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Curso de direito civil 2 - obrigacoes e resp civil - fabio ulhoa coelho

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Coelho, Fábio UlhoaCurso de direito civil, volume 2: obrigações :responsabilidade civil / FábioUlhoa Coelho. – 5. ed. –São Paulo : Saraiva, 2012.Bibliografia.1. Direito civil 2. Direito civil -Brasil 3. Obrigações(Direito) 4. Responsabilidadecivil I. Título.CDU-347

Índice para catálogo sistemático:1. Direito civil 347

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Diretor editorial Luiz Roberto CuriaGerente de produção editorial Lígia Alves

Editor Jônatas Junqueira de MelloAssistente editorial Sirlene Miranda de Sales

Produtora editorialClarissa Boraschi MariaPreparação de originais Ana Cristina Garcia / Maria

Izabel Barreiros Bitencourt Bressan / Cíntia da SilvaLeitão

Arte e diagramação Cristina Aparecida Agudo deFreitas / Claudirene de Moura Santos Silva

Revisão de provas Rita de Cássia Queiroz Gorgati /Rita de Cassia S. Pereira / Willians Calazans de V. de

MeloServiços editoriais Camila Artioli Loureiro / Lupércio

de Oliveira DamasioCapa Roney Camelo

Produção gráfica Marli RampimProdução eletrônica Ro Comunicação

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Data de fechamento da edição:28-10-2011

Dúvidas?Acesse www.saraivajur.com.br

Nenhuma parte desta publicação poderá serreproduzida por qualquer meio ou forma sem a

prévia autorização da Editora Saraiva.A violação dos direitos autorais é crime estabelecido

na Lei n. 9.610/98 e punido pelo artigo 184 doCódigo Penal.

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A Beatriz

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ÍNDICE

SEGUNDA PARTEDIREITO DAS OBRIGAÇÕES

CAPÍTULO 13INTRODUÇÃO AO DIREITO DAS OBRIGAÇÕES

1. Conceito de obrigação2. Execução da obrigação3. Elementos da obrigação4. Classificação das obrigações5. Obrigações imperfeitas6. Obrigação e patrimônio7. Significados da expressão “obrigação”8. Obrigação e dever9. Flexibilização do direito das obrigações

CAPÍTULO 14MODALIDADES DAS OBRIGAÇÕES

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1. Introdução2. Obrigações de dar

2.1. Dar coisa certa2.2. Sucessos da coisa certa2.3. Dar coisa incerta2.4. Escolha da prestação2.5. Obrigação de restituir2.6. Obrigações pecuniárias

3. Obrigações de fazer3.1. Caracterização da obrigação de fazer3.2. Espécies de obrigação de fazer3.3. Execução da obrigação de fazer

4. Obrigação de não fazer5. Obrigações alternativas

5.1. Concentração5.2. Impossibilidade ou inexequibilidade de prestação

alternativa5.3. Sucesso das coisas nas obrigações alternativas5.4. As obrigações facultativas

6. Divisibilidade das obrigações7. Obrigações solidárias

7.1. Solidariedade passiva7.2. Solidariedade ativa

CAPÍTULO 15TRANSMISSÃO DA OBRIGAÇÃO

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1. Espécies de transmissão2. Cessão de crédito

2.1. Relações com o cedido e com o cedente2.2. Cessão civil e endosso

3. Assunção de dívida

CAPÍTULO 16ADIMPLEMENTO DA OBRIGAÇÃO: PAGAMENTO

1. Conceito de pagamento2. Os sujeitos

2.1. O sujeito que paga2.2. O sujeito a quem se paga

3. Objeto do pagamento4. Alteração do objeto do pagamento5. Prova do pagamento6. Lugar do pagamento7. Tempo do pagamento8. Pagamento indireto

8.1. Pagamento em consignação8.2. Pagamento com sub-rogação8.3. Dação em pagamento

9. Imputação do pagamento

CAPÍTULO 17

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EXTINÇÃO DA OBRIGAÇÃO

1. Extinção ordinária e extraordinária2. Novação3. Compensação

3.1. Reciprocidade subjetiva3.2. Prestação compensável3.3. Observações finais

4. Confusão5. Remissão de dívidas

CAPÍTULO 18INADIMPLEMENTO DA OBRIGAÇÃO

1. O descumprimento da obrigação2. Consequências gerais do inadimplemento3. Mora4. Inadimplemento voluntário

4.1. Inadimplemento das obrigações pecuniárias4.1.1. Mora do devedor nas obrigações pecuniárias4.1.2. Os consectários

4.1.2.1. Perdas e danos4.1.2.2. Juros4.1.2.3. Correção monetária4.1.2.4. Cláusula penal nas obrigações

pecuniárias

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4.1.2.5. Honorários de advogado4.1.3. Conclusão

4.2. Obrigações não pecuniárias4.2.1. Inadimplemento absoluto das obrigações não

pecuniárias4.2.2. A mora nas obrigações não pecuniárias4.2.3. Juros nas obrigações não pecuniárias4.2.4. Cláusula penal nas obrigações não pecuniárias

5. Inadimplemento involuntário: caso fortuito6. Inadimplemento e execução judicial7. Inadimplemento e insolvência

CAPÍTULO 19INTRODUÇÃO ÀS OBRIGAÇÕES EM ESPÉCIE

1. Obrigações em espécie2. Questão de ordem3. Direito das obrigações e a globalização

CAPÍTULO 20ATOS UNILATERAIS

1. Negócios jurídicos unilaterais2. Promessa de recompensa

2.1. Concursos de mérito

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2.2. Concursos promocionais3. Gestão de negócios4. Pagamento indevido5. Enriquecimento sem causa

TERCEIRA PARTERESPONSABILIDADE CIVIL

CAPÍTULO 21INTRODUÇÃO À RESPONSABILIDADE CIVIL

1. Externalidades2. Classificação da responsabilidade civil3. Espécies de responsabilidade civil

3.1. Fundamento da responsabilidade civil subjetiva3.2. Fundamento da responsabilidade civil objetiva3.3. Teorias de transição

4. Funções da responsabilidade civil5. Princípio da indenidade

5.1. Estado mutualista: a experiência neozelandesa5.2. Responsabilidade objetiva pura

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5.3. Distorção do princípio da indenidade: o Judiciáriocomo justiceiro

6. Dano7. Conclusão

CAPÍTULO 22RESPONSABILIDADE CIVIL SUBJETIVA

1. Responsabilização por atos ilícitos2. O pressuposto subjetivo

2.1. Ato humano2.1.1. Ação2.1.2. Omissão

2.2. Culpa2.3. Abuso de direito

3. Profissionais liberais3.1. Questão de ordem3.2. Profissionais da saúde

3.2.1. Médicos3.2.2. Medicina de embelezamento3.2.3. Prova da culpa

3.3. Advogados3.4. Engenheiros civis

4. Acidente de trânsito5. Acidente de trabalho6. Responsabilidade com culpa presumida: ruína de prédio

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7. Responsabilidade em função do grau de culpa7.1. Transporte de cortesia7.2. Cobrança indevida

CAPÍTULO 23RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA

1. Responsabilização por atos lícitos2. Teoria do risco3. Significado de “atividade”4. Responsabilidade dos empresários

4.1. Conceito de empresário4.2. Atividades econômicas não empresariais4.3. Empresário individual e sociedade empresária4.4. Acidente de consumo

4.4.1. Fornecimento perigoso4.4.2. Fornecimento defeituoso

4.5. Empresários do ramo de transporte4.6. Empresários do ramo de albergaria

5. Responsabilidade do Estado6. Responsabilidade puramente formal

6.1. Responsabilidade por ato de outrem6.1.1. Ato de incapaz6.1.2. Ato de capaz

6.2. Outras hipóteses7. Responsabilidade por dano ambiental

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CAPÍTULO 24EXCLUSÃO DA RESPONSABILIDADE

1. Elementos e excludentes da responsabilidade2. Inexistência de dano3. Inexistência de relação de causalidade

3.1. Caso fortuito ou de força maior3.2. Culpa de terceiro3.3. Culpa exclusiva da vítima

4. Cláusula de não indenizar

CAPÍTULO 25INDENIZAÇÃO

1. O valor da indenização1.1. A culpa e o valor da indenização

1.1.1. Grau de culpa do devedor1.1.2. Culpa concorrente do credor

1.2. Indenização tarifada2. Danos patrimoniais3. Danos extrapatrimoniais ou morais

3.1. Função dos danos morais3.2. Titulares do crédito3.3. Hipóteses de danos morais3.4. Quantificação do dano moral

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3.5. Um mundo de não me toques4. Indenização punitiva (punitive damages)5. Solidariedade e direito de regresso

Bibliografia

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Segunda Parte

DIREITO DASOBRIGAÇÕES

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Capítulo 13

INTRODUÇÃOAO DIREITO

DASOBRIGAÇÕES

1. CONCEITO DE OBRIGAÇÃOObrigação conceitua-se como o vínculo entre dois

sujeitos de direito juridicamente qualificado no sentido deum deles (o sujeito ativo ou credor) titularizar o direito de

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receber do outro (sujeito passivo ou devedor) umaprestação. Os exemplos são inúmeros. Locador e locatárioestão unidos por uma obrigação, em virtude da qual oprimeiro pode exigir do segundo o pagamento do aluguelpelo uso do bem locado. Entre alimentante e alimentado háum vínculo obrigacional que faz deste credor dos alimentosem face daquele. Quem sofre danos causados culposamentepor outra pessoa titulariza perante esta o direito aoressarcimento dos prejuízos. A Prefeitura pode cobrar doproprietário de bem imóvel situado em área urbana o IPTU(imposto predial e territorial urbano). Em todos esses casos,e em muitos outros, um sujeito (locador, alimentado, vítima,Prefeitura etc.) é titular do direito de receber uma prestaçãode outro (locatário, alimentante, causador do dano,proprietário imobiliário etc.). Aproxima-os uma obrigação.

Neste conceito, pus ênfase no lado ativo da obrigação,ao defini-la como o vínculo que faz de alguém credor deoutra pessoa. Note-se, desde logo, porém, que é possívelconceituá-la também pelo lado passivo da relação. Nestecaso, obrigação é definida como o vínculo que faz de umsujeito de direito devedor de outro. As mesmas relaçõesacima indicadas podem ser também descritas por esteângulo. Assim, locatário e locador estão unidos por umaobrigação, em virtude da qual o primeiro deve pagar aosegundo o aluguel. Entre alimentante e alimentado há umvínculo obrigacional que faz daquele devedor dos alimentos

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em favor deste. Quem culposamente causa dano a outrapessoa fica ligado a esta pela obrigação de ressarcir osprejuízos causados. O proprietário de bem imóvel situado emárea urbana está obrigado perante a Prefeitura ao pagamentodo IPTU.

As duas formas de conceituar obrigação — como direitodo sujeito ativo ou dever do passivo — são igualmenteadequadas. Aliás, pode-se também definir obrigaçãocompreendendo, no conceito, simultaneamente os doispolos da relação. Neste caso, a obrigação é o vínculo entresujeitos de direito, em que um deles deve cumprir umaprestação de interesse do outro, que, por sua vez, tem odireito de a receber (Gomes, 1961:10). Independentemente daalternativa adotada, o conceito será operacional nasuperação de conflitos de interesses entre credores edevedores.

Quando o devedor cumpre sua obrigação novencimento, não se verifica entre ele e o credor nenhumconflito de interesses. Neste caso, aliás, todo o aparatoconceitual e tecnológico e as normas do direito dasobrigações serão inúteis. Cumprida a obrigação comodevida, não se estabelece entre os interesses dos sujeitosvinculados nenhum conflito. Este, na verdade, surge quandoo devedor não cumpre a obrigação. Postar-se-á, então, deum lado, o credor interessado em receber a prestaçãocorrespondente e, de outro, o devedor que considera

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interessante resistir em cumpri-la. Na sociedade democráticados nossos tempos, tal conflito só deve ser superado pelaatuação de um complexo sistema social (o Direito). Emoutros termos, se a obrigação existir, o Estado, por meio doPoder Judiciário, reconhecendo o direito do sujeito ativo,acionará seu aparato repressor para constranger o sujeitopassivo a cumprir a prestação.

Apenas como auxiliar na superação de conflitos deinteresses entre credor e devedor operam os conceitos,princípios, normas e elaborações tecnológicas deste ramo dodireito civil. As disposições legais sobre o pagamento, porexemplo, não se aplicam quando o devedor paga a prestaçãoao credor e este se dá por satisfeito. Nesta oportunidade,ninguém se socorre do direito das obrigações. Aplicam-se,na verdade, as normas sobre o pagamento quando o credorquestiona a validade, eficácia ou regularidade do ato depagar do devedor, ou seja, quando conflitam os interessesdesses sujeitos de direito. Aplicam-se, em outras palavras,se o devedor diz que os atos por ele praticados caracterizamo pagamento da obrigação — e que, portanto, está jáliberado de seus compromissos —, mas o credor reputa quetais atos não importaram o cumprimento integral daprestação. O conflito será superado pelo juiz, orientadopelas normas da legislação civil e auxiliado pela tecnologiacivilista. Se os atos praticados pelo devedor correspondemàqueles que a lei define como pagamento válido, eficaz e

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regular, o juiz está orientado pela lei a negar ao credor apretensão de exigir novamente a prestação. Caso contrário, aorientação é a de que o juiz ampare o credor nessapretensão.

Até aqui, ao conceituar obrigação, tem-se falado emdois sujeitos. Na maioria das vezes, isto é correto, poraproximar o vínculo obrigacional um sujeito de direito deoutro. Há, porém, obrigações que unem mais de doissujeitos. Quando o pagamento dos aluguéis pelo locatárioestá, por exemplo, garantido por fiança prestada por doisamigos, na obrigação que vincula locador e fiadores, no polopassivo encontram-se mais de um sujeito de direito. Estasobrigações são chamadas de complexas e suscitam questõespróprias (Cap. 14, itens 5 a 7). Para que o conceito deobrigação compreenda também a circunstância de um mesmopolo da relação obrigacional ser ocupado por duas ou maispessoas, deve-se descartar a noção de sujeito de direito eempregar a de parte.

Obrigação é o vínculo entre duaspartes juridicamente qualificado nosentido de uma delas (o sujeito ou

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sujeitos ativos) titularizar o direito dereceber da outra (o sujeito ou sujeitospassivos) uma prestação.

Parte da obrigação é o centro de referência a interessesessencialmente iguais. É a identidade dos interesses dossujeitos participantes da relação jurídica que define aspartes. Numa compra e venda, têm-se sempre duas partes, acompradora e a vendedora, mas cada uma delas podecorresponder a um ou mais sujeitos de direitos. A partevendedora tem o interesse de dispor da coisa objeto decontrato em troca do preço contratado, e a compradora, o depagar o preço para ter a coisa. Se o bem vendido pertenceem condomínio a mais de um sujeito, todos os proprietáriospostam-se, na relação obrigacional, como vendedores. Elessão a parte vendedora, porque têm o mesmo interesse detrocar a coisa pelo dinheiro correspondente ao preço. A seuturno, se são mais de um os compradores, formam eles aparte compradora porque têm todos o mesmo interesse depagar o preço para ter a coisa.

Obrigação, assim, é o vínculo entre duas partesjuridicamente qualificado no sentido de uma delas (a dosujeito ou sujeitos ativos) titularizar o direito de receber daoutra (a do sujeito ou sujeitos passivos) uma prestação.

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2. EXECUÇÃO DA OBRIGAÇÃOA execução da obrigação é a realização de seus

objetivos. Quando o Direito considera duas partes ligadaspor um vínculo obrigacional tem em mira determinadasfinalidades. Quando a obrigação deriva de declaraçõesintencionais de vontade das partes (negócio jurídico), oobjetivo é ditado por estas. Destina-se, assim, a compra evenda a fazer com que o comprador tenha a coisa que quer eo vendedor receba, por ela, o preço contratado. Executada aobrigação correspondente a este contrato, atingem as parteso que pretendiam ao contratar.

Nem sempre o objetivo da obrigação corresponde aoquerido pela parte. Se o motociclista atropela culposamenteo pedestre, surge entre eles uma obrigação em razão da qualo primeiro torna-se devedor da indenização dos danos quecausou ao segundo. A finalidade dessa obrigação é, aqui,fixada pela lei: recomposição dos danos do ato ilícito, com areparação da vítima e a punição do culpado. É irrelevante seo motociclista quer ou não pagar as perdas e danos sofridospelo pedestre derivados do atropelamento. Provavelmentenão; mas, tanto faz, terá que cumprir a obrigação de modo ase realizar a finalidade buscada pela ordem jurídica.

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Execução da obrigação é arealização dos seus objetivos, fixadospelas partes ou pela lei. A expectativado credor — e, em certo sentido, daprópria sociedade — é a de que aobrigação seja executada por purainiciativa do devedor, isto é, atravésda entrega espontânea da prestação(execução voluntária).

Espera-se que o devedor cumpra a obrigação,entregando a prestação ao credor, de forma espontânea. É aexecução voluntária, traduzida pelo cumprimento do deverpelo sujeito passivo exclusivamente em consideração aodireito do sujeito ativo e, portanto, sem a necessidade deatuação do aparelho repressor do Estado. Nem sempre,porém, essa expectativa (que não é só do credor, maspresumivelmente de toda a sociedade) se realiza. Numaparcela pequena, mas significativa, dos casos, o devedornão executa voluntariamente a obrigação. Não entrega a

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prestação a que ficou obrigado pelo negócio jurídico ou pelalei. Quando isso acontece, o credor tem que buscar asatisfação de seu direito em juízo. O Estado, por meio doaparato judicial, forçará o devedor a cumprir a obrigação,com vistas a garantir a concretização das finalidades desta.A execução não será então voluntária, mas judicial.

Deste modo, se o devedor não cumpre a obrigação, ocredor tem o direito de acionar o aparato repressivo doEstado (pelos instrumentos próprios estudados em direitoprocessual civil) para obter sua satisfação forçada. Esta sedá, em última instância, pela expropriação de bens dopatrimônio do devedor. Se Antonio emprestou a Benedito aquantia de R$ 10.000,00, sob a condição de este a restituirem 60 dias, estabelece-se entre eles uma obrigação. Em razãodela, Benedito fica vinculado a Antonio; quer dizer, vencidoaquele prazo e não sendo feito o pagamento do empréstimo,poderá ter, depois de cumpridas as regras processuaispertinentes, um ou mais bens de sua propriedadepenhorados por ordem do juiz. Estes bens serão, emseguida, também mediante a observância das regrasprocessuais aplicáveis, vendidos em hasta pública (isto é,num leilão promovido pelo Poder Judiciário, que recebe, porvezes, a denominação de praça). Com o produto da vendajudicial desses bens, o juiz determina que se paguem aAntonio os R$ 10.000,00 objeto do empréstimo e mais osvalores a que ele faz jus em virtude do inadimplemento da

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obrigação (Cap. 18).O objetivo da execução judicial é possibilitar ao credor

receber exatamente a prestação devida, concretizando-seassim as finalidades da obrigação fixadas pela lei ou pelaspartes. A execução da obrigação em juízo, em outros termos,deve procurar assegurar a entrega ao credor da mesmaprestação que ele receberia na hipótese de execuçãovoluntária. Sendo a prestação uma quantia em dinheiro —como no caso das obrigações do mutuário, comprador,contribuinte, alimentante, culpado por danos etc. —, atendesatisfatoriamente a este desiderato a expropriação de bensdo devedor e sua venda judicial para o subsequentepagamento ao credor.

