sem faltas injustificadas;aqueles que, na data da entrada em vigor da nova lei, jáhaviam cumprido o requisito (cinco anos de serviço semfaltas injustificadas), mas ainda não tinham gozado a licença-prêmio, continuarão a ter o direito de gozá-la; os que aindanão o haviam cumprido, não chegaram a adquirir o direito;por isso, a lei pode negar-lhes o benefício; por fim, todos osfuncionários, inclusive os que já haviam anteriormente sebeneficiado da licença-prêmio, deixarão de titularizar o direitopelo tempo de serviço prestado a partir da entrada em vigorda nova lei (cf. Mello, 1981:105/119).

O ato jurídico é perfeito se consumado de acordo com alei vigente à época de sua realização. Os contratos,testamentos ou outras declarações de vontade consideram-s e aperfeiçoados no momento em que se reúnem todas ascondições legais para a respectiva constituição, segundo odisposto na lei vigente ao tempo em que foram feitos. Se a leinova passa a condicionar a validade de um negócio aoatendimento de certa forma, os negócios do mesmo tipocelebrados anteriormente não podem ser consideradosinválidos por faltar-lhes tal condição.

Por fim, caracteriza-se a coisa julgada quando nãohouver mais recurso cabível contra uma decisão judicial. Osprocessos judiciais, por mais demorados que sejam, um diatêm que terminar, tornando definitivamente indisputáveis asdecisões que os juízes neles exararam. Esse dia chega

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quando todos os recursos previstos na legislaçãoprocessual se esgotam e não há mais como renovar adiscussão do objeto em litígio. Em decorrência, a decisãotomada (certa ou errada, justa ou injusta, legal ou ilegal etc.)fica inalterável. Quando a solução dada a certo conflito deinteresses pelo Poder Judiciário não puder mais ser revista,opera-se a coisa julgada. Nem mesmo se uma lei nova trouxerdiferente orientação para a superação daquele mesmoconflito de interesses pode ser reaberta a discussão. Emsuma, a decisão judicial irrecorrível não pode ser alteradanem mesmo pela lei. Com isso, encerrado o processo judicial,podem as pessoas ficar seguras de que a solução daqueleespecífico conflito de interesses objeto do litígio não será,no futuro, alterada.

As garantias contra a retroatividade da lei sãoindispensáveis à segurança que se espera do direito. Mas,note-se, elas não podem resultar em completa frustração dosobjetivos pretendidos com a inovação legislativa,principalmente se desta não decorrerem prejuízos relevantesaos interesses anteriormente tutelados. Até 1977, não seadmitia no direito brasileiro o divórcio, isto é, o término dovínculo do casamento. A indissolubilidade do matrimônioera, aliás, um preceito constitucional. Naquele ano, aprovou-se emenda à Constituição admitindo-se, em alguns casos, adissolução. Pois bem, ninguém questionou que os casadossob a égide do regime constitucional da indissolubilidade,

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apesar de configurarem seus casamentos inequívocos atosjurídicos perfeitos, também podiam divorciar-se. Restariaminteiramente frustrados os objetivos da emendaconstitucional (isto é, da nova norma), caso o divórcio sófosse autorizado para casamentos celebrados a partir dela.

5.3. Aplicação da lei e equidadeNa ideologia inspiradora de muitos argumentos

jurídicos, considera-se que a lei veicula uma solução justapara os conflitos de interesses nela referidos. Mas tambémse discute, por esses argumentos, se, além da soluçãoorientada pela lei, não haveria também outras soluçõesigualmente justas, ou até mais justas que a legal. Estas sãoas soluções ditadas pela equidade.

A noção de que a lei escrita não abarca toda a justiça érecorrente nas reflexões filosóficas desde a AntiguidadeClássica. Em Aristóteles, por exemplo, equitativo é o justoque independe da lei escrita (Ferraz Jr., 2002:197/209). Emtermos atuais, pode-se dizer que a equidade é a justiça quenão se encontra em norma de direito positivo.

O julgamento por equidade, no direito brasileiro, só épermitido ao juiz em hipóteses delimitadas por lei (CPC, art.127). Quer dizer, salvo nalgumas situações, o juiz só podeagregar à fundamentação de sua sentença argumentos queprocurem demonstrar que a lei está sendo aplicada. Por maisque flexibilize a norma jurídica (por meio dos métodos e tipos

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de interpretação, da identificação e integração de lacunas, dasuperação de antinomias etc.), o juiz deve ordinariamenteargumentar que a está aplicando. Ele não deve sustentar suadecisão em argumentos que revelem ou sugiram não estarsendo aplicado o direito positivo, exceto nos casos em que aprópria lei autoriza o julgamento por equidade.

Quando está autorizado a julgar por equidade e o faz, ojuiz deixa normalmente de aplicar a lei específica para, combase num dispositivo genérico, adotar uma solução diversada legal, que lhe pareça tanto ou mais justa que aquela.

No julgamento por equidade, o juiznão aplica a norma de direitopositivo que regula especificamentecasos como o julgado, porconsiderar que outra solução é tantoou mais justa que a veiculada poraquela.

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Lembre-se que a equidade é também admitida, no direitobrasileiro, como meio de colmatação de lacunas, apósesgotados todos os instrumentos referidos no art. 4º daLINDB (Diniz, 1981:228/231). A propósito, há dispositivoslegais que se referem a ela nesse contexto. São o art. 8º daCLT, em que a equidade é apresentada como um dosrecursos de integração da legislação trabalhista ou deconvenções coletivas e contratos sujeitos ao direito dotrabalho, e o art. 108, IV, do Código Tributário Nacional(CTN), em que é o derradeiro instrumento a empregar pelaautoridade, na ausência de disposição expressa.

Quando tem a função de instrumento de preenchimentode lacunas, o julgamento por equidade não é problematizávelna questão da aplicação da lei. De fato, se há lacuna, não hálei a aplicar, e a equidade tem, nesse caso, a função denortear a solução do conflito de interesses. O juiz deveadotar a solução que lhe pareça mais justa, até porque nãoexiste nenhuma apontada pela lei. Mas quando não tem essafunção, a equidade só é admitida se específica eexpressamente autorizada por norma legal.

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No direito brasileiro a equidadepode ser empregada pelo juiz emduas hipóteses: a) na colmatação delacunas, quando esgotados osrecursos legais (LINDB, art. 4º); e b)na adoção de solução mais justa quea veiculada pela norma jurídicaaplicável ao caso, desde queautorizado pela lei (CPC, art. 127).

São hipóteses, no direito brasileiro, em que o julgamentopor equidade está autorizado: a) em determinadas causas dejurisdição voluntária (por exemplo, correção de registrocivil), o juiz não está obrigado a observar o critério delegalidade estrita e pode adotar a solução que considerarmais conveniente ou oportuna (CPC, art. 1.109); b) nascausas de competência do Juizado Especial Cível (porexemplo, as de valor inferior a quarenta salários mínimos), o

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juiz deve adotar a solução que reputar mais justa eequânime, atendendo aos fins sociais da lei e às exigênciasdo bem comum (Lei n. 9.099/95, art. 6º); c) na proteção dosconsumidores, o juiz pode julgar por equidadereconhecendo-lhes direitos além dos previstos em lei (CDC,art. 7º); d) nas arbitragens em geral, desde que as partes decomum acordo tenham assentido, os árbitros poderãodecidir por equidade (Lei n. 9.307/96, art. 2º), ressalvada aarbitragem de feitos sujeitos aos Juizados Especiais Cíveis,em que a equidade é sempre admissível (Lei n. 9.099/95, art.25).

Nos casos de autorização legal, o julgamento porequidade significa o afastamento da aplicação da leiespecífica para a disciplina do conflito de interesses, objetoda demanda judicial, para alcançar solução tanto ou maisjusta que a veiculada por aquela. Imagine que, numa causacompreendida na competência do Juizado Especial Cível,tenha ocorrido a prescrição da pretensão no dia exatamenteanterior ao da propositura da ação. Nessa demanda, seaplicar o dispositivo legal específico sobre prescrição, o juizconsiderará que o autor perdera o direito de acionar o réu.Se, porém, empregar a equidade em seu julgamento, o juizpoderá deixar de aplicar aquele dispositivo e aceitar ademanda, mesmo tendo sido esta proposta um dia apósprescrita a pretensão.

Note, porém, que, no exemplo acima, o juiz deixou de

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aplicar a norma específica para o caso, mas aplicou o art. 6ºda Lei n. 9.099/95. Quer dizer, exceto se estiver colmatandolacuna, o juiz, quando julga por equidade, também aplicauma norma jurídica; não a norma jurídica específica para ofato em questão, porque a tem por circunstancialmenteinjusta, mas a norma genérica que o autoriza a assimproceder.

6. SUBSUNÇÃOSubsunção é a constatação da aplicabilidade da lei a

certo fato. Trata-se de uma operação mental, realizada tantopelo tecnólogo como pelo profissional do direito,exteriorizável via argumentação jurídica. Ao argumentar nosentido de que determinado fato deve gerar a consequênciaprevista numa norma jurídica, o tecnólogo ou profissional dodireito está subsumindo aquele fato a essa norma. Odoutrinador que, para explicar o conteúdo das leis, ilustrasuas lições com exemplos de fatos nelas abrangidos, estátambém fazendo subsunções. O promotor de justiça, ao dizerque uma pessoa incorreu em crime, subsume um fato (aconduta praticada pelo denunciado) à lei (dispositivo doCódigo Penal, por exemplo, em que se descreve o delito).

O juiz, na fundamentação da sentença, normalmentesubsume os fatos provados nos autos judiciais à lei que estáaplicando. Mas não se confundem subsunção e aplicação.Esta é, como visto, o ato do Poder Judiciário pelo qual um

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conflito de interesses é solucionado de acordo com a lei; e asubsunção é a operação mental realizada pelo julgadorrelacionando o descrito na norma ao acontecido (segundoas provas nos autos). A subsunção do fato à lei, portanto,antecede a aplicação desta.

Subsunção é a operação mentalque se exterioriza por argumentosjurídicos, por meio da qual seconstata que determinadaocorrência corresponde ao fatodescrito na norma jurídica.

Subsunção também não se confunde com interpretação.A primeira diz respeito a fatos — se são ou não os descritosna norma jurídica. Já a interpretação tem por objeto o sentidoe alcance da norma. São operações mentais distintas, emborase entrecruzem: ao interpretar, por qualquer método, a lei, oexegeta tem já fatos recortados em sua mente; por outro

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lado, não é possível subsumirem-se fatos a qualquer normasem ter já alguma intelecção do sentido e alcance dela.Embora não se desligue uma operação da outra, sãoconceitualmente distintas a interpretação (da norma) e asubsunção (de fatos à norma).

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Capítulo 5

DIREITOSSUBJETIVOS

1. DIREITO SUBJETIVO E DIREITO OBJETIVOQuando se afirma que determinada pessoa tem um

direito, pode-se estar referindo a significados diversos.Lembro três.

Inicialmente, a titularidade de um direito significa umatributo do sujeito. Ter um direito, nesse caso, quer dizerostentar uma qualidade. Quem afirma que todos os homens emulheres têm direito à vida está sustentando que oshumanos em geral apresentam certa característica, sãodotados de uma qualidade particular: a de poderem agirlegitimamente na defesa de sua própria vida em qualquercircunstância de tempo ou lugar, e mesmo que disso decorra

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o sacrifício de outros seres vivos.Outra maneira de se entender que determinada pessoa

tem um direito é referir-se ao ordenamento jurídico. Ter umdireito, aqui, é uma metáfora: o sujeito encontra-se emcondição ou situação descritas pelas normas jurídicas comoensejadoras de uma faculdade, prerrogativa, preferência etc.Nesse contexto, se você tem direito à educação, isso não édecorrência de um atributo seu como ser humano integrantede uma sociedade democrática do século XXI, mas de umanorma vigente que assim o estabelece (no caso brasileiro, oart. 205 da CF).

Finalmente, em termos meramente operacionais, ter umdireito significa poder acionar em seu favor a máquinarepressora do Estado. Se tenho o direito de receber o valordo aluguel e não sou pago, posso ir a juízo processar olocatário para obter a satisfação do meu crédito por meio deprovidências que só o Estado pode legitimamente adotar(despejo do devedor ou expropriação de seus bens paravenda forçada em leilão e pagamento do credor). Há quemafirme que este seria, a rigor, o único direito existente — o depoder acionar a estrutura repressiva do Estado para fazerprevalecer o interesse protegido como direito.

No primeiro significado (atributo do sujeito), chama-se odireito de subjetivo; no segundo (prescrição normativa), dedireito objetivo ou positivo. Esqueço, por enquanto, oderradeiro significado, cuja pertinência é objeto de

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discussão no campo do direito processual, e examinoalgumas relações entre os dois primeiros: o direito subjetivopode ser considerado aptidão dos homens e mulheres que odireito objetivo se limita a reconhecer e declarar ou comosimples reflexo do direito objetivo.

O direito subjetivo pode sercompreendido de duas maneiras:como algo inerente à condiçãohumana, que o ordenamento jurídico(direito objetivo ou positivo) selimita a reconhecer e declarar; oucomo simples reflexo do direitopositivo, isto é, uma outra forma dedescrever o conteúdo das normasjurídicas.

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Os direitos subjetivos podem ser vistos, inicialmente,como atributos naturais de homens e mulheres; quer dizer,derivados de sua natureza. Assim como se submetem acertas leis físicas ou biológicas, os humanos também estãosujeitos às leis morais de forma natural, independentementede sua vontade ou da organização social que constroem. Domesmo modo que não podem levitar (contrariando a lei dagravidade), os humanos também não poderiam rompercontratos ou subtrair bens alheios.

Segundamente, os direitos subjetivos podem serconsiderados reflexos do direito positivo. Se determinadaordem jurídica não reconhece certo direito, não se podeafirmar sua existência. Não haveria sequer meios para fazê-loprevalecer por meio da atuação do aparelho repressor doEstado. Até 1888, no Brasil, havia escravos. Em outrostermos, parte da população brasileira não titularizava odireito à liberdade, porque assim preceituavam as leis entãovigentes. Os atributos humanos dos escravos sempre foramrigorosamente idênticos aos dos libertos, mas a lei válida eem vigor os discriminava e isso bastava para que osprimeiros não fossem livres. É exemplo dessa visão a dosnominalistas, que consideram o direito subjetivo meroconceito operacional das normas (Ross, 2004).

As duas maneiras de se considerarem as relações entredireito subjetivo e objetivo são sintetizáveis numa questãode primazia. Na primeira, a primazia cabe aos direitos

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subjetivos, já que, sendo naturais aos homens e mulheres, aordem posta não poderia deixar de os reconhecer e declarar.Por vezes, refere-se a esse enfoque designando-ojusnaturalista. Na segunda maneira de se relacionar o direitosubjetivo ao positivo, a primazia cabe a este último. Só hádireito subjetivo quando a ordem posta o outorga. Esseenfoque é referido como positivista (não confundir com osentido filosófico da expressão, que é bem diverso).

O enfoque "jusnaturalista" confereprimazia ao direito subjetivo sobre oobjetivo: a ordem jurídica develimitar-se a reconhecer e declarar osdireitos inerentes aos humanos. Já oenfoque "positivista" confereprimazia ao direito objetivo sobre osubjetivo: só existem os direitosassegurados em lei.

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Por fim, registre-se que a primeira forma de compreenderos direitos subjetivos — como inatos, inerentes aos homense mulheres — foi mais prestigiada nos argumentos jurídicosno passado. A partir de meados do século XX, ela ecoaprincipalmente nos discursos ideológicos ou políticos. Nosargumentos jurídicos, atualmente, predomina a segundaforma de compreensão da matéria, procurandodoutrinadores, advogados e juízes sustentar que atitularidade de direitos é decorrência do disposto em normasjurídicas válidas do ordenamento em vigor. Mas atente-se:não se pode considerar inteiramente descartada aargumentação jurídica da primazia do direito subjetivo sobreo positivo. Quando se impõe argumentar para além da leiposta, cabe a referência a direitos subjetivos que a ordemconstituída não poderia desconsiderar.

2. DIREITO SUBJETIVO E DEVERA todo direito subjetivo corresponde um dever. A

prestação cuja implementação é necessária à satisfação dodireito subjetivo de alguém é sempre devida por outro ououtros sujeitos. É-se titular de um direito em relação a uma,algumas ou todas as pessoas (Cap. 10, item 2). Em outrostermos, para que alguém seja credor, outro deve serdevedor; para que uma pessoa seja proprietária de um bem,

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todos devem respeitar a sua propriedade; para que o paidivorciado tenha direito de visitar os filhos, a mãe titular daguarda tem o dever de não dificultar ou obstar a visita.

Se não posso opor a ninguém a prerrogativa, faculdadeou preferência de que me considero titular, a rigor nãopossuo direito nenhum. Não se pode dizer, por exemplo, quetenho direito de sonhar; pelo menos, não num sentidojurídico. E assim é porque, nesse caso, não há ninguém aquem se pudesse imputar a condição de devedor. Sonho oque sonho, independentemente da ação ou omissão dequalquer outra pessoa.

Não há direito subjetivo sem um dever correspondente.Claro que o titular do direito nunca coincide com o do dever.São sempre distintos. Se a mesma pessoa se torna, porqualquer razão, credora e devedora de uma obrigação, estadesaparece. É o instituto denominado “confusão” (CC, art.381). Quer dizer, os direitos subjetivos pressupõem semprepelo menos dois sujeitos: quem tem o direito (sujeito ativo) equem tem o dever (sujeito passivo). Daí a noção de relaçãojurídica, também apropriada para a descrição dos fatosalcançados pelo conceito de direito subjetivo (Cap. 10, item2). Assim, em vez de direito ao crédito, fala-se em relaçãocreditícia; em vez de direito de família, em relação familiar, eassim por diante.

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A todo direito subjetivo (dealguém) corresponde um dever (deoutra pessoa). Há, na relaçãojurídica, pelo menos dois sujeitos: oativo, que tem o direito, e o passivo,que tem o dever.

Nem todos os autores concordam com a alteridade dodireito subjetivo, isto é, alguns consideram a existência dedireito sem um dever correspondente. Há os que reputam odireito potestativo — definido como o poder de influir nasituação jurídica de outro sujeito que se submete àmanifestação unilateral da vontade do titular — comoexemplo de direito ao qual não corresponde nenhum dever(por todos, Gomes, 1957:118). São potestativos direitoscomo o de revogar procuração, despedir empregado,renunciar herança e outros. O titular do direito declara suavontade e os sujeitos envolvidos a ela se submetem. Masmesmo aos direitos potestativos correspondem deveres desujeitos obrigados a respeitar a vontade do titular. Ao

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direito do mandante de revogar a procuração corresponde odever do mandatário de se abster de representá-lo em novonegócio; ao direito do empregador de despedir o empregadocorresponde o dever deste de se retirar do local de trabalho;ao direito de renunciar herança corresponde o dever doinventariante de considerar a renúncia na proposta departilha e assim por diante.

Os positivistas kelsenianos preferem descrever o direito(aqui entendido como a ordem coercitiva do Estado) peloângulo do dever (Kelsen, 1960:92; Coelho, 1995). Segundoessa abordagem, as normas jurídicas, a rigor, não asseguramdireitos, mas sancionam descumprimentos de deveres. Odireito subjetivo do credor, assim, não é o reflexo da normade direito positivo que lhe garante o recebimento do crédito,mas da que sanciona o devedor inadimplente. A estrutura danorma jurídica seria mais bem descrita, segundo talformulação, da seguinte forma: ao devedor que não paga adívida imputa-se a sanção de expropriação dos bens para asatisfação do crédito titularizado pelo credor. Todas asnormas jurídicas, em consequência, teriam a estrutura da leipenal, em que o antecedente é a conduta que se quer evitar eo consequente, a pena prometida pelo Estado (cujagravidade teria o efeito de desestimular a condutaindesejável). O comportamento conforme o direito é ooposto aos descritos nas normas jurídicas comoantecedentes das sanções. Na formulação kelseniana,

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normas jurídicas não sancionadoras (“secundárias”) sãovistas como partes das sancionadoras (“primárias”). Odireito subjetivo, nessa perspectiva, não existe senão comouma metáfora: é o contraponto ao dever.

3. CONCEITO E CLASSIFICAÇÕES DO DIREITOSUBJETIVO

Conceitua-se direito subjetivo como a faculdade deagir. Trata-se da prerrogativa, assegurada pela ordemjurídica, de se comportar de uma forma específica, caso sejaesta a vontade do titular do direito. Quem tem um direitosubjetivo pode, na hipótese de a sua faculdade de agir serobstruída ou prejudicada por outra ou outras pessoas, sequiser, acionar o aparato repressivo do Estado, com afinalidade de garantir o exercício do direito. Ilustram osmanuais de tecnologia civilista a discussão (no final doséculo XIX e início do XX) entre Windscheid e Iheringsobre dois diferentes núcleos do direito subjetivo — avontade, para o primeiro; o interesse juridicamenteprotegido, para o segundo — e a sua superação por meio deformulações mistas que os articulam, como as de Jellinek (cf.,por todos, Pereira, 1961:37/44). Devido à atualpredominância, nos argumentos jurídicos, do enfoquepositivista da matéria, que confere primazia ao direitoobjetivo sobre o subjetivo, a importância da discussão ébastante reduzida.

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Classificam-se os direitos subjetivos segundo várioscritérios. Os mais importantes para a operacionalização doconceito são os seguintes:

a) Direitos patrimoniais e extrapatrimoniais. A maioriados direitos tem valor econômico, isto é, pode ser medida emdinheiro. Se meu automóvel é danificado num acidente detrânsito, tenho direito ao completo ressarcimento dosprejuízos, e o culpado pelo evento danoso tem o dever deme indenizar. Apura-se o quanto devo despender noconserto do veículo e o custo dos táxis que vou tomarenquanto não puder voltar a utilizá-lo — é esta a medidapecuniária do meu direito. Outro exemplo: falecendo o paiviúvo, sucedê-lo-ão os filhos. Sendo dois os sucessores,cada um tem direito à metade do patrimônio do falecido. Ovalor do patrimônio do pai dividido por dois é o valor dodireito titularizado por cada herdeiro.

A indenização pelos danos derivados do acidente detrânsito e a sucessão causa mortis são exemplos de direitospatrimoniais, sempre mensuráveis em dinheiro. Nem todosos direitos subjetivos, porém, são dimensíveis em pecúnia.Não há como precificar, entre outros, o direito de guarda dosfilhos ou os direitos morais de um artista sobre a obra (Lei n.9.610/98, art. 24: ser reconhecido como o autor, manter suacriação inédita etc.), que são exemplos de direitosextrapatrimoniais. Eles não têm valor econômico e nãointegram o patrimônio do sujeito, senão num sentido

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meramente metafórico.Certos direitos podem ser patrimoniais ou

extrapatrimoniais em função de particularidades do seutitular. O direito à imagem titularizado por um famoso artistaé patrimonial porque pode ser mensurável em dinheiro, aocontrário do direito à imagem de um desconhecido,extrapatrimonial porque não se consegue precificar.

O direito subjetivo é patrimonialou extrapatrimonial, segundo possaser mensurado em dinheiro ou não.Desse modo, por exemplo, o direito àindenização por ato ilícito épatrimonial, enquanto o direito aonome, extrapatrimonial.

A extrapatrimonialidade do direito não impede que otitular, quando lesado, seja ressarcido em dinheiro. Toda

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indenização, aliás, é feita necessariamente dessa forma.Assim, se o consumidor tem seu nome inscritoindevidamente em cadastro de restrição de crédito (Serasa,SPC), ele pode não sofrer nenhum prejuízo patrimonial, mascertamente sentirá a amarga dor da injustiça. Diz-se que,nesse caso, terá direito à indenização pelos danos moraissofridos. O juiz arbitrará uma quantia qualquer, norteadopelo critério da razoabilidade. Note-se que o consumidorsofreu lesão em seu direito à honra, que tem naturezaclaramente extrapatrimonial, e a indenização terá de ser pagaforçosamente em dinheiro: este, porém, não é uma medidadaquele. O direito à honra continua sendo pecuniariamenteimensurável; quer dizer, o dinheiro que o consumidorreceberá a título de indenização pelo dano moral nãoequivale ao valor do direito lesionado. É apenas uma quantiaarbitrada para fins de tentar atenuar a agressão moral havida.

b) Direitos absolutos e relativos. Essa classificação éfeita de acordo com o alcance da eficácia dos direitos.Alguns são universalmente eficazes, porque todos devemrespeitá-los, ao passo que outros têm eficácia restrita, umavez que apenas uma ou algumas pessoas estão obrigadas arespeitá-los. Em outros termos, os direitos absolutos são osoponíveis a qualquer pessoa. São os exercitáveis ergaomnes, diz-se. Já os relativos são os oponíveis adeterminada pessoa ou pessoas, participantes de umarelação jurídica específica. Os direitos da personalidade são

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absolutos: a privacidade pode ser defendida de quem querque atente contra ela. O direito de crédito, por sua vez, érelativo: só se pode exigir o pagamento do devedor, deninguém mais.

Direito absoluto é o oponível atodas as pessoas, como os direitosda personalidade ou o depropriedade, enquanto relativo é odireito oponível apenas à pessoa oupessoas que participam de certarelação jurídica específica, como odireito de crédito ou aos alimentos.

Da circunstância de ser absoluto o direito subjetivo nãose segue que ele não possa sofrer qualquer tipo de limitação.A qualidade de absoluto de um direito diz respeitoexclusivamente à sua oponibilidade erga omnes. Os direitos,

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mesmo os absolutos, podem ser limitados, no sentido denão prejudicarem, em determinadas situações, outrosdireitos. O direito à imagem, como modalidade de direito dapersonalidade, é absoluto. Quem quer que macule a imagemde uma pessoa tem o dever de indenizá-la. Mas é um direitolimitado, porque cede, por exemplo, diante da liberdade deinformação. Se um jornal noticia a tramitação de ação penalpor crime de estupro contra um famoso desportista, entre odireito à imagem dele e o interesse público de preservaçãoda liberdade de imprensa, prevalece o segundo. Odesportista não terá direito de ser indenizado pelos prejuízosà imagem causados pela veiculação da notícia verdadeira(Cap. 7, item 4). É um limite ao seu direito absoluto.

c) Direitos reais e pessoais. Essa classificação dizrespeito apenas aos direitos patrimoniais, que se subdividemnas categorias apontadas. Não tem sentido falar em direitosextrapatrimoniais reais ou pessoais.

O direito real tem por referência um bem, enquanto opessoal refere-se a uma obrigação a ser cumprida pelosujeito passivo da relação jurídica. Desse modo, o direito depropriedade é real, enquanto o de crédito é pessoal. Todapropriedade tem por referência um bem (imóvel ou móvel,corpóreo ou incorpóreo), sobre o qual, nos limites ditadospelo ordenamento jurídico, exerce o titular do direito umamplo poder. Por sua vez, o direito ao crédito refere-se àobrigação do devedor de pagá-lo no vencimento e pela

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forma avençada.

Se a referência do direito é um bem(imóvel ou móvel, corpóreo ouincorpóreo), ele é real; caso o objetoseja uma obrigação a ser cumpridapor sujeito ou sujeitos determinados,ele é pessoal.

O direito real é absoluto no sentido de ser oponível atodo e qualquer sujeito. Se qualquer um invadir imóvel quenão seja de sua propriedade, o proprietário pode opor-lheseu direito real e demandar a reintegração na posse. Mesmoque desconheça quem praticou o esbulho, ainda assimpoderá o proprietário opor-lhe seu direito. Já o direitopessoal é relativo, visto que referido a uma obrigação a sercumprida por uma ou algumas pessoas certas.

O interesse na distinção entre direitos reais e pessoais édecrescente. A rigor, se toda relação jurídica é um vínculo

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entre sujeitos, a referência ao direito (ou ao dever) não temmaior relevância. A oponibilidade erga omnes descreve asituação anterior à lesão ao direito. Isto é, uma vez verificadoo descumprimento do dever, deixa de ter importância anatureza absoluta do direito real, já que o usurpador dodireito de propriedade (invasor) é tão determinado quanto odevedor inadimplente. Por essa razão, para preservar autilidade da classificação, alguns autores — entre nós,Orlando Gomes (1957:114/117) — chegam a defender aexistência de relações jurídicas entre sujeito e bem, queseriam as próprias dos direitos reais.

d) Direitos disponíveis e indisponíveis. Alguns direitoso sujeito pode, por ato de vontade, deixar de titularizar eoutros, não. Os primeiros são os disponíveis. O titular podealiená-los de seu patrimônio, por meio de negócio jurídico,seja transferindo-os a outro sujeito, seja renunciando a eles.Os direitos patrimoniais do autor, os direitos reais, o direitoao crédito e outros são disponíveis porque podem ser objetode ato de disposição praticado pelo seu titular. Por outrolado, os direitos indisponíveis são os que a lei considera tãoimportantes que impede até mesmo o seu titular de abrir mãodeles. O direito aos alimentos, por exemplo, é indisponível.Alguém pode deixar de exercê-lo, por orgulho oudesconhecimento, mas ninguém pode validamente renunciara ele ou transferi-lo a terceiros. Todo direito disponível érenunciável e todo direito indisponível, irrenunciável (Cap.

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12, item 1).e) Direitos prescritíveis e imprescritíveis. Alguns

direitos devem ser exercidos dentro do prazo estabelecidoem lei. Estes são chamados de prescritíveis e correspondemà maioria dos direitos: ao crédito, de ser indenizado, dereclamar contra vícios nas coisas compradas etc. Se o titularnão o exerce no prazo da lei (prescricional ou decadencial),ele o perde. A extinção do direito em razão da inércia dotitular e do decurso do tempo é condição de segurança dasrelações jurídicas (Cap. 12, item 1). Há, porém, certos direitosque, por sua relevância, a lei define como imprescritíveis.Nesses casos, mesmo que transcorrido muito tempo, o titularainda pode exercê-lo. São situações excepcionais quedependem de expressa previsão legal. O direito de pleitear anulidade absoluta de negócio jurídico é exemplo de direitoimprescritível (CC, art. 169).

f) Direitos vitalícios e temporários. Vitalícios são osdireitos cuja existência coincide com a do sujeito que ostitulariza ou a excede. Os direitos da personalidade (imagem,nome, honra, corpo etc.) são vitalícios porque, enquanto apessoa (física ou jurídica) existir, ela o titulariza; e mesmoapós a morte do homem ou mulher, ainda pode ser defendidoo seu direito à imagem ou à honra. Temporários são osdireitos que duram menos que o seu titular. Correspondem àmaioria dos direitos subjetivos. O direito ao crédito, porexemplo, existe até que seja pago o devido ou extinta a

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obrigação.Nem todo direito vitalício é imprescritível. Se um direito

da personalidade é desrespeitado, o titular não tem a vidatoda para promover a responsabilização civil de quem odesrespeitou. Ao contrário, tem o prazo de três anos, findo oqual perderá o direito ao ressarcimento. Embora prescritível,trata-se de direito vitalício, pois, enquanto viver o titular,terá ele direito de vê-lo respeitado.

g) Direitos principais e acessórios. Os direitosprincipais são independentes, enquanto os acessóriosdependem sempre de algum outro para ser exercido. O direitoaos juros moratórios é acessório do direito ao crédito. Se, nacobrança de uma dívida, o juiz considerar que houveexcesso e reduzir o valor, não serão devidos jurosmoratórios sobre o excedente considerado indevido porquese cuida de direito acessório.

4. DIREITOS ADQUIRIDOS E EXPECTATIVA DEDIREITOS

A aquisição de um direito decorre da verificação dacondição ou das condições estabelecidas na norma jurídicapertinente. A lei considera que o sujeito é titular de umdireito subjetivo quando presentes os pressupostos (de fatoe de direito) nela referidos. Dependendo da complexidade erelevância dos interesses envolvidos, a lei submete aaquisição de direitos ao cumprimento de uma série, maior ou

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menor, de requisitos. Para situações simples e corriqueiras,elegem-se poucos pressupostos. Se desejo um automóvel,dirijo-me à loja, negocio, assino alguns documentos, pago opreço contratado e adquiro a propriedade do bem. Paraoutras situações, em que se entrecruzam interesses epossibilidades, procura a lei condicionar a aquisição dedireitos a maior gama de requisitos. Veja-se, por exemplo, ocaso do filho interessado em mudar-se para um imóvelpertencente ao pai, de cujo paradeiro ninguém sabe.

Se uma pessoa desaparece de seu domicílio, sem quedela se tenha notícia, o juiz declarará sua ausência e nomearáum curador de seus bens, a menos que o desaparecido tenhadeixado procurador ou representante (CC, art. 25). Depois deum ano da arrecadação dos bens do ausente, pode seraberta sua sucessão provisória, como se falecido fosse (CC,arts. 26 e 28). Nela é feita a partilha dos bens do ausente, emvirtude da qual o filho, provando a qualidade de herdeiro,adquire o direito de posse de imóvel da propriedade doausente (CC, art. 30, § 2º). Pois bem, listem-se as condiçõesque a lei estabeleceu para que aquela pessoa (o filho) setornasse titular do direito em questão: desaparecimento dopai; inexistência de notícias de seu paradeiro; inexistência deprocurador ou representante; declaração judicial deausência; nomeação de curador dos bens do ausente e suaarrecadação; transcurso do prazo de um ano após aarrecadação dos bens; declaração judicial de abertura da

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sucessão provisória; prova, pelo filho, da qualidade deherdeiro. A extensa lista justifica-se pela complexidade dosinteresses envolvidos com o assunto: afinal, o ausente podeainda estar vivo e retornar a qualquer momento.

De qualquer forma, independentemente da extensão dosrequisitos estabelecidos pela lei para que determinadosujeito passe a titularizar um direito, é certo que, enquantonão satisfeitos integralmente tais requisitos, não se podefalar em aquisição do direito. O direito adquirido é aqueleque integra já o patrimônio de uma pessoa exatamenteporque foram cumpridos, em sua totalidade, oscorrespondentes pressupostos de fato e de direito previstosem norma jurídica.

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Direito adquirido é o incorporadodefinitivamente no patrimônio dotitular. Dá-se a aquisição com opreenchimento de todos os requisitosfixados pela lei para isso. Quandoum ou mais dos requisitos estãocumpridos, mas não todos, o sujeitotem apenas expectativa de direito.

Quando ainda não se completou o processo deaquisição do direito, mas alguns dos pressupostoslegalmente estabelecidos já se verificaram, costuma-se dizerque há expectativa de direito. É necessário estabelecerclaramente a distinção entre direito adquirido e expectativade aquisição. Afinal, quem tem mera expectativa de direitonão tem direito nenhum. Conferir àquele em relação ao qualnão se cumpriram todos os pressupostos para a aquisiçãode um direito o mesmo tratamento dispensado àquele outro,em relação ao qual tais pressupostos foram totalmente

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atendidos, é não só desobedecer a lei, como tambémdesrespeitar o princípio constitucional da igualdade.

Por outro lado, quando a lei assegura ao titular desimples expectativas a adoção de medidas assecuratórias deseu interesse (fala-se inapropriadamente de “direitosacumulados”), ela está, em última análise, concedendo umdireito subjetivo.

5. EXERCÍCIO DOS DIREITOSA todo direito subjetivo corresponde uma ação que o

assegura. Quer dizer, o sujeito pode sempre ir a juízo epropor uma demanda contra quem considera estejadescumprindo o dever correlativo ao seu direito. Assimfazendo, estará acionando a máquina repressora do Estadona tentativa de ver prevalecer o seu interesse. Caberá ao juizdecidir o conflito, definindo se o demandante tem razão emseu pleito ou se o demandado estava resistindo de formalegítima a ele. É assim que se solucionam os conflitos deinteresses nas sociedades democráticas e organizadas.

O ideal é que a decisão do juiz, ao reconhecer odesrespeito a um direito subjetivo, pudesse assegurar aotitular a mesma situação em que se encontraria caso nãotivesse havido o descumprimento do dever correspondente.Imagine que o comprador de imóvel a prazo, após cumpririntegralmente seu dever de pagar as prestações contratadas,vê-se diante de um vendedor que se nega a outorgar-lhe a

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escritura pública de compra e venda indispensável aoregistro para fins de transferência da propriedade do bem.Nesse caso, ele pode requerer ao juiz que lhe adjudique oimóvel por sentença. Levada a registro a sentençaadjudicatória, transfere-se o bem para a propriedade docomprador. Aqui, o titular do direito acabou alcançando, pormeio da atuação estatal, resultado idêntico ao que teriaadvindo do cumprimento do dever correspondente.

Isso, porém, nem sempre é materialmente possível.Em algumas situações, a lesão ao direito não pode ser

desfeita. Se a imagem e a honra de uma pessoa são lesadasem razão da veiculação de notícia falsa pela TV, não ématerialmente possível promover a integral recuperação dosdireitos subjetivos desrespeitados. Nesse caso, procura-seatenuar os efeitos da lesão por meio de mecanismosressarcitórios. Isto é, a TV é obrigada pelo juiz a veicularesclarecimentos que recomponham a verdade dos fatos epagar indenização (por danos materiais e morais) ao sujeitotitular dos direitos desrespeitados.

Em suma, há deveres cujo cumprimento pode sermaterialmente exigido e obtido pela atuação do aparelhorepressor do Estado, e há os deveres irremediavelmentedescumpridos, em relação aos quais cabe apenas exigir eobter sua substituição por um resultado próximo ou pelomais completo ressarcimento.

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Se o titular do direito lesionadoobtém em juízo uma decisão que lheassegura exatamente o mesmoresultado que adviria documprimento do devercorrespondente, opera-se a execuçãoespecífica da obrigação. Caso nãoseja possível o mesmo resultado, esteserá substituído ou por um resultadosemelhante ou pela completaindenização dos danos que tiversofrido.

Quando o titular do direito consegue, por meio dademanda judicial, obter exatamente o mesmo resultado que

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adviria do cumprimento do dever correspondente, opera-se aexecução específica ou direta da obrigação inadimplida.Quando não é possível alcançar o resultado idêntico ao doadimplemento da obrigação, esta deve ser substituída(execução subsidiária). Abrem-se, então, duas alternativas: asubstituição por um resultado próximo ao que decorreria documprimento do dever ou o ressarcimento. Nesta últimahipótese de substituição, diz-se que a obrigação em focoresolveu-se em perdas e danos (Cap. 13, item 2).

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Capítulo 6

OSSUJEITOS

DE DIREITO1. INTRODUÇÃO

Até aqui, neste Curso, tenho empregado os termossujeito e pessoa sem explicitar a conceituação deles.Também, vez por outra, em razão de imperativo de ordemdidática, tenho-os empregado sem estrito respeito aossentidos técnicos que lhes atribuo. Chegou o momento deprecisar os contornos de cada termo e descartar qualqueratecnicidade em sua utilização. Embora a maioria da doutrinaos tome por conceitos sinônimos (por todos, Monteiro,

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2001:56), é necessário distingui-los. De fato, como afirmaFábio Konder Comparato, “nem todo sujeito de direito é umapessoa. Assim, a lei reconhece direitos a certos agregadospatrimoniais, como o espólio ou a massa falida, sempersonalizá-los” (1977:268). Desse modo, sujeito de direito égênero e pessoa é espécie; isto é, nem todo sujeito de direitoé pessoa, embora toda pessoa seja sujeito de direito(Coelho, 1989:74/89).

A norma jurídica, para cumprir sua função de orientar asuperação dos conflitos de interesses em sociedade,descreve os fatos a disciplinar e imputa-lhes certaconsequência. Na descrição dos fatos e prescrição deconsequências, a norma necessariamente deve aludir aosagentes responsáveis ou atingidos pelas condutas descritasou prescritas. Não há comportamento sem agente, sem umautor para a ação enfocada. Desse modo, ao descrever osfatos que pretende regular, a norma jurídica, implícita ouexplicitamente, acaba se referindo a agente ou agentes.Também na imputação de consequências, a norma jurídicaidentifica forçosamente quem deve receber a sanção ou obenefício, quem deve mudar de estado etc. Em suma, não épossível orientar a superação de conflitos de interesses emsociedade desconsiderando que todo interesse tem umtitular.

Sujeito de direito é o titular dos interesses em sua formajurídica.

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Note-se que, em última instância, sempre se encontraráum ser humano, homem ou mulher, titularizando o interesseem conflito. Ainda que mediados por outros titulares nãohumanos, todos os conflitos de interesses dão-se sempreentre humanos, “pessoas nascidas do ventre de umamulher” (Ascarelli). A complexidade das relaçõeseconômicas e sociais, contudo, exige do direito a construçãode conceitos (isto é, de abstratos), destinados a dar umaforma jurídica para a titularidade dos interesses. Essa formanem sempre coincide com a realidade de fato, na qualsomente humanos têm interesses. Em outros termos, para odireito, titularizam interesses não apenas homens e mulheres,mas também alguns “seres ideais” de natureza incorpórea.

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Sujeito de direito é o centro deimputação de direitos e obrigaçõesreferido em normas jurídicas com afinalidade de orientar a superaçãode conflitos de interesses queenvolvem, direta ou indiretamente,homens e mulheres.

Nem todo sujeito de direito épessoa e nem todas as pessoas, parao direito, são seres humanos.

A construção pelo direito de conceitos destinados àidentificação de seres ideais titulares de interesses (melhordizendo, de direitos e obrigações) visa, na verdade, melhordisciplinar relações entre homens e mulheres. A finalidadedo direito é promover a superação dos conflitos deinteresses postos em sociedade, uma sociedade humana.Quando estabelece, por exemplo, que o condomínio edilício

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é um sujeito de direito, está, a rigor, tratando de modoracional a convergência (e divergência) de interesses doshomens e mulheres que moram num mesmo edifício. Os seresincorpóreos que existem para o direito são sempreinstrumentos para melhor disciplinar as relações econômicase sociais de maior complexidade entre os seres humanos. Naforma jurídica, essas abstrações titularizam direitos eobrigações exclusivamente para que os conflitos deinteresses de homens e mulheres possam ser superados demodo mais racional.

Conceitua-se, então, sujeito de direito como o centro deimputação de direitos e obrigações pelas normas jurídicas.São sujeitos, entre outros, as pessoas naturais (homens emulheres nascidos com vida), os nascituros (homens emulheres em gestação no útero), as pessoas jurídicas(sociedades empresárias, cooperativas, fundações etc.), ocondomínio edilício, a massa falida e outros. Todos eles sãoaptos a titularizar direitos e obrigações em variadas medidase se cumpridas diferentes formalidades.

2. ESPÉCIES DE SUJEITOS DE DIREITOHá dois critérios de classificação dos sujeitos de direito.

O primeiro os divide em personificados (ou personalizados)e despersonificados (ou despersonalizados). O segundodistingue, de um lado, os sujeitos humanos (ou corpóreos)e, de outro, os não humanos (ou incorpóreos).

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Como dito anteriormente, nem todos os sujeitos dedireito são pessoas, isto é, são personificados. Há sujeitos,por conseguinte, que ostentam certos atributos reservadospelo direito para as “pessoas” e há os que não os ostentam.

Destaque-se que mesmo os sujeitos de direitodespersonalizados são titulares de direitos e deveres. Oatributo da personalização não é condição para possuirdireitos ou ser obrigado a qualquer prestação. Recupere-se oconceito de sujeito de direito — centro de imputação dedireitos e obrigações referidos pelas normas jurídicas. Todosos sujeitos nele se enquadram, de modo que também osdespersonificados são aptos a titularizar direitos e deveres.

Quando o direito atribui a determinado sujeito aqualidade de pessoa, ou seja, quando o personifica,concede-lhe uma autorização genérica para a prática dosatos e negócios jurídicos. As pessoas (no campodisciplinado pelo direito privado) podem fazer tudo a quenão estejam proibidas. A larga permissão para a prática detodos os atos e negócios jurídicos não proibidos decorre dapersonificação do sujeito de direito.

Este é o atributo reservado pelo direito para as pessoas— a autorização genérica para a prática dos atos e negóciosjurídicos. Os sujeitos despersonificados não ostentam esseatributo. Quer dizer, eles só podem praticar os atos inerentesà sua finalidade (quando possuem uma) e os expressamenteautorizados por lei.

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Os sujeitos de direito podem serpessoas (personificados) ou não(despersonificados). No primeirocaso, ele recebe do direito umaautorização genérica para a práticados atos e negócios jurídicos. Apessoa pode fazer tudo o que nãoestá proibido. Já os sujeitos nãopersonificados podem praticarapenas os atos inerentes à suafinalidade (se possuírem uma) oupara os quais estejamespecificamente autorizados.

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Para ilustrar a diferença, considere a seguinte questão:determinado sujeito de direito está apto a iniciar o exercíciode uma atividade empresarial? Especificamente, a de exploraro comércio de, por exemplo, brinquedos? A respostadependerá da classificação do sujeito de direito. Se for umapessoa, é afirmativa: atendendo às normas regulamentaresda atividade, o sujeito personificado está apto a explorarqualquer empresa. Se não for pessoa, porém, a respostadependerá da existência, na lei, de autorização específicapara a exploração de atividade econômica ou inerência àfinalidade do sujeito. A diferença de tratamento entre asduas categorias de sujeitos de direito resulta do fato de que,no primeiro caso, a lei já conferiu ao sujeito uma autorizaçãogenérica para qualquer ato que não esteja proibido. E não háproibição nenhuma para as pessoas exercerem o comércio debrinquedos. A autorização genérica acompanhou aconcessão da personificação. Uma sociedade anônima épessoa (jurídica) e está, assim, autorizada a dar início àatividade empresarial exemplificada. A fundação também épessoa (jurídica) e, embora não possa ter finalidadeeconômica, pode comercializar brinquedos para, porexemplo, levantar recursos para aplicar numa finalidadecaritativa. Já o condomínio edilício não é pessoa, mas sujeitode direito despersonificado. A exploração de comércio não éinerente à sua finalidade (administrar o edifício emcondomínio) e não existe tampouco norma jurídica

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autorizando-o a fazê-lo de modo específico. Falta aocondomínio edilício, assim, aptidão para a prática dos atosreferentes à exploração de qualquer empresa comercial.

O segundo critério de classificação dos sujeitos dedireito distingue entre humanos e não humanos.

Os sujeitos humanos são os homens e mulheres. Estessujeitos surgem, para o direito, desde o momento em que umembrião do mamífero primata Homo sapiens se encontraalojado no útero de uma fêmea da espécie e inicia seuprocesso de formação de um animal biologicamenteindependente. Enquanto alojado no útero da mãe, o sujeitode direito é chamado de nascituro e não tem personalidadejurídica. É um sujeito despersonalizado. Só pode praticar osatos para os quais haja expressa previsão legal, como, porexemplo, receber bens em doação (CC, art. 542). Seu estatutojurídico altera-se substancialmente quando, decorridos cercade nove meses, o processo de formação de um animalbiologicamente independente expulsa o ser humano doaconchego do útero materno. Se, nesse momento, nascercom vida (respirar), o sujeito adquire personalidade jurídica,isto é, torna-se uma pessoa para o direito.

Já os sujeitos não humanos são os demais. Trata-se,como visto, de meros conceitos criados pelo direito paramelhor disciplinar os interesses potencialmente conflitantesdos seres humanos. Nessa categoria se encontram a pessoajurídica (associações, sociedades e fundações), a massa

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falida, o condomínio edilício, a conta de participação eoutros entes artificiais. O surgimento de um sujeito nãohumano sempre ocorre com determinado objetivo, isto é,tendo em vista uma finalidade particular. Se ele édespersonalizado, a finalidade para a qual foi criado o sujeitode direito circunscreve os únicos negócios jurídicos paracuja prática ele está apto.

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Os sujeitos de direito seclassificam, também, em humanos ounão humanos. É humano o homem oua mulher, desde o momento em que,como embrião, se aloja no útero damãe biológica. Enquanto lápermanece, é sujeitodespersonificado. Nascendo comvida, adquire personalidade. Nãohumanos são os demais sujeitos dedireitos, criações conceituaisdestinadas a melhor disciplinar osinteresses dos humanos.

A rigor, o segundo critério de classificação dos sujeitosde direito não tem relevância jurídica. Humano ou não

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humano, o sujeito de direito pode praticar ou não atos enegócios jurídicos determinados em função de seuenquadramento de acordo com o primeiro critério, isto é,segundo seja personificado ou não. A distinção, contudo, éútil à compreensão do instituto e de sua funcionalidade.Homens e mulheres, portanto, são sujeitos de direitohumanos personificados; nascituros são sujeitos humanosdespersonificados; fundações, sujeitos de direito nãohumanos personificados; massa falida, um não humanodespersonificado e assim por diante.

3. SUJEITOS PERSONIFICADOSPersonificados são os sujeitos de direito dotados de

personalidade jurídica. Muitos autores conceituampersonalidade jurídica como a aptidão para titularizardireitos e obrigações (cf., por todos, Pereira, 1961:198).Assim fazendo, tomam por equivalentes as categorias depessoa e sujeito de direito; não consideram, ademais, osentes despersonificados como espécie de sujeitos de direito.A consequência é a desestruturação lógica do modelo deexame dos institutos jurídicos aqui considerados. A aptidãopara titularizar direitos e obrigações é atributo de todos ossujeitos de direito e não somente dos dotados depersonalidade jurídica. O conceito desta, como ressaltado, éo de uma autorização genérica para a prática de atos enegócios jurídicos não proibidos.

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Os sujeitos personificados são as pessoas, que podemser físicas (também chamadas “naturais”) ou jurídicas(“morais”). As pessoas físicas são sujeitos de direitohumanos, e as jurídicas, não humanos. Tanto umas quantoas outras, por serem personificadas, estão autorizadas àprática dos atos e negócios jurídicos em geral. Podem fazertudo o que quiserem, desde que para elas não seja proibido.

Personalidade jurídica, assim, é uma autorizaçãogenérica concedida pelo direito para determinados sujeitos,tornando-os aptos à prática de qualquer ato jurídico nãoproibido. É uma decorrência do princípio da legalidade,expresso em norma constitucional: “ninguém será obrigado afazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”(CF, art. 5º, II). Em relação às pessoas físicas, não há outrasconsiderações a externar. Sempre que um homem ou umamulher quiser praticar determinado ato, basta verificar separa isso existe expressa proibição legal. Inexistindo, apessoa natural estará sempre apta a praticá-lo (se for capaz,diretamente; se incapaz, por meio de representante oumediante assistência).

A definição de personalidade jurídica apresentada,porém, reclama maior precisão quando se trata de pessoajurídica. O princípio da legalidade não se aplica a essacategoria de sujeito personificado tal como se aplica aoshomens e mulheres. Em primeiro lugar porque há algumaspessoas jurídicas para as quais o conceito de personificação

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acima não é inteiramente apropriado (as pessoas de direitopúblico). Em segundo, porque, em certos casos, mesmoinexistindo proibição expressa, deve-se considerar a pessoajurídica inapta à prática do ato. Examine-se cada aspecto comum pouco mais de demora.

As pessoas jurídicas de direito privado, ao receberem oatributo da personalidade jurídica, tornam-se aptas à práticade quaisquer negócios jurídicos. Podem comprar e vender,contratar seguro, celebrar contrato de trabalho comoempregadora, iniciar novas atividades (respeitados osregulamentos específicos), alienar ou adquirir direitoscreditórios etc. Para todos esses atos, e muitos mais, não énecessária uma específica e expressa autorização, porque apersonalidade que ostenta equivale a uma autorizaçãogenérica.

Para as pessoas jurídicas de direito público, porém, oatributo da personalidade jurídica não pode ter o mesmosignificado. Em outros termos, é necessário distinguir entre apersonalidade jurídica de direito privado e a de direitopúblico. Para as pessoas cujas relações estão disciplinadaspelo direito privado (Cap. 1, item 3.1), a personificação podeser entendida como a autorização genérica para a prática dequalquer ato jurídico não proibido. Este é o conceito depersonalidade de direito privado. Para as pessoas sujeitas aoregime de direito público, no entanto, essa formulação não éadequada. Isso porque o princípio da legalidade, para as

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pessoas de direito público, é por assim dizer invertido. OEstado não pode praticar todos os atos para os quaisinexista proibição. A legalidade de direito público é maisestreita. As pessoas públicas só podem praticar atos combase em preceito legal autorizativo. Não basta a inexistênciade proibição para que a pessoa de direito público esteja aptaa praticar o ato jurídico pretendido. Para ela, é indispensávelamparo legal autorizando, em termos gerais ou específicos,aquela prática (Cap. 1, item 3.3). O conceito de personalidadede direito público, em suma, é mais próximo da noção dedespersonificação.

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Personalidade jurídica é aautorização genérica, conferida pelodireito, para a prática de atos nãoproibidos.

Quando referenciado a pessoasjurídicas, o conceito depersonalidade deve ser precisado emdois aspectos: a personificação dapessoa jurídica de direito públicotem sentido diverso e as proibiçõesnão precisam, em alguns casos, serexpressas.

Outro ponto a aclarar, como visto, diz respeito àproibição da prática dos atos pelas pessoas jurídicas.Normalmente, uma proibição deve ser expressa. Como as

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pessoas de direito privado, em razão da garantiaconstitucional derivada do princípio da legalidade, nãopodem ser obrigadas a fazer ou deixar de fazer algo senão emvirtude de preceito legal, a proibição depende de normajurídica expressa e de nível hierárquico igual ou superior aodas leis. E assim é, sem dúvida, em relação às pessoasfísicas. Se não houver proibição expressa em lei, é umagarantia constitucional dos homens e mulheres (expressa, nalei ordinária, por meio da outorga de personalidade jurídica)fazerem tudo o que quiserem.

Na operacionalização do conceito de personalidade dedireito privado em vista de pessoas jurídicas, porém, deve-seconsiderar que os elaboradores dos dispositivos em que seassentam as normas jurídicas nem sempre estãosuficientemente atentos para as exigências do rigor técnico.Por isso, escapa-lhes, por vezes, contemplar uma proibiçãoexpressa, quando deveriam fazê-lo. Desse modo, se a normamenciona que determinada conduta ou condição se refere apessoas físicas, deve o intérprete considerar que está sendoproibida a prática de atos correspondentes pelas pessoasjurídicas. Veda-se, nesse caso, qualquer tipo deinterpretação extensiva. Veja o art. 146 da Lei dasSociedades por Ações. Nele se estabelece que só podem sereleitas para os órgãos de administração de uma companhiapessoas naturais. Ao especificar que o eleito deve serpessoa natural, a lei está proibindo (ainda que não

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expressamente) a eleição de pessoas jurídicas para o cargo.Em outras ocasiões, é tão evidente que determinada

norma não é aplicável às pessoas jurídicas que seria atémesmo um despropósito ressalvar a hipótese. Cogite-se deinstitutos como adoção, casamento, reconhecimento defilho, eleição para cargo governamental, regime doempregado e outros que, por sua própria natureza, somentepodem referir-se a pessoas humanas. Nesses casos, mesmonão existindo proibição expressa, deve-se considerar apessoa jurídica excluída da autorização para a prática dosatos correspondentes.

Por fim, esclareça-se que a aptidão para a prática de atose negócios jurídicos conferida pela personificação nãoassegura a validade e regularidade dos que vierem a serpraticados. Não é porque o sujeito responsável pelo atojurídico é pessoa que está afastada a possibilidade deequívocos, desatendimentos a formalidades essenciais oumesmo fraude. Muito pelo contrário. Estamos, afinal,tratando de apenas um entre muitos requisitos jurídicos paraa adequada realização de atos e negócios jurídicos. Assim,uma fundação, por ser pessoa jurídica, pode praticarqualquer ato para o qual não esteja proibida. Por exemplo,adquirir um imóvel com o intuito de nele explorar umaatividade comercial. Se esse ato se destina, afinal, a gerarrecursos para a realização das finalidades culturais, morais,religiosas ou de assistência que as move, ele é regular (sob

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esse aspecto, pelo menos). Se o real objetivo, contudo, édiverso, isto é, a fundação é apenas um instrumento paraexploração de atividades econômicas lucrativas, embora elacontinue dotada de personalidade jurídica, e, portanto, aptaà prática dos mesmos atos e negócios jurídicos, estes nãoserão mais regulares. Quer dizer, a compra e venda do imóvele os atos de comércio que praticar serão válidos eproduzirão todos os seus efeitos, mas os administradores dafundação serão responsabilizados pelo desvio de finalidade.

4. SUJEITO DESPERSONIFICADO HUMANO:ONASCITURO

A exemplo dos personificados, os sujeitosdespersonificados podem ser humanos ou não humanos. Ohomem e a mulher, enquanto se encontram em processo degestação no útero materno (nascituros), são já sujeitos dedireito, embora não sejam ainda pessoas. O art. 2º do CCestabelece que “a personalidade civil da pessoa começa donascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde aconcepção, os direitos do nascituro”. Isso significa que,antes do nascimento com vida, o homem e a mulher não têmpersonalidade, mas, como já titularizam os direitos postos asalvo pela lei, são sujeitos de direitos. Desse modo,falecendo o pai quando o filho já se encontrava em gestaçãono útero da mãe, o nascituro é sucessor, a menos que nãovenha a nascer com vida.

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A proteção que a lei confere ao nascituro temimportantes implicações. Na situação mencionada acima, seo falecido já possuísse outros filhos e o nascituro nãotivesse os seus direitos postos a salvo desde a concepção,ele não seria considerado sucessor e deixaria de concorrer àherança. Seria, enfim, tratado de forma injustificadamentediversa da dos seus irmãos nascidos enquanto era aindavivo o pai.

Código Civil:Art. 2º A personalidade civil da

pessoa começa do nascimento comvida; mas a lei põe a salvo, desde aconcepção, os direitos do nascituro.

A condição para que o nascituro seja sujeito de direito,isto é, tenha seus direitos legalmente protegidos, é a de quevenha a nascer com vida. Se falecer antes de cumprida essacondição, não será considerado sujeito de direito pela leibrasileira. No exemplo acima, o natimorto não se tornaria

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sucessor, e deixaria de concorrer à herança. Em outrostermos, para que o nascituro seja sujeito de direito, énecessário que vingue como pessoa, ou seja, nasça comvida e, consequentemente, adquira personalidade jurídica. Oser humano que não nasce com vida não adquirepersonalidade jurídica e não se torna pessoa física; emvirtude disso, também não será reputado sujeito de direitoenquanto se encontrava no útero materno. Para que onascituro seja sujeito de direito despersonificado, em suma,é necessário que tenha, uma vez completado o tempo degestação, se tornado uma pessoa.

Considera-se que alguém nasceu com vida desde querespire o ar atmosférico (Beviláqua, 1908:78). Das múltiplasfunções vitais que um organismo humano pode manifestar,tem a tecnologia civilista indicado que é o primeiromovimento de inspiração de ar para os pulmões quecaracteriza o nascimento com vida. É irrelevante, para esseefeito, a falta de manifestação de qualquer outro sinal vitalou mesmo a ruptura do cordão umbilical. Tendo entrado arnos pulmões do recém-nascido, verificou-se o fato jurídicode que decorre o surgimento da personalidade.

É suficiente, no direito brasileiro, para a aquisição depersonalidade jurídica que a pessoa viva algum tempo, pormenor que seja, após deixar o útero materno. Uma só breverespiração basta para que o direito considere pessoa orecém-nascido. É indiferente se a minúscula vida vivida

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apresenta, ou não, perspectivas reais de evolução. Tendovivido um segundo que seja após nascer, o nascituro terápreservado todos os seus direitos desde a concepção. Istoé, receberá direitos de quem for sucessor e, se vier a falecerlogo em seguida, os transmitirá a seus próprios sucessores.Definir se a criança é natimorta ou se chegou a respirar érelevantíssimo em determinadas hipóteses. Imagine que, noexemplo adotado, o pai falecido possuía um filho decasamento anterior e nenhum outro sucessor (não era, pois,casado com a mãe do nascituro). Se a criança ainda emgestação ao tempo de sua morte nasce com vida, ésucessora e herdeira dele. Nesse caso, metade do patrimôniodo falecido pertencerá ao filho do primeiro casamento emetade, ao novo filho. Se este vier a falecer ainda recém-nascido, os bens que herdou serão transmitidos porsucessão aos seus próprios sucessores (a mãe, em primeirolugar). Caso, porém, ele não tivesse nascido com vida, nãoteria adquirido personalidade jurídica e não seria sucessor.Em decorrência, todos os bens do patrimônio do falecidoseriam transmitidos ao filho do primeiro casamento. Em razãoda relevância que o assunto pode apresentar em certoscasos, os médicos que assistem ao parto do natimortodevem realizar testes que lhes permitam documentar sehouve, ou não, respiração.

Em alguns países, como a França por exemplo,condiciona-se a tutela dos direitos do nascituro à

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viabilidade da vida extrauterina (por todos, Larroumet,1998:196/197). Lá, se constatado que faltava ao recém-nascido, morto com pouco tempo de vida, meios orgânicosmínimos para sobreviver como ser biologicamenteindependente, não se tutelam os direitos do nascituro. Emoutros termos, não se lhe reconhece a condição de sujeitode direito. Esse requisito, o da viabilidade, torna a questãoda titularidade dos direitos mais complexa, já que envolveuma estimativa dos médicos muito difícil de precisar: onatimorto tinha meios orgânicos para existir fora do útero, ounão os tinha? No Brasil, como se disse, a viabilidade éirrelevante e considera-se pessoa ainda o recém-nascidodesprovido de órgãos vitais, com pequeníssima perspectivade vida. Mesmo nesse caso considera-se que, tendo feito aomenos uma respiração, tornou-se pessoa com o nascimentoe foi sujeito de direito despersonificado desde a concepçãoe enquanto durou sua existência intrauterina.

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Se o ser humano nasce com vida(isto é, chega a respirar o aratmosférico) operam-se duasconsequências jurídicas: ele se tornapessoa física e se considera que,enquanto durou sua existênciaintrauterina, foi um sujeito dedireito despersonificado.

Ao preservar os direitos do nascituro, a lei acaba lheconferindo também certos deveres. Considerando ainda asituação exemplificada acima, se havia imóveis entre os bensdo falecido herdados pelo nascituro, ele será devedor doimposto incidente sobre a propriedade imobiliária durante otempo de sua gestação. Claro que — a exemplo dos menoresproprietários — as providências atinentes ao cumprimentodessa obrigação serão adotadas pelos representantes. Nocadastro de contribuintes da Prefeitura, por outro lado, nãopoderá ser lançada a identificação do nascituro, visto que

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eventualmente nem nome ainda tenha. Mas é ele o devedordo tributo. Se alguém pagar em seu lugar (como é provávelque ocorra), terá crédito a receber do nascituro, caso venhaa nascer com vida.

Tratei, até aqui, dos direitos do nascituro relacionados àpossibilidade de ele vir a se tornar pessoa. Mas além dessesdireitos, assegurados em razão da sua posteriorpersonificação — isto é, condicionados ao seu nascimentocom vida —, também se encontram espalhadas peloordenamento jurídico normas que visam protegê-loindependentemente dessa condição. Nascendo ou não comvida, tem o nascituro determinados direitos em razão denormas que limitam a vontade de sua mãe durante agestação. Assim, por exemplo, a mulher grávida não podedoar órgãos, tecidos ou partes de seu corpo para retirada emvida, exceto a medula e desde que não haja risco à sua saúdeou à do nascituro (Lei n. 9.434/97, art. 9º, § 7º).

4.1. Natureza jurídica do embrião in vitroEm julho de 1978, numa maternidade londrina, os

médicos Patrick Steptoe e Robert Edwards convocaram aimprensa para anunciar que havia sido dada à luz umasaudável menina, de nome Louise. Ela provinha de umembrião fecundado por meio de uma nova técnica, empesquisa há mais de dez anos: a fertilização in vitro. Por essatécnica, retiram-se cirurgicamente óvulos do ovário da mãe

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para fertilizá-los com os espermatozoides do pai emlaboratório. Em seguida, o óvulo fecundado é implantado noútero. A imprensa chamou Louise de “bebê de proveta” edeu ao fato o costumeiro destaque escandaloso. Desdeentão milhares de casais com problemas de fertilidade, emtodo o mundo, têm-se beneficiado da técnica para cumprir amais gratificante das realizações humanas — ter filho.

Mas os custos e limitações das técnicas de fertilizaçãoas s is t ida in vitro acarretaram também uma situaçãoinusitada, que tem provocado sérios questionamentosmorais e éticos. A fertilização in vitro origina váriosembriões, todos aptos a serem implantados em útero e sedesenvolverem como seres humanos (cf. Leite, 1995; Araújo,1999). Nem todos eles, porém, têm esse destino. De fato, umavez implantado com sucesso qualquer um deles, e iniciada atão almejada gravidez, os demais tornam-se excedentes.Além disso, pesquisas científicas têm demonstrado queembriões humanos são úteis no tratamento de algumasdoenças. O avanço dessas pesquisas e a aplicaçãoterapêutica de seus resultados dependem da existência deembriões não destinados ao ciclo biológico regular dosseres humanos (nascer, crescer, reproduzir e morrer), mas aservirem de insumo de produtos e processos terapêuticosaplicados em outros seres humanos. No limite, os embriõesse tornariam bens de consumo como qualquer remédio, epoderiam ser industrializados e comercializados.

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A existência dos embriões excedentes e dos destinadosà pesquisa científica ou terapias motiva debates intensos nocampo da religião, da moral e da bioética. Integra, além disso,a pauta de preocupações em torno das quais tem sidoconstruído o biodireito (Leite, 2001). Nesses debates, temimportância central a questão sobre o fato que caracteriza o“surgimento” de novo ser humano. Os argumentosdesconfortáveis com a existência daqueles embriõesconsideram que desde o momento em que o espermatozoidefecunda o óvulo, seja in vitro ou in utero, estariampreenchidas todas as condições para se considerar existenteo novo ser. A partir da fecundação, o que sucede é apenas aevolução do processo biológico. Em outros termos, para taisargumentos, não há nenhuma diferença essencial entre oembrião (mesmo o fecundado in vitro) e um ser humanoadulto, em termos de dignidade. A mesma proteçãoconferida pelo direito a este deve estender-se àquele, porconseguinte. A conclusão de tais argumentos é a de que osembriões in vitro são sujeitos de direito e merecem, como osnascituros, tutela da lei.

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O embrião fecundado in vitro e nãoimplantado in utero é sujeito ouobjeto de direito? Não há ainda umaresposta consensual, na tecnologiajurídica, para essa complexaquestão.

De outro lado, os argumentos não desconfortáveis coma existência dos embriões excedentes e os destinados àpesquisa ou finalidades terapêuticas sustentam que o“surgimento” do ser humano não pode ser identificado coma fecundação. Enquanto o embrião não é implantado numambiente orgânico propício ao seu desenvolvimento comoser biologicamente independente, ele não pode serconsiderado como tal. O aparecimento do novo ser, segundoesse enfoque, se verificaria no momento da implantação doembrião no útero. Lembram que a utilização deles notratamento de doenças é fonte de renovação de vida ou,pelo menos, de qualidade de vida. A decorrência lógicadesse enfoque é a de que o embrião in vitro não é sujeito de

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direito, mas bem da propriedade comum dos fornecedores doespermatozoide e óvulo (os “genitores”).

O assunto evidentemente está sendo debatido emdiversos países. Em França, desde 1994, o Código de SaúdePública limita o prazo de conservação dos embriões in vitroe reconhece aos genitores o direito de decidir o destinodeles (cf. Labrusse-Riou e Bellivier, 2002), o que importaatribuir-lhes a natureza de objeto de direito, e não de sujeito.No Brasil, a Lei n. 11.105/05 permite que os genitoresautorizem a utilização de células-tronco obtidas de embriõesin vitro inviáveis ou crioconservados há pelo menos 3 anos,para pesquisa ou terapia (art. 5º). Não há dúvidas, nessecontexto, de que o embrião fertilizado in vitro, a partir daimplantação no útero, deve ser já considerado nascituro,quer dizer, sujeito de direito despersonificado. A suanatureza jurídica, enquanto não verificada a implantação inutero, é uma questão bem mais complexa. A resposta que,por enquanto, a tecnologia jurídica pode dar a ela discutireino contexto da interpretação do termo “concepção”, para osfins de aplicação do art. 2º do CC (item 4.2).

A discussão sobre a natureza dos embriõescrioconservados é puramente ideológica — e, nessaafirmação, não há nenhuma desqualificação do debate; pelocontrário, nela se procura identificar sua função deelaboração do valor cultivado pela sociedade. Em conflito osinteresses, de um lado, das pessoas deficientes que

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poderiam beneficiar-se de pesquisas científicas e doaproveitamento dos embriões como “remédio” e, de outro,das pessoas temerosas acerca dos limites a que pode chegara ciência desprovida de freios éticos. Nesta fase dadiscussão, argumentos que se contrapõem são puraideologia e, por isso, ninguém pode pretender terencontrado a verdade ou a correta abordagem do tema. Aspremissas e conclusões são estabelecidas (escolhidas)dependendo da finalidade que se quer ver atingida (ou dointeresse que se quer ver prevalecente). Escamotear esseaspecto do debate — procurando transpô-lo para o campodo conhecimento científico — em nada contribui para o seuaclaramento.

A questão que o debate ideológico deve precisar é omomento em que estão dadas as condições para odesenvolvimento de um ser biologicamente independente.Há condições necessárias e suficientes. É, assim, necessárioque um ser humano do sexo masculino produzaespermatozoides e que um do sexo feminino produza óvulos.É necessário, ademais, que um dos espermatozoides fecundeo óvulo. Mas essas condições não são suficientes. Para quetenha início o processo de formação do ser biologicamenteindependente é necessário que o óvulo fecundado encontreum ambiente propício para tanto. Encontrar o ambientepropício ao processo de desenvolvimento do serbiologicamente independente é condição não só necessária,

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mas suficiente para a existência de novo ser humano. Porenquanto, esse ambiente é o útero de uma mulher adulta. Nofuturo, pode ser que se criem outros ambientes artificiaisaptos a cumprirem a mesma função. De qualquer modo,enquanto não ocorre a condição necessária e suficiente aoprocesso de seu desenvolvimento como ser biologicamenteindependente, o embrião é coisa; depois, será pessoa. Aninguém ocorre proteger as células reprodutivas comopessoas, embora também elas se constituam em condiçõesnecessárias — tal como o óvulo fecundado, isto é, o embrião— para que o processo ocorra.

Futuramente, com o aprimoramento das técnicas nãoinvasivas de implantação do embrião no útero materno, éprovável que decline o número de embriõescrioconservados. Isso, ao contrário de reduzir a importânciado debate, servirá ao seu impulso, em vista da possibilidadedo emprego de embriões humanos em pesquisas científicas eterapias.

4.2. Direitos do embrião in uteroO embrião in utero é o nascituro. Se foi fertilizado já no

interior do corpo da mãe, sua fixação no útero dá início aoprocesso de desenvolvimento de que resultará o novo serhumano. Se fertilizado in vitro, também não há dúvidas deque esse processo está em curso após a implantação. Comefeito, qualquer que seja o entendimento adotado acerca da

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natureza do embrião in vitro (sujeito ou objeto de direito), háconsenso em que, implantado no ambiente orgânico propícioao seu desenvolvimento como ser biologicamenteindependente, ele é humano.

Como nascituro, o embrião in utero tem os seus direitosprotegidos desde a concepção, caso venha a nascer comvida. É o que decorre do art. 2º do CC, dispositivo quereproduz exatamente a mesma redação da norma equivalentedo Código anterior, de 1916. Naquele tempo, os elaboradoresda lei desconheciam e certamente nem sequer sonhavamcom a possibilidade de fertilização humana extrauterina. Éverdade que o projeto de 1975 não contemplava a locução“desde a concepção” no dispositivo em foco, que foiintroduzida na tramitação pelo Senado, com o objetivo dereforçar a amplitude da proteção concedida ao nascituro(Fiuza, 2002:4/5). De qualquer forma, como o primeiro bebêde proveta, a inglesa Louise Brown, nasceu em 1978, éprovável que, três anos antes, época da elaboração doprojeto do atual Código Civil, também os elaboradores danorma não tivessem considerado essa possibilidade.Durante a longa e infértil tramitação do projeto, e a despeitoda complexidade e seriedade das questões suscitadas peladifusão da técnica de fertilização in vitro, não se atentou aosproblemas que a expressão “concepção” iria despertar.

O embrião pode ser mantido in vitro por muito tempo.Se se interpreta o termo “concepção” no seu sentido

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imediato e literal, de encontro eficaz das células dereprodução dos gêneros humanos (espermatozoide e óvulo),os direitos do nascituro proveniente de fertilização artificialestariam a salvo desde a fecundação in vitro. Se, por outrolado, aquele termo é interpretado como designando aimplantação do embrião no útero, que é um fato biológicoimprescindível para a constituição do novo ser humano, nãoserá relevante a data em que se operou a fertilização. Note-seque se pode estar falando de vários anos, durante os quais oembrião permaneceu congelado num laboratório.

Um embrião fertilizado in vitropode permanecer congelado emlaboratório por muitos anos. Umavez implantado in utero, e vindo anascer com vida, terá os seusdireitos preservados desde afertilização.

O fato jurídico que define anatureza do embrião in vitro é sua

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natureza do embrião in vitro é suaimplantação, ou não, in utero. Seocorrer esse fato, tenderá a ter odestino biológico regular do serhumano (nascer, crescer, reproduzire morrer). Será sujeito de direitodesde a fertilização, caso venha anascer com vida. Não implantado inutero, terá outro destino e suanatureza jurídica será a de objeto dedireito (coisa).

A questão é muito relevante. Imagine que o casal, cujofilho foi fertilizado in vitro, decidiu não descartar osembriões excedentes, mantendo-os congelados, porque nãoestavam seguros se queriam ter mais filhos ou não. Faleceum deles. Se um dos embriões crioconservados é,posteriormente, implantado in utero, serão diversos ossucessores de acordo com o sentido emprestado à noção de

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“concepção”. Entendida como fertilização em qualquerambiente, orgânico ou laboratorial, nascendo com vida o ser,ele seria sucessor porque já estariam a salvo seus direitosdesde antes do falecimento do genitor. Por outro lado,considerada a “concepção” como referência à implantaçãoin utero, mesmo nascendo com vida o ser, não seriateoricamente sucessor porque seus direitos teriam sidopostos a salvo depois do falecimento do genitor.

A questão da capacidade para suceder de pessoasconcebidas por técnicas de fecundação assistida encerracomplexidades que serão examinadas a seu tempo (Cap. 62,subitem 2.2.1). Por ora, convém continuarmos a examinar oconceito da expressão “concepção” constante do art. 2º doCC. Uma resposta que a tecnologia jurídica poderia ensaiarpara essa questão seria a de privilegiar a vontade dosgenitores. Se eles querem dar ao embrião o destino humanoregular (nascer, crescer, reproduzir e morrer), em ocorrendode vir a nascer com vida uma criança, esta deve ter os seusdireitos postos a salvo desde a fertilização in vitro. Será,pois, sujeito de direito desde então, ainda que muito tempose passe até o nascimento. Se, contudo, os genitores queremdar ao embrião outro destino (descarte, emprego empesquisa científica ou tratamento), será objeto de direito,com a natureza de coisa. A vontade dos genitores deve sermanifestada preferencialmente em conjunto. Mesmo que jáesteja morto um dos dois, se ele deixou por escrito sua

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vontade de ver um ou mais dos embriões fertilizadosdesenvolverem-se como seres humanos, não haveráincertezas quanto à convergência do desejo dos genitoresse a mesma intenção manifestar o que ainda vive.

Essa solução, contudo, é insuficiente. Não se podeafastar a hipótese de o embrião ser implantado in uterocontra a vontade de um dos genitores, ou mesmo contra avontade dos dois. Imagine que o laboratório em que osembriões se encontram em crioconservação é induzido emerro pela falsificação bem-feita da assinatura de um genitor, erealiza-se a implantação no útero de uma mulher (da genitoraou de alguém que se passou por ela). Nasce com vida, enfim,uma criança. Ainda que todos (laboratório, médicos, genitorfraudulento, terceiros colaboradores etc.) venham a serresponsabilizados, civil e penalmente, isto não podeinterferir nos direitos dela. Quer dizer, a despeito ou mesmocontra a vontade de um ou dos dois genitores, devem estar asalvo os direitos daquela pessoa desde sua fertilização invitro. Em outros termos, mesmo que a vontade dos genitorestenha sido a de não dar ao embrião fertilizado o destinobiológico regular do ser humano, caso venha a ser, porqualquer razão, implantado in utero e nasça com vida, terásido sujeito de direito desde a fertilização.