Quando a prestação não consiste na entrega dedinheiro, mas de coisa diversa, ou mesmo se ela envolveuma ação ou omissão do devedor, não é sempre possívelfazer com que o credor receba, na hipótese deinadimplemento do devedor, exatamente o que esperava.Quando o juiz pode determinar providências que importam aentrega ao credor da exata prestação objeto da obrigaçãoinadimplida, realiza-se a execução específica. Se o vendedordo imóvel, após o pagamento de todas as parcelas do preçopelo comprador, recusa-se a outorgar-lhe a escritura públicade compra e venda, indispensável, em regra, ao registro detransferência da propriedade imobiliária, o juiz podedeterminar a realização do ato formal, substituindo com sua

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decisão a declaração da parte inadimplente. Neste caso, ocredor (comprador do imóvel) acaba recebendo exatamente amesma prestação objeto da obrigação, ou seja, a escrituraapta a viabilizar a transmissão da propriedade. Realiza-se,assim, precisamente o objetivo da obrigação.

Há hipóteses, contudo, em que descabe a execuçãoespecífica. O Judiciário não tem como assegurar sempre aocredor a entrega da mesma prestação que adviria daexecução voluntária da obrigação. É o caso deimpossibilidade material, de qualquer ordem, que obsta aexecução específica. Se o consumidor adquire umeletrodoméstico de certa marca e modelo que manifesta,depois de algum tempo, defeito de fabricação, tem ele odireito de exigir do fornecedor a sua substituição por outroigual. Mas, se a marca ou modelo em questão não existe maisno mercado, é impossível ao fornecedor entregar aoconsumidor exatamente a prestação contratada. Nestescasos, quando materialmente possível, a lei assegura aocredor o resultado mais próximo que adviria documprimento voluntário da obrigação. No exemplo, oconsumidor pode reclamar em juízo a substituição do seuproduto defeituoso por outro de mesma espécie, embora demarca ou modelo diversos (CDC, art. 18, § 1º, I). Não éexatamente a mesma prestação, mas outra apta a produzirresultado próximo ao cumprimento espontâneo daobrigação. Neste caso, verifica-se a execução judicial

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subsidiária por prestação equivalente.Vezes há, por fim, que é impossível até mesmo a entrega

ao credor de prestação que assegure resultado equivalenteao da execução voluntária. Há situações em que aoportunidade única para a entrega da prestação passa e nãohá como recuperá-la. A perda irremediável da oportunidadeocorre principalmente se a obrigação é personalíssima, pornão poder ser cumprida por ninguém mais além do própriodevedor. Se o empresário, por exemplo, contrata o cantor dejazz para apresentação durante um grande evento de músicajazzística, obriga-se o artista a comparecer no local doespetáculo no horário apropriado, subir ao palco e cantar.Não cumprindo o cantor sua obrigação no tempo e lugaravençados, torna-se impossível a entrega da prestação, talcomo contratada, ao empresário credor. Não há, em outrostermos, nenhuma providência que o juiz possa decretarcapaz de produzir resultados equivalentes ao da execuçãovoluntária. Em casos tais, não havendo como impor aodevedor a entrega de prestação que leve a resultadoequivalente — já que, no exemplo, não é o caso de sepromover outro evento do mesmo porte só para que o artistafaltoso se apresente —, ela é substituída pela indenizaçãoem dinheiro. O credor que não pode receber a prestaçãoobjeto da obrigação, nem outra de resultados equivalentes,deve ser compensado pelo prejuízo que sofreu. É a hipótesede execução judicial subsidiária por indenização.

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Quando a obrigação não é executadapor pura iniciativa do devedor, ocredor pode obter, em juízo, o seucumprimento forçado. Em princípio, alei procura assegurar ao credorprestação jurisdicional que lheproporcione o mesmo resultado queadviria da execução voluntária(execução específica). Caso não sejaisto possível, procura assegurar-lhe oresultado mais próximo ou aindenização em dinheiro (execuçãosubsidiária).

Caso o devedor não pague a indenização fixada pelo

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juiz, tem lugar a expropriação de bens de seu patrimônio,com as consequências já assinaladas: venda destes bens emjuízo e pagamento ao credor com o produto da venda.

A execução voluntária da obrigação corresponde, emgeral, à forma menos custosa — individual ou socialmentefalando — de se realizarem os objetivos pretendidos pelaspartes ou fixados pela lei. O devedor que cumpreespontaneamente a obrigação não se sujeita ao pagamentodos acréscimos contratuais ou legais (juros, multa,honorários de sucumbência e custas do processo). Querdizer, a menos que não disponha dos recursos para tanto,costuma ser mais vantajoso, para ele, a execução voluntária.Para o credor, é óbvio que o recebimento da prestação noprazo e modo devidos corresponde à melhor alternativaeconômica. Verificada a execução voluntária, o credor nãoprecisa buscar em juízo a satisfação de seu crédito,antecipando custas e honorários advocatícios, nemprocurar, como muitas vezes ocorre, obter de terceiros, pormútuo ou financiamento, os recursos de que disporia casohouvesse sido cumprida tempestivamente a obrigação pelodevedor. Para a sociedade, também é a execução voluntáriadas obrigações a opção menos custosa de se cumprirem asfinalidades destas, porque ela libera o aparato repressivoestatal para outras tarefas de maior urgência (repressão aocrime, p. ex.).

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3. ELEMENTOS DA OBRIGAÇÃOSão três os elementos da obrigação: sujeitos, prestação

e vínculo.Sujeitos da obrigação. A obrigação é um vínculo

jurídico entre sujeitos, isto é, uma relação jurídica. Nemtodos os vínculos importantes para o Direito aproximamsujeitos. Há outros juridicamente qualificados queaproximam, por exemplo, sujeitos e coisas. Quando seexamina o direito de propriedade não pelo ângulo do conflitode interesses entre o titular do direito e os que têm o deverde o respeitar, mas pelo do aproveitamento econômico dosbens, dá-se destaque ao vínculo entre o proprietário e acoisa objeto de domínio. Há, por outro lado, vínculosjurídicos entre coisas. O bem acessório, por exemplo, estávinculado ao principal. Entre eles há um vínculojuridicamente qualificado que faz com que o primeirodependa do segundo (CC, art. 92).

Convém assinalar que somente os vínculos entresujeitos de direitos podem ser chamados de relaçãojurídica. Entre sujeitos e coisas e entre coisas, há vínculos,porque o Direito os liga para determinados efeitos, mas nãohá relação jurídica. Este é o entendimento predominante natecnologia jurídica. E, embora alguns autores definam odireito real, em contraposição ao obrigacional, como umarelação jurídica entre sujeito e coisa (Gomes, 1957:99), não sedeve empregar esse conceito senão na identificação de

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vínculos entre sujeitos, como as obrigações.Os sujeitos da relação obrigacional agrupam-se em

partes, segundo o critério da proximidade dos interesses. Emsua estrutura mais simples, a obrigação une duas partes(credor e devedor), correspondendo cada uma a um sujeitode direito diferente. Antonio é locador e titulariza o créditopelo aluguel; Benedito é locatário e deve o pagamentodeste. O primeiro é a parte credora; o segundo, a devedora.Mas, como já destacado (item 1), a uma parte da obrigaçãopodem corresponder, em estruturas mais complexas, dois oumais sujeitos. Carlos e Darcy são coproprietários do imóvel,e o vendem a Evaristo e Fabrício. Os dois primeiros, emrazão da proximidade dos interesses que têm (ambos queremdispor do bem em troca do preço), integram uma das partesda obrigação; os dois últimos, também por terem interessespróximos (querem dispor do preço em troca do bem), a outraparte.

Os sujeitos da obrigação são identificados segundo aposição que nela ocupam. Sujeito ativo é o que titulariza ocrédito; passivo, o que deve a prestação. Deste modo, narelação obrigacional correspondente aos alimentos, porexemplo, o alimentante é o sujeito passivo e o alimentado, oativo (este é credor dos alimentos devidos por aquele). Nosnegócios jurídicos bilaterais ou plurilaterais, a identificaçãodos sujeitos varia de acordo com o aspecto da obrigaçãoque adquire relevo. Neles, as partes são simultaneamente

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ativas e passivas. No exemplo do parágrafo anterior, Carlose Darcy são sujeitos ativos no que diz respeito aopagamento do preço, mas são sujeitos passivos no tocante àobrigação de transferir o domínio da coisa vendida. A seut u r n o , Evaristo e Fabrício são sujeitos passivosrelativamente ao pagamento do preço e ativos, quanto àtransferência da propriedade do bem.

Os sujeitos da relação obrigacionalsão identificados de acordo com aposição que nela ocupam. Os quetitularizam o direito (crédito) são ossujeitos ativos; os que devem aprestação (débito), os sujeitospassivos.

Cabe relembrar que sujeito de direito é conceito maisamplo que o de pessoa. São sujeitos, para o Direito, todos osseres aptos a titularizar direitos ou deveres. Entre os

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sujeitos, incluem-se as pessoas, seres genericamenteautorizados a praticar todos os atos e negócios jurídicospara os quais não haja proibição. As pessoas podem serfísicas (homens e mulheres) ou jurídicas (associações,fundações, sociedades empresárias, Estados etc.). Quandoos sujeitos de direito não são pessoas, não podem praticaros atos e negócios jurídicos em geral, mas apenas aquelesinerentes às suas finalidades (quando existem estas) ouexpressos na lei. São sujeitos de direito despersonificados onascituro, a massa falida, o condomínio edilício etc. (Cap. 6).Todos os sujeitos de direito estão aptos a se vincular, unscom os outros, por obrigação. O condomínio edilício podeser credor de sociedade empresária, pelas contribuiçõescondominiais devidas em razão da propriedade de unidadeautônoma do prédio de escritórios; o Estado pode serdevedor de indenização a pessoa física, em razão dos danoscausados pelo veículo conduzido por funcionário público; aassociação por titularizar crédito perante a fundação, emdecorrência de contrato e assim por diante.

Prestação. O objeto da obrigação é a prestação por quese obriga o sujeito passivo. É, assim, sempre uma condutado devedor, uma ação ou omissão dele. A conduta dosujeito passivo correspondente à prestação realiza asfinalidades da obrigação estabelecidas pelas próprias partesou pela lei.

A prestação pode ser positiva ou negativa. No primeiro

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caso, é uma ação do devedor, que se obriga a dar ou fazeralgo; no segundo, é uma omissão, obrigando-se o devedor anão fazer determinado ato. A prestação positiva, por suavez, pode ter por objeto coisa ou comportamento. Naprimeira hipótese, o devedor se obriga a dar um bem aocredor; na segunda, a fazer algo, isto é, prestar um serviçoou agir de determinada maneira (Gil, 1983:98/102).

Não se confundem os objetos da obrigação e daprestação. O da obrigação é sempre a prestação do devedor,enquanto o objeto da prestação é a coisa ou conduta devidapelo sujeito passivo. Na compra e venda, por exemplo, sãoobjetos da obrigação as prestações por que se obrigamcomprador e vendedor. Por sua vez, o objeto da prestaçãodo comprador é o dinheiro correspondente ao preço e o dado vendedor, o domínio do bem vendido. Deve-se notar,contudo, que é usual mencionar-se como objeto daobrigação o da prestação, numa espécie de abreviatura. Nãohá nenhum problema nisto. Assim, ouve-se com frequência,por exemplo, que o objeto da obrigação correspondente àcompra e venda é a coisa vendida (quando, a rigor, são asprestações do comprador e do vendedor).

A prestação pode ser positiva ounegativa. No primeiro caso, o sujeito

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passivo se obriga a dar ou fazer algoao ativo; no segundo, obriga-se a nãopraticar determinado ato.

Assim como a parte, no vínculo obrigacional, pode serreferida a dois ou mais sujeitos de direito, também o objetoda prestação pode ser duas ou mais coisas, dois ou maiscomportamentos, uma coisa e um serviço etc. O objeto daobrigação da oficina mecânica perante o proprietário doveículo avariado, por exemplo, é o de vender as peças parasubstituição e prestar os serviços de reparo.

A prestação não pode ser indeterminável. O sujeitoativo só pode exigir o cumprimento da obrigação, e opassivo só a pode cumprir, se a coisa ou conduta forpassível de individuação. Em outros termos, a prestaçãopode ser determinada ou determinável. No primeiro caso,desde o nascimento do vínculo obrigacional, sabem aspartes com exatidão a coisa ou conduta a ser prestada eexigida; no outro, a individuação da prestação faz-se pornovo negócio jurídico, unilateral ou bilateral, no momento daexecução da obrigação (Cap. 14, item 2).

Vínculo. Para que o vínculo juridicamente qualificadoentre duas pessoas seja uma obrigação é necessário que

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ostente, em primeiro lugar, a característica dapatrimonialidade. Esta marca é relacionada à mensurabilidadeem dinheiro. Quando falta patrimonialidade ao vínculojurídico entre sujeitos de direito, não se configura este comoobrigação. É o caso do parentesco, por exemplo. O vínculoentre pai e filho é juridicamente qualificado, une apenassujeitos, gera direitos e deveres, mas não tem a natureza deuma obrigação. E não a tem exatamente por não apresentaresse vínculo a marca da patrimonialidade. O direito do pai deorientar a educação do filho menor, assim como o do filho desuceder o pai em caso de falecimento decorrem do vínculode parentesco existente entre eles. Esses direitos e osrespectivos deveres não são passíveis de quantificaçãomonetária; sua constituição e execução não importammutações patrimoniais (item 6).

Além da patrimonialidade, todo vínculo que a obrigaçãoestabelece entre credor e devedor ostenta uma outracaracterística essencial: trata-se de um vínculo de sujeição,de submissão. Na obrigação, o devedor fica sujeito aocredor. Quer dizer, ele deve entregar ao credor a prestaçãoobjeto da obrigação. Se não o fizer, tem o credor meioslegítimos para forçar a entrega da prestação ou, pelo menos,para obter uma adequada e completa compensação pelodescumprimento da obrigação. Tais meios são os que oEstado põe, de acordo com o ordenamento jurídico em vigor,à disposição dos sujeitos de direito.

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O vínculo obrigacional caracteriza-se pela patrimonialidade e sujeição dodevedor ao credor. Outros vínculosjuridicamente qualificados, por nãoapresentarem uma ou outra destascaracterísticas, não podem serrigorosamente chamados deobrigação. É o caso, por exemplo, dovínculo de parentesco.

A submissão imposta ao devedor pela obrigação, bementendido, não significa, nas democracias contemporâneas,constrangimento à sua liberdade pessoal. De há muito, aliás,devedor sujeita-se ao credor num sentido meramentepatrimonial. Certo que, nos primórdios da civilizaçãoocidental, o devedor que não pagava sua dívida podiatornar-se escravo do credor. Na Roma Clássica, até a edição

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d a Lex Poetelia Papiria, em 428 a.C., era esse o meiolegítimo de satisfazer o direito do credor e punir o devedorinadimplente (Pereira, 1962:14). Na obrigação, assim, asujeição é patrimonial e não pessoal. Note-se que há, aindahoje, vínculos jurídicos em que uma das partes estásubmetida à outra pessoalmente. O poder familiar, porexemplo, corresponde a um vínculo de parentesco em razãodo qual os filhos menores devem obediência aos pais eestão sujeitos a estes num sentido claramente nãopatrimonial.

Quando se destaca a sujeição do devedor como marcacaracterística do vínculo obrigacional, está-se fazendo,portanto, mera referência ao direito de o credor pleitear emjuízo a responsabilização patrimonial do primeiro. Trata-se, arigor, da sujeição do patrimônio do devedor à satisfação dodireito do credor. Diz-se, deste modo, que a garantia docredor é o patrimônio do devedor. Ao obrigar-se porqualquer razão (negócio jurídico, fato jurídico ou ato ilícito),o sujeito de direito inexoravelmente oferece como garantiado cumprimento da obrigação os bens de seu patrimônio.Existem, é certo, alguns bens que a lei expressamente exclui,em determinadas hipóteses, dessa garantia. Assim o bem defamília (imóvel residencial próprio do casal ou entidadefamiliar — Lei n. 8.009/90), os absolutamente impenhoráveis(provisões de alimento, seguro de vida, salários e demaislistados no art. 649 do CPC), os gravados com a cláusula de

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inalienabilidade e outros não podem ser expropriadosjudicialmente para a satisfação dos direitos dos credores.Excetuados esses bens, porém, todos os demais dopatrimônio do devedor, em valor equivalente ao daobrigação, servem de garantia ao credor, enquanto nãoexecutada a obrigação.

A obrigação, portanto, importa a sujeição do devedorno sentido de que, uma vez não cumprida espontaneamentea prestação correspondente (execução voluntária), pode ocredor exigir em juízo a entrega desta tal como esperada(execução judicial específica), sua substituição por umaprestação equivalente capaz de produzir os mesmosresultados ou por uma indenização em dinheiro (execuçãojudicial subsidiária).

4. CLASSIFICAÇÃO DAS OBRIGAÇÕESClassificam-se as obrigações segundo diversos

critérios. Os mais importantes e operacionais são osseguintes.

a) Negocial ou não negocial. Este critério declassificação deriva da fonte imediata da obrigação. Negocialé a originada da vontade das partes e não negocial, adecorrente de fato jurídico ou ato ilícito.

A fonte mediata de qualquer obrigação é sempre a lei(cf. Noronha, 2003, 1:343/345). Qualquer vínculo entre doisou mais sujeitos só é obrigação porque assim o qualifica a

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lei. Há vínculos intersubjetivos ignorados pelas normaslegais, como a amizade entre dois antigos colegas deuniversidade. O vínculo existe, provoca emoções, evocalembranças, mas não tem nenhuma relevância jurídica. Claroque se está considerando apenas um vínculo de coleguismo.Se a amizade entre duas pessoas é muito grande, o direito jáqualifica esse vínculo definindo, por exemplo, como suspeitoo testemunho judicial de uma delas em favor da outra (CPC,art. 405, § 3º, III, in fine). O que torna o vínculo entre credore devedor uma obrigação é o fato de a lei assim o qualificar,assegurando ao primeiro o direito de responsabilizar osegundo. Quando a lei não qualifica certo vínculo comoobrigação, o sujeito ao qual é devida a prestação não podeacionar o aparato judicial para constranger o outro à suaentrega. Veja as obrigações de etiqueta. Normas docavalheirismo contemporâneo dizem que é elegante o homemdar preferência à mulher em situações triviais do cotidiano(entrar no elevador vazio, sentar-se à mesa no restauranteetc.). Os vínculos intersubjetivos correspondentes a essasregras não são juridicamente qualificados. O homem não tema obrigação, no sentido jurídico do termo, de ser cavalheiro,nem a mulher tem meios para submetê-lo a isso.

Percebe-se, deste modo, que a fonte última de qualquerobrigação é sempre a norma legal vigente na ordem jurídicaaplicável ao caso. A execução do contrato pode ser obtidaem juízo apenas porque uma lei o assegura. Se a vontade das

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partes fosse, por si, suficiente para gerar obrigações,qualquer contrato, mesmo os de objeto ilícito, vinculariam aspartes ao seu cumprimento. Não é assim, porém. Se duaspessoas livre e conscientemente contratam um ilícito, nãosurge nenhuma obrigação porque a lei não qualifica estevínculo como tal. A obrigação negocial, portanto, emboradecorra imediatamente de contrato ou declaração unilateral,tem como fonte mediata — assim como qualquer outraobrigação — a norma legal. A classificação aqui enfocada,por isso, diz respeito à fonte imediata. A obrigação negocialé a que decorre imediatamente do encontro de vontade daspartes e a não negocial, de fato jurídico ou ato ilícito.

A obrigação pode constituir-se emrazão da vontade das partes expressaem negócio jurídico (obrigaçãonegocial) ou de outro fato jurídico ouato ilícito (obrigação não negocial).Nos dois casos, porém, a fonte últimada obrigação será sempre a lei.

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São negociais as obrigações do comprador (pagar opreço ao vendedor), locatário (pagar o aluguel ao locador),mutuário (pagar o o mutuante), fiduciário (transferir odomínio do bem alienado ao fiduciante ao término docontrato), depositário (devolver o bem depositado aodepositante) etc. Obrigam-se estes sujeitos à respectivaprestação em razão do contrato que voluntariamentecelebram.

São não negociais, por sua vez, as obrigações docontribuinte (pagar o imposto à Fazenda Pública), infrator(pagar a multa administrativa), alimentante (pagar alimentosao alimentado), condômino (pagar sua parte no rateio dedespesas do condomínio), do empresário (indenizar osacidentes de consumo, mesmo sem ser o culpado por eles)etc. Nestes casos, não se obrigam esses sujeitos diretamentepor uma declaração de vontade, mas simplesmente por ter alei estabelecido que um fato jurídico os torna obrigados.Estes fatos são, nos exemplos acima, respectivamente, osubsumível à hipótese de incidência tributária, a infraçãoadministrativa, o vínculo de parentesco conjugado com anecessidade do alimentado e a disponibilidade doalimentador, a divisão da propriedade e a exploração deatividade empresarial. Além dos fatos jurídicos, também atosilícitos dão origem a obrigações não negociais. Deste modo,o culpado por danos tem a obrigação de indenizar os

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prejuízos da vítima.Os sujeitos de uma relação obrigacional não negocial

até podem estar vinculados, também, por um negóciojurídico, mas este não é a fonte da obrigação. Quando omédico é obrigado a indenizar o cliente por danos derivadosde sua imperícia, esta obrigação não tem por fundamento ocontrato de prestação de serviços existente entre as partes,mas a culpa do profissional no desempenho de suasfunções.

A relevância desta classificação está relacionada àextensão da prestação. Na negocial, são as declaraçõesintencionais de vontade emitidas pelos sujeitos da relaçãoobrigacional que a definem. Na superação de qualquerconflito de interesse relacionado à execução da obrigaçãonegocial, o conteúdo das declarações das partes será, assim,decisivo para delimitar-lhe a extensão. Se o mutuáriodeclarou sua concordância em pagar juros ao mutuante àtaxa superior à SELIC, o valor desta obrigação decorre dadeclaração emitida. Nas obrigações negociais, prevalece, emprincípio, o que foi contratado entre os sujeitos. A execuçãoapenas não se fará de acordo com as declarações emitidas(oralmente, eletronicamente ou por escrito) se alguma normaleg a l cogente dispuser em contrário. Além disso, a leisupletiva apenas se aplica na definição da extensão daobrigação negocial quando houverem se omitido as partesna contratação de um ponto em particular.

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Já na não negocial, a extensão da obrigação éestabelecida exclusivamente por critérios gerais previstos emnorma legal. O valor de um imposto é o resultante daaplicação da alíquota fixada na lei sobre uma base decálculo também legalmente definida. A importância que oculpado pelos danos deve pagar à vítima é a correspondenteao que ela perdeu e razoavelmente deixou de ganhar (CC, art.402). Os alimentos devem ser fixados em função dasnecessidades do alimentado e dos recursos do alimentante(CC, art. 1.694, § 1º). O reembolso do acionista calcula-sepelo valor patrimonial da ação a menos que o estatutopreveja sua fixação pelo valor econômico (Lei n. 6.404/76, art.45). São os parâmetros da lei que balizam a extensão daobrigação não negocial.

Alguns doutrinadores chamam de convencional oucontratual a obrigação negocial e de legal eextracontratual, a não negocial. São expressões, aliás,largamente difundidas no meio tecnológico e profissional.Tecnólogos como Orlando Gomes (1961:29/30) e FernandoNoronha (2003, 1:21/22), porém, mostram como sãoprocedentes as críticas à locução “contratual” paraidentificar as obrigações nascidas diretamente da vontadedas partes. De fato, não apenas dos contratos nascem essasobrigações, mas também de declarações unilaterais devontade (Cap. 19). A menção, neste Curso, a “obrigaçõescontratuais” é feita sempre com referência às nascidas de um

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específico negócio jurídico, o contrato.b) Delitual ou não delitual. A obrigação delitual surge

em razão da prática de ato ilícito pelo sujeito passivo. Se omotorista não para no cruzamento da via em que trafega comuma preferencial, incorre em ato ilícito. Tão só por estaconduta, que configura infração tipificada no CódigoBrasileiro de Trânsito, ele já se torna devedor de umaobrigação (multa). Se, em razão dessa mesma conduta,provoca um acidente de trânsito, o seu ato ilícito daráorigem, também, à obrigação de indenizar os prejuízoscausados.

A obrigação não delitual, por sua vez, surge de fato ounegócio jurídico. Pertencem a esta categoria as obrigaçõesdo contribuinte, do objetivamente responsável por certosdanos, do alimentante e as derivadas de contrato. Ocontribuinte torna-se devedor do imposto quando se verificao fato jurídico descrito na lei como hipótese de incidênciatributária (Ataliba, 1977; alguns autores chamam-no fatogerador). Assim, o hotel obriga-se a pagar o imposto sobreserviços (ISS) sempre que o hóspede remunera a estada. Oobjetivamente responsável por certos danos é obrigado aindenizá-los quando se verificam os fatos previstos nanorma legal que estabelece a responsabilidade. Oempresário, neste contexto, é devedor da indenização pelosacidentes de consumo causados pelos seus produtos ouserviços, mesmo se não agiu com culpa (isto é, mesmo que

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não tenha incorrido em ato ilícito). Sua obrigação surgetambém de um fato jurídico (vender produtos ou prestarserviços ao mercado). O alimentante também tem suaobrigação constituída pela ocorrência de um fato jurídico.Quando determinados parentes estão em estado denecessidade e a condição econômica do alimentante permiteque ele os ajude, este fato gera a obrigação de alimentar.

A obrigação pode constituir-se emrazão de o devedor ter incorrido emato ilícito (obrigação delitual) ou emdecorrência de negócio jurídico oufato jurídico (obrigação não delitual).No primeiro caso, ela equivale a umasanção; no segundo, não apresentaeste traço.

Por fim, os contratantes também assumem obrigaçõesnão delituais. Aqui, a obrigação não nasce de fato jurídico,

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mas de negócio jurídico, isto é, de declaração intencional devontade. Como é nulo qualquer negócio jurídico com objetoilícito (CC, art. 166, II), a obrigação dele emanada énecessariamente não delitual.

A obrigação delitual é sempre não negocial, enquanto anegocial é sempre não delitual.

A importância desta classificação está relacionada ànatureza sancionadora da obrigação delitual. O sujeitopassivo de obrigação desta categoria agiu com culpa e porisso se tornou devedor da prestação. Fez o que não poderiater feito ou deixou de fazer o que deveria ter feito; de ummodo ou de outro, incorreu num ilícito e deve sofrer asanção por isso. Entre as medidas sancionadoras, encontra-se a obrigação delitual. Ao seu turno, o sujeito passivo deobrigação não delitual não agiu com culpa. Obrigou-se emrazão da verificação de um fato jurídico ou pela declaraçãointencional de vontade emitida. A imputação da obrigação,neste caso, não tem caráter de pena.

No passado, a doutrina classificava certas obrigaçõescomo quase delito, categoria em que abrigava as derivadasde condutas não intencionais do devedor, como a deindenizar danos causados por negligência, imprudência ouimperícia (cf. Rodrigues, 2002, 2:9). Este conceito, porém, nãotem sido mais empregado pela tecnologia civilista (Gomes,1961:27/28).

c) Simples ou complexa. Esta classificação diz respeito à

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estrutura da obrigação. Simples é aquela em que um únicodevedor se vincula a um só credor para a entrega de apenasuma prestação. Complexa é a obrigação em que há mais deum devedor, mais de um credor ou mais de uma prestação.

Se Antonio, viajando pela internete, adquire, na páginad a Microsoft, a versão atualizada de seu programa denavegação, a obrigação derivada desse negócio jurídico ésimples. Há um só devedor (Antonio), um só credor(Microsoft) e uma só prestação (preço do programa). Por suavez, se Benedito e Carlos, coproprietários de diversosapartamentos num edifício residencial, vendem-nos todospara Darcy e Evaristo, a obrigação é complexa, pois são doissujeitos em cada parte, e o objeto compreende várias coisas.Outro exemplo: o jornalista divulga que dois políticos fizeramuma negociação ilegal e criminosa; se a informaçãodivulgada for inverídica, ele é devedor da indenização pelosdanos morais causados a ambos os caluniados.

A complexidade da obrigação pode dizer respeito a umadas partes, às duas ou ao objeto da prestação. QuandoFabrício janta no restaurante G, a obrigação deste envolvea venda de alguns bens (aperitivo, refeição, vinho etc.) e aprestação de vários serviços (guarda do automóvel, preparoda comida, serviço do vinho etc.). A obrigação é, neste caso,complexa em razão do objeto. Quando Hebe compra o pacotede viagem na agência de turismo, obrigam-se perante elavários sujeitos (companhia aérea, operador dos traslados,

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hotel etc.). Aqui, a obrigação é complexa em razão dossujeitos. Note-se que se o objeto da prestação é único,mesmo se for integrado por partes separáveis, a obrigação ésimples. Se adquiro a biblioteca jurídica de um famosojurista, é simples a obrigação derivada, porque não dizrespeito à entrega de muitos livros, mas sim de um conjuntoordenado de livros.

A obrigação pode ser simples oucomplexa. É simples quando possui umsó devedor, um só credor e uma sóprestação. É complexa, por sua vez,quando possui multiplicidade desujeitos ou de objeto.

Esta classificação é útil porque determinadas normaslegais só se aplicam às obrigações complexas. Quando acomplexidade diz respeito ao objeto, a lei se preocupa emdefinir, por exemplo, se devem ser entregues todas asprestações ou se uma das partes escolhe a devida entre

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duas ou mais. Na complexidade relativa aos sujeitos, a leiprocura, em princípio, simplificar o vínculo obrigacional,dividindo o objeto em tantas partes quantos forem ossujeitos (concursu partes fiunt), estabelecendo regras para aexecução da obrigação quando a divisão não é possível.

d) Cumulativa ou alternativa. Esta classificação dizrespeito às obrigações com objeto complexo, isto é, demultiplicidade de objetos. Cumulativa é a obrigação que temmais de uma prestação por objeto (diversas coisas ou váriosserviços), encontrando-se o sujeito passivo obrigado aentregá-las todas. Alternativa, por sua vez, a obrigaçãocorrespondente a mais de uma prestação, em que o sujeitopassivo está obrigado a entregar uma delas somente.

Imagine que Irene adquira na loja de móveis um sofá,duas poltronas e mesa de centro com o objetivo de comporum conjunto de sala. Esta é uma obrigação cumulativa, jáque a loja deve entregar todos os bens objeto do contrato.Já, se João contratou seguro de seu automóvel, com acláusula que permite à seguradora, em caso de danosignificativo, consertar o veículo ou pagar seu valor demercado, a obrigação desta é alternativa. A seguradora estádando regular execução ao seguro entregando a Joãoqualquer uma das duas prestações (conserto ou dinheiro).

Na obrigação alternativa, a escolha da prestação podecaber ao credor ou ao devedor, dependendo do que elescontrataram. Por outro lado, distingue-se este tipo de

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obrigação das facultativas. Nestas, o devedor deve entregarao credor uma determinada prestação, mas pode optar poroutra liberando-se do mesmo modo. Na bolsa de futuro,vendedores de mercadorias (commodities) têm sempre apossibilidade de, na data da liquidação da operação, em vezde entregar o bem negociado (café, soja, minério, petróleo,dólar etc.), pagar em dinheiro a diferença das cotações,quando estas são inferiores às da data do contrato. Aquelesvendedores, quando oscilam os preços para baixo, têm afaculdade de não entregar a prestação por que se obrigaram,mas outra. As distinções entre obrigação alternativa efacultativa, embora um tanto sutis, têm desdobramentosconcretos na superação de conflitos de interesse. O estudoaprofundado da obrigação alternativa, bem como de suasdiferenças com a facultativa, será feito mais à frente (Cap. 14,item 5).

As obrigações complexas em razãoda multiplicidade do objeto podem sercumulativas ou alternativas. Naprimeira hipótese, o sujeito passivodeve entregar ao ativo todas as

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prestações referidas; na segunda,apenas uma delas (a ser escolhida porele ou pelo sujeito ativo).

A relevância da classificação é fácil de divisar. Quandoa obrigação é cumulativa, o sujeito passivo não estaráinteiramente liberado se entregar ao ativo um só dos objetosda prestação. Estaria, contudo, caso a obrigação fossealternativa, e coubesse a ele, devedor, a escolha daprestação.

e) Divisível ou indivisível. Divisíveis são as obrigaçõescuja prestação é material e juridicamente repartível entre ossujeitos; indivisíveis, as demais. A classificação segundo adivisibilidade da prestação é pertinente apenas àsobrigações complexas em razão do sujeito — isto é, as quevinculam múltiplos credores a um devedor, um credor amúltiplos devedores ou mesmo múltiplos devedores amúltiplos credores.

Não costuma haver dificuldades no emprego destaclassificação. Basta conferir se o objeto da obrigação ésuscetível de divisão, tanto sob o ponto de vista físico comojurídico, sem perda de valor. Se o objeto da obrigação fordinheiro, por exemplo, ela será sempre divisível; se for uma

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imensa gleba de terra, será normalmente divisível; se for umapedra preciosa, será indivisível.

A utilidade deste critério de classificação estárelacionada à possibilidade de simplificação. O objetivo dalei é simplificar, sempre que possível, a obrigação complexa.Assim, sendo material e juridicamente cabível, a obrigaçãocomplexa em relação aos sujeitos deve ter sua prestaçãorepartida. Se são vários os sujeitos passivos, cada umdeverá responder por parte da prestação; se vários osativos, cada um terá direito sobre uma parcela. Estasimplificação, porém, só cabe nas obrigações divisíveis (CC,art. 257). Quando não há como proceder à repartição daprestação entre os sujeitos, em virtude de óbice material oujurídico, a obrigação é indivisível e insuscetível desimplificação. Neste caso, sua execução sujeita-se a regraspróprias (Cap. 14, item 6).

As obrigações complexas em funçãodos sujeitos classificam-se emdivisíveis ou indivisíveis, de acordocom a natureza da prestação. Se o bem

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ou serviço a que se obrigou o sujeitopassivo perante dois ou mais sujeitosativos pode ser material ejuridicamente dividido, a obrigação édivisível; caso contrário, indivisível.

f) Real ou pessoal. Esta é uma classificação que, aexemplo da que separa a negocial da não negocial (letra a),também elege como critério orientador a fonte da obrigação.Reais são as obrigações originadas da titularidade, pelosujeito passivo, de direito real sobre determinado bem;pessoais, as demais.

As obrigações reais (também conhecidas como“obrigações propter rem”) são não negociais, porque seconstituem em razão de um fato jurídico que é, em geral, apropriedade de um bem. O sujeito passivo não emitenenhuma declaração de vontade específica no sentido deassumir certa obrigação, mas torna-se devedor desta emdecorrência de sua condição de proprietário, isto é, de titularde direito real sobre uma coisa. Obrigação real, por exemplo,é a do condômino de pagar a contribuição condominial.

A mudança na titularidade do direito real gerador da

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obrigação importa alteração do sujeito passivo. A obrigaçãoreal está ligada ao bem correspondente de tal modo quesegue a sorte deste. Quem adquire, assim, apartamento numedifício torna-se devedor das contribuições condominiaisrelativas àquela unidade, não havendo como se liberar dessaobrigação perante o condomínio.

A obrigação real é a contrapartida, por assim dizer, dodireito real. Quem titulariza este torna-se sujeito passivodaquela. Por outro lado, o estudo dos casos normalmenteindicados pela doutrina como exemplo de obrigações reais(Rodrigues, 2002, 2:79/85) acomoda-se melhor nos capítulosdedicados ao direito das coisas (v. 4 deste Curso). Por essemotivo, nos relativos ao Direito das Obrigações, cuidoapenas das obrigações pessoais, quer dizer, das que surgemem razão de negócio jurídico, ato ilícito ou fato jurídicodiferente de titularidade de direito real. Esta definição, deordem exclusivamente didática, justifica a classificação.

g) Dar, fazer ou não fazer. Esta é uma das mais úteisclassificações das obrigações. Diz respeito também ànatureza da prestação, dando relevo, de um lado, à ação ouomissão do devedor e, de outro, à entrega de coisa ouobservância de comportamento. A obrigação é de darquando o devedor se obriga à ação de entregar uma coisa aocredor; é de fazer, quando se obriga a praticar determinadoato ou prestar serviços; é, por fim, de não fazer, quando seobriga a adotar determinada conduta omissiva.

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As obrigações de dar subdividem-se em obrigações detransferir o domínio (ou de dar, em sentido estrito), deentregar e de restituir. A obrigação do comprador de pagar opreço da coisa adquirida é de dar, pois implica atransferência do domínio do dinheiro ao vendedor. A dolocador de passar a posse ao locatário, no início do contratode locação, é de entregar, porque a posse lhe será devolvidaao término do vínculo locatício. A do mutuário de pagar omutuante é exemplo de obrigação de restituir, já que estádando de volta o que havia recebido ao contratar o mútuo.A do cirurgião plástico de realizar a operação estética é claraobrigação de fazer. Por fim, a do alienante doestabelecimento empresarial no sentido de não serestabelecer no mesmo ramo durante algum tempo, para nãocompetir com o adquirente, é obrigação de não fazer, porqueele se obriga a omitir determinada conduta.

As obrigações podem ser, de acordocom o conteúdo da prestação, de dar,fazer ou não fazer. Nas de dar, odevedor obriga-se a transferir odomínio, entregar ou restituir ao

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credor um bem; nas de fazer, obriga-sea certo ato ou prestação de serviço; enas de não fazer, a omitir umaconduta.

Note que, no rigor da lógica, esta classificação ébastante criticável. O entregar de uma coisa não deixa de serum fazer. Não fazer algo, por outro lado, é o mesmo que fazero contrário, e vice-versa. Para a tecnologia jurídica, porém,ela é pertinente e deve ser feita segundo a ótica do interessedo credor. Se o que interessa ao sujeito ativo é a coisa,independentemente do que tenha que fazer o sujeito passivopara entregá-la, a obrigação é de dar; mas, se o que lheinteressa é certo comportamento do devedor, a obrigação éde fazer (cf. Gomes, 1961:38).