O fato decisivo para marcar a natureza do embrião invitro, assim, é a sua implantação in utero. Verificado essefato (com ou sem a vontade dos genitores), ele é sujeito de

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direito desde a fertilização. Não verificado, é objeto dedireito, um bem, de cujas especificidades a lei deveurgentemente tratar (a Lei n. 11.105/05 disciplinou apenas oaspecto mais urgente da matéria: as condições para autilização das células- -tronco em pesquisas e terapias).

5. SUJEITOS DESPERSONIFICADOS NÃO HUMANOSOs sujeitos despersonificados não humanos são

entidades criadas pelo direito para melhor disciplinar osinteresses de homens e mulheres. São, em última análise,técnicas de separação patrimonial destinadas a cumprir umafinalidade. Todo ente despersonificado não humano temuma finalidade, que justifica a sua constituição e,principalmente, circunscreve os negócios jurídicos que estáautorizado a praticar. Como examinado anteriormente, apersonificação significa uma autorização genérica para aprática dos atos e negócios jurídicos. A pessoa (física oujurídica) pode fazer qualquer coisa, desde que não hajaproibição. O sujeito despersonificado não recebe, do direito,essa autorização genérica. Ele só pode praticar os atosínsitos às suas finalidades ou expressamente previstos nalei.

Cada sujeito despersonificado não humano éexaminado, com a devida profundidade, em capítulospróprios do direito civil ou comercial. Abaixo, algumaspoucas noções sobre os principais sujeitos dessa categoria:

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a) Espólio. A pessoa física, ao morrer, deixa de sersujeito de direito. Não poderá mais, assim, titularizar direitosou obrigações. Alguns de seus interesses extrapatrimoniaispermanecem tutelados, como projeção de seus direitos dapersonalidade, mas nenhum direito ou obrigação pode serimputado ao falecido. Contudo pode haver, e geralmente há,pendências obrigacionais deixadas pela pessoa morta.Dívidas que não pagou, créditos que não recebeu. Há, poroutro lado, os bens de seu patrimônio que precisam seradministrados até a final partilha entre sucessores (herdeirosou legatários). Para cuidar daquelas pendências eadministrar provisoriamente os bens do de cujus, cria odireito um sujeito despersonificado, que é o espólio. Ele érepresentado pelo inventariante, nomeado pelo juiz peranteo qual tem curso o processo de inventário. Se o devedor dofalecido resiste a honrar seu compromisso, o espólio temação contra ele. Se uma dívida do falecido não foi pagaporque contestada sua existência, não se podendo resolvero incidente no processo do inventário por sua complexidade,o espólio poderá ser demandado pelo credor.

b) Condomínio edilício. Os proprietários (e, para algunsefeitos, também os locatários) de unidades autônomas deuma edificação (residencial ou comercial) têm interessescomuns, relacionados às áreas comuns, segurança, limpeza,manutenção de equipamentos e outros. A administraçãodesses interesses comuns é feita por um sujeito de direito

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despersonificado não humano, chamado condomínioedilício ou de edificação. Ele está autorizado a praticar osatos de contratação de empregados, aquisição de material delimpeza, proceder ao rateio das despesas condominiais etc.Além disso, o condomínio pode ser responsabilizado poratos culposos ou dolosos dos empregados, titularizarcrédito perante o condômino inadimplente e ser devedor dostributos incidentes sobre as áreas comuns e das taxas nãodiscriminadas por unidade (normalmente, o fornecimento deágua, recolhimento do lixo e outras). O representante docondomínio chama-se síndico (Cap. 46, item 4).

c) Massa falida. Quando o exercente de atividadeempresarial (comerciante, industrial, prestador de serviçosetc.) não consegue honrar, no vencimento, as dívidas, podeser decretada sua falência pelo juiz. Na falência, todos osbens do empresário falido serão arrecadados eposteriormente vendidos em leilão judicial. Os credores sópodem ser satisfeitos com o produto da venda desses bens.Como provavelmente não haverá recursos para pagar atotalidade do devido a cada um, procede-se, na falência, àdivisão destes de forma mais justa: os mais necessitadosrecebem em primeiro lugar; o interesse público preponderasobre o privado; entre iguais, não sendo possível opagamento integral, realiza-se o proporcional ao valor decada crédito. Por essa razão, a partir da decretação judicialda falência, os credores do falido passam a ter interesses

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convergentes. Para todos eles, será útil a boa administraçãodos bens arrecadados, como forma de otimização dosrecursos disponíveis. Da convergência de interesses doscredores do falido, nasce um sujeito de direitodespersonificado não humano, que é a massa falida.

A massa falida está autorizada a praticar todos os atosúteis à administração dos bens arrecadados do empresáriofalido, tais como contratação de seguro, depósito emarmazém apropriado, venda antecipada dos de fácildeterioração etc. Ela também passa a ser a titular doscréditos do falido, podendo cobrar os devedoresinadimplentes. Sucede-o também nas obrigações e osubstitui em todas as ações judiciais de que era parte. Amassa falida é representada por uma pessoa nomeada pelojuiz, denominada administrador judicial (Lei n. 11.101/2005).

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Os principais exemplos de sujeitode direito despersonificado são oespólio, o condomínio edilício e amassa falida. Devem-se, também,mencionar as sociedades em comume a conta de participação, porqueelas são definidas na lei como "nãopersonificadas", embora, comoestudado pelo direito comercial, aprimeira devesse ser consideradauma pessoa jurídica e a segunda nãodevesse ser considerada sujeito dedireito, mas simples contrato deinvestimento.

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d) Sociedade em comum. A sociedade, para existirregularmente, deve ser registrada num órgão indicadopela lei. Se é sociedade empresária, o registro deve serfeito na Junta Comercial; se simples, no Registro Civil dePessoas Jurídicas; e, se for sociedade de advogados, naOrdem dos Advogados do Brasil. Caso a sociedade operesem registro, ela é chamada de “sociedade em comum” edefinida, legalmente, como “não personificada” (CC, arts.986 a 990). O instituto é examinado em direito comercial(Coelho, 1998, 2:393/395).

e) Conta de participação. Também é definida legalmentecomo “sociedade não personificada” a conta de participação(CC, arts. 991 a 996). Na verdade, trata-se não de um sujeitode direito, mas de um contrato de investimento celebradoentre empresários. Um deles (o sócio ostensivo) contrata emnome da conta de participação e os demais (sóciosparticipantes) investem e auferem resultados se e quandogerados pela empresa. Também é instituto estudado emdireito comercial (Coelho, 1998, 2:476/477).

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Capítulo 7

A PESSOAFÍSICA

1. INTRODUÇÃONas sociedades democráticas da atualidade, homens e

mulheres são todos considerados pessoas para o direito, istoé, aptos a titularizar direitos e obrigações e autorizados àprática dos atos jurídicos em geral. Nem sempre foi assim,porém. Quando a produção baseava-se em trabalho escravo— estrutura que existiu, por exemplo, na economia brasileiraaté pouco mais de um século atrás —, somente os homens emulheres livres tinham o estatuto de pessoas; osescravizados nem sequer sujeitos de direito eram, mas bens.Também o antigo e em desuso instituto da morte civil,designação da cassação da personalidade jurídica de umhomem ou mulher, retirava a condição de pessoa do

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cassado. Essas lembranças inspiram a reflexão de quehomens e mulheres são pessoas apenas porque a ordemjurídica vigente assim os qualifica; que, dependendo dascircunstâncias políticas e ideológicas, pode o direito, nofuturo, voltar a negar personalidade jurídica a algunshomens ou mulheres.

Como já destacado, os seres humanos não são asúnicas pessoas que existem para o direito. Há certas técnicasde separação patrimonial — cuja finalidade é melhordisciplinar as relações entre homens e mulheres — queimportam a personificação de seres não humanos. São purosentes ideais, meros conceitos abstratos operacionalizáveisna interpretação e aplicação das normas jurídicas. Dessemodo, entre os sujeitos de direito personificados, ao ladodos homens e mulheres, classificados como pessoas físicas(ou “naturais”), encontram-se as pessoas jurídicas (ou“morais”) (Cap. 8).

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Na sociedade democrática dosnossos tempos, homens e mulheressão pessoas físicas, porque o direitopositivo lhes concede aptidão paratitularizarem direitos e deveres, bemcomo autorização para a prática dosatos e negócios jurídicos em geral,salvo os expressamente proibidos.Assim como concede, poderá vir aretirar tanto a aptidão como aautorização de alguns deles. Este éum risco indiretamente proporcionalao nível da consolidação dademocracia.

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Diversos temas interessam ao estudo das pessoasfísicas. Em primeiro lugar, a questão da capacidade, que éatributo diferente da personalidade. Todas as pessoasnaturais têm personalidade, mas nem todas são capazes(itens 2 e 3). Em segundo lugar, um conjunto de direitosreferidos a valores essenciais à pessoa: nome, imagem,privacidade, corpo e honra. Direitos cujo objeto está tãoestreitamente ligado à pessoa de seu titular que sãochamados de direitos da personalidade (item 4). O fim dapersonalidade jurídica, com a morte da pessoa natural, éoutro tema de relevantes implicações (item 5). Ligado a ele,também se examina uma das hipóteses de morte presumida, aausência (item 6). Finalmente, detém-se sobre a questão dodomicílio da pessoa física, o lugar em que presumivelmentepode ser encontrada para exercer direitos ou responder pordeveres (item 7).

2. CAPACIDADEToda pessoa natural ostenta o atributo da

personalidade. Está, assim, autorizada a praticar qualquer atojurídico que deseja, salvo se houver proibição expressa. Nemtoda, porém, ostenta o atributo da capacidade. De algumas odireito suprime a possibilidade de disporem e administraremseus bens e interesses diretamente. As pessoas físicas, poroutras palavras, dividem-se em capazes e incapazes. Ascapazes podem praticar os atos e negócios jurídicos sem o

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auxílio ou a intervenção de outra pessoa. Já as incapazesnão podem praticar atos e negócios jurídicos a não ser como auxílio ou a intervenção de mais alguém.

A tecnologia civilista sempre distinguiu esses doisatributos da pessoa física, embora empregando designaçõesvariadas para identificá-los. Paolo Gallo (2000:95/100) fala dacapacidade jurídica (“capacidade de ser titular de direitos edeveres”) em contraposição à capacidade de agir(“capacidade de dispor, de assumir obrigações etc.”).Arnoldo Wald (2002:137) e Silvio Rodrigues (2002:39), entreoutros, separam a capacidade de direito ou de gozo (“terdireitos subjetivos e contrair obrigações”) da capacidade defato ou de exercício (poder “praticar pessoalmente os atosda vida civil, sem necessidade de assistência ou derepresentação”), adotando nomenclatura que parece ser apredominante na doutrina brasileira. Orlando Gomes(1957:165/166), por sua vez, ressalta que a capacidade dedireito tem a mesma significação de personalidade.

É certo que se deve evitar que variações nasdesignações de institutos jurídicos turvem a suacompreensão. Antes de se operar com um ou outro esquemaconceitual, é necessário ter clareza do sentido atribuído,nele, a cada expressão. Mas a matéria de que estamostratando aqui não envolve apenas dissensos terminológicos.Não basta, para se porem todos de acordo, esclarecer onome dado pelos esquemas para os mesmos institutos. No

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fundo dos esquemas acima lembrados encontra-se enraizadaa tradicional postura tecnológica de considerar pessoastodos os sujeitos de direito — e isto é a causa dasdificuldades operacionais que apresentam.

A distinção entre sujeito de direito e pessoa, bem comoa decorrente consideração da categoria dos sujeitosdespersonificados, importa a atribuição de significadoespecífico para a personalidade jurídica, totalmentedesconhecido nas tecnologias que não fazem taldiferenciação. Para os que consideram sinônimos sujeito dedireito e pessoa, a personalidade jurídica (também chamadacapacidade de direito) é a aptidão genérica para titularizardireitos e deveres. Para os que, como eu, distinguem sujeitode direito de pessoa e consideram como categoriaconceitual própria os sujeitos despersonificados, a aptidãopara titularizar direitos e deveres é atributo de todos ossujeitos, personificados ou não. Personalidade jurídica, porconsequência, deve ter significado diverso, mais restrito. Etem: é a autorização genérica para a prática dos atosjurídicos não proibidos. Essa autorização falta aos entesdespersonificados, que só podem praticar os atos ínsitos àssuas finalidades, se as possuírem, ou expressamenteautorizados por lei (Cap. 6, itens 1 e 2).

Capacidade, finalmente, tem a definição dada porClóvis Beviláqua: “é a aptidão de alguém para exercer por sios atos da vida civil” (1908:72/73 — grifei). Clóvis, a

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propósito, registra que muitos civilistas a chamam decapacidade de fato, com o que se resolve também a questãoterminológica.

Os conceitos tecnológicos aqui precisados nem semprese encontram empregados com o mesmo rigor na lei. O art. 1ºdo CC, por exemplo, diz que “toda pessoa é capaz de direitose deveres na ordem civil”. Nesse dispositivo, capacidadenão é referida em seu sentido técnico, mas tem significadobastante largo, de atributo dos sujeitos de direito. Paracompatibilizá-lo com as definições assinaladas, sua redaçãodeveria ser: “toda pessoa é apta a titularizar direitos edeveres na ordem civil”. Aliás, é nesses termos que a normalegal em foco deve ser interpretada.

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N e s t e Curso, empregam-se osseguintes conceitos: a) a aptidãopara titularizar direitos e deveres éatributo de todos os sujeitos dedireito, personificados ou não; b) apersonalidade jurídica da pessoafísica é a autorização para a práticados atos e negócios jurídicos emgeral, salvo os expressamenteproibidos; c) a capacidade é oatributo da pessoa física apta apraticar diretamente os atos enegócios jurídicos.

A pessoa capaz pode praticar os atos e negóciosjurídicos por si, isto é, diretamente, independentemente de

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auxílio ou intervenção de outra pessoa. Ela é considerada,pelo direito, como dotada de condições psíquico-físicassuficientes à compreensão das consequências dos seusatos. Considera a lei, por isso, que a pessoa natural capazsabe sopesar convenientemente seus interesses e, emfunção disso, nortear suas decisões. Tem maturidade,experiência de vida e hábeis meios de comunicação queafastam, presumivelmente, a possibilidade de vir a praticarato ou negócio jurídico prejudicial aos seus direitos ouinteresses.

A vontade de uma pessoa capaz exterioriza-sevalidamente, portanto, pelos atos e declarações dela própria.Não se exige, para a válida formação da vontade da pessoafísica com capacidade, a declaração de outra pessoa. Acapacidade confere à pessoa a mais plena desenvoltura paradirigir seus interesses. Ela pode diretamente comprar,vender, contrair dívidas, dar quitação, renunciar a direitosdisponíveis, testar etc.; basta-se a si mesma, para todos osefeitos jurídicos. Essa desenvoltura, porém, vemacompanhada de grave contrapartida: ela é responsávelpelas consequências de seus atos. Se negociar mal, perderdinheiro ou deixar de ganhar o que projetara, fizer opçõesdesacertadas ou arriscar-se em demasia, não poderá reclamarnada de ninguém.

3. PESSOAS FÍSICAS INCAPAZES

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A regra geral é a capacidade das pessoas físicas. Paraque um homem ou mulher seja considerado incapaz, énecessária expressa previsão legal. Inexistindo lei quesuprima ou limite a capacidade, ela é plena, não se podendoexigir da pessoa que se faça acompanhar de um assistenteou se substitua por um representante. Não há, por exemplo,restrição nenhuma à capacidade dos deficientes visuais.Desse modo, se o cego comparece sozinho a cartório paravender seu imóvel mediante a outorga da escritura públicade compra e venda, o tabelião não poderá recusar-se a lavraro documento a pretexto de faltar capacidade àquela pessoa.Por mais bem intencionado que se encontre o servidorpúblico, movido apenas pelo desejo de cuidar dos interessesdo deficiente, vindo este a manifestar a vontade de praticar onegócio jurídico, não se lhe pode impor outra condiçãosenão a de ouvir a leitura da minuta e lançar nela aassinatura. Fica exclusivamente a critério do cego decidir seprecisa ou não de algum auxílio especial na ocasião, bemcomo escolher a pessoa a quem vai solicitá-lo. Em suma,como não há norma legal expressa suprimindo ou limitando acapacidade do deficiente visual, ele é capaz.

As regras de incapacidade destinam-se a proteger apessoa do incapaz (Planiol-Ripert, 1952:327/328). Considera-se que alguns, por não terem ainda alcançado certa idade,não estão suficientemente amadurecidos para tomardecisões, por si mesmos, atinentes à disponibilização ou

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administração de bens ou interesses. Outros são tidos comoportadores de uma deficiência ou vício que lhes inibem odiscernimento necessário ao comércio jurídico. São, enfim,pessoas que merecem cuidados do direito para que nãoacabem sofrendo prejuízos em suas relações econômicas ejurídicas. Na negociação de um contrato, por exemplo, apessoa de reduzido discernimento, se estiverdesacompanhada, poderá abrir mão de uma garantia oumesmo assumir obrigações exageradas perante o outrocontratante, este dotado de discernimento maduro eapurado.

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As pessoas são, por princípio,capazes e podem, assim, praticar osatos e negócios por si mesmas.

A incapacidade é uma situaçãoexcepcional prevista expressamenteem lei com o objetivo de protegerdeterminadas pessoas.

Os incapazes são considerados,pela lei, não inteiramentepreparados para dispor eadministrar seus bens e interessessem a mediação de outra pessoa(representante ou assistente).

A ponderação das deficiências que justificam a limitaçãoou supressão da capacidade jurídica varia com a evolução

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dos valores sociais e, muitas vezes, reflete preconceitos quecorroem a natureza protetiva da regra da incapacidade. Amulher casada, por exemplo, era considerada incapaz pelodireito (no Brasil, até 1962). Embora naquele tempo lhe fossesocialmente obstado o acesso a ocupações profissionais demaiores responsabilidades — circunstância que restringiasua experiência de vida e poderia realmente, em certos casos,expô-la a prejuízos no comércio jurídico —, o fato é que asua incapacidade era mais uma faceta da supremacia dosdireitos do homem nas relações maritais do que uma regratutelar. Prova-o o fato de a viúva, malgrado a viuvez não lhetrouxesse nenhum necessário amadurecimento intelectual,recuperar a capacidade perdida com o casamento. Osdeficientes (item 3.2.3) e os índios (item 3.3.3) também jáforam, por muito tempo, reputados incapazes; muitos dospreconceitos nutridos em relação a eles acabavamafastando-os das vivências estimuladoras da maturidadenegocial.

A incapacidade não é restrição à personalidade. Oincapaz continua genericamente autorizado a praticar os atose negócios jurídicos para os quais não esteja expressamenteproibido. Em princípio, o incapaz pode praticar os mesmosatos ou negócios jurídicos que a pessoa capaz. Afinal, atitularidade de direitos e obrigações e a autorização genéricapara a prática de atos e negócios jurídicos decorrem, oprimeiro, da condição de sujeito de direito, e o segundo, da

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personalidade. São, assim, atributos tanto da pessoa capazcomo da incapaz. Ambos podem, com efeito, comprar,vender, alugar, dar, quitar, constituir ônus, demandar, serdemandado etc. Um ou outro negócio só pode ser realizadopelo capaz ou por pessoa com certa idade mínima. Restriçõesjustificáveis pela importância do ato, como, por exemplo, ocasamento (CC, art. 1.517) ou a doação de órgãos em vida(Lei n. 9.434/97, art. 9º). De qualquer forma, apenas porexpressa disposição da lei excepcional pode-se negar aoincapaz a prática de ato ou negócio jurídico praticável pelocapaz. Não havendo disposição expressa proibitiva, oincapaz, como pessoa que é, está autorizado a praticar todoe qualquer ato ou negócio jurídico. A incapacidade, comodito, não restringe a personalidade.

A diferença entre ter ou não capacidade diz respeito, emsuma, à mediação dos atos e negócios jurídicos. Só a pessoacapaz pode praticá-los imediatamente. O incapaz só podepraticar o ato ou negócio por meio de seu representante oumediante o auxílio de seu assistente. Mesmo assim, nashipóteses delimitadas em lei. De fato, há situações em que oincapaz age imediatamente. Fora do direito civil, os exemplossão diversos: jovens com 16 anos ou mais podem alistar-secomo eleitor e votar; podem também integrar relação deemprego. Mesmo no campo dos atos civis, a lei autoriza aprática direta de certos atos pelo incapaz, prestigiando aregra geral da capacidade. O pródigo (relativamente incapaz

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em razão do art. 4º, IV, do CC) está autorizado a praticar sema colaboração de assistente os atos de mera administraçãode seus bens (CC, art. 1.782).

Incapacidade não se confunde com ilegitimidade. Apessoa física, capaz ou incapaz, pode não ter legitimidadepara realizar certo ato ou negócio jurídico sem o concurso davontade de outra pessoa, ou seja, sem a anuência ouconcordância de terceiros (Diniz, 2002:140/141; Monteiro,2001:61). Determinados atos ou negócios que uma pessoapratica repercutem ou podem repercutir nos interesseslegítimos de outra, e, por essa razão, o direito apenaslegitima aquela para o ato se esta concordar com a suarealização. Dois exemplos. Primeiro, a pessoa casada écapaz, mas, dependendo do regime de bens do casamento,ela não pode, sem a autorização do cônjuge, vender imóvelde sua propriedade (CC, art. 1.647, I). Para legitimar-se a esseato em particular, a pessoa casada deve contar com aautorização do cônjuge. Segundo, o pai não pode vender aalguns de seus filhos sem o expresso consentimento dosdemais (CC, art. 496). A sua legitimação para o negócio devenda dá-se apenas com a anuência dos descendentes nãocompradores. Nos dois casos exemplificados, a lei atenta aosinteresses de terceiros (cônjuge e descendentes) econdiciona o negócio jurídico à concordância deles. Note-seque a pessoa casada, no primeiro, e o pai, no segundo, estãopraticando o negócio jurídico por si, diretamente, já que são

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capazes. A falta de legitimação para o ato sem a anuência docônjuge ou dos descendentes não compradores visaunicamente a tutela dos interesses destes e não configuramedida de proteção de pessoa desprovida de discernimentosuficiente.

Incapacidade não se confunde comilegitimidade. Em certos casos, paraproteger adequadamente o interessede terceiros, a lei apenas legitima aprática de negócios jurídicos poruma pessoa se outra concordar. Apessoa pode ser capaz e não terlegitimidade para certo ato sem oconcurso da vontade de outrem.

Incapacidade também não se confunde com

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vulnerabilidade. São conceitos jurídicos próximos, namedida em que ambos se referem a desigualdades entre aspessoas físicas participantes do negócio jurídico. Tanto oincapaz como o vulnerável estão em posição dedesvantagem por lhes faltarem atributos que o outroparticipante do negócio possui. A lei os protege exatamentepara neutralizar os efeitos danosos que a desigualdadepoderia acarretar aos seus interesses. Difere, porém,sensivelmente o instrumento legal de proteção. O incapaz épreservado pela supressão da aptidão para a prática diretado ato. Alguém imune a tais efeitos danosos (isto é, umapessoa capaz) deve representá-lo ou assisti-lo. Já em relaçãoao vulnerável, a proteção é feita pela concessão de direitosnegados ao participante mais forte da relação jurídica. Oconsumidor é exemplo de pessoa vulnerável porque, diantedo empresário fornecedor de produtos ou serviços, ele nãodispõe dos mesmos recursos e informações para contratarem pé de igualdade. Pode ser capaz ou incapaz, nãointeressa; ele titularizará determinados direitos que procuramneutralizar sua vulnerabilidade. Se, por exemplo, processar ofornecedor por defeito no produto, não precisará provaresse fato se as circunstâncias sugerirem a verossimilhançado que alega. Caberá, então, ao fornecedor provar que o seuproduto não tinha defeito. É o direito à inversão do ônus deprova (CDC, art. 6º, VIII).

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Incapacidade também não seconfunde com vulnerabilidade. Tantoo capaz como o incapaz podem, emdeterminadas relações jurídicas,encontrar-se em situação dedesigualdade diante de outra pessoaeconomicamente mais forte. Noscasos em que a vulnerabilidade éreconhecida pela lei, elestitularizarão direitos subtraídos doeconomicamente mais forte, comvistas a compensar juridicamente adesigualdade econômica.

Há duas espécies de incapacidade: absoluta (CC, art. 3º)

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e relativa (CC, art. 4º). Na primeira, considera-se o incapazsem nenhuma condição para decidir se determinado ato ounegócio jurídico lhe aproveita. Sua opinião é juridicamenteirrelevante e a vontade do sujeito de direito será formadaexclusivamente pela manifestação exteriorizada por outrem (orepresentante). Na segunda, já se reconhece no incapazalguma aptidão psíquico-física para decidir sobre o que lheinteressa. Sua opinião é relevante para o direito e sem suavontade ou contra ela o negócio jurídico não se constitui.Precisará, contudo, do auxílio juridicamente indispensável deoutra pessoa (o assistente).

São absolutamente incapazes: a) homens e mulherescom menos de 16 anos de idade; b) os que, por enfermidadeou deficiência mental, não tiverem discernimento necessáriopara a prática de atos da vida civil; c) os que não puderemexprimir sua vontade, temporária ou permanentemente.

São relativamente incapazes: a) homens e mulheres commais de 16 e menos de 18 anos de idade; b) os ébrioshabituais e os viciados em tóxicos; c) os que, por deficiênciamental, têm reduzido discernimento e os excepcionais semdesenvolvimento mental completo; d) os pródigos.

Os negócios jurídicos praticados pelo absolutamenteincapaz sem a devida representação são nulos (CC, art. 166,I), enquanto os praticados pelo relativamente incapaz nãoassistido na forma da lei são anuláveis (CC, art. 171, I) (sobrea diferença entre nulidade e anulabilidade: Cap.10, item 12.1).

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3.1. Incapacidade em razão da idadeA idade é um fator que suprime ou limita a capacidade

de todas as pessoas físicas durante algum tempo de suasvidas. Ao contrário dos demais fatores, que dizem respeitoforçosamente a uma parcela das pessoas — uma parcelaminoritária (item 3.2) —, a pouca idade é uma causa deincapacidade que alcança todos os homens e mulheresindistintamente. Considera-se que, até passar certo númerode anos na vida de qualquer homem ou mulher, não estãoeles suficientemente maduros, do ponto de vista emocional eintelectual, para cuidar diretamente de seus bens einteresses. As pessoas físicas, assim, se dividem em maiorese menores. “Maior”, para efeitos civis, é a pessoa física com18 anos ou mais. A lei civil chama de “menor” o homem oumulher com menos de 18 anos de idade completos, e osclassifica como “impúberes” (até 16 anos) e “púberes” (entre16 e 18 anos). Os primeiros têm incapacidade absoluta e osúltimos, relativa.

Diz a lei que a menoridade cessa aos 18 anos completos(CC, art. 5º). Isso significa que a maioridade tem início à zerohora do primeiro dia seguinte àquele em que a pessoacompletou seu décimo oitavo aniversário. Como os anos secontam em anos, no direito civil (CC, art. 132, § 3º), éirrelevante a hora do nascimento da pessoa como marco doinício da maioridade. Duas crianças nascidas no mesmo dia,a primeira à 01:00 hora e a segunda, às 23:00 horas,

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alcançarão a maioridade ao mesmo tempo: à 00:00 hora dodia imediatamente seguinte ao correspondente aonascimento, dezoito anos após.

A incapacidade em razão da idade (chamada por alguns“incapacidade natural”) cessa, para o menor, nas hipóteseslegais de emancipação (item 3.1.3).

3.1.1. Menor impúbere

Até alcançar 16 anos, os humanos são considerados,pelo direito brasileiro, desprovidos de suficiente maturidadeintelectual ou psicológica para decidir sozinhos sobre o quelhes interessa ou não. Não tiveram ainda experiência de vidabastante para conferir às coisas o devido valor, ou mesmoidentificar atitudes maliciosas. Mas não lhes falta apenasvivência; o desenvolvimento intelectual e emocional aindanão amadureceu o suficiente para que possam tomar,independentes, decisões de repercussão jurídica.

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A pessoa física, até alcançar 16anos de idade, é absolutamenteincapaz. Só pratica negóciosjurídicos por meio de seurepresentante (os pais ou o tutor).

Para o direito, homens e mulheres de até 16 anos(menores impúberes) apenas manifestam a vontade por meiodo representante (os pais ou o tutor). Quer dizer, sua opiniãosobre a conveniência ou inconveniência de praticardeterminado negócio jurídico não tem nenhuma relevânciapara a existência, validade ou eficácia deste. Tanto faz o quepensa o menor impúbere, já que o negócio será ou nãopraticado em nome dele exclusivamente em função davontade do representante. Se os pais consideram que certonegócio é do interesse do menor impúbere, realizam-no emnome do filho; caso o reputem desinteressante, deixam depraticá-lo. O que pensa o menor sobre o negócio emquestão, numa ou noutra situação, não tem nenhumaimportância jurídica. Evidentemente, o representante doincapaz pode ser responsabilizado por má administração ou

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irregularidades em que incorra. Não terá sido, porém, nessecaso, a eventual divergência entre o ato praticado e aopinião do menor o fundamento para a responsabilização,mas a negligência ou ilícito do representante.

3.1.2. Menor púbere

No ambiente urbano dos nossos tempos, a maturidadeemocional e intelectual dos jovens de estratos médio e alto éatingida cada vez mais tarde. O início da adolescência émarcado biologicamente pela maturidade da funçãoreprodutiva; o fim da adolescência, contudo, é um marco denatureza econômica, social e psicológica. Deixa de seradolescente a pessoa que se torna independente do pontode vista econômico (ganha com o próprio trabalho odinheiro de seu sustento), social (convive mais com seusamigos do que com os familiares) e psicológico (orientaações e opções por seus próprios valores). Desse modo,cada pessoa adquire de fato a maturidade para participar docomércio jurídico numa idade diferente, a partir do início daadolescência. Entretanto, esta é uma realidade por demaiscomplexa para o direito regular com atenção àsparticularidades de cada um. A lei, então, elege uma idade(18 anos) a partir da qual a pessoa física é reputada capazpara a prática dos atos e negócios da vida civil por si mesma.

Entre 16 e 18 anos, o menor é relativamente incapaz. Suaopinião acerca da conveniência dos negócios jurídicos tem

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já alguma relevância. Se o jovem entender que não lheconvém praticar determinado negócio, ele verá respeitadapelo direito sua opinião. Isso porque, sem exteriorizar suaconcordância, nenhum ato ou negócio jurídico se podepraticar em nome dele. Não se vinculará, desse modo, adireito ou obrigação contra a sua vontade, ou a despeitodela. Quer dizer, mesmo que o assistente (pais ou tutor)esteja convencido da utilidade do negócio para o menor, nãocompartilhando este da mesma opinião, nada se realizará.

A pessoa física, entre 16 e 18 anosde idade, é relativamente incapaz. Sópode praticar negócios jurídicosacompanhada de seu assistente (ospais ou o tutor).

A limitação característica da incapacidade relativa semanifesta, assim, apenas na hipótese inversa: quando omenor púbere considera do seu interesse praticardeterminado negócio jurídico, mas o assistente tem opinião

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contrária. Nesse caso, o negócio não se realiza, pois, sem aassinatura dos pais ou do tutor exercendo a assistência, omenor não pode praticá-lo.

3.1.3. Emancipação

O menor, como definido, é o homem ou mulher commenos de 18 anos de idade completos. Ele é incapaz e, porisso, só pode praticar atos e negócios jurídicos por meio derepresentante (até os 16 anos) ou com o auxílio deassistente. A incapacidade em razão da idade, porém, podeser extinta antes da maioridade, com a emancipação. O menoremancipado tem a mesma capacidade do maior.

Emancipação é um ato ou fato jurídico que extingue aincapacidade do menor. As causas que a desencadeiamestão listadas no parágrafo único do art. 5º do CC: a)concessão dos pais; b) sentença judicial; c) casamento; d)exercício de cargo público efetivo; e) colação de grau emcurso superior; f) estabelecimento civil ou comercial; g)emprego. Examine-se cada uma delas.

Concessão dos pais. A emancipação pode ser alcançadapelo menor por outorga dos pais. É o caso do jovem ou dajovem que, segundo a opinião dos pais, encontra-se maduroo suficiente para tratar diretamente dos seus bens einteresses. Para tanto, exige-se que o menor tenha 16 anoscompletos. O absolutamente incapaz não pode seremancipado por outorga dos pais. Outra exigência é a forma

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pública do instrumento. Os pais devem manifestar a decisãoconcessiva de capacidade num cartório de notas. A escriturapública será, depois, registrada no registro civil (CC, art. 9º,II).

A emancipação é outorgada pelos pais em conjunto (paie mãe). Admite-se que seja concedida por um deles apenasna hipótese de falecimento do outro.

Não tem validade e configura abuso de direito aemancipação feita contra o interesse do menor. Se os paisoutorgam a emancipação ao menor que ainda não temmaturidade suficiente para gerir seus negócios e o fazemapenas com o intuito de se exonerarem de qualquerresponsabilidade civil pelos atos do filho, o ato é ilícito eanulável. Como o objetivo, nesse caso, foi o de se furtar àobrigação que a lei imputa aos pais (CC, art. 932, I),caracteriza-se o exercício abusivo do direito.

Sentença judicial. Quando ambos os pais são falecidosou ausentes, ou se decaíram do exercício do poder familiar, omenor relativamente incapaz é assistido por um tutor. Sequiser alcançar a plena capacidade, o menor poderá requererao juiz que lhe conceda a emancipação. O juiz, após ouvir aopinião do tutor e se convencer de que o menor requerentetem recursos emocionais e intelectuais para gerir a própriavida, emancipá-lo-á.

Casamento. Para se casar, a pessoa deve ter pelo menos16 anos, exigida a autorização dos pais para os menores de

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18 anos. É a chamada idade núbil. Antes dela, as pessoas sópodem casar-se em situações especificamente previstas nalei, como a gravidez, por exemplo. Mas, qualquer que tenhasido a idade com que casou, a pessoa torna-se capaz pelocasamento. Homem ou mulher casados podem praticardiretamente qualquer ato ou negócio da vida civil,independentemente da idade.

Emprego público efetivo. Se o menor, após aprovaçãoem concurso público, é nomeado para cargo ou funçãoefetiva, ele se emancipa. Trata-se de hipótese cada vez maisrara de se verificar, na medida em que os estatutos defuncionários públicos dos diversos entes da Federação têmexigido capacidade civil do aprovado em concurso para oato de posse. Note-se que apenas a nomeação para cargopúblico de provimento efetivo emancipa. O menor nomeadopara cargo ou função de provimento em comissãopermanece incapaz.

Colação de grau em curso superior. Hipótese raríssimade se verificar é a emancipação por colação de grau em cursosuperior; isso porque, normalmente, a pessoa conclui oensino superior após os 20 anos de idade, quando já éplenamente capaz há algum tempo. Ocorrendo, porém, de ummenor precoce ou superdotado chegar à universidade econcluí-la antes do tempo da generalidade dos jovens desua geração, será ele civilmente capaz para todos os atos enegócios da vida civil.

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Código Civil:Art. 5º, parágrafo único: Cessará,

para os menores, a incapacidade:I — pela concessão dos pais, ou de

um deles na falta do outro, medianteinstrumento público,independentemente de homologaçãojudicial, ou por sentença do juiz,ouvido o tutor, se o menor tiver 16(dezesseis) anos completos;

II — pelo casamento;III — pelo exercício de emprego

público efetivo;IV — pela colação de grau em

curso de ensino superior;

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curso de ensino superior;V — pelo estabelecimento civil ou

comercial, ou pela existência derelação de emprego, desde que, emfunção deles, o menor com 16(dezesseis) anos completos tenhaeconomia própria.

Estabelecimento civil ou comercial. Se o menor seestabelece como explorador de atividade econômica, civil oucomercial, ele se emancipa. Nessa hipótese de emancipação,considera a lei que, tendo demonstrado aptidão para montare gerir um negócio, já revela o menor estar pronto paracuidar diretamente de seus bens e interesses. Imagine que orapaz é artista (pintor ou escultor) e cuida pessoalmente danegociação de suas obras junto às galerias; obtendoremuneração por elas, ele estará civilmente estabelecido. Secompra e revende algum produto, garantindo lucros para si,está comercialmente estabelecido.

A emancipação em razão do estabelecimento civil oucomercial depende de duas condições. A primeira é a idademínima de 16 anos. Só o menor relativamente incapaz pode

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emancipar-se pelo estabelecimento civil ou comercial. Asegunda é a obtenção de economia própria, isto é, deganhos que independem de ato dos pais. Note-se que, parase estabelecer, o menor pode (e normalmente irá) receber osrecursos iniciais de alguém, em geral, dos pais. Esse fato nãoimpede a emancipação. Se, estabelecido, o menor conseguiraferir algum rendimento, o seu estabelecimento civil oucomercial lhe estará proporcionando economia própria. Nãose exige, na caracterização da economia própria, aindependência econômica do menor.

Emprego. A emancipação do menor empregado estásujeita às mesmas condições da hipótese anterior, deestabelecimento civil ou comercial. Ele precisa ter, nomínimo, 16 anos e obter, em razão do emprego, economiaprópria. Para que se verifique a hipótese de emancipação,não é necessário que o emprego seja formal, quer dizer, comcarteira assinada. Como a lei fala em relação de empregocomo fator desencadeante da emancipação, qualquertrabalho realizado com as características jurídicas daquela(não eventualidade, subordinação e remuneração — CLT,art. 3º; cf., por todos, Martins, 2001:95/96) é suficiente paraalcançar essa capacidade.

Para encerrar, anote-se que a emancipação, qualquerque tenha sido a causa, é sempre irreversível. Uma vezalcançada, garante ao menor a capacidade mesmo se o fatorque a desencadeou deixar de existir. Desse modo, a outorga

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dos pais é irrevogável. Concedida a emancipação, não têmos pais arrependidos nenhum meio de revertê-la. Também,mesmo que o casamento seja desfeito por separação,divórcio, viuvez ou anulação, isso não retira do menor acapacidade de que passou a gozar em razão dele. Sedesativado o estabelecimento ou desfeito o vínculo deemprego, também não retornará o menor à condição anteriorde incapaz.

3.2. Incapacidade com interdiçãoA incapacidade com interdição tem causas diversas da

insuficiência de idade legal. Nos casos desse gênero deincapacidade, o direito a suprime ou limita porque consideraque a pessoa, pelo estado físico ou psíquico em que seencontra, é merecedora de proteção semelhante à liberadaem favor do menor impúbere (no caso de incapacidadeabsoluta) ou púbere (no de relativa). As enfermidades,deficiências ou vícios da pessoa impedem-na de defenderseus interesses diretamente, tal como ocorre com osmenores.

Quando a lei define a pessoa como incapaz em razão daidade, dispensa-se qualquer pronunciamento judicial. Bastaconsultar a certidão de nascimento ou outro documento deidentificação para saber se um jovem já alcançou a completadesenvoltura para a prática direta dos atos e negóciosjurídicos, ou se para tanto ainda precisa desenvolver-se.

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Não surgem dúvidas, nessa hipótese, já que a caracterizaçãoda capacidade depende de mero cálculo aritmético. Nasdemais hipóteses legais, porém, a incapacidade não se podeperceber de modo singelo. Reclama formalidades queconfiram segurança às relações jurídicas. Em outros termos,a incapacidade deve ser objeto de um processo judicial (de“interdição”), no qual reste demonstrado o fatocaracterizador da supressão ou limitação da capacidade. Ojuiz, ao sentenciar o processo de interdição, nomeia umcurador para representar ou assistir o incapaz, conforme sejarespectivamente absoluta ou relativa a incapacidade.

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Ao contrário da incapacidadenatural, que se pode notar comsimples cálculos aritméticos a partirdo dia do nascimento da pessoa, asdemais hipóteses de incapacidadeexigem pesquisas mais complexas e,por isso, devem ser objeto deprocesso judicial de interdição doincapaz.

São fundamentos para a interdição: a) prodigalidade; b)embriaguez habitual ou vício em tóxico; c) deficiênciamental; d) impedimento permanente ou temporário para aexpressão da vontade.

3.2.1. Pródigo

Pródigo é a pessoa que gasta sem os critériosnormalmente encontráveis em pessoas de mesma condição

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moral, cultural e econômica. É o perdulário, que dilapida opróprio patrimônio realizando despesas fúteis, porque lhefaltam freios emocionais ou morais. Num mundomarcantemente consumista, carece o perdulário datemperança que o preserve dos intensos apelos publicitáriosque o cercam. A prodigalidade é algo como uma deficiênciade caráter, que revela não estar a pessoa inteiramente dotadados recursos psíquicos para sopesar o proveito ou prejuízodos negócios jurídicos.

O pródigo é incapaz apenas para os atos de conteúdopatrimonial listados no art. 1.782 do CC: emprestar, transigir,dar quitação, alienar, hipotecar, demandar ou ser demandadoe os atos que não sejam de mera administração. Para osdemais atos da vida civil — casar, adotar, reconhecer filhos,testar, doar órgãos para retirada em vida ou manifestar suarecusa expressa em ser doador, submeter-se a esterilizaçãovoluntária e outros —, a assistência do curador édesnecessária, podendo o pródigo praticar o negóciojurídico diretamente.

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O pródigo é relativamente incapazporque a falta de critério nos gastospode levá-lo à ruína. A hipótesepreocupa o direito, na medida emque a prodigalidade pode acabarprejudicando interesses defamiliares dele, obrigados a socorrê-lo ou até mesmo a alimentá-lo.

Tem sido questionado, na doutrina, a pertinência daincapacidade do pródigo. Consideram alguns autoresinapropriada a previsão legal, postulando sua supressão. Seo pródigo está dilapidando seu patrimônio em razão dealguma deficiência mental que lhe reduz o discernimento, ainterdição deve ser decretada por esse fundamento e nãopela prodigalidade; mas, inexistindo qualquer deficiênciamental, os seus gastos desenfreados e desordenados nãodeve preocupar a lei. A prodigalidade, contudo, permanececomo fundamento para a interdição em atenção à família do

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pródigo, que, não raras vezes, vê-se obrigada a socorrê-lonas dificuldades a que o destempero o levou (Rodrigues,2002:52; Pereira, 1961:245/247). É medida de proteção doperdulário, sem dúvida, mas também dos familiares, expostosao risco de empobrecer ou de vir a ter que alimentá-lo.

3.2.2. Viciado

O vício é fundamento para interdição da pessoa em doiscasos: a embriaguez habitual e o consumo de tóxicos. Emprimeiro lugar porque o viciado, nas condiçõesmencionadas, tem reduzidas as suas habilidades mentais.Perde o discernimento necessário à participação comdesenvoltura do comércio jurídico, porque lhe turvam amente o álcool em excesso ou os tóxicos. Não é só isso quepreocupa a lei, porém. A incapacidade dos viciados guardarelação com a dos pródigos, no sentido de procurar protegertambém os familiares do incapaz. O viciado, não raras vezes,gasta reservas patrimoniais na sustentação do vício.Empobrece e pode empobrecer também alguns parentespróximos, movidos pela caridade ou pelo dever de alimentos.

Em relação ao consumo de bebidas alcoólicas, note-seque a lei exige uma situação de fato específica, que é aembriaguez habitual. Todo vício é reiterado, habitual porassim dizer. Mas é necessário distinguir, no tocante aoálcool, duas situações. Deve-se considerar habitual aembriaguez que perturba o cotidiano do incapaz e de seus

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familiares. Aquele que se embebeda todo sábado, mas semantém sóbrio e produtivo nos demais dias da semana, pormais dissabores que cause (e os causa, deveras), não é ébriohabitual e não pode ser interditado. Já em relação aoconsumo de tóxicos, a lei menciona simplesmente o vício.Isso porque a dependência dos tóxicos é muito mais forte edestrutiva e o toxicômano raramente consegue controlar-se,parte do tempo que seja, para dar curso regular às suasresponsabilidades e afazeres.

Os ébrios habituais e ostoxicômanos são relativamenteincapazes. Em vista do estado emque se encontram, o juiz poderálimitar a incapacidade adeterminados atos de relevânciapatrimonial.

De qualquer modo, o consumo moderado de álcool,

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mesmo que com alguma frequência, não implica aincapacidade da pessoa; assim como o consumoparcimonioso de tóxicos, embora sempre ilegal e passívelde sanção penal, não acarreta a limitação da capacidade doagente.

O vício é sempre causa de incapacidade relativa. Pormais grave que seja a situação do viciado, particularmentedo toxicômano, não há base legal para o juiz interditá-locomo absolutamente incapaz. Mas a interdição pode serparcial, circunscrita aos mesmos atos que a lei menciona nadelimitação da incapacidade do pródigo: emprestar, transigir,dar quitação, hipotecar, demandar ou ser demandado epraticar atos que não sejam de mera administração (CC, arts.1.772 e 1.782). De notar, também, que levando o vício àsuspensão, permanente ou definitiva, da aptidão paraexprimir a vontade, poderá ser declarada sua interdiçãoabsoluta, nos termos do art. 3º, III, do CC. Nesse caso,porém, não terá sido a extensão do vício, mas a perda dosmeios de comunicação, o fundamento para a decisão judicial(Diniz, 2002:155).

3.2.3. Deficiente mental

A incapacidade jurídica do deficiente mental, ainda queabsoluta, não significa exclusão. Se não tem discernimentonecessário à prática de atos da vida civil, ele não deixa deser, antes disso, um cidadão com direitos assegurados pela

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ordem jurídica: acesso a serviços de saúde, à educaçãoadequada à sua condição etc. Ao classificar o deficientemental entre os incapazes, a lei procura unicamente protegê-lo, determinando sua representação ou assistência poralguém presumivelmente de sua confiança e sem interesseem prejudicá-lo. A incapacidade, assim, não pode ser vistacomo forma de exclusão; muito pelo contrário.

A deficiência mental é um conceito extremamente largoque abarca um sem-número de estados com significativasdiferenças. Distinguem-se, quanto ao nível de inteligênciado deficiente, três níveis de deficiência mental: profunda ousevera (Quociente de Inteligência até 35), moderada (QIentre 36 e 52) e leve (QI entre 53 e 70). Quanto aoaproveitamento, os deficientes mentais classificam-se emtotalmente dependentes (necessitam de assistênciapermanente, inclusive nos atos mais simples, como vestir ecomer, e não têm noção de perigos relacionados a fogo,altura, trânsito), adestráveis (podem executar algumastarefas simples e cotidianas, têm noção de certos perigos esão capazes de aprendizados rudimentares) ou educáveis(podem aprender, embora com muito atraso, esforço elentidão, a ler e realizar operações matemáticas singelas;comunicam-se e podem trabalhar) (ver Araujo, 1994:31/34).

A pessoa com deficiência mental é absolutamenteincapaz quando não tem o necessário discernimento paraaferir a utilidade dos negócios jurídicos aos seus interesses.

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É o caso da deficiência profunda ou severa, que torna osdeficientes totalmente dependentes da assistência alheia atéa morte. É também o da maioria dos casos de deficiênciamoderada. Já se a deficiência mental é leve e não inibe, porcompleto, o discernimento, o deficiente será relativamenteincapaz. Determinados graus superiores de deficiênciamental leve não impedem a pessoa de dispor de seus bens einteresses diretamente, ou de administrá-los, desde que nãoenvolvam decisões complexas. Nessa hipótese, não háfundamento para suprimir ou limitar a capacidade dodeficiente mental educável.

A perícia médica dirá em qual condição a pessoadeficiente se encontra. Se a deficiência mental frustrou opleno desenvolvimento das habilidades intelectuais,recomenda-se esteja o deficiente sempre acompanhado poralguém de sua confiança nos negócios jurídicos quepraticar. É o caso de incapacidade relativa. Mas se odeficiente simplesmente não compreende a organizaçãosocial, nem mesmo no plano das relações familiares maispróximas, não terá condições mínimas de entender osignificado jurídico de seus atos. Para esse caso, somente aincapacidade absoluta será meio eficaz de proteção deinteresses.

O juiz, ao julgar o processo de interdição do deficientemental, irá, norteado pelas conclusões do laudo médico,definir o grau da incapacidade (absoluta ou relativa). Caso

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conclua pela relatividade da incapacidade, ele pode, também,circunscrever a determinados atos de conteúdo patrimonial aatuação do curador assistente (CC, art. 1.772). O juiz,inclusive, se convencido de que a deficiência mental não écausa de redução ou supressão do discernimento necessárioà prática dos atos da vida civil com os quais o demandadoestá habitualmente lidando, não o impedindo de cuidardiretamente dos seus singelos interesses, poderá nãoacolher o pedido de interdição, permanecendo, então, odeficiente mental no inteiro gozo da sua capacidade jurídica.

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A deficiência mental, de acordocom a extensão, pode dar ensejo àincapacidade absoluta ou relativa.Se o deficiente mental não temdiscernimento necessário à práticados atos da vida civil, ele éabsolutamente incapaz; se o temreduzido, relativamente incapaz.

De notar, também, que, nãoacarretando a deficiência mentalnenhum prejuízo ao discernimento, odeficiente é capaz.

A opinião que o deficiente mental absolutamenteincapaz possui a respeito do negócio jurídico — se é esteproveitoso ou prejudicial aos seus interesses — não tem

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expressão nenhuma para o direito. O curador pode praticar,em nome do deficiente sem discernimento, todos osnegócios jurídicos que entender convenientes aocuratelado. Já no caso do deficiente mental relativamenteincapaz, isto é, o de discernimento reduzido, a sua opiniãotem alguma relevância para o direito, visto que somente sepodem praticar, em nome dele, os atos com os quais estiverde acordo.

A lei menciona, num dispositivo próprio, a incapacidaderelativa do excepcional sem desenvolvimento mentalcompleto (CC, art. 4º, III). Com isso, sugere que estariacuidando de hipótese diversa de deficiência mental comredução de discernimento (CC, art. 4º, II). Não é o caso,porém. O conceito de “excepcional” tem emprego napedagogia, e não na medicina. Destina-se a identificar osalunos com demandas especiais de aprendizado, inclusiveem função de portarem deficiência mental leve. De qualquermodo, a busca de um significado especial para a hipótese doinciso III do art. 4º (excepcionais sem desenvolvimentomental completo), que não se encontrasse já abrangido noinciso II do mesmo artigo (deficiente com redução dediscernimento), é, por tudo, desprovida de interesse, já queas duas situações levam à incapacidade relativa da pessoa.

3.2.4. Mentalmente enfermo

A deficiência mental é um estado. Em alguns poucos

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casos, quando diagnosticada precocemente, pode serevitada ou curada. Mas, não sendo esta a hipótese, tende-sea perpetuar, marcando para sempre a vida da pessoa. Já aenfermidade mental é uma lesão à saúde, de efeitos mais oumenos prolongados, com ou sem cura. A pessoamentalmente sã pode, às tantas, desenvolver uma doençamental. Estará enferma. Se o tratamento surtir resultadospositivos, poderá recuperar a saúde. A deficiência, assim,tende a se perpetuar durante a vida do deficiente, enquantoa enfermidade tende à transitoriedade na vida do enfermo.Veja que se está falando em tendências; não se afastam asuperação da deficiência, nem as doenças crônicas e asincuráveis. A exata diferenciação entre enfermidade edeficiência mental é de interesse nenhum para o direito. Oelemento desencadeador da incapacidade absoluta é ocomprometimento das faculdades mentais que possibilitam àpessoa discernir o vantajoso do prejudicial, o útil do inútil,para os seus interesses. Comprometidas tais faculdades, sãoenfermos e deficientes incapazes.

A enfermidade mental é causa de incapacidade absolutaapenas quando subtrai do enfermo o discernimentonecessário para a prática dos atos civis. Se, acometida pordepressão, a pessoa chega a perder a acuidade intelectualque a desenvoltura plena no comércio jurídico exige, ela estámentalmente enferma e pode ser interditada comoabsolutamente incapaz. Mas, se o deprimido, apesar do mal,

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mantém o discernimento, não há causa para a interdição.Sendo a enfermidade um estado de tendência transitória,

deve-se considerar a hipótese de recuperação da capacidadedo mentalmente enfermo em razão da cura. Quer dizer,curado do mal mental que lhe subtraía o discernimento paraos atos e negócios jurídicos, a pessoa deve reassumir adireção imediata de seus interesses. O juiz decretará olevantamento da interdição e dispensará o curador de suasfunções. Durante o período de incapacidade, todos os atospraticados diretamente continuam nulos. Se quiser, a pessoacom a capacidade jurídica recuperada poderá novamentepraticá-los.

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O mentalmente enfermo só perde acapacidade se a enfermidade ohouver privado do discernimentonecessário para a prática dos atoscivis. Caso conserve essa faculdade,a doença não é causa para ainterdição.

Não há previsão, na lei, para a incapacidade relativa doenfermo mental. Trata-se de impropriedade da norma jurídica,que deveria admiti-la nas hipóteses de enfermidade que nãosuprimisse, mas apenas reduzisse, o discernimento para osatos da vida civil.

3.2.5. Impedido de expressar a vontade

A capacidade é a aptidão, reconhecida peloordenamento jurídico, para a prática de atos e negóciosjurídicos diretamente. Ela pressupõe, portanto, a plenadesobstrução dos meios psíquicos e físicos para a

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manifestação de vontade. A vontade que não se podecomunicar, por faltar à pessoa qualquer uma das condiçõesmentais ou físicas para tanto, não tem relevância jurídica.Desse modo, o impedido de expressar a vontade, porqualquer razão, deve ser interditado para que outra pessoa— o curador — fale por ele.

Esta é uma causa de incapacidade que pode sertransitória. Imagine que a pessoa, em razão de acidente,entra em coma. Enquanto estiver nessa condição, nãopoderá manifestar sua vontade. Sendo necessário, osfamiliares legitimados podem pedir a sua interdição, para queo juiz nomeie um curador. Este ficará investido da aptidãopara praticar os atos e negócios jurídicos em nome dapessoa inconsciente, enquanto durar o estado deinconsciência. Se e quando recuperado, o acidentadoretomará a direção pessoal de seus bens e interesses.

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A pessoa que, em razão deacidente, entra em coma fica, aindaque transitoriamente, impedida deexprimir a vontade. Ela é, por isso,absolutamente incapaz.

Pode ser também permanente a incapacidade pelaimpossibilidade de expressar a vontade. O acidente podesuprimir inteiramente a aptidão física ou mental para acomunicação, prostrando a pessoa num estado vegetativosem perspectivas de cura.

3.2.6. Negócios jurídicos anteriores à interdição

À pessoa maior considerada legalmente incapaz (CC,arts. 3º, II e III, e 4º, I a IV) deve ser nomeado um curadorpara representá-la ou assisti-la em todos os atos da vidacivil. Quem nomeia o curador é o juiz, ao sentenciar oprocesso de interdição, a partir de critérios estabelecidos nalei (CC, arts. 1.767 e s.). A partir da investidura do curadorem sua função, todos os atos e negócios jurídicos de

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interesse do interdito serão praticados por ele (se aincapacidade é absoluta) ou mediante sua assistência (serelativa).

Mas, e quanto aos atos anteriores à interdição? Podeser que o fator autorizante do decreto de incapacidade játivesse acometido a pessoa, sem que os familiares e amigostivessem ainda dado conta da situação. A enfermidademental, por exemplo, já poderia ter comprometido asfaculdades relacionadas ao discernimento necessário àparticipação no comércio jurídico, mas não havia ainda sidonotada pelos mais próximos. Pode até mesmo ocorrer de sera prática de um negócio jurídico claramente desvantajoso oevento a chamar a atenção dos familiares para apossibilidade da perda ou redução do discernimento.

A sentença do juiz decretando a interdição e nomeandoo curador não é considerada constitutiva, mas declaratória.Quer dizer, não é a decisão judicial que gera a incapacidade,mas a ocorrência do fato descrito em lei como causa(enfermidade ou deficiência mental, vício em tóxicos,prodigalidade etc.). A decisão do juiz apenas declara que ofato se verificou, com o objetivo de conferir maior segurançajurídica às relações com a pessoa tida por incapaz pelanorma legal. Assim sendo, em princípio, os atos do incapazanteriores à interdição já se encontravam viciados pornulidade ou anulabilidade desde o momento em que severificou o fato característico da incapacidade.

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A incapacidade decorre dacaracterização dos fatos previstosem lei e é apenas declarada pelojuiz, no processo de interdição. Porisso, deve-se investigar se os atos enegócios jurídicos anteriores àinterdição foram ou não proveitososaos interesses do incapaz.

Mas a solução desse problema não pode ser tãosimplista, e deve prestigiar, também, a boa-fé do outrocontratante. De fato, se não havia indícios de quedeterminada pessoa perdera o discernimento para a práticade atos ou negócios jurídicos, não deve o terceiro de boa-féser prejudicado. Somente se era perceptível a falta decondições psíquicas ou físicas para a prática do ato peloincapaz é que se deve declarar nulo ou anular o negócio. A

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avaliação da boa-fé convém seja feita de modo objetivo. Istoé, se alguém concorda em vender um bem por valorsignificativamente inferior ao de mercado (ou adquiri-lo porvalor significativamente superior), deve-se considerar, emprincípio, como estando de má-fé o outro contratante. Adisposição de alguém em fazer algo que a generalidade daspessoas normalmente não faz desperta nas pessoas de boa-fé estranheza. Quem não a manifesta provavelmente estáagindo de má-fé e quer locupletar-se indevidamente.

Desse modo, o negócio jurídico praticado anteriormenteà interdição deve ser avaliado quanto à sua utilidade ouproveito para o incapaz. Se objetivamente proveitoso aosinteresses dele, deve-se considerar o outro contratantemovido pela boa-fé e válido o negócio. Caso contrário, seobjetivamente prejudicial, reputa-se de má-fé o outrocontratante e inválido (nulo ou anulável, de acordo com ograu da incapacidade) o negócio jurídico realizado.

3.3. Algumas situações específicasNo tema da incapacidade devem-se circunscrever

algumas situações específicas, com o objetivo de destacarcausas ou fatores que não autorizam a interdição por simesmos (velhice e deficiência física) ou para tratar depessoas sujeitas a regime especial em razão da origem ecultura (índio).

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3.3.1. Velho

Até determinada idade, somos todos incapazes. Masnunca deixamos de ser capazes em razão da idade. Por maisidosa que seja a pessoa, ela é capaz para os atos e negóciosjurídicos. É certo que alguns atos a lei submete adeterminadas condições em razão da idade avançada dequem os pratica, com o intuito de preservar interesses dela ede seus eventuais futuros sucessores. O maior de 60 anos,por exemplo, só pode casar-se em regime de separação debens. De qualquer modo, não se trata de supressão dacapacidade. O idoso se casa, querendo, independentementeda representação ou assistência de quem quer que seja,porque tem plena capacidade para os atos da vida civil.

A velhice, por si só, não é causa de incapacidade. Pormais avançada na idade, a pessoa tem plena aptidão paracuidar diretamente de seus negócios, bens e interesses. Se,pressentindo a proximidade do fim, quiser gastarconsiderável volume de suas reservas patrimoniais ematividades de pura diversão e lazer, poderá fazê-lo sem queos descendentes ou outros eventuais futuros sucessorestenham direito de impedi-la. Não se pode considerar pródigoaquele que, não tendo responsabilidade pelo sustento eeducação de mais ninguém, gasta ludicamente as economiasconstruídas durante a vida.

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O homem e a mulher não perdem acapacidade em razão da idade. Pormais idosa que seja a pessoa,continua ela capaz e pode praticaratos e negócios jurídicosdiretamente, sem representação ouassistência.

Claro que o idoso fica, em razão da idade, mais exposto adoenças e, vindo a contrair alguma que lhe reduza ousubtraia o discernimento necessário para o comérciojurídico, poderá ser interditado. A incapacidade, porém, nãoterá sido causada pela velhice, mas sim pela redução ouperda do discernimento. Isto é, sobreveio-lhe à mesmamedida que pode sobrevir para o jovem.

3.3.2. Deficiente físico

Os deficientes físicos não são incapazes tão somente emvirtude da deficiência. O cego e o surdo-mudo, por exemplo,são pessoas capazes. Dirigem diretamente seus negócios e

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interesses e prescindem, na prática de atos ou negóciosjurídicos válidos, de representantes ou assistentes. Nasociedade democrática dos nossos tempos, os portadoresde deficiência física titularizam os mesmos direitos civis quea generalidade das pessoas. Não há razões para negar-lhesou restringir-lhes a capacidade, a pretexto de não seencontrarem inteiramente aptos à tomada das decisões por simesmos (Araujo, 1994).

Em outros termos, os portadores de deficiência físicasão capazes ou incapazes exatamente nas mesmas situaçõesque as demais pessoas. Assim, alcançando 16 anoscompletos, tornam-se relativamente incapazes, e, chegandoaos 18, alcançam a maioridade e a plena capacidade. Perdem-na se não puderem mais comunicar sua vontade, porqualquer razão, ainda que transitória; se contraíremenfermidade mental que lhes suprima o discernimento; se setornarem ébrios habituais ou viciados em tóxicos; se semostrarem pródigos na administração de seus bens e assimpor diante.

A proteção que o direito libera aos portadores dedeficiência física tem sentido e objetivos bem diversos daliberada aos desdotados de discernimento para os atos enegócios civis. Assim, o cego, por não poder ler, só podetestar mediante escritura pública (CC, art. 1.872), o surdo-mudo só pode fazer testamento cerrado com observância dedeterminadas formalidades (CC, art. 1.873) e o portador de

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qualquer deficiência pode requerer que o juiz nomeie curadorpara um ou mais de seus negócios ou bens (CC, art. 1.780).Em nenhuma dessas medidas de proteção, é suprimida oulimitada a capacidade do portador de deficiência física.Mesmo na hipótese de receberem seus negócios ou bens umcurador, não está ele impossibilitado de cuidar delesdiretamente, sempre que se considerar apto a fazê-lo.

3.3.3. Índio

São índios as pessoas de ascendência e origem pré-colombiana, habitantes do Brasil, pertencentes a grupoétnico de características culturais distintas das da sociedadebrasileira, derivada da colonização europeia (a que mereferirei, para simplificar, por “civilização”). Possuem, porisso, costumes e tradições cuja conservação é protegidapelo direito brasileiro (CF, arts. 210, § 2º, 215, § 1º, e 231). Nocapítulo relativo aos direitos civis, asseguram-se aos índiosos mesmos outorgados à generalidade das pessoas. Emprincípio, assim, aplicam-se as normas civis aos índios, sematenção particular à sua origem, ascendência e cultura (Lei n.6.001/73, art. 1º, parágrafo único).

Os índios são classificados, de acordo com a lei, em trêscategorias : a) isolados, os que vivem em gruposdesconhecidos pela civilização, ou com poucos e eventuaiscontatos com esta; b) em vias de integração, os que mantêmintermitente ou permanente contato com a civilização e,

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embora conservem parte das condições da vida nativa deseu grupo, aceitam práticas e modos de existência estranhosa ela; c) integrados, os que vivem na civilização, ainda queconservem alguns usos, costumes e tradições de suacultura. As duas primeiras categorias são referidas pelanoção de índios não integrados.

O índio integrado à civilizaçãobrasileira derivada da colonizaçãoeuropeia é plenamente capaz para aprática de atos e negócios jurídicos.Se não estiver integrado, porpertencer a comunidadesdesconhecidas ou em via deintegração, submete-se à tutela daFUNAI.

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Têm capacidade jurídica igual à das demais pessoas osínd ios integrados. Alcançando a maioridade, tornam-secapazes, e perdem a capacidade, absoluta ou relativamente,nas mesmas hipóteses dos demais brasileiros. Não hánenhuma especificidade na capacidade do índio integrado,aplicando-se-lhes as mesmas normas jurídicas das pessoasnaturais em geral. Já os índios não integrados estão sujeitosa um regime tutelar específico. Os negócios jurídicos entreíndios não integrados e pessoa estranha à comunidadeindígena só podem ser praticados com a assistência daFundação Nacional do Índio (FUNAI). São nulos essesnegócios se o silvícola os praticar diretamente, sem o auxíliode funcionários daquela autarquia federal. Ressalva a leiapenas a hipótese de o índio revelar consciência econhecimento do ato praticado, bem como da extensão deseus efeitos, salvo se lhe tiver sido prejudicial.

O índio deixa o regime de tutela e adquire a plenacapacidade jurídica nas seguintes hipóteses: a)emancipação de sua comunidade, declarada por decreto doPresidente da República, após requerimento da maioria dosseus membros e comprovação, pela FUNAI, da plenaintegração à civilização; b) reconhecimento da condição deintegrado pela FUNAI, por ato formal homologadojudicialmente e inscrito no registro civil; c) requerimento aojuiz de liberação do regime tutelar. Nas três hipóteses, oíndio que pleiteia a medida de outorga de capacidade deve

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ter, no mínimo, 21 anos, conhecimento da língua portuguesa,habilitação para o exercício de atividade útil à civilização erazoável compreensão dos usos e costumes desta.

4. DIREITOS DA PERSONALIDADEA partir do fim do século XIX, em especial da

contribuição do civilista alemão Otto von Gierke,determinados direitos passaram a ser catalogados comodireitos da personalidade (Gallo, 2000:110). É corriqueirodeparar-se, em estudos sobre o tema, com paralelos entreesses direitos (à vida, ao nome, à imagem, sobre o corpo esuas partes e outros) e os fundamentais do ser humano,declarados em momentos históricos expressivos, como adeclaração de independência norte-americana (1776), adeclaração dos direitos do homem na Revolução Francesa(1789) ou a Carta de São Francisco (1948). Esses paralelospincelam de coloração publicista os direitos do homem e deprivatista, os da personalidade (Juglart-Pièdelièvre-Pièdelièvre, 1999:94/95). São, assim, direitos basilares dasrelações civis, derivados da própria dignidade ínsita ao serhumano.

Os direitos da personalidade são tão intimamenteligados à pessoa que os titulariza que se chegou mesmo apropor que, neles, sujeito e objeto se fundiriam (ver Gomes,1957:148/153). Outros sugeriram que se trataria de direitossem sujeitos (ver Miranda, 1965, 7:29/40). São realmente

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essenciais — não no sentido jusnaturalista de atributo inatodos homens que a ordem positiva não poderia deixar dedeclarar e reconhecer, como querem alguns (por exemplo,Bittar, 2001:6/10), mas no de próximos aos mais importantesvalores que a pessoa humana ostenta. Essenciais, em outrostermos, porque não podem ser destacados da pessoa de seutitular. Quer dizer, o direito de propriedade ou de créditopodem ser separados do sujeito, uma vez que nem todas aspessoas são proprietárias ou credoras; mas os direitos dapersonalidade não são destacáveis, já que todos os homense mulheres sempre os titularizam (a imagem é de SilvioRodrigues, 2002:61). Diz-se, então, que os direitos dapersonalidade são aqueles para cujo exercício é suficiente atitularidade da personalidade, entendida em seu sentido deaptidão para ter direitos e obrigações (De Cupis, apudFrança, 1958:153). A extrema ligação entre sujeito e objeto,nos direitos da personalidade, ilustra-se também com alembrança à sensação causada pelo usurpador — que usaindevidamente o nome ou a fotografia de outro —, como sehouvesse tirado um pedaço da pessoa do titular (a imagem éde Pierre Voirin e Gilles Goubeaux, 1999:47/48).

No Brasil, os direitos da personalidade têm a proteçãoenraizada nas normas constitucionais. Nelas tutelam-secomo invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e aimagem das pessoas (CF, art. 5º, X), assegura-se aindenização por dano à imagem agravada por abuso no

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exercício da liberdade de manifestação (inciso V) e agratuidade, para os reconhecidamente pobres, do registrocivil de nascimento (inciso LXXVI, a).

Os direitos da personalidade sãoessenciais às pessoas naturais,porque não há quem não ostitularize: direito ao nome, àimagem, ao corpo e suas partes, àhonra etc.

Os direitos da personalidade são absolutos, oponíveiserga omnes, ou seja, o titular pode escudar-se nele perantequalquer outro sujeito de direito, indistintamente. Assim,eles podem ser defendidos mesmo daqueles com quem otitular não tenha tido nenhuma relação jurídica anterior.Contra qualquer pessoa que lhe tenha ofendido direito dapersonalidade, pode o titular demandar proteçãojurisdicional em razão de sua natureza absoluta. Disso,

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contudo, não se segue que tais direitos sejam ilimitados.Pelo contrário, cedem lugar a outros interesses juridicamentetutelados como de maior envergadura (difusos, coletivos epúblicos). Assim, o direito da personalidade à privacidadenão pode impedir, por exemplo, o controle da arrecadação detributos, porque, enquanto o primeiro atende a interesseexclusivamente privado da pessoa do contribuinte, osegundo é de claro interesse público.

Além de absolutos, os direitos da personalidade sãovitalícios. Homens e mulheres titularizam os direitos dapersonalidade por toda a vida. Em razão da vitaliciedade,configuram-se esses direitos como imprescritíveis. Oofendido não perde o direito de demandar o ofensor,qualquer que tenha sido o lapso de tempo decorrido desde aofensa ou o seu conhecimento pelo titular do direito.

Costumam ser classificados como direitosextrapatrimoniais, insuscetíveis de avaliação econômica emdinheiro (Larroumet, 1998:269/270; Diniz, 2002:117/121). Essaclassificação é correta para a significativa maioria dosdireitos da personalidade. A honra, o nome, a integridadefísica são atributos não passíveis de precificação. Quandolesados os direitos correspondentes, a vítima terá direito aindenização por dano moral, cuja tradução pecuniária nãoguarda relação quantitativa com o valor da ofensa. Mas, se aquase totalidade dos direitos da personalidade não pode sermensurada em valores monetários, há alguns deles que,

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dependendo do titular, são nitidamente patrimoniais. Pense-se no exemplo do direito à imagem titularizado por umfamoso artista ou desportista. Trata-se de direito plenamentequantificável em dinheiro, de acordo com padrões e critériosreconhecidos e partilhados por publicitários, anunciantes emeios de comunicação de massa. O melhor entendimento damatéria, por conseguinte, é o da distinção entre direitos dapersonalidade patrimoniais e extrapatrimoniais.

S ã o indisponíveis os direitos da personalidadeextrapatrimoniais. Quer dizer, a pessoa não tem meiosjuridicamente válidos e eficazes para aliená-los do conjuntode direitos que titulariza. Não pode cedê- -los, onerosa ougratuitamente, nem limitar o seu exercício por ato devontade. Em decorrência, são direitos que não setransmitem, seja por ato entre vivos, seja em razão desucessão por morte. Também em virtude daindisponibilidade, são direitos impenhoráveis, quer dizer,não podem ser objeto de alienação judicial para a satisfaçãode credor.

A renúncia aos direitos da personalidadeextrapatrimoniais também não é cabível, em razão de suaindisponibilidade. Se o titular manifestar, ainda que porescrito em negócio jurídico sinalagmático, a vontade derenunciar a qualquer um deles, poderá, no futuro e semempecilho algum, exercitá-lo ou defendê-lo, inclusive em facedos demais sujeitos participantes do negócio. A renúncia de

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direito da personalidade extrapatrimonial não tem nenhumavalidade ou eficácia. Note-se que o titular de qualquerdireito, inclusive os da personalidade, pode deixar de exercê-lo se entender que isso lhe convém. Não se pode obrigarninguém a exercitar o direito que titulariza contra a suavontade. Isso, porém, não tem o mesmo significado darenúncia. Quem renuncia a direito, assume uma obrigação, ade não exercê-lo, podendo vir a ser responsabilizado caso adescumpra. Quem deixa de exercer um direito, ao contrário,pratica ato que não o obriga, e pode, enquanto não extinto odireito em função do decurso do tempo (prescrição oudecadência), voltar a exercê-lo, sem que isso caracterizedescumprimento de obrigação.

Os direitos da personalidade sãoabsolutos (oponíveis erga omnes) evitalícios. Na sua maioria, sãoextrapatrimoniais, indisponíveis,irrenunciáveis, impenhoráveis eintransmissíveis.

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Sob o signo de “direitos da personalidade”, agrega atecnologia civilista um número cada vez maior de direitossubjetivos. Assim, o direito à vida, integridade física, saúde,verdade, respeito e outros tantos tem sido estudado nessacategoria. É recorrente, aliás, a lembrança da tutela dacriação intelectual do autor como proteção a direitos dessegênero (Miranda, 1965, 7:32). Na verdade, os direitos dapersonalidade são um catálogo de faculdades jurídicas cujaextensão varia de acordo com o tecnólogo e suaspreferências (parece, por vezes, que alguns competem nabusca de novos itens para o cardápio). Neste Curso, centra-se o exame nos direitos da personalidade disciplinados pelosarts. 13 a 21 do CC e nalguma legislação extravagante: nome,privacidade, corpo, imagem e honra.

4.1. Direito ao nomeO nome é a identificação da pessoa natural. É o principal

elemento de individuação de homens e mulheres. Temimportância não apenas jurídica, mas principalmentepsicológica: é a base para a construção da personalidade.

“Toda pessoa tem direito ao nome”, enuncia a lei (CC,art. 16). Ele será composto de prenome e sobrenome; esteidentifica a família e aquele, um membro desta. A pessoa,assim, tem direito de ser identificada por expressão que a

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individue (prenome) entre os integrantes de sua família(sobrenome). Esta é a regra geral, embora haja ainda quemveja sentido em dar ao filho o mesmo prenome do pai ouavô, opção que obriga agregar-se ao nome expressãoindividualizadora do tipo “júnior”, “neto” e outras (são osagnomes).

Quem atribui o prenome à pessoa são os seus pais, emconjunto, ou qualquer um deles, quando falecido o outro naépoca do registro de nascimento. Sendo desconhecido ouausente o pai, a escolha cabe naturalmente à mãe. Há plenaliberdade de escolha, podendo os pais optar por expressõesmais ou menos usuais ou incomuns na designação depessoas, segundo seu desejo. Vedam-se apenas osprenomes suscetíves de expor ao ridículo a pessoa (Lei n.6.015/73, art. 55, parágrafo único). Assim, se os pais queremchamar filho homem por nome tipicamente feminino, ou oinverso, caberá ao oficial recusar o registro. Se os pais nãomasculinizarem o nome feminino (ou não feminizarem omasculino) e insistirem na solução anterior, que exporá ofilho ou filha ao escárnio, o oficial deve suscitar dúvidaperante o juiz, que decidirá se o prenome pretendido pelospais pode ou não ser registrado. Afora a hipótese deexposição ao ridículo, a escolha dos pais é livre e não podeser recusado o registro pelo cartório ou pelo juiz.

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O nome compreende o prenome(que identifica o indivíduo dentro donúcleo familiar) e o sobrenome (queidentifica a família). O prenome élivremente escolhido pelos pais e osobrenome é composto por estes comaproveitamento de uma ou maisexpressões de seus sobrenomes.

A mesma liberdade na definição do prenome não existena composição do sobrenome. Este identifica a família, e,portanto, deve reproduzir, ainda que em parte, o sobrenomedos pais. O mais comum, na tradição brasileira, é colher-se aúltima das expressões componentes do sobrenome da mãe eacrescer-lhe a última das componentes do sobrenome do pai.Se Antonia Silva Barros e Benedito Costa Pereira têm umfilho, e for observada a tradição dos patronímicos adotadano Brasil, irão chamá-lo de Carlos Barros Pereira. Nadaimpede, porém, outras escolhas, desde que com o necessário

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aproveitamento de um dos sobrenomes: Carlos Silva Barrosda Costa Pereira, Carlos Barros da Costa Pereira, CarlosPereira Barros etc. Apenas se os pais não indicarem o nomecompleto, o oficial do registro comporá o sobrenome,observando o critério da lei: será, em princípio, o sobrenomedo pai; na falta deste, será o da mãe (Lei n. 6.015/73, art. 55).

4.1.1. Alteração do nome

A escolha do prenome e a composição do sobrenomepelos pais são, em princípio, definitivas. O nome, integradopelo prenome escolhido pelos pais e pelo sobrenomecomposto por eles, não pode ser alterado a não ser nashipóteses legalmente estipuladas. Note-se que não se estátratando, aqui, da retificação do nome (por exemplo, emrazão de erros de grafia ou de outra natureza), que pode serfeita a qualquer tempo e, em regra, independentemente desentença judicial (Lei n. 6.015/73, art. 110). A mutação donome diz respeito a substituição ou acréscimo deexpressões. A regra, pois, é a da definitividade do nome. Emcasos específicos, porém, é possível sua mudança, a saber:a) vontade do titular, no primeiro ano seguinte ao damaioridade civil; b) decisão judicial que reconheça motivojustificável para a alteração; c) substituição do prenome porapelido notório; d) substituição do prenome de testemunhade crime; e) adição ao nome do sobrenome do cônjuge; f)acréscimo do sobrenome do padrasto ou madrasta; g)

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adoção. Examine-se um a um.Pode verificar-se a mudança no prenome, por ato de

vontade da pessoa, manifestada no primeiro ano após teratingido a maioridade civil (Lei n. 6.015/73, art. 56). Oprenome pode ser alterado, livremente, por qualquer outrodo agrado do interessado, mas o sobrenome deve serpreservado. Admite-se, porém, o acréscimo de expressõescomponentes do sobrenome de antecedentes remotos, comoavós, bisavós etc.