A relevância desta classificação reside no regimepróprio que o Código Civil reserva a cada categoria. Asobrigações de dar estão disciplinadas nos arts. 233 a 246; asde fazer, nos arts. 247 a 249; e as de não fazer, nos arts. 250 e251 (Cap. 14, itens 2 a 4).

h) De meio ou de resultado. As obrigações de fazerdividem-se em obrigações de meio ou de resultado deacordo com a natureza da prestação. A diferença é mais

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facilmente percebida quando o sujeito passivo está obrigadocontratualmente a prestar um serviço, porque, dependendoda natureza deste, sua liberação do vínculo obrigacionalpode verificar-se com a mera conduta correspondente aoserviço contratado ou apenas quando determinado efeito forproduzido. No primeiro caso, a obrigação é de meio; nosegundo, de resultado (Monteiro, 2001:54/55).

A obrigação do advogado de contencioso é típica demeio. Ao assumir a defesa de cliente num processo judicial,ele não se compromete a obter o ganho da causa.Compromete-se, isto sim, a empregar diligentemente nopatrocínio dos interesses de quem o contratou todos osmeios processuais disponíveis (contestar, requerer eproduzir provas, recorrer etc.). Se o advogado negligenciano acompanhamento do caso e perde o prazo para o recurso,por exemplo, ele deixa de cumprir sua obrigação de meio.Mas, se a decisão final é desfavorável ao seu cliente, não selhe pode imputar qualquer descumprimento da obrigação sópor este fato, já que não se obrigou por determinadoresultado.

Já a obrigação do engenheiro civil é de resultado. Se oproprietário contrata o engenheiro para gerenciar aconstrução de um imóvel residencial de acordo comdeterminado projeto, este último somente se consideraliberado da obrigação quando entregar ao primeiro a casaconstruída tal como projetada. Não terá cumprido sua

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obrigação apenas com a execução dos serviços gerenciaisda obra. Para o engenheiro se liberar do vínculoobrigacional, o resultado de seus serviços deve serexatamente o imóvel residencial projetado.

Mesmo se a obrigação de fazer é não negocial, cabedistingui-la em obrigação de meio ou de resultado. Ovendedor, por exemplo, desde que se tenha obrigado atransferir o domínio da coisa, deve zelar por sua guarda. Estaé uma obrigação de meio, já que, perecendo a coisa vendidasem sua culpa, não estará obrigado a indenizar o comprador(Monteiro, 2001:63). Concorrer lealmente é outro exemplo deobrigação não negocial de meio (Comparato, 1978:533).

Esta classificação é importante no exame documprimento das obrigações assumidas pelo prestador dosserviços, quando o resultado não corresponde àsexpectativas nutridas pelo contratante (tomador). Se, emrazão da natureza da prestação, o devedor compromete-se aproduzir determinado resultado, o credor tem o direito deexigi-lo. Caso contrário, o credor pode apenas exigir osmelhores esforços do devedor na tentativa de obter oresultado desejado. É importante, igualmente, no campo daresponsabilidade civil, em que norteia a verificação deimperícia do profissional que dá ensejo à constituição daobrigação de indenizar.

i) Pura ou condicional. Pura é a obrigação em que aentrega da prestação pelo sujeito passivo não se encontra

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sujeita a condição. Ela é, por isso, exigível pelo sujeito ativotão logo constituída (à vista) ou, se for o caso, desde quedecorrido o tempo contratado (a prazo). A obrigação que oculpado pelos danos tem de indenizar a vítima é pura e podeser exigido o seu cumprimento imediatamente após o eventodanoso. Também a obrigação do locatário de pagar o aluguelnormalmente é pura, mas só pode ser exigido o seucumprimento pelo locador após o decurso do prazoestabelecido no contrato (p. ex., no dia 10 do mês seguinte).

A obrigação é condicional quando a entrega daprestação pelo sujeito passivo está sujeita ao implemento decondição. São desta categoria apenas as obrigaçõesnegociais. Se as partes contratam que o sujeito passivosomente está obrigado se ocorrer determinada condição(suspensiva) ou que ele deixará de sê-lo caso esta severifique (resolutiva), o sujeito ativo não pode exigir ocumprimento fora dessas hipóteses (sobre condição, verCap. 10, item 7).

j) Líquida ou ilíquida. Líquida é a obrigaçãoplenamente determinada em sua extensão; ilíquida, a que,embora existente, não foi ainda devidamente quantificada(cf. Diniz, 2003:109/111). Quando o consumidor adquire umeletrodoméstico, assume a obrigação de pagar o valoranunciado desse produto, e nada mais. A obrigação élíquida, porque o valor do pagamento a que se obriga oconsumidor é preciso, representa determinada quantidade de

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reais. Mas, se Luís causa acidente de trânsito de quederivam danos ao automóvel de Mário, obriga-se a pagar-lhe o conserto do veículo. Desde a verificação do ato ilícito,a obrigação já existe, mas será ilíquida enquanto não sedefinir o valor das despesas correspondentes. A liquidaçãodependerá, por exemplo, de orçamentos levantados emoficinas idôneas.

Também as obrigações negociais podem ser ilíquidas.Comprador e vendedor podem, por exemplo, estabelecerapenas os critérios do preço, sem quantificá-lo. Neste caso,a iliquidez corresponde ao confessado intento das partes edeve, por alguma razão, interessar-lhes.

Todas as obrigações ilíquidas devem ser previamenteliquidadas antes de seu cumprimento. Há, por outro lado,determinadas hipóteses de extinção de obrigações que dizemrespeito unicamente às líquidas (é o caso da compensação).

l) Principal ou acessória. Finalmente, a obrigação podeser principal ou acessória, segundo tenha, ou não, existênciaindependente em relação a outra. Trata-se de critério declassificação que considera as obrigações reciprocamente(Diniz, 2003, 2:189). A obrigação de pagar o valor mutuado,por exemplo, é principal em relação à de pagar os juros; estaé acessória daquela. A obrigação do fiador, outro exemplo, éacessória em relação à do afiançado.

A obrigação acessória segue, em princípio, a sorte daprincipal: se prescrever a pretensão do credor relativamente

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à obrigação principal, prescreve também a relativa àacessória.

5. OBRIGAÇÕES IMPERFEITASObrigação foi definida como o vínculo entre duas partes

juridicamente qualificado no sentido de uma delas (o sujeitoativo) titularizar o direito de receber da outra (o sujeitopassivo) uma prestação (item 1). Assentou-se, por outrolado, que são características essenciais desse vínculo apatrimonialidade e a sujeição do devedor ao credor. Porsujeição entende-se a possibilidade de o credor obter aexecução judicial (específica ou subsidiária) da obrigação,quando o devedor recusa a voluntária (item 3). Pois bem,fixadas tais premissas, é inescapável afirmar que nãoconfigura obrigação o vínculo jurídico em que o titular dodireito de receber a prestação não dispõe de ação judicialpara obter sua execução forçada. Em outros termos, uma vezadotados os conceitos indicados de obrigação e sujeição,no rigor do raciocínio lógico, se o credor não pode acionar oaparato judiciário do Estado para que se cumpram asfinalidades do vínculo obrigacional, deve-se considerar queeste não existe.

Há, porém, certos fatos disciplinados pela lei (fatosjurídicos, portanto), em que se apresentam vínculos entresujeitos de direito com características muito próximas às daobrigação. Se alguém normalmente auxilia uma associação de

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caridade com o pagamento de um valor mensal, este fato criaum vínculo entre o filantropo e a entidade pia: ela nutre aexpectativa de contar, mensalmente, com aquela ajuda. Ovínculo entre eles pode ser eventualmente qualificado em leino sentido de autorizar o pagador a deduzir de seu impostode renda a quantia paga. Mas, por certo, não está tal vínculoqualificado juridicamente no sentido de assegurar àassociação de caridade o direito de continuar recebendo amesma quantia mensal, caso o filantropo suspenda-lhe opagamento ou a reduza. Trata-se, por assim dizer, de umvínculo de ordem moral o que corresponde à expectativa daassociação de contar mensalmente com aquela contribuiçãofilantrópica. Não é, seguramente, um vínculo obrigacional.

Também o cavalheirismo, a etiqueta, a honra, o empenhoda palavra e mesmo as avaliações de oportunidade(oportunismo) geram vínculos não obrigacionais. Espera-se,em razão deles, que determinada pessoa aja de uma certamaneira, ainda que não possa ser judicialmente forçada afazê-lo.

Obrigação imperfeita é o fatojurídico que apresenta característicassemelhantes à obrigação, isto é, um

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vínculo entre dois sujeitos. Falta-lhe,porém, um dos elementos essenciais daobrigação que é a sujeição do devedorao credor. Na obrigação imperfeita, osujeito ativo não tem ação judicialcontra o passivo para obter suaexecução.

Em razão da semelhança entre esses vínculos nãoobrigacionais e as obrigações (em ambos, têm-se doissujeitos ligados por uma prestação), a tecnologia chama-osd e obrigações imperfeitas (Gomes, 1961:79/80). Existindouma consistente expectativa (no plano individual e social) deque alguém dê, faça ou não faça algo, sem que se lhe possaexigir isso judicialmente, o vínculo entre essa pessoa e obeneficiário da prestação aproxima-se da obrigação, masnão é obrigação. Talvez conviesse designar esses vínculosnão obrigacionais por termo diverso, mas a tecnologiajurídica não se tem dedicado a pesquisá-lo. O importante éter presente que, embora chamados obrigações, essesvínculos não podem ser considerados obrigacionais por

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faltar ao sujeito ativo o direito de obter em juízo suaexecução forçada.

A obrigação natural é uma espécie de obrigaçãoimperfeita; não é, portanto, obrigação (cf. Noronha, 2003,1:225/230). Sob este conceito reúnem-se fatos jurídicos comas seguintes características: a) configuram-se como umarelação jurídica entre credor e devedor; b) a relação jurídicaimporta mutações patrimoniais (patrimonialidade); c) ocredor espera receber a prestação do devedor, em função deexpectativas socialmente difundidas; d) o credor não temdireito de ação judicial para obter a prestação.

Quando presentes esses requisitos, em suma, o fatojurídico correspondente é chamado de obrigação natural. Aconsequência legalmente estabelecida para este fato é airrepetibilidade do pagamento (CC, art. 882). Quer dizer, se odevedor de uma obrigação natural executa-avoluntariamente, entregando a prestação ao credor, a leiconsidera válido o pagamento. O devedor não poderá, nestecaso, pleitear a devolução (repetição, em termos técnicos)do que pagou. Por outra via, o pagamento de obrigaçãonatural não é pagamento indevido. Se o credor, mesmo nãotendo meios de exigir a execução judicial da obrigação,acabou recebendo o que lhe era devido, não está obrigado arestituir ao devedor a quantia recebida.

São exemplos de obrigação natural no direito brasileiro:a) Dívida de jogo ou aposta. O jogo e a aposta são

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contratos. No primeiro, os jogadores podem disputar emfunção do acaso: o que for favorecido pela sorte deve serpago pelos demais, que sofrem o azar. No segundo,apostadores disputam em função de opiniões sobre oresultado de evento futuro: o que vir sua opinião confirmadadeve ser pago pelos demais. A loteria de números é um jogo;ganha quem tem a sorte de assinalar, no instrumentoapropriado, os mesmos números que os sorteados. Já aloteria esportiva é uma aposta; ganha quem puder anteciparcorretamente o resultado das partidas de futebol indicadasno volante.

Os jogos e apostas são, no direito brasileiro, de trêscategorias: proibidos (ou ilícitos), permitidos e regulados.Entre os proibidos, está, por exemplo, o jogo do bicho, cujaprática é contravenção penal que sujeita os infratores aprisão, de 6 meses a um 1 ano, e multa (Dec.-lei n. 6.259/44,art. 58); entre os permitidos, pode-se citar o jogo de cartasna casa de familiares ou amigos, o bingo beneficente daassociação de caridade, o bolão entre colegas de escritórioàs vésperas de campeonato mundial de futebol; entre osjogos e apostas regulados, por fim, estão as diversasloterias organizadas pela Caixa Econômica Federal, e aaposta em cavalos feita em jóquei-clubes.

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A obrigação natural é uma hipótesede obrigação imperfeita porque otitular do direito não tem ação judicialcontra o devedor. Se, contudo, esteproceder ao cumprimento voluntárioda prestação, o credor não estaráobrigado a restituir o que recebeu. Sãoexemplos de obrigações naturais nodireito brasileiro a dívida de jogo ouaposta, o empréstimo para o jogo ouaposta, o pagamento de juros nãoconvencionados ou de dívida prescrita.

A obrigação dos jogadores e apostadores perdedoresde pagar o vencedor é natural. De acordo com o art. 814 doCódigo Civil, as dívidas desses contratos não obrigam apagamento. Se o perdedor, porém, pagar espontaneamente ovencedor, não poderá exigir a devolução do pagamento

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(salvo se for menor ou interdito ou tiver havido dolo docredor).

Note-se que esta regra só se aplica aos participantes dojogo ou aposta. Não se aplica, atente-se, à relação entreestes e a entidade organizadora de jogo regulado. Quandoalguém faz suas apostas na loteria esportiva da CaixaEconômica Federal, não está celebrando com esta instituiçãofinanceira nenhum contrato de aposta. O contrato, naverdade, é feito com todos os demais apostadores daquelasérie; a Caixa Econômica Federal apenas administra a aposta,recolhendo antecipadamente o pagamento dos participantese entregando o valor devido ao acertador ou acertadores.Também o jóquei-clube não é apostador ou jogador, masorganizador de jogo ou aposta regulados. Entre osparticipantes do jogo ou aposta e as entidadesorganizadoras estabelece-se um vínculo contratual diverso,sujeito ao Código de Defesa do Consumidor. As entidadesprestam serviço aos participantes do jogo ou aposta e, porisso, não se submetem ao art. 814 do CC. Em consequência,o jogador ou apostador vitorioso tem crédito perante asentidades de organização do jogo ou aposta regulados, epode, sem obstáculo nenhum, promover a execução desteem juízo.

b) Empréstimo para jogo ou aposta. Também éobrigação natural a decorrente de empréstimo feito para jogoou aposta, no ato de apostar ou jogar (CC, art. 815). Imagine

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que Antonio está jogando pôquer com seus amigos na casad e Benedito e tem em mãos cartas do mesmo naipe emsequência (straight flush). É uma boa mão. Suponha-se,contudo, que Carlos, a quem cabe a preferência, cacifou arodada em valor que Antonio não possui. Com a licença dospresentes, ele liga de seu telefone celular para Darcy, expõe-lhe a situação e pede-lhe dinheiro emprestado para continuaro jogo. Darcy concorda e envia-lhe imediatamente a quantiasolicitada. Entre Antonio e Darcy constitui-se umaobrigação natural. Independentemente do resultado daquelarodada (na verdade, Carlos tinha em mãos cartas de igualnaipe em uma sequência finalizada em Ás, royal flush, eganhou), Darcy não poderá exigir de Antonio, em juízo, adevolução do dinheiro emprestado.

Se o mutuário de empréstimo para jogo ou apostaproceder ao pagamento espontâneo do valor mutuado, omutuante não é obrigado a restituí-lo.

A caracterização legal da dívida de jogo ou aposta e doempréstimo para jogo ou aposta como obrigações naturais éa forma hipócrita que a ordem jurídica brasileira encontroupara procurar desmotivar sua prática.

c) Obrigações prescritas. A prescrição, estudou-se(Cap. 12), é uma hipótese de extinção de direito pela inérciado titular em exercê-lo durante certo prazo. Segundo a leibrasileira, extingue-se, com a prescrição, a pretensão, isto é,o direito de promover a ação judicial para obter, à força, a

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conduta que não foi voluntariamente observada pelodevedor. Quando se fala em “obrigações prescritas”, está-sereferindo, no rigor dos conceitos tecnológicos, àsobrigações cujo sujeito ativo não pode mover mais nenhumaação judicial para receber a prestação, porque deixoutranscorrer o prazo legal para fazê-lo e, então, viu suapretensão prescrever.

O devedor, na obrigação prescrita, não pode mais serforçado judicialmente a prestar o devido, nem corre o riscode ter seu patrimônio expropriado para satisfação do direitodo credor. Trata-se, portanto, de inequívoca obrigaçãonatural. Se, a despeito disso, der cumprimento voluntário àobrigação, não poderá posteriormente pleitear a devoluçãodo que pagou (CC, art. 882).

d) Juros não estipulados. O mútuo, que é o contrato deempréstimo de bens fungíveis (CC, art. 586), pode ter ou nãofins econômicos. Quando tem, presumem-se devidos osjuros (CC, art. 591); quando não, presume-se gratuito. Nomútuo sem fins econômicos, portanto, o mutuante temdireito de receber de volta o emprestado em igualquantidade, gênero e qualidade, mas não tem, em princípio,direito a nada a título de remuneração pelo empréstimo. Se opai empresta dinheiro ao filho, surge um mútuo sem finseconômicos. Caso não tenha sido expressamente pactuadoentre eles o pagamento de juros, em razão da presunção degratuidade, considera-se que estes não são devidos. A

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obrigação de remunerar o empréstimo, nesta hipótese, énatural. O pai não pode exigir em juízo o pagamento dosjuros. Se o filho os pagar, porém, não poderá reclamá-los devolta.

Além dessas hipóteses, também são mencionadas comoexemplos de obrigação natural as do pagamento do resíduoapós o cumprimento da recuperação judicial, da dívidadesconsiderada por sentença injusta irrecorrível e daobrigação do devedor favorecido pela presunção legal depagamento não efetuado. Sérgio Carlos Covello denominaessas hipóteses de obrigações naturais atípicas, por não seencontrarem especificamente previstas na lei (1996:131/139).

6. OBRIGAÇÃO E PATRIMÔNIOPatrimônio é o conjunto de bens (incluindo os direitos)

e dívidas titularizado por determinado sujeito de direito. Nopatrimônio, encontram-se as coisas materiais de propriedadedo sujeito (imóveis, veículos, equipamentos etc.), bensimateriais (direito autoral, patente de invenção, nome dedomínio na internete etc.), além de seus créditos e débitosperante outros sujeitos. Costuma-se desdobrar o patrimônioem dois elementos: ativo e passivo. No ativo, reúnem-se osbens de propriedade do sujeito e os direitos que titulariza;no passivo, suas dívidas. Patrimônio líquido é a diferençaentre o ativo e o passivo de um sujeito de direito. SeAntonio tem seu patrimônio desdobrado em ativo no valor

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d e R$ 100.000,00, e passivo, no de R$ 35.000,00, o seupatrimônio líquido é de R$ 65.000,00. Quando o passivosupera o ativo, diz-se que o patrimônio líquido é negativo.Note-se, desde logo, que nem todo elemento do patrimôniode um sujeito é contabilizável. Os direitos imateriais integramo ativo de seu titular, para todos os efeitos jurídicos, masnem sempre são ou podem ser apropriados pelacontabilidade. O conceito jurídico de patrimônio é maisamplo que o contábil.

Qualquer obrigação pode importar repercussõespatrimoniais, tanto para o sujeito ativo como para o passivo.Em termos mais precisos, a obrigação produz ou podeproduzir mudanças no patrimônio das partes nelaenvolvidas, isto é, tem aptidão para gerar mutaçõespatrimoniais. Se Benedito é dono de um imóvel residencial,este é um dos elementos de seu ativo. Na hipótese de ele ovender a Carlos, a obrigação correspondente a essecontrato de compra e venda importará uma mutação nopatrimônio de Benedito: o imóvel deixará de integrá-lo epassará a integrá-lo o dinheiro recebido pela venda. Note-seque também gerará esta mesma obrigação uma mutaçãoinversa no patrimônio de Carlos: o imóvel em questãopassará a fazer parte do ativo e deixará de integrá-lo odinheiro pago pelo bem.

Mesmo nas obrigações de fazer ou não fazer, aobrigação repercute no patrimônio das partes. Quando o

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advogado é contratado para promover demanda judicial emfavor de seu cliente, nascem dois vínculos obrigacionais: deum lado, o vínculo em que ele, advogado, é o devedor dosserviços e o cliente, credor; de outro, aquele em que asposições ativas e passivas invertem-se e o advogado écredor dos honorários devidos pelo cliente. Somente esteúltimo importa mutação patrimonial direta; isto é, com aconstituição da obrigação de fazer, surge desde logo, noativo do advogado, o direito à remuneração e no passivo docliente, a dívida correspondente. O primeiro vínculo, noentanto, repercute indiretamente no patrimônio das partes,na medida em que o advogado, se não prestar os serviçoscontratados, deve indenizar os prejuízos sofridos pelocliente. A obrigação de indenização derivada dodescumprimento da de fazer acarreta mutação patrimonialrepresentada por um débito no patrimônio do advogado eum crédito no do cliente.

Atente-se que a constituição do vínculo obrigacional (aprática do negócio jurídico, a verificação do ato ilícito ou dofato jurídico etc.) já pode acarretar mutações no patrimôniotanto do sujeito ativo como do passivo da obrigação. SeDarcy toma dinheiro emprestado do banco, desde osurgimento da obrigação, torna-se devedora (mutuária) daquantia emprestada. Do seu patrimônio, passa a constar adívida perante o banco (mutuante), tão logo ela entre naposse do dinheiro objeto de mútuo. O mesmo negócio

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jurídico gera, também, imediata mutação no patrimônio dobanco, que passa a ter, no patrimônio, o crédito titularizadoperante Darcy. Por outro lado, a execução da obrigação(voluntária, judicial específica ou judicial subsidiária)também gerará novas mutações no patrimônio dos sujeitosenvolvidos. Assim, quando Darcy pagar ao banco oempréstimo, deixará de figurar do patrimônio dela a dívida,assim como também deixará de existir no do banco o crédito.

A constituição, execução ouinexecução das obrigações podemimplicar mutações nos patrimônios dossujeitos ativo e passivo.

Desdobra-se, viu-se, o patrimônio em ativo e passivo.Os bens de propriedade do sujeito e os direitos que titularizaalbergam-se no ativo e suas dívidas, no passivo. Como asobrigações podem repercutir no patrimônio tanto do credorcomo do devedor, integram, dependendo da posição dotitular do patrimônio na relação obrigacional, o ativo ou opassivo dele. Quer dizer, a obrigação pode fazer parte tanto

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de um como de outro elemento do patrimônio, dependendode como se posta o respectivo sujeito no vínculoobrigacional. Assim, constituída certa obrigação, o sujeitoativo, que é o credor, passa a ter no seu ativo o créditocorrespondente; e o sujeito passivo, que é o devedor, passaa ter no seu passivo o débito derivado da referida obrigação.As obrigações ativas são aquelas em que o sujeito titular dopatrimônio é credor (sujeito ativo); correspondem aos seuscréditos. Já as obrigações passivas são aquelas em que osujeito titular do patrimônio é devedor (sujeito passivo);correspondem aos seus débitos.

Algumas relações obrigacionais geram para cada partetanto obrigações ativas como passivas, entrecruzando-sedireitos e deveres. Isto se verifica, por exemplo, noscontratos bilaterais a prazo. Imagine-se que Benedito eCarlos houvessem contratado a compra e venda do imóvelmediante o parcelamento do preço. Especificamente, eles sevincularam por um compromisso de compra e venda. Nestecaso, mesmo que a posse do bem seja desde já transferida aopromitente comprador (como é usual), a propriedade só oserá após o pagamento integral de todas as prestações. Masa constituição da obrigação (pela celebração docompromisso), por si só, desencadeia já mutaçõespatrimoniais para os promitentes. Benedito, promitentevendedor, passa a incorporar a seu ativo o créditocorrespondente ao preço do imóvel, e ao passivo o dever de,

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em recebendo integralmente o valor deste, transferi-lo àpropriedade de Carlos. Por sua vez, com a celebração docompromisso, Carlos, promitente comprador, passa a ter, emseu passivo, o débito correspondente às prestações dopreço contratado, e, no ativo, o direito de se tornarproprietário do bem após o pagamento destas. Como se vê,tanto a parte promitente vendedora como a promitentecompradora experimentam, nos ativos e passivos de seuspatrimônios, mutações derivadas da constituição daobrigação. Pois bem, uma vez cumprindo Carlos a obrigaçãode pagar todas as prestações contratadas no compromissode compra e venda, e Benedito a de transferir-lhe apropriedade do imóvel compromissado, extingue-se aobrigação. Veja que repercute a extinção da obrigação nosrespectivos patrimônios, tanto no ativo como no passivo decada parte. Do de Benedito, saem o dever de transferir oimóvel e o crédito pelas prestações e entra o dinheirorecebido de Carlos; do de Carlos, por sua vez, saem odinheiro correspondente ao preço e o débito peranteBenedito e entra o imóvel adquirido.

Há obrigações em que o entrecruzamento de créditos edébitos não existe. Nas derivadas de declaração unilateral devontade (o credor por enriquecimento indevido não temobrigação nenhuma perante seu devedor), nas oriundas deresponsabilidade civil (a vítima tem apenas direitos a exercerem face do agente causador dos danos) e mesmo nalguns

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contratos unilaterais (na doação, só o doador é sujeitopassivo), o vínculo obrigacional é um só.

Em suma, qualquer obrigação — em sua constituição,execução ou inexecução — importa diretas ou indiretasmutações patrimoniais, verificáveis tanto no ativo de umadas partes correlacionado ao passivo da outra, como noativo e passivo de ambas.

7. SIGNIFICADOS DA EXPRESSÃO “OBRIGAÇÃO”Obrigação é expressão ambígua. Pode ser corretamente

empregada em dois sentidos diferentes. No primeirosignificado, denota a situação de quem se pode exigir certaprestação. Emprega-se a expressão neste significado emfrases como: o locatário tem a obrigação de pagar o aluguel;uma das obrigações do proprietário de imóvel é pagar oIPTU; o causador do dano que deixa de pagar a indenizaçãoà vítima descumpre sua obrigação etc. Este é o sentido deobrigação que corresponde ao mais difundido. Nela, aexpressão é sinônima de um dos significados de dever (item8).

No seu segundo significado, obrigação é, comoconceituado acima, o vínculo entre duas partes qualificadojuridicamente no sentido de uma delas poder exigir da outradeterminada prestação (item 1). Emprega-se obrigação nestesignificado nas seguintes frases: a obrigação locatíciaimplica o direito do locador ao recebimento do aluguel;

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nasce a obrigação tributária correspondente ao IPTU pelofato gerador da propriedade imobiliária; entre o causador dodano e a vítima estabelece-se obrigação não negocial.

Obrigação é expressão ambígua. Seuprimeiro significado é o de dever (p.ex.: “o comodatário tem a obrigaçãode restituir o bem recebido emcomodato”); o segundo é o de vínculode sujeição do devedor ao credor (p.ex.: “a obrigação locatícia surge docontrato de locação”).

Embora a doutrina aponte o segundo significado comosendo o mais técnico (cf., por todos, Pereira, 1961:8), é usual,no meio profissional e acadêmico do direito, empregarem-seos dois. Esta ambiguidade, ao contrário de muitas outras,não deve ser objeto de maiores preocupações, porquefacilmente se consegue perceber, a partir do contexto, o

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sentido em que se emprega a expressão. Neste Curso dedireito civil, usam-se os dois significados. Quando ocontexto não permitir a imediata superação da ambiguidade,emp reg o obrigação passiva para designar o primeirosentido acima apontado (situação daquele de quem se podeexigir uma prestação).

8. OBRIGAÇÃO E DEVERPatrimonialidade é o atributo da obrigação representado

pela mensurabilidade em dinheiro da prestação (Gil,1983:187/189). Quer dizer, as obrigações são patrimoniaisnão pelas mutações que podem trazer aos patrimônios docredor e devedor, mas por serem seus objetos expressos emquantia monetária (dívida de dinheiro) ou pelo menossuscetíveis desta quantificação (dívida de valor). O atributoda patrimonialidade, cuja pertinência é questionada por certadoutrina (Noronha, 2003, 1:40/50), distingue a obrigação dodever.

Em outros termos, a obrigação, além de poder acarretarrepercussões no patrimônio dos sujeitos de direitoenvolvidos, tem por objeto prestação — ainda querepresentada por um fazer ou não fazer do devedor —sempre passível de mensuração em dinheiro, direta (naexecução) ou indiretamente (na inexecução). Não háobrigação sem esta característica. É o atributo dapatrimonialidade que a distingue de outros vínculos de

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sujeição entre as pessoas qualificados pelo Direito. Estesoutros vínculos de sujeição não revestidos depatrimonialidade devem ser chamados de dever, para não seconfundirem dois institutos jurídicos bem distintos (Gomes,1961:21).

Dever é, tal como obrigação, uma expressão ambígua;isto é, possui dois sentidos igualmente técnicos eapropriados para a tecnologia jurídica. No primeiro, equivalea obrigação passiva. Assim, quando se diz que alguém temum dever, isto significa que está obrigado a dar, fazer ou nãofazer alguma coisa. Este é o sentido largo de dever, em que oconteúdo da expressão não se distingue do da obrigação.Pode-se afirmar, em decorrência, sem incorrer em equívocotécnico, que o devedor tem o dever ou a obrigação de pagaro credor. As duas hipóteses estão corretas.

No segundo sentido, dever denota o vínculo desujeição entre pessoas sem patrimonialidade. O jovem dedezoito anos tem o dever de prestar serviço militar, nosentido de que está sujeito a vínculo com o Estado de quedecorre a imposição de o homem, no ano em que completaraquela idade, comparecer à circunscrição militar paraalistamento. Este dever, porém, não integra o passivo dopatrimônio do rapaz. O vínculo correspondente ao deversimplesmente não tem nenhuma implicação para opatrimônio da pessoa a ele sujeita. Este é o sentido estrito daexpressão.

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No direito civil, há exemplo de dever na disciplina docasamento. Os cônjuges têm recíprocos deveres defidelidade, amparo e coabitação. Estão, um perante o outro,ligados por este vínculo de sujeição, em razão do qualpodem exigir recíproca observância de determinadoscomportamentos (exclusividade na gratificação sexual emoradia conjunta). Esses vínculos, porém, malgrado asujeição, não repercutem no ativo ou passivo dos cônjugese não são mensuráveis em pecúnia.

Dever, em sentido estrito, é o vínculojurídico entre duas pessoas, em razãodo qual uma delas fica sujeita à outra,mas sem o traço da patrimonialidade.Pessoas casadas, por exemplo, tem,uma perante a outra, o dever defidelidade, amparo e coabitação.

A obrigação natural, atente-se, não é, como visto,

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obrigação mas também não é um dever. Do fato de nãopoder o credor exigir judicialmente o adimplemento dodevido não se segue sua extrapatrimonialidade. Aocontrário, a obrigação natural é mensurável em dinheiro erepercute no patrimônio dos sujeitos envolvidos. Se oapostador vencido paga ao vencedor o dinheiro da aposta,este sai do patrimônio daquele para ingressar no deste. Se omutuário, no mútuo sem fins econômicos, paga juros nãoestipulados ao mutuante, ocorrem as mutações patrimoniaiscorrespondentes. Se o credor do empresário beneficiado porplano de recuperação judicial recebe o pagamento doresíduo, a mutação correspondente verifica-se tanto nopatrimônio dele como no do devedor. Mas se o cônjugecumpre seus deveres de fidelidade, amparo e coabitação,isto é insuscetível de avaliação monetária e nenhumarepercussão patrimonial se verifica. As obrigaçõesimperfeitas, assim, afastam-se tanto das obrigações comodos deveres.

A importância de distinguir obrigação de dever estárelacionada ao regime jurídico aplicável a cada instituto (cf.Nonato, 1959:58/60). As regras que disciplinam asobrigações não se aplicam aos deveres, nos seusdesdobramentos patrimoniais (transmissão, pagamento,efeitos do inadimplemento etc.). Os deveres sãodisciplinados por regras próprias, estranhas ao direitoobrigacional: o descumprimento do dever de fidelidade do

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cônjuge é causa, por exemplo, de dissolução da sociedadeconjugal nascida do casamento (CC, art. 1.571, I).

9. FLEXIBILIZAÇÃO DO DIREITO DAS OBRIGAÇÕESAs normas do direito das obrigações, como as de

qualquer ramo jurídico, reclamam flexibilização. Comodiscutido anteriormente (Cap. 3, item 9), o Direito só podefuncionar como sistema social de superação dos conflitos deinteresses se as normas que orientam as decisões judiciaispuderem ser aplicadas com flexibilidade. Quanto maiscomplexa é a sociedade, mais flexível deve ser o Direito. Há,por um lado, conceitos jurídicos e tecnológicos aptos apromover a flexibilização de qualquer ramo do direito. São osconceitos elaborados, estudados e operacionalizados noreconhecimento e preenchimento de lacunas, na superaçãode antinomias, na interpretação das normas etc. Há, poroutro lado, mecanismos de flexibilização específicos decertos ramos do direito.

Veja-se o instituto da novação (Cap. 17, item 2). Trata-sede hipótese de extinção indireta da obrigação, isto é, deextinção derivada de ato jurídico diverso do pagamento(adimplemento). Na novação, a obrigação é extinta porque aspartes concordam em substituí-la por uma nova relaçãoobrigacional, com o objeto ou um dos sujeitos mudado. Norigor das normas do direito das obrigações, a novaçãoextingue o vínculo obrigacional anterior e dá nascimento a

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uma nova obrigação. Deste modo, se à obrigação antigacorrespondia um título com determinada cláusula (favorávelao devedor ou ao credor, é indiferente), e à novacorresponde título sem igual disposição, considera-seaquela não mais vigente. Exemplo: Antonio, mutuário, deveao Banco Brasão S.A., mutuante, e não tem como pagar. Aspartes, porém, renegociam a dívida e declaramexpressamente estar novando a obrigação. Com isto,extingue-se o mútuo anterior e surge um novo. Se noprimeiro havia cláusula favorável ao devedor (prazo decarência para saldar as prestações do mútuo, p. ex.) ou aocredor (certa garantia, como uma fiança, p. ex.) que não serepete no título correspondente ao segundo mútuo, no rigordas normas do direito obrigacional, deve-se considerar que anovação extinguiu a obrigação antiga e a disposição devontade em questão não mais existe, não mais produzefeitos. Quer dizer, Antonio não faz mais jus à carência queconstava apenas do título correspondente ao primeiromútuo, assim como o Banco Brasão S.A. não titulariza mais agarantia fiduciária anteriormente pactuada.

O Judiciário, contudo, muitas vezes deixa de aplicar, comrigor, a disciplina legal da novação e reconhece,principalmente em tutela dos interesses do mais fraco doscontratantes, efeitos a disposições exclusivas da primeiraobrigação e inexistentes na segunda (cf. Martins-Costa,2003:531/533). É este um exemplo de flexibilização das

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normas do direito das obrigações. Em vez de prestigiar oinstituto da novação com atenção ao seu rigor normativo, ojuiz decide em sentido diverso.

No campo específico do direito das obrigações, osinstrumentos tecnológicos de flexibilização têm propostouma nova abordagem sobre o vínculo obrigacional. Umaabordagem que afasta a concepção de obrigação como umvínculo de sujeição do sujeito passivo ao ativo. Operam ostecnólogos adeptos desta nova abordagem com a noção deuma relação de cooperação, a partir da afirmação de que, naobrigação, o direito de uma das partes não se pode realizarsenão mediante a conduta da outra parte. A obrigação évista, neste contexto, como um “processo dinâmico” quebusca o adimplemento. Judith Martins-Costa, entre outroscivilistas, partindo fundamentalmente de contribuições deClóvis do Couto e Silva, é entusiasta de tal abordagem, queleva à construção de um conceito moderno de obrigações ede relação obrigacional. Para ela, o Código Civil de 2002,inclusive, a teria adotado; sustenta esta afirmação não tantono exame dos seus dispositivos — que, no campo do direitodas obrigações, repetem, no geral, a letra do CódigoBeviláqua —, mas no da estrutura do diploma, pautado emprincípios como os da eticidade, da boa-fé, da função socialdos contratos etc. A definição da obrigação como umarelação de cooperação informada pela boa-fé importaria,assim, que as partes deveriam agir pautadas pela lealdade,

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ou seja, cada uma considerando os interesses da outra(2003:1/77; 2000:394/397).

A obrigação tem sido vista, também,não como vínculo de sujeição dodevedor ao credor, mas como umarelação de cooperação. Como oatendimento do direito de uma partedepende da conduta da outra, a inter-relação implicaria a necessidade decada uma delas atentar aos interessesda outra.

Para alguma doutrina, o CódigoReale teria adotado esta concepção daobrigação, em função de seusprincípios básicos (eticidade, boa-fé,

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função social etc.).Esta concepção é importante porque

fornece recursos tecnológicosindispensáveis à flexibilização dasnormas do direito obrigacional.

As novas abordagens da obrigação são importantes àflexibilização das normas do direito obrigacional nasociedade complexa dos nossos tempos. A partir dasconsiderações que tangenciam vagamente o campo da éticae da filosofia, elaboram-se instrumentos tecnológicos quepermitem a atenuação do rigor dos preceitos normativos.Afinal, o atual estágio de evolução da retórica jurídica nãoadmite que o juiz se afaste demasiadamente de sua funçãode aplicador da lei. Afirmar que o próprio Código Civil teriaadotado a teoria da obrigação como relação de cooperaçãosignifica, em última análise, dizer que a lei a aplicar conterianela mesma a alternativa da decisão flexibilizada. Novaçãoextingue a obrigação anterior, mas pode ser que não extinga— no final, a nova abordagem leva à conclusão de que asduas soluções se encontrariam no próprio Código Civil, adespeito da literalidade de suas normas indicar que apenas a

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primeira delas seria a legal. O juiz, ao flexibilizar a disciplinajurídica da novação — reconhecendo efeitos a cláusulas deuma obrigação extinta —, estaria, de algum modo, aplicandoo Código Civil. A abordagem da obrigação como relação decooperação fornece os fundamentos retóricos para quecertas decisões ilegais do juiz assim não pareçam ser.

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Capítulo 14

MODALIDADESDAS

OBRIGAÇÕES1. INTRODUÇÃO

O Código Civil denominou modalidade das obrigaçõeso título em que reuniu a disciplina das categorias referentesa algumas das classificações de maior operacionalidade doinstituto. Sob tal expressão, encontram-se preceitosnormativos atinentes às obrigações de dar (arts. 233 a 246),fazer (arts. 247 a 249) e não fazer (arts. 250 e 251), alternativas(arts. 252 a 256) e divisíveis ou indivisíveis (arts. 257 a 263).