Embora a lei não condicione essa primeira hipótese dealteração do nome a qualquer justificativa, sendo suficientea vontade de adotar prenome diverso ou ampliar osobrenome, a jurisprudência tem afirmado que a mudançadeve ser excepcional e motivada (RT, 836 :147). De qualquermodo, deve o interessado ser informado, o maiscompletamente possível, de todas as dificuldades quepoderão advir de sua decisão. Quer dizer, nos primeirosdezenove anos de vida, todos os registros escolares,documentos, laudos médicos, assentamentos de saúde eoutros elementos especificamente destinados a essa pessoaforam emitidos com uma identificação. Serão convenientes (eem alguns casos necessários) novos assentamentos,emissões, averbações e publicações; uma série deformalidades, enfim, cuja implementação pode nãocompensar o proveito na mudança do prenome. Em outrostermos, o exercício da faculdade de mudança do prenome no

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primeiro ano seguinte ao da maioridade deve ser justificávelnesse sentido.

Após o decurso do prazo assinalado, isto é, a partir dos19 anos completos, qualquer alteração do nome (prenome ousobrenome) só pode ser decretada pelo juiz havendo motivoque a justifique e ouvido o Ministério Público. Casobastante comum dessa hipótese é a alteração do nome paraevitar os dissabores e prejuízos associados à homonímia. Sea pessoa tem nome extremamente comum, como José daSilva, por exemplo, será de seu interesse alterá-lo para sedistinguir de outras milhares de pessoas, muitas delas comtítulos protestados, ficha criminal desabonadora etc. Naalteração para eliminar a homonímia, costuma-se trazer para osobrenome elementos do patronímico de avós ou bisavós.

Outra hipótese de alteração de nome por decisão judicialdiante de motivo justificável é a dos transexuais. Apesar dashesitações da jurisprudência (Lotufo, 2002:68/69), aspessoas que alteram cirurgicamente o sexo têm direito aprenome compatível com a aparência sexual que passam aostentar. Esse direito tem sido mais facilmente reconhecidoem juízo quando demonstrado que a pessoa sofre dedistúrbio psíquico ou fisiológico, em razão do qual amedicina recomenda a mudança cirúrgica do sexo. Mastambém deve ser reconhecido o mesmo direito àqueles queoptam pela inversão do sexo para serem mais felizes. Amudança do nome do transexual é, a rigor, um ajuste e

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deveria ser concedida pela mera inversão do gênero doprenome (Roberto para Roberta, por exemplo).

Admite a lei, também, quando útil aos interesses dapessoa, a substituição do prenome pelo apelido notório, oumesmo o acréscimo deste àquele (Lei n. 6.015/73, art. 58).Exemplo muito conhecido é o do Presidente da RepúblicaLuiz Inácio Lula da Silva, que acrescentou o apelido “Lula”ao nome “Luiz Inácio da Silva” assim que começou a seprojetar na política nacional. Ao admitir essa forma demudança, reconhece-se legitimidade ao interesse quedeterminadas pessoas passam a ter, pelas mais variadasrazões, de se fazerem conhecer de direito pelo mesmo nomepor que são conhecidas de fato. A substituição do prenometambém pode ser judicialmente autorizada para protegertestemunha que tenha colaborado na apuração de crime.Presume-se que, mudado o nome, dificulta-se algumavingança que o condenado possa vir a praticar contra ela.

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A regra é a da definitividade donome. São definitivas a escolha doprenome e a composição dosobrenome pelos pais. Contempla,entretanto, a lei algumas exceções,em que admite a substituição doprenome (pelo apelido notório, porexemplo) ou o acréscimo deelementos ao sobrenome (paradesfazer a homonímia, por exemplo).

Autoriza a lei que a pessoa, com o casamento, possamudar o nome, agregando-lhe o sobrenome do cônjuge (CC,art. 1.565, § 1º). Não se exigem maiores formalidades, a nãoser a declaração dessa vontade pelo nubente interessado,no ato de celebração do casamento. O acréscimo independeda anuência do outro cônjuge, ou de seus familiares.

O enteado pode requerer ao juiz a averbação ao seu

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assentamento de nascimento do sobrenome de seu padrastoou madrasta. A lei sujeita esse pedido à existência de motivoponderado e à concordância do padrasto ou madrasta. Nãobasta, assim, a vontade do enteado, devendo provar-sevínculo afetivo entre eles suficientemente forte parajustificar a medida excepcional (Lei n. 6.015/73, art. 57, § 8º,acrescido pela Lei n. 11.924/2009). Note-se que osdicionários, atualmente, ao definirem “padrasto” e“madrasta”, não mais se referem ao falecimentorespectivamente do pai e da mãe como pressuposto; e énesse sentido que a lei deve ser aplicada. Vale dizer, mesmoque vivo ainda o pai (ou a mãe), se alguém quiser incorporarao seu o sobrenome do novo marido da mãe (ou novamulher do pai), havendo vínculo afetivo especial entre eles,o juiz deve autorizar a averbação.

Em qualquer mutação de nome, nos casos até aquiexaminados, o núcleo do sobrenome deve ser preservado. Seo prenome pode ser inteiramente substituído, nas hipóteseslegalmente autorizadas, em relação ao sobrenome faculta-seunicamente o acréscimo de outras expressões (como oapelido notório, elementos do patronímico de ascendentesindiretos ou o sobrenome do cônjuge, do padrasto oumadrasta).

Finalmente, também altera o nome a adoção. O adotadopassa a ter, no nome, o sobrenome do adotante emsubstituição ao que ostentava anteriormente. Além disso, a

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pedido do adotante e com a concordância do adotado, podetambém ser mudado o prenome pelo juiz que conceder aadoção (ECA, art. 47, § 6º).

4.1.2. Proteção do nome

Houve tempo em que a proteção jurídica do nome erafeita sob a inspiração do direito de propriedade. O nome civilera, naquele contexto, protegido à semelhança de um bem dopatrimônio do titular. No campo do direito civil, aaproximação das regras tutelares do nome às do direito depropriedade foi descartada ainda em meados do século XX(Planiol-Ripert, 1952:140/142), com o crescente prestígio dateoria dos direitos da personalidade (França, 1958:150/174).Note-se que, no campo do direito comercial, o nomeempresarial, pelo qual o empresário se faz conhecer em suasrelações econômicas, é considerado bem integrante doestabelecimento. É, em decorrência, protegido por regraspróprias (Coelho, 1998, 1:175/183). A diferença de enfoquese explica: enquanto o nome civil em geral não tem valor demercado, o inverso se pode verificar com o nomeempresarial.

A proteção do nome como direito da personalidadeconfunde-se com a da imagem do seu titular. Sãoindissociáveis os dois atributos, já que quem diz o nome dealguém invoca necessariamente a imagem associada a essapessoa, existente ou por construir. De fato, se já é

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conhecida, a imagem que o interlocutor traz da pessoa podeser comprometida pelo que se está ligando ao nome dela; sedesconhecida, constrói-se a imagem a partir das informaçõestransmitidas junto com o nome. As duas garantias legais quetitularizam as pessoas físicas em relação ao seu nome, emdecorrência, completam-se pela proteção mais amplaconcedida à imagem.

A primeira regra tutelar do nome como direito dapersonalidade coíbe sua menção por terceiros, empublicações ou representações, sempre que dela puderdecorrer a exposição da pessoa nomeada ao desprezopúblico (CC, art. 17). Se, por qualquer meio de comunicaçãoao qual possam ter acesso pessoas indistintas (livros,páginas na internete, jornais, revistas, programas de TV,obras artísticas etc.), o nome de um homem ou mulher éempregado de tal modo que possa despertar sentimentos dedesprezo em face do seu portador, tem ele direito de impediro prosseguimento da exposição e exigir indenização porperdas e danos. Esse direito independe do intuitodifamatório ou não de quem fez o uso ilegítimo do nome.

Note-se que a proteção da lei ao nome não devecircunscrever-se à específica situação do desprezo público.Com ênfase, muitas vezes a forma como é empregado o nomede alguém numa publicação ou representação não chega adespertar um sentimento tão exacerbado no público, mas,ainda assim, é lesivo à dignidade da pessoa que o porta.

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Basta que esta seja ridicularizada ou constrangida dequalquer maneira para a caracterização da ofensa aos seusdireitos da personalidade. É evidente, assim, que o nometambém está protegido mesmo quando o seu emprego podelevar o titular a se envolver em outras situações indesejadas(além da do desprezo público), de efeitos meramentevexatórios. Em outros termos, mesmo que a menção ilegítimado nome de alguém não desperte especificamente odesprezo público, ela pode ser impedida em defesa dodireito à imagem.

A segunda regra de proteção do nome como direito dapersonalidade impede o seu uso em propaganda comercialsem autorização do titular (CC, art. 18). De início, convémassentar que o direito brasileiro, ao contrário de algunsestrangeiros, não distingue entre propaganda epublicidade (Benjamin, 1991:172/173). Desse modo, incluem-se no âmbito de incidência da norma jurídica em foco todosos anúncios destinados, direta ou indiretamente, a promovera venda de produtos ou serviços do anunciante. O veículo éirrelevante, podendo ser qualquer um: cartazes externos,publicações periódicas, TV, rádio, internet etc.

O objetivo da publicidade, todos sabem, é o deaumentar as vendas de produtos ou serviços que oanunciante oferece ao mercado. Mesmo quando apropaganda comercial é institucional (destinada a criar ouconsolidar determinada imagem positiva do anunciante junto

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aos consumidores) ou de promoção de certames (em que sepremiam alguns consumidores), a intenção última é a depromover a venda de produtos ou serviços. Desse modo, amenção ao nome de uma pessoa em qualquer anúnciopublicitário é feita sempre com vistas a ajudar nocrescimento dos negócios do anunciante. Assim, seja apessoa famosa ou não, é direito dela não ter o seu nomeexplorado na promoção de interesses exclusivamenteeconômicos de terceiros. Mesmo a pessoa premiada nocertame promocional não poderá ter o seu nome divulgadopelo anunciante, a não ser que tenha autorizadoexpressamente a divulgação ou que as normas da premiaçãoprevejam cláusula de autorização de uso do nome pela tãosó adesão ao certame.

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O nome de uma pessoa não podeser empregado por terceiros empublicações ou representações quepossam acarretar o seu desprezopúblico. Também não pode serutilizado em propaganda comercial,salvo se autorizado pelo titular.

A proteção legalmente concedidaao nome estende-se ao pseudônimo eao apelido notório.

Note-se que, mesmo tendo a pessoa dado autorizaçãoprévia ao uso do nome em propaganda comercial, não seadmite qualquer prejuízo à imagem dela. Quem autoriza aveiculação de seu nome antes de poder conhecerdetalhadamente as circunstâncias em que esta se dará, anuiuna expectativa de que nenhum agravo à sua imagemdecorrerá da peça publicitária. Se, ao participar de um sorteio

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qualquer, a pessoa concorda antecipadamente com aveiculação de seu nome e imagem, está admitindo apenas ahipótese de se exibir como um consumidor (do produto ouserviço em promoção) afortunado pela sorte e nada mais. Seo contexto da divulgação acaba ligando o nome e imagem dapessoa a outras qualidades, vexatórias ou não, dignas ouindignas, estará ocorrendo o aproveitamento indevido dodireito da personalidade do premiado.

A mesma proteção conferida ao nome, como direito dapersonalidade, é estendida ao pseudônimo adotado paraatividades lícitas (CC, art. 19). O valor prestigiado, na tutelado nome, é o da própria identidade de uma pessoa, namaioria das vezes propiciada pelo nome. Alguns poetas,atores ou cantores, porém, são muito mais conhecidos pelonome artístico (pseudônimo) que adotam do que pelo nomecivil. Se o objetivo da lei é proteger os meios de identificar apessoa, e ela é mais conhecida pelo pseudônimo do que pelonome, não há razão para dar a este importância superioràquele. Interessante ilustrar a passagem com o caso, narradopor Renan Lotufo (2003:76), do compositor conhecido pelopseudônimo Geraldo Vandré. Durante a ditadura militar, oartista sumiu, chegando-se a atribuir ao seudesaparecimento o sentido de perseguição política. De fato,entre os confusos versos de sua música “Para não dizer quenão falei das flores”, frases como “quem sabe faz a hora, nãoespera acontecer” eram vistas como elaboradas mensagens

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antiditatoriais, tanto pela comunidade de repressão comopelos movimentos pró-democracia. Pois bem, durante seudesaparecimento, sua mulher ingressou com ação dedesquite e a citação do compositor foi feita, naturalmente,por edital. O desquite foi decretado, mas posteriormenteanulado por vício na citação. Do edital não havia constado opseudônimo, mas apenas o nome do citado. Como erapessoa muito mais conhecida pelo nome artístico do quepelo civil, a Justiça considerou que o instrumento de citaçãoeditalícia não poderia deixar de omitir o pseudônimo.

A mesma proteção diferida ao nome deve também seestender ao apelido notório, pelas mesmas razões que a leitutela o pseudônimo. Se a pessoa é conhecida mais por umapelido que por seu nome civil, não tem sentidodesconsiderar a alcunha na proteção de sua identificação.

4.2. Direito à privacidadeA cada pessoa física liga-se não somente um nome, que

a identifica, mas também um conjunto de informações. Sãodados que estimulam a composição da imagem da pessoa aque se referem. Não há homem ou mulher a que não seliguem informações pessoais, de maior ou menor interessepara os outros.

No conjunto de informações agregado a cada pessoa,algumas são públicas e qualquer um tem direito de acesso aelas. O nome dos pais e avós, data e local do nascimento,

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estado civil atual e pretérito são exemplos de informaçõesconstantes do registro civil público. Qualquer um pode teramplo e irrestrito acesso a essas informações concernentes aqualquer pessoa. Se me torno sócio de uma sociedadeempresária, assino um contrato social que é levado a registrona Junta Comercial. Tornam-se, em decorrência, públicas nãosó a informação de que tenho participação societária numaempresa, como também todas as demais informaçõeslançadas naquele documento, como meu RG, CPF, domicílio,capital social que subscrevi, direitos e deveres que contraíperante os demais sócios etc.

Há, também, informações pessoais que, embora nãosejam públicas, podem ser acessadas por qualquerinteressado legitimado. Quando ajuízo um processo, salvonas causas resguardadas pelo segredo de justiça (CPC, art.155), uma série de informações a meu respeito tornam-sedisponíveis a outras pessoas, como a parte adversária, seusadvogados e mesmo terceiros que demonstrarem, perante ojuiz, interesse na consulta aos autos. Aliás, é prerrogativaprofissional de todo advogado, mesmo sem ser procuradordas partes em litígio, examinar os autos de qualquerprocesso não sujeito a sigilo e obter cópia de suas peças(Estatuto da Advocacia — Lei n. 8.906/94, art. 7º, XIII).Desse modo, os fatos narrados em petições ou afirmadospor testemunhas, os resultados de perícias técnicas e todosos demais elementos que o processo abriga são acessíveis a

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diversas pessoas, conhecidas ou estranhas às partesenvolvidas na demanda.

Muitas outras informações ligadas à pessoa não sãopúblicas. Têm direito de acesso a elas apenas algumaspessoas, em razão de contrato ou de faculdade legalexpressa. Nesse conjunto incluem-se, por exemplo, o salárioe demais rendimentos da pessoa. O quanto a pessoa ganhacostuma ser informação reservada, muitas vezes sonegadaaté mesmo do cônjuge e filhos. O valor do salário, porém,também é conhecido do empregador e dos funcionários queelaboram a folha de pagamento. É conhecido também dogerente da agência bancária responsável pela conta em quese faz o depósito. Deve ser informado, por outro lado, àReceita Federal, no cumprimento das obrigaçõesinstrumentais da legislação do imposto de renda. Outroexemplo de informações pessoais não públicas é o referenteao patrimônio. Exceção feita, novamente, à Receita Federal,essas informações não precisam ser transmitidas a ninguém.Em algumas situações pré-contratuais, será conveniente àpessoa abrir, total ou parcialmente, a informação a terceiro,como na negociação do aluguel de imóvel em que o fiadordeve demonstrar ter meios para responder pela fiança.

Também são informações não públicas os laudosmédicos e prontuários escolares. Reúnem-se nessesarquivos dados específicos sobre o paciente ou o aluno, osquais não podem ser divulgados a terceiros. Evidentemente,

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mesmo nesses casos, as informações não são exclusivas dapessoa. Os médicos, enfermeiros e demais profissionais dosconsultórios, clínicas ou hospitais, assim como osprofessores e funcionários das escolas, que prestaramserviços a determinada pessoa, têm naturalmente acesso àsinformações referentes à saúde e rendimento escolar dela.

Especial menção deve ser feita também às informaçõesrelacionadas aos hábitos de consumo da pessoa. A elas têmacesso não somente os empresários fornecedores deprodutos e serviços e seus empregados, mas, em caso depagamento por meio de cartão de crédito, igualmente arespectiva administradora. Note-se como mesmo não sendopúblicas, mas privadas, as informações pessoais raramentesão exclusivas da pessoa interessada.

A cada pessoa corresponde umconjunto de informações. Algumasdelas são públicas e a pessoainteressada não pode impedir oacesso de terceiros ou mesmo suadivulgação. Nesse caso se encontram

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os nomes dos pais e avós, data elocal de nascimento e outras.

As demais são informaçõesprivadas, que se encontram emlaudos médicos, prontuáriosescolares, faturas de cartão decrédito, contas de telefone etc. Cadapessoa tem o direito de manterreservadas as informações nãopúblicas que quiser. Este é o direitoà privacidade.

A lei protege, como direito da personalidade, o interesseque as pessoas têm de não ver divulgadas as informaçõesprivadas (sobre elas) que desejam manter em segredo. É odireito à privacidade.

Há quem distinga entre privacidade e intimidade,tomando esta como um dos desdobramentos daquela (cf.

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Farias, 2000:145; Ferraz Jr., 1993:442/443). Não vejo, porém,utilidade na distinção, em face do regime geral da proteçãoda vida privada. Privacidade e intimidade devem ser tomadascomo expressões sinônimas. Convém, ademais, esclarecerque a inviolabilidade da vida privada não se confunde com ado domicílio. Se estou querendo ficar só em casa, lendo oudescansando, e alguém me perturba o sossego, não é minhavida privada que está sendo violada, mas meu domicílio.

4.2.1. Inviolabilidade da vida privada e seus limites

Vida privada é o conjunto de informações não públicassobre determinada pessoa, as quais esta deseja não verdivulgadas a ninguém. Quem define se determinadainformação pessoal integra ou não sua vida privada éexclusivamente o titular do direito. Cada pessoa tem, porcerto, suas idiossincrasias e preconceitos, é mais ou menostímida, preocupa-se em demasia com o julgamento alheio ouo desdenha. Não há nenhum critério objetivo que possanortear quais seriam os dados integrantes da vida privada detodo e qualquer homem ou mulher, e por isso a solução ésempre subjetiva. A própria pessoa a respeito da qual versaa informação não pública decide se quer vê-la mantida emsigilo ou se não a incomoda a divulgação. Para uns,propagar que se realizou implante de cabelos é vexatório,enquanto para outros, indiferente. Aqueles tenderão aconsiderar de sua vida privada a confirmação do fato, ao

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passo que estes últimos não se importarão em ver difundidaa informação. Tempo houve em que se preferia ocultar umadoença grave, como câncer ou aids. Hoje em dia, essaatitude é menos comum. De qualquer modo, o enfermo quequiser manter em sigilo a informação privada sobre suasaúde tem esse direito.

Inviolabilidade da vida privada, assim, é o direito dapersonalidade que assegura à pessoa a faculdade deselecionar quais dados (não públicos) sobre ela podem ounão ser divulgados, e por que meios. Por ser um direitoabsoluto, todos indistintamente têm o dever de se abster dequalquer ato, público ou privado, que importe na divulgaçãonão desejada da informação. Mesmo a pequena fofoca, pormais inocente que seja na superfície, pode ser coibida porordem judicial, se a pleitear a pessoa cuja privacidade foiviolada. A coibição se traduzirá tanto na suspensão dadivulgação como na condenação do fofoqueiro em perdas edanos.

O direito à privacidade não é ilimitado. Ao contrário, nãoprevalece em prejuízo de interesses de maior envergadurajurídica, como os difusos, coletivos ou públicos. Em primeirolugar, o direito à privacidade nunca é oponível peranteordem judicial. O juiz pode, de ofício ou em deferimento apedido de parte, requisitar qualquer informação diretamenteà pessoa envolvida, ou a terceiro que a possua. Se, paradeterminado processo, cível ou criminal, for relevante dado

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concernente à saúde de uma pessoa, o juiz pode requisitá-lo,por exemplo, da instituição hospitalar de cujos arquivos eleconsta ou deveria constar. Na execução contra devedor queoculta seus bens, pode o juiz oficiar à Receita Federal paraque lhe encaminhe cópia da última declaração patrimonialapresentada pelo devedor, ou aos bancos, para queinformem os saldos das contas de depósito (essascomunicações com as instituições financeiras e o bloqueiode recursos depositados têm sido feitos por meio eletrônico,sendo por isso chamadas de “penhoras on line”).

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O direito à privacidade é limitado.Não pode ser arguido, por exemplo,como fundamento paradesobediência a ordem judicial.Também não pode servir de escudo asonegadores de tributos. Cede,enfim, diante de imperativos desegurança da sociedade ourepressão penal.

A inviolabilidade da vida privada não existe tambémquando o acesso às informações pessoais mantidasreservadas, ou mesmo sua divulgação, atende a imperativosde segurança pública ou repressão penal. Aliás, a tendênciaé a de crescente redução dos círculos de privacidade daspessoas, em função da preservação da segurança dasociedade e da efetivação da punibilidade. Nos EstadosUnidos, após o atentado de 11 de setembro de 2001, foi

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organizada uma grande agência destinada a centralizar amaior gama de informações possível sobre o maior númerode pessoas, em especial as estrangeiras. Não é tecnicamenteimpossível concentrar, por exemplo, num gigantesco bancode dados central todos os movimentos financeiros, compraspor meio de cartões de crédito ou de débito, deslocamentospor avião, matrícula em escola ou programas de treinamento,envio e recebimento de mensagens eletrônicas via internetee visitas às páginas mais frequentadas, telefonemas dados erecebidos etc. Espera-se que essa imensa gama deinformações, quando devidamente articuladas einvestigadas, possa fornecer pistas para a identificação edesarticulação de ações terroristas ou criminosas.

Também não pode ser considerada violação da vidaprivada a transmissão para a Receita Federal de informaçõessobre movimentação bancária e compras por cartões decrédito, acima de determinado valor, como medida decombate à sonegação de tributos. Ao direito constitucionalà privacidade da pessoa sobrepõe-se o direito tambémconstitucional do Estado de cobrar os tributos que instituir,já que o primeiro atende a interesse de natureza privada eeste, de natureza pública. É cínica e se destina unicamente apreservar os sonegadores de suas responsabilidades fiscais(em detrimento de toda a sociedade) a tese da supremacia dodireito à privacidade a impedir o envio de informações dosbancos e administradoras de cartões de crédito para a

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Receita Federal (cf. Ferraz Jr., 1993).Particularmente delicada é a questão dos limites da

inviolabilidade da vida privada e da liberdade de imprensa,correspondentes ambos a direitos de robustezconstitucional. É delicada a matéria porque certas pessoas,por variadas razões, buscam alcançar notoriedade, valendo-se seja de atos que chamam a atenção de jornalistas eprodutores de programas de rádio ou TV, seja de acordosmais ou menos explícitos para a transformação de sua vidaem notícia. Qualquer que seja o expediente utilizado, apessoa que busca, por ato de vontade, tornar-se pública, seo consegue, acaba expondo-se ao risco de ter dificuldadesem circunscrever o âmbito de sua vida privada. Normalmentea busca está associada a atividades profissionais, como nocaso de políticos, artistas ou modelos, mas não se podedesconsiderar a movida por meros impulsos da vaidade. Poisbem, uma vez alcançada a notoriedade, qualquer fato ligadoà vida dessas pessoas pode ter interesse jornalístico: aondefoi durante as férias, se deixou de ser convidada para umevento social, o início ou o fim de namoros etc. Para apessoa afamada, trata-se de invasão de privacidade; mas,para o profissional da imprensa, se a pessoa se tornoupública por sua própria vontade, assumiu o risco de se exporcompletamente.

A solução desse conflito, na verdade, não é simples. Setodos os homens e mulheres titularizam o direito de

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inviolabilidade da vida privada, os que buscaram, porqualquer razão, a notoriedade, tê-lo-iam perdido em razãodisso? Penso que, tal como se verifica com as anônimas, apessoa a quem as informações se referem é a única titular dodireito de decidir se lhe convém ou não a divulgação,qualquer que seja a fama de que goza. Em decorrência, osveículos de imprensa e mesmo os repórteres autônomospodem ser coibidos pela violação ao direito dapersonalidade, suspendendo-se registros jornalísticos e suadivulgação, bem como penalizando-os com o dever deindenizar os danos decorrentes. A matéria, contudo, écontroversa.

4.2.2. Privacidade na internete

Uma das preocupações despertadas pela difusão dohábito de se conectar à rede mundial de computadores(internete) diz respeito aos riscos a que se expõe a vidaprivada do usuário. Por meio de certas tecnologias (arquivoscookies ou de logs, por exemplo), armazenam-se informaçõespessoais sobre o internetenauta. Basicamente, o que seprocura identificar, a partir dessas informações, são os seushábitos de consumo. Quantas vezes acessou determinadapágina, quanto tempo demorou num ou noutro produto, semanifestou interesse somente pelos mais caros ou se seconcentrou nos mais baratos, que itens têm sido adquiridoscom maior frequência — informações dessa natureza ajudam

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a compor o perfil de cada usuário em particular. O objetivo é,normalmente, claro e impessoal: localizar homens oumulheres que, pelos hábitos revelados, estariam em tesemais predispostos a adquirir os produtos ou serviços quedeterminado empresário oferece ao mercado.

O aumento da eficiência das publicidades direcionadas apúblico mais propenso à aquisição de determinado produtoou serviço não foi, na verdade, constatado após a difusãodo comércio eletrônico via internete. As administradoras decartões de crédito, pela análise das seguidas faturas queemitem, sempre tiveram meios de identificar os hábitos deconsumo de afiliados ao sistema de pagamento queadministram. A internete apenas criou as condições paraalimentar a formação do perfil do consumidor cominformações em quantidade e qualidade significativamentemaiores. Se certa pessoa aprecia vinhos, é muito provávelque as faturas de seu cartão de crédito apresentem despesascom a compra desse produto em frequência superior à média.Com essa singela informação, a administradora do cartão decrédito pode constituir uma mala direta apenas com os seusafiliados que apresentam essa predileção. Certamente, osimportadores de vinho terão interesse em adquirir essa mala.Já os dados armazenados em cookies ou em arquivos de logpodem revelar que determinado internetenauta tem apreçoparticular pelos vinhos franceses. Em horas de lazer, muitasvezes visitou páginas de vinícolas das regiões produtoras

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da França, adquiriu na livraria eletrônica livros sobre o tema,lançou em buscadores as denominações controladas parapesquisar novas páginas etc. Essas informações constroemum perfil muito mais detalhado dos hábitos de consumo dapessoa e podem ser vendidas a um importador que, pormensagem eletrônica, estará em condições de fazer chegaràquele consumidor em particular, por exemplo, a lista detodas as garrafas de vinho francês que possui em estoque,com preço e condições de pagamento.

Um dos conjuntos de informaçõesligados a cada pessoa reúne asindicações de seus hábitos deconsumo. São úteis tais informaçõesao direcionamento da publicidade e,por isso, têm valor de mercado. Osfornecedores dos produtos ouserviços que determinadoconsumidor está habituado aadquirir têm interesse em dirigir sua

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adquirir têm interesse em dirigir suamensagem publicitáriapersonalizada diretamente a essapessoa. A consolidação deinformações desta natureza, bemcomo sua comercialização, pode serofensiva à privacidade doconsumidor, se este não desejarreceber publicidades direcionadas.

A utilização das informações sobre os hábitos deconsumo de determinada pessoa com o objetivo de oferecer-lhe os produtos ou serviços pelos quais ela demonstra terpredileção, em princípio, atende tanto aos interesses dosfornecedores como dos consumidores. À medida que passaa receber mensagens publicitárias cada vez maisdirecionadas de acordo com seus hábitos de consumo, oconsumidor também é beneficiado. Desse modo, a reuniãode informações que se consolidam numa lista de hábitos deconsumo de certa pessoa, bem como o seu emprego na

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publicidade direcionada, não representa, necessariamente,uma violação da vida privada.

Mas não se pode esquecer que a própria pessoa cujoshábitos de consumo estão sendo delineados ecomercializados é a única com a prerrogativa de definir quaisinformações pessoais devem ser mantidas reservadas equais podem ser divulgadas. Se uma pessoa quer se manterexcluída da mira de qualquer publicidade direcionada (oumesmo da de um produto ou serviço em particular), é direitodela preservar-se tanto da consolidação das informaçõessobre seus hábitos de consumo quanto da comercialização.Em outros termos, as páginas da internete devem sempreostentar ícone que permita ao internetenauta manifestar suadecisão. As páginas das empresas eletrônicas maisconceituadas, aliás, já trazem explícita sua política deprivacidade, em que informam os procedimentos adotadospara respeito a esse direito da personalidade dointernetenauta.

4.3. Direito sobre o corpoAssim como a cada pessoa associam-se

necessariamente um nome e um conjunto de informaçõespúblicas ou privadas, também se associa um corpo. Não hápessoa física sem corpo, sem corpo humano. A noção dedireito sobre o corpo, aliás, é particularmente ilustrativa dagrande proximidade entre sujeito e objeto, no campo dos

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direitos da personalidade.Curiosamente, para garantir o direito sobre o corpo, a

ordem jurídica restringe consideravelmente os efeitos davontade da pessoa sobre ele. As normas jurídicas atinentesà matéria não asseguram ampla liberdade para cada homemou mulher decidir sobre o que fazer com o seu próprio corpo;ao contrário, restringem-na enormemente. As disposiçõesnormativas aplicáveis à matéria estabelecem proibiçõesgenéricas e abrem umas poucas exceções permitindo certosatos de disposição sobre o corpo. A começar pela proibição,no plano constitucional, de qualquer tipo decomercialização de órgãos, tecidos e substâncias humanas.Para assegurar que as pessoas vão usufruir de seus corpos,proíbe-se a venda de órgãos e partes destes. Se dificuldadesfinanceiras ou econômicas de uma pessoa ou de seusdependentes pudessem ser atenuadas ou solucionadas coma receita gerada pela venda de um rim ou córnea, ela estariasendo constrangida a dispor exatamente daquilo que odireito quer-lhe assegurar. Toda e qualquer disposição deórgãos, tecidos ou partes do corpo humano, portanto, sópode ser feita de modo gratuito.

Além de não ser admissível nenhuma comercialização nadisposição do próprio corpo, a lei também a proíbe quandodela resulta diminuição permanente da integridade física ouse contrária aos bons costumes, salvo se por exigênciamédica (CC, art. 13). Desse modo, a ordem positiva nega

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eficácia à vontade do sujeito que pretenda, por exemplo,automutilar-se numa performance artística. Diante doanúncio de tal intento, o juiz pode, a pedido do MinistérioPúblico ou de parente, sustar o evento. A vontade dapessoa não é juridicamente eficaz para decidir sobre adisposição do corpo nessas situações (comprometimentodefinitivo da integridade física ou atentado aos bonscostumes).

Para assegurar o direito sobre ocorpo, nega-se eficácia jurídica acertos atos de disposição voluntáriade suas partes. Só se admite, assim,a disposição gratuita de órgãos,tecidos ou partes do corpo para finscientíficos ou altruísticos.

Também se limitam legalmente os atos de disposição docorpo ou de suas partes segundo a finalidade que os motiva.

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Legalmente, eles só podem ter finalidade científica oualtruísta (CC, art. 14). Desse modo, a pessoa só estápermitida a dispor de parte de seu corpo quando destiná-laao desenvolvimento de pesquisa acadêmica, no campo dasciências naturais ou médicas, ou para transplante etratamento de outra pessoa.

4.3.1. Transplantes

Matéria ligada ao tema do direito sobre o corpo é a dostransplantes de órgãos, tecidos ou partes permitida pela Lein. 9.434/97. Como é constitucionalmente vedada acomercialização de partes do corpo, costuma-se referir àdisposição de órgãos, tecidos ou partes do corpo para finsde transplante e tratamento como “doação”.

Distinguem-se duas hipóteses de disposição de órgãos,tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante etratamento: a doação para retirada post mortem e a doaçãopara retirada em vida.

No primeiro caso, a pessoa doadora sofreu morteencefálica e, por isso, muitos de seus órgãos (rins, fígado,coração, córnea etc.) conservam temporariamente afuncionalidade e podem ser aproveitados no tratamento deoutras pessoas (receptoras). Em 1997, aprovou-se regra legalde extrema importância para a redução da fila dos pacientes àespera de órgãos para transplantes, segundo a qual adoação estava presumivelmente autorizada. Desse modo, os

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órgãos apenas não poderiam ser retirados do corpo dapessoa com morte encefálica, para aproveitamento notratamento de pacientes, se ela, em vida, tivesse expressadovontade em contrário. Em outros termos, todos foramlegalmente considerados como presumivelmente doadores.A sociedade, porém, e mesmo os médicos profissionalmentededicados às remoções e transplantes não se mostraramculturalmente afinados com a solução da lei. A resistência àaplicação da norma foi tamanha que, quatro anos após, foisubstituída. Vigora, hoje, assim a regra de que depende adoação de autorização de pessoa da família (Lei n. 9.434/97,art. 4º).

Qualquer pessoa, em vida, pode manifestar a expressavontade de não ser doadora, hipótese em que a retirada dosórgãos, tecidos ou partes não se realizará nem mesmo com aautorização do familiar. A lei reconhece plena eficácia a esseato, apesar do egoísmo ímpar. De qualquer modo, se eracasado o morto que não havia, em vida, expressamente serecusado a doar órgãos, tecidos ou partes, a autorizaçãopara a retirada compete ao cônjuge. Se menor, a ambos ospais, ou a qualquer um deles, se falecido o outro. Falecidosos dois pais do menor, ou decaídos do poder familiar, aautorização compete ao tutor. De qualquer modo, nãoestando essas pessoas vivas, poderá dá-la o parente maiorde idade, obedecida a linha sucessória, reta ou colateral, atéo segundo grau inclusive.

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Destinados a transplantes, osórgãos, tecidos ou partes do corpopodem ser doados para retirada postmortem ou "em vida".

No primeiro caso, a autorizaçãocompete a familiar da pessoa quesofreu morte encefálica e o órgão,tecido ou parte do corpo é destinadoao tratamento da pessoa que seencontrar em primeiro lugar na filaúnica de espera.

A doação para a retirada em vida só se admite emhipóteses específicas, sujeitas a quatro requisitos: a)capacidade do doador; b) autorização judicial; c) justificativa

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médica; d) vínculo familiar específico entre doador ereceptor. Examine-se cada requisito.

Só a pessoa capaz pode doar órgãos, tecidos ou partesdo próprio corpo. Se o organismo vivo de que se vai retirar oórgão, tecido ou parte é de menor absolutamente incapaz,por exemplo, a doação é juridicamente impossível. O menorrelativamente incapaz, para ser doador, deve ser antesemancipado pelos pais. Mas a decisão sobre a doação nãocompete aos pais porque, uma vez alcançada a capacidade,passa a ter o menor inteira liberdade para doar ou não. Ospais não podem condicionar a emancipação à disposição departe do corpo pelo filho. Contempla a lei apenas umaexceção em que o incapaz pode ser doador — é a hipótesede transplante de medula em caso de comprovadacompatibilidade imunológica (Lei n. 9.434/97, art. 9º, § 6º).Imagine-se que uma criança seja acometida de doença letal,cujo tratamento dependa de transplante de medula. Nafamília, a única pessoa imunologicamente compatível paradoar o tecido é incapaz (um irmão menor de idade ou uma tiaamental interditada). Nesse caso, mediante autorização dosresponsáveis (isto é, os pais, tutor ou curador) e autorizaçãojudicial, e desde que não haja risco de saúde para o doador,o transplante pode ser realizado. No Brasil, portanto, pais deuma criança nessas condições não são desestimulados a ternovo filho, na desesperada tentativa de gerar um serimunologicamente compatível, para que, atendidos os

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demais requisitos específicos, seja feito o transplante.Além da capacidade do doador, exige a lei autorização

judicial. O potencial doador deve, por meio de advogado,requerer ao juiz que o autorize a praticar o ato. O requisito daautorização judicial só é legalmente dispensado na hipótesede transplante de medula óssea, quando capaz o doador.Nos demais casos, porém, a autorização judicial não podeser negada, a não ser que reste comprovado odesatendimento de algum requisito legal. Em outros termos,se demonstrada a capacidade do doador, a justificativamédica e o vínculo familiar específico — e inexistindoqualquer particularidade que a lei trate como exceção, como,por exemplo, a gravidez da mulher doadora —, o juiz nãopode deixar de autorizar a doação de órgãos, tecidos oupartes do corpo para retirada em vida.

O requisito da justificativa médica diz respeito ao objetoda doação. Em primeiro lugar, a doação só pode ser feita deórgãos duplos ou de partes de órgãos, tecidos ou partes docorpo cuja retirada não cause a morte ou qualquer prejuízo àsaúde do doador. Impede a lei a doação se o organismo dodoador não puder continuar vivendo sem risco para a suaintegridade ou se a retirada importar grave comprometimentodas suas aptidões vitais ou da sua saúde mental. Exige-se,ademais, que a mutilação ou eventual deformação derivadado ato seja aceitável e atenda este a necessidade terapêuticaindispensável ao receptor. O preenchimento dos requisitos

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relacionados ao objeto comprova-se por meio de declaraçãode um médico. Se a retirada da parte do órgão não terá osefeitos lesivos ao doador e atenderá às necessidades doreceptor é matéria técnica que apenas os especialistas emciência médica podem atestar.

Finalmente, a doação para retirada em vida estácondicionada à existência, entre doador e receptor, de umvínculo familiar específico. Trata-se de requisito que visa aimpedir a comercialização de partes do corpo. Caso nãoexistisse essa restrição legal, qualquer um poderia venderórgãos e alegar que estava fazendo doação. Seria impossívelo controle da veracidade da alegação. Presume-se que ovínculo familiar entre doador e receptor assegura a naturezaaltruística do ato e afasta a eventualidade dacomercialização. Desse modo, permite a lei a doação pararetirada em vida apenas se o receptor for cônjuge ou parenteconsanguíneo até o 4º grau, inclusive, do doador (Lei n.9.434/97, art. 9º). Devem-se considerar, na aplicação danorma, os objetivos que nortearam sua edição. Quer dizer, seelementos de fato forem suficientes à demonstração de quenão está havendo comercialização de partes do corpo, o juizpode autorizar a retirada para fins de transplantes mesmoquando o vínculo entre doador e receptor, familiar ou departicular amizade, for diverso do referido no preceito legal.Se provado que doador e receptor são amigos de longa datae que a condição financeira e econômica do primeiro não

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sugere que ele estaria disponibilizando seu corpo a troco dedinheiro, pode o juiz autorizar o transplante dando à normalegal em referência interpretação teleológica e extensiva.

A doação para retirada em vidaestá, em princípio, sujeita a quatrocondições: a) capacidade do doador;b) vínculo familiar específico entredoador e receptor; c) justificativamédica; e d) autorização judicial.

Em situações excepcionais, admite-se a doação para retirada em vidasem o atendimento estrito dos doisprimeiros pressupostos.

Em relação ao receptor, assegura-lhe a lei o direito denão se submeter ao transplante, na medida em que o

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procedimento está condicionado ao seu consentimentoexpresso, após aconselhamento médico sobre suaexcepcionalidade e riscos. Sendo ele incapaz, ou não tendocondições de saúde para expressar a vontade, os pais ouresponsáveis legais poderão consentir no transplante.Quando a doação é feita para retirada post mortem, oreceptor não é conhecido do doador. O ato altruísticobeneficiará o paciente que se encontra em primeiro lugar nafila única de espera. Poderá ser, até mesmo, um desafeto dapessoa morta. O receptor só é conhecido necessariamentedo doador quando feita a doação para retirada em vida.

4.3.2. Esterilização

A esterilização voluntária é uma forma de exercer odireito sobre o corpo. A ordem jurídica reconhece comolegítimo o interesse de a pessoa tratar separadamente, emseu corpo, duas dimensões da função sexual: a reproduçãoda espécie e o prazer; especificamente, o interesse de tratarseparadamente essas dimensões com o objetivo deneutralizar a primeira e otimizar a outra. Quem deseja usufruiro prazer sexual sem correr o risco de procriar pode submeter-se a procedimentos cirúrgicos de esterilização. São admitidasa vasectomia, para os homens, e a laqueadura tubária, paraas mulheres, bem assim qualquer outro método que venha aser cientificamente desenvolvido. Veda-se, de modoexpresso, a extirpação do útero (histerectomia) ou dos

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ovários (ooforectomia).A exemplo das demais normas atinentes ao direito sobre

o corpo, também se restringem legalmente as hipóteses emque a esterilização voluntária está permitida. Em primeirolugar, para se esterilizar, a pessoa deve ser capaz ou, seincapaz, ter a incapacidade restrita aos atos de conteúdopatrimonial (por exemplo, o pródigo ou, dependendo dostermos da interdição, o viciado ou o ébrio habitual). Aesterilização cirúrgica em pessoas absolutamente incapazesdepende de autorização judicial, prevendo-se umaregulamentação legal específica desses casos.

Além de capaz, a pessoa que busca a infertilidade deveter no mínimo 25 anos ou pelo menos dois filhos vivos.Considera-se que, atendida uma ou outra dessas condições,ela já pode sopesar convenientemente seu interesse naneutralização da função sexual de procriação. Éparticularmente importante o amadurecimento da decisão,tendo em vista não só os seus desdobramentospsicológicos e sociais, mas também as dificuldades dereversão (e, em alguns casos, até mesmo a irreversibilidade)da esterilização feita pelos procedimentos atualmenteconhecidos. Não se considera, assim, válida a vontademanifestada em ocasiões nas quais o discernimento dapessoa estava alterado por influência de álcool, drogas ouemoções.

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A esterilização voluntária só podeser feita em pessoas capazes quetenham 25 anos de idade ou pelomenos dois filhos vivos. Entre amanifestação da vontade, a ser feitapor escrito, e o ato cirúrgico devemtranscorrer sessenta dias, tornando-se, nesse prazo, acessível aointeressado o aconselhamentomultidisciplinar destinado adesestimular a esterilização precoce.

A vontade de se tornar infértil deve ser manifestada porescrito, após a pessoa interessada ser devidamenteinformada a respeito dos riscos da cirurgia, possíveis efeitoscolaterais, dificuldades de sua reversão e opções de

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métodos contraceptivos reversíveis. Ademais, se a pessoaque pretende esterilizar-se for casada, é obrigatória também aautorização do cônjuge.

Finalmente, entre a manifestação da vontade e arealização do ato cirúrgico, deve transcorrer o prazo desessenta dias, no mínimo, durante o qual a pessoainteressada poderá ter acesso a serviço de regulação dafecundidade, incluindo o aconselhamento destinado adesencorajar a esterilização precoce (Lei n. 9.263/96, art. 10).

4.3.3. Mudança de sexo

Questão diretamente ligada ao âmbito de incidência daproibição de disposição voluntária do corpo com diminuiçãopermanente da integridade física ou atentado aos bonscostumes (CC, art. 13) é a dos transexuais, ou seja, daspessoas que têm a aparência sexual externa mudada por meiode cirurgia.

Para compreendê-la, devem-se distinguir duassituações. De um lado, há pessoas que sofrem profundodistúrbio psicológico em razão do sexo que externamenteostentam. Possuem, por exemplo, órgãos sexuais externosmasculinos, mas não se conformam em se comportar comohomens; ou o inverso, possuem os órgãos sexuais externosfemininos, mas comportarem-se como mulheres épsicologicamente agressivo. São consideradas enfermasporque não conseguem, em razão da perturbação

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psicológica, ter uma vida afetiva estável ou mesmoprofissionalmente produtiva. A retórica forense os qualificade “homens em corpo de mulheres” ou vice-versa. Nessescasos, não há dúvidas quanto à legalidade da operação demudança de sexo, já que decorre de exigência médica notratamento da enfermidade, hipótese expressamenteressalvada pelo art. 13 do CC.

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Tem-se tolerado a mudançacirúrgica de sexo nas hipóteses emque é de tal monta a dissonânciaentre os órgãos sexuais externos dapessoa e o gênero a que ela gostariade pertencer que se configuraenfermidade. Se a pessoa tem vidaafetiva, sexual (homossexual) eprofissional regulares, e apenasquer a mudança para ser mais feliz,a jurisprudência não se revela tãotolerante. Não há, contudo, razõespara a discriminação.

De outro lado, há pessoas simplesmente com vontadede mudar de sexo — isto é, de verem cirurgicamente

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substituídos os órgãos sexuais externos que possuem pelosdo sexo oposto. Não são considerados enfermos, já que adistância entre o sexo externamente apresentado e odesejado não as impede de ter vida afetiva e sexual(homossexual) regulares, profissão produtiva, convíviosocial e tranquilidade psicológica. A jurisprudência não temsido muito simpática a essas pessoas, negando-lhes, porexemplo, o direito de ajuste no nome. Não há justificativaspara a discriminação, porém. A operação de mudança desexo por mera vontade da pessoa não está proibida na lei, jáque não compromete a integridade física do paciente, nemofende os bons costumes. Considerar-se que a substituiçãodos órgãos sexuais externos representaria diminuiçãopermanente da integridade física pressupõe reputar pelomenos um dos sexos (ou o masculino ou o feminino) comofisicamente não íntegro — o que não tem sentido. A leiproíbe, no campo dos atos de disposição voluntária docorpo, a castração, por exemplo, mas não veda a troca dosórgãos sexuais.

Como destaca Ricardo Luis Lorenzetti, a questão damudança de sexo é um daqueles “casos difíceis” do direitoprivado da atualidade que deve ser resolvido pela aplicaçãodo princípio in dubio pro libertatis (na dúvida, adota-se asolução que prestigia a liberdade das pessoas). Quer dizer,deve-se deixar a cada um a livre disposição de si mesmo(1995:412).

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4.4. Direito à imagemO direito à imagem, inicialmente, tinha por objeto o

retrato da pessoa em suporte estático (fotografia, desenho,pintura etc.) ou dinâmico (filme, transmissão televisiva etc.).Por meio desse direito, tem sido assegurada ao retratado aprerrogativa de impedir a reprodução ou veiculação daimagem, dentro de certos limites. O objeto desse direito dapersonalidade, porém, tem sido alargado para abarcar,também, o conjunto de ideias e conceitos de vida associadoàs pessoas. Notadamente em relação às pessoas famosas, alimitação do direito à imagem aos seus retratos é insuficientepara a proteção dos interesses patrimoniais que, hoje, o temadesperta. De fato, para alcançar esse desiderato, a noção dehonra objetiva nem sempre é suficiente, já que o contexto emque se explora indevidamente a imagem de pessoa públicanormalmente a prestigia. A ofensa à honra da pessoa cujaimagem se pretende usar na promoção de ideias, partidospolíticos, produtos ou serviços seria, com efeito, umcontrassenso.

A tecnologia, então, passou a distinguir entre imagem-retrato e imagem-atributo (Diniz, 2002:126; Araujo,1996:27/32). A imagem-retrato é a representação do corpo dapessoa por pelo menos uma das partes que a identifica (orosto de frente, por exemplo), ao passo que a imagem-atributo é o conjunto de características associadas a elapelos seus conhecidos (ou, sendo famosa, pelo imaginário

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popular). A imagem, nas duas espécies, serve à suaidentificação, auxilia sua individuação. Distingue-se assimdo nome, que a identifica. Estão sempre ligados esses doisatributos da personalidade: quando se diz o nome dealguém, quem o conhece logo traz à consciência a imagemque tem dele; não se associam, por outro lado,características a uma pessoa específica sem a nomear.

Conforme a condição da pessoa, famosa ou anônima, odireito à imagem pode ser patrimonial, isto é, quantificávelem dinheiro, ou não. A imagem de pessoa conhecida é fontede receita proporcional à fama e aos atributos associados aela pelo imaginário popular.

4.4.1. Direito extrapatrimonial à imagem-retrato

A titularidade do direito extrapatrimonial à imagem nãodepende da condição de fama da pessoa. Todos têmprotegido o interesse de não ver sua imagem impressa emperiódicos, estampada em páginas da internete ouaparecendo na televisão contra a vontade. Considera-se arepresentação da pessoa uma expansão dela. Quem a utiliza,está de modo particular envolvendo o retratado nautilização.

A imagem, para ser objeto de proteção como direito dapersonalidade, deve possibilitar a imediata identificação dotitular do direito. Assim, o retrato do rosto, de frente ou deperfil, normalmente encontra-se sob a tutela do direito à

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imagem. Reprodução de outras partes do corpo tambémpode ser objeto de proteção desde que, por meio dela, sepossa identificar a pessoa. Se determinada curva do dorsode uma mulher é a única parte figurada na imagem, nãosendo possível saber a quem pertence, não haverá lesãonenhuma a direito da personalidade em sua reprodução oudivulgação.

Como todo direito da personalidade, encontra limites naprimazia de interesses de maior envergadura (difusos,coletivos ou públicos). Desse modo, não há proteção àimagem quando a exposição do retrato em qualquer suportefor necessária à administração da justiça ou manutenção daordem pública (CC, art. 20). As pessoas procuradas pelapolícia, por exemplo, não podem impedir que sua imagemseja veiculada em programa de televisão. Trate-se defotografia, retrato falado, vídeo caseiro ou qualquer outrorecurso de captação da imagem, independe a sua divulgaçãode anuência da pessoa procurada.

Também não há óbice à exposição de imagem nahipótese de participação em evento de inegável alcancejornalístico. Caracteriza-se este quando a notícia de suaverificação desperta o interesse de considerável quantidadede pessoas indistintas. O jogador de futebol não podeimpedir que os cadernos esportivos dos jornais impressosveiculem a sua imagem no momento em que marcou o gol,praticou o pênalti, comemorou a vitória etc. A pessoa que

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ficou refém do assaltante do banco; presenciou o desfile dodia da independência; tomava banho de mar no feriadoprolongado durante o verão, comemorou a chegada do anonovo em público ou foi uma das primeiras a se utilizar danova estação do metrô participou de eventos jornalísticos. Ointeresse de todos em ter notícias (e imagens) dessesacontecimentos sobrepõe-se ao do indivíduo retratado.

Note-se que há limites na permissão para a divulgaçãode imagens para atendimento ao interesse geral por notícias.De fato, como quem interpreta que evento desperta interessejornalístico são os profissionais da imprensa, e estes muitasvezes se veem, no fim de um dia em que nada de diferenteocorreu, diante de uma folha em branco (ou de espaçosclaros na transmissão televisiva) para preencher, podeocorrer de eventos desinteressantes serem transformadosem notícias unicamente para atender às necessidades domeio de comunicação, e não exatamente à curiosidade dopúblico destinatário. Nesses casos, divulgada a imagem depessoa identificável, mas não referente a evento de interessegeral, ocorre desrespeito ao direito do retratado.

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O direito à imagem-retrato, em seufeitio extrapatrimonial, submete adivulgação do retrato de umapessoa, em suporte estático(fotografia, desenho, pintura) oudinâmico (filme, televisão), ao seuconsentimento. O direito à imagemnão existe: a) no atendimento àsnecessidades da administração dajustiça ou manutenção da ordempública; b) na divulgação de fatos deinteresse jornalístico; c) nos eventossociais tornados públicos peloorganizador.

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Em relação aos eventos sociais (festas, inaugurações,exposições de arte etc.), dependendo da natureza que lhesconferiu o anfitrião, a veiculação de imagens das pessoasque a eles comparecem pode ou não ficar condicionada àanuência dos que, por meio delas, são identificáveis. Assim,se a pessoa está participando de evento social tornadopúblico pelos seus organizadores, não pode opor-se aosregistros de imagem e sua divulgação, desde que nãoprejudiciais a outro direito da personalidade (à honra, porexemplo). Se, porém, participa de evento social não tornadopúblico pelos seus organizadores, a divulgação nãoautorizada de imagens em que pode ser identificada significaviolação a seu direito da personalidade.

O direito extrapatrimonial à imagem, como dito, étitularizado por todos, homens e mulheres, e não apenas osfamosos. Há, contudo, ofensas a esse direito que nãoatingem os anônimos. Nos mais elevados níveis denotoriedade, aliás, fotógrafos (os paparazzi) perseguem apessoa por onde quer que ela vá, espreitando-a à espera deoportunidades para registrarem situações ou encontros quepossam repercutir nos meios de comunicação em massa.Imagens em ambientes privados ou mesmo em eventossociais não tornados públicos por seus anfitriões, porém,não podem ser colhidas ou divulgadas sem a anuência doretratado.

Menciona a lei que a imagem não pode ser publicada,

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exposta ou utilizada se atingir “a honra, a boa fama ou arespeitabilidade” da pessoa retratada (CC, art. 20, in fine).Não se deve interpretá-la, entretanto, restritivamente. Odireito da personalidade à imagem não se confunde com odireito à honra. Assim, mesmo que não prejudique areputação do retratado, se ele pode ser identificado e não seconfigura nenhuma das hipóteses de limitação ao exercíciodo direito à imagem, este merece a tutela do art. 12 do CC(cessação da ameaça ou lesão e indenização dos danosmorais).

4.4.2. Direito extrapatrimonial à imagem-atributo

Todas as pessoas têm uma imagem que corresponde aoconjunto de características a elas associadas pelos seusconhecidos (imagem- -atributo). A pessoa pode ser vistacomo expansiva ou retraída, generosa ou parcimoniosa, fielou infiel, educada ou grosseira. Quer dizer, verdadeiros oufalsos, atributos são normalmente associados a cada um denós pelas pessoas dos nossos círculos de amizade,profissão, vizinhança.

Todas as pessoas têm direito de preservar a imagemjustificadamente cultivada em torno dela. Se um educadorpassa a ser visto como pedófilo, isto comprometeráprofundamente a sua imagem. Para os conhecidos, passará aser desprezível; em geral, mesmo os seus atributosverdadeiramente positivos serão corroídos pela nova

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característica que estão associando a ele. Se a pecha depedófilo tiver fundamento, ou seja, for, por assim dizer,verdadeira, o processo de corrosão da imagem não poderáser juridicamente estancado. Se, contudo, for infundada, oeducador poderá defender a imagem de que desfrutavaanteriormente.

Quando a imagem-atributo sereveste de naturezaextrapatrimonial, confunde-se essedireito da personalidade com orelativo à honra objetiva.

A imagem-atributo dos anônimos confunde-se com umdos aspectos da honra. O conjunto das característicasassociadas a certa pessoa por quem a conhece é areputação dela, sua honra objetiva (item 4.5). A imagem-atributo dos famosos tem contornos especiais, quetranscendem a proteção à honra, em razão de sua naturezade direito patrimonial (item 4.4.3). Desse modo, o direito

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extrapatrimonial à imagem-atributo não comporta exame emseparado. Se o titular do direito é pessoa anônima, aproteção de seu interesse em preservar a imagem-atributo é,na verdade, a tutela da honra objetiva. Se famosa, alémdesse âmbito de proteção, é também tutelado o seu interessepatrimonial. Num caso ou noutro, sobrepõem-se diferentesdireitos da personalidade.

4.4.3. Direito patrimonial à imagem

Contam que uma jornalista, ao entrevistar MarilynMonroe, perguntou-lhe o que costumava usar para dormir; ea atriz respondeu: “uma gota de Chanel 5”. Contam, também,que em razão dessa resposta as vendas do perfumeaumentaram. Não é improvável. Às pessoas famosas associao imaginário popular um conjunto de qualidades, valores econceitos que compõe a imagem-atributo delas. Ascaracterísticas associadas a Marilyn Monroe — beleza,sensualidade, objeto de desejo, glamour — foram, com aprovocativa resposta dada à entrevistadora, transmitidas aoperfume. A admiradora da atriz podia sentir-se um poucomais bela, sensual, desejada e glamourosa, um pouco maisMarilyn Monroe, ao comprar um vidro de Chanel 5.

Naqueles tempos idos de 1960, a imagem dos famososainda não era tão institucionalmente valorizada, no mundodos negócios, como é hoje. Não contam que MarilynMonroe foi remunerada para dizer o que disse, e talvez não

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tenha sido, realmente. Hoje em dia, porém, nenhum famososugeriria, de graça, consumir produto de uma marcaqualquer. Gisele Bündchen, famosíssima modelo brasileira,tem a imagem associada a características como juventude,beleza perfeita, riqueza e sucesso profissional. Viaja omundo todo, namora homens belos, famosos e ricos.Chegou ao ápice da fama e riqueza dedicando-se a umaprofissão que, por não depender de educação formal, é vistacomo acessível a todas as garotas bonitas. Gisele, seuempresário, os publicitários e anunciantes sabem o quantovale essa imagem. Milhões de mulheres, no mundo todo,conhecem-na e a admiram; querem ser Gisele Bündchen. Aofazer, em 2002, a propaganda de lançamento de uma sandália,ela emprestou sua imagem ao produto, que vendeu nomercado nacional, naquele ano, três milhões de pares a maisdo que o estimado. Cada centavo que cobra para associarsua imagem a um produto ou serviço é visto pelo empresárioque o desembolsa como investimento de retorno certo.

Em consequência do valor de mercado que se lheatribui, a imagem da pessoa famosa, além de protegida comodireito extrapatrimonial da personalidade, é também objetode direito patrimonial. Tem uma proteção específica,portanto, como bem do patrimônio de seu titular. Pode,assim, ser objeto de negócio jurídico ou renúncia eficaz e étransmissível por ato entre vivos ou falecimento.

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O direito patrimonial à imagem étitularizado pelas pessoas famosasque forem associadas, peloimaginário popular, acaracterísticas positivas comobeleza, competência profissional,boa forma física e outras.

Em razão da natureza patrimonial dessa manifestação dodireito à imagem, deve a pessoa famosa administrá-la comalguns cuidados. Ao associar sua imagem a determinadoproduto ou serviço, a pessoa famosa expõe-se ao risco deser prejudicada por eventuais acidentes de consumo. Umaatriz de renome nacional, Maitê Proença, participou decampanha publicitária de lançamento de umanticoncepcional chamado “Microvilar”. O produto tambémficou famoso em razão do grave acidente de consumo queprotagonizou. Durante os testes do processo de embalagem,faltou adequado controle de qualidade e cartelas

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acondicionando farinha no lugar da pílula anticoncepcionalforam vendidas no mercado. Diversas consumidorasengravidaram. Claro, a associação da imagem da artista aoproduto pode tê-la prejudicado, e é até mesmo provável quetenha perdido novas oportunidades de trabalho em razão dolamentável acidente. Por essa razão, sempre convém àpessoa famosa, ao contratar sua participação em campanhaspublicitárias, negociar cláusulas que a protejam dos riscosde contaminação da imagem.

Como objeto do direito patrimonial à imagem deve serconsiderado todo e qualquer atributo que identifique apessoa famosa. A voz, assim, quando suficiente paraidentificá-la, tem a mesma proteção do retrato, porquetambém evoca as características associadas a determinadapessoa pelo imaginário popular.

4.5. Direito à honraTodos os homens e mulheres têm, a respeito de si

mesmos, conceitos. Consideram-se pontuais, responsáveis,sociáveis, justos, interessados, caridosos, profissionalmentepromissores etc. E a todos eles os conhecidos atribuemconceitos. São considerados desleixados, imprudentes,introvertidos, injustos, egocêntricos, egoístas, fracassadosetc. Os conceitos positivos que cada um se atribui ou quesão reconhecidos socialmente formam a honra da pessoa.

A honra desdobra-se naquelas duas dimensões. A

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primeira é chamada de honra subjetiva e reúne os conceitosque a pessoa tem de si mesma. É a estima que cada homemou mulher nutre em relação à respectiva pessoa. A segunda,chamada de honra objetiva, em que se agrupam os conceitosque dela fazem os que a conhecem. Trata-se da reputaçãodesfrutada pelo homem ou mulher no meio (social,profissional, científico etc.) em que vive e trabalha. Ambasas esferas da honra são juridicamente tuteladas. Ninguémpode atribuir a certa pessoa uma qualificação que lhe agridaa autoestima ou a reputação.

Em termos de regra geral de convivência, ao direito àhonra corresponde o dever de reserva quanto às opiniõesdesabonadoras. Quer dizer, se desaprecio alguém porqualquer motivo, não devo manifestar o desapreço, pormaiores que sejam as razões para nutrir a impressãodesfavorável. A ordem jurídica trata de impedir o trânsito deopiniões negativas sobre quem quer que seja, abstraindo osseus fundamentos. Só podem ter curso, para proveito detodos, as opiniões positivas que temos cada um em relaçãoaos demais. Mas não são apenas as opiniões alheias oobjeto da proteção do direito à honra. Também a narrativa defatos pode agravar a estima ou reputação das pessoas.

A opinião representa um conceito que se tem de alguém,uma adjetivação. Ela só deve ser expressada quando pudercontribuir para o aumento da estima ou da reputação dapessoa sobre quem se fala. Se não for esse o caso,

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desinteressa à convivência harmônica em sociedade suadifusão. Assim, se acho fulano um chato, não devoexpressar esse conceito para ninguém, porque isso épotencialmente agressivo à estima que fulano deve ter porsua própria pessoa. Já a narração de fatos não é, em si, umaqualificação, mas uma descrição de condutas. Ela podeenvolver uma opinião manifesta ou limitar-se a apontar oacontecido. Se combinei com fulano uma hora certa para nosreunirmos e ele não chegou ao compromisso no tempocombinado, é possível referir-se a esse fato apenasnarrando-o (“fulano não foi pontual comigo”) ou tambémavaliando (“fulano é uma pessoa impontual”). Devo, naverdade, abster-me de narrar o fato, com ou sem adjetivação,porque tanto uma como outra alternativa são potencialmentelesivas à autoestima e reputação de fulano.

A honra subjetiva (a estima quecada pessoa nutre por si mesma) e aobjetiva (a reputação de que gozacada pessoa entre os seusconhecidos) não podem serprejudicadas por opiniões ou

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prejudicadas por opiniões ounarrativas de outras pessoas. Emprincípio, mesmo que as opiniõessejam fundamentadas ou asnarrativas verdadeiras, preserva-se,em nome da boa convivência, ahonra da pessoa de quem se fala. Odireito à honra só é limitado pela"exceção da verdade" se a narrativaimputa à pessoa a prática de crime.Nesse caso, o interesse público naapuração dos fatos e punição docriminoso transcende o interesseprivado de proteção da honra.

A narração de fatos só é do interesse público quandopertinentes a delito que a lei tipifica como crime. Nessa

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hipótese, o agravo à honra da pessoa sobre quem se fala édesconsiderado e se privilegia o interesse público naefetivação da repressão penal. Se sei que fulano estuproubeltrana, convém não comentar o fato entre conhecidoscomuns ou estranhos, porque isso é potencialmente lesivo àreputação dele, mas posso levá-lo ao conhecimento daautoridade policial, para que o Estado o investigue e, se foro caso, puna o estuprador. O interesse público na apuraçãode fatos criminosos e na punição do agente limita o direito àpersonalidade deste. Em outras palavras, quando a estimaou reputação de alguém pode ser prejudicada pela difusãode fato característico da prática de crime, o direito à honra élimitado pela exceção da verdade (exceptio veritatis).

Em síntese, a pessoa que tem sua estima (honrasubjetiva) ou reputação (honra objetiva) atingidas pelaopinião difundida por outra pessoa pode defender-seobtendo ordem judicial de cessação da injúria, bem comoindenização dos danos materiais e morais que tiver sofrido. Éirrelevante se a opinião injuriosa tem ou não fundamento.Além disso, a pessoa que tiver sua honra atingida pelanarração de fatos que não lhe imputam crime tem os mesmosdireitos de fazer cessar a difamação e de ser indenizada pelodifamador. É igualmente irrelevante, aqui, se os fatosdifamantes são verdadeiros ou falsos. Finalmente, a pessoalesada em sua honra em virtude da narração de fatos que lheimputam a prática de crime pode obter contra a calúnia a

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mesma tutela, exceto se forem verdadeiros os fatos narrados.

5. A MORTEA morte é o fato jurídico que importa o término da

pessoa física (CC, art. 6º). Ao morrerem, homens e mulheresdeixam de ser pessoas e sujeitos de direito. Depois de pagastodas as dívidas pendentes, seus bens serão transmitidosaos sucessores, herdeiros ou legatários. E, embora algunsdos interesses extrapatrimoniais nutridos em vida aindacontinuem sob tutela, como o direito ao nome ou à imagem,não lhes poderá ser imputada a titularidade de novosdireitos ou obrigações. Para o direito, note, a morte não é umfato biológico (cessação das funções vitais do ser), mas umadeclaração de que esse fato aconteceu. Tanto que o ausentepode estar morto biologicamente, mas, como ninguém temconhecimento disto (ou melhor, como ninguém declarou esteacontecimento pela forma juridicamente adequada), ele aindaé vivo para o direito.

A morte pode ser natural ou violenta, de acordo com acausa que desencadeia o fim das funções vitais doorganismo. Natural é a morte derivada de enfermidade ouidade do homem ou mulher. Todo ser vivo um dia perece;morrer é de sua natureza. Ao extinguir-se a vida, cumpre-se ociclo biológico do ser que vivia. Violenta, por sua vez, é amorte do homem ou mulher que, em certo sentido,interrompe esse ciclo. Causam-na eventos naturais

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(afogamento em inundações, soterramento em avalanches,ataque por feras etc.) ou a ação de outras pessoas(assassinato, erro médico, acidentes de trânsito etc.).

Pelas circunstâncias muitas vezes complexas em que severifica e pelos significativos efeitos que produz, a mortedeve ser documentada com a observância de cautelas legais.Em geral, para os brasileiros moradores em meio urbano, amorte natural costuma acontecer num hospital. Nesse caso,o médico que trabalha na instituição hospitalar em que seencontrava internada a pessoa, valendo-se de critérios emétodos técnicos desenvolvidos pela medicina, atestará oóbito. Quando morre naturalmente em casa, se não houvermédico contratado pela família que ateste o falecimento, estedeverá ser feito pelo médico legista do serviço público denecropsia, após exame para definição da causa. Em caso demorte violenta, o corpo é levado obrigatoriamente a esseserviço. No meio rural ou nas pequenas cidades em que nãohá médico, a morte normalmente é atestada por duaspessoas qualificadas que a tiverem presenciado ouverificado (Lei n. 6.015/73, art. 77).

Em seguida, uma pessoa da família, exibindo o atestadode óbito, fará a declaração do falecimento perante o oficialdo registro civil do lugar. A partir da declaração e doatestado, o oficial desse registro faz o assentamento doóbito no livro próprio e expede a certidão, que é odocumento comprobatório da morte da pessoa, para todos

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os efeitos. Veja a diferença entre o atestado e a certidão deóbito: aquele é firmado pelo médico (ou duas pessoasqualificadas), enquanto este é expedido pelo cartório deregistro civil.

A morte implica o fim da pessoanatural. A partir desse fato jurídico,nenhum novo direito ou dever podeser-lhe imputado. Após a solução desuas dívidas, os bens sãotransmitidos aos sucessores,herdeiros ou legatários. O registro edocumentação desse fato, assim, sãocercados de formalidades e cautelas.

O sepultamento do cadáver só se pode fazer, em regra,após a expedição da certidão de óbito, ou pelo menos de seu

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protocolo. Se a pessoa havia, em vida, manifestado avontade de ter o corpo cremado, determina a lei que a morteseja atestada por dois médicos ou por um médico legista,exigindo-se também a autorização judicial na hipótese demorte violenta.

Para que a morte, natural ou violenta, seja atestada pormédico, dando início às providências tendentes à suadocumentação, um pressuposto deve estar atendido: aexistência do cadáver. Se o médico não estavaacompanhando a evolução da enfermidade que matou apessoa ou, de qualquer modo, não presenciou a morte, eleprecisa fazer um exame necrópsico para pesquisar a causa.Quando o atestado, por falta de médicos no lugar dofalecimento, é assinado por duas pessoas qualificadas, exigea lei que tenham presenciado ou verificado a morte. Emqualquer uma dessas hipóteses, portanto, o atestado deóbito é feito por quem tem, à vista, um cadáver.

Nem sempre, porém, essa condição de fato se apresenta.Há pessoas que morrem em situações excepcionais, quandoas formalidades e cautelas próprias à documentação doevento simplesmente não se podem adotar. Nesses casos, aordem jurídica presume a morte da pessoa. A mortepresumida é sempre declarada pelo juiz, após se convencer,pelas provas reunidas pelos interessados no processojudicial, que estão presentes os requisitos legalmenteestabelecidos para considerar alguém morto, mesmo sem

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saber do paradeiro do cadáver.No direito brasileiro, presume-se a morte em três

hipóteses: a) abertura da sucessão definitiva do ausente(item 6); b) extrema probabilidade de morte de quem seencontrava em perigo de vida; c) desaparecimento emcampanha ou aprisionamento, se não for encontrada apessoa até dois anos após o término da guerra (CC, arts. 6º e7º).

Em circunstâncias excepcionais, a morte pode serreconhecida diretamente pela lei. Trata-se não propriamentede morte presumida, mas reconhecida pelo ordenamento emvigor. É o caso, por exemplo, das pessoas que participaramou foram acusadas de participar de atividades políticas, noperíodo de 2 de setembro de 1961 a 5 de outubro de 1988, eque por esse motivo foram detidas por agentes públicos,desaparecendo desde então sem que haja delas notícias.Essas pessoas são legalmente reconhecidas como mortasporque foram perseguidas pelo aparelho repressor doEstado, numa época de extrema fragilização da democraciabrasileira (Lei n. 9.140/95). Tendo sido detidas sob acusaçãode participação em atividades políticas e estandodesaparecidas desde então, sem que haja notícias a seurespeito, é muito grande a probabilidade de terem sidomortas pelos agentes do Estado que as detiveram.

No caso de reconhecimento legal da morte, dispensa-sea declaração judicial exigida para a morte presumida. Basta

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que se comprove, perante autoridades administrativas, quedeterminada pessoa se põe no âmbito de incidência danorma que estabeleceu as condições para o reconhecimentoda morte para que se operem todos os efeitos jurídicos dofalecimento dessa pessoa.

5.1. ComorientesOs efeitos da morte, em especial a sucessão nos bens da

pessoa falecida, verificam-se imediatamente. Por essa razão,a hora em que a morte ocorreu deve, sempre que possível,ser atestada pelo médico, para constar do assento e dacertidão de óbito. Diferentes direitos sucessórios decorremd a ordem temporal em que se verifica a morte de duaspessoas ligadas por vínculos de parentesco.

Imagine que Antonio é casado, em segundas núpcias,pelo regime de comunhão universal de bens, com Benedita etem, do primeiro casamento, um filho, Carlos. Considere,ademais, que a mãe de Benedita, Darcy, é viva. Parasimplificar, essas pessoas não têm nenhum outrodescendente ou ascendente vivo. Pois bem, falecendoAntonio antes de Benedita, metade dos bens do casalcaberá a ela em razão do regime de bens do casamento, e aoutra metade será transmitida por sucessão aos herdeirosdele. No caso, como o falecido deixou um filho, é ele quepassará a titularizar os bens transmitidos pela morte deAntonio. Em consequência, do patrimônio originalmente em

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nome do casal, Benedita ficará com 50%, correspondente àsua meação, e Carlos, com os restantes 50%. VindoBenedita a falecer em seguida, todo o seu patrimônio serátransmitido à única herdeira, sua mãe Darcy.

Veja como se alteram os direitos sucessórios, casoBenedita morra antes de Antonio. Se assim for, metade dosbens do casal caberá a Antonio, em razão do regime docasamento, e a outra metade será transmitida por sucessãoaos herdeiros de Benedita. Como a falecida não deixoudescendentes, a mãe e o cônjuge viúvo são herdeirosconcorrentes. Cada um ficará com metade dos benstransmitidos pela morte de Benedita. Desse modo, dopatrimônio originalmente em nome do casal, Antonio ficarácom 75% (50% de sua meação e mais 25% como herança) eDarcy, com 25%. Vindo a morrer, depois, Antonio, todo oseu patrimônio será transmitido ao único herdeiro, o filhoCarlos.

Em suma, morrendo Antonio e Benedita em momentosdistintos, os direitos sucessórios de Carlos e Darcy alteram-se substancialmente dependendo de quem falecer antes.Sendo Antonio o primeiro a falecer, Darcy terá, após a mortede Benedita, metade do patrimônio originalmente em nomedo casal, e Carlos, a metade restante. Mas, sendo Beneditaa primeira a morrer, Carlos terá, após o passamento deAntonio, ¾ do patrimônio originalmente em nome do casal eDarcy, o quarto restante. Ainda que os eventos ocorram

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com poucos minutos de diferença, a ordem em que se deremserá decisiva para a definição dos direitos sucessórios.

E se Antonio e Benedita faleceram ao mesmo tempo?Estavam, admita-se, viajando de avião, e o aparelho caiuprovocando a morte de todos os seus ocupantes. Nessecaso, Antonio deixa a metade que lhe cabe no patrimônio docasal para o seu único herdeiro, o filho Carlos; e Beneditadeixa a sua metade para sua única herdeira, a mãe Darcy.

Código Civil:Art. 8º Se dois ou mais indivíduos

falecerem na mesma ocasião, não sepodendo averiguar se algum doscomorientes precedeu aos outros,presumir-se-ão simultaneamentemortos.

Vê-se, portanto, pelas variações do exemplo indicado,

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que a definição exata da hora da morte é relevantíssima emdeterminadas hipóteses. Por meio dessa definição é que seencadeia a sucessão de cada um dos falecidos, transmitindo-se os bens, inclusive os que acabara de receber porsucessão, aos respectivos sucessores.

Pois bem, como proceder então em caso de comoriência,quando não for possível definir exatamente o momento damorte de cada pessoa? Comorientes são os que falecem namesma ocasião: acidente do carro em que viajavam juntos,afogamento na mesma inundação, soterramento nodesabamento do prédio em que ambos se encontravam etc.Se não se consegue fixar (por perícia ou testemunhas) qualdos comorientes teria morrido antes, deve-se adotar umcritério para a disciplina das questões sucessórias. Asolução do direito brasileiro é simples: não sendo possívelaveriguar se uma das mortes antecedeu a outra, considera-seque as pessoas faleceram simultaneamente (CC, art. 8º).

5.2. Direitos do falecidoCom a morte, a pessoa física se extingue. Acaba a

personalidade e ela deixa de ser, também, sujeito de direito.Qualquer fato posterior ao falecimento de um homem oumulher não pode, por isso, gerar-lhe um novo direito ouobrigação. Em relação aos fatos anteriores, também descabea imputação ao falecido de direitos e obrigações. Naverdade, as pendências obrigacionais que houver deixado

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(débitos ou créditos), bem como a administração dos bensde seu patrimônio, enquanto não ultimada a partilha entre ossucessores (herdeiros ou legatários), cabem a um sujeito dedireito despersonificado, o espólio, que se representa peloinventariante nomeado pelo juiz.

Desse modo, a expressão “direitos do falecido” só podeser uma referência à proteção post mortem de determinadosinteresses extrapatrimoniais que a pessoa tinha enquantovivia. São alguns dos direitos da personalidade cujos efeitosse projetam para além da morte do titular. Quando alguémofende, por exemplo, a honra de um falecido, pode serresponsabilizado. Titular do direito ofendido, nesse caso, sópode ser a pessoa morta, não porque esteja ainda emcondições de adquirir direitos (que, realmente, não está),mas porque, enquanto era vivo, tinha o interessecorrespondente juridicamente protegido como tal.