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Nesse mesmo título, acomodaram-se as normas sobresolidariedade (arts. 264 a 285), um dos mais importantestópicos do direito das obrigações.

Modalidade das obrigações, assim, é apenas umadesignação tradicional de valia meramente sistematizadora,empregada pela lei na organização de seus dispositivos.

2. OBRIGAÇÕES DE DARNas obrigações de dar, a prestação devida pelo sujeito

passivo consiste em entregar alguma coisa para o sujeitoativo. A expressão técnica que identifica o ato de entrega é“tradição”. Quando o devedor se obriga a dar uma coisa aocredor, a tradição representa a execução da obrigação. Antesda tradição, a obrigação ainda não se cumpriu; após, estarácumprida.

Segundo o critério da propriedade da coisa objeto daprestação, têm-se três hipóteses a considerar. Na primeira, acoisa pertence ao patrimônio do devedor e, ao ser entregueao credor, passa ao patrimônio deste. Há, neste caso,transferência do domínio sobre a coisa, do sujeito passivopara o ativo. É o caso da obrigação do vendedor, que, aoentregar a coisa vendida ao comprador, transfere-lhe apropriedade. Chama-se esta primeira hipótese de obrigaçãode transferir o domínio ou, mesmo, de dar estrito senso.

A segunda hipótese a considerar é a da coisa quepertence ao patrimônio do sujeito passivo e é entregue ao

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sujeito ativo sem passar ao patrimônio deste. Não se opera,aqui, a transferência do domínio sobre a coisa, que continuapertencendo ao devedor. Transfere-se ao credor, nocumprimento da obrigação, unicamente a posse da coisa,mas não a propriedade. É o exemplo da obrigação do locador(proprietário) de passar às mãos do locatário as chaves doimóvel locado, que significa dar-lher a posse do bem.Chama-se de entregar esta espécie de obrigação de dar(embora, a rigor, o ato da entrega encontre-se também nasdemais espécies).

Finalmente, a terceira situação a se levar em conta é a dacoisa que pertence ao patrimônio do credor e encontrava-sena posse do devedor. Também não se opera, nocumprimento desta obrigação, a transferência do domíniosobre a coisa. O sujeito passivo não era o proprietário dobem entregue ao sujeito ativo; não se torna proprietário, nemo deixa de ser, em razão da execução da obrigação. A coisa,ao contrário, pertencia já ao credor, e continua a pertencer-lhe — nada muda na questão da propriedade do bem objetoda prestação; apenas a posse, que estava sendo exercidapelo devedor, é restituída ao credor. Trata-se, por exemplo,da obrigação do locatário de devolver o imóvel locado aolocador, ao término do vínculo contratual. É chamadaobrigação de restituir (item 2.5).

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As obrigações de dar, segundo apropriedade e a posse da coisa objetode prestação, podem ser classificadasem 3 categorias: a de transmitir odomínio (é a obrigação, p. ex., dovendedor), de entregar (a do locador,no início do contrato de locação) e ade restituir (a do locatário, no fim docontrato).

Esclareço que nas três situações acima descritasmanifestam as obrigações sua patrimonialidade. Na execuçãoda obrigação de transferir o domínio, o bem objeto daprestação deixa o patrimônio do devedor e ingressa no docredor. Não há dificuldade nenhuma em entender estamutação patrimonial. Na execução da obrigação de entregar,o bem objeto da prestação não deixa o patrimônio dodevedor, mas há, mesmo assim, mutações patrimoniais. Odevedor da obrigação de entregar, após cumpri-la, torna-secredor de uma obrigação de restituir. O locador entrega a

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posse do imóvel locado ao locatário, e passa a titularizar odireito de recebê-lo de volta ao término do contrato delocação. Por fim, na execução da obrigação de restituir, ocrédito é substituído pela coisa. Quando o mutuário paga omutuante, no patrimônio deste substitui-se o direitocreditício pelo dinheiro do pagamento.

Segundo o critério da determinação do objeto daprestação, a obrigação é de dar coisa certa ou coisa incerta.É o critério da organização dos dispositivos legais sobre oassunto. No Código Civil, a obrigação de dar coisa certa édisciplinada nos arts. 233 a 242 (itens 2.1 e 2.2); as de darcoisa incerta, nos arts. 243 a 246 (itens 2.3 e 2.4). Normasdiferentes aplicam-se aos sucessos da coisa — isto é, suaperda, deterioração ou melhoramento — não só segundo adeterminação do objeto da obrigação de dar como tambémna hipótese de obrigação de restituir (item 2.5). Por fim, cabedestacar que uma importante espécie de obrigação, apecuniária, não se enquadra coerentemente nos quadrantesdestas modalidades (item 2.6).

2.1. Dar coisa certaNa obrigação de dar coisa certa, o objeto da prestação

do sujeito passivo está individuado desde a suaconstituição. O devedor somente cumpre a obrigação seentregar ao credor exatamente a prestação especificada (oimóvel localizado na rua x, número y; o veículo de placas z; o

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exemplar de um livro autografado pelo autor etc.). Ela difereda obrigação de dar coisa incerta, porque, nesta, aindividuação se verifica apenas na execução. A obrigação dedar coisa certa é sempre determinada, já que a definição doobjeto da prestação não depende de uma declaraçãonegocial definidora no momento da execução (cf. Gil, 1983:107/110).

Dar coisa certa corresponde à prestação de boa partedas obrigações negociais. Nelas, normalmente, os sujeitosde direito têm interesse focado em determinado e específicobem; não lhes interessa outro, ainda que de mesmaqualidade e espécie. Na escritura de compra e venda deimóvel, em geral, o vendedor quer alienar um bemdeterminado de seu patrimônio e o comprador desejaadquirir este mesmo bem, e não outro. Ao assinarem ocontrato de locação de um apartamento, as partes referem-sea um individuado bem, objeto específico do interesse dolocador dar em locação e do locatário em alugar. Quandodeixo meu carro num estacionamento, celebro contrato dedepósito com a empresa prestadora dos serviços de guardade veículos. A obrigação que a depositária tem de merestituir o automóvel, ao término da estada, é de dar coisacerta. Ela não cumprirá a obrigação se me entregar outroveículo, mesmo que seja de marca, modelo e idade iguais.

Quando a prestação é de dar coisa certa, o devedor nãose libera da obrigação entregando ao credor bem diverso do

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especificado, mesmo que, eventualmente, seja mais valiosoou melhor que o individuado na constituição da obrigação.Para que a obrigação de dar coisa certa possa ser cumpridaatravés da entrega de outra coisa, é necessária aconcordância do credor. Nesta hipótese, anuindo o sujeitoativo em receber prestação diversa da devida, executa-se aobrigação mediante dação em pagamento (CC, arts. 356 a359).

A obrigação de dar coisa certa abrange, em princípio, osseus acessórios (CC, art. 233). Recorde-se que os bens,considerados reciprocamente, classificam-se em principais eacessórios (Cap. 9, item 3). Quando têm existência por si,independente de qualquer outro, são principais; não atendo, isto é, existindo necessariamente em razão de outrobem, são acessórios. As árvores do pomar do sítio são bensacessórios do imóvel; este, por sua vez, é um bem principal.Assim se classificam porque, enquanto as árvores nãopodem existir sem o solo em que se enraízam, este podeexistir sem elas. O acessório segue a sorte do principal.Deste modo, quem se obriga a dar o sítio, obriga-se a dartambém as árvores do pomar.

Na obrigação de dar coisa certa, obem objeto de prestação é

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individualizado na constituição. Osujeito passivo assume, perante oativo, a obrigação de entregar umpreciso e especificado bem. Neste tipode obrigação, os acessórios da coisacerta estão, em regra, abrangidos.

Há, porém, duas exceções a examinar. A obrigação dedar o principal não se estende aos acessórios, em primeirolugar, se a vontade dos sujeitos convergir neste sentido. Secredor e devedor da obrigação de dar coisa certa contratamque um ou mais de seus acessórios não se incluem naprestação, o vínculo de dependência entre eles e a coisaprincipal se desfaz. Na venda de ações das sociedadesanônimas às vésperas da distribuição de dividendos anuaiscorrespondentes ao último exercício, não é incomum aspartes definirem que estes serão recebidos pelo vendedor. Odireito aos dividendos é acessório ao direito de titularidadedas ações e apenas não se compreende na obrigação dovendedor de transferir o domínio de coisa certa porqueassim foi contratado com o comprador.

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A outra hipótese em que a obrigação de dar coisa certanão compreende os acessórios está relacionada àscircunstâncias do caso. Em determinadas situações, não hánenhum acordo entre os sujeitos da relação obrigacionalacerca da exclusão dos acessórios da prestação; estes,porém, não se consideram abrangidos na obrigação emvirtude das circunstâncias que a cercam. Se o comprador doimóvel tem a declarada intenção de o demolir, pode-seconsiderar, por esta circunstância, que uma benfeitoriavoluptuária de valor exclusivamente afetivo (isto é, semvalor de revenda na demolição) não integra a prestação. Ovendedor pode levantá-la antes da entrega do imóvel porquea benfeitoria em questão, embora tenha a natureza de bemacessório, reputa-se excluída da obrigação de dar coisa certaem razão daquelas circunstâncias (intenção de demolir evalor meramente afetivo).

2.2. Sucessos da coisa certaEntre a constituição e a execução da obrigação, podem

ocorrer eventos interferentes com a coisa objeto daprestação. Distinguem-se, para disciplinar juridicamenteseus efeitos, três destes eventos: perda, deterioração emelhoramento. Os dois primeiros correspondem a sucessosnegativos e o último, a sucesso positivo. Na perda, a coisa édestruída em tal nível que simplesmente deixa de terqualquer utilidade ou valor para o sujeito ativo. Na

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deterioração, o evento destrói em parte a coisa, que passa ater menos utilidade ou valor para o sujeito ativo. Equivale àperda parcial. No melhoramento, a coisa tem sua utilidade ouvalor aumentado, sob a perspectiva do sujeito passivo.

Quando se trata de obrigação de dar coisa certa, ossucessos podem comprometer, em parte ou totalmente, aprestação. Se o sujeito passivo assumira a obrigação de daruma coisa individuada, em ocorrendo a perda, deterioraçãoou melhoramento desta, ele não a pode substituir por outraunilateralmente. Viu-se, já, que a mudança da prestação, naobrigação de dar coisa certa, depende da anuência do credor(dação em pagamento).

Os sucessos da coisa incerta são disciplinados por lei apartir de duas variáveis: a propriedade da coisa e aresponsabilidade do possuidor. Em termos gerais, vigora aregra de que é o dono quem sofre ou se aproveita dossucessos da coisa, a menos que o outro obrigado tenha sidoo responsável pelo evento. Se a hipótese é, por exemplo, deperda, a coisa perece para o dono (res perit domino), salvose o outro obrigado foi o culpado pelo evento danoso. Se éde deterioração, as consequências da redução do valorsomente não são suportadas pelo dono se o outro sujeito darelação obrigacional culposamente deteriorou a coisa.Ademais, se for o próprio dono da coisa o culpado pelaperda ou deterioração, ele deve indenizar o outro obrigadopelos prejuízos decorrentes de sua conduta. Finalmente, no

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caso de melhoramento, o dono deve ser ressarcido peloaumento de valor da coisa, a menos que a responsabilidadepor este aumento seja do outro obrigado, enquanto exercia aposse sobre ela.

Três são os sucessos que podematingir a coisa certa: perda,deterioração e melhoramento. Oassunto é disciplinado por uma regrageral que combina a propriedade dobem e a responsabilidade do possuidorpelo evento.

Vejam-se as regras específicas de cada hipótese desucesso, anotando-se que, por razões didáticas, tratarei,neste item, somente das obrigações de transferir o domínioe de entregar. Sobre os sucessos da coisa nas obrigaçõesde restituir, tratarei mais à frente (item 2.5)

Perda. Estabelece a lei que, se a coisa certa se perde

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antes da tradição (entrega), sem culpa do devedor, resolve-se a obrigação (CC, art. 234). Que significa resolver aobrigação? Significa repor as partes à condição anterior àconstituição da obrigação. Assim, resolvida uma obrigação,o sujeito passivo fica liberado da prestação (não precisamais entregar aquela coisa certa), mas deve devolver aosujeito ativo os pagamentos que tiver eventualmenterecebido. Imagine que Antonio vendeu seumicrocomputador portátil usado a Benedito. Recebeu, no atoda venda, $ 2.000 como entrada e princípio de pagamento.Considere, porém, que o aparelho, no interregno, foiirremediavelmente danificado por culpa da concessionáriafornecedora de energia elétrica. Neste caso, como visto,resolve-se a obrigação. Antonio devolve os $ 2.000 aBenedito e fica dispensado de entregar-lhe omicrocomputador objeto de contrato. O equipamento, emoutros termos, pereceu para o dono, já que nenhum dosobrigados teve culpa pelo evento danoso.

Quando, porém, o devedor é o culpado pela perda dacoisa certa, prevê a lei sua responsabilidade “peloequivalente e mais perdas e danos” (CC, art. 234, in fine).Isto significa que a obrigação não se resolve, quer dizer, aspartes não retornam à situação patrimonial anterior àconstituição da obrigação; pelo contrário, o devedor devecompensar amplamente o credor pela impossibilidade daprestação. Carlos vendeu, mediante pagamento à vista, seu

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carro usado a Darcy, comprometendo-se a entregá-lo em 24horas. Se, ao se dirigir ao local combinado para a entrega,Carlos negligentemente causa grave acidente de trânsito,provocando o incêndio do carro e sua perda total, ele deveindenizar Darcy por todos prejuízos sofridos. O valor dopagamento deve ser restituído atualizado e acrescido dejuros de mercado e impostos sobre a movimentaçãofinanceira. Se, eventualmente, Darcy sofreu outros prejuízosem razão da imprestabilidade da coisa — por exemplo, teveque gastar com táxi até ser reembolsada e poder adquiriroutro veículo —, terá direito ao ressarcimento também poreles.

A perda da coisa certa sem culpa dodevedor importa a resolução daobrigação. Retornam, emconsequência, as partes à situaçãoanterior à da constituição daobrigação. Quando perde-se a coisapor culpa do devedor, este deve

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indenizar o credor pelos prejuízos.

Deterioração. As regras sobre a deterioração da coisacerta equivalem às estabelecidas para a hipótese de perda.Como a deterioração não é mais que a perda parcial, é justoque as consequências deste sucesso negativo sejamtratadas pela lei de modo similar às da perda. Aespecificidade do regramento sobre a deterioração estárelacionada ao reconhecimento do direito de o credor optarpelo recebimento da coisa, mesmo deteriorada, em função dealguma compensação, caso isto seja de seu interesse.

Se a coisa certa objeto de prestação se deteriora entre aconstituição e a execução da obrigação, e este evento nãodecorre de culpa do devedor, o credor pode optar entre duasalternativas: resolver a obrigação ou aceitar a coisa comabatimento de preço (CC, art. 235). Escolhendo a primeira,retornam as partes à situação patrimonial anterior àconstituição da obrigação. O devedor, neste caso, ficaliberado de fazer a entrega da coisa, mas deve restituir aocredor os pagamentos que este eventualmente tiverrealizado. Escolhida a segunda alternativa, o devedor deveentregar a coisa e suportar o abatimento do preço. Evaristolocou a Fabrício um imóvel mobiliado. Antes, porém, daentrega das chaves, uma inundação de grandes proporçõesdanificou parte da construção e de seu mobiliário. Se para

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Fabrício não interessar mais a locação, a deterioração dobem locado é causa para resolver a obrigação. Desfaz-se,então, o contrato entre eles, retornando cada parte àsituação patrimonial anterior à da constituição da obrigação.Se, no entanto, continuar interessando a locação a Fabrício,terá ele direito à redução do preço do aluguel, proporcional àdeterioração. A escolha é exclusiva de Fabrício, nãodependendo em nada da vontade de Evaristo.

Na hipótese de o credor optar pela aceitação da coisadeteriorada mediante abatimento no preço, podem as parteseventualmente divergir sobre o percentual deste. Atente-se,porém, que não se trata a mensuração do abatimento dematéria negocial. É direito do credor receber a coisadeteriorada com abatimento do preço se assim quiser.Resistindo, porém, o devedor a entregá-la por discordar doabatimento pretendido pelo credor, caberá ao juiz decidir oconflito de interesses. Em outros termos, credor e devedorquantificam diferentemente o mesmo objeto: a redução dovalor da coisa certa em decorrência da deterioração. Na açãojudicial própria, deverá ser feita perícia técnica com oobjetivo de mensurar a redução, decidindo o juiz a respeito.

As mesmas alternativas abrem-se ao credor também nahipótese de a deterioração ter sido causada por culpa dodevedor. Neste caso, porém, ao devedor imputa-se ainda aobrigação de indenizar as perdas e danos sofridos pelocredor. Se, no exemplo anterior, a deterioração do imóvel e

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mobiliário não tivesse decorrido de causa natural, mas deculpa do Evaristo (imagine-se que seu filho, às vésperas dadata programada para entrega do bem ao locatário, promoveuma ruidosa festa no local, em que além de partes da casatambém se estragam vários móveis), Fabrício pode optarpela resolução da obrigação, com desfazimento do contratode locação, ou pela redução do aluguel. Qualquer que seja adecisão de Fabrício, terá ele também direito de serindenizado pelos prejuízos que sofrer. Se, por exemplo, paraa realização de obras e aquisição de novos móveis, Fabrícioprecisou continuar ocupando, por mais alguns meses, outroimóvel de aluguel, o valor deste deve ser reembolsado porEvaristo.

Ocorrendo a deterioração da coisacerta sem culpa do devedor, o credorpode optar por recebê-la deterioradacom redução proporcional de seuvalor ou pela resolução da obrigação.Sendo o devedor o culpado peladeterioração da coisa, deve pagar ao

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credor indenização pelos prejuízos.

Destaque-se, por fim, que, na relação jurídica sujeita aodireito civil, o credor não tem direito de exigir do devedor arecuperação da coisa deteriorada ou mesmo sua substituiçãopor outra similar em boas condições. Suas alternativas sãoapenas as indicadas: ou bem se contenta com a resolução daobrigação e retorno das partes à situação anterior àconstituição da obrigação ou bem se satisfaz com a reduçãoproporcional do valor da coisa deteriorada.

Melhoramento. Se o sucesso entre a constituição e aexecução da obrigação é positivo, a coisa certa se valoriza. Oexemplo clássico é o da venda da vaca que, naquele lapsotemporal, fica prenha. O bezerro em gestação é ummelhoramento, porque aumenta o valor da vaca. Outroexemplo: um dos oitenta autorretratos de Rembrandt, feitoem 1634, foi alterado por um de seus assistentes (ao queconsta, a pedido do próprio mestre, para tentar vender oquadro mais facilmente). O assistente pintou sobre o rostodo famoso pintor flamengo um bigodudo e encabeladonobre russo com um engraçado gorro vermelho. A tela foi,por cerca de três séculos, negociada como sendo da “oficinade Rembrandt”, evidentemente a preços menores do que odas pintadas pelo próprio Rembrandt. Nos anos 1930,descobriu-se o autorretrato sob as camadas de tinta do

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assistente e, nos anos 1980, elas foram removidas. Adescoberta de que a tela tinha sido originariamente pintadapor Rembrandt representou um extraordinário melhoramentona coisa, pois, a partir de então, atingiu preçosconsideravelmente maiores (em 2003, ela foi arrematada numleilão da Sotheby’s por mais de 11 milhões de dólares). Seessa descoberta acontece, imagine-se, entre a constituição ea execução de obrigação de dar que tem a tela por objeto,sucede melhoramento que altera os direitos dos sujeitos nelavinculados.

Nas obrigações de transferir o domínio ou entregar, omelhoramento pertence ao devedor, que é o dono da coisaobjeto da prestação. Diz a lei que ele pode exigir aumento nopreço em contrapartida da valorização da coisa. Caso ocredor da obrigação não concorde com o valor propostopelo devedor, a obrigação poderá ser resolvida por esseúltimo (CC, art. 237). Note-se que, aqui, a disciplina legal éligeiramente diferente da da deterioração. O devedor não temo direito de exigir do credor o valor agregado à coisa pelomelhoramento. Pode, isto sim, estabelecer um novo preço. Seo credor não concordar com o aumento proposto pelodevedor da obrigação, aí sim surgem duas alternativas paraeste último: dar a coisa certa pelo preço anteriormenteacordado (isto é, sem o aumento correspondente aomelhoramento) ou resolver a obrigação, com o retorno daspartes à condição anterior à sua constituição.

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Os frutos percebidos antes da tradição são do devedor;os pendentes, do credor (CC, art. 237, parágrafo único).Recorde-se que os frutos são os acessórios da coisaperiodicamente renovados. Eles podem ser naturais,industriais ou civis, dependendo da origem do ciclo que osrenova. Naturais são os renovados pelo ciclo biológico seminterferência humana; industriais, os renovados por estainterferência. Por sua vez, os frutos civis são os rendimentosgerados pela coisa principal, como o aluguel da casa, osjuros remuneratórios do dinheiro emprestado, os dividendosdo capital investido numa atividade econômica etc. Segundooutro critério, classificam-se os frutos como pendentes,quando estão ligados ao bem principal, e colhidos (naturais)o u percebidos (industriais ou civis), quando separadosdeste.

Se a coisa certa melhora entre aconstituição e a execução daobrigação, o melhoramento pertenceao seu dono, que é o sujeito passivonas obrigações de transmitir o

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domínio ou de entregar. Ele pode,então, propor aumento do preço paradar a coisa. Não sendo este aceito pelosujeito ativo, terá a faculdade deresolver a obrigação.

Por exemplo, se no pomar do sítio que Germano vendeupara Hebe amadureceram frutas entre a constituição e aexecução da obrigação, as colhidas pertencem ao primeiro(devedor da obrigação de transferir o domínio do sítio), masas que não o foram pertencem à segunda (credora).

Res perit domino. Antes de encerrar, cabe uma reflexãoacerca da regra geral sobre o sucesso das coisas certas.Segundo assentado de início, em princípio, os sucessosprejudicam (se negativos) ou beneficiam (se positivos) odono da coisa. Com efeito, em razão de um tradicional valorde justiça, é o titular da propriedade, e não terceiros, quemdeve sofrer as consequências dos sucessos do bemtitularizado. Nas obrigações de transmitir o domínio ou deentregar, o dono da coisa, antes da tradição, é sempre osujeito passivo (devedor). Nelas, portanto, a coisa certasempre perece ou se deteriora para o devedor da obrigação.

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É ele, em outros termos, que deve suportar a perda ouredução do valor; é ele, também, que deve indenizar o credorquando a perda ou deterioração decorrer de sua culpa. Poroutro lado, se a coisa se valoriza, o melhoramento obeneficia, podendo ficar liberado da obrigação anteriormenteassumida se for isto necessário para usufruir integralmente ovalor agregado.

2.3. Dar coisa incertaA obrigação é de dar coisa incerta (também denominada

obrigação genérica) se a individuação do objeto daprestação tem lugar na execução. Ao constituir-se aobrigação, o seu objeto é definido em termos genéricos. Jáhá, assim, demarcação da coisa a ser entregue, embora feitapor parâmetros gerais. O objeto da prestação não édeterminado, mas determinável; isto é, sua definiçãodepende da prática de negócio jurídico no momento daexecução. O sujeito passivo encontra-se, portanto,vinculado ao ativo desde o surgimento da obrigação, tendode entregar-lhe uma coisa definida, mas não aindaindividualizada. A individuação será feita no momento daexecução; precisamente, até um pouco antes da tradição.

Este tipo de obrigação é muito comum, por exemplo, nosnegócios jurídicos sobre produtos agrícolas (commodities).Produtor e comerciante de soja podem contratar, hoje, acompra e venda da próxima safra. Já fica definido que o

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produtor se obriga a entregar determinada quantidade desoja ao comerciante, mas não se podem separar os grãos aserem entregues porque nem sequer foram plantados ecolhidos. Outro exemplo: após receber a soja adquirida, ocomerciante a deposita num armazém. O depositário ficaobrigado a restituir-lhe, assim que solicitado, igualquantidade daquela espécie de soja, mas não exatamente osmesmos grãos depositados. Nos dois casos, a obrigação éde dar coisa incerta, porque a individuação do objeto daprestação se verifica na sua execução (no momento em que oprodutor separa a soja para entregar ao comerciante ou oarmazém para restituí-la ao depositante) e não naconstituição (no da celebração do contrato de compra evenda ou de depósito).

Nas obrigações de dar coisa incerta, a prestação deveestar definida, pelo menos, pelo “gênero e quantidade”. É oque dispõe o art. 243 do Código Civil. Note-se que, porgênero, na interpretação desse dispositivo, entende-se umadesignação da coisa capaz de identificá-la em termos gerais.É conceito próprio do direito. Não emprega a lei, aqui, aexpressão em seu significado técnico de conjunto deespécies com caracteres comuns (cf. Monteiro, 2001:80/81).Basta que seja a expressão capaz de identificar uma coisa emtermos gerais, para que se atenda ao requisito legal. Assim,são exemplos de gêneros, para o fim de identificar coisaincerta, expressões como “algodão em pluma tipo 6”, “milho

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tipo 2”, “café arábica” etc.

Na obrigação de dar coisa incerta, aprestação é definida em termos gerais.Ela é indicada pelo menos por seugênero e quantidade. Sua individuaçãoocorre na execução, ou melhor, poucoantes da tradição.

Por outro lado, se o termo empregado na identificaçãoda coisa é por demais genérico, não está atendido o preceitolegal. Se a obrigação é entregar certa quantidade de cabeçasde bovinos, não se encontra a coisa indicada pelo menospor seu gênero. Isto porque a expressão “bovinos” não ésuficiente para identificar, mesmo em termos gerais, o objetoda prestação. De fato, são várias as raças de bovinos, comsignificativas diferenças entre elas. A definição da coisaincerta, neste caso, deve ser feita por expressões do tipo“bovino raça nelore”, “bovino tabapuã”, “bovino holandêsvermelho e branco” etc.

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Não se admite, também em decorrência do art. 243 doCC, na identificação da coisa incerta, o emprego deexpressões de absoluta generalidade como “animal”,“imóvel” ou “dinheiro”. Nestes casos, a generalidade dotermo indicativo do objeto da prestação é tamanha que sepode considerá-lo indeterminável. A obrigação de dar uma“obra de arte”, por exemplo, não se consegue determinar, emrazão da amplitude semântica do vocábulo, que abarcadiversas modalidades de expressão artística (arte plástica,literária, musical etc.), múltiplos tipos em cada uma(escultura, pintura a óleo, gravura etc.) e, em cada um deles,variados artistas e objetos artísticos, de importância e valorextraordinariamente diferentes. Usar uma tal expressão paraidentificar um gênero de arte corresponde a não identificarnenhum objeto para a prestação. É nulo, recorde-se, onegócio jurídico de objeto indeterminável (CC, art. 166, II): osujeito passivo que se obriga em termos absolutamentegenéricos não está, na verdade, obrigado a nada.

Não se confundem as obrigações de dar coisa incertacom as alternativas. Elas possuem um traço em comum: emambas, a execução depende da concentração, isto é, de umato de escolha (item 2.4). Nas obrigações de dar coisaincerta, porém, a concentração se traduz na escolha dodevedor entre os bens pertencentes ao gênero indicado noobjeto; nas alternativas, traduz-se pela escolha de um entredois ou mais objetos. Nas obrigações de dar coisa incerta,

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por outro lado, o objeto único e definido desde aconstituição é individuado apenas na execução; nasalternativas, há vários objetos definidos, sendo que aentrega de qualquer um deles libera o devedor do vínculoobrigacional. Note-se que é perfeitamente possível umaobrigação alternativa de dar coisa incerta. Um pecuarista quecria gados de raças diferentes pode obrigar-se a venderdeterminada quantidade de bovinos de uma raça ou deoutra. Neste caso, a execução da obrigação depende,inicialmente, da escolha de qual das duas prestações serácumprida (da raça) e, depois, das cabeças de gado que serãoentregues ao sujeito ativo.

2.4. Escolha da prestaçãoTecnicamente, chama-se “concentração” ao processo

de determinação da prestação a ser entregue ao sujeito ativona execução da obrigação. Quando esta se refere a dar coisaincerta, a concentração conduz à individuação do objeto daprestação. É feita sempre por meio de um ato de vontade deuma das partes, a escolha. Concentração e escolha, porém,não são sempre empregadas, na doutrina, como expressõessinônimas. Para alguns autores, nas obrigações alternativas,a concentração pode também ser consequência daimpossibilidade ou inexequibilidade de uma das duasprestações e não da manifestação de vontade do sujeitoativo ou passivo. Não é este, contudo, o melhor modo de

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operar com os conceitos, como se examina mais à frente(item 5.2).

A individuação da prestação, na obrigação de dar coisaincerta, assim, é escolha, por um dos obrigados, do bem oubens particularizados a serem entregues ao credor. Se aescolha couber ao devedor, será dele a individuação doobjeto. Tendo que entregar, por exemplo, 10 toneladas decerto tipo de trigo, ele as separa das centenas que possui emdepósito. Escolhe, em outros termos, o trigo que será dadoao credor.

A concentração, sendo escolha, é negócio jurídicounilateral. Cabe, em princípio, ao devedor realizá-la. Aspartes, porém, podem contratar de modo diverso, atribuindoo direito da escolha ao credor (CC, art. 244). Não é comum,nas obrigações de dar coisa incerta, contratar sobre esseponto, ficando, desse modo, na maior parte das vezes, aconcentração a cargo do devedor. Ele não está obrigado,estabelece a lei, a entregar a melhor das coisas que possui,mas não poderá igualmente prestar a pior delas. A seleçãopelo devedor das coisas a entregar faz-se, assim, pela média.Nada diz a lei a respeito da concentração mediante escolhado credor, devendo-se supor que ele não está obrigado apautar-se pelo padrão médio de qualidade das coisasapresentadas pelo devedor. Quer dizer, contratando aspartes que a individuação da prestação se dará por escolhado credor, este pode não só recusar as piores como

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selecionar para si as melhores das coisas (correspondentesao gênero objeto da prestação) que o devedor oferece(Rodrigues, 2002, 2:30).

A concentração transforma a obrigação de dar coisaincerta em obrigação de dar coisa certa. Se, antes da escolhado bem específico cuja entrega representará a execução daobrigação, as partes haviam definido apenas o gênero e aquantidade, após a escolha, um específico e particularizadobem (ou bens) passa a ser o objeto certo da prestação.Quando a escolha cabe ao credor, sua manifestação devontade selecionando os bens a serem entregues ésuficiente para tornar certa a coisa objeto da obrigação;quando, porém, cabe ao devedor a escolha, a cientificaçãodo credor é que transforma a obrigação de dar coisa incertaem de dar coisa certa (CC, art. 245). A concentraçãomediante escolha do devedor, em suma, é negócio jurídicoreceptício, isto é, só produz efeitos após a cientificação dodestinatário da declaração de vontade.

A concentração é a individuação dobem a ser entregue na execução deobrigação de dar coisa incerta.

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Realiza-se mediante a escolha feitapor um dos sujeitos do vínculoobrigacional; normalmente, o devedor.Quando é este o caso, a cientificaçãoda escolha pelo credor transforma aobrigação de dar coisa incerta emobrigação de dar coisa certa.

A transformação da obrigação de dar coisa incerta emobrigação de dar coisa certa — derivada da concentração oude seu conhecimento pelo credor — é relevantíssima,porque, a partir dela, aplicam-se à prestação os dispositivoslegais pertinentes aos sucessos da coisa certa. Explico.Antes da concentração, não há bens específicos a serementregues ao credor. Se o devedor possui, em seupatrimônio, bens do gênero objeto da obrigação e naquantidade suficiente ao seu cumprimento, e perde algunsdeles ou os vê deteriorados ou melhorados, estes sucessosnão interferem com a obrigação de dar coisa incerta. SeAntonio havia se comprometido a dar a Benedito certonúmero de cabeças de gado nelore, o fato de ter perdido as

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que possuía (em razão de uma peste, diga-se) não faz perecero objeto da obrigação. Continuam a existir bovinos da raçanelore que Antonio pode adquirir no mercado para atender àsua obrigação com Benedito, já que o gênero nunca perece(genus nunquam perit). Da mesma forma, se algumas dascabeças de gado que possui adoece, ele pode cumprir suaobrigação entregando os animais saudáveis. A deterioraçãode alguns bens não implica a do gênero. Igual reflexão podeser feita para a hipótese de melhoramento. Se algumas vacasde seu rebanho ficam prenhas, o melhoramento não é dogênero, e sim de alguns bens a ele correspondentes, e, porisso, não interfere com a execução da obrigação.

Mas se os mesmos sucessos se verificam após aconcentração, aplicam-se os preceitos já examinados para acoisa certa (item 2.2). Se as cabeças de gado a serementregues, no exemplo acima, já haviam sido escolhidas e daescolha tivera ciência Benedito, a obrigação de Antoniopassou a ter coisas certas por prestação. Imagine que osbovinos separados para cumprimento daquele negócioestavam já marcados com o sinal da fazenda de Benedito,não havendo, então, dúvidas quanto à concentração e seuslimites. Desse modo, se bois marcados com o sinal deBenedito morrem, sem culpa de Antonio, a obrigação éresolvida (CC, art. 234); se adoecem, também sem culpa deAntonio, Benedito pode optar entre a resolução daobrigação ou a redução do preço (CC, art. 235); se uma das

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vacas marcadas com o sinal fica prenha, Antonio podepropor novo preço para ela (CC, art. 237) e assim por diante.

Claro que para a incidência das normas sobre coisacerta, quando a escolha cabe ao devedor, é necessário quetenha ocorrido a cientificação do credor. Isto é, somenteapós o credor ter conhecimento de quais bens foramseparados para atendê-lo é que a obrigação deixa de ter porobjeto coisa incerta. O devedor, assim, não se libera daobrigação de dar coisa incerta alegando que já tinhaescolhido os bens a serem entregues e estes se perderamsem sua culpa, se o credor não havia tido ainda ciênciainequívoca dos bens selecionados pela escolha.

2.5. Obrigação de restituirNa obrigação de restituir, a coisa objeto da prestação

não pertence ao sujeito passivo, mas ao ativo. Encontra-sena posse do devedor temporariamente, e deve, numdeterminado momento, ser devolvida ao credor. Sãoobrigações negociais que se encontram, basicamente, nalocação, depósito, comodato e outorga de garantiapignoratícia. Na locação, o bem locado pertence ao locador eestá na posse do locatário; este último tem a obrigação derestituí-lo ao término do contrato. No depósito, a coisadepositada é da propriedade do depositante e está confiadaaos cuidados do depositário. Tão logo reclamada peloprimeiro, deve o último prontamente restituí-la. No

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comodato, o bem infungível emprestado pelo comodante aocomodatário deve ser restituído, por este àquele, ao términodo prazo contratado ou legalmente presumido. Na outorgade garantia pignoratícia, o outorgado (normalmente,mutuante) recebe em penhor um bem do patrimônio dooutorgante (mutuário). Fica na posse desse bem até sersatisfeito o crédito — é esta sua garantia. Quando cumpridaa obrigação garantida (mútuo), o outorgado é devedor daobrigação de restituir o bem empenhado.

Na maioria das vezes, a obrigação de restituir tem porobjeto coisa certa. O locatário de um apartamento, finda arelação locatícia, deve restituir ao locador exatamente oimóvel locado e não outro semelhante. O comodatário tem aobrigação de restituir ao comodante o bem recebido emcomodato, e não outro, ainda que mais valioso. Também ocredor pignoratício (que é o devedor da obrigação derestituir) deve dar de volta ao devedor (credor da obrigaçãode restituir) precisamente o bem empenhado.

Há, contudo, certos contratos em que a obrigação derestituir pode ter por objeto coisa certa ou incerta. É o casodo depósito. Quando o consumidor entrega ao manobristado estacionamento o seu veículo, está celebrando umcontrato de depósito (chamado regular). O estacionamentodepositário tem obrigação de restituir uma coisa certa. Já noexemplo mencionado anteriormente (item 2.3), o armazém querecebeu em depósito a soja do comerciante pode guardá-la

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junto com os demais produtos da mesma espécie que tiverdepositados. Ao restituí-la, tem a obrigação de entregar aodepositante soja em igual quantidade e da mesma espécie,mas não necessariamente os exatos grãos que haviarecebido para armazenar (depósito irregular).

Quando a obrigação de restituir tem por objeto coisacerta, os sucessos que a afetam estão disciplinados de formaespecífica. Não se aplicam, neste caso, os preceitosexaminados nas hipóteses de obrigação de transferir odomínio ou de entregar (item 2.2), porque há uma substancialdiferença a ser levada em conta. Como visto, a regrafundamental sobre os sucessos da coisa certa diz que oproprietário sofre os efeitos negativos e beneficia-se dospositivos, a menos que o outro obrigado tenha sido oresponsável pelo evento. Esta regra, porém, não se aplica atodos os tipos de obrigação de dar. Como na obrigação derestituir o devedor não é o proprietário da coisa objeto deprestação, a disciplina dos sucessos desta não pode serigual à estabelecida para as demais hipóteses de obrigaçãode dar coisa certa (transferir o domínio e entregar), em que éele o proprietário do bem até a tradição.

Na obrigação de restituir o sujeitopassivo é mero possuidor da coisa

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objeto da prestação, e não o seuproprietário. São exemplos deste tipode obrigação a do locatário (aotérmino do contrato de locação),comodatário (quando decorrido oprazo contratual ou legalmentepresumido), depositário (quandoreclamada a coisa pelo depositante) etitular de garantia pignoratícia (apósa satisfação de seu crédito).

Examinem-se os três casos de sucessos em separado.Perda. Se a coisa objeto da obrigação de restituir perde-

se antes da tradição sem culpa do devedor (possuidor),quem sofre as consequências da perda é o credor(proprietário). Como, em regra, a coisa perece para o dono, ocredor da obrigação de restituir é o sujeito que suporta osefeitos da perda. Além disso, preceitua a lei que a obrigaçãose resolve, retornando as partes à condição anterior à sua

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constituição (CC, art. 238). Assim, se o automóvel dado emcomodato perde-se num acidente de trânsito sem culpa docomodatário (devedor da obrigação de restituir), fica eleliberado da obrigação de devolvê-lo ao comodante (credorda obrigação), que sofre inteiramente as consequências doincêndio. Ressalva a lei os direitos do credor até o dia daperda; significa dizer que, no exemplo, o comodatário é odevedor das despesas de manutenção do automóvel até adata do incêndio, mesmo se o vencimento da obrigação depagá-las recaia em dia posterior.