A lei legitima algumas pessoas para a defesa dessesdireitos da personalidade que o morto titularizava. Note-seque os legitimados não são representantes do falecido,porque este já não pode mais ser representado, no sentidotécnico da expressão. Não são, também, os titulares dodireito, por não serem estes transmissíveis. São, a rigor,pessoas que presumivelmente gostariam de ver respeitadosos direitos do morto e às quais, por isso, a lei atribuilegitimidade para agir.

Estão, desse modo, legitimados à proteção dos direitos

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da personalidade da pessoa falecida o cônjuge sobreviventee qualquer parente em linha reta, ou colateral, até o quartograu (CC, art. 12, parágrafo único). Qualquer um deles podeagir em defesa do nome, da vida privada ou da honra dapessoa falecida. Quando, porém, a ofensa alcança o direito àimagem do morto, a lei legitima apenas o cônjuge,ascendentes e descendentes (CC, art. 20, parágrafo único).A razão da discriminação do direito à imagem é,simplesmente, incompreensível e deve-se debitá-la à falta derigor sistemático do texto codificado. De qualquer forma,ocorrendo desrespeito à memória de uma pessoa, o filho domorto, por exemplo, tem as mesmas ações que o pai teria emvida para a proteção do direito à imagem. Isto é, poderáobter em juízo uma ordem de cessação da ofensa e aindenização pelos danos (morais) decorrentes.

Depois do falecimento, o serhumano perde a personalidade edeixa de ser sujeito de direito. Nãotitulariza mais direitos e obrigações.

Quando se fala, assim, em direitosdo falecido, está-se referindo à

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do falecido, está-se referindo àp r o t e ç ã o post mortem dedeterminados interessesextrapatrimoniais que a pessoamorta tinha enquanto vivia. São osinteresses protegidos como direitoao nome, vida privada, imagem ehonra.

A lei legitima o cônjuge e algunsparentes próximos para a açãodestinada à tutela desses direitosque o morto titularizava.

Como a pessoa legitimada para a defesa do nome,privacidade, imagem ou honra do morto não é a titular dodireito ofendido, a indenização a que for condenado oofensor não lhe pertence. O direito do legitimado se limita àrecuperação dos valores despendidos com a contratação de

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advogado, custas processuais e outras despesas incorridasna defesa da memória do falecido. Descontados essesvalores do importe pago a título de indenização, o saldodeverá, a rigor, ser entregue aos sucessores da pessoamorta. Considerar-se que o legitimado à defesa do direito àpersonalidade de pessoa falecida é a credora do valorcorrespondente à indenização pelos danos moraissignificaria promovê-la à condição de verdadeira titular dodireito ofendido. Isto só seria assim, a rigor, se o direitoextrapatrimonial da personalidade fosse transmissível, o quedecididamente não é.

A legitimação estabelecida nos parágrafos únicos dosarts. 12 e 20 dizem respeito aos direitos extrapatrimoniais dapersonalidade. O direito à imagem de pessoa famosa, comovimos, pode ter conteúdo patrimonial e, nesse caso, étransmissível. Se a lesão alcança o direito de explorareconomicamente a imagem de pessoa falecida, sua defesacabe exclusivamente ao sucessor a quem esse direito foiatribuído no processo de inventário. Nesse caso, aindenização por danos materiais e morais será devida apenasao sucessor a quem o direito patrimonial for atribuído comoherança ou legado, ainda que obtida por ação promovida poroutra pessoa legitimada.

6. AUSÊNCIAQuando uma pessoa desaparece, o direito se preocupa,

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inicialmente, mais com os interesses dela do que com os deterceiros (familiares, credores etc.). Prevê, em decorrência,que uma pessoa, nomeada pelo juiz, passará a administrar osbens do desaparecido para que, ao retornar, não venha estea sofrer prejuízo. Não quer a lei que os interesses de alguémdesaparecido, muitas vezes involuntariamente, fiquem aodesamparo. Após algum tempo, continuando desaparecida apessoa, inverte-se a primazia dos interesses tutelados. Ematenção aos direitos de terceiros, a lei autoriza a presunçãoda morte do desaparecido, para que se proceda à soluçãodas pendências obrigacionais e à transmissão de seus bensa sucessores. Mas não deixa, mesmo assim, de continuaratenta aos interesses da pessoa presumivelmente morta, jáque não está de todo afastada a hipótese de ela retornar aqualquer momento.

São três etapas sucessivas desencadeadas pelodesaparecimento de uma pessoa: curadoria dos bens doausente, sucessão provisória e sucessão definitiva. Naprimeira, privilegiam-se os interesses do desaparecido sobreo de terceiros. Na segunda, equiparam-se esses interesses,atendendo-se ao direito dos credores e imitindo ossucessores na posse dos bens do ausente. Na terceira etapa,os interesses privilegiados são os de sucessores, herdeirosou legatários. Note-se, porém, que nas duas últimas,inclusive na etapa da sucessão definitiva, opera-se areversão de parte dos efeitos derivados da presunção da

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morte na hipótese de reaparecimento do ausente. Apenasdepois de transcorrido mais tempo (dez anos após a aberturada sucessão definitiva), os sucessores adquiremincondicionalmente seus direitos sobre os bens dopresumivelmente morto.

O desaparecimento de uma pessoadesencadeia, em geral, três etapassucessivas: curadoria dos bens doausente, sucessão provisória esucessão definitiva. Os interesses emproteção são não apenas os doausente, impossibilitado deadministrar seus bens, como os deterceiros, credores ou sucessores.

O desaparecimento pode ser voluntário ou involuntário.

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A pessoa pode, por sua vontade, resolver redirecionarbruscamente sua vida, abandonando familiares, amigos,negócios e bens (desaparecimento voluntário), ou pode tersido levada ao desaparecimento por fatores oucircunstâncias alheias à sua vontade (lesão da memória,naufrágio, sequestro etc.). Essa distinção é importante para adefinição dos direitos dos sucessores na hipótese dereaparecimento do ausente (item 6.3).

6.1. Curadoria dos bens do ausenteA lei autoriza que o juiz declare ausente a pessoa

desaparecida de seu domicílio. Quando, porém, se verificaesse fato jurídico, o desaparecimento? O desaparecimentonão se caracteriza apenas pelo afastamento da pessoa dolugar em que reside, por mais prolongado que seja. Nãobasta, assim, que um homem ou mulher não tenha retornadoà sua casa durante largo tempo para configurar-se odesaparecimento. Para que se considere alguémdesaparecido, é necessário que se tenham perdidototalmente as notícias sobre ele. Desaparecer não é tantouma questão espacial — ir para onde não é conhecido; émais uma questão de informação — deixar de dar notícias.Desse modo, alguém está desaparecido quando não se têmmais notícias de seu paradeiro. A lei é, inclusive,redundante, ao dizer que será declarada a ausência dapessoa que desaparecer sem dela haver notícia (CC, art. 22).

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Para que seja decretada a ausência de uma pessoa énecessário que o desaparecido não tenha representante ouprocurador cuidando de seus negócios e bens. Ambos têmpoderes de representação (CC, art. 115), mas são diferentesas origens.

O representante é investido pela lei nos poderes derepresentação. É o caso, por exemplo, do curador dodeficiente mental absolutamente incapaz, quando dodesaparecimento deste. Em princípio, não se declara ointerdito ausente porque ele possui representante. Querdizer, seus interesses não estão desamparados. Claro que,após o transcurso do prazo legal sem o reaparecimento doincapaz, cumprem-se os pressupostos de presunção damorte, para fins de abertura da sucessão, na defesa dosinteresses de terceiros (sucessores, credores etc.).

O procurador, por sua vez, é investido nos poderes derepresentação pela vontade da pessoa representada (àfrente, o conceito é aperfeiçoado: Cap. 10, item 6). Oinstrumento contratual para a veiculação da vontade, nessecaso, é o mandato. Pois bem, se antes de desaparecer, apessoa (mandante) havia outorgado a familiar, amigo oumesmo a um profissional (mandatário) poderes para, emnome dela, praticar atos e administrar os bens e negócios,respeita-se sua vontade. Não é o caso de decretação deausência, porque esta, como visto, destina-se a evitar odesarrimo dos interesses de desaparecidos. Se tais

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interesses já estão sob os cuidados de mandatário da estritaconfiança do seu titular, não há razões para acionar oinstrumento legal da declaração de ausência. Emconsequência, para o juiz declarar a ausência de certapessoa (para quem a lei não previu representante), énecessário que ela não tenha mandatário, seja porque não onomeou antes de desaparecer (CC, art. 22), seja porque ooutorgado não quer ou não pode exercer ou continuar aexercer o mandato (CC, art. 23).

Não exige a lei prazo mínimo para a caracterização dodesaparecimento. Se a pessoa avisou que faria viagem aoexterior e retornaria em trinta dias. Transcorridos estes emais um ou dois meses, sem nenhuma notícia dela, adespeito, inclusive, de diligências dos familiares e amigosdestinadas a encontrá-la, já se pode considerar a pessoadesaparecida. Se empreenderia viagem mais extensa, porregiões inóspitas do planeta e sem prazo definido pararegresso, a interrupção das notícias periódicas que enviavapode configurar, passado um tempo razoável, odesaparecimento. Note-se que as facilidades decomunicação hoje existentes, no mundo todo, reduzem osprazos a partir dos quais se pode, razoavelmente, considerarque não há mais notícias do paradeiro de uma pessoa.

Para a declaração de ausência não determina a lei que sediligencie a procura do desaparecido. Providências adotadaspelos familiares e amigos, porém, tendentes à localização de

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quem deixou de mandar notícias podem auxiliar naconfiguração do desaparecimento. O juiz deve sempre levarem consideração os hábitos que o desaparecido cultivavapara identificar anormalidades. Sem estas, deve ser prudentee exigir dos interessados outros indícios dodesaparecimento antes de declarar a ausência. Se a pessoade quem não se têm notícias era dada a periódicos eprolongados isolamentos, isso deve ser considerado naponderação sobre o seu desaparecimento.

Convencendo-se de que certa pessoa está realmentedesaparecida e seus interesses encontram-se ao desamparo,o juiz, a pedido de qualquer interessado, declarará a suaausência. A primeira consequência dessa declaração é aarrecadação dos bens do ausente. Trata-se de diligênciaque o juiz realiza, preferencialmente se deslocando até aresidência do ausente, e da qual resulta a relação dos bensde titularidade do desaparecido.

Ao declarar a ausência de uma pessoa, o juiz devetambém nomear um curador para os bens dela. A extensãodos poderes do curador é fixada pelo juiz, em função dascircunstâncias do caso. Se o desaparecido possuía, entre osbens, dinheiro aplicado em fundo de investimento bancário,numa instituição tradicional e sólida, o juiz pode, porexemplo, determinar que essa aplicação financeira deve serconservada e, portanto, limitar os poderes do curador àadministração dos demais bens do ausente. Também são

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fixadas pelo juiz as obrigações do curador. Ele podeestabelecer, por exemplo, que lhe deve prestar contasmensais. De qualquer modo, o curador passa a responder,nos limites da nomeação, pelos bens listados no termo dearrecadação.

A nomeação para o cargo de curador de bens deverecair, em princípio, sobre o cônjuge do ausente. Só não selegitima o cônjuge para o cargo se estiver separado dodesaparecido, de fato, por mais de dois anos. Não sendo oausente casado, ou não estando legitimado o cônjuge, acuradoria dos bens cabe aos pais ou a seus descendentes,nessa ordem, desde que não exista impedimento (se oausente só possuía filhos menores, enquanto durar amenoridade, estão impedidos para o exercício do cargo decurador dos bens do pai). A nomeação de parente para ocargo de curador é irrecusável, exceto em situações departicular excepcionalidade, a critério do juiz (cf. Santos,2001:204). Na falta dos parentes listados na lei, o juiz poderáescolher qualquer pessoa para o cargo de curador (CC, art.25, § 3º). Normalmente, escolherá alguém de sua confiança,hipótese em que este não apenas poderá recusar o cargo, oua ele renunciar, como terá direito à remuneração pelotrabalho que despender na administração dos bens doausente.

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A pessoa que desaparecer do seudomicílio, sem que dela se tenhanotícias, será declarada ausente, amenos que tenha representante ouprocurador encarregado deadministrar seus bens e interesses.

Ao declarar uma pessoa ausente, ojuiz arrecadará os bens dela enomeará um curador paraadministrá-los, fixando seus poderese obrigações.

O ausente, deve-se frisar, não é incapaz. A lei não oconsidera desprovido de discernimento suficiente para tratardos seus interesses. Aliás, onde quer que esteja, poderápraticar atos e negócios jurídicos diretamente. Seudesaparecimento do domicílio apenas recomenda que

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alguém passe a administrar, em nome dele, os bens,negócios e interesses que possui. Esse administrador,destaque-se, não é curador do ausente, mas dos bens dele.

6.2. Sucessão provisória e definitivaDepois de transcorrido um ano da arrecadação dos bens

da pessoa declarada judicialmente ausente, os legalmentetidos por interessados podem requerer ao juiz a abertura dasucessão, que, inicialmente, terá caráter provisório.

Também pode ser requerida a abertura da sucessãoprovisória da pessoa desaparecida que possuíarepresentante ou procurador se o desaparecimento perdurahá três anos. Isso porque, como já visto, na medida em queavançam os anos sem notícia de uma pessoa, o direito deixapaulatinamente de se preocupar com os interesses dela epassa a privilegiar os de terceiros, como herdeiros ecredores. Se desaparece o interdito, ele deixa representantee, portanto, seus interesses não se encontram ao desabrigo.Não cabe, por esta razão, a declaração de sua ausência nostermos do art. 22 do CC. Passados três anos, porém, outrosinteresses além dos do incapaz desaparecido passam a termaior proteção da lei. Já é considerável o tempo dedesaparecimento e, portanto, convém que o representanteou procurador sejam dispensados de seus encargos e ossucessores do desaparecido entrem na posse dos bens. Paratanto, deve ser declarada a ausência do desaparecido nessas

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circunstâncias e aberta sua sucessão provisória.A sucessão, inicialmente, é provisória em vista de três

fatos que podem alterar a situação jurídica dos sucessores:a) retorno do ausente; b) descoberta de que está vivo (CC,art. 36); c) descoberta da data exata da sua morte (CC, art.35). Nos dois primeiros casos, a situação provisória sedesfaz porque não se verificou o fim da pessoa natural dodesaparecido. Encontrando-se vivo quem se tinha porprovavelmente morto, não há razões para continuarem ossucessores na posse de bens que não lhes pertencem. Noterceiro caso, a sucessão provisória pode desfazer-se, casosejam diversos os sucessores na data da sua abertura e nada morte da pessoa declarada ausente. Se Antoniodesapareceu em 1999 e foi declarado ausente em 2000, teveos efeitos da abertura de sua sucessão provisóriaefetivados, por exemplo, em 2001. Imagine-se que era casadoc o m Benedita, em regime de separação de bens e emsegundas núpcias. Se Benedita faleceu em 2000, ela nãoserá, em 2001, quando a abertura da sucessão provisória deAntonio produzir efeitos, sua sucessora. Os filhos doprimeiro casamento são os únicos a concorrer à sucessão enenhum direito sucessório no patrimônio de Antoniopossuirão, por exemplo, os sucessores de Benedita. Porém,se posteriormente é descoberto que, na verdade, Antoniohavia falecido em 1999, Benedita deve ser considerada suasucessora, porque ainda vivia na data da morte do marido.

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Os filhos do primeiro casamento de Antonio e os sucessoresde Benedita concorrerão à sucessão nessa hipótese.

Estão unicamente legitimados para requerer a aberturada sucessão provisória da pessoa declarada ausente, apósum ano da arrecadação (ou da desaparecida comrepresentante ou procurador, depois de três anos dodesaparecimento): a) o cônjuge; b) os herdeiros presumidos;c) os que tiverem sobre os bens do ausente direitocondicionado à sua morte; d) os credores de obrigaçõesvencidas e não pagas (CC, art. 27, I a IV); e) o MinistérioPúblico, se não houver interessados (CC, art. 28, § 1º).

Depois de um ano da declaraçãode ausência (ou se transcorridos trêsanos do desaparecimento de pessoaque havia deixado representante ouprocurador), pode ser aberta asucessão provisória. Nela, o ausentepreserva a propriedade de seus bens,mas a posse é dada aos seus

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mas a posse é dada aos seuspresumíveis sucessores. O curadordos bens do ausente, assim como orepresentante e o procurador dodesaparecido, é dispensado de suasfunções e a responsabilidade pelaadministração dos bens passa a serdo titular do direito à posseprovisória.

A declaração de abertura de sucessão provisória sóproduz efeitos depois de transcorridos cento e oitenta diasda sua publicação. Isto é, enquanto não transposto essemarco temporal, embora já autorize a lei determinadasprovidências no pressuposto da permanência da situação defato, a sucessão somente se dará quando decorrido aqueleprazo. Após o juiz declarar aberta a sucessão provisória, osinteressados devem requerer, nos trinta dias seguintes, oinventário. Se o ausente havia deixado testamento, proceder-se-á também à sua abertura.

O principal efeito da sucessão provisória é a imissão na

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posse dos bens pertencentes ao ausente pelos seuspresumíveis sucessores. José Antonio de Paula Santos Netoconsidera a hipótese como “usufruto legal” (2001:231/232).Note-se que durante a etapa provisória da sucessão doausente não se transmite a propriedade dos seus bens.Estes continuam pertencendo ao ausente. A posse deles éque se dá aos presumíveis sucessores. Em decorrência daimissão na posse de quem provavelmente sucederá aoausente, o curador dos bens do primeiro e o representanteou mandatário do segundo são desligados de suas funções.A responsabilidade pela administração de cada bem passaao sucessor que detiver a respectiva posse. O cônjuge,descendentes e ascendentes não precisam prestar cauçãopara imitir-se na posse dos bens do ausente com sucessãoprovisória aberta, mas os demais titulares do direito à posseprovisória devem oferecer garantia da restituição dos bens,mediante penhores ou hipotecas equivalentes aos seusquinhões (CC, art. 30 e § 2º).

Durante a fase da sucessão provisória, nenhum bemimóvel do ausente pode ser, como regra, alienado ouhipotecado. O objetivo da proibição da lei é impedir a perdados bens. Embora estejam os presumíveis sucessores naposse destes, ainda não transcorreu tempo suficiente paraoperar-se a presunção da morte de seu proprietário. Convém,por isso, conservar-se a propriedade. Há duas exceções,contudo: o imóvel pode ser desapropriado (que é uma

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hipótese de alienação) ou pode ser alienado ou hipotecado,mediante autorização judicial, para evitar sua ruína. Emrelação aos bens móveis, quando sujeitos a deterioração oua extravio, o juiz pode ordenar sua venda e posterioremprego do valor obtido em investimento de perfilconservador, lembrando a lei de imóveis e títulos federais(CC, art. 29).

Depois de decorridos dez anos da abertura da sucessãoprovisória da pessoa declarada ausente, os interessadospodem requerer ao juiz que abra a definitiva. Trata-se,normalmente, da etapa final que o desaparecimento de umapessoa desencadeia. A sucessão definitiva, contudo, podeser aberta independentemente de prévia abertura dasucessão provisória quando o desaparecido conta com 80anos de idade e há pelo menos cinco anos não há notíciasdele (CC, art. 38).

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Presume-se a morte dodesaparecido quando o juiz declaraaberta a sucessão definitiva. Estapode ter por fundamento otranscurso de dez anos da aberturada sucessão provisória, ou de cincoanos sem notícias da pessoa com 80anos de idade.

A abertura da sucessão definitiva importa a presunçãoda morte do ausente ou desaparecido. Processa-se,portanto, como a sucessão de qualquer outra pessoafalecida. Pagam-se as dívidas pendentes, se ainda houver, etransmitem-se os bens à propriedade dos sucessores. Com apartilha, o antigo titular do direito de posse provisória não émais administrador de bens alheios. Cada sucessor torna-se,para todos os efeitos, dono dos bens correspondentes aosseus quinhões.

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6.3. O retorno do ausenteSe a pessoa declarada ausente retorna ao seu domicílio,

variam os direitos que titulariza de acordo com o momentodo reaparecimento.

Se regressa antes da abertura da sucessão provisória,encontrará seus bens, negócios e interesses sob oscuidados do curador nomeado pelo juiz. Assim, seupatrimônio foi administrado, durante a ausência, por umapessoa com a responsabilidade de administrador. Quer dizer,o ausente terá direito de receber os frutos e rendimentos dosseus bens descontados unicamente o valor das despesas deadministração e, quando for o caso, a remuneração doadministrador. O curador de bens do ausente queadminis trar mal os interesses confiados a sua guardaresponde pelos danos a que der causa. Se o administradordeixou, por exemplo, prescrever a ação de cobrança doaluguel de um imóvel, o ausente tem direito de serindenizado pelo prejuízo derivado dessa negligência. Aoreassumir diretamente seus negócios e patrimônio, o ausentepode demandar a indenização pelos atos de máadministração de seus bens. Aliás, aberta a sucessãoprovisória, os titulares do direito de posse também podemdemandar o curador dos bens do ausente por atos de máadministração.

Se o regresso do ausente dá-se depois de aberta asucessão provisória, mas antes de aberta a definitiva, os

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frutos e rendimentos dos seus bens pertencem, totalmenteou em parte, ao titular do direito à posse provisória.Depende da natureza do vínculo de parentesco entre eles(ausente e possuidor provisório). Assim, o cônjuge,ascendente e descendente farão seus todos os frutos erendimentos dos bens, mas os demais devem capitalizar ametade. Imagine-se que o ausente tem, no patrimônio, umimóvel comercial que se encontra alugado. Imagine-se,ademais, que sobre esse imóvel titularizam o direito à posseprovisória sua esposa e um amigo contemplado emtestamento. A parte do aluguel destinada à mulher é dela,podendo gastá-la com o que quiser. Não há contas a prestardesse fruto ou rendimento. Já da parte do aluguel cabível aoamigo, metade deve ser empregada num fundo deinvestimento (ou noutra alternativa de capitalização). Serestar comprovada que a ausência era involuntária, oausente, ao retornar, terá direito a essa metade capitalizada(CC, art. 33, parágrafo único). Caso tenha sido voluntária, atotalidade dos frutos e rendimentos caberá ao sucessor.

Em suma, se o ausente retornar antes da abertura dasucessão definitiva, não poderá reclamar os frutos erendimentos de seus bens do cônjuge, ascendente oudescendente titulares da posse provisória, mas poderáreclamar, se a ausência foi involuntária, a metade deles dosdemais possuidores provisórios.

O possuidor provisório, qualquer que seja o vínculo

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com o ausente, responde perante este por má administração.Se não renovou o seguro de imóvel, que o ausenteinvariavelmente contratava, e o bem se perdeu numincêndio, responderá o titular do direito à posse provisóriapelo prejuízo do ausente.

Os direitos do ausente quereaparece variam segundo omomento de seu regresso. Se retornaantes da abertura da sucessãoprovisória, conserva não só o direitoà propriedade de seus bens como atodos os frutos e rendimentos. Sedepois da sucessão provisória, masantes de aberta a definitiva, mantémo direito à propriedade dos bens,mas não à totalidade dos frutos erendimentos destes. Se retorna após

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rendimentos destes. Se retorna apósa sucessão definitiva, mas antes detranscorridos dez anos, tem apenas odireito à restituição dos seus bens noestado em que se encontram.Regressando depois de dez anos dasucessão definitiva, não tem maisdireito aos seus bens.

Regressando o ausente nos dez anos seguintes àabertura da sucessão definitiva, devem ser restituídos osbens no estado em que se encontrarem. Se um ou mais delestiverem sido vendidos, após a partilha havida na sucessãodefinitiva, terá direito ao preço obtido na venda. Em caso desub-rogação, ficará com o bem sub-rogado. Em nenhumahipótese, porém, terá o ausente direito a fruto ou rendimentorelativo ao tempo da sua ausência. Não terá perdido,contudo, eventual direito à indenização por máadministração dos bens no período anterior à abertura dasucessão definitiva, salvo se verificada a prescrição. Vê-se,portanto, que a propriedade dos bens titularizada pelos

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sucessores, nos dez anos seguintes à abertura da sucessãodefinitiva, é sujeita a condição resolutiva.

Após o decurso de dez anos seguintes à abertura dasucessão definitiva, não terá o ausente nenhum direito sobreos bens que titularizava anteriormente ao seudesaparecimento.

7. DOMICÍLIO DA PESSOA FÍSICAO domicílio é o lugar em que a pessoa pode ser

encontrada para exercer direitos e responder por obrigações.Quando se trata de pessoa física, o domicílio é o lugar emque reside com ânimo definitivo. Quem possui mais de umaresidência, em que viva alternadamente, tem em qualquerdelas seu domicílio (CC, art. 71). Quem, por outro lado, nãotiver residência habitual, tem o domicílio no lugar em que forencontrada (CC, art. 73). Nas relações pertinentes àprofissão, a pessoa física é domiciliada onde a exerce.Assim, o lugar em que se encontra o consultório do médicoou dentista, o escritório do advogado ou o estabelecimentodo empresário individual é, para os assuntos profissionaisdessas pessoas, o seu domicílio (CC, art. 72).

As pessoas são, em princípio, inteiramente livres paradecidir o lugar em que fixarão o domicílio, e, por isso, oelemento mais relevante para identificá-lo é a intenção porelas manifestada. Exceto nas hipóteses de domicílionecessário, o lugar declarado como tal pela pessoa serve de

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domicílio. Ademais, querendo, a pessoa pode mudar seudomicílio, a qualquer tempo, bastando para isso que transfiraa residência com a intenção manifesta de mudá-la (CC, art.74). A lei menciona uma esdrúxula declaração “àsmunicipalidades”, como uma das provas da intenção demudança do domicílio. O anacrônico ato não se consegueatualmente praticar, e não possui significado nenhum nasmudanças dentro da mesma cidade. Os cadastros mantidospelas prefeituras têm fins fiscais e identificam oscontribuintes de tributos municipais e não os domicílios.Aliás, eventual escrito endereçado à Prefeitura para os finsde manifestar a intenção de mudar o domicílio serásimplesmente ignorado e arquivado. A prova da intenção demudar o domicílio é feita, portanto, pela própria mudança.

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Domicílio é o lugar em que apessoa pode ser encontrada pararesponder por suas obrigações ouexercer os direitos que titulariza. Aregra geral para a definição dodomicílio é o da ampla liberdade.

Também em razão da extrema liberdade de que gozam aspessoas para definir seu domicílio, podem, ao celebrar umcontrato qualquer por instrumento escrito, eleger o lugar emque serão exercidos os direitos e cumpridas as obrigaçõescontratadas.

As hipóteses de domicílio necessário, que limitam aliberdade de definição que norteia a disciplina da matéria,são apenas cinco: a) o incapaz tem o mesmo domicílio deseu representante ou assistente; b) o servidor público édomiciliado no lugar em que exerce suas funçõespermanentemente; c) o domicílio do militar depende da Forçaa que pertence; sendo do Exército, será onde servir; sendoda Marinha ou da Aeronáutica, será o lugar do comando a

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que se encontrar imediatamente subordinado; d) o marítimodomicilia-se no navio em que for matriculado; e e) o preso,onde estiver cumprindo pena (CC, art. 76).

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Capítulo 8

A PESSOAJURÍDICA

1. INTRODUÇÃOPara melhor nortear a solução de conflito de interesses

em sociedade — que, imediata ou mediatamente, sempreenvolve homens ou mulheres —, a lei atribui a titularidadede direitos e obrigações não apenas a seres humanos, mastambém a seres não humanos de natureza ideal. São, porassim dizer, “realidades” puramente conceituais, que existemapenas para a disciplina dos interesses, em última instância,de homens e mulheres “reais”. De fato, não existem essesseres não humanos, senão no plano dos conceitos jurídicos,e sua finalidade é servirem à melhor composição dosinteresses das pessoas naturais que vivem em sociedade.Um desses seres, que será objeto de exame neste capítulo, é

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a pessoa jurídica.Os alicerces da teoria da pessoa jurídica encontram-se

na Idade Média, em noções destinadas a atender àsnecessidades de organização da Igreja Católica epreservação de seu patrimônio. Naquele tempo, o direitocanônico separava a Igreja, como corporação, de seusmembros (os clérigos), afirmando que aquela tem existênciapermanente, que transcende a vida transitória dos padres ebispos. Também por ser a Igreja uma corporaçãoindependente de seus integrantes, nem todos podem falarlegitimamente por ela, mas, dependendo do assunto, apenasos membros de determinada hierarquia, consultandopreviamente, por vezes, alguns dos seus pares. Outraimportante implicação do reconhecimento da Igreja comouma corporação inconfundível com os seus integrantes erapertinente aos bens. A afirmação da vida da Igreja emseparado leva à distinção entre o patrimônio dela e o de cadamembro do clero. Falecendo um padre ou bispo, os bens emsua posse não podiam ser transmitidos a sucessores porpertencerem à corporação.

Na época da Revolução Comercial, as grandescompanhias organizadas para a exploração e colonização donovo mundo também eram consideradas entidadesautônomas em relação aos fundadores e investidores quenelas aportavam capital. Mas não foi imediata a transposiçãoda noção corporativa para as sociedades mercantis. Havia

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uma diferença significativa entre a separação patrimonial dasempresas da Era Moderna e a noção de corporação dodireito canônico medieval. Enquanto a Igreja era vista comotendo existência transcendental à vida de seus membros, associedades comerciais geralmente se ligavam aos sócios(Lopes, 2000:108/110 e 411/418). Em outros termos, ageneralização das noções de corporação (do direitocanônico) e de separação patrimonial (do direito comercial)de que resultou o conceito de pessoa jurídica tem lugarapenas na segunda metade do século XIX, em reflexõesdesenvolvidas principalmente por doutrinadores alemães.

A justificativa do conceito de pessoa jurídica a partir deconcepções antropomórficas, porém, enraizou-se nopensamento jurídico. Até meados do século XX ainda seencontram autores afirmando a existência por assim dizer“real” da pessoa jurídica. Para eles, a lei não teriapropriamente criado um conceito para melhor tratar osconflitos de interesses entre os seres humanos, valendo-seda noção de “pessoa”, mas limitado a reconhecer algo que,a exemplo dos homens e mulheres, teria uma existênciaanterior (cf., por todos, Oliveira, 1979). A literatura sobre otema lista diversas teorias (ficção, instituição, realidadetécnica e outras), que ora reforçam tais concepções, ora sedistanciam delas. São teorias que ilustram, a rigor, asdificuldades que enfrentaram os tecnólogos do direito, nopassado, para sustentar a titularidade de direitos e

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obrigações por seres não humanos. Seu estudo deixou,atualmente, de ter importância tecnológica. Passado mais deum século da configuração final da teoria da pessoa jurídica,e incorporados seus desdobramentos na generalidade dosdireitos positivos, não há maiores dificuldades em suaoperacionalização na solução de conflitos de interesses.

O instituto da pessoa jurídica é, enfim, uma técnica deseparação patrimonial desenvolvida pelo direito paradisciplinar os interesses de homens e mulheres. Existemoutros institutos que também têm a mesma natureza efinalidade. Assim, os sujeitos de direito despersonificados,como o espólio, a massa falida ou o condomínio edilício(Cap. 6, item 5). É técnica de segregação patrimonial aadministração contabilmente autônoma de determinadosrecursos alheios, como a dos fundos de investimentooferecidos pelos bancos. Além desses exemplos, também otratamento excepcional liberado a certos bens do patrimôniode uma pessoa pode implicar a separação, como no caso doempresário individual casado que, independentemente doregime de bens do casamento, pode, sem autorização docônjuge, alienar os imóveis empregados na exploração daempresa ou mesmo gravá-los de ônus reais (CC, art. 978). Emtodas essas hipóteses de separação de patrimônio criadaspelo direito, a finalidade é sempre a de dispor sobre conflitosde interesses, de forma mais racional.

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O instituto da pessoa jurídica éuma técnica de separaçãopatrimonial. Os membros dela nãosão os titulares dos direitos eobrigações imputados à pessoajurídica. Tais direitos e obrigaçõesformam um patrimônio distinto docorrespondente aos direitos eobrigações imputados a cadamembro da pessoa jurídica.

A pessoa jurídica é uma técnica de separaçãopatrimonial em que se atribui personalidade própria aopatrimônio segregado. Nenhuma outra das técnicasdesenvolvidas pelo direito apresenta esse traço. No examedo conceito das pessoas jurídicas (item 2) discutir-se-á osignificado dessa característica que a distingue das demais

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técnicas de separação patrimonial, bem como a maisimportante de suas implicações, o princípio da autonomiadas pessoas jurídicas.

2. CONCEITO DE PESSOA JURÍDICAPessoa jurídica é o sujeito de direito personificado não

humano. É também chamada de pessoa moral. Como sujeitode direito, tem aptidão para titularizar direitos e obrigações.Por ser personificada, está autorizada a praticar os atos emgeral da vida civil — comprar, vender, tomar emprestado, darem locação etc. —, independentemente de específicasautorizações da lei. Finalmente, como entidade não humana,está excluída da prática dos atos para os quais o atributo dahumanidade é pressuposto, como casar, adotar, doar órgãose outros.

Em geral, é a pessoa jurídica constituída por outra ououtras pessoas. Ela começa a existir, assim, em decorrênciada vontade de uma ou mais pessoas, identificadas comomembros, integrantes ou instituidores da pessoa jurídica.Essa noção apenas não se ajusta inteiramente aos entes daFederação (União, Estados, Distrito Federal e Municípios),que são pessoas jurídicas derivadas da organização políticaindependente da sociedade brasileira. As demais pessoasjurídicas sempre terão um ou mais membros; estes sãonecessariamente sujeitos de direito, podendo ser pessoasfísicas ou outras pessoas jurídicas.

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A mais relevante consequência dessa conceituação daspessoas jurídicas é sintetizada no princípio da autonomia. Aspessoas jurídicas não se confundem com as pessoas que aintegram — dizia preceito do antigo Código Civil. Em outrostermos, a pessoa jurídica e cada um dos seus membros sãosujeitos de direito autônomos, distintos, inconfundíveis.Desse modo, se Antonio, Benedito e Carlos contratam umasociedade empresária designada ABC Transportes Ltda.,dão nascimento a um novo sujeito de direito personificado.De três passam a quatro pessoas, cada uma com seusdireitos e obrigações, seu próprio patrimônio. Assim como odireito de Antonio não pode ser exercido por Benedito, ou aobrigação de Carlos não pode ser cobrada de Antonio,porque são pessoas diferentes, também o direito de ABCTransportes Ltda. não pode ser exercido por Carlos, nem aobrigação dela pode ser imputada a Benedito.

Em razão do princípio da autonomia da pessoa jurídica, éela mesma parte dos negócios jurídicos. Faz-se presente àcelebração do ato, evidentemente, por meio de uma pessoafísica que por ela assina o instrumento. Mas é a pessoajurídica que está manifestando a vontade, vinculando-se aocontrato, assumindo direitos e contraindo obrigações emvirtude do negócio jurídico. Se for necessário alugar imóvelpara instalação do estabelecimento de ABC TransportesLtda. (escritório, oficina, estacionamento etc.), será ela,pessoa jurídica, a locatária. Antonio, Benedito e Carlos

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decididamente não participam da relação contratual, sãotodos estranhos ao vínculo locatício. Nem mesmo o sócioque eventualmente vier a assinar o contrato de locação emnome da pessoa jurídica será parte do negócio.

Também em decorrência do princípio da autonomia dapessoa jurídica, é ela, e não os seus integrantes, a partelegítima para demandar e ser demandada em juízo, em razãodos direitos e obrigações que titulariza. Não sendo pago, porexemplo, o aluguel do imóvel onde se instalou oestabelecimento, o locador tem ação contra a ABCTransportes Ltda. e não contra os seus sócios. Antonio,Benedito e Carlos são partes ilegítimas para o processonesse caso, exatamente porque não são locatários, nãodevem o aluguel. Quem locou o imóvel e contraiu aobrigação de pagar os aluguéis foi uma outra pessoa, asociedade.

Finalmente, e no seu desdobramento mais relevante, oprincípio da autonomia importa, em regra, a impossibilidadede se cobrarem dos seus integrantes as dívidas e obrigaçõesda pessoa jurídica. Condenada a pagar, judicialmente,determinado valor a título de aluguel, ABC TransportesLtda. responderá com os bens do seu patrimônio. O locadornão pode pretender a satisfação de seu crédito com aconstrição judicial de bens de Antonio, Benedito ou Carlos,porque eles não são os devedores. A regra da autonomiapatrimonial das pessoas jurídicas estabelece que os seus

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integrantes não respondem por dívidas delas. Quem abrecrédito para uma pessoa jurídica deve saber que não estágarantido, em princípio, pelos bens do patrimônio dosmembros desta. Apenas em situações excepcionais a leiautoriza a imputação da obrigação da pessoa jurídica aalguns ou todos os seus integrantes. Mesmo nessassituações, porém, a responsabilidade dos membros dapessoa jurídica é sempre subsidiária; ou seja, pressupõe oprévio exaurimento dos recursos patrimoniais da pessoajurídica. Desse modo, se o locador do exemplo acima tiver odireito de satisfazer seu crédito pela constrição judicial debens do patrimônio de Antonio, só poderá fazê-lo se ABCTransportes Ltda. não titularizar mais nenhum bem.

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Em decorrência do princípio daautonomia da pessoa jurídica, é ela(e não os seus integrantes) queparticipa dos negócios jurídicos deseu interesse e titulariza os direitose obrigações decorrentes. Também éela quem demanda e é demandadaem razão de tais direitos eobrigações. Finalmente, é apenas opatrimônio da pessoa jurídica (e nãoo de seus integrantes) que, emprincípio, responde por suasobrigações.

O princípio da autonomia das pessoas jurídicas, comodito, encontrava-se, no Código Civil anterior, expresso num

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dispositivo que afirmava não se confundirem elas com osseus integrantes. Na lei atual não se encontra reproduzidoigual dispositivo. A autonomia, e suas implicações acimadelineadas, porém, decorre da interpretação sistemática dediversas normas. O art. 46, V, por exemplo, estabelece queum dos elementos constantes do registro civil da pessoajurídica é a existência ou não de responsabilidade subsidiáriados seus membros pelas obrigações dela; o art. 1.052restringe a responsabilidade de cada sócio da sociedadelimitada ao valor de suas quotas, e assim por diante.Diversos dispositivos do Código Civil reforçam a adoção,pelo direito civil brasileiro, do princípio da autonomia dapessoa jurídica. É exemplo, assim, de um princípio nãoexpresso, revelado pela doutrina a partir dos dispositivoslegais do ordenamento jurídico, para informar a interpretaçãoe aplicação das normas que o compõem (Cap. 3, item 3).

3. CLASSIFICAÇÃO DAS PESSOAS JURÍDICASAs pessoas jurídicas classificam-se de acordo com

vários critérios. Três são os de maior interesse:a) Critério legal. Pelo critério legal, subdividem-se,

inicialmente, em pessoas jurídicas de direito público ou dedireito privado. O que as distingue não é a origem dosrecursos empregados em sua constituição (públicos ou departiculares), mas o regime jurídico a que se submetem. Cadauma dessas categorias de pessoa jurídica está sujeita a um

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regime específico. O de direito público caracteriza-se pelasupremacia dos interesses titularizados pelas pessoas a elesujeitas. É o regime da desigualdade jurídica, que outorgaprerrogativas às pessoas de direito público, subtraídas dasde direito privado.

As prerrogativas do regime de direito público são osinstrumentos para tutela dos interesses gerais, os quais, emvirtude de um valor conquistado ao longo da trajetória dacivilização, sempre devem prevalecer sobre os individuais.As pessoas jurídicas de direito público dispõem de taisprerrogativas, para a defesa dos interesses públicos. Tome-se um exemplo. A regra, no direito processual, é a de que aprova de um fato cabe a quem o alega. Isto é, quem afirma aocorrência de certo fato (constitutivo do direito que pleiteia)tem o ônus de prová-lo. Em algumas situações, por medidade justiça, admite-se a inversão do ônus da prova. O fatoconstitutivo do direito não precisa ser provado por quem opleiteia, mas cabe a quem se imputa o dever provar, paraliberar-se da obrigação, que o fato não ocorreu. Pois bem, emfavor das pessoas jurídicas de direito público milita apresunção de liquidez e certeza dos atos por elas praticados.Em outros termos, quando judicialmente questionada, apessoa jurídica de direito público não tem o ônus de provara ocorrência do fato que autoriza a prática do ato. É doparticular o ônus de provar que esse fato não se verificou.Se recebo uma multa de trânsito por excesso de velocidade

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em rodovia estadual e resolvo questioná-la em juízo, não é oEstado que deve provar que eu, no dia e hora assinalados,encontrava-me correndo naquela estrada; mas cabeexclusivamente a mim o ônus de provar que esse fato nãoocorreu. É uma prerrogativa necessária à prevalência dointeresse público sobre o privado.

Pelo critério legal, as pessoasjurídicas são de direito público(interno ou externo) ou de direitoprivado. Estas últimas podem ser detrês espécies: fundação, associaçãoe sociedade.

Na fundação, alguns bens doinstituidor são destacados de seupatrimônio e afetados a certasfinalidades. Na associação esociedade, pessoas com objetivos

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comuns unem seus esforços pararealizá-los. Na fundação e naassociação, os fins que motivam aformação da pessoa jurídica são nãoeconômicos, enquanto na sociedade,são econômicos.

As pessoas jurídicas de direito privado, a seu turno,submetem-se ao regime da igualdade jurídica. Se a lei tratardiferentemente duas pessoas jurídicas de direito privadoiguais, ela é inconstitucional por afronta ao princípio daisonomia. Quando a lei, assim, concede uma prerrogativa adeterminada pessoa jurídica de direito privado, isto só temvalidade se for o meio de estabelecer a igualdade na relação.O exemplo acima, do ônus da prova, serve também aqui. Oconsumidor ao adquirir no mercado um produto qualquerencontra-se em situação de vulnerabilidade diante dofabricante. Ele é não só economicamente mais fraco, mas nãodispõe das mesmas informações que o fabricante tem sobreo produto adquirido. Imagine-se que uma associação decaridade, mantenedora de uma creche, adquira um fogão.

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Considere-se que, em seus primeiros dias de uso, por causade vazamento de gás do fogão, ocorre um incêndio nacreche. Numa discussão judicial, em razão da vulnerabilidadeda associação consumidora, é-lhe impossível provar que odefeito do fogão foi a causa do incêndio. Para o fabricante,porém, detentor de todas as informações sobre seusprodutos, provar a impossibilidade de determinadodesdobramento de um produto defeituoso dele não é difícil.Diante disso, o Código de Defesa do Consumidor autorizaque o juiz, diante da verossimilhança das alegações doconsumidor, decrete em favor deste a inversão do ônus daprova. Nessa hipótese, veja que a prerrogativa não éconcedida, pela lei, para tornar a associação consumidorauma pessoa desigual, mais favorecida que o fabricante dofogão; pelo contrário, é concedida para torná-la igual aofabricante. A desvantagem econômica (vulnerabilidade) écompensada pela vantagem jurídica (inversão do ônus daprova), igualando, na medida do possível, as pessoasjurídicas de direito privado titulares dos interessesconflitantes.

As pessoas jurídicas de direito público sãoclassificadas, pela lei, em internas e externas (CC, art. 40).São de direito público interno a União, os Estados, o DistritoFederal, os Territórios, os Municípios, as autarquias (porexemplo, OAB, INSS, Instituto Nacional da PropriedadeIntelectual etc.), inclusive as associações públicas, e demais

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entidades de caráter público criadas por lei (por exemplo, asagências reguladoras ANATEL, ANP, ANEEL etc.) (CC, art.41). Salvo disposição diversa da lei, uma pessoa jurídica dedireito público interno se submete, quanto aofuncionamento, ao direito civil se, a despeito da naturezapública do seu regime jurídico, tiver a estrutura de pessoajurídica de direito privado (CC, art. 41, parágrafo único). Oestudo dessas pessoas, suas prerrogativas, direitos eobrigações, é feito pelos tecnólogos dedicados ao direitoadministrativo. Já as pessoas jurídicas de direito públicoexterno são os Estados estrangeiros e todas as pessoasregidas pelo direito internacional público (Igreja Católica,ONU, Organização Mundial do Comércio, ComunidadeEuropeia etc.) (CC, art. 42).

As pessoas jurídicas de direito privado são: fundação,associação, sociedade, organizações religiosas e partidospolíticos. A fundação se distingue da associação e dasociedade porque, ao contrário destas, não resulta da uniãode esforços de pessoas com o mesmo objetivo. Ela resultada afetação de um patrimônio a determinada finalidade.Quando o jornalista Roberto Marinho instituiu a FundaçãoRoberto Marinho, ele destacou de seu patrimônio algunsbens e externou a vontade de que passassem a seradministrados com o objetivo de auxiliar a proteção dopatrimônio histórico brasileiro, promover a difusão daeducação pela TV etc. Em outros termos, afetou certos bens

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à realização de determinadas finalidades. A fundação sópode ter determinados fins não econômicos: religiosos,morais, culturais ou de assistência (CC, art. 62, parágrafoúnico).

Na associação e na sociedade, pessoas com objetivoscomuns unem seus esforços para alcançá-los. Varia aespécie de pessoa jurídica de acordo com a natureza doobjetivo perseguido. Na associação, pessoas se unem emtorno de objetivos não econômicos (por exemplo, culturais,filantrópicos, sociais etc.), e nas sociedades, para explorarem conjunto uma atividade econômica. Desse modo, asociedade se distingue da fundação e da associação peloobjetivo econômico (ganhar dinheiro) que motiva suaconstituição.

As sociedades se dividem em simples e empresárias,segundo a forma como organizam a exploração da atividadeeconômica a que se dedicam. As sociedades empresárias,por sua vez, podem ser de cinco tipos: nome coletivo,comandita simples, comandita por ações, limitada ouanônima.

As organizações religiosas e os partidos políticos têm amesma estrutura que as associações e sociedades —resultam da união de esforços de pessoas com interessescomuns. Diferenciam-se destas em razão de seus objetivospeculiares: as organizações religiosas destinam-se àpropagação de uma religião, congregando os que a

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professam; os partidos políticos, por sua vez, reúneminteressados em participar da vida política nacional,geralmente em torno de um ideário comum. São pessoasjurídicas regidas por normas específicas.

b) Quantidade de fundadores e de membros. Aspessoas jurídicas podem ser singulares ou coletivas, deacordo com a quantidade de pessoas que as constituem.Singulares são as constituídas por uma só pessoa; coletivas,as constituídas por duas ou mais. As autarquias e associedades anônimas subsidiárias integrais são singulares.As associações e demais sociedades são coletivas. Afundação costuma ser instituída por uma só pessoa, mas háfundações criadas por dois ou mais instituidores. Quando areferência é à quantidade de membros ou integrantes daspessoas jurídicas, designam-se estas como unipessoais (umsó membro) ou pluripessoais (dois ou mais membros).Assim, a sociedade empresária deve necessariamente sercoletiva, em sua origem (exceto o caso especialíssimo dasubsidiária integral, que pode ser constituída por um sócioapenas, desde que seja esse uma sociedade brasileira). Querdizer, sua constituição pressupõe pelo menos dois sócios.Em decorrência, tende a ser uma pessoa jurídicapluripessoal. A lei, contudo, admite a unipessoalidadetemporária da sociedade empresária quando, por qualquermotivo, a totalidade das quotas ou ações representativas deseu capital social se tornam da propriedade de uma só

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pessoa (CC, art. 1.033, IV; LSA, art. 206, I, d). As pessoasjurídicas resultantes da afetação de patrimônio (fundações)não possuem integrantes ou membros, e, por essa razão, nãopodem ser qualificadas como unipessoais ou pluripessoais.

Pelo critério concernente àquantidade de pessoas que aconstituem, a pessoa jurídica podeser singular (um só fundador) oucoletiva (dois ou mais fundadores).Pela quantidade de integrantes, podeser unipessoal (um membro apenas)ou pluripessoal (dois ou maismembros).

c) Modo de constituição. Segundo o modo deconstituição, as pessoas jurídicas classificam-se em

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contratuais ou institucionais. As primeiras são constituídaspor um contrato entre os seus fundadores. Entre eles, porisso, estabelecem-se vínculos contratuais. Nessa categoriase enquadra a maioria dos tipos de sociedades (simples,nome coletivo, comandita simples e limitada). As pessoasjurídicas institucionais são constituídas por manifestação devontade de seus fundadores, mas sem que se vinculemcontratualmente. São institucionais as sociedades por ações(anônima ou comandita por ações), as associações, asorganizações religiosas, os partidos políticos e asfundações. Note-se que as pessoas jurídicas singulares sãosempre institucionais, já que um contrato pressupõe pelomenos dois sujeitos contratantes.

O ato constitutivo da pessoa jurídica contratual chama-s e contrato social, e o da institucional, estatuto. São osdocumentos disciplinares da organização da pessoa jurídica,bem assim das relações dela com os seus membros.

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As pessoas jurídicas sãoclassificadas, de acordo com o modode constituição, em contratuais einstitucionais. O ato constitutivodaquelas denomina-se "contratosocial" e o das institucionais,"estatuto".

4. INÍCIO E TÉRMINO DA PERSONIFICAÇÃOA existência legal das pessoas jurídicas, diz a lei, inicia-

se com o registro do respectivo ato constitutivo no órgãopróprio (CC, art. 45). Assim, as associações, fundações esociedades simples devem ter seus atos de constituiçãolevados ao Registro Civil das Pessoas Jurídicas, enquantoas sociedades empresárias são registradas nas JuntasComerciais (CC, art. 1.150). Esse ato, portanto, é o legalmenteestabelecido para marcar o início da personalidade dapessoa jurídica. Aliás, em relação às sociedades, a lei é

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expressa ao estipular que a aquisição da personalidadejurídica dá-se com a inscrição, no registro próprio, dos seusatos constitutivos (CC, art. 985).

Esta, porém, não é a melhor forma de dispor sobre amatéria. Se o atributo da personalidade é a autorizaçãogenérica para a prática de atos jurídicos não proibidos, ofato jurídico que marca o início da personificação deveria sera manifestação de vontade dos fundadores da pessoajurídica. Mesmo se adotando um conceito mais largo depersonalidade, como a aptidão para titularizar direitos eobrigações, também não será o registro dos atosconstitutivos, mas sim a manifestação da vontade dosfundadores da pessoa jurídica, o fato desencadeador dapersonificação. É claro que o funcionamento da pessoajurídica antes do registro é irregular e importa, para associedades, por exemplo, relativizações de sua autonomiapatrimonial. O registro, assim, deveria ter sido escolhido pelalei como condição para o funcionamento regular da pessoajurídica e não para a personificação.

De qualquer modo, sem o registro, a pessoa jurídica nãoconsegue cadastrar-se no Cadastro Nacional das PessoasJurídicas (CNPJ), condição inafastável para participar daeconomia formal. Expõe-se, ademais, à imposição de multapela falta de matrícula no INSS, que pressupõe o registrodos atos constitutivos.

Em suma, embora sob o ponto de vista lógico e

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conceitual seja suficiente para considerar-se a pessoajurídica personificada a manifestação da vontade de seusinstituidores, as exigências relacionadas à regularidade doseu funcionamento e as consequências da inobservânciadestas recomendam que a pessoa jurídica não pratiquenenhum ato jurídico anteriormente à formalidade do registrode sua constituição.

De acordo com a lei, apersonalidade da pessoa jurídicainicia-se com a inscrição de seusatos constitutivos no registropróprio. As sociedades simples,associações e fundações inscrevem-se no Registro Civil das PessoasJurídicas, e as sociedadesempresárias, na Junta Comercial.

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Termina a personificação da pessoa jurídica com ocancelamento de sua inscrição no registro próprio. Talcancelamento só pode ser efetivado pelo Registro Civil dasPessoas Jurídicas ou pela Junta Comercial, após oencerramento da liquidação da pessoa jurídica. Aliquidação, por sua vez, é necessária quando a pessoajurídica é dissolvida por deliberação da maioria de seusmembros, observadas as regras estatutárias ou contratuais.A ordem sequencial dos atos dissolutórios das pessoasjurídicas em geral, portanto, é: dissolução, liquidação ecancelamento do registro.

A liquidação é um conjunto de atos praticados pelapessoa jurídica dissolvida com o objetivo de solucionar suaspendências obrigacionais e destinar o patrimônioremanescente. De fato, ao ser deliberada a dissolução deuma pessoa jurídica, é normal que ela tenha créditos areceber e débitos a honrar. Em termos técnicos, a liquidaçãovisa à realização do ativo e à satisfação do passivo dapessoa jurídica.

Processa-se a liquidação com a eleição, na forma doestatuto ou contrato social, de um liquidante. Ele passa aser o representante legal da pessoa jurídica em liquidação.Cabe-lhe vender os bens da pessoa jurídica e cobrar osdevedores (realização do ativo), bem como pagar oscredores (satisfação do passivo). Se, após a solução de

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todas as pendências negociais, restarem ainda bens nopatrimônio da pessoa jurídica em liquidação, caberá aoliquidante dar-lhes a destinação cabível. Se a pessoa jurídicaliquidada não tinha fins econômicos, seu acervo líquido serátransferido a uma congênere (CC, arts. 61 e 69). Se os tinha,realiza-se a partilha do acervo líquido remanescente entreos sócios.

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Termina a personalidade da pessoajurídica com o cancelamento de suainscrição no registro próprio, quedeve ser precedido da liquidação.

Na liquidação, resolvem-se aspendências obrigacionais da pessoajurídica, por meio da realização doativo (venda dos bens e cobrança dosdevedores) e satisfação do passivo(pagamento dos credores).

Algumas pessoas jurídicas de direito privado dependemde autorização governamental para funcionar. Asinstituições financeiras, administradoras de consórcio debens duráveis, seguradoras, operadoras de planos privadosde assistência à saúde e outras só podem exercer suasatividades mediante autorização de órgãos do governo(Banco Central, Superintendência de Seguros Privados,

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Agência Nacional de Saúde Complementar etc.). Quando éeste o caso, o registro dos atos constitutivos será precedidoda autorização do Poder Executivo; e a cassação destaimportará a liquidação da pessoa jurídica e subsequentecancelamento do registro.

5. DESCONSIDERAÇÃO DAPERSONALIDADEJURÍDICA

Em decorrência da autonomia patrimonial da pessoajurídica, as obrigações desta não são, em princípio,imputáveis aos seus membros. Como já assentado, osintegrantes da pessoa jurídica (os associados da associação,sócios da sociedade ou instituidor da fundação) nãorespondem, em regra, pelas obrigações desta, porque sãosujeitos de direito distintos, autônomos, inconfundíveis. Sepertenço a um clube (associação), sou devedor dacontribuição destinada à sua manutenção. Se não a pago,posso ser cobrado, inclusive judicialmente, pelo clube. Masnenhum credor do clube pode acionar-me para receber seucrédito. Como não se confundem a pessoa jurídica daassociação e as pessoas de seus membros, os associados, ocredor do clube não é meu credor. Meu patrimônio não podeser objeto de constrição judicial para atender obrigação quenão é minha, mas de outra pessoa, a pessoa jurídica doclube.

O princípio da autonomia patrimonial pode ser

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manipulado na realização de fraudes, principalmente quandoa pessoa jurídica é uma sociedade. Como sujeito de direitodistinto, a pessoa jurídica pode servir de instrumento parafraudar o cumprimento da lei ou de obrigações. Transfere-seà titularidade de uma pessoa jurídica a obrigação que seriada física que a integra ou de outra pessoa jurídica. SeAntonio alienou seu negócio comercial a Benedito e, nocontrato, comprometeu-se a não competir com o adquirente,ele assumiu uma obrigação de não fazer. É uma obrigaçãopessoal dele. Se, em seguida, constituir uma sociedade comCarlos, nomeada AC Comércio Ltda. e com objetocoincidente com o de seu antigo negócio, em razão doprincípio da autonomia patrimonial, não estará sendodescumprida a obrigação contratual. Como a pessoa jurídicada sociedade entre Antonio e Carlos não era parte docontrato com Benedito, e não se confunde com a pessoafísica de um de seus sócios, não haveria que falar eminadimplemento da obrigação de não competir.

Para evitar a manipulação fraudulenta da autonomiapatrimonial das pessoas jurídicas, desenvolveu-se umateoria que aperfeiçoa o instituto: a da desconsideração dapersonalidade jurídica. Sua sistematização deu-se emtrabalho dos anos 1950 do jurista alemão Rolf Serick (1955).Segundo seu principal postulado, sempre que a autonomiapatrimonial das pessoas jurídicas for manipulada para arealização de uma fraude, o juiz pode ignorá-la e imputar a

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obrigação diretamente à pessoa que procurou furtar-se aosseus deveres (Coelho, 1998, 2:31/58). No exemplo dado, seBenedito processa Antonio por perdas e danos decorrentesdo descumprimento da obrigação de não competir, e estealega em sua defesa que quem está competindo é uma outrapessoa, a pessoa jurídica AC Comércio Ltda., umasociedade com personalidade jurídica própria, o juiz,convencendo-se de que o expediente da autonomiapatrimonial foi empregado como meio para fraudar osdireitos do adquirente do negócio comercial, pode ignorar aexistência da pessoa jurídica (desconsiderá-la) e condenarAntonio por descumprimento do contrato.

A teoria da desconsideração da pessoa jurídica (ou dosuperamento da personalidade jurídica) não questiona oprincípio da autonomia patrimonial, que continua válido eeficaz ao estabelecer que, em regra, os membros da pessoajurídica não respondem pelas obrigações desta. Trata-se deaperfeiçoamento da teoria da pessoa jurídica, por meio dacoibição do mau uso de seus fundamentos. Assim, a pessoajurídica desconsiderada não é extinta, liquidada oudissolvida pela desconsideração; não é, igualmente,invalidada ou desfeita. Apenas determinados efeitos de seusatos constitutivos deixam de se produzir episodicamente. Emoutras palavras, a separação patrimonial decorrente daconstituição da pessoa jurídica não será eficaz no episódioda repressão à fraude. Para todos os demais efeitos, a

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constituição da pessoa jurídica é existente, válida eplenamente eficaz. No exemplo acima, o juiz, aodesconsiderar a personalidade jurídica da AC ComércioLtda., no processo que Benedito movia contra Antonio,negou eficácia a um dos efeitos de seu ato constitutivo — aautonomia patrimonial relativamente aos seus sócios. Emrelação, porém, a todos os demais negócios em que aquelasociedade está envolvida, bem assim no tocante às suasrelações com os sócios Antonio e Carlos, e entre eles, aautonomia patrimonial resta incólume. Por isso, diz-se que adesconsideração apenas suspende a eficácia episódica dosatos constitutivos da pessoa jurídica, sem invalidar,desconstituir ou comprometer a eficácia geral desses atos.

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Pela teoria da desconsideração dapersonalidade jurídica, o juiz estáautorizado a ignorar a autonomiapatrimonial da pessoa jurídicasempre que esta é manipulada narealização de fraudes. Ospressupostos escolhidos pelo CódigoCivil para a desconsideração dapessoa jurídica são o desvio definalidade e a confusão patrimonial(CC, art. 50).

Ao contemplar a teoria da desconsideração dapersonalidade jurídica, o Código Civil estabeleceu que oabuso da forma se caracteriza pelo desvio de finalidade oupela confusão patrimonial (CC, art. 50). Desse modo, se osócio envolve a sociedade em negócios estranhos aos seus

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fins ou não separa rigorosamente os patrimônios dela e oseu, verifica-se o abuso da personalidade jurídica dasociedade. Também se caracterizaria o abuso nessashipóteses se, em vez de sócio e sociedade, tratar-se deassociado e associação ou de instituidor e fundação.Também podem abusar da personalidade da pessoa jurídica,desviando sua finalidade ou confundindo patrimônios,independentemente da espécie, os representantes legais ouadministradores dela.

6. FORMAÇÃO DA VONTADE DAS PESSOASJURÍDICAS

Como sujeito de direito personificado, a pessoa jurídicapode praticar os atos jurídicos em geral. Exceto aqueles emrelação aos quais está proibida ou impossibilitada de praticar(por falta de atributos humanos), todos os demais atos enegócios jurídicos podem ser praticados pela pessoajurídica, independentemente de expressa e específicaautorização legal. Se assim é, a lei confere à “vontade” dapessoa jurídica a mesma eficácia liberada à vontade dehomens e mulheres. Quer dizer, os direitos e obrigaçõespodem ser criados, modificados e extintos pela vontade dossujeitos disciplinados pela ordem jurídica, entre os quais seencontram as pessoas morais.

A formação e expressão da vontade pela pessoa jurídicaestá regulada na lei e no respectivo ato constitutivo

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(estatuto ou contrato social). Dependem, evidentemente, dedecisões e manifestações de alguns homens ou mulheres,agindo isolada ou conjuntamente. Considera-se, porexemplo, que uma associação quer adquirir um imóvelquando o seu diretor-presidente, autorizado pela maioria dosassociados formalmente reunidos, após negociar com oproprietário do bem, assina o contrato de compra e venda. Afundação deseja tomar dinheiro emprestado no banco,quando os seus administradores, agindo em conjunto porexigência do estatuto, firmam o contrato de mútuo junto àinstituição financeira. A sociedade pretende rescindir ocontrato de locação sem prazo quando sua diretoraadministrativa comunica ao locador a intenção de restituir obem locado.

A pessoa jurídica deve estruturar-se em órgãosdestinados à formação e expressão de sua vontade. Osórgãos são meros desdobramentos da pessoa jurídica e nãopossuem, eles próprios, personalidade jurídica. Não são nemao menos sujeitos de direito. Os órgãos das pessoasjurídicas não titularizam direitos ou obrigações, na medidaem que são meros centros de referência para o exercício dealgumas funções. Ninguém pode demandar, por exemplo, oconselho de administração da sociedade anônima, aassembleia da associação ou o conselho deliberativo dafundação. Do mesmo modo, o conselho fiscal da associaçãoou da sociedade e a diretoria da fundação não podem

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ingressar em juízo contra quem quer que seja. É claro que osmembros dos órgãos estruturais das pessoas jurídicaspodem defender seus direitos derivados dessa condição. Aconselheira fiscal que for impedida por um diretor de exerceras funções próprias de seu cargo pode demandar a pessoajurídica da associação ou a pessoa física do diretor. Masestarão agindo em nome próprio, como sujeitos de direito.Em nenhum caso, o órgão conselho fiscal litigará com oórgão diretoria.

Cada estatuto (ou contrato social) estrutura os órgãosda respectiva pessoa jurídica, atendendo aos limitestraçados pela lei. Pode variar, por isso, a estruturação decada associação, sociedade ou fundação em particular. Emtermos gerais, porém, costuma existir um órgão derepresentação (ou administração) e um de deliberação.

O órgão de representação costuma ser designadodiretoria e é integrado por um ou mais diretores. Nadaimpede, porém, o emprego de outras designações, comoadministradores, por exemplo. São os membros desse órgãoos assim chamados “representantes legais” da pessoajurídica, encarregados de assinar contratos, cheques, títulose outros documentos em nome dela (a rigor, não arepresentam, mas fazem-na presente nos atos e negóciosjurídicos — Cap. 10, item 6.1). Os atos por eles praticados emnome da pessoa jurídica vinculam-na, desde que exercidosos poderes de representação nos limites definidos pelo

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estatuto ou contrato social (CC, art. 47). De fato, o atoconstitutivo normalmente discrimina as funções (poderes,atribuições ou competência) de cada diretor ouadministrador. Nos atos de menor importância, assim osdefinidos pelo estatuto ou contrato social, a pessoa jurídicaé normalmente representada por um só diretor; nos de maiorimportância, por dois diretores. Se não houver discriminaçãode poderes no estatuto, qualquer diretor isoladamente poderepresentar a pessoa jurídica (CC, art. 1.013; LSA, art. 144). Aobservância desses preceitos do ato constitutivo é condiçãopara considerar-se a pessoa jurídica obrigada.

A administração da pessoa jurídica fica a cargo doórgão de representação, que pode, para desincumbir-sedessa tarefa, atuar de modo coletivo, se assim previsto noestatuto. Se a pessoa jurídica tiver administração coletiva, asdecisões serão tomadas pela maioria de votos dos diretorespresentes à reunião (CC, art. 48).

O órgão de deliberação costuma ser designado, nasassociações e sociedades, por assembleia, e é integradonormalmente por todos os associados ou sócios; nasfundações, é o conselho curador ou deliberativo, com acomposição estabelecida pelo estatuto. É o órgão máximo naestrutura da pessoa jurídica e tem, além da competênciaprivativa estabelecida por lei (CC, art. 59; LSA, art. 122), a deautorizar a prática de atos de grande importância, segundo oque dispuser o estatuto. Em geral, a alienação ou oneração

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de bens imóveis, a contratação de empréstimos acima decerto valor e outras decisões relevantes são reservadasestatutariamente a esse órgão. Trata-se normalmente decolegiado, em que as decisões são tomadas por maioria devotos.

Entre o órgão de representação, de um lado, e o dedeliberação, de outro, pode a estrutura da pessoa jurídicacontar com outros órgãos. Quando conveniente em razão dacomplexidade ou dimensão dos interesses envolvidos, oestatuto ou contrato social pode prever a existência de umórgão deliberativo intermediário, normalmente designado porconselho de administração. Comum, também, é a existênciade órgão de fiscalização, que auxilia os membros do órgão dedeliberação máximo na votação das contas dos diretores eadministradores. Ele é designado conselho fiscal.

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A formação e manifestação davontade da pessoa jurídica resultade deliberações ou ações de homense mulheres, na condição departicipantes de órgãos estruturaisdela. A disciplina dessasdeliberações e ações encontra-se noato constitutivo da pessoa jurídica(estatuto ou contrato social).

Na formação da vontade da pessoa jurídica impera oprincípio majoritário. Em razão dessa regra, a vontade dapessoa jurídica é a da maioria dos membros do órgãoinvestido de competência para formá-la ou expressá-la. Se amaioria dos associados presentes à assembleia do clubeaprova o aumento da contribuição associativa, esta passa aser a vontade da pessoa jurídica, à qual se submetem osdemais associados (os que votaram vencidos e os que não

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compareceram à assembleia).O princípio majoritário é conquista da organização

democrática. Quando se trata de interesse comum adeterminado conjunto de pessoas, a vontade da maioriadestas deve prevalecer sobre a da minoria. A escolha dosgovernantes, em estados democráticos de direito como oBrasil, é feita por sufrágio universal. O candidato escolhidopela maioria dos eleitores será, durante o mandato, ogovernante de todos os cidadãos, inclusive dos que nãovotaram nele. Ao ser transposto do plano da organizaçãopolítica para o das relações internas das pessoas jurídicas dedireito privado, o princípio majoritário altera-se em algunsaspectos. Em primeiro lugar, o estatuto sempre pode limitar apredominância da vontade da maioria, seja estabelecendoque determinadas deliberações, por sua importância, sópoderão ser adotadas pela unanimidade dos integrantes doórgão, seja atribuindo a um deles o poder de veto. Alémdisso, nas pessoas jurídicas de fins econômicos, cadaintegrante participa da deliberação com quantidade devotos, em princípio, proporcional à contribuição dada para ocapital social. Considera-se que a maioria, nesse caso, nãodeve ser fundada nos mesmos princípios da organizaçãodemocrática, mas na dimensão do risco assumido por cadasócio.

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Na formação da vontade da pessoajurídica de fins não econômicos, nãohavendo regra diversa no atoconstitutivo, observa-se o princípiomajoritário. A vontade da pessoajurídica será a da maioria dosmembros do órgão estatutariamentecompetente para formá-la eexpressá-la. Na da pessoa jurídicade fins econômicos prevalece, comoregra, a vontade do sócio ou sóciosque mais investiram na constituiçãodo capital social.

Para encerrar, destaque-se que quem negocia oucontrata com uma pessoa jurídica deve prestar atenção ao

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disposto no estatuto ou contrato social desta. Apenas coma observância dos preceitos estatutários ou contratuais,forma-se e expressa-se validamente a vontade da pessoajurídica. Imagine que o estatuto de uma sociedade anônimaestabelece que nenhum contrato acima de determinado valorpode ser assinado pela diretoria sem a prévia aprovação daassembleia geral. Se um banco celebra com essa sociedadecontrato de financiamento acima de tal valor, e,negligenciando na verificação do exato atendimento dosrequisitos estatutários para o ato, deixa de solicitar cópia daata da assembleia em que a operação teria sido aprovada,considera-se (caso esse órgão não tenha aprovado aoperação) que a vontade da pessoa jurídica não foi regular evalidamente formada e manifestada. Em suma, a sociedadeanônima não se obrigou perante o banco. Quer dizer, eladeverá restituir o valor emprestado com atualizaçãomonetária, para não enriquecer indevidamente, mas osacréscimos contratados não lhe são exigíveis.

7. PESSOAS JURÍDICAS DE DIREITO PRIVADOAs pessoas jurídicas são de direito privado, como visto,

quando se submetem ao regime jurídico de direito privado,que é pautado na igualdade dos sujeitos e autonomia davontade. Não é relevante, assim, para determinar aclassificação da pessoa jurídica a origem dos recursosempregados em sua constituição. Em outros termos, há

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algumas pessoas jurídicas de direito privado constituídaspor recursos públicos (isto é, os pertencentes às pessoasjurídicas de direito público, arrecadados e empregados deacordo com as regras do direito financeiro). De fato, sequalquer um dos entes da Federação — associando-se, ounão, a outro ente ou mesmo a particulares — constitui umapessoa jurídica, ao dotá-la de capital ou patrimônio, empreganela necessariamente recursos públicos.

São pessoas jurídicas de direito privado constituídas,no todo ou em parte, por recursos públicos as empresaspúblicas, as sociedades de economia mista e as fundaçõesgovernamentais. Denominam-se essas pessoas jurídicasestatais. Elas, embora resultantes de recursos públicos(conjugados com recursos de particulares, ou não),submetem-se ao regime jurídico de direito privado. Seuestudo, de qualquer modo, é feito no âmbito do direitoadministrativo. O direito privado ocupa-se das pessoasjurídicas constituídas exclusivamente por recursos departiculares, cabendo ao direito civil o exame dasassociações, fundações e sociedades simples, e ao direitocomercial, o das sociedades empresárias. Das organizaçõesreligiosas e partidos políticos cuidam outros ramos jurídicos,como o constitucional e o eleitoral.

7.1. AssociaçõesA associação é a pessoa jurídica em que se reúnem

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pessoas com objetivos comuns de natureza não econômica.Sempre que um conjunto de pessoas, físicas ou jurídicas,descobrem-se em torno de um mesmo interesse, podemmelhor realizá-lo unindo seus esforços. A constituição deuma associação dá mais força a cada uma delas, porquepropicia a estrutura apta a racionalizar os recursosempregados na realização do objetivo comum. A Associaçãode Amigos de Bairro, por exemplo, destina-se a prover aosseus associados melhoria nas condições de segurançaurbana da região, bem como servir de porta-voz dos anseiosda comunidade perante os órgãos públicos. O ConselhoNacional de Auto-Regulamentação Publicitária (CONAR),outro exemplo, foi constituído por empresas e profissionaisligados à atividade publicitária com o objetivo de julgarem, àluz do código de auto-regulamentação do setor, os anúnciosveiculados em TV, rádio, jornal e outros meios, coibindo apublicidade antiética. Em cada shopping center, terceiroexemplo, os locatários das lojas são contratualmenteobrigados a se filiar à respectiva Associação de Lojistas,incumbida de realizar campanhas promocionais em certasépocas do ano (Natal, Dia das Mães, Dia das Crianças etc.).

Algumas expressões são tradicionalmente empregadasna denominação da associação em função dos seus fins.Assim, é comum chamá-la de instituto, quando tem naturezacultural; de clube, quando seus objetivos são esportivos,sociais ou de lazer; de academia de letras, quando reúne

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escritores; de centro acadêmico, quando congregaestudantes de determinado curso universitário.

7.1.1. Constituição e dissolução

As pessoas que desejam constituir uma associaçãodevem reunir-se em assembleia para expressar essa vontadeconvergente, bem como para votar o estatuto. A ata daassembleia de fundação, assinada pelos presentes, em quese transcreve o estatuto deve ser encaminhada, em duasvias, ao Registro Civil das Pessoas Jurídicas, para início daexistência legal da associação (Lei n. 6.015/73, art. 121). Oestatuto deve obrigatoriamente conter cláusulas sobre osseguintes tópicos: a) denominação, fins e sede daassociação; b) requisitos para a admissão, demissão eexclusão dos associados; c) direitos e deveres dosassociados; d) fontes de recursos para a manutenção daassociação; e) modo de constituição e funcionamento dosórgãos deliberativos; f) condições para a alteração de seusdispositivos; g) dissolução da associação; h) forma degestão administrativa e de aprovação das contas dosadministradores (CC, art. 54); i) o quorum necessário paradeliberação das matérias privativas da assembleia geral — asaber: destituição de administradores e alteração do estatuto— e os critérios para eleição dos administradores (art. 59,parágrafo único).

As condições para se dissolver a associação são as

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estabelecidas pelo estatuto. Normalmente, submete-se adeliberação dissolutória à aprovação de expressivaquantidade de associados (2/3, por exemplo), reunidos emassembleia convocada especificamente para tratar desseassunto. Deliberada a dissolução, segue-se a liquidação e,em seguida, o cancelamento do registro.

Constitui-se a associação pelainscrição, no Registro Civil dasPessoas Jurídicas, de duas vias doestatuto, normalmente transcrito naata da assembleia de fundaçãoassinada pelos associados que acriaram. A dissolução é aprovadapelos associados, de acordo com asnormas estatutárias.

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A lei regula a destinação do acervo patrimonialresmanescente da liquidação. Se a participação dosassociados lhe assegurava quota ou fração ideal nopatrimônio da associação, o acervo remanescente seráinicialmente destinado à restituição do valorcorrespondente. Não sendo este o caso, ou atendidos osdireitos dos associados, o patrimônio que remanescer serádestinado a outra entidade de fins não econômicos. Abeneficiária será a designada pelo estatuto ou, em caso deomissão deste, uma instituição municipal, estadual oufederal, de fins iguais ou semelhantes, escolhida pelosassociados. Não existindo no Município, Estado, DistritoFederal ou Território em que se encontra sediada a pessoajurídica dissolvida nenhuma entidade em condições de ser adestinatária do seu acervo patrimonial, este pertencerá aoEstado da sede da associação (ou ao Distrito Federal, seneste for sediada; ou à União, se a sede se localizar emTerritório). Em qualquer caso, poderão os associados, antesde destinar o acervo remanescente à entidade beneficiária,ressarcir-se das contribuições que tiverem feito aopatrimônio da associação (CC, art. 61 e seus parágrafos).

7.1.2. Direitos e deveres dos associados

É direito constitucionalmente assegurado o da liberdadede associação. Ninguém pode, assim, ser obrigado a seassociar ou a permanecer associado (CF, art. 5º, XX). O

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ingresso numa associação, portanto, é ato de plenaliberdade do associado. Mas, ao entrar, por sua vontade,numa associação, a pessoa não só passa a titularizar osdireitos de associado como também os deveres. Porexemplo, passa a usufruir dos serviços prestados pelaassociação exclusivamente a seus associados, mas assume,por outro lado, a obrigação de pagar as contribuiçõesnecessárias à manutenção da pessoa jurídica, bem como a derespeitar o estatuto e obedecê-lo. Não há, note-se, entre osassociados, nenhum direito ou obrigação recíprocos (CC,art. 53, parágrafo único), mas somente entre eles e aassociação.

Os direitos e deveres dos associados estão definidos noestatuto. Este pode reservar para uma ou mais categorias deassociados certas vantagens especiais. É comum, porexemplo, nos estatutos dos clubes, encontrar a classificaçãodos associados em fundadores, efetivos, honorários,remidos etc. Na verdade, a cada categoria corresponde umconjunto de vantagens (dispensa do pagamento dacontribuição associativa ou assento permanente noconselho diretor) ou de restrições (inexistência do direito devoto nas assembleias), especificadas aquelas e estas no atoconstitutivo. Entre os associados da mesma categoria,porém, não pode haver discriminação; todos titularizam,perante a associação, os mesmos direitos (CC, art. 55).

Nenhum associado pode ser impedido de exercer os

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direitos que titulariza em razão de sua qualidade, a não sernos casos especificados pelo estatuto (CC, art. 58). Assim,estabelecendo este que associados de todas as categoriastêm direito de voto na assembleia, a mesa diretora dostrabalhos não pode negar-se a receber a manifestaçãoregular e tempestiva de um deles presente ao evento. Mas,se o estatuto convenciona que só pode exercer o direito devoto na assembleia o associado que estiver em dia com opagamento da contribuição associativa, é claro que a mesadiretora dos trabalhos pode, com esse fundamento,desconsiderar o voto de um membro inadimplente. Dequalquer forma, o associado pode socorrer-se do PoderJudiciário para ver respeitados, pela associação ou por seusórgãos, os direitos estatutários que titulariza.

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À qualidade de associadocorresponde um conjunto de direitose deveres perante a associação,definidos e delimitados peloestatuto. O associado podeassegurar o exercício de seusdireitos estatutários, inclusive pormeio de medida judicial. E pode serpenalizado, em alguns casos, atémesmo com a expulsão daassociação, se não cumprir seusdeveres estatutários.

O associado que descumpre um dever estatutário podesofrer as sanções especificadas no estatuto, quenormalmente variam da simples advertência (nas infrações

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menos graves) à suspensão temporária e mesmo expulsão(nas mais graves). Para assegurar a harmonia entre osmembros da associação, a lei prevê que cabe a expulsão (ouexclusão, mesma coisa) do associado que infringe regra deconvivência estabelecida pela pessoa jurídica. Em qualquercaso, porém, a expulsão só se admite havendo justa causa egarantido o direito ao contraditório e ampla defesa (CF, art.5º, LV; CC, art. 57). O procedimento para imposição dessa ede outras penalidades ao associado deve ser disciplinado noestatuto.

Em princípio, a qualidade de associado (com os direitose deveres que lhe correspondem) é intransferível. Ela não setransfere nem mesmo se a participação na pessoa jurídicaimporta a titularidade de quota ou fração ideal do patrimôniosocial. Para que seja transferível a qualidade de associado énecessário que o estatuto estabeleça a transferibilidade,fixando as condições em que pode ocorrer (CC, art. 56 eparágrafo único). O título patrimonial do clube, por exemplo,só é transmissível, seja por ato entre vivos ou por morte, seo estatuto assim prevê e nas condições que dispuser.

7.1.3. Assembleia geral dos associados

A assembleia dos associados é o órgão de deliberaçãomáximo da associação. Trata-se de uma reunião sujeita adiversas formalidades, para se considerarem válidos ostrabalhos e deliberações havidas. A competência da

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assembleia dos associados é estabelecida no estatuto, quecostuma reservar-lhe a apreciação das matérias maisrelevantes. A lei, porém, com o objetivo de tutelardeterminados interesses dos associados e da própriaassociação, lista os assuntos acerca dos quais apenas aassembleia geral pode deliberar. O estatuto não pode atribuira discussão e votação desses temas a outros órgãos daestrutura da associação. Aliás, nem os associados reunidosem assembleia podem delegar a competência legalmentedefinida como privativa desse órgão.

Desse modo, compete privativamente à assembleia geraldestituir os membros do órgão de representação daassociação, isto é, seus administradores e alterar o estatuto.O quórum de instalação e de deliberação bem como oscritérios para a eleição dos administradores devem serdisciplinados em cláusulas estatutárias (CC, art. 59 eparágrafo único).

A assembleia é, assim, o órgão em que os associadosexercem alguns de seus principais direitos (ou seja, osdireitos à voz e voto na definição de regras fundamentais dofuncionamento da associação). Para assegurá-los, a leiprescreve que a convocação da assembleia geral, bem comodos demais órgãos deliberativos, poderá ser feita por 1/5 dosassociados, mesmo que não prevista especificamente essacompetência no estatuto (CC, art. 60). A alteração doestatuto e a destituição dos administradores são matérias

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que, em vista da sua enorme importância, só a assembleiageral tem competência para votar. Nenhum estatuto deassociação pode atribuir a apreciação de tais matérias aoutro órgão deliberativo, como o conselho de administraçãoou consultivo, por exemplo. O estatuto deve estabelecer oquorum para a votação pela assembleia geral de matéria desua competência privativa (art. 59 e parágrafo único).

7.2. SociedadesAs sociedades são pessoas jurídicas de fins

econômicos. O que aproxima os sócios é unicamente oobjetivo de fazerem dinheiro por meio da exploração emconjunto de uma atividade econômica. Nenhuma outra razãoinfluencia o ânimo de manter a sociedade (a affectiosocietatis).

Quando duas ou mais pessoas identificam aoportunidade de ganhar dinheiro fazendo algo juntas, nãoprecisam necessariamente constituir uma sociedade. Háoutros instrumentos legais, de natureza contratual, quepossibilitam alcançar esse mesmo desiderato, mas sem asimplicações específicas da criação de uma pessoa jurídica.Imagine que Antonio e Benedito são arquitetos compendores diferentes. Antonio é particularmente feliz nosprojetos que faz, mas se atrapalha todo ao tentar gerenciarsua execução, enquanto Benedito não é criativo, mas temgrande capacidade gerencial. Ao se conhecerem, percebem

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que podem complementar, com suas habilidades específicas,o trabalho um do outro. Não precisam, de imediato, formaruma sociedade. Aliás, não devem. Convém que comecemdesenvolvendo alguns serviços em parceria, masconservando cada qual seu próprio escritório de arquitetura.Estarão já atingindo o objetivo de fazer dinheiro com aexploração de atividades conjuntas, mas ainda não serãointegrantes de uma sociedade. Se não frutificar a atuaçãoconjunta, não terão perdido os investimentos reclamadospela criação da pessoa jurídica, nem precisarão dissolvê-la eadministrar os potenciais conflitos despertados pelanecessidade de partilhar os bens sociais. Na medida, porém,em que veem frutificar a atuação conjunta, conhecem-semelhor, em suas virtudes e defeitos, e passam a nutrirrecíproca confiança, podem, com vistas à racionalização dedespesas e ampliação das oportunidades de negócio, formaruma sociedade de arquitetos.

As sociedades, como já dito, podem ser empresárias ousimples, de acordo com a forma como é organizada aexploração da atividade econômica. Se esta é explorada pelaforma empresarial, isto é, com a articulação dos quatrofatores de produção (capital, mão de obra, insumo etecnologia), considera-se empresária a pessoa jurídica dasociedade. Banco, supermercado, hospital, concessionáriade revenda de automóveis, empresa de transporte aéreo eoutros tantos empreendimentos, quando explorados por

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pessoa jurídica, são sociedades empresárias. Quandoausentes os elementos caracterizadores da empresa, porém,a sociedade é simples. As atividades econômicas denatureza intelectual, como as artísticas, científicas ouliterárias, ainda que exercidas em sociedade com o concursode colaboradores, não se consideram empresarialmenteexploradas (CC, art. 966, parágrafo único). No exemplo acima,Antonio e Benedito constituem uma sociedade simples, jáque o objeto social é a exploração de atividade econômica denatureza intelectual.

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As sociedades podem ser de duasespécies: simples ou empresárias. Assimples exploram atividadeeconômica desprovida deempresarialidade. Já as empresáriasorganizam a exploração da atividadeeconômica como empresa, isto é, pormeio da articulação dos fatores deprodução: capital, mão de obra,insumo e tecnologia.

Como também antes mencionado, as sociedadesempresárias são estudadas pelo direito comercial (Coelho,1998, v. 2). O direito civil ocupa-se somente das sociedadessimples, e, neste Curso, serão examinadas junto com oscontratos (v. 3).

7.3. Fundações

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Fundação é a pessoa jurídica resultante da afetação deum patrimônio a determinada finalidade. Ela não possui,propriamente, membros ou integrantes, já que não resulta daunião de esforços pessoais para atingir certo objetivo. Oinstituidor, pessoa física ou jurídica, destaca de seupatrimônio alguns bens e vincula a administração e os frutosdesses bens à realização de objetivos que gostaria de verrealizados. Essa vontade do instituidor, de afetar aquelesbens aos fins eleitos, agrega-se indelevelmente à fundação,mesmo após sua morte (se pessoa física) ou dissolução (sepessoa jurídica). Mas o instituidor não é membro dafundação como são os associados em relação à associaçãoou os sócios em relação à sociedade.

Quando o advogado e jornalista Cásper Líbero faleceuem acidente aéreo, em 1943, em razão de disposiçãotestamentária, bens de seu patrimônio foram destinados àinstituição da “Fundação Cásper Líbero”, cujos objetivossão os de manter veículos jornalísticos (TV, rádio, jornal,internete) e uma faculdade de comunicação. Da mesmaforma, quando, nos anos 1970, o Estado de São Pauloinstituiu a “Fundação Prefeito Faria Lima”, manifestou, pormeio de lei estadual, a vontade de vincular a administraçãodos bens dotados a essa pessoa jurídica à prestação dediversos serviços de suporte aos municípios paulistas.Igualmente, quando, em 1986, diversas pessoaspreocupadas em defender o remanescente da Mata Atlântica

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instituíram a “Fundação S.O.S. Mata Atlântica”, vincularamos bens com os quais contribuíram para a formação dessapessoa jurídica à realização daquela finalidade depreservação ambiental. Veja que nos três casos trazidos aexemplo, como de resto em qualquer outra fundação, oinstituidor (ou instituidores), pessoa física ou jurídica, alienade seu patrimônio alguns bens e os transfere para a pessoajurídica em constituição. Dessa forma, não pertencendo maisao patrimônio do instituidor, os bens em questão ficamvinculados à realização das finalidades da fundação. Afundação, assim, resulta desse ato de afetação de certosbens aos fins definidos pelo instituidor.

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Ao contrário das associações esociedades, em que pessoas comobjetivos comuns unem seus esforçospara alcançá-los, as fundaçõesresultam da afetação, por vontade deseu instituidor, de certos bens àrealização de finalidades nãoeconômicas.

Os fins da fundação são sempre não econômicos.Especificamente, ela só pode ter finalidade religiosa, moral,cultural ou de assistência (CC, art. 62, parágrafo único). Issonão significa, porém, que as fundações não podem ter lucrocom as atividades que desenvolvem. Pelo contrário. Naverdade, a fundação normalmente só poderá cumprir seusobjetivos se gerar receita líquida com a administração dosbens de seu patrimônio. Para bem situar a questão, deve-se,na verdade, distinguir entre o lucro como fim e como meio.Sem lucro, nenhuma atividade é promissora no sistema

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capitalista. As sociedades, por buscarem fins econômicos,têm o lucro como fim, ao passo que as associações efundações, por buscarem fins não econômicos, podem ter olucro como meio. A Igreja Católica, ao instituir, em 1946, a“Fundação São Paulo”, mantenedora da PontifíciaUniversidade Católica de São Paulo (PUCSP), não tinha oobjetivo de lucrar com a prestação de serviços de educaçãosuperior. A finalidade básica da iniciativa era a de buscar aformação de profissionais orientada pela visão católica domundo. Mas, no sistema capitalista de produção, não épossível manter qualquer instituição de ensino sem lucro,isto é, sem que o total recebido em razão do pagamento dastaxas escolares pelos alunos supere os gastos com aprestação do serviço. Ou seja, sempre que não for possível àfundação cumprir sua finalidade não econômica sem se valerdo lucro como meio, nada impede que ela explore atividadelucrativa compatível com seus objetivos.

A vontade do instituidor, manifestada por uma formaespecífica, é que institui a fundação. Essa vontade aacompanhará por toda a sua existência, procurando a leipreservá-la por meio de diversos preceitos, como, porexemplo, a vedação de alterações estatutárias quedesvirtuem as suas finalidades declaradas em seu atoinstitucional (item 7.3.1) e a fiscalização pelo MinistérioPúblico (item 7.3.2).

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7.3.1. Instituição da fundação

A instituição da fundação é feita por escritura pública(ato entre vivos) ou por testamento (ato de efeitoscondicionados à morte do testador). Por qualquer umadessas formas, o instituidor discrimina os bens livres de seupatrimônio que deseja transferir para a pessoa jurídica eespecifica o fim a que a dotação se destina. Pode, também,se quiser, estabelecer como a fundação deve seradministrada, para que os objetivos especificados secumpram. No documento de instituição, o instituidor podeestipular as bases do funcionamento da fundação e deveindicar a pessoa ou pessoas encarregadas de proceder àformação do novo sujeito de direito. Será daresponsabilidade delas providenciar a inscrição do estatutoda fundação no Registro Civil das Pessoas Jurídicas, bemcomo o cadastro desta no CNPJ e a sua matrícula no INSS.

O estatuto da fundação pode ser estabelecido já peloinstituidor, o que é o mais comum. Não o fazendo, porém,caberá sua elaboração à pessoa ou pessoas encarregadaspor ele de viabilizar a formação da nova pessoa jurídica,obedecidas as bases constantes do instrumento deinstituição. O estatuto deve conter cláusulas sobre: a) adenominação, os fins e a sede da fundação; b) o prazo deduração; c) o modo como a fundação é administrada erepresentada; d) os órgãos da estrutura fundacional, com asrespectivas composições e competências. Sem esses dados,

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não será suscetível de registro (Lei n. 6.015/73, art. 120).

Institui-se a fundação com ainscrição, no Registro Civil dasPessoas Jurídicas, do seu estatuto,elaborado pelo próprio instituidorou pela pessoa por ele designadapara viabilizar a constituição danova pessoa jurídica. A alteração doestatuto não pode contrariar oudesvirtuar as finalidades dafundação.

Para a alteração do estatuto da fundação, é necessário ovoto de 2/3 dos membros do seu órgão de representação,além do atendimento de outras condições eventualmenteestabelecidas no próprio estatuto. Veda a lei, porém,

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qualquer mudança estatutária que contrarie ou desvirtue asfinalidades da fundação, uma vez mais garantindo o respeitoà vontade do instituidor.

Quando forem insuficientes os bens dotados peloinstituidor, para a criação da fundação, determina a lei quesejam incorporados em outra fundação de finalidade igual ousemelhante, a menos que o instituidor tenha disposto, naescritura pública ou no testamento, de maneira diversa —respeitando-se, também aqui, a vontade da pessoa quepretendia instituí-la (CC, art. 63).

7.3.2. Fiscalização do Ministério Público

Por princípio, deve-se respeitar a vontade do instituidorda fundação. Ele, ao criá-la, despojou-se de bens para veratendidas determinadas finalidades. Não se sabe se os teriaalienado de seu patrimônio para fins diversos; presume-seque não. Enquanto viver o instituidor e mesmo após suamorte, procura a lei garantir que a vontade dele seja semprerespeitada. Trata-se de respeito ao direito de propriedade emtermos absolutos; um resquício da visão individualistapresente nos códigos oitocentistas, cuja pertinência àrealidade econômica e social dos nossos tempos é altamentequestionável, inclusive sob o ponto de vista daconstitucionalidade.

Com esse espírito, porém, incumbiu a lei ao MinistérioPúblico velar pelas fundações, inclusive no sentido de

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fiscalizar o respeito à vontade do instituidor. Isto é, uma vezfixadas as finalidades da pessoa jurídica, os seus bensdevem ser administrados tendo em vista unicamente arealização delas. Se a administração da fundação estiversendo direcionada à realização de fins diversos dosindicados pelo instituidor, o Ministério Público deve adotaras providências para coibição do desvio de finalidades. Oadministrador será responsabilizado pelos prejuízosmateriais, se houver, e morais. Note-se que, mesmo nãoestando este se locupletando, ou incorrendo emirregularidade, e ainda que altruístas as finalidades para asquais redirecionou a fundação, o Ministério Público nãopode deixar de coibir a iniciativa, porque sua função é a deproteger a vontade manifestada pelo instituidor.

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O Ministério Público tem aincumbência legal de velar pelasfundações, fiscalizando se a vontadedo instituidor está sendo respeitadapelos administradores do patrimôniofundacional.

Qualquer alteração no estatuto da fundação depende deaprovação do Ministério Público. Se a alteração não tiversido aprovada pela unanimidade dos membros do órgão derepresentação da fundação, os que votaram vencidospoderão impugná-la (CC, art. 68). Concedida a autorizaçãopara a mudança no estatuto, será o ato levado ao RegistroCivil das Pessoas Jurídicas para que comece a viger.Indeferida a autorização pelo Ministério Público, pode afundação recorrer ao Judiciário. Se o juiz considerar que nãoimporta a alteração nenhum desrespeito à vontade doinstituidor, sua decisão suprirá a autorização negada (CC,art. 67, III).

O Ministério Público é competente, também, para

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promover a extinção da fundação, sempre que tornadailícita, impossível ou inútil sua finalidade, ou se vencido oprazo de duração. Extinta, seu patrimônio deverá serincorporado a outra pessoa jurídica dessa espécie, comfinalidade igual ou semelhante, designada pelo juiz. Aextinção mediante incorporação em fundação congênerepode também ser decretada pelo juiz a pedido de qualquerinteressado. Atente-se que tal extinção é um modoespecífico de encerramento de sua personalidade jurídica. Ofim da personificação da fundação pode decorrer, também,da dissolução e liquidação — como ocorre com asassociações e sociedades —, mas desde que haja específicaprevisão no estatuto (CC, art. 69).

8. ORGANIZAÇÕES NÃO GOVERNAMENTAIS (ONGS)Ao longo do século XX, o estado capitalista passou a

desempenhar novas funções. Anteriormente, como reflexodas concepções liberais, limitava-se a zelar pela ordempública, administrar a justiça, cuidar das relaçõesinternacionais, promover a guerra, selar a paz, assegurar odesenvolvimento do comércio e indústria e algumas outrasfunções de natureza “policial”. A ideia de que o estadodeveria garantir ao seu povo saúde, educação e previdênciasocial soaria deveras estranha aos cidadãos de meados doséculo XIX. Foi o fortalecimento e difusão de movimentosde inspiração marxista — expressos, inclusive, na

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organização de diversos estados socialistas, o primeiro apartir da Revolução Russa de 1917 — que forçou o estadocapitalista a assumir o perfil provedor. Até o fim da guerrafria, diante do confronto entre os dois grandes modelos deorganização econômica, política e social, o capitalismosustentou o estado provedor como pôde. Naturalmente, nosseus países centrais fê-lo com mais recursos e eficiência doque nos periféricos. Com a desarticulação do modelosocialista, historicamente simbolizada pela queda do muro deBerlim em 1989, desapareceu o confronto, e uma irrefreávelvaga reliberalizante se espalhou pelo planeta. Um pouco pelaperda de sua capacidade econômica e um pouco pelo fim dorisco imediato de enfrentamento, o estado capitalista temprocurado desvencilhar-se, o quanto pode, das funções nãopoliciais.

Nesse cenário, surgem as ONGs. Elas costumamapresentar-se como produto da articulação do “terceirosetor”, conceito político de remoto enraizamentogramsciniano, que evoca o distanciamento de iniciativas dasociedade civil tanto em relação ao estado (“primeiro setor”)como ao mercado (“segundo setor”). As ONGs seconsideram, em outras palavras, entidades organizadas porparticulares para atendimento de interesse público. Já que oestado não demonstra mais capacidade ou disposição paraprover saúde, educação, assistência e previdência social nosmoldes esperados pelos usuários desses serviços, grupos

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de cidadãos voluntários podem organizar-se com a intençãode atender parcialmente a expectativa, sem o intuito de lucrarcom a atividade.

As Organizações NãoGovernamentais (ONGs) sãoentidades organizadas porparticulares cujo objeto atende aointeresse público. Constituem-secomo associações ou fundações, jáque não têm finalidades econômicas.

Do ponto de vista jurídico, a ONG deve constituir-secomo associação ou fundação. Não se admite que umasociedade seja a forma da ONG, tendo em vista a finalidadeeconômica inerente a essa espécie de pessoa jurídica. Naconstituição e funcionamento da ONG, observam-se asnormas aplicáveis a qualquer outra pessoa jurídica da mesmaespécie. Não há, no plano do direito civil, nenhuma

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especificidade. Mas, para atuar em parceria com o PoderPúblico, a ONG deve qualificar-se junto ao Ministério daJustiça como “organização da sociedade civil de interessepúblico” (OSCIP), nos termos da Lei n. 9.790/99. Ainexistência de finalidade lucrativa, para essa qualificação daONG, prova-se pela aplicação exclusivamente naconsecução de seu objetivo da totalidade da receita geradapor suas atividades, proibida a distribuição de excedentesoperacionais, brutos ou líquidos, dividendos, bonificações,participações ou parcelas do patrimônio a seus integrantes(associados), membros de órgãos de deliberação(conselheiros) ou representação (diretores), empregados oudoadores.

9. DIREITOS DA PERSONALIDADE DA PESSOAJURÍDICA

Os direitos que a pessoa física necessariamentetitulariza — à vida, imagem, honra, nome, corpo e outros —costumam ser catalogados como direitos da personalidade(Cap. 7, item 4). São direitos de tal forma ligados à pessoanatural que os titulariza que se poderia considerar acondição de ser humano como indispensável para ostentá-los e exercê-los. Não é assim, porém. A lei dispõe que aproteção dos direitos da personalidade se aplica, no quecouber, às pessoas jurídicas (CC, art. 52).

Certos direitos da personalidade decididamente não

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cabem nas pessoas morais. O direito à vida ou ao corpo sãoexclusividades das pessoas humanas, pelo simples fato deque somente elas vivem e são corporificadas. Não épossível, nesse campo, nenhum esforço de extensãoconceitual. Não se pode, por exemplo, afirmar que à vidahumana corresponderia, na pessoa jurídica, o tempo entre ainscrição dos atos constitutivos no órgão próprio e ocancelamento do registro, com o intuito de sustentar umpretenso direito de a pessoa jurídica não ser dissolvida ouextinta. Não se pode, também, considerar que ao corpohumano corresponderiam, na pessoa jurídica, osdocumentos de constituição, com o objetivo de reclamar arestituição do original e de todas as cópias, após ocancelamento do registro.

Os direitos da personalidade que cabem nas pessoasjurídicas têm por objeto o nome, imagem, vida privada ehonra.

Em relação ao nome, deve-se, inicialmente, distinguirsua proteção enquanto direito à personalidade de outrasregras de tutela. A designação adotada por uma sociedadeempresária (nome empresarial) está, com efeito, protegidacontra imitações. A lei estabelece que o registro dasociedade empresária na Junta Comercial assegura-lhe o usoexclusivo do nome nos limites do respectivo Estado (CC, art.1.166), admitida a extensão da proteção, a pedido delaperante as Juntas Comerciais dos demais Estados da

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Federação, com vistas a assegurar a exclusividade do usoem âmbito nacional (Coelho, 1998, 2:181/182). Se, em SantaCatarina, uma sociedade empresária adota a designação deIndústria Florianópolis S.A., nenhuma outra, naqueleEstado, poderá empregar o núcleo de identificação dessadenominação (“Florianópolis”) no seu nome empresarial. Aproteção do direito à exclusividade de uso do nomeempresarial registrado não se confunde com a do mesmonome enquanto direito da personalidade.

Quando a lei estende ao nome da pessoa jurídica aproteção dos direitos da personalidade, isso significa queninguém pode inseri-lo em publicações ou representaçõesque a exponham ao desprezo público, ainda que não hajaintenção difamatória (CC, art. 17), nem usá-lo, semautorização, em propaganda comercial (CC, art. 18). Note queos casos abrangidos pela proteção do nome como direito dapersonalidade são diversos dos referidos pela tutela dodireito à exclusividade de seu uso. Não se confunde o nomeda pessoa jurídica com as marcas de sua titularidade. Seaquele pode ser visto como um atributo da pessoa jurídicamerecedor de classificação entre os direitosextrapatrimoniais, as marcas, a seu turno, são inegavelmentebens industriais integrantes do patrimônio dela e sujeitos àproteção específica da Lei de Propriedade Intelectual (Lei n.9.729/96).

Em relação ao direito à imagem, deve-se inicialmente

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considerar que é extensível à pessoa jurídica a proteçãocomo direito da personalidade tanto da imagem-retratocomo da imagem-atributo. Desse modo, a pessoa jurídicapode impedir que representações de espaços físicos que aidentificam de modo particular sejam usadas contra os seusinteresses. Uma associação beneficente pode obstar, porexemplo, a divulgação pela imprensa da fotografia de suasede administrativa, na qual ela é claramente identificada, sea reprodução ocorrer em contexto prejudicial aos seusinteresses e desde que inexistente qualquer relevânciajornalística. Também pode a pessoa jurídica famosa impedirque o conjunto de atributos a ela associado pelo imagináriopopular seja explorado por terceiros. A fundação que leva onome de famoso desportista e é respeitada pelo trabalho quedesenvolve junto a crianças carentes tem direito patrimonialsobre sua imagem-atributo. Imagine-se que adquira,regularmente, para as crianças que atende roupas dedeterminada marca. O fabricante dessas roupas não podefazer propaganda de seus produtos afirmando que afundação os adquire sem a autorização desta. Mesmo sendoverdade o fato veiculado, cabe impedir tal propaganda, poisestá o fabricante explorando comercialmente a imagem-atributo da fundação.

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A proteção dos direitos dapersonalidade aplica-se, no quecouber, à pessoa jurídica. Tal comoas pessoas naturais, as associações,fundações e sociedades têm direitode impedir agravos ao seu nome,privacidade, imagem e honra, bemcomo de serem indenizadas pelosprejuízos materiais e moraisdecorrentes.

A pessoa jurídica tem também direito à privacidade. Asinformações não públicas a seu respeito que ela não desejaver difundidas integram sua vida privada. Asmovimentações em suas contas bancárias, as planilhas decusto de seus produtos ou serviços, as perdas ou ganhosespecíficos das promoções que realiza são exemplos deinformações que normalmente uma sociedade não quer que

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sejam conhecidas.O direito à proteção da privacidade é mais abrangente

que o relacionado à repressão da concorrência desleal porexploração de segredo de empresa. A pessoa jurídica podeimpedir a difusão de informações não públicas que reputaprivadas, mesmo que não exista exploração econômica ouvantagem de qualquer espécie por terceiros.

Em relação ao direito à honra, restringe-se a proteção àobjetiva (reputação), já que a pessoa jurídica, desprovida decorpo e seus humores, não consegue nutrir sentimentos deautoestima. Confunde-se, por conseguinte, com a proteção àimagem-atributo como direito extrapatrimonial. Para fins deharmonizar a convivência em sociedade, considera-se que asopiniões negativas e as narrativas de fatos que depreciam areputação da pessoa jurídica (salvo dos que configuramcrime) não podem ser externados, ainda que fundamentadasaquelas e verdadeiras estas.

O protesto indevido de títulos sacados contra pessoajurídica tem sido considerado, pela jurisprudência, comolesão ao seu direito à honra objetiva. De fato, o protestoindevido importa agravo à reputação da pessoa que constacomo protestada, já que sugere impontualidade,desonestidade ou, pelo menos, dificuldade de honrarcompromissos. Nesses casos, a pessoa jurídica tem direitode ser indenizada não somente pelos prejuízos materiais quetiver sofrido (inclusive com o abalo de seu crédito), como

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também pelos morais, pelos riscos a que sua reputação ficouexposta pelo protesto indevido.

Na proteção dos direitos da personalidade da pessoajurídica devem ser observados os mesmos limites apontadosem relação à pessoa física. Quer dizer, o interesse privadodaquela com relação ao seu nome, imagem, privacidade ehonra não prevalece sobre interesses de maior envergadura,assim os difusos, coletivos e públicos. Por exemplo, aliberdade de imprensa, que é um valor de interesse público,não pode ser restringida pelo interesse individual da pessoajurídica em preservar sua imagem; o direito constitucional doEstado de cobrar tributos sobrepõe-se ao direito àprivacidade da pessoa jurídica concernente à movimentaçãode suas contas bancárias; na narração de fatos queconfiguram crime, a verdade da narrativa tem primazia sobreos prejuízos à honra da pessoa jurídica etc.

10. DOMICÍLIO DA PESSOA JURÍDICAAs pessoas jurídicas têm domicílio onde exercem seus

direitos e respondem por suas obrigações.Quando se trata de pessoa jurídica de direito privado, o

domicílio é chamado também de sede. O endereçocorrespondente deve ser mencionado no respectivo atoconstitutivo (estatuto ou contrato social) com clareza, demodo que qualquer interessado possa conhecê-lo. Odomicílio pode ser também o lugar em que costuma

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funcionar o seu órgão de representação (diretoria ouadministração). Em caso de irregularidade do registro, essecritério legal norteia a definição do domicílio. Desse modo,se uma associação mudou-se do escritório em que mantinhaa sede para outro local, mas não atualizou seu domicílio noRegistro Civil das Pessoas Jurídicas, considera-sedomiciliada tanto no mencionado em seu estatuto quantonaquele onde funciona sua diretoria.

Se a pessoa jurídica for estrangeira porque tem a sedeno exterior, considera-se domiciliada no lugar em queestabeleceu, no território nacional, sua agência ou escritório.

Tal como o domicílio da pessoa natural, o das pessoasjurídicas de direito privado também pode ser mudado aqualquer tempo por simples ato de vontade. A formaadequada para a mudança é a alteração do estatuto ou docontrato social, na cláusula em que menciona a sede. Dessemodo, a mudança de domicílio depende do atendimento dasmesmas condições para qualquer outra reforma estatutáriaou contratual. Se for uma fundação, por exemplo, énecessária a autorização do Ministério Público; se for umaassociação, deliberação da assembleia geral etc.

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O domicílio da pessoa jurídica étambém chamado de sede. Oendereço em que se situa deve sermencionado, quando for o caso, norespectivo ato constitutivo.

Em relação a algumas pessoas jurídicas de direitopúblico, a lei estabelece critério para a definição dodomicílio, mas não o especifica. De fato, ao dispor que odomicílio da União é o Distrito Federal, e o dos Estados eTerritórios, as respectivas capitais (CC, art. 75, I e II), a leinão está situando suficientemente o domicílio desses entesfederativos. O Distrito Federal e as capitais de Estados eTerritórios são lugares extensos, em que além dasrepartições federais e estaduais domiciliam-se muitas outraspessoas físicas ou jurídicas. Trata-se de meros critérios delocalização do domicílio da União, Estados e Territórios.Quer dizer, a União considera-se domiciliada em qualquer desuas repartições situadas no Distrito Federal e os Estados eTerritórios consideram-se domiciliados em qualquer de seusórgãos estabelecidos nas respectivas capitais. A repartição

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federal da União situada em São Paulo, por exemplo, nãopode ser considerada seu domicílio, assim como a do Estadodo Rio de Janeiro situada no município de Cabo Frio tambémnão é domicílio dele. O critério para definição do domicílio doMunicípio aponta para o lugar onde funcione aadministração municipal, esteja esta concentrada num únicosítio ou dispersa em vários pontos da cidade (CC, art. 75, III).

A dificuldade na aplicação dos critérios legais referentesaos domicílios daqueles entes federativos não tem, contudo,maior relevância. Quem demanda, por exemplo, umaautoridade federal ou a própria União deve observar asregras de competência fixadas nas normas, constitucionais elegais, de processo civil, sendo irrelevantes osdesdobramentos das normas jurídicas sobre domicílio.

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Capítulo 9

OS BENS1. BENS E COISAS

Bem é tudo o que pode ser pecuniariamente estimável,isto é, precificado, avaliado em dinheiro, traduzido emquantia monetária. Consideram-se bens, assim, a casa,automóvel, obra de arte, computador e todos os demaisobjetos destinados a atender às mais variadas necessidadeshumanas, e que, por essa razão, têm valor para homens emulheres. São bens, igualmente, animais, energia elétrica,imagens fotográficas, dinheiro e outras coisas cujavalorização pode ser quantificada. Informações, tecnologia,segredos de empresa, cadastro e outros dadosmetodologicamente pesquisados ou organizados são bensde significativo valor econômico (Gallo, 2000:158). Ademais,também são juridicamente bens quaisquer direitos passíveisde estimação econômica, como os creditícios, obrigacionais,autorais, relativos à imagem-atributo de pessoa famosa eoutros. Por fim, incluem-se no conceito de bens as

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participações societárias (ações de sociedade anônima ouquotas de sociedade limitada) e os valores mobiliários(debêntures, partes beneficiárias, bônus de subscrição ecommercial papers).

Define-se coisa, em princípio, como tudo o que existealém dos sujeitos de direito. Os bens são as coisas valiosaspara homens e mulheres e suscetíveis de precificação, deavaliação pecuniária (para outras definições de “coisa” e“bem”, mais ou menos diferentes da apresentada aqui, verLopes, 1962:354; Monteiro, 2001:144/145; Diniz,2002:275/276). O ar atmosférico, por exemplo, é uma coisa,mas não um bem; pelo menos por enquanto, em que estáabundantemente disponível a todos os homens e mulheres eninguém o disputa. O solo lunar e o do planeta Marte são,atualmente, coisas; no futuro, quando esses corpos celestesforem colonizados, certamente passarão a ter valoreconômico e serão, então, bens.

Lembre-se que nada possui valor por si mesmo. O ouronão vale, em si, nem mais nem menos que o trigo. Quando setrocam dezenas de quilo de ouro por centenas de quilo detrigo, isso decorre de uma equivalência estabelecidaunicamente pelas pessoas envolvidas na troca, donas doouro e do trigo. Um cacho de bananas recém-colhido valemenos que o mesmo cacho exposto à venda, no diaseguinte, na banca da feira, embora materialmente não setenha verificado nenhuma mudança nas frutas. A atribuição

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de valor é sempre expressão de relações sociais (entre sereshumanos, portanto). Os valores atribuídos aos bens não sãoa medida de sua importância para nós, mas a da escassez.Não há recursos suficientes para atender a todas asquerências (necessidades, utilidades ou simples desejos)dos homens e mulheres. Quanto maior a escassez, maior ovalor, ainda que o bem tenha importância pouca ou nenhuma(por exemplo, uma pedra preciosa).

Assim como a escassez de recursos e o aumentovertiginoso das querências na sociedade consumista dosnossos tempos transformam coisas em bens, o inversotambém ocorre. Bens perdem valor e tornam-se coisas.Equipamentos eletrônicos em perfeito estado de uso, masprecocemente obsoletos, lotam o lixo de alguns centrosurbanos. Ninguém os quer, nem de presente.

As coisas sem expressão pecuniária podem ou não serobjeto de direito. As estrelas, os animais que habitam asprofundezas dos oceanos e outros corpos inapropriáveis,bem como o ar atmosférico e demais recursos abundantessão coisas sem relevância jurídica. Já embriões excedentescrioconservados, cadáveres e mesmo corpos de pessoa vivasão coisas, porque insuscetíveis de apreciação monetária, eobjeto de direitos extrapatrimoniais.

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"Coisa" é tudo que existe além dossujeitos de direito; se tem valoreconômico, isto é, quantificável emdinheiro, é chamada de "bem".Nessa categoria jurídica, portanto,enquadram-se os objetos, animais edireitos, desde que possam ter seuvalor para homens e mulheresmensurado pecuniariamente.

As pessoas jurídicas (associações, fundações esociedades) e as entidades não humanas despersonificadas(condomínio edilício, espólio, massa falida etc.) não sãocoisas, mas sujeitos titulares de direitos e obrigações. Asociedade não é uma coisa sobre a qual o sócio exercedireito, não é um bem de sua propriedade. Como sujeito dedireito, não pode ser objeto de direito. As participaçõessocietárias (ações emitidas pela sociedade anônima ou

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quotas representativas do capital da sociedade limitada) éque são bens e integram o patrimônio do sócio.

Em outros termos, o objeto do direito positivo é sempreuma conduta humana. O objeto do direito subjetivo pode serbens ou coisas não valoráveis pecuniariamente. Qualquerque seja a natureza do objeto do direito, ele pode ter porreferência algo material ou não. Com efeito, como seexaminará à frente, os bens podem ser corpóreos (casa,automóvel, livro) ou incorpóreos (direitos patrimoniais), etambém as coisas não precificáveis podem ter por referênciaalgo material (embriões crioconservados, corpo) ou não(honra, nome, privacidade).

As codificações civis brasileiras (de 1916 e 2002)adotaram a estrutura do Código Civil alemão, de 1896. Isto é,na Parte Geral, são contempladas normas sobre institutosbasilares de todo o direito, incluindo os bens (Livro II).Nesta Parte, o Código limita-se a classificar os bens,estabelecendo umas poucas regras. A disciplina jurídicapormenorizada dos direitos sobre os bens corpóreos épostergada para a Parte Especial, no Livro III, referente ao“direito das coisas” (aliás, nesse Livro III da Parte Especial,o conceito de “coisas” é diferente do adotado acima,conforme se discute mais à frente: Cap. 41). Por essa razão,por enquanto, cuidarei apenas da classificação dos bens.

2. BENS CONSIDERADOS EM SI MESMOS

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Considerados em si mesmos, os bens se classificam em:a) Imóveis e móveis. A tecnologia civilista brasileira,

tradicionalmente, conceitua como imóveis os bens que nãopodem ser transportados de um lugar para o outro semcomprometimento de sua integridade, e móveis os que sepodem transportar íntegros (por todos, Beviláqua, 1934:261).Esse conceito encontra-se reproduzido na lei, que consideraimóveis “o solo e tudo quanto se lhe incorporar natural ouartificialmente” (CC, art. 79) e móveis “os bens suscetíveisde movimento próprio, ou de remoção por força alheia, semalteração da substância ou da destinação econômico-social”(CC, art. 82). São bens imóveis, assim, o lote de terreno, aárvore plantada e seus frutos pendentes, as edificações; emóveis os animais (semoventes), os veículos automotores,os livros, os eletrodomésticos etc.

Culturalmente falando, os imóveis são vistos como bensde maior importância que os móveis. Ser proprietário de umacasa corresponde a legítimo anseio da generalidade daspessoas. Além de despertar a segurança psicológica dacerteza do abrigo, a propriedade imobiliária é vista comofonte de riqueza (mesmo não sendo, hoje em dia,necessariamente um investimento melhor que o mobiliário).De qualquer modo, a lei reflete a cultura sobre o tema econcede à propriedade imobiliária maior proteção (Monteiro,2001:147/148).

Os conceitos de bens imóveis e móveis tradicionalmente

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empregados pela tecnologia são legalmente excepcionadosem algumas situações, para fins de conferir aos interessesque nelas gravitam a proteção dos imóveis. Assim, asedificações transportadas de um lugar para outro semcomprometimento de sua unidade não perdem o caráter deimóveis (CC, art. 81, I). Quer dizer, embora tenham sidomovidas sem perda de integridade, essas edificações nãopodem ser reputadas móveis durante o transporte.

Além disso, dois bens que não se enquadram noscontornos do conceito legal de imóvel são, não obstante,classificados nessa categoria: i) os direitos reais sobreimóveis e as ações que os asseguram, como, por exemplo, ousufruto de uma casa ou os direitos do promitente-comprador derivados do compromisso de compra e venda deum lote (CC, art. 80, I); e ii) o direito à sucessão aberta, aindaque os bens deixados pela pessoa falecida sejam todosmóveis (CC, art. 80, II). Nessas hipóteses, a lei consideraimóveis certos direitos (embora sejam esses bens que sepodem mover sem perda de integridade), para cercar demaior proteção os interesses envolvidos. Em outros termos,os direitos são, em princípio, bens móveis, já que podem sermovidos sem perda de integridade (CC, art. 83, III). Emrelação aos direitos reais, porém, serão móveis ou imóveisdependendo da classificação do objeto a que se referem. Osdireitos reais sobre bens imóveis são imóveis (CC, art. 80, I)e os sobre bens móveis, móveis (CC, art. 83, II).

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Bem imóvel é o solo e tudo que selhe incorpore, natural ouartificialmente. Árvores e casaspertencem a essa categoria de bens.Móvel, por sua vez, são os dotadosde movimento próprio ou passíveisde remoção por força alheia semcomprometimento da integridade.Animais e equipamentos sãoexemplos de bens móveis.

Os direitos patrimoniais são, emprincípio, bens móveis. Não o sãoapenas os direitos reais sobre bensimóveis (usufruto de umapartamento, por exemplo).

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Um bem móvel pode tornar-se imóvel e, eventualmente,voltar à condição anterior. Os materiais de construção (tijolo,portas, esquadrias etc.) são bens móveis. Incorporados auma casa, viram imóveis, e retornam à condição de móveis sea casa for demolida (CC, art. 84). Separados provisoriamenteda casa para nela serem reempregados, no caso de reforma,por exemplo, não perdem o caráter de imóveis (CC, art. 81, II).A árvore plantada no solo é imóvel. Se for cortada para servendida como madeira, torna-se móvel. Se a madeira forempregada na construção de uma casa, volta a ser imóvel.

A distinção entre móveis e imóveis é relevante paradiversos efeitos jurídicos. A forma de transmissão dapropriedade, por exemplo, varia de acordo com aclassificação do bem: os imóveis alienam-se por registro noórgão próprio, e os móveis, pela entrega da coisa ao novoproprietário (CC, arts. 1.245 e 1.267). A pessoa casada emregime de comunhão não pode alienar imóvel sem aautorização do cônjuge, mas esta é dispensada na alienaçãode bem móvel (CC, art. 1.647, I). Para adquirir bem porusucapião, a posse incontestável do imóvel deve durar,conforme as circunstâncias, de 5 a 15 anos (CC, arts. 1.238 a1.242), e a do móvel, de 3 a 5 anos (CC, arts. 1.260 e 1.261).

No Código de 1917, os bens móveis empregados naexploração econômica de um imóvel, como a colheitadeirausada na produção agrícola de determinada fazenda, eram

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também considerados legalmente imóveis. A doutrina oschamava de imóveis por acessão intelectual (Gomes,1957:216). Não existe mais a figura no direito brasileiro. Asmáquinas, equipamentos e utensílios mantidos peloproprietário num imóvel, para fins de exploração econômica,são móveis (cf. Diniz, 2002:284; Rodrigues, 2002:124/125).

b) Corpóreos e incorpóreos. Essa classificação éexclusivamente doutrinária, e não foi reproduzidaespecificamente na lei. Os bens corpóreos (ou materiais) sãoos dotados de existência física, enquanto os incorpóreos (ouimateriais) são meramente conceituais. Em outros termos,aqueles se referem a objeto providos de materialidade, decorpo, que ocupa espaço, ao passo que estes se referem aobjetos ideais. Os direitos patrimoniais são os bensincorpóreos, como os do autor sobre a obra de arte, literáriaou científica, os do credor em relação ao crédito, os reaisquanto à coisa, e assim por diante. Um bem pode ser imóvele incorpóreo, como são os direitos reais sobre bens imóveis.

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Corpóreos são os bens dotados deexistência física, enquanto osincorpóreos são os meramenteconceituais. Nesta última categoriaestão os direitos suscetíveis deprecificação (crédito-propriedade,imagem-atributo de pessoa famosaetc.); na primeira, os demais bens(eletrodomésticos, alimentos,veículos etc.).

A relevância jurídica da distinção diz respeito, porexemplo, à natureza dos negócios de disposição de bens. Oscorpóreos alienam-se por contrato de compra e venda e osincorpóreos, por cessão.

c) Fungíveis e infungíveis. Fungíveis (quer dizer,substituíveis) são os bens que se podem substituir poroutros da mesma espécie, qualidade e quantidade;

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infungíveis, os demais (CC, art. 85). Os cereais vendidos agranel são fungíveis; a tela pintada por famoso pintor,infungível. Essa classificação é restrita aos bens móveis,visto que os imóveis são sempre infungíveis.

A fungibilidade, em ocasiões específicas, depende dascircunstâncias que envolvem o bem. Morangos, porexemplo, como os demais produtos agrícolas, sãonormalmente fungíveis. O grande comerciante dessas frutas,que deposita num armazém geral os morangos que acaboude adquirir, quando for retirá-los, receberá outros da mesmaespécie, qualidade e quantidade, e não necessariamente osmesmos que depositara. Pense, no entanto, numa caixa demorangos premiados na mais importante exposição daregião. Se o proprietário a empresta ao dono de restaurante,para ser exibida por um dia, tem direito de receber de voltaexatamente os mesmos morangos. O automóvel é, emprincípio, um bem infungível. Quando o dono o deixa aoscuidados de um estacionamento, deve receber ao término daestada o veículo de sua propriedade, e não outro, ainda quede espécie e qualidade iguais às do seu. Poderá ser, noentanto, considerado fungível nas relações comerciais entreo fabricante, no exterior, e o importador brasileiro. Tendonegociado a importação de vinte unidades novas dedeterminado ano e modelo, podem ser enviados ao Brasilquaisquer veículos dessa espécie e qualidade.

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Os bens móveis são fungíveis ouinfungíveis segundo possam, ou não,ser substituídos por outros de mesmaespécie, qualidade e quantidade.

Mesmo o dinheiro, bem fungível por excelência(ninguém se preocupa com a numeração das cédulas querecebe ou dá, mas apenas com o seu valor e quantidade),pode, em situações especialíssimas, ser infungível. É o caso,por exemplo, das moedas comemorativas, de emissãolimitada, que, mesmo ainda ostentando o poder liberatório, éobjeto de disputa dos colecionadores e se tornam, paraestes, bens infungíveis.

A importância da distinção está relacionada aos direitosdos contratantes, em certos contratos como o de depósitoou empréstimo.

d) Consumíveis e inconsumíveis. Bens consumíveis sãoaqueles que se destroem ao primeiro uso, e inconsumíveisos que se podem usar mais de uma vez. O uso dosconsumíveis importa, diz a lei, na destruição imediata da

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própria substância (CC, art. 86). Equivalem mais ou menos àsnoções de produtos não duráveis e duráveis, mencionados,embora não definidos, na lei de proteção ao consumidor(CDC, art. 26). Desse modo, os alimentos são consumíveis eos eletrodomésticos, inconsumíveis. Trata-se declassificação que também diz respeito exclusivamente aosbens móveis, já que os imóveis são sempre inconsumíveis.

Note-se que nada é eterno. Desse modo, todos os bensmóveis, cedo ou tarde, terão sua substância destruída. Aconsuntibilidade é, por isso, atributo diverso dadeteriorabilidade. Esta se encontra em todas as coisas,inclusive as inconsumíveis. Uma roupa não é consumível,porque se pode utilizá-la diversas vezes. Um dia, porém,estará gasta, desbotada, puída e não terá mais serventia. Suadeterioração, porém, não lhe subtrai o caráter de bemconsumível.

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Os bens móveis são consumíveis ouinconsumíveis segundo se percam noprimeiro uso ou não. Equivalem,grosso modo, aos produtos nãoduráveis e duráveis referidos noCódigo de Defesa do Consumidor.

A lei considera consumível também o bem móveldestinado à alienação, mesmo que durável. Trata-se deconsuntibilidade de direito, em contraposição à dos nãoduráveis, cuja consuntibilidade é de fato.

Tem relevo a distinção entre os bens móveis, de acordocom a durabilidade, na definição, por exemplo, dasobrigações do usufrutuário. Ao término do usufruto, eledeve restituir os acessórios e acrescidos consumíveis queainda existirem e, em relação aos já consumidos, outros damesma espécie, qualidade e quantidade (CC, art. 1.392, § 1º).

e) Divisíveis e indivisíveis. Se a divisão de um bem nãocomprometer sua substância, não diminuirconsideravelmente seu valor, nem prejudicar o uso a que se

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destina, considera-se divisível (CC, art. 87). A água é sempredivisível. Se tenho um litro de água e reparto-a em doisrecipientes de meio litro, ela continua tendo inalterada asubstância, igual valor e mesmo uso. Um microcomputadorportátil é indivisível. Embora eu possa materialmente separaro teclado, a unidade de processamento e a tela, e até mesmodar a essas partes uma destinação apartada útil, a separaçãocompromete a substância do equipamento, reduz o valor eimpede o uso.

Alguns bens naturalmente divisíveis podem tornar-seindivisíveis por força de lei ou da vontade das partes (CC,art. 88). O loteador, por exemplo, não pode fracionar o imóvelem que está implantando o empreendimento em lotes demenos de 125 metros quadrados cada (Lei n. 6.766/79, art. 4º,II). Em outros termos, o lote com até 249 metros quadrados,embora possa ser materialmente repartido, é bem indivisível.

Bens móveis ou imóveis sãodivisíveis quando conservam asubstância, valor e uso depois defracionados.

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Relevante é essa classificação, por exemplo, nadefinição das consequências do término do condomínio. Seduas pessoas são proprietárias de um mesmo bem, querendoqualquer uma delas pôr fim à copropriedade, divide-se obem. Se for este indivisível, porém, será vendido e repartidoo produto da venda (a menos que qualquer uma delas queiraficar com o bem, indenizando a outra) (CC, art. 1.322).

f) Singulares e coletivos. Bens singulares são os que sepodem considerar independentes, ainda que reunidos aoutros bens (CC, art. 89), e coletivos, os demais. Oequipamento de som automotivo é um bem singular, estejaou não instalado num carro.

Os bens coletivos, por sua vez, são classificados emuniversalidades de fato e de direito. No primeiro caso, umconjunto de bens singulares pertencentes à mesma pessoatem destinação unitária. Exemplo típico é o doestabelecimento empresarial, definido na lei como o“complexo de bens organizado, para exercício da empresa,por empresário, ou por sociedade empresária” (CC, art.1.142). No estabelecimento, encontram-se todos os bens queo empresário reuniu para exploração de sua atividade. Nocaso de uma padaria, imagine, o estabelecimentocorresponderá ao conjunto de bens necessários àexploração desse ramo de comércio: estantes, equipamentos

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de panificação, refrigeradores, estoque de mercadorias,programa informatizado para os controles gerenciais, marcasetc. Cada um dos bens componentes da universalidade defato pode ser objeto de negócio jurídico em separado (CC,art. 90). Assim como é possível, também, que a coletividadedos bens seja o objeto do negócio jurídico (CC, art. 1.143).

Bens singulares são os que podem ser consideradosindependentes, mesmo quando reunidos a outros. Coletivossão as universalidades, de fato e de direito, integradas porbens singulares.

Por universalidade de direito entende-se o complexo derelações jurídicas dotadas de valor econômico referente acerta pessoa (CC, art. 91). O patrimônio ou a herança sãoexemplos dessa categoria de bens coletivos. Há negóciosjurídicos que têm por objeto uma universalidade de direito:quando uma sociedade empresária incorpora outra, opatrimônio desta é totalmente absorvido pela primeira; otitular do direito à herança pode dispor dela cedendo seusdireitos sucessórios a outrem.

g) Comercializáveis ou fora do comércio. Essaclassificação é, também, doutrinária, porque o Código Civilde 2002, ao contrário do seu anterior, não a contempla. Bensfora do comércio são os inalienáveis por força da lei ou davontade de quem deles dispõe. Uma rua ou viaduto sãobens legalmente postos fora do comércio, porque aPrefeitura não os pode vender. Os bens gravados em

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testamento com a cláusula de inalienabilidade tornam-se forado comércio por vontade do testador. O empresário quepublica livro narrando a história de sua empresa, paradistribuí-lo gratuitamente numa campanha institucional,pode gravar os exemplares com a cláusula “fora decomércio”, proibindo, em decorrência, a comercialização.

3. BENS RECIPROCAMENTE CONSIDERADOSReciprocamente considerados, os bens se classificam

e m principais e acessórios. O que existe sobre si, mesmoabstrato, é principal. Sua existência não depende da de outrobem. O que existe em função de outro, do qual depende, éacessório. A existência do bem acessório supõe a doprincipal. O direito ao crédito do aluguel decorrente de umcontrato de locação é exemplo de bem principal; o direito àmulta, prevista no mesmo contrato, pelo atraso nopagamento do aluguel é acessório. Enquanto o direito aocrédito independe, para existir, do direito à multa moratória,este não existe sem aquele. As árvores do pomar de um sítiosão acessórias em relação ao imóvel, e este principal emrelação àquelas. As árvores não podem sobreviverseparadas do solo, que, no entanto, existe sem elas.

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Os bens, quando reciprocamenteconsiderados, classificam-se emprincipal e acessório. Aquele temexistência independente, enquantoeste só existe em função de outrobem. Convém distinguir algumasespécies de bens acessórios: frutos,produtos, benfeitorias e pertenças.

O acessório segue a sorte do principal. Quem aliena obem principal, aliena também seus acessórios. Se não osquer alienar, deve ressalvar expressamente a vontade demantê-los em sua propriedade. Outro exemplo: se aobrigação de que resulta o direito principal é nula, a de queresulta o direito acessório também será.

Há bens acessórios sujeitos a disciplina específica. Sãoeles:

a) Frutos e produtos. Frutos são acessóriosperiodicamente renovados e podem, por isso, ser

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destacados do principal sem que este perca necessariamentea aptidão de gerá-los novamente. Os produtos, ao contrário,não se renovam periodicamente, de modo quepaulatinamente exaurem o principal, na medida em que delese destacam. Os grãos de soja que esperam ser colhidos sãoacessórios da fazenda, assim como a pedra o é da pedreira.Aqueles, porém, se renovam sazonalmente e são, portanto,frutos, ao passo que esta não é renovável, sendo, emdecorrência, produto.

Os frutos se dividem em naturais, industriais e civis,dependendo da origem do ciclo que os renova. São naturaisquando renovados pelo ciclo biológico sem interferênciahumana, e industriais, quando há essa interferência. Obezerro in utero é fruto natural da vaca, a menos que tenhasido gerado por inseminação artificial, quando suaclassificação será a de fruto industrial. Note-se que,havendo dúvida, em certo caso, sobre a exata natureza dosfrutos, se naturais ou industriais, isto não tem importância, jáque estão sujeitos ao mesmo regime. Já os frutos civis sãoos rendimentos gerados pela coisa principal, como o aluguelda casa, os juros remuneratórios do dinheiro emprestado, osdividendos do capital investido numa atividade econômicaetc. Por outro lado, qualificam-se os frutos como pendentesse estão ligados ao bem principal. Uma vez separadosdestes, denominam-se colhidos (naturais) ou percebidos(industriais ou civis). A relevância dessas classificações

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liga-se aos direitos do possuidor de boa-fé em relação aosfrutos da coisa possuída: os naturais e industriais reputam-se colhidos e percebidos, logo que separados, e os civisreputam-se percebidos dia por dia (CC, art. 1.216).

b) Benfeitorias. As benfeitorias são acessórios quealteram, em parte, o principal, seja revertendo o estado dedeterioração deste, seja melhorando-o. Mesmo asdestinadas a simples conservação do bem, alteram-no emparte porque desaceleram ou evitam o processo dedeterioração. Obras de reforma de uma casa é o exemplo maissignificativo de benfeitorias.

As benfeitorias se classificam em voluptuárias, úteis ounecessárias (CC, art. 96). Voluptuárias são as benfeitorias demero deleite ou recreio. São fúteis, no sentido de nãoaumentarem o uso do bem. As benfeitorias voluptuáriaspodem ser custosas ou não, agregarem valor à coisaprincipal ou simplesmente a tornarem mais agradável. Nareforma da casa, são voluptuárias, por exemplo, asubstituição de piso de cerâmica por mármore, a implantaçãode projeto de paisagismo, a construção de quadra de tênis eoutras. As benfeitorias são úteis quando aumentam oufacilitam o uso do bem. Obras de reforma da casa seconsideram dessa espécie se, por exemplo, resultam naampliação da garagem, no aumento dos pontos de energiaelétrica na cozinha para possibilitar a utilização de maiornúmero de eletrodomésticos ou na instalação de

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pressurizador para melhorar a pressão da água nosencanamentos. Por fim, são necessárias as benfeitoriasintroduzidas com o objetivo de conservar o bem ou evitarque se deteriore. São exemplos, ainda no contexto das obrasde reforma da casa, desse tipo de benfeitorias: substituiçãoda fiação gasta, recuperação do telhado, reforço nosalicerces etc.

A distinção entre as modalidades de benfeitoriainteressa na definição dos direitos do possuidor. Estandoele de boa-fé, deve ser indenizado pelas benfeitorias úteis enecessárias, titularizando em relação a estas o direito deretenção. Quanto às voluptuárias, se não for indenizado, temdireito de levantá-las, se puder fazê-lo sem prejudicar a coisaprincipal (CC, art. 1.219). Já o possuidor de má-fé seráindenizado somente pelas benfeitorias necessárias (CC, art.1.220).

c) Pertenças. Consideram-se pertenças os bensdestinados ao uso, serviço ou aformoseamento de outrobem, de forma duradoura, mas que não o integram (CC, art.93). Os equipamentos de produção industrial que seencontram na fábrica não são dela acessórios, porque têmexistência independente (como já mencionado, são benssingulares integrantes do estabelecimento empresarial, que,por sua vez, é um bem coletivo do tipo universalidade defato). O mobiliário de uma casa não é seu acessório, porqueexiste e cumpre suas funções plenamente mesmo desligado

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dela. A estátua fixada no saguão de um edifício não é,também, coisa acessória, já que sua existência nãopressupõe a daquele prédio. Equipamentos industriais,mobiliário e estátua são exemplos de pertenças.

Os negócios jurídicos relativos ao bem principal, emprincípio, não abrangem as pertenças. As exceções a essaregra geral são três: as pertenças consideram-se abrangidasse resultar da lei, do acordo de vontades ou dascircunstâncias do caso (CC, art. 94). Quer dizer, se alguémadquire o estabelecimento empresarial, todos os bens que ocompõem consideram-se adquiridos também, em decorrênciada disciplina legal da matéria (CC, arts. 1.142 e 1.143). Se acasa é vendida mobiliada, o acordo de vontade entre aspartes foi no sentido de abranger no negócio também aspertenças. Finalmente, se no mesmo saguão do prédio emque se encontrava a estátua havia outras obras de arte, seela foi esculpida por um famoso artista e o valor pago peloimóvel é acima do mercado, essas circunstâncias todasindicam que a escultura também estava compreendida nonegócio.

Note-se que, a rigor, as pertenças não deveriam serclassificadas como acessório, como parece ter sido a opçãoda lei. Com efeito, elas não seguem o assim chamado bemprincipal exceto em situações especiais; desse modo, nãoostentam aquela dependência característica dos bensacessórios.

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4. BENS PÚBLICOSOs bens, de acordo com a natureza do proprietário, são

classificados em públicos ou particulares. Os bensparticulares são os de propriedade de pessoas jurídicas dedireito privado ou pessoas físicas. Os bens públicos são ospertencentes às pessoas jurídicas de direito público interno(União, Estados, Distrito Federal, Territórios, Municípios eautarquias) e os afetados à prestação de serviços públicos(Mello, 1980:751).

Dividem-se os bens públicos em três tipos: a) os de usocomum do povo, tais como rios, mares, estradas, ruas epraças; b) os de uso especial, como os edifícios ou terrenosdestinados a serviço público ou estabelecimento daadministração pública; c) os dominicais, que não possuemainda especificada qualquer destinação (CC, art. 99).

Os bens de uso comum do povo e os de uso especialsão inalienáveis. A pessoa jurídica de direito público sópode alienar os bens dominicais de seu patrimônio. Se quiservender uma praça, por exemplo, a Prefeitura deve, antes,desafetá-la, isto é, transferi-la da categoria dos bens de usocomum do povo para a dos dominicais. A desafetação,nesse caso, é feita mediante lei municipal. Sendo já dominicalo bem público, ou uma vez aprovada a sua desafetação, elesó poderá ser alienado mediante licitação.

Os direitos da pessoa jurídica de direito público sobreos seus bens são imprescritíveis. Ninguém pode adquiri-los,

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portanto, por usucapião (CF, art. 191, parágrafo único; CC,art. 102).

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Capítulo 10

OSNEGÓCIOSJURÍDICOS

1. FATOS JURÍDICOSAs normas jurídicas enunciam consequências aos fatos

a que se referem. Recolhem, da realidade, certas ocorrênciase determinam que, na sua verificação, devem seguir-se osresultados definidos por elas. Na norma de direito penal quetipifica os crimes, essa estrutura é facilmente identificável. Oart. 121 do CP, ao prescrever “matar alguém: pena —reclusão de 6 a 20 anos”, está imputando a consequência dapena de reclusão, nesses limites temporais, à pessoa que

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matar outra. O fato (matar alguém) é ligado à consequência(pena de reclusão) pela norma jurídica.

Todas as normas jurídicas, inclusive as de direito civil,podem ser descritas dessa forma, como a previsão daconsequência que pretende seja imposta a certoacontecimento. Quando o art. 145 do CC estabelece que“são os negócios jurídicos anuláveis por dolo, quando estefor a sua causa”, está atribuindo uma consequência(anulabilidade do negócio jurídico) a um certo fato (ser odolo de uma das partes a causa do negócio jurídico).

Muitas vezes, fatos e consequências não se abrigam nomesmo dispositivo. Encontra-se o fato num dispositivolegal, e a consequência, noutro. A norma jurídica, nessecaso, é interpretada pelo tecnólogo ou profissional dodireito por meio da articulação de dois ou mais dispositivos.É o que se verifica, por exemplo, com os preceitos quedefinem termos jurídicos, como o art. 96, § 2º, do CC, que selimita a conceituar as benfeitorias úteis como as queaumentam ou facilitam o uso do bem principal. Nessedispositivo isolado, não se encontra a estrutura de umaligação de fato a consequências. Para o intérpretecompreender a norma jurídica, ele deve relacioná-lo a outroou outros dispositivos do mesmo ordenamento. Veja-se,então, o art. 1.219 do CC, que assegura ao possuidor de boa-fé a indenização por essa espécie de benfeitorias. A normajurídica, resultante da articulação desses dois dispositivos,

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pode ser apresentada com a estrutura de ligação de fatos aconsequências : se o possuidor estava de boa-fé eintroduziu na coisa benfeitorias que aumentam oufacilitam seu uso, ele deve ser indenizado pelo gasto emque incorreu. Em outros termos, essa norma reserva a certofato (possuidor de boa-fé introduziu na coisa benfeitoriasúteis) determinada consequência (direito à indenização pelasbenfeitorias introduzidas).

Outro exemplo, o art. 186 do CC enuncia o conceito deato ilícito: “Aquele que, por ação ou omissão voluntária,negligência ou imprudência, violar direito e causar dano aoutrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”.Não se encontra, nesse dispositivo, a estrutura da descriçãode fatos aos quais se ligam consequências. Articule-se,agora, esse preceito com o art. 927 do CC: “Aquele que, porato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, ficaobrigado a repará-lo”. Essa articulação resulta na normaju ríd ica : quem, por ação ou omissão voluntária,negligência ou imprudência, violar direito e causar dano aoutrem, ainda que exclusivamente moral, fica obrigado arepará-lo. Pode-se, assim, dizer que os dispositivos (emparticular, os conceituais e os atributivos de competência)abrigam normalmente uma parte das normas jurídicas.Nestas sempre se encontrará um fato ao qual está ligada umaconsequência.

O fato descrito em norma jurídica como pressuposto da

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consequência por ela imputada é chamado de fato jurídico.Matar alguém, praticar negócio jurídico com dolo, opossuidor de boa-fé introduzir benfeitorias úteis na coisa e aviolação culposa de direitos são exemplos de fatos jurídicos.Note-se que nem todos os fatos têm relevância para odireito. Os eventos são inócuos, sob o ponto de vistajurídico, quando não desencadeiam nenhuma consequência.Se alguém caminha pela praia numa bela manhã de sol, isto éum fato que, em princípio, nada tem de jurídico.

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Toda norma jurídica, inclusive ade direito civil, pode ser descritacomo a indicação de um evento aoqual liga uma consequência. Oevento descrito como pressuposto éum fato jurídico.

Se o fato jurídico é a conduta deum sujeito de direito, chama-se atojurídico.

Se o ato jurídico é praticado com aintenção de gerar a consequênciaprevista na norma jurídica (isto é,produzir certos efeitos), denomina-se negócio jurídico.

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O que torna jurídico qualquer fato é a norma. Oordenamento elege os fatos jurídicos. Se a verificação de umevento não é pressuposto de nenhuma consequênciaprescrita em norma, ele não é um fato jurídico. É umacontecimento sem importância para o direito. Um jovemcompletar 17 anos de idade não é fato jurídico; o mesmojovem fazer 18 anos, porém, já é fato jurídico, porque a partirdessa idade ele já é plenamente capaz para os atos da vidacivil. O que faz do décimo oitavo aniversário da pessoa físicaum fato jurídico é a norma, que escolheu os 18 anos como omarco final da menoridade (CC, art. 5º). Poderia ter escolhidooutra idade, maior ou menor, ou mesmo condicionar aobtenção da capacidade à prova, por meio de examespsicológicos, de certo grau de amadurecimento, mas selimitou a dar relevância apenas à idade.

Fato jurídico, em suma, é o que gera consequências parao direito.

Os fatos podem ser condutas humanas, ou não. Ocaminhar de namorados pela praia e chover são eventosverificados na realidade, mas só o primeiro é ação de sereshumanos. De modo algo similar, os fatos jurídicos tambémpodem ser condutas de sujeitos de direito, ou não. Celebrarcontrato (isto é, emitir declarações de vontadeconvergentes) é fato jurídico que representanecessariamente uma ação de pessoas. Completar 18 anos,ao contrário, é fato jurídico que independe de qualquer

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conduta imputável a um sujeito de direito. Basta o planetaTerra percorrer sua trajetória em torno ao Sol dezoito vezesdepois do nascimento de alguém para que essa pessoapasse a ser considerada capaz pelo direito. Esse fato jurídicocaracteriza-se sem que qualquer sujeito — incluindo oaniversariante — tenha de fazer ou deixar de fazer qualquercoisa.

Denomina-se ato jurídico a ação de sujeitos de direitoque gera consequências estabelecidas em normas. O atojurídico é, assim, espécie de fato jurídico. Não é ato jurídico,por exemplo, a conduta humana que não tenha sidoescolhida por norma jurídica como pressuposto de umaconsequência qualquer. Espreguiçar-se longamente aoacordar, gozando o estalar de cada extremo do preguiçosocorpo, não é ato jurídico.

Entre os atos jurídicos destacam-se os negóciosjurídicos. São as ações intencionais dos sujeitos de direito.Quando um homem ou mulher quer produzir, com sua ação,as consequências previstas na norma jurídica, pratica onegócio jurídico correspondente. Se, caminhando pela praia,alguém encontra uma bela concha e decide levá-la para ornara estante da sala de TV de sua casa, verifica-se um fatojurídico em virtude do qual aquela pessoa adquire apropriedade da concha. Pelo art. 1.263 do CC, “Quem seassenhorear de coisa sem dono para logo lhe adquire apropriedade, não sendo essa ocupação defesa por lei”.

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Nesse caso, a pessoa manifesta a intenção de ter a concha:abaixar-se para colhê-la da areia e levá-la para casa é, assim,um negócio jurídico. Imagine-se, agora, que o engenheirocontratado para demolir o prédio da antiga sede de umafazenda do interior paulista acabe encontrando, numcompartimento secreto, joias de grande valor. Ninguém sabea quem pertenceram as joias. Diz a lei que, em casos assim, otesouro deve ser dividido por igual entre o proprietário doprédio e a pessoa que o tiver achado casualmente (CC, art.1.264). Note-se que, nesse segundo exemplo, o tesouro foiachado por casualidade, e não porque estava sendointencionalmente procurado. Encontrá-lo, desse modo,embora seja ato jurídico (por ser ação de um sujeito dedireito), não é negócio jurídico (por lhe faltar a intenção deproduzir os efeitos jurídicos predispostos em norma).

2. RELAÇÃO JURÍDICAO conceito de relação jurídica é um dos instrumentos

mais importantes da tecnologia jurídica. A posição nuclearque ocupa pode ser medida pelo fato de alguns autoresconseguirem organizar toda a exposição da teoria geral dodireito civil em torno desse conceito (por exemplo,Fernandes, 2001). Há, por outro lado, leis que se aplicam adeterminadas relações jurídicas, como é o caso do Código deDefesa do Consumidor, cujo âmbito de incidência écircunscrito pela definição legal de relação de consumo.

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A noção central do conceito de relação jurídica é a dealteridade, isto é, a necessária correspondência entre direitosde certos sujeitos aos deveres de outros. A todo direitosubjetivo, lembre-se, corresponde um dever (Cap. 5, item 2).Em razão da alteridade, há sempre pelo menos dois sujeitosenvolvidos em qualquer questão jurídica. Ao vínculo queaproxima o titular de um direito subjetivo do devedor daobrigação correspondente chama-se relação jurídica. Arelação de consumo, por exemplo, aproxima o consumidor dofornecedor. Seguindo as definições legais, consumidor é oadquirente de produto ou serviço na condição dedestinatário final, e fornecedor, o que explora atividade devenda de produto ou prestação de serviços (CDC, arts. 2º e3º). Sempre que uma pessoa estiver numa situação de fatoque a enquadre na definição de consumidora, e outra, na defornecedora, entre elas estabelece-se um vínculo, umarelação jurídica específica. Esse vínculo determina aincidência das normas da legislação consumerista. Aosdireitos do consumidor corresponderão deveres dofornecedor, e vice-versa.

A conclusão extraída da alteridade, aliás, decorretambém da função básica das normas jurídicas — nortear asolução de conflitos de interesses. Conflito pressupõe,necessariamente, pelo menos dois vetores; quer dizer, nãohá conflito de interesses sem pelo menos dois interesses emjogo. A própria noção de conflito, por outro lado, depende

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da de aproximação. Não podem desentender-se pessoas quenão se comunicam. Antes de disputarem um objeto, ossujeitos precisam pôr-se em contato; por vezes, a disputa é ocontato. O conflito de interesses liga os titulares dosinteresses conflitantes e o vínculo entre eles é a relaçãojurídica. Locador e locatário podem desentender-serelativamente a qual deles deve pagar determinado item daprestação condominial. As despesas ordinárias docondomínio são da responsabilidade do locatário, mas asextraordinárias devem ser pagas pelo locador. A lei cuidoude discriminar cada uma delas, com o objetivo de deixar claraa distribuição dos encargos (Lei n. 8.245/91, arts. 22, X, e 23,XII, e seus parágrafos únicos). Mesmo assim, surgemdúvidas. O reparo de certo equipamento hidráulico do prédioé reposição das condições de sua habitabilidade (despesaextraordinária do locador) ou simples manutenção econservação (despesa ordinária do locatário)? O conflitoentre locador e locatário tem lugar na relação locatícia.

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Relação jurídica é o vínculo entreo titular do direito subjetivo e o dodever correspondente. Entreconsumidor e fornecedor forma-se arelação de consumo, porque aosdireitos daquele correspondemdeveres deste, e vice-versa.

A relação jurídica é sempre um vínculo entre sujeitos dedireito. Alguns autores, como Orlando Gomes, admitem arelação entre sujeito e coisa (1957:93/106). Para ele, aosdireitos reais (posse, propriedade, usufruto, garantias reaisetc.) não corresponderia o dever de nenhum sujeito, em vistade sua oponibilidade erga omnes. Em consequência, arelação jurídica se estabeleceria, aqui, entre o titular e oobjeto do direito. Não representa esta, porém, a formulaçãopredominante na tecnologia jurídica. Para a maioria dadoutrina, também os direitos reais estabelecem relação entresujeitos. Se duas pessoas disputam a posse de um terreno, oconflito de interesses entre elas estabelece um vínculo, uma

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relação jurídica. Se qualquer uma delas se socorrer doJudiciário para buscar a superação do conflito, este seráresolvido mediante a atribuição a ela de um direito (a possedo terreno) ao qual corresponde o dever da outra (respeitar aposse alheia), ou o inverso.

Em geral, entrecruzam-se, na relação jurídica, direitos eobrigações de ambos os sujeitos dela participantes. Narelação de emprego, o empregador é devedor do salário, mastem direito de orientar o trabalho do empregado; este temdireito aos benefícios legais (décimo terceiro, fériasremuneradas etc.), mas tem o dever de ser pontual. Algumasrelações jurídicas, porém, estabelecem direitos para apenasuma das partes e deveres somente para a outra. Na relaçãoentre o contribuinte e o fisco, regida pelo direito tributário,há apenas deveres daquele e direitos deste. A mesmavariação se encontra nas relações de direito civil. Nosvínculos derivados de contratos sinalagmáticos, a relaçãocontratual importa atribuição de direitos e obrigações paraas duas partes: na compra e venda, o vendedor devetransferir o domínio da coisa e o comprador, pagar o preço; oprimeiro tem direito de receber o preço, e este, a coisa. Já nosvínculos derivados de contratos não sinalagmáticos, arelação contratual importa a atribuição somente de direitos auma parte e apenas de deveres à outra: na doação semencargos, o doador tem obrigações e nenhum direito, odonatário tem direitos e nenhuma obrigação.

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A relação jurídica é instituída entre dois sujeitos pela leiou pela vontade das partes. Quem se estabelece comovarejista passa a ter perante os compradores de seusprodutos as obrigações de fornecedor, e estes últimos, osdireitos de consumidor. A relação de consumo se estabeleceentre eles em decorrência da lei. Quem aluga apartamento desua propriedade passa a participar de relação locatícia emrazão de sua vontade.

Os negócios jurídicos são a fonte das relações jurídicasdecorrentes da vontade dos sujeitos (Fernandes, 2001,2:50/52).

3. CONCEITO E ATRIBUTOS DO NEGÓCIO JURÍDICOA codificação civil brasileira de 1916 inspirou-se, na

estrutura, no Código Civil alemão do fim do século XIX. Masnão se aproveitou de uma das mais frutíferas inovações dacultura jurídica alemã, refletida naquela lei, que é a figura donegócio jurídico. O nosso anterior Código Civil manteve-sefiel à noção de ato jurídico, originada na doutrina francesa,definindo-o como todo ato lícito destinado à aquisição,resguardo, transferência, modificação ou extinção dedireitos. A tecnologia jurídica brasileira, contudo, desdelogo se entusiasmou com as reflexões sobre o negóciojurídico, e nenhum civilista de renome, mesmo com avigência do diploma legal anterior, deixou de estudar epropagar o instituto.

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As diferenças entre a teoria francesa dos atos jurídicose a alemã dos negócios jurídicos são tão sutis queescaparam a Clóvis Beviláqua. Após noticiar que asistemática alemã distinguia atos jurídicos de declaraçõesde vontade, deu por encerrado o assunto, anotando que“geralmente as duas expressões se consideramequipolentes”. Aproveitou-se, então, de lições referentes anegócio jurídico para discorrer sobre atos jurídicos(1908:213). A sutileza das diferenças possibilitou, também, aalguns doutrinadores brasileiros, como Caio Mário da SilvaPereira, entre outros, sustentarem que a proximidade entre onosso conceito legal de ato jurídico e as lições da doutrinaalemã sobre negócio jurídico era tão expressiva que cabiadar-se preferência a esta no desenvolver das lições dedireito civil (1961:414).

O que o negócio jurídico tem de específico em relaçãoao ato jurídico é a intencionalidade do sujeito. O negóciojurídico é o ato jurídico em que o sujeito quer produzir aconsequência prevista na norma. Em outros termos, o atojurídico é sempre voluntário, isto é, algo que o sujeito dedireito faz por sua vontade. Produz, ademais, sempre efeitosprevistos em lei, já que a ação voluntária irrelevante para odireito (espreguiçar-se antes de levantar da cama) não se aconsidera sequer fato jurídico. Pois bem, se o efeitopredisposto na norma jurídica é querido pelo sujeito,denomina-se negócio jurídico o ato. Nesse caso, o resultado

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jurídico previsto na norma só se operou porque o sujeito dedireito o quis, enquanto nos atos não negociais os efeitossão simples consequências que a norma jurídica liga adeterminados fatos, independentemente da intenção dossujeitos envolvidos.

A teoria dos negócios jurídicos é feliz manifestação domodo de raciocinar tipicamente germânico. Distinções deextrema sutileza criam nuanças que exigem esforços teóricosredobrados na compreensão do raciocínio, sem que delasresultem, muitas vezes, implicações de relevo, seja no planoteórico mesmo, seja na condução de assuntos práticos.Marx, um alemão sem mente germânica (nesse aspecto, eraigual a Kant), certa vez disse que alguns pensadores ficavamde tal modo encantados com a beleza da árvore que perdiamde vista a floresta. As belas e intrincadas elucubraçõesproduzidas em torno da genial contribuição dospandectistas alemães não podem tirar o foco do essencial:conflitos de interesses precisam ser superados, para melhorconvívio em sociedade. Note-se que, até hoje, em França, osmanuais de direito civil simplesmente ignoram o conceito denegócio jurídico, dando-se por satisfeitos com aoperacionalização apenas do de atos jurídicos.

O Código Civil brasileiro de 2002 incorporou a teoria donegócio jurídico. Nele, a expressão “ato jurídico” apareceapenas uma vez, no art. 185. Esse dispositivo, aliás,estabelece que aos atos jurídicos lícitos que não sejam

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negócios jurídicos aplicam-se as normas estabelecidas paraos negócios jurídicos. Em razão dessa disposição, se houverdúvidas sobre a exata classificação de determinado atovoluntário de um sujeito de direito — se ato jurídico ounegócio jurídico —, não haverá senão interesse acadêmicoem sua superação. A solução do conflito de interessesrelacionado ao ato em questão será norteada pelas mesmasnormas jurídicas, qualquer que seja a sua exata classificação.

São três os atributos do negócio jurídico: existência,validade e eficácia. O negócio existe se preenchidos doispressupostos: a conjugação dos seus elementos essenciais(sujeito de direito, declaração de vontade com intenção deproduzir certos efeitos e objeto fisicamente possível deexistir) e a juridicidade (descrição pela lei como fato jurídico).Uma vez existente, será válido, se atendidos os requisitos devalidade (agente capaz, objeto lícito e determinável, formalegal) e desde que inexistente vício de formação (erro, dolo,coação, estado de perigo, lesão ou fraude contra credores).Existente, válido ou inválido, o negócio jurídico será eficazquando os efeitos pretendidos pelo sujeito ou sujeitosdeclarantes se realizarem espontaneamente ou com aintervenção do Poder Judiciário.

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Os atributos do negócio jurídicosão a existência, validade e eficácia.Eficácia e validade sãoindependentes entre si. O negóciopode ser válido ou inválido, eficazou ineficaz, em qualquer caso. Maseficácia e validade dependem daexistência do negócio jurídico. Só oque existe pode ser válido ouinválido, eficaz ou não.

As combinações dos atributos do negócio jurídicolevam às seguintes alternativas: a) existente, válido e eficaz(por exemplo, compra e venda sem vícios de validade, emque vendedor e comprador cumprem suas obrigaçõesespontaneamente ou em razão de ordem judicial) ; b)existente, inválido e eficaz (compra e venda com vícios devalidade, a despeito dos quais vendedor e comprador

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cumprem suas obrigações espontaneamente) ; c) existente,válido e ineficaz (compra e venda sem vícios de validade,em que vendedor ou comprador deixam de cumprir suasobrigações) ; d) existente, inválido e ineficaz (compra evenda com vícios de validade, em que vendedor ecomprador deixam de cumprir suas obrigações) ; e)inexistente (compra e venda de bem impossível de existir).

4. CLASSIFICAÇÃO DE NEGÓCIO JURÍDICOOs negócios jurídicos classificam-se em:a) Singulares e plurais. Esse critério leva em conta a

quantidade de sujeitos que praticam o negócio jurídico. Ésingular o negócio praticado por apenas um sujeito, e pluralos praticados por dois ou mais. A constituição de sociedadeanônima subsidiária integral (ver Cap. 8, item 3, b) é negóciojurídico singular. A sociedade brasileira comparece a cartórioe, por escritura pública, manifesta a intenção de constituiruma subsidiária sem outro sócio. Nenhum outro sujeito dedireito pratica o ato. Já o contrato de seguro é negóciojurídico plural, porque deriva da convergência demanifestação de vontade de pelo menos dois sujeitos dedireito: a seguradora e o contratante do seguro.

Há negócios jurídicos necessariamente singulares,como o testamento — o direito brasileiro não conhece afigura do testamento de mão comum, em que vários sujeitosmanifestam no mesmo ato suas disposições de última

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vontade (Fernandes, 2001, 2:54). E há negóciosocasionalmente singulares, como a instituição de fundação— embora, no mais das vezes, a fundação seja instituídapela vontade de uma só pessoa, nada obsta que sejamdiversos os instituidores.

Todos os negócios jurídicos, mesmo os singulares,envolvem mais de um sujeito de direito. Afinal, trata-se deuma relação jurídica. O testador, ao externar sua disposiçãode última vontade, pratica o negócio jurídico. Os herdeiros elegatários nomeados no testamento são os sujeitosenvolvidos pelo negócio. Quando a norma jurídica, ematenção aos interesses dos sujeitos envolvidos no negócio,assegura-lhes alguma faculdade, como a de não aceitar olegado, por exemplo, isso não descaracteriza a singularidade.

b) Unilaterais, bilaterais e plurilaterais. Esse critérioconsidera a quantidade de partes do negócio jurídico. Nãose confundem os conceitos de sujeito e de parte. Este últimoé referência à posição que o sujeito ocupa na relaçãojurídica, definida a partir do complexo de interesses postos.De modo geral, cada parte do negócio jurídico corresponde aum conjunto de interesses iguais em sua essência (cf.Fernandes, 2001, 2:58/60). Quer dizer, duas pessoas podemocupar uma mesma parte na relação negocial, se os seusinteresses — ainda que possam divergir em aspectosacidentais — convergem nos relevantes para oestabelecimento do vínculo. Sempre o número de sujeitos do

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negócio será igual ou superior ao de partes. O negóciojurídico pode ter, assim, uma parte e dois sujeitos, duaspartes e cinco sujeitos, três partes e quatro sujeitos etc.

Quando tem uma parte, o negócio é unilateral. Se temduas, é bilateral. Se tem mais de duas partes, plurilateral. Otestamento, a instituição de fundação, a despedida deempregado e a promessa de recompensa são exemplos denegócios jurídicos unilaterais, com uma só parte (testador,instituidor da fundação empregador e o promitente). Ocontrato é, por sua vez, negócio jurídico bilateral. Ocomprador e o vendedor são partes da compra e venda;locador e locatário, da locação etc. Atente-se para nãoconfundir a classificação do negócio com a do contrato: nãoexiste negócio jurídico contratual unilateral, porque ocontrato pressupõe pelo menos duas partes, mas existemcontratos unilaterais, assim definidos os que geramobrigações para uma só das partes (a doação, por exemplo).A constituição de associação, por sua vez, é normalmentenegócio jurídico plurilateral. As três ou mais pessoasinteressadas em se associar manifestam essa vontadeconvergente com o objetivo de dar nascimento à pessoajurídica.

Os negócios unilaterais (com uma só parte) podem sersingulares (fundação instituída por um só sujeito) ouplurais (fundação instituída por dois ou mais sujeitos). Osnegócios singulares (um só sujeito) só podem ser unilaterais

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(testamento), e os bilaterais ou plurilaterais (duas ou maispartes) só podem ser plurais (contratos) (Fernandes, 2001,2:56).

c) Patrimoniais ou extrapatrimoniais. Os negóciosjurídicos patrimoniais têm por objeto bens, isto é, coisassuscetíveis de estimação pecuniária. Os contratos,testamentos, concessão de hipoteca são negócios jurídicospatrimoniais. Já os extrapatrimoniais têm objeto diverso debens, como, por exemplo, coisas não precificáveis, estadocivil, formação de vínculos de parentesco etc. A decisão dosgenitores de descartarem embriões crioconservados, adoação de órgãos para transplantes, o casamento e a adoçãosão exemplos de negócios jurídicos extrapatrimoniais.

d) Onerosos e gratuitos. Os negócios patrimoniaispodem ser onerosos ou gratuitos. No primeiro caso,transitam bens entre os patrimônios dos sujeitosparticipantes do negócio, no sentido de que passam atitularizar direitos em contrapartida de obrigações. A comprae venda é negócio oneroso, pois comprador disponibilizadinheiro em troca da coisa adquirida, e vendedor faz oinverso. Nos negócios gratuitos, bens do patrimônio de umou mais sujeitos transitam para o de outro sem contrapartida.O testamento e a doação são negócios patrimoniaisgratuitos, ainda que subordinados a encargo.

Na constituição de pessoa jurídica, o negócioconstitutivo pode ser oneroso ou gratuito. A instituição de

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fundação é sempre gratuita. O instituidor, ao destacar bensde seu patrimônio para afetá-los a determinadas finalidades,transfere-os à titularidade da fundação e nenhum bem recebedesta. A constituição de sociedade, simples ou empresária, ésempre onerosa. O sócio aporta bens no capital social,transferindo-os do seu patrimônio para o da sociedade, masrecebe em contrapartida ações ou quotas. A formação deuma associação, finalmente, pode ser negócio jurídicooneroso ou gratuito, segundo titularizarem os associadosquota ou fração ideal do patrimônio dela, ou não.

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Classificam-se os negóciosjurídicos por diversos critérios. Osmais relevantes os distinguemsegundo a quantidade de pessoas(singulares ou plurais), de partes(unilaterais, bilaterais ouplurilaterais), patrimonialidade,onerosidade, obrigatoriedade deforma, condições de eficácia eexistência independente.

e) Formais e aformais. Todos os negócios jurídicos serevestem de forma (escrita pública, escrita particular,oralidade, transmissão eletrônica de dados etc.). Esta, emgeral, é escolhida pelo sujeito ou sujeitos que os praticam. Éo princípio da liberdade de forma. Há, porém, algunsnegócios jurídicos em relação aos quais as partes não sãolivres para escolher a forma do ato porque uma norma

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jurídica a determina. Nesses casos, quando não impera aliberdade de forma, os negócios jurídicos são formais (ousolenes). Testamento, constituição de direito real sobreimóvel de valor superior a trinta salários mínimos, aval ouendosso de nota promissória, casamento e outros negóciosjurídicos são formais, porque a lei prescreve a forma de quedevem revestir-se. Por outro lado, a generalidade doscontratos, constituição de direito real sobre móvel e outrossão negócios jurídicos aformais (ou não solenes).

f) Receptícios e não receptícios. Muitos negóciosjurídicos só produzem efeitos a partir do momento em que adeclaração de vontade do sujeito que o praticou é conhecidapor outro ou outros sujeitos. Se o empregador despede oempregado, esse negócio jurídico unilateral só começa aproduzir os efeitos pretendidos por aquele com oconhecimento da declaração de vontade por este (Gomes,1957:283/285). Somente depois de recebida a declaração devontade pelo sujeito envolvido (nos negócios unilaterais),pela outra parte (nos negócios bilaterais) ou pelas demaispartes (dos negócios plurilaterais) é que o negócio jurídicodessa categoria começa a produzir os efeitos desejados. Sãochamados de receptícios.

No comércio eletrônico, os negócios jurídicos sãosempre receptícios. A oferta apresentada na páginaacessível pela internete considera-se feita quando os dadoseletrônicos correspondentes entram no computador do

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internetenauta, quer dizer, são processados por essamáquina. Da mesma forma, considera-se aceita a oferta nomomento em que a manifestação de vontade concordante dointernetenauta ingressa, como dados eletrônicos, nosequipamentos do titular da página.

Os negócios não receptícios independem dacientificação do envolvido ou da parte para ser eficaz. Otestamento é negócio jurídico não receptício, porque atansmissão dos legados nos termos pretendidos pelotestador verifica-se com a sua morte, e não com oconhecimento do ato pelo herdeiro ou legatário.

g) Principais e acessórios. Negócios jurídicosprincipais são os que possuem existência independente, eacessórios os que não podem existir sem outro. Aconstituição de uma garantia real (hipoteca ou penhor) énegócio acessório ao que gerou a obrigação garantida. Afiança é negócio jurídico acessório em relação ao quevinculou o afiançado ao credor. A condição, o termo e oencargo são modalidades acessórias de negócios jurídicos(item 7). A sorte do negócio principal decreta a do acessório:nulo aquele, nulo também será este.

5. A VONTADE E SUA DECLARAÇÃONem todo negócio jurídico é uma declaração de

vontade. Há declarações destinadas a produzir os efeitosjurídicos pretendidos pelo declarante que não encerram um

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querer, isto é, não são a opção por uma de váriasalternativas possíveis. Quando alguém é indicado autor deuma obra (Lei n. 9.610/98, art. 13), a indicação é negóciojurídico, mas não uma declaração de vontade. Tambémquando os acionistas apreciam em assembleia as prestaçõesde contas da administração, o voto deles é negócio jurídico,mas não expressam uma vontade. Nesses dois casos, está-sediante de uma declaração de verdade, quer dizer, odeclarante apenas confirma a realidade de um fato.

O reconhecimento, pela lei, da aptidão dos negóciosjurídicos — correspondentes a declarações volitivas ou deverdade, tanto faz — para produzir efeitos corresponde aprincípio basilar do direito privado: o da autonomia davontade. Segundo esse princípio, os sujeitos de direitopodem, dentro das balizas levantadas pela ordem jurídica,regular seus interesses livremente.

A rigor, porém, os efeitos de fatos jurídicos, sejam elesdependentes ou não da vontade dos sujeitos de direito, oumesmo da intenção destes, são sempre os definidos pelanorma jurídica. Quando a ordem jurídica prevê a realizaçãodos efeitos projetados pela intenção de um ou mais sujeitos,sempre que declarada (atendida, em alguns casos, uma formaespecífica), isso se reveste de juridicidade exclusivamenteem razão da norma jurídica, e não por algum atributo inerenteà vontade de homens e mulheres. Se é eficaz a disposição deúltima vontade de Antonio, e o bem que ele desejava

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transmitir, após sua morte, à irmã, Benedita, é efetivamentetransmitido a ela, isto se deve apenas à disciplina legal dotestamento. Note-se que a lei, hoje, já restringe os efeitosdessa vontade, ao estabelecer, por exemplo, que a legítimados herdeiros necessários não pode ser incluída notestamento (CC, art. 1.857, § 1º). Isto é, quem deixaascendente, descendente ou cônjuge vivo não pode testarsobre a totalidade dos bens de seu patrimônio, mas somentesobre a metade (CC, art. 1.846). Assim, se a lei, no futuro,com o intuito de ampliar o direito constitucional de herança(CF, art. 5º, XXX), vier a restringir ainda mais os efeitos davontade das pessoas sobre a transmissão de seus própriosbens após a morte, o desejo de Antonio em beneficiarBenedita talvez não produza mais o efeito que atualmenteproduz.

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A vontade do sujeito só produz osefeitos por ele pretendidos quando alei o determina. Os efeitos de direito,assim, são sempre produzidos pelanorma, ao atribuir consequênciasaos fatos jurídicos.

Assim, os efeitos jurídicos são sempre os predispostosna norma como consequências dos fatos que descreve. Aintenção dos sujeitos de direitos, buscada pela prática dosnegócios jurídicos, produz apenas os efeitos que a norma,genérica ou especificamente, prescreve ou admite. Em outrostermos, os efeitos jurídicos ou bem são produzidosdiretamente pela norma (quando descreve fatos jurídicosindependentes da intenção dos sujeitos) ou indiretamentepor ela (quando descreve fatos jurídicos dependentes daintenção dos sujeitos). Neste segundo caso, os negóciosjurídicos consideram-se os propulsores imediatos dosefeitos propagados pela intenção dos sujeitos.

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5.1. Interpretação da declaraçãoO estudo do papel da vontade na teoria dos negócios

jurídicos costuma ambientar-se no emaranhado de teses quediscutem a prevalência da vontade sobre a declaração, oudesta sobre aquela. A intenção inicialmente se apresenta,por assim dizer, apenas à intimidade cerebral de homens emulheres. Nem sempre se mostra acabada, mas vai-seelaborando paulatinamente. É a vontade, que ninguém maispode conhecer enquanto permanecer interna ao espírito dapessoa natural que a concebeu. A declaração é a suaexteriorização. Dá-se oralmente, por gestos, por escrito oupor meio de transmissão eletrônica de dados. No mais dasvezes, coincidem vontade e sua declaração. Mas, não sendoeste o caso, qual deve predominar? A vontade querealmente motivou a parte a celebrar o negócio jurídico ou asua versão declarada? Pelas dobras das sutis nuançaspróprias da teoria dos negócios jurídicos, desfilamelaborações que ora põem o acento na vontade (Savigny,Windscheid, Enneccerus), ora na declaração (Lenel,Zitelmann, Wach), e há, até mesmo, os que procuraram umaterceira via na objetivação do negócio jurídico (Betti).

A questão é relevante, em primeiro lugar porque háruídos nas comunicações entre as pessoas. O emissor pensater dito uma coisa com a maior clareza possível, mas oreceptor compreende outra. Redigido um documento pararetratar o encontro de vontades, a leitura da mesma cláusula

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pode despertar no emissor da declaração determinadosignificado que não ocorre ao seu receptor, e vice-versa.Ambos podem ficar satisfeitos com o escrito, mesmo tendocada um diferentes coisas em mente. Quando chamado acumprir com a obrigação decorrente da vontade declarada, osujeito pode, surpreso, verificar que a releitura dodocumento comporta mesmo mais de uma interpretação.

Além da hipótese dos ruídos de comunicação, vontadee declaração se distanciam também por deficiência doescrito. Se o profissional contratado para minutar o contratonão é fiel intérprete da intenção das partes ou não temsuficiente método lógico para minutar instrumento comcoerência interna, as partes — especialmente se leigas emmatéria jurídica —, ou uma delas que seja, acabam assinandodeclaração distanciada de suas vontades. Mesmo se oprofissional da advocacia encarregado da minuta érigorosamente lógico e metódico, o instrumento afinalassinado pelas partes, em razão da sobreposição de diversascontribuições de outros advogados, pode não ser coerente.Distancia-se a vontade da declaração, por fim, na hipótesede má-fé das pessoas envolvidas no negócio jurídico.

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A vontade do sujeito que o motivouà prática do negócio jurídico pode,por vezes, não coincidir com aconsubstanciada na respectivadeclaração. Quando é esse o caso,prevalece a vontade declarada sobrea intenção íntima do homem oumulher envolvidos.

Dar primazia à vontade é respeitar a intenção motivadorado negócio jurídico. Pressupõe-se que o sujeito de direitoconcordara em praticar tal negócio porque tinha,internamente, determinada intenção. Fossem outras asconsequências, o sujeito não teria concordado em praticá-lo.Em sua mente, projetara certos efeitos e queria vê-losrealizados, e não outros. Esta foi a causa do ato. Se, a final,os efeitos imaginados não se realizarem em razão do descarteda intenção íntima — a “verdadeira” — em favor dadeclarada, isso equivale a obrigar aquele sujeito contra a

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sua vontade. Mas, por outro lado, é impossível descobrir aintenção do sujeito motivadora de sua participação nonegócio jurídico. Ela se manifestou na intimidade cerebral deum homem ou mulher, e ninguém mais lhe tem acesso. O quese comunica é sempre a intenção declarada. Que adeclaração não corresponde à vontade, isto é algo queninguém pode provar. Dar primazia à declaração, assim, égarantir a segurança nas relações jurídicas. Não sendopossível adentrar à intenção motivadora do ato, não há outraalternativa a não ser tomar a declarada como seu fiel retrato.

A lei brasileira contempla regra que, aparentemente,resolveria a questão em favor da prevalência da vontade. Oart. 112 do CC prescreve que “nas declarações de vontadese atenderá mais à intenção nelas consubstanciada do queao sentido literal da linguagem”. A leitura atenta dodispositivo, porém, revela que, no direito brasileiro, é adeclaração que tem primazia sobre a vontade, já que essedispositivo menciona a intenção consubstanciada nadeclaração, e não a intenção anterior à declaração. Se,partindo de diversos indícios e circunstâncias, nota-se que aintenção consubstanciada na declaração não é aquela queemerge da leitura imediata de uma cláusula, o sentido literalda linguagem empregada na redação desta não podeprevalecer. A interpretação da declaração (não da vontade)construída a partir daqueles indícios e circunstânciasprevalece, por lei, sobre a literalidade de uma ou mais

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cláusulas (cf. Azevedo, 1974:88/116).

Código Civil:Art. 112. Nas declarações de

vontade se atenderá mais à intençãonelas consubstanciada do que aosentido literal da linguagem.

Somente se pode interpretar a declaração (mesmo sefeita por gestos ou oralmente), e nunca a vontade dossujeitos. Se Antonio diz que vende para Benedito seu cavalopor $ 100, e Benedito diz que o compra por esse preço, essasdeclarações de vontade são interpretáveis. Se ao apertaremas mãos simbolizando a conclusão do contrato, Antoniopensava em pagamento à vista, mas nada falou a respeito,enquanto Benedito pensara em pagamento a prazo, mastambém nada dissera, não houve declaração sobre acondição do pagamento. Antonio não pode dizer que acondição é à vista porque era esta a sua vontade e não teriavendido o cavalo a não ser para receber o dinheiro no ato.

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Benedito também não pode dizer que a condição é a prazoporque era assim que queria comprar e não teria concordadocom a compra se não pudesse parcelar o pagamento. O maisprovável, nesse caso, é Antonio e Benedito considerareminconcluso o acordo, um dizendo ao outro: “assim não meinteressa o negócio”. Mas, se qualquer um deles for a juízoexigir o cumprimento do negócio jurídico, o juiz interpretaráunicamente as declarações dadas, e nunca as intençõesíntimas, por mais importantes que tenham sido para a causado negócio. Terá de decidir se, no silêncio das partes sobreas condições de pagamento, pode-se considerar, no direitobrasileiro, concluída a compra e venda e, nesse caso, se ela éà vista ou a prazo. Quanto ao primeiro aspecto, não haverámaiores dúvidas, já que a compra e venda “considerar-se-áobrigatória e perfeita, desde que as partes acordarem noobjeto e no preço” (CC, art. 482). Tendo Antonio e Beneditoacertado quanto a esses dois elementos (cavalo e $ 100),constituiu-se, não há discussão, o negócio jurídico. Quantoao segundo aspecto, o juiz invocará o dispositivo de que ocredor não é obrigado a receber por partes, ainda que aobrigação tenha por objeto prestação divisível, se assim nãose ajustou (CC, art. 314). Quer dizer, não tendo Benedito, aoconcluir o negócio, manifestado que apenas concordavacom o preço se pudesse parcelar o seu pagamento, não sedeu nenhum ajuste sobre a matéria. Antonio, assim, não éobrigado a receber o pagamento por partes e pode exigi-lo à

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vista.Além da primazia da intenção consubstanciada no ato

declarativo sobre a literalidade deste, a interpretação dadeclaração deve nortear-se, também, por outras regraslegais. Quando a declaração de vontade expressa não énecessária, o silêncio (também chamado de “reticência”)importa anuência do sujeito de direito, se as circunstânciasou os usos autorizam essa interpretação. Se, sem dizer umasó palavra, colho da banca de jornais um exemplar doperiódico de minha preferência, estendo ao jornaleiro umacédula e dele, também silenciosamente, recebo o troco, nãopoderei ser acusado de ter subtraído indevidamente o bem.Embora ninguém tenha emitido um som que fosse,declarações gestuais suficientes à formação do negóciojurídico foram feitas (CC, art. 111).

Outra regra de interpretação da declaração: deve-sepresumir que os sujeitos agiram de boa-fé, e, portanto, nãofizeram nenhuma omissão intencional de vontade. Se nãoapontaram, ao discutir a minuta, impropriedades na redaçãodo documento, foi porque não perceberam eventuaiscontradições, incoerências ou omissões. Os usos do lugarem que o negócio foi celebrado também servem àinterpretação da declaração. Imagine-se que a compra evenda do cavalo do exemplo anterior se tivesse realizadonuma feira em que, normalmente, se parcelam em dois opreço dos animais. Provado por Benedito que era este o uso

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do local, deve-se considerar ajustado o pagamento nessascondições, já que nenhuma ressalva fizera Antonio sobre ocostume (CC, art. 113).

Finalmente, há a regra que determina a interpretaçãorestritiva de determinados negócios jurídicos. Os negóciosbenéficos devem ser interpretados estritamente em vista dagratuidade de que se revestem. Se é liberalidade, nãoconvém agravá-la em detrimento de quem já não está tendonenhuma vantagem. Se Carlos declarou doar a Darcy oslivros de sua biblioteca, não se compreendem na doação, porexemplo, as estantes e armários em que estãoacondicionados (CC, art. 114). Também a renúncia e atransação se interpretam restritivamente, porque nessesnegócios jurídicos o sujeito ou sujeitos concordam em abrirmão de direitos, e não se admite, em princípio, que alguém ofaça de modo amplo (CC, arts. 114 e 843). A fiança, por seuturno, é negócio jurídico que não comporta interpretaçãoextensiva (CC, art. 819).

5.2. Reserva mentalA prevalência da declaração sobre a vontade, no direito

brasileiro, também se pode sustentar a partir da regra sobre areserva mental. Dispõe a lei que “a manifestação de vontadesubsiste ainda que o seu autor haja feito a reserva mental denão querer o que manifestou” (CC, art. 110, primeira parte).Desse modo, se entre a intenção motivadora do negócio

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jurídico e sua declaração há distância, por ter o sujeitoexternado vontade que intimamente sabia não querer, areserva mental não terá efeito de alterar o conteúdo donegócio jurídico.

Imagine que Evaristo e Fabrício são sócios de umasociedade limitada que possui um passivo oculto, denatureza fiscal, elevado (isto é, deve impostos que não foramregularmente contabilizados). Com receio de virem aresponder pelas obrigações da sociedade, se e quando ofisco a autuar, transferem as quotas que titularizam a Giseldae Hebe, e permanecem à frente dos negócios apenas comoprocuradores. A intenção deles não é transferir a titularidadedas quotas sociais, mas apenas se preservarem em caso deação fiscal. Isso, porém, não foi objeto de declaração, ficoumentalmente reservado. Elas, assim, não tiveramconhecimento da verdadeira intenção deles, e declararamquerer adquirir a titularidade das quotas sociais. Pois bem,imagine-se que, logo em seguida, aprova a lei uma anistiafiscal ou um estimulante programa de parcelamento dasobrigações tributárias. Em função dessas medidas, o temord e Evaristo e Fabrício, que justificara a transferência dasquotas da sociedade devedora, não tem mais razão de ser.Não podem eles, porém, ainda que provando a reservamental, alterar o conteúdo da declaração emitida (que, pararetratar exatamente a intenção desses sujeitos, tornar-se-iauma cessão sujeita a condição resolutiva) para reaver a

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participação societária.

A declaração não tem o conteúdoalterado na hipótese de reservamental do declarante, a menos que odestinatário conhecesse a intençãooculta.

A reserva mental apenas altera a declaração se era doconhecimento do declaratário (CC, art. 110, parte final).Quando assim é, considera-se que o destinatário oudestinatários da declaração (ou seja, o outro sujeitoenvolvido no negócio unilateral, a outra parte do negóciobilateral ou as demais partes do negócio plurilateral), porterem conhecimento da intenção mentalmente reservada,concordaram com ela. No exemplo acima, se Giselda e Hebesabiam da intenção de Evaristo e Fabrício no sentido deapenas procurarem preservar-se de eventualresponsabilização fiscal, deve-se compatibilizar a declaraçãocom a reserva mental, como se esta também tivesse sido

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exteriorizada. Eles e elas, nesse caso, teriam celebrado umcontrato de cessão de quotas sociais sob condiçãoresolutiva. Caso os riscos de responsabilização pelo passivooculto desaparecessem em razão de anistia ou programa deparcelamento, a cessão de quotas seria desfeita, retornandoos cedentes à condição de sócios.

O conhecimento da reserva mental não depende deexteriorização da intenção reservada. Aliás, a partereservante normalmente espera que a declaratária nada saibade suas intenções reais. Correspondem estas a desejos quenão pretende confessar. A experiência profissional ou devida da parte declaratária ou mesmo as circunstâncias donegócio, porém, podem fazer com que a vontade real dodeclarante não passe despercebida. Se há fortes razões parao destinatário da declaração não ignorar a reserva mental,deve-se tê-la por conhecida. Se, no exemplo, Giselda e Hebesão pessoas com larga experiência em assumir sociedadesquebradas (chamam-nas “laranjas”), deve-se considerar queconheciam a intenção mentalmente reservada por Evaristo eFabrício.

A reserva mental conhecida da parte declaratária nãoequivale à simulação. Mesmo no caso de reserva bilateral,não há essa equivalência (Nery Jr., 1983:65). De fato, setanto uma parte como a outra, ao expedirem suasdeclarações, fazem reserva mental de suas reais intenções,não convergem necessariamente as intenções reservadas.

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Cada uma pode ter uma intenção oculta diferente. Mesmoquando conhecidas as reservas mentais das respectivasdeclaratárias, isso não faz surgir uma intenção simuladacomum às partes. Na reserva mental bilateral conhecida daspartes declaratárias, o negócio jurídico deve ser alterado emdois sentidos, para se ajustar ao realmente desejado pelaspartes.

Antes de encerrar, convém anotar que a interpretaçãoaqui dada ao art. 110 do CC — o conhecimento da reservamental pela parte destinatária implica a alteração doconteúdo da declaração, para ajustar-se à intenção real daparte reservante — não corresponde à difundida nadoutrina. Tradicionalmente, a reserva mental conhecida daparte destinatária é considerada causa de invalidação donegócio jurídico (Nery Jr., 1983). Entendo, no entanto, que ocodificador, em 2002, acabou conferindo ao institutocontornos diversos dos apontados pela doutrina anterior.Ao tratar, literalmente, da “subsistência da manifestação davontade”, condicionando-a ao não conhecimento da reservamental pela parte destinatária, a lei está contrapondo aintenção interna e sua exteriorização, dando primazia a esta.Tanto assim que, uma vez conhecida a reserva pela outraparte, encontra-se esta na mesma situação em que seencontraria caso não tivesse sido reservada nenhumaintenção; isto é, caso não houvesse divergência entre oquerido internamente e o manifestado. Em nenhum momento,

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a lei está cuidando da subsistência do próprio negóciojurídico.

6. REPRESENTAÇÃOA pessoa física absolutamente incapaz, como já

examinado (Cap. 7, item 3), não pratica negócios jurídicosdiretamente. A opinião do menor de 16 anos ou do interdito,na hipótese de incapacidade absoluta, é juridicamenteirrelevante. Não tem eficácia jurídica nenhuma o fato de eleconsiderar, ou não, do seu interesse o negócio. Sua vontadeserá expressa pelo representante que a lei lhe atribuiu (pais,tutor ou curador). O absolutamente incapaz poderá tambémfazer-se representar por um procurador, caso o seurepresentante legal tenha, em nome dele (incapaz),outorgado mandato a terceiro.

A pessoa relativamente incapaz também não pratica onegócio jurídico diretamente, por si mesmo, porque, para aplena validade deste, é necessário que esteja acompanhadado seu curador, na condição de assistente. Em regra, assim,o relativamente incapaz não é representado, mas assistido.Poderá, contudo, ser representado, como qualquer outrapessoa, se, devidamente assistido, vier a outorgar mandato aalguém.

Já a pessoa física capaz e os demais sujeitos de direito(pessoas jurídicas e sujeitos despersonificados) podemoptar em praticar o negócio jurídico diretamente ou por meio

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de interposta pessoa (mandatária). Neste último caso, haverárepresentação.

6.1. O conceito de representaçãoO conceito de representação possui um significado

amplamente difundido na comunidade jurídica que nãocorresponde, rigorosamente, ao seu conteúdo técnico. Poroutro lado, o seu significado técnico é empregado comambiguidade pela lei. É necessário, assim, para evitarqualquer sorte de desentendimentos, aclarar o corretosignificado da expressão e desfazer a ambiguidade que acerca.

a) Conteúdo técnico de representação. Para aclarar oconteúdo técnico da expressão “representação”, parta-se daevidência de que os sujeitos de direito não humanos —pessoa jurídica e entes despersonificados — têm a vontadeformada e expressada necessariamente por homens emulheres.

Os órgãos de representação das pessoas jurídicas sãoocupados por seres humanos que, submetidos ou não àobservância do princípio majoritário, definem a vontade dasassociações, fundações e sociedades (Cap. 8, item 6). São osseus administradores e diretores. A rigor, dispensando amais estrita atenção ao uso técnico dos conceitos jurídicos,não se poderia chamá-los de representantes legais destas.Eles não são sujeitos de direito investidos de poder para

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manifestar a vontade de outro sujeito; são membros deórgão de entes não humanos com a atribuição de expressar avontade destes. Não representam a pessoa jurídica; fazempresente a vontade dela. Por isso, a designação técnica maisadequada para administradores e diretores de pessoajurídica seria a de presentantes legais (Miranda, 1965,50:385). Desse modo, no rigor da técnica jurídica maisaprimorada, uma sociedade anônima é presentada por seudiretor presidente e pode ser representada por umprocurador.

O que se disse sobre administradores e diretores depessoas jurídicas estende-se aos responsáveis pelamanifestação de vontade dos entes despersonificados (osíndico do condomínio, o administrador judicial da massafalida, o inventariante em relação ao espólio etc.). Eles nãosão, rigorosamente falando, representantes da entidadedespersonalizada, mas pessoas incumbidas de formular avontade desta. Quando o síndico outorga, por exemplo,mandato para um advogado ingressar com ação judicial nopatrocínio de interesse do condomínio, ele está tornandopresente a vontade desse sujeito despersonificado nosentido de nomear aquele profissional seu representante(isto é, do condomínio).

O rigorismo técnico de chamar os responsáveis pelaformação da vontade de entes não humanos porpresentantes legais, porém, tem sido descartado. Nos livros

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de doutrina, na jurisprudência e mesmo na lei, é largamentedisseminado o uso da expressão representante legal paraidentificá-los. Em consequência, é necessário certatolerância. Neste Curso, em vista de sua natureza didática,faço largo uso da expressão “representante” no sentidovulgar. Mas, note-se, chamar os presentantes derepresentantes não significa desconhecer a significativadiferença que existe entre as duas hipóteses. Pelo contrário,mesmo se valendo da expressão tecnicamente inapropriada,não se pode esquecer que o responsável pela manifestaçãoda vontade de sujeito despersonificado não se encontra sobo mesmo regime jurídico do representante investido depoderes pela lei ou por mandato. A implicação é clara erelevante: os arts. 115 a 120 do CC não se aplicam aosadministradores e diretores de pessoas jurídicas, ou aosresponsáveis pela manifestação da vontade dos entesdespersonificados.

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Representação, em sentido técnico,designa a formação da vontade deum sujeito (representado) por outro(representante) em razão de poderesoutorgados pelo próprio interessadoou, se for este incapaz, pela lei. Nãose considera, rigorosamente falando,representante do sujeito não humanoo responsável pela formação davontade deste (administrador oudiretor de pessoa jurídica, porexemplo).

b) Ambiguidade. Representação é conceito de empregoambíguo pela lei. Em sentido largo, abrange toda e qualquerhipótese em que a vontade do sujeito titular do interesse

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jurídico (o representado) é manifestada por outro sujeito (orepresentante), investido de poderes para falar em nome doprimeiro. Nessa acepção, a origem dos poderes derepresentação — se derivados da lei ou concedidos pelavontade do representado — é indistinta. Por exemplo, no art.115 do CC, a lei estabelece que “os poderes derepresentação conferem-se por lei ou pelo interessado”,empregando o conceito no sentido largo.

Quando concedidos por lei os poderes dorepresentante, denomina-se legal a representação, e quandoconcedidos pela vontade do representado, voluntária ouconvencional. O negócio jurídico de outorga de poderes derepresentação pelo próprio representado é o contrato demandato, que se instrumentaliza na procuração. Dessemodo, o que recebe os poderes de representação (chamadomandatário ou procurador) é o representante investido nosseus poderes por vontade do próprio interessado.

Em sentido estrito, representação significa a outorgapela lei dos poderes para expressar a vontade alheia. Agora,tem relevância a origem dos poderes de representação, e nãose consideram os derivados da vontade do representado.Representação, aqui, é sinônimo de representação legal. Oart. 22 do CC, por exemplo, ao cuidar da curadoria dos bensdo ausente, condicionou a nomeação do curador àinexistência de “representante ou procurador a quem caibaadministrar-lhe os bens”, usando o conceito no sentido

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restrito (Cap. 7, item 6.1). Nesse dispositivo, o mandatário ouprocurador, em razão da origem negocial dos poderes quetitulariza, não é considerado espécie de representante.

Em sentido amplo, representaçãoabrange a outorga de poderes paraum sujeito (o representante)manifestar a vontade de outro (orepresentado). Em sentido estrito,significa apenas a outorga derivadada lei. O mandatário ou procurador,que recebe seus poderes pelavontade do representado, não seconsidera representante nessasegunda acepção.

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Em razão da ambiguidade, convém sempre atentar-se aocontexto da norma jurídica, da decisão judicial ou daponderação tecnológica, para não confundir os sentidos daexpressão. Neste capítulo, por exemplo, “representação” éempregada em seu sentido largo, e abrange tanto a legalcomo a voluntária.

6.2. Os poderes de representaçãoO representante está investido de poderes para

manifestar a vontade do representado. Isto é, por todos osnegócios jurídicos que, no exercício da representação, orepresentante praticar em nome do representado, esteresponde como se tivesse sido ele mesmo que o praticarasem a interferência daquele (CC, art. 116).

Os poderes do representante, no caso da representaçãolegal de pessoa absolutamente incapaz, são absolutos, nosentido de não existir negócio jurídico que o representadopossa fazer sem a interferência de seu representante. Omenor de 16 anos e o amental desprovido de discernimentopara o comércio jurídico, por exemplo, não podem praticaratos e negócios jurídicos diretamente, em nenhuma hipótese.Sempre será o representante legal o único sujeito emcondições de manifestar a vontade do absolutamenteincapaz. Já no caso da representação voluntária, os poderessão relativos, porque o representado, em nenhum momento,mesmo no mandato com cláusula “em causa própria” (CC,

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art. 685), fica impedido de praticar o ato diretamente. Arepresentação voluntária não inibe a prática do negóciojurídico pelo representado, por si mesmo, porque a outorgado mandato não importa, em nenhum caso, a transferênciade direitos dele para o representante.

Os poderes de representaçãopodem ser absolutos ou relativos. Noprimeiro caso, em razão darepresentação, o representado nãopode praticar o negócio jurídicodiretamente. No segundo, arepresentação não inibe a prática donegócio jurídico pelo própriorepresentado.

Os poderes de representação classificam-se em amplos

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ou limitados. Os poderes relativos, embora possam ser emtese amplos, são normalmente limitados. O mandante, emgeral, encarrega o mandatário de cuidar de determinadosassuntos. Limita, portanto, os poderes de representação aosnegócios de que não quer ou não pode cuidar diretamente.A sociedade empresária que constitui um mandatário pararepresentá-la numa praça distante de sua sede normalmentecircunscreverá os poderes de representação aos negócioscelebrados nesse mercado.

Mesmo os poderes absolutos não são, via de regra,amplos. Isto porque a lei considera “anulável o negóciojurídico que o representante, no seu interesse ou por contade outrem, celebrar consigo mesmo”, salvo se permitido pelalei ou pelo representado (CC, art. 117). A lei falaimpropriamente em negócio celebrado “consigo mesmo”,relação jurídica que simplesmente não existe. Trata´se deuma metáfora. Se o Banco ABC S.A. outorga a Antoniomandato para vender um imóvel de sua propriedade aopróprio outorgado (Antonio), não há negócio consigomesmo, porque as partes são diferentes. De um lado, comovendedor, Banco ABC S.A., e, de outro, como comprador,Antonio — dois sujeitos de direito diferentes. O fato de umadas partes ser também o representante da outra não suprimea bilateralidade do negócio jurídico.

Assim, como regra, mesmo se absolutos, os poderes derepresentação não podem ser exercidos com o objetivo de

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transferir bem do representado para o representante. Esse éum limite inerente aos poderes de representação, em virtudedo qual o representante não pode ser a outra parte donegócio jurídico em que representa o representado. Claro,poderá sê-lo apenas dentro da ressalva legal, isto é,havendo permissão na lei (em relação aos poderesabsolutosI) ou em declaração de vontade do representado,como no caso do mandato com a cláusula “em causaprópria” (poderes relativos).

Em suma, em qualquer representação há limites. Navoluntária, os especificados pelo representado; na legal, osrelacionados aos negócios em que o representante é tambéma outra parte. Desse modo, o curador do absolutamenteincapaz, malgrado ter poderes absolutos de representação,não pode adquirir para si bens do interdito sem autorizaçãodo juiz, porque não titulariza poderes amplos (CC, art. 1.749,I).

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Os poderes de representaçãopodem ser, também, amplos oulimitados. Os poderes relativoscostumam ser limitados pelos termosdo instrumento de outorga. Emqualquer caso, porém, mesmo no depoderes absolutos, são eles limitadospela anulabilidade dos assimchamados "negócios consigomesmo", uma metáfora paradesignar as relações negociais emque uma das partes é tambémrepresentante da outra parte.

Na hipótese de titularizar poderes relativos limitados, orepresentante deve observar os termos de sua investidura,

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não podendo excedê-los. Em princípio, o representado nãoestá vinculado aos negócios praticados em seu nome comextrapolação dos poderes pelo representante. Por essa razão,o terceiro com quem o procurador entabula relações pelorepresentado também deve acautelar-se e exigir a exibição daprocuração. Se o representante não provar sua qualidade eextensão dos poderes, responderá pessoalmente peloexcesso (CC, art. 118). De qualquer modo, uma vez ciente oterceiro contratante dos limites dos poderes derepresentação outorgados ao mandatário, se celebrar comeste negócio que os excede, não estará contratando com orepresentado. Este só se vincula pelos atos praticados pelorepresentante, nos limites dos poderes de representação.Imagine que Antonio outorgou a Benedito poderes pararepresentá-lo junto a Carlos na locação de um imóvel. SeBenedito assina, em nome de Antonio, um contrato decompra do imóvel de Carlos, ele está praticando em nome dorepresentado negócio estranho ao objeto do mandato.Nesse caso, em princípio, Antonio não se obriga, porquetinha incumbido Benedito de alugar e não de comprar o bem.Por essa razão, convém a Carlos acautelar-se e conhecer oslimites dos poderes outorgados a Benedito.

Mas a questão não se esgota na regra geral de eficáciado mandato circunscrita aos limites dos poderesoutorgados. Há hipóteses particulares em que o direito, paraproteger a boa-fé dos contratantes (teoria da aparência) ou

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em vista da vulnerabilidade de um deles em face do outro(tutela dos consumidores), vincula o representado pelosatos do representante, mesmo se praticados com excesso depoderes.

Se o terceiro contratante sabia (ou deveria saber) dealgum conflito de interesses entre representante erepresentado, o negócio jurídico que realizar com este pormeio daquele é anulável (CC, art. 119). Considera a lei que oconflito de interesses entre representante e representadocompromete a validade da representação, se o terceiro tinhaconhecimento de sua existência ou deveria conhecê-la. Senão havia como o terceiro saber do conflito, e, de fato, nadasabia dele, o negócio jurídico é válido, restando aorepresentado apenas a possibilidade de ressarcir-se junto aoseu representante.

7. MODULAÇÃO DO NEGÓCIO JURÍDICOO negócio jurídico é a declaração de vontade de um

sujeito de direito voltada à produção dos efeitos jurídicospor ele pretendidos e predispostos, genérica ouespecificamente, na lei. Diz-se negócio puro e simplesquando seus efeitos se projetam assim que praticado. Sevou ao supermercado, recolho das gôndolas diversosprodutos cujo preço encontra-se à minha disposição e dirijo-me ao caixa, celebramos eu e o empresário titular daqueleestabelecimento varejista um negócio jurídico de compra e

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venda de bens móveis. Os efeitos são imediatos àcelebração: pagos os produtos que exibi ao caixa, torno-meseu titular.

Há, porém, negócios jurídicos em que o sujeito dedireito declarante não quer que os efeitos perseguidos seprojetem de imediato, logo em seguida à sua realização.Modula, por assim dizer, o negócio a partir de sua vontade.Diz, por exemplo, que somente após a verificação de umevento se dará o efeito pretendido; ou estabelece que,verificado um evento, o efeito indicado deixará de existir; fixauma data a partir da qual ou até a qual o efeito se realiza; ou,ainda, submete-o a determinada contrapartida do sujeitoenvolvido. Os instrumentos para essa modulação são acondição, o termo e o encargo.

A doutrina costuma lecionar que esses instrumentos,aos quais chama de modalidades acessórias do negóciojurídico, seriam os seus elementos acidentais. Enquanto osujeito de direito e o objeto seriam os elementos essenciais,porque sem eles o negócio não existe; a condição, termo eencargo seriam os acidentais, uma vez que existem negóciosjurídicos não subordinados a essas modulações (Rodrigues,2002:239/240; cf. Pereira, 1961:478).

7.1. CondiçãoCondição é a cláusula derivada exclusivamente da

vontade das partes que subordina o efeito do negócio

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jurídico a evento futuro e incerto (CC, art. 121). Se Darcy,produtor de laranjas, vende a Evaristo, que fabrica suco,todas as frutas de sua próxima safra, podem eles pactuar queo negócio fique sujeito à condição de colher-se esta. Querdizer, caso se perca a produção em razão de uma geada,Darcy não será obrigado a vender a laranja, nem Evaristo acomprá-la.

A condição pode ser de duas espécies: suspensiva ouresolutiva. No primeiro caso, os efeitos do negócio jurídicosó se projetam com a verificação do evento (CC, art. 125) e,no segundo, deixam de existir caso o evento se verifique(CC, art. 127). Na verdade, qualquer condição pode serdescrita por dois ângulos. Pelo positivo, a verificação doevento futuro e incerto desencadeia os efeitos do negócio;pelo negativo, sua não verificação obsta que os efeitos seproduzam. No caso exemplificado acima, pode-se descrever acondição no sentido de que, verificada ela, projetam-se osefeitos desejados pelas partes (ângulo positivo); ou nosentido de que, não verificada, deixam de se projetar taisefeitos (ângulo negativo). Em razão disso, pode parecer quequalquer condição poderia ser suspensiva ou resolutiva,simplesmente em decorrência do ângulo escolhido paradescrevê-la. Na verdade, o decisivo para classificar acondição diz respeito à produção de efeitos imediatos àcelebração do negócio, que se frustram com o implemento dacondição — característica da condição resolutiva.

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Inexistindo efeitos imediatos por força de uma condição,será ela suspensiva, malgrado possa ser descrita peloângulo negativo.

O exemplo da venda da laranja condicionada à colheitada safra é pertinente à condição suspensiva. Enquanto nãochega o momento da colheita, nem Darcy tem obrigações devendedor, nem Evaristo, de comprador. Estão ambossimplesmente aguardando a época em que o evento pode,ou não, realizar-se. Veja-se, agora, outro exemplo. Fabríciovende a Germano um cavalo de corrida, acertando que onegócio estará desfeito se o animal não se posicionar entreos primeiros colocados num grande prêmio que se realizaráem seis meses. Os efeitos do negócio jurídico estão já dadosde imediato: Germano deve pagar o preço, e, como dono doanimal, arca com as despesas de seu treinamento emanutenção, inscreve-o nas corridas que quiser etc.Fabrício, a seu turno, não tem, até a época em que o eventofuturo e incerto pode ou não se verificar, nenhumaresponsabilidade de proprietário, nem direito. Chegando omomento do grande prêmio, se o animal acaba seposicionando entre os primeiros colocados, não é desfeita acompra e venda. Ocorrendo, porém, o inverso, resolve-se(isto é, desfaz-se) o contrato por implemento da condição.

Em suma, a condição é suspensiva se nenhum efeito donegócio jurídico se realiza antes do seu implemento; eresolutiva, se todos os efeitos se realizam em seguida ao

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negócio, mas deixam de se realizar caso venha a seimplementar a condição.

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Condição é a cláusula do negóciojurídico, derivada exclusivamente doencontro de vontade das partes, quelhe subordina os efeitos a eventofuturo e incerto. Se, desde logo, osefeitos se projetam, mas podemdeixar de se projetar em razão doevento futuro, é resolutiva acondição. Se, por outro lado, osefeitos não se projetam de imediatomas só depois de ocorrido o eventofuturo, então é suspensiva acondição.

As partes são inteiramente livres para fixar as condiçõesque reputarem adequadas aos seus interesses, desde que

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estas não contrariem a lei, a ordem pública e os bonscostumes (CC, art. 122). Como será visto logo mais, ascondições contrárias à lei invalidam o próprio negóciojurídico, já que a sua ilicitude compromete também a dele,por força de expressa previsão legal (CC, art. 123, II). As quecontrariam a ordem pública e os bons costumes são tambéminválidas, mas não há dispositivo expresso estabelecendo ocomprometimento da validade do negócio jurídico nessecaso. A distinção é importante. Quem vende sob condiçãoilícita, não vende, porque inválido é o próprio negócio. Jáquem vende sob condição contrária à ordem pública ou aosbons costumes, vende incondicionalmente.

Não permite a lei, ademais, condições que privam detodo efeito o negócio jurídico (locação em que a entrega dacoisa ao locatário é condição resolutiva do contrato, porexemplo) ou o sujeita ao puro arbítrio de uma das partes(compra e venda em que a venda fica condicionadaexclusivamente à vontade unilateral do vendedor) (CC, art.122). Nesses casos, não há propriamente ilegalidade dacondição ou do negócio jurídico, mas inexistência deste. Acondição que priva de todo o efeito o negócio jurídico não éilegal, mas impede que este venha a se constituir; a quesubmete a formação do negócio jurídico ao arbítrio de umadas partes também não é ilegal, mas contratá-la equivale anão contratar. Não permite, por outro lado, a lei que sepactuem condições resolutivas impossíveis ou as de não

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fazer coisa impossível (CC, art. 124). Por imperativo lógico,condições como estas não existem. Se o fato que poderiaeventualmente resolver o negócio nunca se realizará, emrazão de sua impossibilidade, então é o negócio que nuncase resolverá por esse motivo; a própria condição não existe.Igualmente, subordinar os efeitos do negócio jurídico à nãorealização de coisa impossível por uma das partes (ou pelasduas) é o mesmo que subordiná-los a nada, já que oimpossível não se pode fazer ou não fazer. Nesses casos, onegócio existe, mas a condição não.

Certas condições, por outro lado, invalidam o negóciojurídico. Aqui, não se cuida de inexistência do negócio ou dacondição, mas de invalidade. O negócio existe, mas não valeporque sujeito a condição legalmente inválida. Trata-se dacondição ilícita ou de fazer coisa ilícita (CC, art. 123, II). SeHebe vende a Irene seu automóvel, estabelecendo elas,como condição resolutiva, que Irene só se tornaráproprietária dele se furtar certo bem de João, o negócio decompra e venda é inválido, porque ilícita a condiçãocontratada.

A lei lista duas outras hipóteses de condições inválidas:a) a física ou juridicamente impossível, quando suspensiva;b) as incompreensíveis ou contraditórias (CC, art. 123, I eIII). Essas hipóteses, contudo, não ampliam as dascondições inválidas. Começo destacando que, se a condiçãosuspensiva é fisicamente impossível, isso equivale à

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inexistência da condição, e não à sua ilegalidade. Não sedeve aplicar, portanto, a primeira parte do inciso I dodispositivo em foco. A impossibilidade jurídica do mesmoinciso I, por outro lado, abrange as mesmas hipóteses dailicitude referida no inciso II. São expressões sinônimas: oque é impossível juridicamente é ilícito; se não for ilícito, éjuridicamente possível. A segunda parte do inciso I, dessemodo, já está abrangida no inciso II do art. 123. Em relação,por fim, ao inciso III, as hipóteses de incompreensão oucontradição da cláusula que estipula a condição não deveinvalidar todo o negócio jurídico, mas unicamente a cláusula.Assim, a condição incompreensível ou contraditória deveser tida também como inexistente, sem se comprometer aexistência e validade do negócio jurídico.

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É inexistente o negócio jurídico sesujeito a condição que o priva detodos os efeitos ou submete suarealização ao puro arbítrio de umadas partes. Por outro lado, éinexistente a condição fisicamenteimpossível. Por fim, é inválido onegócio jurídico sujeito aoimplemento de condição ilícita ou defazer algo ilícito.

O evento futuro e incerto não pode ter seu implementoimpedido intencionalmente pela parte desfavorecida pelaverificação da condição, nem o seu implemento provocadofraudulentamente pela parte favorecida pela sua verificação.Desse modo, para coibir esses atos de má-fé, reputa-severificada a condição, quanto aos efeitos projetados pelaspartes, se seu implemento tiver sido maliciosamente obstado

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pela parte a quem desfavorecer. Igualmente, dá-se por nãoverificada a condição cujo implemento derivou de açãomaliciosa da parte a quem favorecer (CC, art. 129). Noexemplo da venda do cavalo, entre Fabrício e Germano,considere que este, por ter-se arrependido do negócio, nãoalimenta nem treina adequadamente o animal, ou instrui ojóquei a não se empenhar no grande prêmio. Tem ele oobjetivo de levar a efeito, a qualquer custo, o implemento dacondição resolutiva. Reputa-se, entretanto, não verificada aresolução, para coibição da fraude perpetrada.

O titular de direito eventual, sujeito à implementação decondição suspensiva ou à não verificação da resolutiva, temtutelado pela lei o interesse em defendê-lo desde logo (CC,art. 130). Se me tornarei proprietário de uma fazenda, casoocorra o evento contratado, e vejo que a estão invadindo,encontro-me já legitimado à ação possessória, mesmo antesde implementada a condição suspensiva. Do mesmo modo,ninguém pode ser considerado parte ilegítima, na ação dedefesa de certo bem, ao pretexto de que pende condiçãoresolutiva. Se adquiri a fazenda sob a condição de, em trêsanos, alcançar determinado nível de produção, já estoulegitimado para defender minha posse, malgrado o eventofuturo e incerto capaz de me subtrair a propriedade.

7.2. TermoComo regra geral, os negócios jurídicos entre vivos são

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prontamente exequíveis (CC, art. 134). Feita a declaração pelaparte, no negócio unilateral, ou alcançada a convergência dedeclarações das partes, nos demais, segue-se a execução davontade declarada com vistas a alcançar os efeitosperseguidos. Não se verifica a imediata exequibilidade donegócio entre vivos se a execução tiver de ser feita em lugardiverso daquele em que se encontra o declarante oudeclarantes ou depender materialmente de tempo. Nosnegócios jurídicos causa mortis, os efeitos são postergadospara o dia em que ocorrer o falecimento do declarante.

Essas regras gerais atinentes ao tempo em que seprojetam os efeitos do negócio jurídico não se aplicam se ossujeitos de direito participantes houverem estabelecido emsentido diverso. Assim, por vontade das partes, a projeçãodos efeitos do negócio jurídico pode ser postergada paradeterminado dia após a declaração que o constitui, assimcomo pode ser encerrada em época por elas predefinida.Locador e locatário podem, por exemplo, assinar o contratode locação no dia 20 de setembro de um ano, fixando que elase iniciará no dia 20 de novembro do mesmo ano. Os efeitosdesse negócio (dever de o locatário pagar o aluguel, deverde o locador entregar a coisa locada etc.) não se realizamantes da data estabelecida, de comum acordo entre aspartes.

Quando o início e o fim dos efeitos do negócio jurídicooperam-se em função do tempo, chama-se termo o fato

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jurídico que implementa um e outro. Ao contrário dacondição, que corresponde a evento futuro e incerto (quepode ou não se verificar), o termo corresponde a eventofuturo e certo (que não deixará de se verificar). O inexorávelfluir do tempo fará inevitavelmente com que a data fixadapara início dos efeitos do negócio jurídico se verifique.Também fará inevitavelmente com que ocorra a estabelecidapara encerramento desses efeitos.

A data em que têm início os efeitos do negócio jurídicochama-se termo inicial, termo suspensivo ou dies a quo; adata em que estes têm fim é denominada termo final, termoresolutivo ou dies ad quem. Ao termo inicial e final, diz a lei,aplica-se, no que couber, o disposto respectivamente sobrecondição suspensiva e resolutiva (CC, art. 135).

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Termo inicial é o dia em que osefeitos do negócio jurídico têminício; termo final, o dia em quedeixam de existir. Prazo é o lapsoentre a declaração constitutiva donegócio jurídico e o termo, ou entreo termo inicial e o final.

Prazo é o tempo decorrido ou a decorrer entre adeclaração e o termo, ou entre o termo inicial e o final. Se alocação é contratada para ter início em três meses a contarda data da assinatura do instrumento do contrato, ointerregno entre a declaração convergente de vontade delocador e locatário e o termo inicial é o prazo para início dosefeitos do vínculo locatício. Se, ademais, é contratada porprazo determinado de trinta meses, o período entre os termosinicial e final do negócio jurídico corresponde ao prazo devigência da locação.

A lei prescreve regras para contagem dos prazos.

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Primeira, salvo disposição em lei ou contrato, os prazoscomputam-se excluindo o dia do começo e incluindo o dovencimento (CC, art. 132). Desse modo, dez dias após 1º defevereiro cai em 11 de fevereiro (despreza-se o dia 1º, que é odo começo, somam-se dez dias a partir de 2 de fevereiro einclui-se o 10º dia). Se o devedor deve pagar nesse prazo, seo fizer até o último minuto do dia 11 de fevereiro, teráadimplido sua obrigação tempestivamente (isto é, a tempo).

Segunda, se o dia do vencimento cair em feriado,prorroga-se o prazo até o dia útil seguinte (CC, art. 132, § 1º).Para a generalidade dos negócios jurídicos, o dia é útil se, nolocal de sua execução, não for feriado municipal, estadual oufederal. Apenas para os negócios sujeitos ao direitocomercial a regra é mais precisa: será útil se houverexpediente bancário (Lei n. 9.492/97, art. 12, § 2º). Lembre-seque o ponto facultativo, vez por outra decretado peloschefes dos Poderes, apenas autoriza a suspensão dotrabalho do funcionário público pelas respectivas chefias, e,por isso, não torna o dia feriado para os efeitos do direitoprivado. Se, no exemplo acima, o dia 11 de fevereiro daqueleano for um sábado, o prazo de dez dias, contados a partir de1º de fevereiro, encerrar-se-á no primeiro dia útilsubsequente, ou seja, 13 de fevereiro, segunda-feira.

Terceira, meado considera-se o 15º dia do mês,independentemente do total de dias que ele possua (CC, art.132, § 2º). Se o vencimento da obrigação está previsto para

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“meados de fevereiro”, dar-se-á em 15 de fevereiro, emboraesse mês tenha, na maioria das vezes, apenas 28 dias.

Quarta, prazos de meses e anos expiram no dia de igualnúmero do de início (CC, art. 132, § 3º, primeira parte). Se aspartes convencionaram que os serviços seriam prestadospor cinco anos a contar da data da assinatura do contrato, eesta se deu em 1º de fevereiro de 2003, o termo final será odia 1º de fevereiro de 2008. No caso de não existir dia denúmero igual, considera-se concluído o prazo no imediato(CC, art. 132, § 3º, segunda parte). Desse modo, o prazo deum mês a contar de 31 de agosto, cai em 1º de outubro; o deum ano a contar de 29 de fevereiro de ano bissexto cai em 1ºde março do ano seguinte. Note-se que a regra vigente nodireito cambiário é diferente, já que, em razão do art. 36 daLei Uniforme de Genebra, os meses contam-se pelos meses eos dias, pelos dias. Assim, para contagem de prazos devencimento de uma nota promissória ou de apresentação decheque ao banco sacado, um mês a contar de 31 de agostoserá o dia 30 de setembro, e um ano a contar de 29 defevereiro de ano bissexto cairá em 28 de fevereiro do anoseguinte.

Quinta, os prazos fixados em hora contam-se de minutoa minuto (CC, art. 132, § 4º). Trata-se de hipótese muito rara,pelas dificuldades que encerra. A consulta ao calendário ésuficiente para eliminar qualquer dúvida sobre a data em quese deu certo evento, mas a hora exata já depende de

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variáveis menos precisas. Mas, de qualquer modo, fixandoas partes do negócio jurídico um prazo em horas, ele serácontado por minuto. Note-se que não sendo a hora aunidade de medida do tempo, ela não tem importância. Se ocontrato é assinado às 13:40 horas do dia 1º de outubro, paravigorar por meses ou anos, a hora da assinatura, ainda quelançada no instrumento, não tem relevância nenhuma.

Os prazos presumem-se estabelecidos em favor dodevedor. Quer dizer, em princípio, para cumprir a obrigação,não precisa o devedor aguardar o início do prazo contratado.Essa presunção da lei apenas não se opera quando do teordo instrumento ou das circunstâncias em que foi celebrado onegócio jurídico decorrer que o objetivo da fixação do prazofoi favorecer o credor. Nos testamentos, presume-se fixado oprazo em favor do herdeiro.

7.3. EncargoNos negócios jurídicos gratuitos, isto é, que decorrem

de liberalidade do declarante (disponente), o efeito dadeclaração pode estar sujeito, por força da disposição devontade deste, ao cumprimento de uma obrigação por partedo beneficiário. Quem pode o mais, pode o menos — diz umbrocardo jurídico sem lógica nenhuma, mas de grandeoperacionalidade tecnológica. Se o disponente pode nãoliberalizar nada de seu patrimônio, pode também liberalizardesde que o beneficiário concorde em dar, fazer ou não fazer

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algo. No testamento, por exemplo, o testador podeestabelecer que deixa determinado bem como legado a umherdeiro (dinheiro empregado num fundo de investimento)desde que este concorde em executar certa obrigação e aexecute (formar-se num curso superior). A doação, outroexemplo, pode ser contratada com ou sem encargo. Noprimeiro caso, o donatário não tem nenhuma obrigação acumprir para tornar-se proprietário da coisa doada; nadoação com encargo, ao revés, ele só titulariza a propriedadese cumprir a obrigação constante do contrato.

Deve ser pequeno o valor do encargo, quandocontraposto ao da prestação a que o beneficiário fará jus seo cumprir. Se o encargo não valer pouco diante daprestação, terá a natureza de remuneração, desconstituindo-se a natureza gratuita do contrato (Cap. 32, item 1).

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O negócio jurídico gratuito pode,ou não, estar sujeito a encargo porvontade do declarante que pratica aliberalidade. Salvo se o encargo serevestir de expressa naturezasuspensiva, corresponderá àscondições resolutivas. Assim, obeneficiário do negócio gratuito é,desde logo, titular do objetonegocial e apenas deixará de sê-locaso não cumpra com acontrapartida.

Em princípio, o encargo (também chamado de modo) nãosuspende a aquisição nem o exercício do direito (CC, art.136). Tem correspondência, assim, com as condições

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resolutivas. Via de regra, pois, o beneficiário da liberalidadejá se investe na condição de titular do objeto negocial, tãologo se iniciem os efeitos do negócio jurídico gratuito. Nãocumprindo a obrigação — dentro do prazo assinalado pelodisponente, ou num prazo razoável em caso de omissão —,podem os interessados (por exemplo, herdeiros legítimos dotestador, o próprio doador ou seus sucessores) postular adecretação, em juízo, da ineficácia do negócio jurídico, paraque o bem retorne ao patrimônio originário.

A correspondência entre o encargo e as condiçõesresolutivas é a regra geral, que pode ser excepcionada pelavontade do declarante. Se o testador, doador ou outrodisponente estabelecer expressamente o encargo comocondição suspensiva, o herdeiro, donatário ou beneficiadosó são proprietários do objeto negocial após executarem acontrapartida que lhes foi atribuída.

Se o encargo é ilícito ou impossível, deve-se verificar seé o motivo determinante da liberalidade ou não. Em sendo, onegócio jurídico gratuito é inválido. Caso contrário,preserva-se a validade do negócio, mas considera-seinexistente (não escrito) o encargo (CC, art. 137). Exemplo:um grande matemático pode doar a um pupilo genial certaquantia em dinheiro, com o encargo de resolver um problemaintrincado. Mostrando-se, depois, impossível a solução doproblema, o bem pertencerá ao professor ou ao alunodependendo da motivação que levou o primeiro à

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liberalidade. Se pretendia premiar precisamente a resoluçãodo problema, a impossibilidade de execução do encargocompromete a validade do negócio jurídico. Mas se aintenção era, na verdade, apenas estimular o aluno àreflexão, o encargo considera-se inexistente, porém válida adoação. No primeiro caso, o dinheiro objeto do negóciojurídico pertence ao matemático; no segundo, ao aluno.

8. EXISTÊNCIA DO NEGÓCIO JURÍDICOA existência e validade são atributos diferentes do

negócio jurídico (Azevedo, 1974). Para existir o negóciojurídico é necessária, inicialmente, a conjugação dos seuselementos essenciais: sujeito de direito, declaração e objeto.É necessário, em outras palavras, que pelo menos um sujeitode direito emita declaração de vontade acerca de um objeto.Mas isso é apenas o esquema geral. A existência do negóciojurídico depende ainda de determinadas características dadeclaração e do objeto. Ele não surge, deveras, de qualquerdeclaração de vontade sobre qualquer objeto.

Em relação à declaração, deve ser ela intencional, isto é,deve ter por finalidade produzir os efeitos jurídicospretendidos pelo declarante. Nem todos os atos voluntários,lembre-se, são intencionais e apenas estes últimos seconsideram negócios jurídicos. A seriedade é outraqualidade da declaração que, dependendo do contexto,exige-se do sujeito de direito. Os atores, claro, não se

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vinculam às declarações intencionais de vontade que emitemao representarem personagens. Quem se encontra numamesa de bar, entre amigos, e emite certa declaração jocosa edivertidamente descabida também não está praticandonenhum negócio jurídico. Porém, se as circunstâncias quecercam a declaração de vontade são sérias, o sujeito nãopode, posteriormente, pretender a inexistência do negóciojurídico alegando que estava apenas brincando.

Quanto ao objeto, deve ser possível de existir. Se adeclaração intencional de vontade diz respeito a objetoimpossível, não é negócio jurídico. Aqui, está-seconsiderando apenas a possibilidade material do objeto. Nãohá negócio jurídico referido a algo que não pode existir.Quem declara intenção de alienar bem impossível de existirnão faz negócio jurídico, mas ato ilícito (Cap. 11). A leibrasileira impropriamente define a “possibilidade” do objetocomo requisito de validade do negócio jurídico (CC, art. 104,II) sem aclarar se menciona a física ou a jurídica. Apossibilidade física não é requisito de validade, maspressuposto de existência do negócio jurídico, enquanto ajurídica diz respeito à licitude do objeto, requisito tambémmencionado no mesmo dispositivo (item 10.2).

A conjugação dos elementos essenciais, por si, não fazsurgir o negócio jurídico. Para que ele exista, é condiçãonecessária a sua juridicidade. Ou seja, a declaraçãointencional de vontade de um sujeito de direito sobre objeto

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possível é negócio jurídico apenas se uma norma jurídica,genérica ou especificamente, descrever esse fato comodesencadeador dos efeitos pretendidos pelo sujeitodeclarante. A descrição normativa genérica se encontra, porexemplo, no princípio da autonomia da vontade ou nadisciplina dos contratos atípicos (CC, art. 425). A descriçãoespecífica é relativa a negócios particulares, comotestamento, contratos típicos (compra e venda, doação,alienação fiduciária em garantia etc.), casamento, emissão decambiais e outros. Sem a norma jurídica atribuindo àdeclaração intencional de vontade os efeitos objetivadospelo sujeito de direito não há negócio jurídico.

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Existência e validade do negóciojurídico são atributos diferentes.Existe o negócio jurídico quando umsujeito de direito faz uma declaraçãode vontade sobre um objeto possívelcom a intenção de produzirdeterminados efeitos, e desde queestes estejam previstos em normajurídica como produzíveis poraquela declaração. Existente, onegócio jurídico pode ser válido ouinválido.

Se alguém declara que é, a partir da declaração, o titulardo domínio de todos os terrenos vagos da cidade em quemora, estão presentes todos os elementos essenciais do

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negócio jurídico e suas características (sujeito de direito,declaração de vontade, intenção e objeto possível), mas elenão existe porque falta juridicidade. Aquela emissão deintenção não é fato jurídico, porque não se encontra descritacomo antecedente dos efeitos pretendidos pelo sujeito dedireito.

A validade do negócio jurídico, por sua vez, depende doatendimento a certos requisitos (item 10) e da inexistência devícios (item 11). Só o negócio que existe pode ser válido ouinválido. Também não se confundem existência e validadedo negócio jurídico com sua eficácia. O negócio jurídicoexistente pode ser eficaz ou não, mas o inexistente nuncaproduz efeitos jurídicos (item 8.2). As relações entre eficáciae validade, por sua vez, variam conforme os interessesrelacionados ao negócio jurídico estejam ou não em conflito(item 9).

8.1. Prova do negócio jurídicoQuando se desentendem as partes acerca do

cumprimento do negócio jurídico, a superação do conflitodeve ser feita por meio do Poder Judiciário. O juiz, norteadopelas normas jurídicas, decidirá qual parte tem razão em suaspostulações. O processo pode versar sobre a interpretaçãoda declaração expedida por um dos sujeitos de direito, aexata determinação do objeto ou mesmo a validade donegócio, dando-se, nesses três casos, por indisputável que

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este existe. Mas pode o processo judicial, também, referir-seà própria existência do negócio jurídico. Uma das parteslitigantes afirma que possui um vínculo negocial com a outrae esta nega.

Sempre que a superação do conflito de interessesrelativo a negócio jurídico tiver por objeto a existência deste,a parte que alega ter-se constituído o vínculo negocial tem oônus de prová-lo. O Código Civil estabelece algumas regrasconcernentes à prova do negócio jurídico, que serão aquimencionadas brevemente, já que essa matéria é normalmenteestudada pelo direito processual civil.

Variam os instrumentos de prova do negócio jurídico emrazão de sua classificação quanto à forma. Os negóciossolenes provam-se por meios diferentes dos não solenes.

Os negócios formais são provados exclusivamente pelaexibição do instrumento compatível com o atendimento daforma especial exigida por lei. Desse modo, não se admite aprova da existência do casamento a não ser pela certidãoexpedida pelo Registro Civil de Pessoas Naturais em que seencontra lavrado o negócio jurídico. Um testamento, porexemplo, não pode ser provado por outros meios a não serpela escritura pública passada no tabelionato (testamentopúblico), pelo documento assinado pelo testador, e fechadoe costurado pelo tabelião (testamento cerrado), pelo escritodo testador na presença de três testemunhas (testamentoparticular) ou pelos suportes adequados dos testamentos

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especiais (marítimo, aeronáutico e militar). Não se prova aexistência de testamento, por exemplo, pelo depoimento,ainda que verdadeiro e inconteste, de várias testemunhasque presenciaram os últimos minutos de vida de umapessoa, e nos quais ela manifestara claramente a vontade dedeixar bens a certos herdeiros ou legatários.

Os negócios aformais, por sua vez, provam-se mediante:a) Confissão. Pela confissão, a parte que alegara a

inexistência do negócio jurídico afirma a verificação de fatosque desacreditam sua alegação. Se Antonio pretende emjuízo a declaração de inexistência de determinada relaçãonegocial, mas, ao depor perante o juiz, afirma ter feito adeclaração de vontade constitutiva dessa relação, a provada existência do negócio jurídico decorre de confissão.

Se o depoente não é capaz para dispor do direito a quese referem os fatos confessados, a confissão é ineficaz (CC,art. 213). Em consequência da ineficácia da confissão, aexistência do negócio jurídico não se reputa provada pelodepoimento do incapaz. Isso não significa, porém, que onegócio será também ineficaz ou que não exista. Outrasprovas podem demonstrar a sua existência. Se a confissão éfeita pelo representante da parte, a eficácia probatória limita-se pelos poderes de que se encontrava investido (CC, art.213, parágrafo único). É ineficaz a confissão feita peloadvogado, por exemplo, que recebera poderes ad juditia(que o habilitam a postular em juízo por seu cliente), mas não

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os especiais para confessar.

Os negócios jurídicos formais só seprovam pela forma especial exigidapor lei. Os aformais provam-se porqualquer meio admitido em direito,como a confissão, documentospúblicos ou particulares,testemunhas e perícia.

b) Documento. Os instrumentos escritos provam aexistência do negócio jurídico que neles se reproduz. São deduas espécies: público ou particular.

São documentos públicos os instrumentos exarados porquem se encontra investido, por lei, de fé pública, como otabelião ou o escrivão do cartório judicial. Isso significa queo fato narrado num documento público, que atende àsrespectivas formalidades, está, em princípio, plenamente

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provado. Se o sujeito faz qualquer declaração perante otabelião e este a reproduz em escritura pública, torna-seindisputável que a declaração foi feita por aquele sujeito(CC, art. 215). Resta discutir apenas quais são os efeitos quetal declaração está apta a produzir.

A escritura pública é exemplo de documento revestidode fé pública. São seus requisitos, além de outros exigidosem normas específicas: i) data e local em que foi lavrada; ii)reconhecimento, pelo tabelião, da identidade e capacidadedas partes e de todos que tenham comparecido ao ato(representantes, intervenientes ou testemunhas); iii) nome,nacionalidade, estado civil, profissão, domicílio e residênciadas partes e demais comparecentes, indicando-se, quandonecessário, o regime de bens do casamento, o nome docônjuge e a filiação; iv) manifestação clara da vontade daspartes e dos intervenientes; v) referência ao cumprimento deexigências legais e fiscais quando inerentes à legitimidadedo ato; vi) declaração de ter sido a escritura lida na presençadas partes e demais comparecentes, ou a de que todos ale ra m; vii) assinatura das partes e de todos quecompareceram ao ato; viii) termo de encerramento com aassinatura do tabelião ou de seu substituto legal (CC, art.215, § 1º).

As certidões e traslados fornecidos pelo tabelião ouoficial de registro acerca do constante de suas notas sãooutros documentos públicos que provam os negócios

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jurídicos correspondentes. O casamento celebrado no Brasil,por exemplo, prova-se pela certidão do registro (CC, art.1.543). As declarações feitas em processos judiciais, porexemplo, são provadas por certidão lavrada pelo escrivão docartório judicial responsável pelos autos do processo, desdeque contenha a reprodução textual do que o sujeitomanifestou em audiência ou petição (CC, arts. 216 a 218).

O documento particular é o escrito assinado pelaspartes do negócio jurídico. Em geral, é minutado por umprofissional da advocacia, mas nada impede que os própriosinteressados, sem o auxílio do advogado, elaborem-no.Presumem-se verdadeiras as declarações constantes dedocumento particular em relação aos signatários (CC, art.219). Se alguém assina papel em que dá bem de seupatrimônio a outrem, é ônus do primeiro provar que onegócio jurídico não existiu, já que o documento particularcria a presunção de sua existência. Outros documentoselaborados pelos particulares podem, nos limites legais,servir de prova da existência de negócios jurídicos, assim ostelegramas (CC, art. 222) e a escrituração dos empresários esociedades empresárias (CC, art. 226).

c) Testemunhas. A prova de que certos sujeitosintegravam uma relação negocial pode decorrer do relato defatos pertinentes feito por uma ou mais testemunhas peranteo juiz. Não se pode, contudo, provar exclusivamente portestemunhas a existência do negócio jurídico cujo valor

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ultrapasse dez vezes o maior salário mínimo. Para osnegócios dessa envergadura, a prova testemunhal ésubsidiária ou complementar da prova escrita, exceto se a leia considerar plena em casos específicos (CC, art. 227).

Certas pessoas estão impedidas de testemunhar, sejaem razão da falta de amadurecimento, seja por obstáculofísico ou carência de isenção. Os menores absolutamenteincapazes, os cegos e surdos, quando a ciência do fatodepender dos sentidos deficientes, bem como osinteressados no litígio, o amigo íntimo ou o inimigo capitaldas partes, o cônjuge e parentes até certo grau não sãoconfiáveis o suficiente para que o relato deles ao juiz prove aexistência do negócio jurídico. A critério do juiz, porém,poder-se-á colher o depoimento dessas pessoas quandoapenas elas conhecerem os fatos objeto de disputa judicial.Há, também, pessoas que estão dispensadas de servir detestemunhas, ainda que conheçam os fatos que a justiçaquer esclarecer. São as que devem guardar segredo sobreeles em razão do estado ou profissão, as que não possamfalar sem se expor à desonra, risco de vida, demanda oudano patrimonial imediato, ou sem que exponham a essesriscos o cônjuge, parente em grau sucessível ou amigoíntimo (CC, art. 229).

d) Presunção. A presunção que deriva da constataçãode fatos pelo juiz é meio de prova. Se algum acontecimento énotório, o juiz pode presumir que as partes dele tinham

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conhecimento. Também, se há indícios de que certo atofraudulento foi praticado, mas não há acerca dele nenhumaprova definitiva, o juiz, a menos que haja elementosprobatórios indicando o contrário, está autorizado apresumir a ocorrência do ilícito. Feita a presunção,considera-se provado o fato.

Anote-se que as presunções listadas, pela lei, comomeio de prova (CC, art. 212, IV) são apenas as derivadas deconstatações de fato pelo julgador (chamadas depresunções simples). As presunções legais, embora serelacionem com a questão probatória, não podem serconsideradas propriamente como provas. Há dois tipos depresunção legal, a absoluta e a relativa, e nenhum deles émeio de prova. Quando a norma jurídica estabelece umapresunção absoluta, ela está tornando certo fato (opresumido) insuscetível de contraprova. A presunção dessetipo, na verdade, não prova o negócio jurídico, mas oconsidera existente para todos os efeitos de direito. E,quando a norma estabelece uma presunção relativa, ela estáapenas distribuindo o ônus probatório. Nas hipóteses deresponsabilidade subjetiva com inversão do ônus de prova,por exemplo, presume-se a culpa do agente causador dodano. Isso não significa que ele será inexoravelmenteresponsabilizado; significa apenas que a vítima não tem oônus de provar a conduta culposa do agente causador dodano, e este, por sua vez, tem o ônus de provar a

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inexistência de culpa. Em outros termos, a presunção relativaimporta a redistribuição dos encargos probatórios entre aspartes da relação jurídica.

As presunções estabelecidas pelalei são de duas espécies: absolutasou relativas. As presunçõesabsolutas tornam determinado fatoinsuscetível de contraprova. Asrelativas invertem o ônus de prova,transferindo-o de quem alega o fatopresumido para quem favoreceria aprova de sua inocorrência.

A presunção simples é admissível como meio de provaunicamente nas hipóteses em que o fato é passível decomprovação por testemunhas (CC, art. 230).

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e) Perícia. A perícia é a prova derivada de exame deobjeto periciável por especialistas. Se alguém alega que suaassinatura foi falsificada no instrumento particular em quedeclara celebrar certo negócio jurídico, a outra parte podeprovar, por perícia, que a firma é autêntica. Nesse caso,peritos em grafologia examinam o documento particular e aassinatura da parte e, em laudo técnico, atestam asemelhança. Ficará, então, provada a existência do negóciojurídico pela prova pericial. Em determinadas hipóteses, arecusa em se submeter à perícia pode ser considerada, pelojuiz, a prova do fato que se pretendia demonstrarpericialmente. Assim, nas ações de reconhecimento depaternidade, se o pretenso pai se nega a submeter-se àperícia médica ordenada pelo juiz, a recusa poderá suprir aprova da filiação biológica (CC, art. 232).

8.2. Negócio jurídico inexistenteSe o negócio jurídico não reúne os elementos essenciais

e a juridicidade, ele não existe como tal. Se a declaração devontade dirigida à produção dos efeitos pretendidos pelosujeito declarante não é descrita em norma jurídica comoantecedente de tais efeitos, ela não é negócio jurídico. E,então, abrem-se duas alternativas: a norma jurídica descreveessa declaração como antecedente de consequênciasdiversas dos efeitos pretendidos pelo declarante, ou aignora. No primeiro caso, imputa-se sanção ao sujeito

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emissor da declaração, e esta tem a natureza de ato ilícito(Cap. 11). É exemplo a do estelionatário vendendo bempúblico a desavisados. No segundo caso, a declaração não ésequer fato jurídico.

O negócio jurídico inexistente não pode ser válido —nem inválido, aliás. A validade é atributo dependente daexistência do negócio. Antes de valer ou não valer, onegócio tem de existir (Miranda, 1965, 4:39). O negócioinexistente não produz, por outro lado, efeitos jurídicos. Aeficácia é também um atributo dependente da existência.

O negócio jurídico inexistente ouserá ato ilícito (se a declaraçãoemitida estiver sancionada na normajurídica) ou nem sequer seconstituirá fato jurídico.

A importância do conceito de negócio jurídicoinexistente está na sua contraposição aos negóciosinválidos. Enquanto estes podem, em determinados casos,

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inclusive de invalidade absoluta, produzir certos efeitosjurídicos, os inexistentes não produzem efeito nenhum. Veja-se o exemplo do casamento putativo, que, embora nulo ouanulável, produz todos os efeitos quando estão os cônjugesde boa-fé (CC, art. 1.561). Trata-se de casamento existente,malgrado o vício de validade. Difere-se, por exemplo, docasamento entre pessoas do mesmo sexo. Nesse caso, onegócio jurídico nem sequer se forma, porque a lei brasileiranão atribui à declaração de vontade dos homossexuaisvoltada à criação do vínculo matrimonial os efeitos jurídicosdo casamento. Trata-se, aqui, de negócio jurídicoinexistente, inapto a produzir quaisquer efeitos (Rodrigues,2002:290/292). Atente-se bem aos contornos da questão:aquela declaração de homossexuais não produz os efeitosdo casamento porque é negócio jurídico inexistente (falta-lhejuridicidade); se eles viverem como casados ou casadas econstruírem patrimônio comum, esses fatos (não adeclaração da intenção de casarem) têm efeitos jurídicos.

9. EFICÁCIA E VALIDADE DO NEGÓCIO JURÍDICONegócios jurídicos são declarações de vontade

destinadas a produzir os efeitos pretendidos pelos sujeitosque as emitem. Para que o objetivo perseguido pelodeclarante seja alcançado, o negócio jurídico deve ostentaratributo, que varia segundo uma circunstância fundamental.Por outras palavras, quando não há conflito de interesses

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entre as partes do negócio jurídico (ou entre a parte donegócio jurídico unilateral e os envolvidos, ou mesmo entreestes últimos), a eficácia deste importa a realização dosefeitos objetivados. Quando há tal conflito de interesses,porém, o atributo que garante a realização dos efeitosperseguidos pela parte é a validade do negócio jurídico.

O negócio jurídico é eficaz quando, independentementede sua validade, é cumprido por completo pelas partes. Osobjetivos que motivaram os sujeitos de direito a praticarem onegócio jurídico realizam-se em virtude de atos espontâneosdeles, no cumprimento exato de tudo quanto havia sidoobjeto de declaração. Seja porque consideram importantemanter a palavra dada em quaisquer circunstâncias (razõeséticas), seja porque identificam no cumprimento dadeclaração anteriormente expedida a melhor alternativa aosseus interesses atuais (razões econômicas), as partes levama efeito o negócio jurídico tal como previsto em suaconstituição. Quando não há conflito de interesses, o quegarante o cumprimento do negócio jurídico são as razõeséticas ou econômicas mobilizadas pelos sujeitos de direito,que os fazem conferir plena eficácia às respectivasdeclarações.

Havendo, porém, conflito de interesses entre as partesdo negócio jurídico (ou, sendo este unilateral, entre a parte eos envolvidos, ou entre estes), a realização dos objetivosbuscados quando da emissão da declaração dependerá de

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provimento judicial. O interessado no cumprimento donegócio jurídico, por meio da ação apropriada, postulará aojuiz que constranja a parte ao adimplemento das obrigaçõescontraídas. O aparato repressor do Estado, porém, somenteserá movido se o negócio jurídico em questão ostentar oatributo da validade. Se for válido, o juiz determinará asprovidências tendentes à realização dos efeitos a que estavapredisposto o negócio jurídico; mas se não for, taisprovidências não serão determinadas.

Imagine que Antonio concorda em conceder empréstimoa Benedito desde que este lhe dê, em garantia, um imóvel.Benedito tem, em seu patrimônio imobiliário, apenas a casaem que mora com a família, mas, precisando do dinheiro,concorda com a condição. Assinam um documentoparticular, em que se afirma estar sendo dada a casa comogarantia de pagamento a Antonio. Em termos técnicos, o queas partes pretenderam fazer foi instituir uma hipoteca, que éa garantia real sobre bem imóvel. A outorga desse tipo degarantia, porém, não pode ser validamente celebrada semescritura pública, quando o imóvel onerado vale mais detrinta salários mínimos (CC, art. 108). Diga-se que é esta ahipótese da casa de Benedito. Trata-se, portanto, aconstituição da garantia real pretendida pelas partes de umnegócio jurídico inválido.

Pois bem, deixando Benedito de honrar, no vencimento,sua obrigação, Antonio pode procurá-lo para discutir o

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assunto. Se for movido por razões éticas ou econômicas,Benedito pode espontaneamente praticar atos que resultemna plena eficácia da declaração de vontade anteriormenteemitida. Isto é, pode vender a casa para, com o dinheirorecebido na venda, pagar Antonio. Não sendo este o caso,porém, instaura-se o conflito de interesses: o credor quer vera garantia dada ao pagamento de seu crédito realizada e odevedor não quer espontaneamente praticar os atoscorrespondentes. Note-se, porém, que Antonio poderábuscar em juízo o recebimento de seu crédito, já que o mútuoé válido — de fato, como negócio principal, o empréstimonão tem sua validade comprometida pela nulidade donegócio de garantia, que é acessório —, mas não terá odireito de obter, em juízo, a penhora da casa de Benedito,porque a residência do devedor e sua família só pode serpenhorada (entre outras exceções) se tiver sido dada emhipoteca válida.

Em suma, no exemplo acima, quando não havia conflitode interesses, a eficácia do negócio jurídico importou arealização de todos os efeitos pretendidos pelas declaraçõesde vontade correspondentes. Mas, instaurado o conflito, omesmo negócio jurídico não pôde realizar-se em todos osefeitos queridos pelas partes por lhe faltar o atributo davalidade.

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Quando não há conflito deinteresses, os efeitos pretendidospelas partes ao celebrarem onegócio jurídico realizam-se emvirtude de sua eficácia eindependentemente da validade.Quando há conflito de interesses,esses efeitos só se realizam por meiodo Poder Judiciário e em virtude davalidade do negócio jurídico.

Destaque-se que a validade do negócio jurídico écondição para a parte conseguir, em juízo, que seus efeitossejam realizados. Ninguém tem o direito de ver efetivadojudicialmente negócio jurídico inválido. Por outro lado, epelas mesmas razões, a invalidade do negócio jurídico podeser invocada, para negar-lhe eficácia, pela parte que nãoquer ver realizados os objetivos para os quais ele se

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destinava. Considere, por exemplo, que Carlos é menor com17 anos de idade e, com a morte do avô, famoso jurista,recebeu por legado uma biblioteca jurídica de grande valor.Imagine que ele, por outro lado, não tem interesse nenhumem carreira ligada ao direito; está, na verdade, interessadoem se profissionalizar como surfista. Para levantar osrecursos que necessita para alcançar esse objetivo, Carlosvende, sem a assistência dos pais, a um advogado, Darcy, avaliosa biblioteca. Já se sabe que o jovem ainda érelativamente incapaz e, por isso, não poderia ter praticado onegócio jurídico sem a devida assistência. A venda dabiblioteca, portanto, não foi válida. Se Carlos arrepender-sedo negócio, poderá, devidamente assistido por seus pais,buscar em juízo a invalidação da venda da biblioteca, paradevolver o dinheiro recebido e ter de volta seus livros. Mas,se estiver realmente decidido a profissionalizar-se comoesportista e quiser investir nessa alternativa os recursos deque dispõe, não lhe interessará ter de volta a biblioteca.Novamente, não havendo conflito de interesses (Carlos eDarcy têm ambos o interesse de manter os efeitos dasdeclarações emitidas), a eficácia é o atributo do negóciojurídico que assegura às partes a efetivação do resultadojurídico pretendido. Havendo, porém, conflito de interesses(Carlos e Darcy querem a biblioteca), a sua superação peloJudiciário será norteada pelas normas referentes ao atributoda validade do negócio jurídico.

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10. REQUISITOS DE VALIDADE DO NEGÓCIOJURÍDICO

Três são os requisitos de validade de qualquer negóciojurídico: a) agente capaz; b) objeto lícito, possível edeterminado ou determinável; c) forma prescrita ou nãodefesa em lei (CC, art. 104). É o atendimento a essesrequisitos condição necessária, mas não suficiente, àvalidade do negócio jurídico. Isto é, não basta para serválido o negócio a presença dos requisitos de validade; umnegócio a que falte qualquer um deles, no entanto, éinválido. Em outros termos, como os defeitos do negóciojurídico (erro, dolo, coação etc.) também comprometem a suavalidade, deve-se considerar a inexistência de vícios tambémcomo condição necessária.

Examine-se, em separado, cada requisito de validade donegócio jurídico.

10.1. Sujeitos do negócio jurídicoSujeito de direito e objeto são apontados, pela doutrina,

como elementos essenciais do negócio jurídico, sem osquais ele não existe. Além destes, porém, penso que se deveconsiderar também a declaração dos sujeitos pertinente aoobjeto como essencial à existência do negócio. De qualquerforma, sem pelo menos um sujeito de direito, o negóciojurídico não existe. A existência, contudo, não implicanecessariamente a validade do negócio. Aliás, como só

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podem ser inválidos os negócios que existem, devem-sedistinguir esses atributos. Para existir o negócio jurídico,pelo menos um sujeito de direito deve fazer uma declaraçãosobre certo objeto; para ser válido, o sujeito de direito deveestar apto a emiti-la diretamente, sem a interferência derepresentante ou assistente.

A lei não foi feliz ao expressar-se, na definição dosrequisitos de validade do negócio jurídico, pela fórmula“capacidade do agente”. Em primeiro lugar, porquecapacidade é atributo exclusivo das pessoas físicas, e onegócio jurídico pode ser praticado por qualquer sujeito dedireito, incluindo as pessoas jurídicas e os entesdespersonificados. O que quis realmente apontar comorequisito foi a aptidão do sujeito para emitir declaração devontade independentemente da interferência de outrosujeito. Os sujeitos não humanos estão sempre aptos amanifestar, por meio de seus órgãos de representação ouresponsáveis, a sua vontade diretamente. Quando se trata,porém, de pessoa física, a aptidão inexiste em relação aosincapazes, nos dois graus de incapacidade. Daí a ligeiraconfusão da norma.

A fórmula “agente capaz” também não é feliz paraidentificar o requisito de validade do negócio jurídico, emsegundo lugar, porque equivocada, já que o incapaz praticanegócios jurídicos válidos. Não fosse assim, aliás, nenhumapessoa incapaz poderia ser parte de relação negocial. Na

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verdade, o negócio jurídico praticado por incapaz sem adevida representação ou assistência é inválido. Se oabsolutamente incapaz praticar o negócio jurídico por meiode seu representante, ele é válido. Da mesma forma, se orelativamente incapaz praticá-lo com a assistência dos pais,tutor ou curador, também é válido o negócio. Ou seja, norigor da lógica, a validade do negócio jurídico não exigepropriamente “agente capaz”, mas sim o “atendimento àsnormas jurídicas de capacidade e legitimação”. Assim, paraser válido em relação às qualidades da parte, o negóciojurídico deve constituir-se de declaração feita diretamentepela pessoa física capaz, pelo representante doabsolutamente incapaz, pelo relativamente incapazdevidamente assistido, pela pessoa jurídica (por meio de seupresentante) ou pelo ente despersonificado (peloresponsável). Atendidos esses pressupostos, confere-sevalidade ao negócio jurídico.

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O negócio jurídico praticado pelapessoa física incapaz é válido seobedecida a respectiva regra decapacidade. Isto é, o absolutamenteincapaz deve fazer a declaração devontade por meio de seurepresentante; o relativamenteincapaz deve fazê-la devidamenteassistido. Desatendidas essas regras,o negócio será, no primeiro caso,nulo e, no segundo, anulável.

Se não for observada a regra de capacidade nacelebração do negócio jurídico, ele será inválido. Sedesobedecida regra sobre incapacidade absoluta, o negócioé nulo; se sobre incapacidade relativa, anulável (CC, arts.166, I, e 171, I).

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A anulabilidade do negócio jurídico em razão dainobservância das regras da capacidade relativa só pode serpleiteada pelo próprio incapaz (CC, art. 105). As normas quesuprimem a capacidade da pessoa física destinam-se, comojá visto, a proteger o incapaz (Cap. 7, item 3). Como nãodispõem do discernimento médio necessário para se portarcom desenvoltura no comércio jurídico, o menor, deficientemental, pródigo, viciado e demais incapazes são protegidospela supressão da aptidão para a prática de negóciosjurídicos diretamente. Tendo em vista a finalidade daincapacitação, mas já reconhecendo ao relativamenteincapaz certo grau de discernimento para cuidar de seuspróprios interesses, restringe a lei a legitimação para o pleitode anulação do negócio jurídico. Naquele exemplo anterior,em que Carlos, menor relativamente incapaz, vendera sem aassistência dos pais a biblioteca a Darcy, este não poderiapedir ao juiz a anulação da venda, a pretexto deinobservância das regras de capacidade do vendedor. Istoporque tais regras são estabelecidas para a tutela dosinteresses do incapaz, no caso Carlos, e não dos capazescom quem houver negociado.

10.2. Objeto do negócio jurídicoA existência do negócio jurídico pressupõe um objeto.

Trata-se do bem, coisa, atividade, direito, estado ou outroobjeto sobre o qual versam as declarações de vontade dos

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sujeitos participantes da relação negocial. Para ser válido onegócio, diz a lei que seu objeto deve atender a trêscondições: licitude, possibilidade e determinabilidade.

O objeto é lícito quando os atos necessários à suarealização não são sancionados por norma jurídica. A vendade fotografias eróticas de crianças, de tóxicos, de votos sãoexemplos de negócios jurídicos inválidos, por ilicitude deobjeto. Para tornar efetivos os resultados pretendidos pelaspartes nesses negócios, uma delas deve incorrer em condutasancionada pelo direito. O comerciante de artigos depedofilia e o pedófilo cometem crime, assim como otraficante e o consumidor de tóxico, o eleitor e o aliciador devoto. Não é necessário, para se configurar a ilicitude doobjeto, que todas as partes incorram em ato sancionado.Basta que uma delas tenha que fazer o que a lei proíbe, emcumprimento do negócio jurídico, para que se caracterize oobjeto como ilícito. Se o homem casado, mentindo acerca deseu estado, casa-se com mulher solteira, só o primeiroincorreu em conduta sancionada pelo direito, mas ocasamento é inválido.

Em relação à possibilidade do objeto, foi a lei tambémaqui infeliz. Se está se referindo à possibilidade física, nãocuida de requisitos de validade do negócio jurídico, mas deum de seus pressupostos de existência (item 8). Não se podecontratar o transporte de astros celestes não porque umnegócio dessa natureza seria inválido, mas porque nem

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sequer existiria. E se a lei está-se referindo à possibilidadejurídica, está sendo redundante, visto que a hipótese já seencontra albergada no conceito de licitude. No direitoprivado só é juridicamente impossível o ilícito. De qualquerforma, como não se costumam seriamente fazer negóciosjurídicos sobre o fisicamente impossível, e o juridicamenteimpossível é redundância, a falta de rigor lógico dodispositivo não terá desdobramentos além da críticaacadêmica.

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A validade do negócio jurídicopressupõe objeto lícito. Não sãoválidos, assim, os negócios em queuma parte (ou as duas), para que sealcancem os objetivos predispostos,deva praticar ato sancionado pornorma jurídica. O objeto do negóciojurídico válido não pode ser, poroutro lado, impossível ouindeterminável.

Finalmente, em relação à determinabilidade do objeto, éinválido o negócio jurídico sobre negócio indeterminável.Atente-se à sutileza do conceito. O objeto pode serindeterminado, desde que determinável. Locador e locatáriopodem celebrar contrato de locação por prazoindeterminado, vigorando a relação locatícia até o momentoem que qualquer um deles resolva desfazê-la. Não há

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nenhuma invalidade nisso porque se trata de objetodeterminável, já que o tempo de duração da locação serádeterminado pela vontade de uma das partes de terminar ovínculo, quando esta se manifestar. O que a lei invalida sãodeclarações de vontade tão genéricas que se tornaminsuscetíveis de especificação. Se Antonio declara quepagará dinheiro se Benedito lhe der alguma coisa, semquantificar o primeiro, nem fornecer critérios para aespecificação da última, está praticando negócio jurídicoinválido por indeterminabilidade do objeto. Se Carlosdeclarar que, recebendo de Darcy uma casa, pagar-lhe-á odinheiro equivalente, já há negócio jurídico válido. Osobjetos são imprecisos mas suficientemente determináveis:qualquer casa que Darcy entregue, fará com que Carlostenha que lhe pagar o correspondente valor de mercado.

A impossibilidade inicial do objeto não invalida onegócio jurídico se for relativa, ou seja, se restardescaracterizada pela execução das obrigações (CC, art. 106,primeira parte). Pode-se contratar a venda de coisasfuturas, isto é, de bens de que não dispõe ainda o vendedor.No rigor das qualificações jurídicas, o vendedor estávendendo o que não possui e se obrigando, assim, porobjeto juridicamente impossível (ninguém pode dispor doque não titulariza). Mas essa impossibilidade é inicial erelativa, pois o vendedor irá produzir ou adquirir o bemvendido para cumprir sua obrigação, fazendo com que se

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torne possível o objeto. Também não invalida o negócio aimpossibilidade inicial cessada antes do implemento dacondição a que se encontra sujeito (CC, art. 106, parte final).

10.3. Forma do negócio jurídicoTodo negócio jurídico pressupõe uma declaração de

vontade feita pela parte ou pelas partes acerca do respectivoobjeto. A declaração é a exteriorização da vontade do sujeitode direito e tem necessariamente uma forma. Não semanifesta a vontade a não ser por um meio de comunicação,quer dizer, pela emissão de signos inteligíveis pelos homensou mulheres destinatários. Se Patrícia, que não domina ohúngaro, está passeando pelas ruas de Budapeste e seencanta com uma bela toalha de mesa bordada, típica dolugar, exposta na vitrine de uma loja, ela pode adquiri-lamesmo que a vendedora não fale outra língua senãohúngaro. O negócio jurídico será celebrado por meio desinais universais, de significado compartilhado peloscomerciantes de qualquer recanto do mundo.

A forma do negócio jurídico pode ser o resultado dequalquer meio de comunicação. Pode assumir a forma oral,gestual, escrita, eletrônica etc. Patrícia, em Budapeste,aponta a toalha para a vendedora, faz cara de dúvidaenquanto esfrega o dedo polegar ao indicador e médio,gesto respondido pela vendedora com o levantar de quatrodedos da mão direita. Vendo-a balançar a cabeça e sorrir, a

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vendedora embrulha a toalha, recebe o dinheiro e faz o troco.Locador e locatário comparecem na agência de corretagemde imóveis que apresentou um ao outro e, após acertaremdetalhes do contrato, assinam o documento escritointitulado “contrato de locação”. Credor e devedorcomparecem no cartório para celebrarem a escritura públicade constituição de hipoteca. Diante do meumicrocomputador, navegando pela internete, aporto napágina www.saraiva.com.br; lá adquiro livros, manifestandoa vontade por meio de cliques no botão esquerdo do mouse.Em todos esses casos, a vontade declarou-se por uma forma.

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A forma do negócio jurídico é, emprincípio, livre, no sentido de que avalidade deste não depende de formaespecífica. Há, porém, algunsnegócios jurídicos para os quais alei prescreve uma formadeterminada. São os negóciosformais ou solenes, como ocasamento, a constituição dehipoteca, o testamento e outros.

Vigora no direito brasileiro a regra geral da liberdade deforma dos negócios jurídicos, expressa no art. 107 do CC: “Avalidade da declaração de vontade não dependerá de formaespecial, senão quando a lei expressamente a exigir”. Querdizer, as partes podem, em princípio, revestir o negóciojurídico da forma que considerarem de seu interesse ou for amais adequada às circunstâncias da celebração. Na maioria

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das vezes, quando relevante o valor do objeto, as partestendem a optar pela forma escrita, que confere maiorsegurança. De outro lado, há situações, como a generalidadedos atos de consumo, em que é simplesmente inimaginávelse cogitar da forma escrita. No comércio feito por meio darede mundial de computadores, a forma é necessariamente ade envio e recepção de dados por via eletrônica. Assim, nasbalizas marcadas pelas circunstâncias que cercam acelebração do negócio jurídico, as partes elegem a forma quemelhor atende aos seus interesses.

A regra da liberdade de forma tem exceções. Certosnegócios jurídicos somente valem quando revestidos daforma definida pela lei. São os negócios solenes ou formais,como o casamento, testamento, constituição de direito realsobre bem imóvel e outros. Nessas hipóteses, se nãoobservada a forma legalmente prescrita, o negócio jurídico énulo (CC, art. 166, IV). As formalidades próprias a cadanegócio jurídico são examinadas no estudo do instituto. Emtermos gerais, porém, preceitua a lei que a escritura pública éa forma necessária dos negócios que visem à constituição,transferência, modificação ou renúncia de direitos reaissobre imóveis de valor superior a trinta salários mínimos(CC, art. 108). Desse modo, a compra e venda de terreno porpreço que ultrapassa esse limite só se pode fazer medianteescritura pública, não sendo válido esse negócio se feito,por exemplo, por instrumento particular. Além disso, também

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será obrigatória a escritura pública no negócio jurídico emque as próprias partes, em pré-contrato, haviam optado poressa forma (CC, art. 109).

Silvio Rodrigues aponta as razões pelas quais a lei exige,em determinados casos, forma especial para os negóciosjurídicos (2002:264). Partindo-se de suas lições, diviso trêsjustificativas: a) dar maior segurança ao negócio jurídico, jáque a forma solene visa garantir a veracidade daidentificação do sujeito de direito emissor da declaração, aautenticidade do conteúdo desta e a inexistência derestrições à liberdade na exteriorização da vontade; b)facilitar a prova do negócio jurídico (item 8.1); c) despertar aatenção das partes para o grau de seriedade do negóciojurídico, sendo a solenidade proporcional à extensão dosseus efeitos (o casamento é negócio jurídico extremamenteformal pela quantidade e importância dos efeitos queproduz).

A publicidade, mesmo quando legalmente exigida paracompleta eficácia do negócio jurídico, não complementa aforma obrigatória. Na verdade, no direito brasileiro, ainexistência de publicidade não invalida, em nenhumahipótese, o negócio jurídico. Não conhecemos, por assimdizer, a publicidade constitutiva (cf. Gomes, 1957:381). Avenda de imóvel por preço superior a trinta salários mínimosexige, como visto, escritura pública. Atendidos esserequisito formal e os demais atinentes ao sujeito, objeto e

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declaração, o negócio jurídico é válido. Não produzirá,porém, o efeito pretendido pelas partes — a transmissão dapropriedade imobiliária — enquanto não for tornado públicopelo registro no Registro de Imóveis.

11. DEFEITOS DOS NEGÓCIOS JURÍDICOSOs defeitos ou vícios dos negócios jurídicos

comprometem sua validade porque os tornam passíveis deanulação (CC, art. 171, II). São de duas espécies: o defeito deconsentimento e o social.

Quando maculado por defeito de consentimento, onegócio jurídico é inválido porque a vontade das partes (nonegócio unilateral) ou de uma delas (nos negócios bilateraise plurilaterais) não teve oportunidade de se expressarconsciente e livremente. Como os negócios jurídicosresultam da vontade das partes direcionada à produção dedeterminados efeitos, para valer, deve ser produto daperfeita manifestação da vontade dos sujeitos. Viciada estapelo erro, dolo, coação, estado de perigo ou lesão, deve-seanular o negócio jurídico, para evitar-se a projeção de efeitosnão desejados.

Ao invalidar negócios jurídicos por defeito deconsentimento, a lei tem o objetivo de tutelar o sujeito dedireito cuja vontade não se expressou de modo consciente elivre.

O defeito social, por outro lado, compromete a validade

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do negócio jurídico não porque a vontade da parte tenhasido impedida de se expressar consciente e livremente; ouseja, não porque se incompatibilizem declaração e objetivospretendidos. Nos negócios jurídicos que ostentam esse tipode vício, as partes não manifestam vontade que nãopossuem. Ao contrário, o defeito social se caracteriza adespeito de a declaração da parte ser compatível com osobjetivos almejados. Acontece que, além da intenção, realou aparente, própria ao negócio jurídico praticado, há aintenção subsidiária, de pelo menos uma das partes, dediminuir o patrimônio para impedir que seus bens sejamobjeto de constrição judicial na satisfação dos direitos decredores.

Ao invalidar negócios jurídicos por defeito social, a leivisa tutelar os interesses dos credores estranhos à relaçãonegocial inválida.

11.1. Defeitos internos do consentimentoProponho distinguir duas situações. De um lado, os

defeitos de consentimento em que a vontade não seconstrange por ato imputável à outra parte ou aobeneficiado pelo negócio jurídico. São os casos do erro e dalesão. De outro, as demais hipóteses de defeito, em que oconstrangimento à vontade da parte declarante é provocadopelo próprio sujeito destinatário da declaração defeituosa,ou por terceiro que quer favorecê-lo (dolo e coação), ou é

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extorsivamente aproveitado pelo declaratário (estado deperigo). Proponho designar os primeiros de defeitos internose os últimos, de externos.

A distinção parece-me importante porque, na anulaçãodo negócio jurídico em razão de defeito interno doconsentimento, não se pode desconsiderar o interesse daoutra parte (do negócio jurídico bilateral ou plurilateral) oumesmo do beneficiário (do negócio jurídico unilateral), quenão concorreu para o constrangimento da vontade que viciao negócio. De fato, para conferir maior segurança jurídica àsrelações negociais e proteger a boa-fé, nem sempre se deveanular o negócio em razão dos vícios internos doconsentimento.

Examino, porém, o erro (item 11.1.1) e a lesão (item11.1.2), antes de cuidar especificamente da tutela dosinteresses dos declaratários de boa-fé (item 11.1.3).

11.1.1. Erro

O conceito jurídico de erro é o da decisão tomada emfunção de falsa representação da realidade. Todos oshomens e mulheres erram; isto é, ao administrarem seusnegócios mais importantes ou mesmo ao se conduzirem nosassuntos do dia a dia, tomam decisões a partir de ideiasequivocadas sobre os fatos, coisas, riscos e pessoas.Quando o desconhecimento da verdade é total, costuma-sechamar o erro de ignorância. Não há, contudo, interesse na

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distinção, já que as duas hipóteses estão sujeitas à mesmadisciplina jurídica.

Nem todo erro compromete a validade do negóciojurídico. Há erros sem importância, referentes a aspectosacidentais do negócio ou de seu objeto, que não são fatosjurídicos. Quando alguém incorre num erro assim, nadaaconteceu para o direito. Há, também, erros indesculpáveis,que decorrem da culpa do sujeito que errou. Nesses casos,anular o negócio jurídico seria estimular negligências esubtrair das pessoas a responsabilidade por seus atos.

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Não é qualquer erro que importa aanulabilidade do negócio jurídico.Se o erro é acidental (o sujeito teriapraticado o negócio, mesmo que setivesse apercebido dele antes) ouindesculpável (o sujeito não seapercebeu de erro perceptível porpessoa com diligência normal), onegócio jurídico é válido.

Para configurar-se como defeito de consentimento,assim, o erro deve ser substancial e escusável. Considera-sesubstancial o erro se a pessoa não teria praticado o negóciojurídico em questão caso o tivesse percebido a tempo;escusável, por sua vez, é o erro imperceptível às pessoascom diligência normal. Tanto uma como outra característicado erro causador da invalidade do negócio jurídico estãoreferidas pela lei. No art. 139, o Código Civil elenca as

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hipóteses de erro substancial, e no art. 138, menciona,embora com imprecisão, o critério para considerar-sedesculpável um erro.

É substancial o erro, em primeiro lugar, quando interessaà natureza do negócio, ao objeto principal da declaração oua alguma das qualidades a ele essenciais. Desse modo, seuma parte considerava estar contratando a doação de umbem como donatária, mas, a rigor, estava participando decontrato de compra e venda deste, o erro é substancial,porque diz respeito à natureza do negócio. Se haviaentendido que estava adquirindo o terreno do lado esquerdoda rua, quando o objeto do negócio era o terreno do ladodireito, também é substancial o erro, porque pertinente aoobjeto principal da declaração. Finalmente, se comprou umapintura pensando tratar-se de obra original, e não de cópia, éeste um erro substancial relacionado à qualidade essencialdo objeto da declaração.

Também define a lei como substancial o erroconcernente à identidade ou à qualidade essencial dapessoa a quem se refira a declaração de vontade, desde quetenha influído nesta de modo relevante. Se alguém doa bensa um orfanato, onde acreditava ter passado a infância,incorre em erro substancial quanto à identidade da pessoase descobre, posteriormente, que na verdade havia sidocriado por outra instituição. Se o proprietário do terreno nãoedificado contrata os serviços de um arquiteto pensando

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tratar-se de renomado profissional, com o intuito devalorizar, com o projeto, o imóvel a construir, e, depois, vema saber que se trata, na verdade, de arquiteto desconhecidohomônimo, verifica-se o erro substancial relativo à qualidadeda pessoa com quem se entabula o vínculo negocial.

Finalmente, há erro substancial de direito quando for omotivo único ou principal do negócio jurídico, e desde quenão implique recusa à aplicação da lei. Não se tratapropriamente de desconhecimento da norma jurídica, porqueninguém se escusa de cumprir a lei alegando ignorá-la(LINDB, art. 3º). O erro de direito diz respeito aodesconhecimento de como a norma tem sido interpretada.Exemplifica-se com a hipótese da pessoa que, estandoinformada sobre a jurisprudência pacificada no Tribunal deJustiça do Estado em que vive, orienta-se por essainterpretação da lei. Sendo diversa, no entanto, ajurisprudência do Superior Tribunal de Justiça ou doSupremo Tribunal Federal sobre a mesma matéria, poder-se-ácaracterizar o erro de direito (exemplo inspirado por Lotufo,2003:387).

Além de substancial, o erro deve ser escusável. Querdizer, a falsa representação da realidade não pode serproduto de falta de empenho da pessoa em se informaradequadamente antes de praticar o negócio jurídico. Éescusável o erro que não poderia ser percebido por pessoade diligência normal.

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Aquele proprietário do meu exemplo anterior, quedesejava contratar o famoso arquiteto para projetar seuimóvel, incorreu em erro substancial, mas não escusável.Qualquer pessoa de diligência normal visitaria o ateliê doprofissional antes de contratá-lo e, lá estando, perceberia oerro sem maiores dificuldades.

O art. 138 do CC está imprecisamente redigido, e deveser lido mediante o acréscimo da locução “não”, de modo ase considerar escusável o erro em que tenderia a incorrerqualquer pessoa de normal diligência. Moreira Alves, queparticipou diretamente da redação desta parte do CódigoCivil, alerta para um erro de datilografia, que teria fundido oparágrafo único, da versão originária do art. 138, à parteinicial do caput, suprimindo a final (1986:115; Gonçalves,2003:363). Não se deve aceitar, portanto, o entendimento dealguns doutrinadores, no sentido de que o direito brasileiroteria, a partir do Código Reale, adotado critério diverso decaracterização do erro como vício do negócio jurídico,dispensado o requisito da escusabilidade (Lotufo,2003:380/385; Theodoro Jr., 2003:42).

Não se considera também escusável o erro de cálculo,que autoriza apenas a retificação da declaração negocial (CC,art. 143).

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O erro macula a validade donegócio jurídico quando ésubstancial e escusável. Considera-se substancial o erro quando apessoa, se tivesse a verdadeirarepresentação da realidade, nãoteria praticado o negócio jurídico. Eescusável é o erro que passadespercebido da qualquer pessoa dediligência normal.

O erro substancial e escusável pode ser suprido, parafins de garantir a validade do negócio jurídico, em duashipóteses. Primeira, a indicação errada de pessoa e coisanão é defeito do negócio jurídico se, pelo contexto dadeclaração emitida ou pelas circunstâncias em que se emitiu,puder-se corrigir adequadamente (CC, art. 142). Imagine quedo testamento consta legado ao terceiro filho de amigo do

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testador, que foi batizado em homenagem a este. Se o amigo,na verdade, havia dado o mesmo nome do testador ao seuquarto filho, corrige-se o erro na indicação sem secomprometer a validade do testamento. Segunda, se apessoa a quem a declaração se dirige (a outra parte donegócio bilateral, as demais partes do negócio plurilateral ouo envolvido pelo negócio unilateral) se oferecer paraexecutá-la na conformidade da vontade real do declarante(CC, art. 144). No exemplo mencionado linhas atrás, em que ocomprador pensara ter comprado o terreno do lado esquerdoda rua, pode o alienante evitar a anulação do negóciojurídico providenciando a compra do terreno do lado direitoe, em seguida, transferindo a propriedade àquela pessoa queincorrera no erro.

11.1.2. Lesão

Lesão é o defeito de consentimento em que a vontadede uma parte é constrangida por necessidade premente (nãose manifesta livre) ou pela inexperiência (não se manifestaconsciente), resultando negócio jurídico em que contraiobrigação manifestamente desproporcional à prestação daoutra parte. A lesão, portanto, caracteriza-se pelaconjugação de dois elementos. O primeiro, de naturezasubjetiva (isto é, relativa ao sujeito), é o constrangimento àvontade da parte declarante derivada de prementenecessidade ou inexperiência. O segundo, de natureza

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objetiva (relativa ao objeto do negócio), é a desproporçãomanifesta entre a obrigação assumida pela parte declarante ea prestação oposta.

Para que se caracterize a lesão, o elemento objetivo deveser mensurado no momento da constituição do negóciojurídico. Como ela causa a invalidade deste, deve sercontemporânea ao seu surgimento. Fatos jurídicosposteriores à constituição do vínculo negocial podemeventualmente desconstituí-lo (rescisão do contrato porculpa do contratante) ou alterar-lhe o conteúdo (revisãojudicial), mas nunca invalidá-lo, porque as causas denulidade ou anulabilidade são sempre concomitantes aoaparecimento do negócio (item 12.1). Por essa razão,preceitua a lei que se aprecia “a desproporção dasprestações segundo os valores vigentes ao tempo em quefoi celebrado o negócio jurídico” (CC, art. 157, § 1º).

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É defeituoso o negócio jurídico porlesão, quando uma parte assumeobrigações manifestamentedesproporcionais à prestaçãooposta, por premente necessidade ouinexperiência.

Quando a desproporção entre as prestações não severifica no momento da constituição do negócio jurídico,mas no do cumprimento das obrigações contraídas, não é ocaso de lesão, mas sim de onerosidade excessiva (Lotufo,2003:443). A diferença é relevante, já que a lesão é causa deanulação do negócio jurídico, enquanto a onerosidadeexcessiva autoriza apenas a revisão das cláusulaspactuadas, com o objetivo de restabelecer o equilíbrio entreas prestações.

A lesão é defeito interno de consentimento porque oconstrangimento da vontade não depende de ato imputávelà parte declaratária. Esta se limita a bem administrar os seusinteresses, manifestando a vontade de participar de negócio

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vantajoso. Quando desconhece a necessidade prementeconstrangedora da vontade livre ou a inexperiênciaconstrangedora da vontade consciente da parte declarante,age de boa-fé e terá os seus interesses protegidos. Emqualquer caso, porém, se partir dela uma proposta deproporcionalização das prestações negociais — por meio desuficiente suplemento do devido ou redução do proveito —,importando esta no reequilíbrio do negócio jurídico,preservar- -se-á sua validade (CC, art. 157, § 2º). Nessahipótese, deveras, desaparecido o elemento objetivo,descaracteriza-se a lesão.

Desse modo, considere que Antonio, premido pelanecessidade de levantar rapidamente dinheiro para pagar otratamento médico do pai, põe à venda um imóvel por $ 100,que, suponha-se, já é inferior ao valor médio de mercado. Oúnico interessado que se apresenta, Benedito, oferece $ 40,menos da metade do valor do imóvel. Antonio acabaconcordando porque a quantia basta ao pagamento dasdespesas médicas e hospitalares do tratamento do pai. Essenegócio jurídico é anulável por lesão, visto que seencontram nele os dois elementos caracterizadores dessedefeito de consentimento. Em consequência, a menos queBenedito concorde em pagar pelo menos mais $ 60 peloimóvel, o negócio é anulado. Retornará o bem ao patrimôniode Antonio, que deve restituir os $ 40 a Benedito.

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11.1.3. Direitos do declaratário

Declaratário é o sujeito a quem a declaração de vontadese destina. Nos negócios unilaterais, é o envolvido peladeclaração (por exemplo, o herdeiro beneficiado portestamento); nos bilaterais, é a outra parte (o vendedor emrelação ao comprador, e este em relação àquele); e nosplurilaterais, as demais partes do negócio (no contrato desociedade, todos os demais sócios). Quando a partedeclarante é vítima de erro ou lesão, atendidos ospressupostos delineados para cada figura, o negóciojurídico é inválido. A invalidade visa proteger o declarante,cuja vontade não pôde exprimir-se de forma consciente elivre.

Mas, nas hipóteses de defeito interno deconsentimento, o declaratário não pode ser responsabilizadopela causa da invalidade. O erro substancial e escusável éresultado da deformidade na representação do real pelosujeito que nele incorre espontaneamente. A lesão, por suavez, provém de necessidade premente ou inexperiência dopróprio sujeito lesado. Chocam-se, então, dois interessesigualmente legítimos. De um lado, o da vítima do defeitointerno de consentimento, cuja vontade merece proteção,para que ela não se vincule a negócio não desejado; deoutro, o do declaratário, que apenas realizou um bomnegócio, sem ter contribuído minimamente para oconstrangimento da vontade da parte declarante, e cujos

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interesses também merecem proteção jurídica.

O declaratário de boa-fé merecetanta proteção do direito quanto odeclarante cuja vontade foiconstrangida por erro ou lesão.

Para compatibilizar esses interesses, o juiz não deveaplicar as normas invalidadoras do negócio jurídicodesatento à boa-fé do declaratário. As circunstâncias donegócio e os atributos subjetivos da pessoa a quem adeclaração de vontade se destina devem ser levados emconta. Quer dizer, constatada a má-fé do declaratário (pelaomissão em desfazer o erro, quando lhe era possível eindiferente fazê-lo; pelo conhecimento da necessidadepremente que constrange o declarante etc.), o juiz não devehesitar em decretar a anulação do negócio resultante do erroou de lesão. Estando, porém, o declaratário de boa-fé, o juizatenderá a todos os interesses merecedores de proteção, sepreservar a validade do negócio jurídico mediante

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compensações razoáveis, que distribuam os custoscorrespondentes entre as partes.

Nesse sentido, deve o juiz aplicar os arts. 144 e 157, § 2º,do CC, com atenção aos interesses do destinatário dadeclaração defeituosa de vontade. Ao sopesar a propostado declaratário de boa-fé, no sentido de executar o negóciojurídico em conformidade com a representação da parte queincorreu em erro ou no de proporcionalizar as prestaçõespara desfazer o elemento objetivo da lesão, deve o juizadmitir, em margem razoável, que o destinatário continuerealizando um negócio vantajoso. Em outros termos, odeclaratário de boa-fé tem direito de manter em parte avantagem que vislumbrou no negócio jurídico em questão.Apenas na hipótese de má-fé do declaratário deve apreservação da validade do negócio jurídico (nos termosdos arts. 144 e 157, § 2º, do CC) ficar condicionada à plenaequiparação das vantagens, para ele, às que ordinariamentelhe proporcionaria o mercado. No exemplo do item 11.1.2, seBenedito estiver de má-fé, só poderá preservar a validade donegócio pagando a diferença entre os $ 40 que havia pago eo valor de mercado do imóvel vendido por Antonio.Estando, porém, de boa-fé, basta que pague os $ 60correspondentes à diferença entre o que pagou e o valorpretendido por Antonio (lembrando que, no exemplo dado,este dispunha-se a vender o bem por menos do que oavaliado pelo mercado).

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11.2. Defeitos externos do consentimentoNos defeitos externos do consentimento, a vontade da

parte declarante é, na maioria das vezes, constrangida porato de pessoa natural plenamente identificável. O agente doconstrangimento é, por outro lado, em geral, o própriosujeito a quem a declaração se dirige. Caracteriza-se tambémo defeito externo na hipótese de o constrangedor não ser odeclaratário, mas estranho à relação negocial que surgirádefeituosa. Por fim, o constrangimento da vontade dodeclarante pode derivar também de fato natural,independente de qualquer ação humana.

São três os defeitos dessa categoria: dolo, coação eestado de perigo. No dolo, a falsa representação da realidadeque conduz o declarante a praticar o negócio jurídico éresultante de embuste provocado pelo agenteconstrangedor. Na coação, o constrangimento resulta deameaça de violência física ou moral. No estado de perigo, odeclaratário se aproveita extorsivamente de conhecido riscode grave dano que cerca o declarante.

Examine-se com mais vagar cada figura.

11.2.1. Dolo

Dolo é a indução em erro de uma parte do negóciojurídico. Verifica-se esse tipo de defeito de consentimentoquando o sujeito declarante é enganado — isto é, passa ater falsa representação da realidade — em razão de

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expedientes astuciosos usados pela outra parte, ou poragente constrangedor estranho à relação negocial. Se ovendedor do lote, de loteamento ainda em implantação,indicara intencionalmente a localização errada do bem aocomprador, apontando-lhe terreno de menor aclive que tem odo objeto do contrato, agiu com dolo. Também agedolosamente a pessoa que, ao vender o carro usado numafeira de automóveis, omite defeitos do veículo e, quandoindagado pelo comprador sobre estes, mente e nega suaexistência. É igualmente vítima de dolo o empresário quecontrata os serviços de avaliação de um profissional — que,em conluio com o futuro comprador, subavalia a empresa —,caso ele acabe sendo levado, pelos argumentosardilosamente expendidos pelo avaliador, a vendê-la abaixodo preço de mercado.

O dolo pode ser principal ou acidental. No primeirocaso, a parte somente realiza o negócio jurídico porque foienganada. Não fosse a distorção da verdade provocada pelaconduta dolosa que a vitimou, ela não teria manifestado avontade de fazer o negócio jurídico. O dolo principal é,assim, a causa do negócio jurídico e o invalida (CC, art. 145).Já o dolo acidental é aquele que não induziu a parte apraticar o negócio jurídico, mas o tornou menos vantajoso.Nesse caso, o sujeito é enganado não sobre os aspectosessenciais da relação negocial em vias de ser entabulada,mas acerca de elementos acidentais; isto é, são

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intencionalmente distorcidas algumas circunstânciasimportantes do negócio, mas não o suficiente para fazeralguém desistir dele. O dolo acidental não implica ainvalidade do negócio jurídico, mas gera o direito àindenização pelas perdas e danos (CC, art. 146).

S e Antonio adquire de Benedito automóvel usado,porque este mentiu, ao garantir que o veículo nunca seenvolvera em acidente de trânsito grave, está-se diante dehipótese de dolo principal. Antonio não teria comprado obem se soubesse da verdade. O negócio é inválido e, umavez decretada a anulação em juízo, o automóvel retorna aBenedito e o dinheiro do preço a Antonio. Já se a mentira deBenedito dizia respeito ao toca-fitas, tendo ele asseguradoque o acessório funcionava bem quando não era este ocaso, verifica-se igualmente o dolo; mas se Antonio nãodesistisse de comprar o carro, mesmo após ser informadodos defeitos do acessório, caracteriza-se este comoacidental. Em consequência, o negócio permanece válido, eAntonio tem direito de ser indenizado pelo que gastarconsertando o toca-fitas, ou o substituindo.

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O dolo é o expediente maliciosoque induz alguém a praticar certonegócio jurídico. Quando a partevítima do dolo não teria praticado onegócio jurídico caso tivessepercebido, a tempo, o engodo, ele éinválido. Se, por outro lado, a partefoi enganada acerca de aspecto nãoessencial do negócio ou de seuobjeto, e o teria praticado mesmosabendo da verdade dos fatos, terádireito de ser indenizada pelosdanos que sofrer, preservando-se avalidade do negócio jurídico.

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A tecnologia costuma tolerar o dolo até certo grau.Distingue entre o dolo inocente e o malicioso (dolus bonus edolus malus), para sustentar que o primeiro não é causa deinvalidade do negócio jurídico (por todos, Miranda, 1965,4:389). Argumenta que o dolo de pouca intensidade nãodeve redundar defeito do negócio para segurança dasrelações jurídicas. Age com dolo inocente, por exemplo, ovendedor que, ao alardear as virtudes do bem exposto àvenda, exagera-as um pouco. A distinção doutrinária nãotem mais sentido atualmente. No plano das relações deconsumo, inclusive, o instituto do dolo inocente afrontadisposições legais que responsabilizam o fornecedor porpropaganda enganosa (CDC, art. 37, §§ 1º e 3º), e, por isso,não se pode sustentar. Mesmo no plano das relações civis ecomerciais, não sujeitas ao Código de Defesa doConsumidor, a exigência de boa-fé dos contratantes,ressaltada na codificação de 2002, é incompatível com atolerância do dolus bonus. A distinção doutrinária, em suma,deve servir apenas de ilustração histórica, e o dolo, sempreque for causa do negócio jurídico, deve importar em suaanulabilidade, por menor que tenha sido sua intensidade.

Se o dolo não é da parte a quem se destina a declaraçãode vontade, mas de terceiro estranho à relação negocial, ainvalidade do negócio jurídico depende da má-fé da primeira.Se o declaratário sabia do ardil do agente constrangedordestinado a induzir o declarante a praticar o negócio jurídico,

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ou não tinha como ignorá-lo (devia conhecê-lo), dá-se ainvalidade. Caso, porém, ele não tivesse nenhuma condiçãode saber do embuste perpetrado pelo terceiro, a lei nãoconsidera inválido o negócio praticado, mesmo na hipótesede dolo principal. Responderá o agente constrangedor davontade do declarante, então, pela indenização das perdas edanos sofridos pela pessoa vitimada por seu dolo (CC, art.148).

Quando o dolo provém do representante da partebeneficiada pelo negócio defeituoso, distingue a lei osefeitos suportados pelo representado, quanto àresponsabilidade por perdas e danos, em função da naturezada representação. Sendo esta legal (o representante doabsolutamente incapaz, por exemplo), o representado nãopoderá ser responsabilizado civilmente além do proveito quetiver aferido. Responderá, entretanto, solidariamente com orepresentante no caso da representação convencional(mandato). Em se tratando, assim, de negócio jurídicomarcado por dolo acidental imputável a representante deuma das partes, esta poderá vir a responder pelas perdas edanos decorrentes limitada ou ilimitadamente, dependendoda natureza da representação: enquanto o absolutamenteincapaz responde no limite do proveito que lhe trouxe onegócio, o mandante responde ilimitadamente.

Sendo o dolo de ambas as partes, nenhuma delas poderequerer a anulação do negócio jurídico ou a indenização por

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perdas e danos (CC, art. 150).

11.2.2. Coação

Coação é o constrangimento da vontade da partedeclarante, por meio da ameaça de violência física ou moral,feita pelo próprio destinatário da declaração ou por terceiro.Se Carlos surra Darcy até obter dele a assinatura na notapromissória, a violência física foi empregada efetivamente.Mas o que faz Darcy concordar em praticar o negóciojurídico não é, propriamente, a lesão já sofrida, mas a ameaçalatente de continuar apanhando.

A coação vicia a declaração de vontade quandodesperta no paciente o receio fundado de dano iminente erelevante à pessoa dele, sua família ou seu patrimônio (CC,art. 151). Se a ameaça recair sobre pessoa de não familiar(amigo ou empregado do paciente, por exemplo), o juizdecidirá se ela tornou defeituoso o negócio.

Desse modo, para comprometer a validade do negóciojurídico, a coação deve apresentar quatro marcas. Primeira,ela deve ser determinante da declaração de vontade. Se osujeito expressaria a mesma declaração, ainda que nãotivesse sido ameaçado, não se qualifica a coação comodefeito do negócio jurídico. Segunda, deve ser grave, isto é,deve incutir na vítima o fundado temor de dano considerávelà sua pessoa, família ou bens (eventualmente, a amigos,empregados e não familiares, a critério do juiz). Não há

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coação invalidante do negócio jurídico na ameaça leve. Se aalternativa à realização do negócio jurídico era verdifundidas mentiras desonrosas sobre a própria vítima, nãose reputa a coação suficientemente irresistível a ponto deinvalidá-lo. A apreciação da gravidade da coação deve serfeita pelo juiz com atenção ao sexo, idade, condição, saúde,temperamento do paciente e todas as demais circunstânciasque possam nela influir (CC, art. 152). Terceira, o danoobjeto de ameaça deve ser iminente. Se o constrangimentoda vontade é tentado por ameaça de dano futuro, se houvercondições materiais (inclusive de tempo) para evitá-laeficazmente, não há invalidade. Quarta, a ameaça deve serinjusta. Se a alternativa imposta à concordância em realizar onegócio jurídico for o exercício regular de um direito, não hádefeito que o invalide (CC, art. 153, primeira parte). Assim,se Evaristo concordara em doar bem a Francisco, porque, seo não fizesse, Germano ingressaria em juízo para lhe cobrardívida de origem lícita, não se reputa constrangida a vontadedo doador o suficiente para tornar a doação inválida.

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Para a coação invalidar o negóciojurídico, a ameaça imposta à partedeclarante deve ser determinante,grave, iminente e injusta.

A coação praticada por pessoa estranha à relaçãonegocial é defeituosa nas mesmas condições que o dolo.Isto é, depende da má-fé do declaratário. Assim, se o sujeitoa quem a declaração beneficia tinha conhecimento ou nãopodia ignorar (devia conhecer) a ameaça feita por terceiro, onegócio jurídico é anulável. Caso contrário, não tendo comosaber dessa ameaça, não será inválido o negócio jurídico. Nacoação, porém, o destinatário sempre respondesolidariamente com o agressor pelas perdas e danosdecorrentes (CC, arts. 154 e 155).

Antes de encerrar, convém tratar do temor reverencial,referido no art. 153, parte final, do CC. Trata-se de um mistode sentimento de respeito e medo que se costumava nutrirem relação a determinadas pessoas (pais, professores etc.).Esse sentimento não existe mais, é coisa do passado. Aeducação sadia e as relações sociais, hoje em dia, não o

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estimulam. Filhos e pais, alunos e professores, velhos ecrianças devem respeito mútuo, sem nenhum resquício domedo que, no passado, era ingrediente comum dessasrelações. Assim, a norma jurídica que desqualifica oconstrangimento derivado do temor reverencial caiu emdesuso. Deve ser considerada ameaça moral qualquerimposição de pais aos filhos, professores aos alunos, velhosàs crianças, no sentido de forçá-los a praticar negóciosjurídicos contra a vontade. E, nesses casos, sempre quepresentes os demais requisitos da coação, o negócio deveser invalidado.

11.2.3. Estado de perigo

O estado de perigo é o defeito externo de consentimentoem que o sujeito declara assumir obrigação excessivamenteonerosa, por estar sua vontade constrangida pornecessidade premente de salvar-se, ou a pessoa de suafamília, de grave dano conhecido do declaratário (CC, art.156). O filho de Evaristo está-se afogando no mar bravio eFabrício concorda em ajudar a resgatá-lo medianteremuneração elevada. Evaristo naturalmente aceita depronto o preço cogitado. Configurou-se, porém, o estado deperigo que constrange a liberdade da vontade do declarantee viabiliza a nulidade do negócio jurídico.

Se o exposto ao dano não é da família de quem fez adeclaração, o juiz poderá mesmo assim considerar presentes

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os pressupostos do defeito de consentimento, levando emconta os estreitos vínculos de amizade ou profissionais queo unem ao declarante.

A vontade é constrangida peloestado de perigo quando odeclarante, para salvar-se ou apessoa de sua família de grave danoconhecido pelo declaratário,concorda em assumir obrigaçãoexcessivamente onerosa.

Para configurar-se o defeito externo do consentimentopor estado de perigo, o declaratário deve ter conhecimentodo grave dano a que se expõe o declarante ou pessoa de suafamília.

No estado de perigo, o constrangimento pode serprovocado por fato da natureza, independentemente da

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atuação de qualquer ser humano, como o terremoto,inundação, braveza do mar, avalanches, erupção de vulcãoetc. E pode decorrer de ato humano. Imagine que Germanofoi sequestrado, e Hebe, sua mulher, promete dar a Irineu,policial aposentado, todo o seu patrimônio se ele salvar omarido. Verifica-se o estado de perigo se Irineu nãodesestimular o excesso de gasto prometido por Hebe nodesespero, com o objetivo de vir mesmo a receber quantiaelevada por sua ajuda. Difere-se o estado de perigo causadopor ação humana da coação por terceiros em razão doobjetivo do constrangimento à vontade do declarante. Noestado de perigo causado por ação humana os graves danosa que se expõe o declarante, ou pessoa de sua família, nãopartem de quem quer favorecer o declaratário; na coação porterceiros, a ameaça é feita especificamente para que odeclarante emita a declaração defeituosa em benefício dodeclaratário. Os sequestradores de Germano não queremfavorecer Irineu, a quem nem sequer conhecem, mas recebero dinheiro que estão extorquindo de Hebe.

11.3. Defeito social: fraude contra credoresQuando a dívida não é paga no vencimento, o credor

tem — atendidos alguns pressupostos de ordem processual— o direito de requerer ao juiz que determine, com vistas àsatisfação do seu crédito, a constrição de bens dopatrimônio do devedor. Essa constrição chama-se penhora

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na execução individual (promovida por um só credor). O bempenhorado é avaliado e, em seguida, vendido a quem ofereçao maior lance em leilão judicial (que, por vezes, tem o nomede “praça”). Com o dinheiro apurado na venda do bem quepertencia anteriormente ao devedor, procede o juiz aopagamento do credor. É, grosso modo, dessa forma que oJudiciário assegura ao titular do crédito a eficácia de seudireito. Costuma-se dizer, em vista desse procedimento, quea garantia do credor é representada pelo patrimônio dodevedor.

Se o sujeito de direito deve mais do que o valor dosbens que titulariza, isto é, quando, no seu patrimônio, oativo é inferior ao passivo, diz-se que o devedor estáinsolvente (se for empresário, atendidos alguns outrospressupostos específicos, ele está falido). Ocorrendo ainsolvência do devedor, suspendem-se as execuçõesindividuais e realiza-se uma execução concursal do seupatrimônio. Todos os credores são chamados a habilitar osseus créditos. Arrecadam-se, então, todos os bens dodevedor para serem vendidos em juízo. Com o dinheiroapurado na venda, paga-se o que é possível pagar aoscredores. Como não há recursos para a satisfação integral detodos os créditos existentes perante o devedor insolvente,faz-se uma distribuição justa dos recursos disponíveis.

É importante mencionar, também, que, na insolvência dodevedor, os credores devem ser tratados de forma paritária.

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Isto é, se mais de um credor titulariza direitos de mesmacategoria, não sendo possível pagá-los integralmente, cadaum receberá valor proporcional à importância de seu crédito.Entre as diversas categorias em que são distribuídos oscredores do devedor insolvente, interessa por enquantoduas: os que titularizam garantias reais e os quirografários. Ocrédito de credor integrante da primeira categoria é garantidopor um bem específico do patrimônio do devedor (o bemonerado), e o dos quirografários é, em conjunto, garantidopelos bens não onerados.

Um exemplo pode aclarar os conceitos aquiapresentados. Imagine que João tem um imóvel nãoedificado no valor de $ 200, um automóvel de $ 8 e um outrode $ 7; e deve a Lúcio $ 200, a Márcia, $ 30 e a Norberto, $15. Ele está insolvente, já que, em seu patrimônio, o ativo,composto pelos bens que titulariza ($ 215), é menor que opassivo, composto por suas dívidas ($ 245). Considere,ademais, que Lúcio é credor com garantia real; seu créditoestá garantido por uma hipoteca sobre o terreno. Pois então,na execução concursal, o crédito dele será satisfeitointegralmente, já que o imóvel onerado em seu favor temvalor suficiente para saldar a dívida. Já Márcia e Norbertosão credores quirografários, porque os seus créditos nãoestão garantidos por nenhum bem específico de João. Elesterão os seus créditos parcialmente atendidos, porque nãohá recursos suficientes para o pagamento integral.

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Estabelecida a proporcionalidade, Márcia receberá $ 10 eNorberto, $ 5; isto é, cada um terá satisfeito apenas 1/3 doseu crédito, porque o valor dos bens não onerados, osautomóveis ($ 15), não é suficiente para pagar mais do queessa parcela do passivo quirografário ($ 45).

A fraude contra credores é o defeito do negócio jurídicode alienação de bens do patrimônio do devedor insolvente.A pessoa em insolvência (ou em estado de pré-insolvência)não pode dispor dos bens que titulariza porque estesrepresentam a garantia dos credores. Nas circunstâncias quese detalham a seguir, os negócios jurídicos de disposiçãodesses bens, pelo devedor insolvente, são inválidos.

Há fraude contra os credoresquando o devedor insolvente aliena,gratuita ou onerosamente, bens deseu patrimônio, reduzindo assim agarantia dos que, perante ele,titularizam crédito.

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Estabelece, inicialmente, a lei a invalidade dos negóciosjurídicos gratuitos do insolvente (CC, art. 158). Sempre queo devedor tiver, no patrimônio, ativo inferior ao passivo, epraticar negócio jurídico gratuito, o credor quirografáriopode pleitear a anulação da liberalidade. Caberá também aanulação se a insolvência resultar do negócio gratuito, aindaque desconhecida do devedor. Além do quirografário, temlegitimidade para pedir a anulação do negócio gratuito ocredor cuja garantia se tornar insuficiente (CC, art. 158, § 1º).Só os credores existentes ao tempo em que a liberalidade foicometida, porém, podem pleitear a invalidação do negócio(CC, art. 158, § 2º). Os credores posteriores à alienaçãograciosa não podem reclamar porque, ao concederem créditoao devedor, ele já não dispunha daquele bem em seupatrimônio.

A lei estabelece, também, a anulabilidade dos negóciosjurídicos onerosos do devedor insolvente, quando notória ainsolvência ou se não poderia ser ela ignorada pelo outrocontratante (CC, art. 159). Em atenção aos direitos doadquirente dos bens, a lei faculta-lhe, caso ainda não tenhapago o insolvente, que deposite o preço em juízo. Se for ovalor depositado aproximadamente o de mercado do bemalienado, por negócio oneroso, do patrimônio do insolvente,não se decreta a anulação do negócio. Os credores poderão,nesse caso, satisfazer seus créditos mais facilmente com a

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repartição da importância depositada. Se o preço contratadocom o insolvente era inferior ao de mercado, o adquirentepode preservar a validade do negócio complementando odepósito com a diferença (CC, art. 160).

A ação judicial destinada a invalidar o negócioperpetrado com fraude contra os credores e possibilitar queo bem alienado, onerosa ou gratuitamente, retorne aopatrimônio do devedor chama-se revocatória ou pauliana.A ação revocatória pode ser movida contra o devedorinsolvente, a pessoa que com ele contratou e os terceirosadquirentes que tenham procedido de má-fé (CC, art. 161).Desse modo, se Irineu, no exemplo acima, vende um de seusautomóveis a Orlando e este, por sua vez, o revende aPatrícia, poderá ser pleiteada a anulação desses doisnegócios jurídicos. Para isso, no entanto, será indispensávelprovar a má-fé de Patrícia, ou seja, o seu conhecimento dafraude contra os credores. Anulados os negócios jurídicosobjeto da ação pauliana, a vantagem resultante reverte nãoem favor do devedor insolvente, mas do acervo sobre o qualse realiza o concurso dos credores (CC, art. 165).

Consideram-se fraudulentos também dois outrosnegócios jurídicos praticados pelo insolvente. Primeiro, seele pagou uma dívida antes do vencimento, quem recebeu opagamento antecipado é obrigado a repor ao acervo sobre oqual concorrerão os credores a quantia correspondente (CC,art. 162). De fato, se a dívida não estava vencida no dia em

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que se realizou o pagamento, não era ainda exigível. Aantecipação do cumprimento da obrigação pelo insolvente,ademais, importa desrespeito ao tratamento paritário a quetêm direito seus credores. Segundo, o insolvente não podeconferir a qualquer dos credores quirografários uma garantiareal (CC, art. 163). Se o fizer, o antigo credor quirografário, aoser beneficiado com a garantia, passará a fazer parte decategoria com maior chance de realizar integralmente o seucrédito na execução concursal. Uma vez mais está-sedesrespeitando o tratamento paritário dos credores. Ainvalidade, nesse caso, importará somente na anulação dagarantia, continuando o credor a exercer os mesmos direitosde quirografário que anteriormente titularizava (CC, art. 165,parágrafo único).

12. INVALIDADE DO NEGÓCIO JURÍDICOO negócio jurídico que não atende aos requisitos de

validade (item 10) ou apresenta defeito (item 11) é inválido.Pode, eventualmente, produzir efeitos, se as partes, movidaspor razões éticas ou econômicas, espontaneamentecumprirem as obrigações dele emergentes. Nesse caso, adespeito da invalidade, os efeitos pretendidos pelos sujeitosde direito declarantes são alcançados. Porém, em caso deinvalidade do negócio jurídico, se não houver cumprimentoespontâneo das obrigações, nenhuma das partes terá odireito de acionar o aparato judiciário do Estado com vistas a

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obter forçosamente os efeitos pretendidos.Há dois graus de invalidade do negócio jurídico. No

grau mais elevado, o negócio é nulo (invalidade absoluta),no menos, anulável (invalidade relativa). Distingue a lei, naverdade, uma hipótese da outra em atenção aos valoressocialmente difundidos. Se alguém se aproveita da falta dediscernimento da criança de 10 anos de idade ou do portadorde deficiência mental severa, isto gera maior repulsa socialdo que a exploração da inexperiência de vida de um jovem de17 anos ou da situação precária em que se encontra o adultoviciado. Desse modo, há situações em que a lei, para coibirações repulsivas mais graves, imputa ao negócio jurídico umgrau máximo de invalidação, dando-o por nulo; e há aquelasem que coíbe ações ainda socialmente repulsivas, mas demenor gravidade, reservando ao negócio jurídico graumínimo de invalidação, tomando-o, então, por anulável.

12.1. Diferenças entre negócios nulos e anuláveisA invalidade do negócio jurídico é sempre um

pronunciamento judicial. Nenhum negócio é inválido, pormais desobedecidas que tenham sido as normas jurídicassobre a matéria, antes que o juiz decida que ele o é. Nesseaspecto, não existem diferenças entre os graus de invalidadedo negócio jurídico. Tanto na hipótese de nulidade, como nade anulabilidade, a invalidação depende necessariamente deprocesso judicial. Outro aspecto comum aos dois graus de

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invalidade diz respeito à contemporaneidade das causas. Emambas, a causa da invalidação existe ao tempo daconstituição do negócio jurídico (Lopes, 1962:504). Nenhumfato posterior à constituição induz à invalidade do negócio.Pode, se tanto, implicar sua desconstituição ou a suspensãodos efeitos.

Diferenciam-se os negócios nulos e anuláveis porquatro aspectos: a) quanto aos efeitos; b) quanto àspessoas legitimadas para arguir a invalidade; c) quanto àpossibilidade de ratificação; d) quanto à prescrição. Veja-secada um deles com mais vagar:

a) Efeitos. O negócio nulo não produz nenhum efeitojurídico. Melhor, os efeitos jurídicos que produziu devem serdesconstituídos. Se o menor absolutamente incapaz alienoudiretamente um bem de seu patrimônio para outrem, onegócio é nulo. O bem deve retornar ao patrimônio do menore o dinheiro por ele eventualmente recebido como preçodeve retornar ao de quem o havia pretendido comprar.Todos os demais efeitos devem ser desconstituídos paraque se retorne à situação de fato e de direito imediatamenteanterior ao negócio jurídico. Os frutos gerados pelo bemantes da declaração de nulidade do negócio pertencem aomenor, e não à pessoa que o havia pretendido comprar, porexemplo. Já o negócio anulável produz seus efeitos até adecretação da invalidade. Se o menor do exemplo erarelativamente incapaz e fizera a venda sem assistência, a

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anulação do negócio implica o retorno do bem ao patrimôniodele e do dinheiro do preço, se recebido pelo menor, ao dapessoa que o havia pretendido comprar. Mas os frutosgerados pelo bem antes da decretação da anulação donegócio não retornam ao menor.

Em decorrência da diferença relativa aos efeitos, asentença do juiz que confirma a nulidade de um negóciojurídico é declaratória, e a que decreta anulado certonegócio jurídico é constitutiva.

Os negócios jurídicos nulos nãoproduzem efeitos, devendo serdesconstituídos os que tiveremproduzido antes da declaraçãojudicial da nulidade. Os negóciosanuláveis têm preservados os efeitosproduzidos antes da decretaçãojudicial da anulação.

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b) Legitimação. Qualquer interessado está legitimado apostular, em juízo, a declaração de nulidade do negóciojurídico. Se o testamento é feito por quem não tinhacondições mentais de suficiente discernimento, mesmo queanteriormente à interdição, o negócio é nulo. O herdeirolegítimo que viu reduzido o valor da herança pode propor aação declaratória de nulidade do testamento. Também estálegitimado para requerer a declaração judicial de nulidade dequalquer negócio jurídico o Ministério Público, sempre quelhe couber intervir num feito na condição de fiscal da lei.Além disso, o próprio juiz pode declarar a nulidadeindependentemente de pedido da parte ou do promotor dejustiça (decretação “de ofício”). Em relação aos negóciosanuláveis, apenas os interessados estão legitimados parapostular ou requerer a decretação da anulação. O juiz nãopode decretá-la de ofício ou a pedido do Ministério Público.

Ademais, a declaração de nulidade aproveita a todos osinteressados e não somente aos que a postularam, ao passoque a decretação de anulação aproveita apenas àqueles queingressaram com a ação anulatória (exceto em caso desolidariedade ou indivisibilidade). A sentença tem, emoutros termos, efeitos erga omnes no caso da nulidade; enão os tem no da anulabilidade.

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Só os interessados são legitimadosa postular a decretação da anulaçãodo negócio relativamente inválido.No caso dos absolutamenteinválidos, além dos interessados,também o Ministério Público, nosfeitos em que intervier, estálegitimado para requerer adeclaração da nulidade. A seu turno,o juiz só pode declarar, de ofício, anulidade de negócio jurídico, masnão pode decretar a anulação semque o interessado a postule.

c) Ratificação. Apenas o negócio anulável pode serratificado; o negócio nulo não admite ratificação. Define-se

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esta como o ato pelo qual o sujeito de direito, após ficarciente de que é devedor de obrigação originária de negóciojurídico relativamente inválido, manifesta a intenção de nãopostular nem alegar em juízo a anulabilidade. Por meio dessamanifestação confirma-se o negócio. Note-se que aratificação é outro negócio jurídico igualmente passível deinvalidação na falta de requisitos de validade e em razão devícios. Se o menor relativamente incapaz pratica negócio semassistência, só será válida a ratificação se a fizerdevidamente assistido. Caso contrário, também o negócioconfirmatório será anulável.

A ratificação de negócio nulo é negócio jurídicoinexistente. A lei não atribui nenhuma consequência àdeclaração de intenção de confirmar o negócioabsolutamente inválido. Não se trata, por si, de ato ilícito,mas de fato não jurídico.

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Só o negócio jurídico anulávelcomporta ratificação pelas partes. Éjuridicamente inexistente aratificação do negócio nulo. Poroutro lado, o direito de postular anulidade do negócio jurídico não seperde com o decurso do tempo, maso de buscar a anulação, sim.

d) Prescrição. A nulidade é causa imprescritível deinvalidação do negócio jurídico, mas a anulabilidade estásujeita a prescrição. Significa dizer que a invalidade absolutanão se convalesce pelo decurso do tempo, enquanto arelativa, uma vez decorrido o prazo previsto em lei sem oexercício do direito correspondente (como a propositura daação destinada a decretá-la), reputa-se superada. Com asuperação da causa de invalidade, o negócio é, a partir dafluência do prazo, considerado válido para todos os efeitos.

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12.2. Normas gerais sobre negócios jurídicos inválidosO Código Civil estabelece algumas normas que se

aplicam a qualquer hipótese de invalidade do negóciojurídico, seja a absoluta (nulidade), seja a relativa(anulabilidade). São quatro:

a) Retorno à situação anterior. Declarada a nulidade oudecretada a anulação do negócio jurídico, devem as partesretornar à situação anterior (CC, art. 182). Quer dizer, nosnegócios patrimoniais, os bens transmitidos da propriedadede uma parte para a de outra devem retornar à titularidadeoriginária. O negócio jurídico de constituição de hipotecasobre uma casa gera duas mutações nos patrimônios daspartes: no do credor, acresce-se o direito real de garantia, eno do devedor, as limitações ao seu direito de propriedadesobre o imóvel. Transitaram, por assim dizer, direitos dopatrimônio do devedor para o do credor. Se esse negócio forinválido, após a sentença judicial reconhecendo ainvalidade, os direitos transitados devem percorrer ocaminho de volta, de modo que se restabeleça a situaçãopatrimonial imediatamente anterior ao negócio.

Se não for possível o retorno à situação patrimonialanterior ao negócio inválido, a parte será indenizada com oequivalente. Se o bem adquirido do menor não representadoou assistido na forma da lei era consumível e já tinha sidoutilizado, é claro que não pode, materialmente falando,retornar ao patrimônio originário. Nesse caso, porém, o

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menor terá direito de ser indenizado pelo valor equivalentedo bem objeto do negócio inválido.

No negócio jurídico extrapatrimonial, por sua vez,recupera-se o estado anterior à sua constituição. Se a mulherviúva e o homem solteiro se casam, adquirem o estado civilde casados. Se o casamento é invalidado, voltam ao estadoanterior: ela de viúva, ele de solteiro.

b) Negócios com incapazes. Em razão da norma quedetermina o retorno à situação anterior ao negócio jurídicoinválido, aquele que entabula relação negocial com umincapaz teria direito de receber de volta ao seu patrimônio osbens que nele existiam anteriormente ao negócio. Secomprou uma casa de interdito, sem a observância da regrade capacidade (representação ou assistência), teria direito deser ressarcido pelo preço pago. Mas, recorde-se, o institutoda incapacidade é destinado a tutelar os interesses doincapaz. Se da invalidação do negócio jurídico resultassesempre que o incapaz deveria restituir à outra parte o queesta expendera, restaria desprotegida a pessoa que sepretendia amparar. Imagine que o interdito vende bem sem adevida assistência, mas, exatamente em razão de seureduzido discernimento, outorga quitação de valor queefetivamente não recebeu.

Para ampliar a proteção liberada às pessoas desprovidasde capacidade, impõe a lei a quem alega ter feito pagamentoem favor de incapaz o ônus de provar que a quantia

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eventualmente paga havia, de verdade, revertido emproveito dele, incapaz (CC, art. 181). Se não fizer essa prova,não pode exigir do incapaz o ressarcimento do preço pagoem correspondência à devolução do bem objeto do negócioinválido.

Certas normas aplicam-se aqualquer grau de invalidade donegócio jurídico. Destinam-se aassegurar o retorno ao estadoanterior ao negócio, protegerintegralmente os interesses dosincapazes, preservar a parte válidados negócios e imunizá-los dainvalidade instrumental.

c) Invalidade do instrumento. O negócio jurídico pode

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ser válido, mas o instrumento em que foi documentado, não(Beviláqua, 1908:265; Miranda, 1965, 4:109/110). Se omandante alfabetizado decide outorgar procuração porescritura pública, pode fazê-lo, embora a lei não exija essaforma como condição de validade para o negócio jurídico.Aliás, é comum adotar-se o instrumento público deprocuração com vistas a transmitir maior segurança econfiabilidade aos terceiros perante os quais será exibido odocumento. De qualquer modo, se a escritura pública domandato for lavrada por quem não estava regularmenteinvestido na função de tabelião, ou de substituto legal,tratar-se-á de instrumento inválido. O negócio jurídico a quese refere, porém, não se contamina pela invalidadeinstrumental se puder provar-se por outro meio (CC, art. 183).Como para o mandato a forma é livre (CC, art. 656), pode omandante provar o vínculo com o mandatário por qualquermeio de prova (testemunhas ou outros documentosescritos). O próprio papel em que foi lavrada a escriturapública inválida também pode servir à prova da existência domandato, na qualidade de documento particular.

d) Invalidade parcial do negócio. Se o negócio jurídicofor apenas parcialmente nulo ou anulável, mas puder serdesmembrado em parte válida e parte não válida, esta nãocompromete aquela, a menos que o contrário tenha sido aintenção das partes. Imagine que a pessoa pródiga alienequotas de uma sociedade empresária e se obrigue, no mesmo

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negócio jurídico, a prestar serviços de assessoria aoadquirente. Esse negócio se desdobra em dois: cessão departicipação societária e prestação de serviços. Se o negóciofoi praticado sem a assistência do curador, a alienação dasquotas será anulável, mas a prestação dos serviços, em si, éválida (CC, art. 1.782). Em princípio, pois, decreta-se aanulação da cessão da participação societária, mas não a dovínculo negocial de prestação de serviços. Mas, se aintenção das partes tinha sido a de vincular os doisnegócios, de modo que a assessoria do pródigo sóinteressaria ao outro contratante na hipótese de passar atitularizar as quotas daquela sociedade, então os doisnegócios são inválidos.

Nos negócios jurídicos insuscetíveis dedesmembramento, a invalidade parcial os compromete porinteiro. Além disso, determina a lei que a invalidade donegócio jurídico principal implica a do acessório, mas a destenão compromete a do primeiro (exceto na hipótese decondição ilícita, em que a invalidade do acessóriocompromete a do principal — CC, art. 123, II). A implicação,quando se verificar, será do mesmo grau. Se o negócioprincipal é nulo, o acessório também é nulo; se anulávelaquele, será este igualmente anulável (cf. Miranda, 1965,4:87/99).

12.3. Negócios jurídicos nulos

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O negócio jurídico inválido é nulo quando correspondea ações humanas que a sociedade repudia com maiorintensidade. O grau de invalidação do negócio é máximoporque é grande o repúdio social. Em consequência,desconstituem-se todos os efeitos do negócio, este não seconvalesce com o decurso do tempo, pode ser decretado deofício pelo juiz etc. As nulidades do negócio jurídico nãopodem ser supridas nem mesmo por decisão judicial (CC, art.168, parágrafo único), nem convalescem em razão dodecurso do tempo (CC, art. 169, parte final).

Na indicação das razões pelas quais o direito agrava ainvalidade dos negócios nulos, costuma afirmar a doutrinaque haveria até mesmo interesse público na declaração dainvalidade (por todos, Rodrigues, 2002:285). Não penso queassim seja em todos os casos. Há hipóteses de invalidadeabsoluta, em que são exclusivamente privados os interessesprotegidos (o do incapaz, o da parte que fez a declaraçãosem a presença do tabelião etc.). Há sempre maior repúdiosocial às ações que se procuram coibir com a invalidadeabsoluta, mas somente em alguns casos se vislumbra oatendimento a interesse público nas regras sobre nulidadedos negócios jurídicos. Em outros termos, há, de um lado,causas de nulidade do negócio jurídico de interesse dodireito privado e, de outro, causas de interesse do direitopúblico. Convém conhecê-las antes de distingui-las.

São nulos os negócios jurídicos: a) celebrados por

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pessoa absolutamente incapaz, a não ser por meio de seurepresentante; b) cujo objeto é ilícito ou indeterminável; c)que não se revestem da forma prescrita em lei ou em quetenha sido preterida alguma solenidade que a lei consideraessencial para sua validade; d) quando for ilícito o motivodeterminante (da parte, no negócio unilateral, ou de todas aspartes, nos bilaterais e plurilaterais); e) que têm por objetivofraudar lei imperativa; f) taxativamente declarados nulos ouproibidos pela lei.

As três primeiras hipóteses de nulidade dizem respeitoaos requisitos de validade, que já foram examinados (item10). Correspondem às causas de nulidade de interesse dodireito privado. As demais hipóteses são causas deinvalidade do negócio jurídico de interesse do direitopúblico. Nelas, não se contrapõem os interesses das partesdo negócio jurídico, ou dos envolvidos por ele. Quando a leitorna nulo o negócio em que todas as partes tiverammotivação determinante ilícita, o interesse protegido nessecaso não é de nenhuma delas em particular contraposto aode outra ou outras, mas tão somente o interesse público. É ocaso, por exemplo, dos contratos administrativos resultantesde licitação fraudulenta.

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Os negócios jurídicos são nulos,em razão de causas que interessamao direito privado, quandodesobedecida a regra daincapacidade absoluta ou se lhefaltar qualquer um dos demaisrequisitos legais de validade.

Se o negócio jurídico nulo contém os requisitos deoutro negócio, este pode subsistir se os objetivospretendidos pela parte ou pelas partes sugerem que,sabedoras da nulidade do primeiro, teriam querido este outronegócio (CC, art. 170). É hipótese incomum. Imagine-se queAntonio resolva instituir uma fundação com um objetivobem específico de ajudar uma associação de caridadedenominada Crianças Felizes. Ao expender sua vontade,porém, fê-lo num documento particular e não por escriturapública ou testamento, como determina a lei (CC, art. 62).Morreu em seguida. O negócio jurídico de instituição dafundação é nulo, porque carece da forma exigida por lei, mas

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poderá subsistir outro negócio jurídico, o de doação dosbens originariamente destinados à fundação para aassociação Crianças Felizes. Os objetivos do sujeito dedireito que emitiu a vontade são preservados, porque sesupõe que Antonio, sabendo que o negócio anteriormentepraticado era inválido, provavelmente teria insistido narealização dos mesmos efeitos por meio de outro negócio.

12.4. Negócios jurídicos anuláveisA anulação dos negócios jurídicos atende, sempre, aos

interesses da órbita privada dos sujeitos que delesparticipam ou são por eles envolvidos. Objetivam as normasjurídicas concernentes à invalidade relativa reprimircondutas de menor repulsa. E porque se destinam à coibiçãode ações humanas reprováveis com menor veemência pelasociedade, as normas referentes à anulação do negóciojurídico preservam alguns de seus efeitos, admitem aratificação e obstam a decretação de ofício da invalidade.

Duas são as principais causas para a anulação dosnegócios jurídicos: a inobservância das regras deincapacidade relativa e os defeitos. Há diversas outras,espalhadas pelo direito positivo, das quais não trato porenquanto. Cuido, neste volume do Curso, apenas dosnegócios que são anuláveis porque foram praticados pelomenor com mais de 16 anos de idade ou pelo interdito, sem adevida assistência, pelo sujeito vítima de erro, dolo, coação,

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estado de perigo ou lesão, ou com a finalidade de fraudarcredores.

Em relação ao menor relativamente incapaz, a leiestabelece uma ressalva com vistas a evitar o indevidoaproveitamento das regras de incapacidade. Ele não podeliberar-se do cumprimento de qualquer obrigação, em razãoda idade, se havia dolosamente afirmado ser maior ou mesmose ocultara a idade real, quando indagado pela outra parte(CC, art. 180). Nos casos dolosos de maioridade falsa ouomissão de menoridade, o negócio jurídico praticado pelojovem entre 16 e 18 anos será válido, ainda que não estejaessa parte acompanhada do seu assistente legal (pais oututor).

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O negócio jurídico é anulávelquando desobedecida regra sobreincapacidade relativa se defeituosaa manifestação da vontade oupresente defeito social. Ele pode serratificado ou confirmado econvalesce com o decurso do tempo.

A ratificação do negócio anulável pode ser expressa outácita. No primeiro caso, é feita por meio de declaração diretade vontade, geralmente (mas não necessariamente)registrada por documento escrito em que a parte ou partesmanifestam a vontade inequívoca de confirmar o negóciocuja substância nele se descreve (CC, art. 173). A ratificaçãotácita se caracteriza pelo cumprimento do negócio pelodevedor, ainda que em parte, depois de ter ele ciência dacausa de invalidade relativa e estiver em condições, físicasou jurídicas, para postular a decretação da anulação. O quese encontra sob coação para celebrar o negócio jurídicotambém é normalmente coagido a dar-lhe cumprimento. A lei,

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atenta a essa circunstância, estabelece que o prazo deprescrição, nesse caso, inicia-se apenas com o fim da coação(CC, art. 178, I). Do mesmo modo, não se tem por tacitamenteratificado o negócio jurídico enquanto não houvercumprimento posterior à cessação da coação.

A ratificação, expressa ou tácita, extingue o direito depostular em juízo a anulação do negócio jurídico. Trata-se,assim, de outro negócio jurídico, que não depende doratificado, mas que deve atender também aos respectivosrequisitos de validade e não ser viciado. Se alguém ratificanegócio jurídico anulável por erro, pode pleitear a anulaçãotanto do negócio de ratificação como do ratificado. Osdireitos de terceiros não podem ser prejudicados pelaratificação (CC, art. 172, parte final), porque ninguém poderenunciar ao direito titularizado por outro sujeito de verdecretada a anulação do negócio relativamente inválido.

A anulabilidade do negócio jurídico derivada da falta deautorização de terceiro é suprível a qualquer tempo, pelamanifestação do ato autorizatório (CC, art. 176). Se ointerdito não estava assistido regularmente no momento emque praticara o negócio jurídico, mas o assistenteposteriormente manifestou sua autorização, não há causapara anulação.

O negócio jurídico anulável pode tornar-se válido pelodecurso do tempo. Se não for proposta, por nenhuminteressado, a ação judicial destinada à decretação da sua

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anulação dentro do prazo legalmente estabelecido (CC, arts.178 e 179), não haverá mais como invalidá-lo. Emconsequência, converte-se em negócio válido para todos osefeitos.

12.5. Negócios simuladosOs negócios jurídicos simulados são nulos. A simulação

consiste na prática de negócio jurídico aparente, isto é, quenão corresponde à intenção da parte ou das partes, com oobjetivo de prejudicar terceiros. Em geral, tem lugar emnegócios bilaterais ou plurilaterais, mas não é impossíveluma só parte declarar certa intenção para alcançar resultadosdiferentes em prejuízo alheio. Se Antonio institui fundaçãocom o objetivo de explorar disfarçadamente uma atividadeeconômica, opera-se simulação de negócio jurídicounilateral.

Imagine-se que Antonia, casada com Benedito, cometeuadultério ao manter relações sexuais com Carlos. Por lei, elanão pode doar para o amante. Estabelece o art. 550, primeiraparte, do CC que “a doação do cônjuge adúltero ao seucúmplice pode ser anulada pelo cônjuge”. Pois bem, seAntonia simular que vendeu o bem com que pretendepresentear Carlos à amiga Darcy, e esta fizer a doação, nãohaverá, no plano formal, nenhum descumprimento daproibição legal em questão. A intenção de Antonia, aocelebrar a venda com Darcy, não era realmente a de

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transferir-lhe o bem, nem a de Darcy era a de adquiri-lo.Antonia não receberá de Darcy, aliás, nenhum dinheiro, atítulo de pagamento do preço da coisa objeto do contrato. Oobjetivo do negócio foi o de prejudicar Benedito, que, parapleitear a anulação da doação em benefício de Carlos,deverá antes obter a declaração de nulidade do contrato decompra e venda simulado.

Simulado é o negócio jurídico queaparenta ter sido praticado paraproduzir os efeitos declarados, masque oculta intenção diversa deambas as partes e prejudicaterceiros não participantes.

Há simulação nos negócios jurídicos, dispõe a lei,quando: a) aparentam conferir ou transmitir direitos apessoas diversas daquelas às quais realmente se conferem,ou transmitem (exemplo da doação do adúltero em favor do

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amante); b) contiverem declaração, confissão, condição oucláusula não verdadeira (a simulação do divórcio para fugira eventual responsabilidade por débitos futuros) ; c) osrespectivos instrumentos particulares forem antedatados, oupós-datados (adúltero e amante formalizam contrato dedoação com data anterior à do casamento daquele).

Na simulação, há sempre prejuízo a terceiros. Não existesimulação sem que a parte ou as partes do negócio jurídicotenham a intenção de prejudicar direito de não participantedo negócio e este reste realmente prejudicado. A doutrinacivilista produzida sob a égide do Código de 1916 cogitavada simulação inocente, em que tal ingrediente — prejuízo deterceiro — não existia. Anotava, porém, que, em vista dedispositivo expresso da antiga codificação civil, nãocaracterizava essa espécie de simulação hipótese de defeitodo ato jurídico (por todos, Gomes, 1957:429). Na verdade, sea simulação não prejudica terceiros, não existe como tal edeve ser considerado válido o negócio praticado emdescompasso com a verdadeira intenção das partes. Assim,se certo documento particular é antedatado apenas porqueas partes pretendem formalizar negócio jurídico oral cujocumprimento estava em curso ou já se dera, não há nenhumasimulação. Do mesmo modo, se uma pessoa precisa viajar,mas deve assinar documento particular com data futura, porrazões de conveniência das partes, não havendo nenhumprejuízo a terceiros, também não se configura a simulação.

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12.5.1. Simulação e negócio dissimulado

A simulação pode ser de duas espécies: absoluta ourelativa. Na simulação absoluta, além do negócio jurídicosimulado não existe nenhum outro que se procuroudissimular. Imagine que Evaristo, casado com Francisca,pretende dar início à exploração de uma atividadeempresarial, mas teme os riscos do negócio. Tem, por isso, aintenção de preservar bens de eventual execução por partedos futuros credores, antes mesmo de estabelecer-se comoempresário. Simulam, então, a separação consensual (e, emseguida, assim que possível, o divórcio), destinando, napartilha, para Francisca todos os bens de valor do casal, e,para Evaristo, alguns poucos não tão valiosos, cuja perdanão terá importância. A dissolução simulada do vínculomatrimonial não ocultou nenhum outro negócio jurídico,correspondente à verdadeira intenção das partes. É, assim,absoluta.

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A simulação pode ser absoluta (senão houver a intenção de ocultaroutro negócio jurídico) ou relativa(quando há essa intenção).

Na simulação relativa, o negócio nulo foi praticado como objetivo de dissimular outro negócio. No exemplo anterior,de doação da adúltera em favor do amante, a simulação érelativa, porque um negócio (doação) foi dissimulado poroutro (compra e venda).

Na simulação relativa, subsiste o que se dissimulou, seválido for na substância e na forma. Imagine que Germanovende, mediante escritura pública, um imóvel a Hebe, porcerto preço, mas declaram ambos, na escritura pública, que ofazem por preço inferior. Nesse caso, há negócio jurídicosimulado. O imposto incidente na operação tem por base ovalor dela, e a declaração falsa das partes prejudica terceiro,no caso, o fisco. Se obtida por ele, terceiro prejudicado, adeclaração judicial de nulidade do negócio simulado, parafins de arrecadar o tributo em seu valor correto, nem por issoa compra e venda entre Germano e Hebe se desconstitui. Ao

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contrário, subsiste porque válida na substância (eles podiampraticar o negócio de transmissão da propriedade do bem) ena forma (fizeram-no mediante escritura pública).

12.5.2. Simulação e reserva mental

A simulação não é um defeito de consentimento donegócio jurídico. Ao simular, as partes manifestam vontadeconsciente e livre, embora discordante de suas reaisintenções e visando enganar e prejudicar terceiros. É, talcomo a fraude contra credores, um defeito social do negóciojurídico. Aproxima-se muito a simulação da reserva mental,mas não se confunde com ela exatamente por essacaracterística de defeito.

Na reserva mental, recorde-se, a parte declarante nãoexterna sua real intenção para a declaratária e, aliás, imaginaque esta realmente a desconhece. Em sendo assim, isto é,conhecida a reserva mental apenas da parte reservante, nãohá fato jurídico. O negócio jurídico existe, vale e serácumprido em razão da declaração exteriorizada. Quando,porém, a vontade reservada é do conhecimento da partedeclaratária, penso que estabelece a lei a alteração dadeclaração para se ajustar à intenção real do declarante (CC,art. 110). Significa dizer que, na reserva mental, não háinvalidação do negócio jurídico. Não é ela, em outros termos,defeito. Já a simulação importa a nulidade do negócio e é,assim, defeito deste.

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Uma outra forma de distinguir a simulação da reservamental diz respeito à quantidade de partes que emitemdeclaração dissonante com as intenções reais (Nery Jr.,1983:49). Na simulação, todas as partes estão praticando onegócio jurídico em descompasso com os objetivos quepretendem de verdade ver realizados. Ninguém estáenganando ninguém no interior da relação negocialsimulada, mas todos pretendem enganar e prejudicarestranhos a essa relação. Na reserva mental, apenas uma daspartes deixa de declarar a intenção verdadeira. Seu intuito éo de atingir objetivos que não pretende confessar à partedestinatária.

12.5.3. Simulação e negócio indireto

Não se confunde, finalmente, o negócio simulado com onegócio indireto. Neste, as partes fazem declarações devontade com a intenção de alcançar, além dos objetivospróprios do negócio que realizam (primários), também outros(secundários). É o caso, por exemplo, da alienação fiduciária,em que o vendedor não quer exatamente se dispor do bem,nem o comprador quer adquiri-lo, mas pretendem com acompra e venda alcançar objetivo diverso (garantir mútuo,facilitar a administração etc.). O negócio indireto é sempreum meio de alcançar objetivos próprios de outro negócio.

Declarar querer o objetivo primário de um negócioquando, na verdade, se quer o secundário não importa,

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necessariamente, invalidade. Ambos os objetivos sãocompatíveis com a estruturação normativa do negóciopraticado. Claro que o negócio indireto pode tambémconfigurar-se inválido, mas o será pelas mesmas razões quepodem comprometer a validade do negócio direto.

Quando muitas pessoas passam a celebrar determinadonegócio indireto lícito, é um sinal de que o direito positivotalvez não as esteja instrumentalizando adequadamente paraa composição de seus interesses. As necessidades docomércio jurídico não cabem mais, por assim dizer, nosnegócios que a lei contempla. Se é este o caso, o direitopositivo deve ser alterado para tipificar a nova modalidadede negócio e evitar, assim, que se tenha de usar certoinstrumento negocial para atingir objetivos que não lhe sãopróprios, primários.

No negócio indireto, as partes não visam prejudicarterceiros ocultando suas reais intenções. Nele, a intençãoverdadeira dos sujeitos até pode ser declarada, porque adistância entre o pretendido e o externado não invalida onegócio indireto, exatamente pela inexistência de prejuízos aterceiros. Nisso reside a principal diferença entre ele e onegócio simulado, em que as reais intenções das partes sãoforçosamente ocultadas na medida em que visam prejudicarterceiros (cf. Ascarelli, 1945:101/127).

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Capítulo 11

ATOSILÍCITOS

1. ILICITUDE DA CONDUTAPodem-se definir os atos ilícitos em função do direito

positivo ou subjetivo. Pelo primeiro critério, ilícitos são osa t o s sancionados pela norma jurídica. Quando aconsequência prevista para um ato jurídico é a punição dosujeito que o pratica, então ele, se praticado, é ilícito. Se omotorista trafega em velocidade acima da permitida, incorrenum ato ilícito porque essa conduta é sancionada pela lei. OCódigo de Trânsito Brasileiro determina a imposição a essemotorista de multa e também, de acordo com a gravidade dainfração, da suspensão do direito de dirigir. São sanções quea lei escolheu como consequência daquele ato (dirigir emvelocidade acima da permitida).

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As condutas sancionadas pelo ordenamento jurídicosão, normalmente, as reprováveis pela sociedadedemocrática. Num regime ditatorial, quem se investiu noexercício do poder do estado pode ocasionalmentesancionar condutas que a sociedade não reprova, mas,mesmo nas ditaduras, a maior parte das normas jurídicassancionadoras vigentes elegem como pressuposto daaplicação da sanção condutas que a maioria das pessoascondena (roubar, não cumprir contratos, causar danosintencionalmente etc.). Desse modo, pode-se dizer que osatos ilícitos correspondem aos comportamentos que aspessoas não devem ter. Quem faz o que deve ser feito agelicitamente; quem faz o que não deve ser feito, ilicitamente.A norma jurídica acaba, por assim dizer, indicando o quedeve e o que não deve ser feito pelas pessoas ao prescreverem relação às condutas reprováveis a consequência de umasanção.

Em outros termos, a norma jurídica define as condutaspermitidas (as não sancionadas), proibidas (assancionadas) e obrigatórias (aquelas cuja omissão ésancionada). Em decorrência, o ordenamento jurídico podeser visto como uma extensa pauta dos comportamentos quese devem observar para garantir a organização da sociedade.O ato ilícito, nesse contexto, tem sido referido como o“contrário ao direito” ou “praticado contra a ordem jurídica”(Diniz, 2002:456). Note-se que essas fórmulas, embora

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correntes, são imprecisas. As normas acabam indicando ascondutas que devem e não devem ser observadas, é certo,mas a sua estrutura é a de descrever fatos jurídicos e ligá-losa consequências. Quer dizer, o ordenamento jurídico ésempre um conjunto de imputações. O “contrário” àimputação é a inexistência de imputação, e não o ilícito; nãotêm sentido lógico aquelas fórmulas. Em contraposição aodireito objetivo, ato ilícito deve ser definido, estritamente,como o sancionado por norma jurídica, e não como ocontrário a ela.

As sanções são de três espécies: penais,administrativas e civis. A sanção penal é, em geral, arestrição da liberdade da pessoa que praticou o ilícito. Há,contudo, sanções de natureza diferente, como multas ouprestação de serviços à comunidade. As administrativas, porsua vez, são impostas pelo Poder Executivo com vistas àordenação de condutas cujos efeitos negativos são os demenor potencial lesivo. Consistem em multas ou suspensãode direitos. No plano civil, o ato ilícito importa sempre odever de indenizar os danos decorrentes da condutareprovável. O motorista que desobedece o semáforo eprovoca acidente de trânsito abalroando outro veículo, alémde se submeter ao pagamento da multa pela infraçãocometida (sanção administrativa), deve também indenizar oproprietário do veículo danificado (sanção civil). Se,ademais, o acidente ocasionar a morte de alguém, o

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motorista também terá cometido crime e poderá ser preso(sanção penal).

O ato lícito, por sua vez, é, na norma jurídica, opressuposto de consequências diferentes de sanção.Quando o eleitor assinala na urna eletrônica, ao votar paraPresidente da República, o número do postulante de suapreferência, esse ato gera por consequência o cômputo demais um voto àquele candidato. Tal consequência não é apunição ao sujeito que praticou o ato (eleitor) e, portanto, élícito. O juiz de direito, ao assinar a sentença condenando ohomicida à reclusão, está praticando ato evidentementelícito. Note-se que a consequência do sentenciar será aaplicação da sanção em concreto, mas como ela não estádirecionada ao sujeito que praticou o ato (juiz) e, sim, aoautor do crime, então o prolatar da sentença judicial é lícito.

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Definido em contraposição aodireito objetivo, ato ilícito é aqueleque a norma jurídica descreve comopressuposto de uma sanção; estapode ser civil (normalmente, aindenização dos danos), penal(normalmente, a perda da liberdade)ou administrativa (normalmente,multa).

Esse primeiro critério de definição do ato ilícito, porém,não é inteiramente satisfatório, porque falha ao explicar aresponsabilidade civil objetiva (item 4).

Definido pelo critério de contraposição ao direitosubjetivo, ilícito é o ato culposo que o viola. É esta a opçãodo Código Civil, que, no art. 186, estabelece: “Aquele que,por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência,violar direito e causar dano a outrem, ainda que

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exclusivamente moral, comete ato ilícito”. Desse modo, seráilícita a conduta de qualquer sujeito que importar odesrespeito a direito titularizado por outrem. O motorista quetrafega em velocidade acima da permitida estádesrespeitando direito dos demais motoristas, transeuntes ecircunstantes das vias por que passa. Essas pessoas têm,por assim dizer, o direito de não serem expostas ao risco dedano por acidente de trânsito (derivação dos direitos à vida,saúde, incolumidade física e sossego).

São elementos inerentes ao conceito de ato ilícitoadotado pelo direito positivo brasileiro a culpa e o dano.Violar um direito, assim, é causar culposamente danos aoseu titular. Culpa, no campo do direito civil, é expressãoambígua: em sentido lato, compreende o dolo; no restrito,contrapõe-se a ele (Gomes, 1957:489). Em outros termos,quando norma jurídica de direito civil menciona a culpa, emprincípio está abrangendo tanto as hipóteses de culpa emsentido estrito (negligência, imprudência ou imperícia) comoas de dolo (ato voluntário e intencional). Por outro lado, aculpa, em sentido largo ainda, pode traduzir-se numa ação(ato comissivo) ou omissão (ato omissivo) do sujeito daconduta ilícita. Incorre em ilícito, por exemplo, tanto aqueleque engana a parte declarante de negócio jurídico ao lheprestar falsas informações sobre o objeto em negociaçãocomo o que a engana ao lhe sonegar informação essencial.

Em relação ao segundo elemento do conceito legal de

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ato ilícito — o dano —, cabe observar que pode ser esteexclusivamente moral. É ilícito tanto o comportamento queimporta prejuízo patrimonial para o titular do direito, como aofensa a direito extrapatrimonial, não suscetível demensuração pecuniária. Quem usurpa a posse do vizinhocomete ilícito, porque viola o direito deste sobre o bemusurpado e causa-lhe dano patrimonial. Já quem divulgainformação sobre determinada pessoa, quando esta adesejava manter reservada, viola o direito à privacidade ecausa dano extrapatrimonial. Um mesmo ato ilícito, ademais,pode implicar danos dessas duas ordens. Quem mata o filho,causa aos pais danos patrimoniais (a legítima expectativa deamparo na velhice) e extrapatrimoniais (a dor da perda). Arigor, nesse caso o dano é um só (a perda do filho), comdesdobramentos nos planos patrimonial e extrapatrimonialdos direitos de alguém.

A seu turno, o ato lícito é definido, agora, não como oque gera consequências diferentes de sanções, mas comoaquele que não ofende direito subjetivo de ninguém. Oeleitor teclando na urna eletrônica o número do candidatoem que está votando e o juiz determinando a reclusão docondenado praticam ato lícito porque ninguém está tendo osseus direitos violados por essas condutas. Ao contrário,dos atos em questão até decorre o respeito a direitos deoutras pessoas (o do candidato escolhido, de ter o voto nelecomputado, e o de todos, de verem punidos os crimes).

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Embora os dois critérios de definição do ato ilícito — emfunção do direito positivo ou em contraposição ao direitosubjetivo — cheguem, no mais das vezes, aos mesmosresultados, deve-se operar com o segundo. Além de ser ocritério legal, não apresenta inconsistências ao cuidar daresponsabilidade civil objetiva.

2. ABUSO DE DIREITONo início do século anterior, um construtor de dirigíveis

cujo hangar se situava no interior da França, departamentode Compiègne, deparou-se com um problema inusitado. Ofazendeiro vizinho havia erguido, na divisa de suapropriedade com a do hangar, umas colunas altas de madeiracom varas de ferro pontiagudas. Pelas condições do lugar, aestranha divisória tornou a manobra dos dirigíveisextremamente perigosa e houve mesmo um deles perfuradopela ponta de ferro da armação. O fabricante dosequipamentos moveu processo contra o vizinho para obrigá-lo a retirar ou alterar a divisória.

A defesa do fazendeiro pautou-se no direito depropriedade. O Código Civil francês, obra de Napoleão,assegura esse direito de forma absoluta. De acordo comseus preceitos, produtos de concepções liberais eindividualistas predominantes no início do século XIX, oproprietário pode usar a propriedade como bem lheaprouver, respeitando unicamente os limites da lei. Além

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destes, não há nada que constranja, reduza ou obste asprerrogativas do proprietário (Carbonnier, 1955:352). Dispõe,com efeito, um dos dispositivos do Código napoleônico: “apropriedade é o direito de usar e dispor das coisas demaneira absoluta (‘la plus absolue’), desde que o uso nãoseja proibido por lei ou regulamento”. Como não havianenhuma norma jurídica proibindo o fazendeiro de erguer adivisória com as pontas de ferro, estava ele exercendo seudireito de propriedade de acordo com a lei.

Mas a justiça francesa rechaçou os argumentos dofazendeiro, decidindo a questão em favor do construtor dedirigíveis. Considerou que o direito de propriedade,malgrado o previsto no Código Civil francês, esbarrava emoutros limites além dos legais. Da definição do direito depropriedade como absoluto não se segue que o seu exercíciopossa ser feito sem o objetivo de satisfazer interesse sério elegítimo (Fernandes, 2001, 2:586). Nenhum proprietário,assim, pode usar sua propriedade apenas com o intuito deprejudicar outras pessoas, se isso não lhe traz nenhumavantagem. Na verdade, não era esta a primeira vez que juízesfranceses temperaram o liberalismo e individualismo dasnormas jurídicas assecuratórias do direito da propriedade.Em Colmar, em 1855, um proprietário havia sido condenado ademolir a enorme e falsa chaminé que construíra sobre a casaunicamente para reduzir a insolação do imóvel contíguo(cas o Doerr). Mas o julgamento do caso dos dirigíveis

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(Clément-Bayard) tornou-se o mais famoso e paradigmático.A tecnologia civilista começou, então, a se indagar

sobre os critérios que norteiam os juízes em decisões comoas dos casos Doerr e Clément-Bayard. Afinal, se a leiassegura ao proprietário o direito de usar seus bens comomelhor lhe aprouver, em função de que valores estavamaqueles sendo coibidos de fazê-lo? Não se punham emdúvida — e, aliás, nenhuma pessoa sensata o poria — ajustiça e a correção das coibições decretadas pelos juízesnaqueles casos. Procurava-se, porém, encontrar ofundamento para elas; o padrão geral em função do qual sepoderiam fincar os limites no exercício de um direitoassegurado pela ordem jurídica. Afinal, as pessoas precisamter clareza sobre o que é lícito e ilícito, para orientarem suascondutas.

O direito romano já reprimia atos praticados com aintenção de prejudicar outras pessoas (atos de emulação),de forma que as ordens jurídicas de tradição romanística, aoprocurarem embasamento para limitações extralegais aoexercício de um direito, encontraram algum amparo natradição. Formulou-se, então, nesse contexto, a teoria doabuso de direito. Duguit e Josserand, entre outros, deramcontribuições de vulto à sua elaboração. De acordo comsuas primeiras sistematizações, a teoria do abuso de direitoafirma que nenhum direito assegurado por lei pode serexercido com o único objetivo de prejudicar outras pessoas,

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se não houver proveito ao seu titular.A noção de abuso do direito, porém, não foi

prontamente aceita pela unanimidade da doutrina. Hoje, já édireito positivo em muitos países, o que torna indisputável aeficácia das limitações fixadas. Mas, enquanto não se operaa positivação, cabem sérios questionamentos à concepçãodoutrinária. Em França — onde não existe norma jurídica decoibição ao exercício abusivo do direito, e esta se faz, comoassinalado, por obra da jurisprudência —, manifesta-se aveemente e lúcida contra-argumentação de Marcel Planiol.Sintetizo-a. Os atos jurídicos são lícitos ou ilícitos; não háterceira categoria. O exercício de direito é, por definição,lícito. Ora, se o exercício abusivo do direito é consideradoilícito, então não é exercício de um direito. A ideia de abusode direito encerra, em si, uma contradição insuperável. Note-se que questionar, como Planiol, a consistência lógica dafigura do abuso do direito não é considerar que casos comoClément-Bayard devessem ter sido resolvidos em favordaquele que apenas buscou o prejuízo alheio. O que está emquestão é a busca dos critérios que possam fundamentar alimitação extralegal do exercício do direito. Planiolquestionava, a rigor, a noção de “abuso de direito” porconsiderá-la imprecisa. Reconhecia, não obstante, seu largoemprego (1952, VI:798/806).

Mas se a noção de abuso de direito é irrefreavelmenteilógica, isso não tem impedido sua adequada

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operacionalização na superação de conflitos de interesses.Tanto assim que, a despeito das críticas que sofreu,desenvolveu-se a teoria do abuso de direito pelos países detradição jurídica romanística. Passou a apresentar, em suatrajetória evolutiva, duas formulações distintas. De um lado,a concepção designada subjetiva, que reputa abusivo oexercício do direito com a intenção única de provocar danosa outras pessoas, sem proveito ao titular. Essa concepçãoestá mais próxima da figura do ato emulativo do direitoromano. De outro, a designada objetiva, que não se ocupadas intenções do sujeito e considera ilícito o exercício dodireito sem a observância de sua finalidade econômica esocial ou da moral. Na primeira corrente, os limites aoexercício do direito são fixados pela intenção do titular, quenão pode ser senão a de satisfazer interesse legítimo; oabuso se caracteriza pela emulação, pela vontade deprejudicar. Na segunda, são dados pela finalidadeeconômica e social do direito exercido e pelos preceitos damoral; abusa do direito quem, ao exercê-lo, desvia suafinalidade ou desconsidera regras éticas de convivência emsociedade.

Diversos ordenamentos positivos contemplam normageral de repressão aos abusos de direito. O Código Civilalemão tem por inadmissível o exercício do direito destinadoexclusivamente a causar dano a alguém. O suíço nega aproteção ao exercício manifestamente abusivo de qualquer

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direito. O português considera ilegítimo o exercício do direitodesviado de sua função econômica e social ou desprovidode boa-fé, adotando a concepção objetiva da teoria(Fernandes, 2001, 2:589). Há, de outro lado, países em cujodireito não se encontra norma específica sobre o exercícioabusivo de direito. Na Itália, o Código Civil proíbeexpressamente os atos emulativos, mas não adota a teoria doabuso de direito (Gallo, 2000:185/188). Em França, berço dateoria, a repressão aos abusos é, como já dito, obra dajurisprudência (Voirin-Goubeaux, 1999:249; Hubrecht-Vermelle, 1947:119).

Exerce abusivamente seu direitoquem não observa sua finalidadeeconômica e social, age de má-fécom a intenção única de prejudicaroutras pessoas ou desrespeita osbons costumes.

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No Brasil, durante a vigência do Código de 1916, adoutrina sempre lecionou que a repressão aos abusos dedireito decorria da interpretação a contrario da norma quedefinia o exercício regular do direito como lícito. Oargumento era o de que, ao circunscrever a licitude aoexercício regular do direito, a norma tomava por ilícito oexercício irregular (por todos, Beviláqua, 1934:424/426).Com a entrada em vigor do novo Código Civil, em 2003, odireito positivo brasileiro passou a contemplar regra que,embora não mencione a expressão “abuso de direito”,insere-se no contexto desse tema. Trata-se do art. 187, quepreceitua cometer ato ilícito “o titular de um direito que, aoexercê-lo, excede manifestamente os limites impostos peloseu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bonscostumes”.

Como deflui da leitura do dispositivo, filiou-se o direitobrasileiro à concepção objetiva do abuso do direito. Nãosomente os atos emulativos (intencionados a prejudicaroutrem) mas todos os desvios de finalidade do direito sãopostos fora do campo da licitude. Três, assim, são os limitesdo exercício regular de qualquer direito, além dos quais sereputa este abusivo: os ditados por seu fim econômico ousocial, a boa-fé e os bons costumes. À frente, o tema seráretomado (Cap. 22, item 2.3).

3. EXCLUSÃO DA ILICITUDE

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O ato ilícito se caracteriza, como visto, na violação dedireito alheio. Assim, quem culposamente causa dano, aindaque exclusivamente moral, a outra pessoa incorre num ilícito.Esta é a regra geral. Há, de outro lado, exceções, isto é, atospraticados voluntária e intencionalmente por alguém, dosquais derivam danos a outras pessoas, mas que não secaracterizam como ilícitos. São os atos que, embora ostentemtodos os elementos configuradores do ilícito, acabamexcluídos, pela lei, do campo da ilicitude, tendo em vista aadequada proteção dos valores socialmente cultivados.

Nesse sentido, não se considera ilícito o ato praticado:a) Em legítima defesa. A legítima defesa é o ato em que

o titular do direito afasta, por seus próprios recursos, o danoou o risco de dano derivado de ação humana. Para cumprirsua finalidade institucional, o direito não pode admitirsistemas alternativos de superação de conflitos deinteresses. Quer dizer, em princípio, as pessoas somentepodem defender seus direitos de uma lesão ou ameaça delesão por meio do aparato repressivo do Estado e observadoo devido processo legal. Em circunstâncias especialíssimas,porém, admite o direito a remoção do dano ou do risco pelopróprio titular, sem socorro ao Poder Judiciário. É a “justiçapelas próprias mãos” que deixa de configurar ato ilícito noslimites estreitíssimos da legítima defesa. Assim, quem vêalguém usurpando a posse de um bem que lhe pertencepode, por seus próprios recursos, retomar a coisa para si.

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Desde que o titular do direito esteja respondendo a agressãoatual (ou iminente) e injusta, e empregue meios moderados(CP, art. 25), não há ilicitude no ato.

Em algumas situações, a legítima defesa pode servir deexclusão da ilicitude para fins de direito penal, mas não paraas implicações civis do ato. É o caso, por exemplo, dalegítima defesa putativa, em que o sujeito se defende deameaça imaginária. Ele não comete crime, mas é responsávelpela indenização de vítimas de seu ato (RT, 808/225). Outroexemplo está na lesão a direito de uma pessoa por legítimadefesa contra ato de terceiros. A responsabilidade penal nãoexiste, mas a civil se constitui. Se alguém, defendendo-se deameaça real, dispara tiros contra uma pessoa e acerta outra,não pratica ilícito criminal, mas é obrigado à indenização (RT,789/225).

b) No exercício regular de direito. O exercício regularde um direito também não se considera ilícito, ainda queimporte prejuízos a outras pessoas. Se Antonio seestabelece como empresário para explorar determinadaatividade, e tem sucesso na formação da clientela, acabaprejudicando necessariamente os demais empresários queatuam no mesmo mercado. Os consumidores que atrair parasua empresa deixarão de adquirir dos seus antigosfornecedores. Se Antonio empregar meios idôneos deconcorrência, não poderá ser responsabilizado pelosprejuízos advindos aos seus concorrentes em razão do

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crescimento de sua empresa.c) Em estado de necessidade. Configura-se o estado de

necessidade com a deterioração ou destruição de coisaalheia, ou lesão a pessoa, a fim de remover perigo iminente(não confundir com o “estado de perigo”, defeito donegócio jurídico — Cap. 10, item 11.2.3). Se Benedito, paraevitar que seu automóvel seja abalroado por um veículodesgovernado, realiza manobra arriscada e acabaatropelando e matando o cão de Carlos, não se considerailícita sua ação, nem deve ele indenizar os danosdecorrentes, porque se verificaram estes na remoção deperigo iminente. No estado de necessidade sempre há osacrifício do direito de uma pessoa para salvar o de outra doperigo de se perder. Mas, para operar a exclusão de ilicitude,o ato de remoção do perigo deve ser necessário e não podeexceder os limites do indispensável para atingir esseobjetivo. Quer dizer, se Benedito podia safar-se do acidentede trânsito por meio de manobra que não sacrificasse o cãode Carlos, foi ilícita sua conduta.

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Código Civil:Art. 188. Não constituem atos

ilícitos:I — os praticados em legítima

defesa ou no exercício regular de umdireito reconhecido;

II — a deterioração ou destruiçãoda coisa alheia, ou a lesão a pessoa,a fim de remover perigo iminente.

Quando o direito sacrificado refere-se a uma coisa(como no exemplo dado), não se exige que seja inferior aosalvaguardado (Monteiro, 2001:291). A moral não repudia,aliás, o sacrifício de um animal com o objetivo de preservar aintegridade física de homem ou mulher. Mas cogite-se dainexistência desse risco. Se do acidente de trânsito evitadopela manobra arriscada de Benedito não pudessem decorrersenão danos materiais. Nesse caso, ainda que o cão de

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Carlos fosse extremamente raro e valioso, e custasse maisque o valor do reparo dos eventuais danos no veículo deBenedito, não teria este incorrido em ilícito. Se tanto odireito sacrificado como o salvaguardado são coisas, ésuficiente para a exclusão da ilicitude que não fosse razoávelexigir do sujeito o sacrifício do seu direito sob risco (CP, art.24).

Quando, porém, o direito sacrificado refere-se a lesão empessoa, pode configurar-se a ilicitude se o bem exposto aperigo era uma coisa. Se o astro da televisão, para evitar serfotografado por um paparazzo, não tem outra alternativa anão ser correr, e, ao fazê-lo, acaba causando ferimentos emtranseuntes, incorre em ato ilícito, porque não o beneficia aexclusão do estado de necessidade. Nesse exemplo, o direitosalvaguardado (imagem-retrato) é infinitamente menosvalioso que o sacrificado (integridade física das pessoas).

4. RESPONSABILIZAÇÃO POR ATOS ILÍCITOSQuem pratica ato ilícito fica responsável pela

indenização dos danos a que culposamente der causa. Diz oart. 927 do CC: “Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187),causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo”. Trata-se dasanção civil que a norma jurídica liga à prática de atoviolador de direitos subjetivos.

Assim, quem age como não deveria agir (incorre em atoilícito) tem o dever de indenizar as perdas e danos a que der

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causa. O motorista que não para o veículo no semáforovermelho, e, com isso, provoca acidente de trânsito, fez oque não deveria fazer. Deve indenizar os prejuízos queproduziu com sua conduta ilícita. É chamada essa hipótesede responsabilidade civil subjetiva, porque fundada na culpado agente causador do dano.

Atente-se, contudo, que também o ato lícito, por vezes,gera o mesmo dever. É o caso da responsabilidade civilobjetiva, em que a norma jurídica imputa a obrigação deindenizar a quem age exatamente como deveria ter agido(pratica apenas atos lícitos). Se o consumidor sofre acidentede consumo, o empresário fornecedor do produto ou serviçoem questão deve indenizá-lo, mesmo que tenha feito todosos investimentos exigíveis no controle de qualidade de suaempresa. Isto é, mesmo que tenha feito exatamente o quedele se espera, será responsável por ressarcir os danoscausados pelo acidente de consumo. Existe, note-se, sempreuma margem de defeitos inevitáveis em qualquer produto ouserviço oferecido ao mercado consumidor. Em razão dafalibilidade humana, por mais que o empresário se empenheem modernização de seu estabelecimento, treinamento depessoal e aperfeiçoamento em controle de qualidade, algunsprodutos ou serviços sairão com defeito. O ser humano éinevitavelmente imperfeito e essa imperfeição importará ofornecimento, aos consumidores, de algumas (ainda quepoucas) mercadorias e comodidades defeituosas. A

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responsabilidade dos fornecedores pelos danos derivadosde acidente de consumo não decorre, assim, de qualquer atoilícito. Imputa-se mesmo ao empresário que agiu exatamentecomo deveria ter agido.

Quem pratica ato ilícito deveindenizar os prejuízos a que dercausa (responsabilidade subjetivafundada na culpa). Mas também seimputa, em alguns casos, aobrigação de indenizar danos aquem praticou atos lícitos(responsabilidade objetiva).

A responsabilidade objetiva revela as insuficiências docritério de definição do ato ilícito em função do direitopositivo. Como visto, são dois os critérios de delimitação dailicitude da conduta. Pelo fundado no direito positivo, o ato

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ilícito é definido como aquele ao qual a norma jurídica ligauma sanção; contraposto ao direito subjetivo, como aqueleque viola culposamente direito alheio (item 1).

O critério fundado no direito positivo falha ao explicar aresponsabilidade objetiva porque, nela, verifica-se aimputação da sanção a quem incorreu em ato lícito. A normajurídica liga, por exemplo, o fato “acidente de consumo” àconsequência “dever do fornecedor de indenizar as vítimas”.Essa consequência não é uma sanção civil porque no fatoantecedente não se encontra nenhuma conduta doempresário que pudesse ter deixado de fazer. Quem exploraempresa assume o risco de responder por defeitos nosprodutos e serviços, que, como visto, são inevitáveis dentrode certa margem estatística. Para nunca responder por danosde acidentes de consumo, só não explorando empresa. Ora,como organizar a exploração de atividade empresarial éindiscutivelmente ato lícito, segue-se que a responsabilidadeobjetiva importa não a imputação de sanção, mas simplesrealocação de recursos (Cap. 22, item 2). O intérprete nãotem, contudo, como saber se a responsabilização civil dedeterminada pessoa objetivou desestimular uma conduta(ilicitude do ato) ou apenas racionalizar a alocação dosrecursos (licitude), como forma de definir se o antecedentefoi lícito ou ilícito. A operação intelectual é a inversa: deve-se partir da ilicitude do antecedente para concluir sobre anatureza sancionatória da responsabilidade civil. Definir o

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ilícito, assim, como antecedente de sanção é inconsistente,por incorrer na falácia lógica da petição de princípio.

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Capítulo 12

PRESCRIÇÃOE

DECADÊNCIA1. INTRODUÇÃO

Nasce e perece o direito subjetivo por razões variadas.Em primeiro lugar, em função de mudanças no direitoobjetivo. Para cumprir sua função, a norma jurídica faz edesfaz os direitos. Quer dizer, para orientar a superação dosconflitos de interesses, a lei “atribui” ao sujeito cujointeresse quer ver prevalente um “direito”, e ao outro, ocorrespondente “dever”. O juiz tem, então, o padrão para se

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guiar, ao decidir os processos: deve dar, em princípio, razãoao sujeito que tem o direito. Quando a lei se altera, muitasvezes tira o direito subjetivo de um sujeito para dá-lo aooutro. Mudanças do ordenamento jurídico, assim, podemimportar o início e o fim de direitos. Em 1991, quando a leisuprimiu o efeito suspensivo da apelação contra a sentençade despejo por falta de pagamento, os locatáriosinadimplentes perderam o direito de continuar na posse doimóvel até o julgamento do seu recurso. Ao mesmo tempo,porém, o locador ganhou o direito de reaver o imóvel antesmesmo do julgamento final do processo.

Além das mudanças no ordenamento, o direito subjetivose constitui por fato, ato ou negócio jurídico. A morte é ofato jurídico que constitui, por exemplo, o direito dosherdeiros sobre os bens da pessoa falecida. O achado casualdo tesouro é o ato jurídico constitutivo do direito depropriedade sobre essa coisa. A assinatura do contrato demútuo é o negócio jurídico de que deriva o crédito docredor.

Extingue-se, igualmente, o direito por fato, ato ounegócio jurídico. O perecimento do objeto é uma das causasde extinção por fato jurídico. Os direitos do proprietáriosobre a casa deixam de existir se ela é consumida porincêndio de causas naturais. A morte de um homem extingueos direitos personalíssimos que titularizava: morto o paiseparado, desaparece seu direito de visita aos filhos. São

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exemplos de fatos jurídicos extintivos de direitos. A inérciado proprietário em contestar a posse que outra pessoaexerce sobre o seu imóvel, depois de algum tempo, induz àextinção do seu direito de propriedade. Trata-se de atojurídico extintivo de direito subjetivo. A remissão de dívida énegócio jurídico extintivo do direito de crédito (Cap. 17, item5).

Há várias outras hipóteses de extinção do direito (Diniz,2002:328/329), mas interessa, aqui, centrar o foco na derivadade duas manifestações de vontade do titular: a renúncia e onão exercício. Naquela, o sujeito assume a obrigação,perante outro ou outros interessados, de não exercer seudireito. Trata-se de negócio jurídico unilateral (expressadapor declaração apenas do renunciante, independentementeda vontade do beneficiário) ou bilateral (quando embutidanum contrato entre renunciante e beneficiário), em que ficavinculado à vontade declarada. Se se arrepender e quiser, nofuturo, exercer o direito a que renunciara, não poderá fazê-lo,pois estará descumprindo a obrigação contraída. O nãoexercício se verifica quando o titular, voluntária eintencionalmente, abstém-se dos atos necessários a torná-loefetivo. É também negócio jurídico, porque se trata de atopraticado com a intenção de produzir os efeitos pretendidospelo sujeito. Diferencia-se da renúncia porque no nãoexercício o declarante se reserva o direito de voltar a exercê-lo, no futuro, se quiser.

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Os direitos renunciáveis podem simplesmente deixar deser exercidos. Se Antonio tem a posse de imóvel, como seseu fora, sem oposição por quinze anos ininterruptos, eletitulariza o direito de se tornar proprietário do bem porusucapião (CC, art. 1.238). Para isso, porém, será necessárioque requeira ao juiz, por meio do processo adequado, que odeclare proprietário por sentença. Se Antonio nem sequerprocura um advogado para tratar da propositura da ação, elenão está exercendo o direito que titulariza. Note a diferençacom o negócio jurídico da renúncia. Aquele que se limita anão exercer o direito pode, posteriormente, a seu exclusivocritério, deixar o estado de inércia sem nenhumaresponsabilização, posto não ter assumido a obrigação de semanter inerte.

Em certas situações, seja em razão da importância doobjeto, seja em atenção às limitações de discernimento dosujeito, a lei prescreve a irrenunciabilidade do direito. É ocaso, por exemplo, dos direitos extrapatrimoniais dapersonalidade. Ninguém pode renunciar ao direito ao nomeou à vida privada. Qualquer declaração do titular do direitoque pudesse implicar renúncia é inválida e ineficaz. O direitoirrenunciável, malgrado não possa ser objeto de negóciojurídico em virtude do qual o sujeito se obriga a não exercê-lo, pode simplesmente não ser exercido. Nesse caso, o nãoexercício é ato reiterado de vontade e intencional, mas, pornão poder ser validamente declarável como negócio jurídico,

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tem a natureza de fato jurídico.

O não exercício de um direitodurante o prazo estabelecido pela leiimporta sua extinção. Duas são ashipóteses de prazos extintivos: aprescrição e a decadência.

O não exercício do direito (renunciável ou irrenunciável)pelo titular é uma faculdade deste. Não há meios de se forçaralguém a exercer um direito contrariamente à sua vontade.Quando interesses legítimos de terceiro são prejudicadospela inércia do titular do direito, a lei normalmente atribui-lhelegitimidade para atuar como substituto no processo. É ocaso, por exemplo, da sociedade anônima que está sendoprejudicada por atos de má administração. Se a assembleiageral deliberou demandar o ressarcimento do prejuízo, mas,transcorridos pelo menos três meses, a pessoa jurídica aindanão propôs a ação judicial de indenização contra o maladministrador, qualquer acionista pode fazê-lo em nome da

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sociedade (Lei n. 6.404/76, art. 159). Para evitar que a inérciada pessoa jurídica, que é a titular do direito à indenização,prejudique os interesses dos acionistas, a lei os legitima aexercê-lo em nome dela. Entre forçar o titular do direito aexercitá-lo contra sua vontade e legitimar, em hipótesesexcepcionalíssimas, terceiros interessados a substituí-lo noprocesso, a lei opta por esta última alternativa.

Mas, embora não force ninguém a exercer seus direitos,a lei não tolera a inércia para sempre. O não exercício de umdireito por muito tempo acaba minando a segurança dasrelações jurídicas. Depois de longo período sem serprocurado para cumprir sua obrigação, o devedor não sabemais se a deve ou não; se ainda convém manter imobilizadosem reserva os recursos para o seu adimplemento, ou se jálhes pode dar emprego mais rendoso. Por essa razão, a leinormalmente estabelece prazo para que o direito sejaexercido por seu titular, findo o qual extingue-o em nome dasegurança nas relações jurídicas.

Em outros termos, o decurso do tempo, um fato jurídico,também é causa de extinção de direitos. A maioria dosdireitos subjetivos perde-se se não for exercido pelo titulardurante muito tempo. Não são, porém, todos os direitos quese extinguem em razão desse fato jurídico. Há osimprescritíveis, que o titular nunca deixa de titularizar,mesmo que não os exerça por longo tempo. Antonio, doexemplo anterior, titulariza direito dessa natureza. Mesmo

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que já se tenham passado décadas desde a aquisição dodireito de pleitear judicialmente a declaração da propriedadedo bem por usucapião, sem que o tenha exercido, ele aindacontinuará podendo fazê-lo enquanto viver e possuir o bem.O direito de propriedade e o de requerer a declaração denulidade do negócio jurídico são outros exemplos de direitosimprescritíveis.

A irrenunciabilidade e a imprescritibilidade do direitosão atributos independentes. Ao contrário do que entendemalguns doutrinadores (por exemplo, Fernandes, 2001, 2:650),a indisponibilidade do direito implica a irrenunciabilidade,mas não a imprescritibilidade. Os direitos pessoaispatrimoniais são, em sua maioria, renunciáveis eprescritíveis. O credor da nota promissória tem, em geral, trêsanos, a contar do vencimento, para demandar em juízo opagamento do título. Pode, também, a qualquer momentorenunciar ao crédito. Mas há, no direito brasileiro, hipótesede direitos irrenunciáveis e prescritíveis. Os titulados pelosconsumidores, por exemplo, traduzidos pelas normas deproteção contratual são exemplo dessa hipótese. Trata-se dedireitos pessoais e patrimoniais, porém irrenunciáveis eprescritíveis. Nenhuma cláusula do contrato de consumopode impedir o consumidor de exercitar direito que a lei lheassegura, porque está legalmente obstada a alternativa derenúncia, mas deve exercer esse direito irrenunciável dentrodo prazo de prescrição estabelecido no Código de Defesa do

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Consumidor.O decurso do tempo, em suma, assim como pode criar o

direito (como no caso da usucapião, a que a doutrina serefere também como prescrição aquisitiva), pode tambémextingui-lo. Apenas os direitos imprescritíveis não seextinguem em razão desse fato jurídico. São, por outro lado,duas as hipóteses em que a extinção assim se verifica: aprescrição e a decadência (esta chamada também de“caducidade”).

2. DIFERENÇAS ENTRE PRESCRIÇÃO E DECADÊNCIA“Prescrição” é expressão ambígua que, em sentido largo,

compreende a decadência, e, em sentido estrito, contrapõe-se a esta. A extinção do direito em razão do decurso doprazo é referida, em termos gerais, como prescrição. Quandose diz que certo direito é imprescritível, isso significa quenem a prescrição (em sentido estrito) nem a decadênciapodem importar seu desaparecimento. Neste item e seussubitens, relativos às diferenças entre prescrição edecadência, evito a ambiguidade empregando apenas osentido estreito da expressão.

Os elementos comuns à prescrição e decadência,enquanto causas de extinção de direitos, são a inércia doseu titular em exercê-lo (fator subjetivo) e o decurso dotempo (fator objetivo). O direito subjetivo (sujeito a essacausa de extinção) não é protegido se quem o titulariza deixa

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de exercê-lo durante o prazo fixado na lei. A perda do direito,nesse caso, visa a conferir maior segurança às relaçõesjurídicas. Convém a todos que, decorrido tempo mais querazoável para o sujeito exercer seu direito, perca-o quempermanecer inerte. As demais partes da relação jurídica nãopodem ficar numa situação interminável de indefinição. Alémdisso, não fossem as regras de extinção do direito pordecurso do tempo, os documentos de quitação de qualquernegócio jurídico deveriam ser guardados pelo devedor (eseus sucessores) para sempre. O bisneto do credor, váriasdécadas depois do vencimento da obrigação, poderiademandar o bisneto do devedor, e se este não possuísse aprova da quitação, deveria pagar o devido novamente. Como instituto da perda do direito pelo transcurso do tempo,essa possibilidade está afastada. Vencidos os prazos legais,os documentos de quitação podem ser inutilizados porquenão há mais a possibilidade de se cobrar novamente o seupagamento. A necessidade de segurança nas relaçõesjurídicas, em suma, exige que a maioria dos direitos sejamprescritíveis e que somente em casos excepcionais sepreceitua a imprescritibilidade de um ou outro.

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Tanto a prescrição como adecadência reúnem os mesmoselementos: inércia do sujeito emexercer o direito (fator subjetivo) edecurso do tempo fixado em lei(fator objetivo).

Presentes os dois fatores acima apontados — inércia dotitular e decurso do tempo — extingue-se o direito porprescrição ou decadência. Não há, assim, dificuldadenenhuma em delinear os elementos comuns às duas espéciesde prazos extintivos. Em relação às diferenças, porém, não seencontrou ainda nenhum critério satisfatório. Não é fácil,assim, apontar os traços essenciais específicos daprescrição e decadência. Os padrões diferenciais são vários,mas insuficientes (item 2.1). A insuficiência nos critérios deidentificação, porém, não impede a devida operacionalizaçãodos conceitos. De fato, uma vez estabelecido que certoprazo é de uma ou outra natureza, não há dúvidas quanto aoregime a aplicar (item 2.2).

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O ideal, no meu ponto de vista, seria a lei trazer cláusulade fechamento, estabelecendo, por exemplo, que o prazo nãodefinido expressamente como decadencial seria tido porprescricional. O Código Civil não traz essa cláusula legal,mas a exposição de motivos dos elaboradores de seuanteprojeto informa que se adotou um critério próximo: se oprazo está previsto nos arts. 205 e 206 do CC, éprescricional; se contemplado em qualquer outro dispositivodo mesmo Código, decadencial.

O prazo geral de prescrição é de dez anos. Se nãohouver norma jurídica legal estabelecendo, para determinadahipótese, um prazo inferior de prescrição, opera-se esta noprazo de uma década (CC, art. 205). Quem tem a honraofendida, por exemplo, deve promover a ação de reparaçãocivil no prazo de três anos, porque para essa hipótese previua lei interregno específico (CC, art. 206, § 3º, V). Para cobrar oemitente de cheque sem fundos, o prazo é de seis meses,contados do término do prazo de apresentação do título aobanco (Lei n. 7.357/85, art. 59). Contra pessoa jurídica dedireito público, o prazo é de cinco anos (Decreto n.20.910/32). Sempre, porém, que inexistir prazo específico deprescrição, incide a norma do prazo geral de dez anos.

Exemplo de prazo decadencial se encontra, por sua vez,no art. 178 do CC: “É de 4 (quatro) anos o prazo dedecadência para pleitear-se a anulação do negócio jurídico”.Se o negócio é defeituoso por vício de consentimento, o

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declarante tem esse prazo para ingressar em juízo com a açãovisando a decretação de sua anulação.

2.1. Critérios de diferenciaçãoO critério de diferenciação mais difundido, na doutrina

brasileira, diz que a prescrição é a extinção da ação para adefesa do direito violado, e a decadência, a do própriodireito (Beviláqua, 1908:285/286). Considera-se, nessecontexto, que o titular do direito não o perde mesmo depoisde transcorrido o prazo prescricional. Se o devedor cumprir aobrigação quando já prescrito o direito, não poderáposteriormente reclamar a restituição. Ora, se carece odevedor do direito à restituição, argumenta-se em favordesse critério diferencial, é porque o credor ainda titularizavao seu crédito mesmo depois de decorrida a prescrição. Ela,assim, importaria unicamente a perda do direito de ação:vencido o prazo prescricional, o credor não pode maisacionar judicialmente o devedor em busca do cumprimentoda obrigação. Na decadência, por esse critério, perece, com afluência do prazo legal, o próprio direito.

Esse critério, porém, não se sustenta por duas razões.Em primeiro lugar, porque também o devedor de obrigaçãocaducada não pode reclamar a restituição se o cumprimentose verificou após o decurso do prazo de decadência. Se essacircunstância é alegada para demonstrar a sobrevivência dodireito prescrito, também acaba demonstrando a do decaído.

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Ademais, no final das contas, dá na mesma a perda da ação edo direito. Se alguém não pode mais ingressar em juízo paraobter o cumprimento forçado da prestação correspondenteao seu direito, isto é, em termos concretos, igual a nãotitularizar mais o próprio direito.

Note-se que na redação do art. 189 do Código Civil olegislador tentou contornar a questão suscitada por essecritério: “Violado o direito, nasce para o titular a pretensão, aqual se extingue, pela prescrição...”. A pretensão deve serentendida como um “direito” situado entre o direito materialviolado e o direito à ação (cf. Lotufo, 2003:518/521), emboraisso acrescente mais complexidade ao tema, ao invés de oaclarar. De qualquer forma, de acordo com o dispositivo emquestão, a pretensão é o que surge com a violação ao direitomaterial e desaparece com a prescrição. Antonio passa a tera pretensão de cobrar seu crédito contra Benedito em juízo(exercer seu direito à ação) depois que este deixou de pagaro devido no vencimento (violando o direito material docredor). Esse direito à ação, por sua vez, extingue-se com afluência do prazo prescritivo. Na lei brasileira, em suma, aprescrição diz sempre respeito à pretensão do titular dodireito violado.

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Não há critério consistente dedistinção entre prescrição edecadência. Se a própria normajurídica não fixar a natureza doprazo extintivo do direito, deve-sepesquisar o entendimentopredominante na doutrina ejurisprudência.

Outro critério aponta para a época do surgimento dodireito à ação. Quando concomitantes direito e ação que oassegura, seria decadencial o prazo extintivo; quando odireito surge antes da ação, e esta apenas após a violaçãodo direito, seria prescricional (Rodrigues, 2002:329/330;Gomes, 1957:507). É, porém, insuficiente também esse critérioporque não esclarece quando se verifica uma ou outrasituação. O comprador de coisa móvel pode reclamar contraos vícios no prazo de trinta dias (CC, art. 445). Esse prazo édecadencial, como reconhece a unanimidade da doutrina.

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Pois bem, tente aplicar o critério. O comprador, dentro doprazo legal, procura o vendedor para exercer o seu direito àrescisão do contrato ou redução proporcional do preço. Se ovendedor não concordar em devolver o dinheiro (todo, nocaso de rescisão; parte, no de redução), restará aocomprador ingressar em juízo para fazer valer o seu direitoainda dentro do prazo fixado na lei. Pode-se dizer, seminconsistência, que o direito de acionar o vendedor nasceuda recusa deste em respeitar espontaneamente o direito docomprador, ficando tudo como se prescricional fosse oprazo.

Goza, finalmente, de algum prestígio na doutrinabrasileira o critério de distinção da natureza do prazo porinstitutos do direito processual civil, proposto por AgneloAmorim Filho a partir de lições de Chiovenda. Em função dotipo de sentença que será proferida pelo juiz, o direitopostulado sujeitar-se-ia a prazos prescricionais oudecadenciais. Assim, quando a sentença é condenatória, porassegurar o cumprimento de dever correspondente a direitoobjeto de prestação (os reais e pessoais), o prazo é deprescrição; se constitutiva, por assegurar o exercício dedireito potestativo, decadencial (apud Rodrigues, 2002:330/331). Também não fornece pautas seguras o critério aquireferido. Se aplicado à hipótese acima, do prazo que ocomprador tem para reclamar contra os vícios da coisa, seráalcançada conclusão oposta à da unanimidade da doutrina.

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Na verdade, não existe critério capaz de distinguirconsistentemente os prazos prescricionais dos decadenciais.Trata-se de classificação, como muitas das operadas pelatecnologia jurídica, que se sustenta retoricamente, semestrita congruência lógica. Como fazer, então, para distinguira natureza de determinado prazo extintivo de direito?Desconsiderar a questão, tratando a todos os prazosigualmente, não é possível. Afinal, são diferentes os regimesda prescrição e da decadência: os prazos prescricionais sesuspendem e podem ser interrompidos; os decadenciais,não; os prescricionais são renunciáveis; os decadenciais,irrenunciáveis, e assim por diante (item 2.2).

A solução adequada para a questão da diferenciaçãoentre prescrição e decadência indica que se deve, emprimeiro lugar, verificar se o direito positivo definiu anatureza do prazo extintivo do direito. Se o fez diretamente,não há dúvidas possíveis. Se o fez indiretamente, também.Muitas vezes a norma se expressa por termos que indicam aespécie de prazo estabelecida. Se disser, por exemplo, “osujeito decairá do direito de reclamar”, está evidentementefixando prazo decadencial; se falar “prescreve a ação”,estipula prazo prescricional, e assim por diante. Quando,contudo, não se puder extrair, direta ou indiretamente, daprópria norma jurídica a natureza do prazo extintivo, deve-sepesquisar a posição predominante na doutrina ejurisprudência. Autores e julgadores costumam pôr-se de

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acordo sobre a natureza de boa parte dos prazos extintivosque a norma jurídica não externou. Mas, havendodivergência séria na doutrina e jurisprudência sobre certoprazo, ou não se encontrando a respeito dele nenhumamanifestação, deve o julgador decidir conforme os ditamesde justiça, o bom-senso ou o que lhe parecer maisapropriado no caso. Trata-se de solução, como se vê,forçosamente incompleta, tendo em vista a falta de padrãogeral que pudesse norteá-la.

2.2. Regimes jurídicosOs regimes jurídicos da prescrição e da decadência se

diferenciam em função de três aspectos: a) fluência; b)disponibilidade; c) decretação de ofício pelo juiz.

a) Fluência. A fluência dos prazos prescricionais podeser suspensa ou interrompida nas hipóteses previstas em lei.A dos decadenciais nunca se suspende nem se interrompe.

No caso da prescrição, certos fatores que impedem alivre manifestação da vontade do titular do direito sãolevados em conta pela lei. Entre marido e mulher, porexemplo, não correm prazos prescricionais porque a inérciano exercício do direito que qualquer um deles tenha contra ooutro é plenamente justificável. Operantes esses fatores, odireito subjetivo é preservado da extinção por prescrição.Essa preservação, porém, a lei não estabelece nas hipótesesdos prazos decadenciais (item 2.1). Exceto em relação aos

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incapazes (item 2.3), os motivos justificadores da inércia nãosão relevantes para deter o curso da decadência.

b) Disponibilidade. Na questão da disponibilidade,devem-se distinguir dois assuntos: de um lado, a renúnciaaos benefícios decorrentes da extinção de direitos pordecurso do prazo e, de outro, a fixação de prazos extintivospor manifestação de vontade das partes.

Em relação à renúncia, admite a lei que o beneficiadopelos efeitos da prescrição a eles renuncie, desde queatendidas duas condições: fluência do prazo prescricional epreservação dos direitos de terceiros (CC, art. 191). Dessemodo, apenas depois de prescrita a pretensão é que pode odevedor renunciar aos efeitos da prescrição, de modo aretornar o credor a titularizar o direito anteriormente perdido.Não admite a lei a renúncia antecipada aos efeitos daprescrição, mas somente depois de exaurido o prazocorrespondente. Entende-se que o devedor somente poderenunciar livre de qualquer constrangimento negocial oufactual. Isso somente se verifica após o decurso do prazoque o libera de qualquer obrigação. Também não podeocorrer a renúncia, se terceiros forem prejudicados pelaliberalidade. Em relação aos prazos decadenciais, a leiconsidera nula a renúncia (CC, art. 209). Se o beneficiadopelos efeitos da decadência quiser, de alguma forma,compensar o titular do direito perdido, deverá fazê-lo pornovo negócio jurídico constitutivo de direito, e não pela

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renúncia à decadência.Quanto à fixação dos prazos pela vontade das partes, a

lei não a tolera relativamente aos prazos prescricionais (CC,art. 192). Trata-se de norma de ordem pública, inderrogávelpela vontade das partes. Já em relação à decadência, porém,refere-se a lei à modalidade “convencional”, fazendo suporque admite a alteração, pelas partes, dos prazosdecadenciais (CC, art. 211).

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Prescrição e decadência sediferenciam por três aspectos:quanto à fluência (só a prescriçãosuspende-se ou interrompe-se), àdisponibilidade (somente aprescrição é renunciável, masapenas os prazos decadenciaispodem ser alterados por vontade daspartes) e pela possibilidade deconhecimento judicial de ofício (adecadência pode ser decretadaindependentemente de alegação daparte, mas a prescrição, não).

c) Conhecimento pelo juiz, de ofício. Os prazosprescricionais podem ser conhecidos pelo juiz, de ofício.

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Mesmo que a parte a quem a prescrição beneficia não aalegue no momento e pela forma processualmente adequada,o juiz deve decretar a extinção do direito por esse tipo dedecurso do tempo (CPC, art. 219, § 5º, com a redação dadapela Lei n. 11.280/2006). Em relação à decadência, contudo,cabe distingui-la em função da origem. Aquela cujo prazo éfixado pela lei deve ser conhecida pelo juiz de ofício,independentemente de alegação pelos interessados e emqualquer momento do processo, tal como no caso daprescrição. Já a fixada pelas partes, por meio de negóciojurídico, não pode ser conhecida pelo juiz de ofício, emborapossa ser alegada por quem dela se beneficia em qualquermomento do processo (CC, arts. 210 e 211).

2.3. Os incapazes e os prazos extintivosEm matéria de extinção do direito por decurso do prazo,

a lei cuida de proteger os incapazes, em razão da condiçãoparticular em que se encontram. A extensão da proteçãovaria de acordo com o grau da incapacidade.

Contra o absolutamente incapaz, a proteção é plena: nãocorrem contra ele nem a prescrição nem a decadência (CC,arts. 198, I, e 208). Enquanto a pessoa completa 16 anos deidade, assim, não perde nenhum direito por inércia ao longodo tempo. Também o deficiente mental absolutamenteincapaz ou o impedido de manifestar sua vontade, enquantose encontrarem na situação de fato correspondente à

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incapacidade, não podem ser prejudicados pela inércia.Considera a lei que o absolutamente incapaz, exatamente pornão ter nenhum discernimento para atuar com desenvolturano comércio jurídico, não pode ser penalizado pelo nãoexercício de seus direitos, mesmo que por longo tempo.

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Há regras específicas para aproteção dos incapazesrelativamente à perda de direito pelonão exercício durante certo tempo.Assim, contra os absolutamenteincapazes não correm nemprescrição nem decadência. Poroutro lado, os relativamenteincapazes podem demandar osassistentes que negligenciaram oexercício tempestivo dos direitos oudeixaram de alegar a perda dodireito, por terceiros demandantes,em função do decurso do tempo.

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Já aos relativamente incapazes assegura a lei o direito deserem indenizados por seus assistentes, caso estes tenhamdado ensejo à perda de um direito, por prescrição oudecadência, ou se não diligenciaram no sentido de que fossealegada no momento e forma adequados (CC, arts. 195 e208). Aqui a lei atribui ao assistente uma responsabilidademaior do que a ordinária. Ao contrário do representante,que é incumbido de tomar todas as providências em nome eem favor do representado, e, portanto, tem função ativa, oassistente apenas deve impedir que o relativamente incapazpratique atos desvantajosos, tendo, por isso, mera funçãopassiva. Se o relativamente incapaz não quiser praticar certonegócio jurídico, não será suficiente que o assistente oqueira para realizar-se este. Se o prazo de prescrição estávencendo, o assistente deve alertar o relativamente incapazdesse fato, mas não poderá outorgar procuração a nenhumadvogado para as providências judiciais cabíveis. É orelativamente incapaz a pessoa apta a fazer essa outorga,mediante a assistência do pai, tutor ou curador. Do mesmomodo, se o relativamente incapaz não alegar a prescrição, nomomento e forma adequados, o assistente não poderásubstituí-lo. Quer dizer, não tem responsabilidade oassistente que, tempestivamente, alertou o assistido sobre aproximidade da fluência de prazo prescricional oudecadencial em desfavor deste, ou sobre a alegabilidade daprescrição ou decadência em seu favor. Basta que o

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assistente faça o alerta ao assistido para se desincumbirsatisfatória e integralmente da função ativa que,excepcionalmente, a lei lhe reservou na matéria deperecimento de direitos em razão do tempo.

3. SUSPENSÃO E INTERRUPÇÃO DA PRESCRIÇÃOSó os prazos prescricionais suspendem-se ou

interrompem-se. São, porém, diferentes as hipóteses deinterrupção e suspensão. No primeiro caso, o prazo volta afluir por completo desde o fim da causa interruptiva (CC, art.202, parágrafo único); no segundo, o prazo volta a fluir,desde o fim da causa suspensiva, apenas pelo quanto aindanão tinha transcorrido. Imagine-se um prazo de três anosiniciado hoje. Daqui a dois anos opera-se uma causainterruptiva cujos efeitos cessam em seis meses. O prazovolta a correr por inteiro (mais três anos). Se nada maisinterferir em sua fluência, ele se exaure daqui a cinco anos eseis meses. Imagine, agora, que daqui a dois anos opera-seuma causa suspensiva, cujos efeitos cessam também em seismeses. O prazo volta a correr pelo que faltava para completaros três anos (isto é, um ano). Agora, se nada mais interferirem sua fluência, a prescrição ocorre daqui a três anos e seismeses.

As causas de suspensão da prescrição (tambémchamadas de impedimentos) dizem respeito a situações emque o titular do direito está impossibilitado de promover a

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ação judicial. A primeira hipótese legalmente referida a essaimpossibilidade diz respeito a uma especial ligação com osujeito a ser demandado (devedor inadimplente, agente doato ilícito, usurpador etc.), que justifica a inércia empromover a ação judicial. Assim, não corre a prescrição entreos cônjuges, na constância da sociedade conjugal (CC, art.197, I). Se um homem causa danos ao patrimônio de umamulher, nasce para esta o direito de ser ressarcida. Secausador do dano e vítima se casam, suspende-se o prazo deprescrição. Na constância do casamento, é realmentejustificável que aquela mulher, titular do direito àindenização, se visse constrangida a exercê-lo. Sua inércianão pode ser considerada uma opção livre. Vindo, porém, ase separarem, volta a fluir a prescrição, já que nada mais ainibe de exercer seu direito. Se ela continuar inerte, sofrerá asconsequências da prescrição.

Não corre também a prescrição, em razão de especiaisligações das partes, entre: a) ascendentes e descendentes,durante o poder familiar; b) tutelados e tutores, durante atutela; c) curatelados e curadores, durante a curadoria (CC,art. 197, II e III). Nesses casos, como a vontade do titular dodireito é manifestada pelo próprio demandado, seurepresentante, eventual inércia no exercício do direito nãopode ser imputada ao primeiro. Nesses três casos, ésimplesmente impossível ao sujeito exercer o direito, porquesó poderia fazê-lo por meio da pessoa que restaria

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responsabilizada diretamente. Se o tutor administrou mal opatrimônio do tutelado, deve indenizá-lo. Enquanto nãoalcançada, porém, a maioridade, a vontade do tutelado seexpressa necessariamente por meio de seu representante, otutor; e é claro que não promoverá a ação judicial, em nomedo representado, porque o réu seria, ele próprio,representante.

Também não corre a prescrição contra: a) incapazes(item 2.3); b) ausentes do País, em serviço público, comoembaixadores e cônsules; c) os que servem as forçasarmadas em tempo de guerra, estando no Brasil ou noexterior (CC, art. 198). São três as situações em que seconsideram impedidos os titulares do direito de exercê-lo porrazões alheias à própria vontade. Os incapazes, porque nãopodem manifestá-la diretamente; os servidores públicosausentes do País, porque estão impedidos pela distância; eos que servem às forças armadas em guerra, porqueconcentrados nas tarefas relacionadas ao conflito bélico.Finalmente, esclarece a lei que a prescrição não correenquanto pender condição suspensiva, não estiver vencidoo prazo ou transcorrer ação de evicção (reivindicação dacoisa por terceiro) (CC, art. 199). São circunstânciasreferentes ao objeto do direito que justificam a inércia dotitular. Nesses casos, o sujeito deixa de promover a açãojudicial não por sua vontade livre, mas em razão deimpeditivos externos.

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Não se confundem suspensão einterrupção da prescrição. Noprimeiro caso, o prazo deixa decorrer enquanto eficaz a causasuspensiva e volta a fluir pelo tempoque faltava para se completar. Nainterrupção, o prazo volta a fluir porcompleto a partir do momento emque cessam os efeitos da causainterruptiva.

Quando a ação civil tiver por pressuposto fato que devaser apurado no juízo criminal, o prazo de prescrição somentecomeça a correr da sentença penal definitiva (CC, art. 200).Desse modo, se o direito surge de ato ilícito que a lei penaltambém tipifica como crime, contravenção ou outra

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modalidade de ilicitude, não corre a prescrição enquanto nãose concluir o processo penal. Se o prejuízo cujoressarcimento se pretende deriva de conduta criminosa dodemandante (homicídio, latrocínio, roubo, dano etc.), apenasapós a condenação ou absolvição definitiva do agente aquem se imputa o ato é que tem início a fluência do prazo deprescrição da pretensão objetivando a indenização civil.Embora sejam independentes as esferas da responsabilidadecivil e penal, respeita a lei o interesse da vítima em aguardara definição, no processo criminal, da tipificação da condutacausadora do dano, antes de ingressar com o seu pleito civil,para, em caso de condenação no foro penal, poderrobustecê-lo com mais argumentos e provas.

A interrupção, por sua vez, é causada pelos seguintesfatos: a) despacho do juiz, mesmo incompetente, ordenandoa citação, se o interessado a promover no prazo e na formada lei processual; b) protesto feito nas mesmas condições,isto é, perante juiz, mesmo que incompetente, e desde que ointeressado o promova no prazo e forma da lei processual; c)protesto cambial; d) apresentação do título de crédito emjuízo de inventário ou em concurso de credores; e) qualquerato judicial que constitua em mora o devedor; f) qualquer atoinequívoco, ainda que extrajudicial, que importe oreconhecimento do direito pelo devedor (CC, art. 202).

Enquanto um mesmo prazo pode ser suspenso porvárias vezes, a interrupção só ocorre uma única vez. Imagine

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o prazo de dez anos que começou a fluir quando o titular dodireito tinha 14 anos. Ficou suspenso até o fim daincapacidade absoluta. Começou a fluir, assim, no dia emque esse jovem completou 16 anos. Imagine, porém, que, aofazer 18 anos, foi convocado pelas forças armadas, emmomento em que o Brasil entrara numa guerra. Novamenteficará suspenso o mesmo prazo até o fim da guerra ou daincorporação às forças armadas. Imagine, finalmente, que ojovem, dois anos depois, casa-se com a titular da obrigaçãocorrespondente ao seu direito. Nova causa de suspensão severificou, e assim por diante. Quando se trata, porém, deinterrupção, ela não é admitida senão uma única vez.

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