Caso o devedor tenha sido o culpado pela perda dacoisa objeto da obrigação de restituir, terá responsabilidadepor indenizar integralmente o credor (“pelo equivalente, maisperdas e danos” — art. 239 do CC). Neste caso, a coisa nãoperece para o dono, porque o outro sujeito obrigado é oculpado pela perda. Se o locatário do equipamentoindustrial, ou um empregado dele, foi o causador do danoque o destruiu por completo, o locador tem direito aoressarcimento total do prejuízo. Isto é, o locatário deve pagarao locador o valor do bem perdido e mais a indenizaçãopelas perdas e danos decorrentes (medidos, p. ex., pelo valordo aluguel até a conclusão das obras de reconstrução).

Deterioração. Se a coisa a ser restituída se deteriorasem culpa do devedor (possuidor), o credor (proprietário)deve recebê-la “tal qual se ache, sem direito a indenização”(CC, art. 240). O mutuante com garantia pignoratícia não é

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responsável, assim, pelo desgaste natural da coisaempenhada. Quem o suporta é o mutuário, seu dono. Se ocredor da obrigação de restituir havia dado em penhor umrelógio de ouro movido à corda, e, ao resgatá-lo, ele nãofunciona mais como antes (o tempo deteriora naturalmentequalquer instrumento mecânico), não tem o devedor destaobrigação nenhuma responsabilidade pelo sucessonegativo.

Quando, porém, a deterioração da coisa objeto daobrigação de restituir dá-se por culpa do devedor, o credortem direito à indenização pelas perdas e danos. Assim, casoo credor pignoratício (devedor da obrigação de restituir) doexemplo anterior houvesse guardado o relógioinadequadamente e seu mecanismo se estragasse em razãode excessiva umidade, o dono (credor da obrigação derestituir) teria direito à indenização.

Melhoramento. No caso de sucesso positivo, se odevedor da obrigação de restituir não contribuiu para oevento, os benefícios serão usufruídos exclusivamente pelocredor, pois é ele o dono da coisa (CC, art. 241). Considereque, durante o prazo de vigência do arrendamento, o imóvelrural valorizou em razão da construção de uma autoestradanas vizinhanças. Este melhoramento não derivou de nenhumato do possuidor e, por isso, deve ser integralmenteincorporado ao patrimônio do proprietário. O devedor daobrigação de restituir não participará do sucesso positivo.

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Na hipótese de o melhoramento decorrer de trabalho ouinvestimento (“dispêndio”, na letra da lei) do devedor daobrigação de restituir, regula-se a matéria pelas normasatinentes às benfeitorias realizadas pelo possuidor de boa-féou má-fé (CC, art. 242). Para compreendê-las, devem serrecuperados os conceitos de benfeitorias voluptuárias, úteisou necessárias (CC, art. 96). Voluptuárias são asbenfeitorias fúteis, isto é, que não aumentam o uso do bem.Têm natureza de mero deleite ou recreio. Elas podem sercustosas ou não, agregar valor à coisa ou apenas torná-lamais agradável. Num veículo, a pintura especial que apenaso embeleza é benfeitoria voluptuária, por exemplo. São úteisas que ampliam ou facilitam o uso do bem. É o caso dainstalação de um bom equipamento de som no veículo. Porfim, as benfeitorias necessárias são as introduzidas visandoà conservação da coisa. A substituição dos amortecedoresdepois de alguns anos de uso do veículo é exemplo destetipo de benfeitoria.

Assim, se o devedor da obrigação de restituir estava deboa-fé e introduziu benfeitorias na coisa a ser restituída, terádireito de ser indenizado pelas úteis e necessárias, sobre asquais pode exercer o direito de retenção. Poderá, também, senão for pago pelas voluptuárias, levantá-las desde que semdetrimento da coisa (CC, art. 1.219). Desse modo, se olocatário tiver introduzido, no imóvel locado, uma benfeitoriavoluptuária removível sem detrimento da coisa (implantou

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esculturas no jardim), poderá levantá-las. Se, além disso,agregou-lhe benfeitorias úteis (ampliou a construção) ounecessárias (modernizou a rede elétrica), ao restituí-lo aotérmino do contrato, terá direito de retenção e indenizaçãopor elas, desde que nada tenha sido contratado com olocador a respeito (Deve-se anotar que o exemplo é raro, jáque, normalmente, os contratos de locação estabelecem “aincorporação definitiva ao imóvel das benfeitoriasintroduzidas pelo locatário, sem indenização”, devendo serrespeitada a vontade das partes nesse caso).

Já se o devedor estava de má-fé não tem qualquerdireito sobre as benfeitorias úteis e voluptuárias; ele seráressarcido somente pelas necessárias, mas sem direito deretê-las (CC, art. 1.220). De má-fé está o locatário que nãodesocupa o imóvel locado no prazo assinalado no contrato,permanecendo na posse do bem que deveria restituir. Nestecaso, ultrapassado o termo contratual sem o cumprimento daobrigação de restituir, o locatário perde o direito de retençãodas benfeitorias úteis ou necessárias e o de levantar asvoluptuárias. Poderá apenas pleitear a indenização pelasbenfeitorias necessárias que teve que providenciar para aconservação do bem.

Estas são as normas próprias sobre os sucessos dacoisa certa nas obrigações de restituir. Mas, como afirmadoanteriormente, elas podem ter também por objeto coisaincerta, como no caso do depósito irregular. Não há regras

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próprias para esta hipótese. Quer dizer, independentementedo tipo de obrigação de dar (transmitir o domínio, entregarou restituir), sendo o objeto da prestação uma coisa incerta,antes da concentração, os sucessos desta não interferemcom o devido pelo sujeito passivo; e, após a concentração,aplicam-se as regras pertinentes à restituição de coisa certa.

2.6. Obrigações pecuniáriasAs obrigações pecuniárias são as que se cumprem

mediante a entrega de dinheiro ao credor. Note-se que porser o dinheiro bem fungível por excelência, estacircunstância, de início, sugere que a obrigação pecuniáriaseria essencialmente de dar coisa incerta. A individuação doobjeto da prestação ocorreria, por assim dizer, no momentoem que o devedor separasse determinadas cédulas(identificadas pela respectiva numeração) e as entregasse aocredor. Este, porém, não é o modo correto de entender aquestão, até mesmo porque dinheiro e papel-moeda não sãoa mesma coisa. Se o devedor pagar o credor com chequeliquidado por depósito em conta bancária ou por meio deTransferência Eletrônica de Disponibilidade (TED), porexemplo, a prestação continua ainda sendo pecuniária, masnão terá seu objeto individualizável pelo número denenhuma cédula.

Costumam as obrigações pecuniárias ser estudadasentre as obrigações de dar coisa certa (cf., por todos,

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Monteiro, 2001:72/77). Mas nem sempre no momento daconstituição da obrigação pecuniária é possível desde logoquantificar sua extensão. O culpado pelo acidente detrânsito, por exemplo, é devedor da indenização desde oevento danoso. Não há, porém, como precisar quanto deve àvítima, senão após a devida apuração das perdas e danosinfligidos. Por outro lado, não se sujeitam a perda,deterioração ou melhoramento do dinheiro às regras sobreos sucessos da coisa certa. Se o mutuário perder sem culpao dinheiro que deve ao mutuante — se for roubado, porexemplo —, este fato não resolve a obrigação; ele continuadevedor. Se a inflação deteriora o dinheiro, por reduzir seupoder de compra, isto não permite ao credor optar pelaresolução da obrigação.

A rigor, a classificação da obrigação de dar segundo adeterminação de seu objeto (dar coisa certa ou incerta) nãose aplica adequadamente às obrigações pecuniárias. Estasse dividem, mais apropriadamente, em líquidas ou ilíquidas.No primeiro caso, a extensão da obrigação está quantificadaem reais; no segundo, embora a obrigação já exista, suaquantificação ainda depende de cálculos, investigações,estimativas ou avaliações. Os contratantes podem, assim,desde logo, estabelecer o valor da obrigação do devedor emdeterminada quantidade de reais, tornando líquida aobrigação contratual, ou limitar-se a contratar os critérios daquantificação, assumindo o devedor, neste caso, uma

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obrigação ilíquida. Os sócios que se retiram da sociedadecom direito ao reembolso têm, perante esta, um crédito devalor ilíquido enquanto não levantado o balanço patrimonial.A obrigação de a sociedade reembolsá-los existe desde oexercício do direito de retirada, e esta obrigação éinegavelmente pecuniária; não se sabe, porém, seu valor.

As obrigações pecuniárias têm porobjeto a entrega de dinheiro ao sujeitoativo. Não são adequadamenteclassificáveis em obrigações de darcoisa certa ou incerta. A melhorclassificação divide-as em obrigaçõeslíquidas (quantificadas) ou ilíquidas(não quantificadas).

Note, a propósito, que a dificuldade de se enquadraremnesta classificação (dar coisa certa ou incerta) as obrigaçõesnão negociais deriva do fato de serem estas essencialmente

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pecuniárias.

3. OBRIGAÇÕES DE FAZERO objeto da prestação das obrigações de fazer não é

uma coisa, mas um comportamento do sujeito passivo. Nestetipo de vínculo obrigacional — que é quase semprenegocial, já que as obrigações não negociais(responsabilidade civil, prestação de alimentos, obrigaçõestributárias etc.) são normalmente pecuniárias —, o interessedo sujeito ativo é o de contratar com o passivo a adoção,por este, de uma determinada conduta.

A conduta objeto da obrigação de fazer pode ser aprestação de serviços ou a prática de ato ou negóciojurídico. No primeiro caso, o sujeito passivo obriga-se adisponibilizar uma utilidade ou comodidade ao ativo. Sãoexemplos desta categoria as obrigações assumidas pelosprofissionais liberais (advogado, médico, dentista, arquiteto,engenheiro etc.), pelas empresas prestadoras de serviço(hospital, seguradoras, bancos, hotel, empresários doentretenimento etc.) e por alguns trabalhadores autônomos(empreiteiro, pintor, eletricista, encanador, técnico emeletrodomésticos etc.). Já no caso das obrigações de fazermediante a prática de ato ou negócio jurídico, a conduta aque se obriga o sujeito passivo é, em geral, concentrada,exaure-se numa ação somente e produz resultado imediato.São exemplos desta categoria de obrigação de fazer o

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declarar duma vontade (acionista compromete-se a votarnuma determinada pessoa para presidente da companhia), ocomparecer a um local e agir duma certa maneira (cantorobriga-se a dar um espetáculo) e o executar de uma obraúnica (pintor obriga-se a retratar o contratante).

3.1. Caracterização da obrigação de fazerNa obrigação de fazer, a ênfase repousa sobre a conduta

do sujeito passivo. Se a obrigação por ele contraída consisteem comportar-se de uma determinada maneira, apta aproduzir um resultado útil ao interesse do sujeito ativo,caracteriza-se esta modalidade obrigacional. Quando aênfase repousa sobre a coisa, no sentido de ser esta o alvodo interesse do sujeito ativo, ainda que sua entregapressuponha necessariamente uma ação do devedor, não secaracteriza a obrigação como de fazer.

Por vezes, não é fácil definir com precisão sedeterminada obrigação é de fazer ou de dar. Isto por trêsrazões. Em primeiro lugar, porque há obrigações que podemser igualmente descritas como de uma ou de outra espécie.As atividades do estacionamento ou do transportador decarga, por exemplo, são referidas, na legislação tributária,como prestação de serviços. De fato, eles se dispõem a fazeralgo útil ao sujeito ativo (guardar o veículo e transportarmercadorias), assumindo, desse modo, obrigações de fazer.Mas estas mesmas obrigações podem ser também descritas

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como de dar. O estacionamento, viu-se, é depositário doveículo e está obrigado a restituí-lo assim que solicitadopelo depositante. Da mesma forma, o transportador demercadorias deve restituí-las, no local de destino, aocontratante ou terceiro por ele designado.

Outro exemplo dessa primeira dificuldade está naobrigação do vendedor. Define a lei que ele é obrigado atransferir o domínio da coisa vendida ao comprador (CC, art.481). Esta obrigação pode ser perfeitamente descrita tantopelo ângulo das obrigações de dar como pelo das de fazer.Confira-se. Quando a coisa objeto de compra e venda é umimóvel, a transferência do domínio se faz, em regra, mediantea outorga de escritura pública, que é o título hábil ao registroda alteração da propriedade no Cartório de Imóveis. Estaoutorga é uma declaração de vontade do vendedor expressaperante o Tabelião. Ir ao cartório e assinar a escritura sãoações do sujeito passivo e podem, por isso, ser referidascomo obrigação de fazer. Por outro lado, é por essas açõesque o vendedor dá ao comprador a coisa objeto do contrato.Mesmo se o objeto da compra e venda é bem móvel, a açãodo vendedor de entregá-lo ao comprador pode ser descritatanto como uma obrigação de fazer como de dar.

Esta primeira dificuldade é, a rigor, aparente. Para fins desolucionar eventuais conflitos de interesse, é irrelevante amodalidade de obrigação escolhida como referência. Otransportador que perde a mercadoria transportada deverá

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indenizar o contratante, independentemente de ser suaobrigação qualificada como desta ou daquela modalidade. Ovendedor da casa que se recusa a outorgar a escriturapública ao comprador, mesmo após ter recebido opagamento integral do preço, pode ser constrangido, emjuízo, ao cumprimento da obrigação, seja esta referida comode dar ou de fazer.

A segunda hipótese de dificuldade na classificação decerta obrigação como de fazer ou de dar encontra-se noscasos de interdependência. Em certas ocasiões, umaobrigação de fazer não pode ser prestada sem aconcomitante execução de uma obrigação de dar, e vice-versa. A interdependência impede a clara distinção entreelas. Não há dúvidas, por exemplo, de que a obrigação docirurgião plástico de realizar uma cirurgia de embelezamentono paciente é de fazer. Mas a do cardiologista de implantarum marca-passo não se consegue definir com tantafacilidade. O paciente que contrata a cirurgia de implantaçãoé sujeito ativo de simultâneas obrigações de dar (entrega doequipamento a ser implantado) e de fazer (a intervençãocirúrgica, propriamente dita); uma não tem sentido sem aoutra, são completamente interdependentes. O marca-passonão implantado no coração do paciente de nada serve paraele, assim como a realização do ato cirúrgico sem esseequipamento é despropositado.

Pode-se resolver a segunda dificuldade pelo critério do

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interesse do sujeito ativo. Quando o credor estiverinteressado mais na coisa que na pessoa que irá prestar oserviço dependente, será uma obrigação de dar; na situaçãoinversa, de fazer. Assim, se o cardiopata é operado pelo SUS(Sistema Único de Saúde), o que mais lhe importa é aqualidade da coisa, até mesmo porque não pode escolher oprofissional que o irá atender. Seria, então, credor de umaobrigação de dar. Se, no entanto, é operado por seu médicoparticular, são as habilidades deste e a confiança neledepositada os fatores de maior interesse e não tanto aqualidade do marca-passo. Pelo critério do interesse docredor, seria ele sujeito ativo, aqui, de uma obrigação defazer.

A segunda dificuldade é também aparente. Ainterdependência das obrigações não impede responsabilizaro fornecedor da coisa em separado do médico prestador doserviço. O primeiro responde pela obrigação de dar e oúltimo, pela de fazer. Sendo, por exemplo, defeituoso omarca-passo, quem o fabrica, importa ou comercializa tem aresponsabilidade do sujeito passivo numa obrigação de dar.Ao médico não pode ser, neste caso, imputada nenhumaculpa pelo mal funcionamento do equipamento. Por outrolado, tendo sido o marca-passo indevidamente implantado, aresponsabilidade é apenas do médico que tinha a obrigaçãode fazer.

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Há três dificuldades na distinçãoentre obrigações de dar e de fazer.Primeira: muitas obrigações podemser igualmente descritas como de umaou outra natureza (dizer que “ovendedor dá a coisa ao comprador”equivale a “o vendedor faz atransferência do domínio da coisa aocomprador”). Segunda: algumasobrigações de fazer sãointerdependentes com algumas de dar(na cirurgia de implantação de marca-passo, não há como dissociar umaobrigação da outra). Terceira: todaação de dar envolve um fazer.

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A terceira razão para a dificuldade apontada reside naconstatação de que dar é uma ação do devedor; portanto,uma conduta, ou seja, um fazer. Em termos estritamentelógicos, toda obrigação de dar seria uma espécie deobrigação de fazer. Esta dificuldade, na verdade, decorre dainconsistência lógica da classificação criada pela tecnologiajurídica. Tentar resolver a dificuldade no plano da lógica, porisso, é impossível. Deve-se contorná-la tecnologicamente,isto é, por meio de argumentos juridicamente operacionais.Neste contexto, a doutrina desenvolveu um critério,amplamente aceito, que consiste em verificar se háprecedência da obrigação de fazer (Monteiro, 2001:98). Se osujeito passivo fez a coisa para dar ao ativo, então aobrigação é de fazer; se não a fez, mas a adquiriu feita, é dedar a obrigação. Por este critério, quando o galeristaencomenda ao famoso pintor uma tela, a obrigação do artistaé de fazer; quando vende esta tela ao investidor, o galeristaassume a obrigação de dar.

3.2. Espécies de obrigação de fazerEm razão da ênfase depositada no comportamento do

devedor, as obrigações de fazer classificam-se em fungíveisou infungíveis. As primeiras são aquelas cuja ação objeto deprestação pode ser praticada por qualquer pessoa com

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idênticas habilidades das do devedor. Em outros termos,nelas, a conduta do sujeito passivo pode ser substituída,sem prejuízo nenhum para a realização das finalidades daobrigação, pela de outra pessoa. A obrigação de umcontador proceder à escrituração de uma empresa é de fazerfungível. Se o profissional contratado para realizar a escritanão cumpre sua obrigação, qualquer outro contador podefazê-lo.

Infungíveis, por sua vez, são as obrigações de fazer queapenas o devedor está em condições de prestar. Neste caso,o vínculo obrigacional tem natureza intuitu personae,porque estabelecido exclusivamente em razão dos atributosindividuais e especiais ostentados pelo sujeito passivo. Ofamoso cantor lírico contratado para representardeterminado papel numa ópera não pode ser substituído poroutro qualquer se a propaganda do espetáculo, por exemplo,deu grande destaque à sua presença no palco. O renomadopintor contratado para executar uma tela não é substituívelpor outro, ainda que igualmente afamado e habilidoso.Quando o paciente que necessita de uma cirurgia contrataconhecidíssimo médico para entregar-se às suas mãos,assume este profissional uma obrigação de fazer infungível;não poderá substituir-se por um colega.

As obrigações infungíveis subdividem-se, por sua vez,em dois tipos. De um lado, as juridicamente infungíveis, emque a prestação devida pelo sujeito passivo consiste em

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expedir uma determinada declaração de vontade. É o caso daobrigação do vendedor do imóvel que deve outorgarescritura pública para transmitir o domínio do bem aocomprador, ou da do acionista que se comprometeu a votarnum determinado sentido na assembleia geral da sociedadeanônima, ou ainda do pré-contratante que se obrigara acelebrar o contrato. De outro lado, as materialmenteinfungíveis, em que o devedor se obriga a executar algo(prestar um serviço ou praticar um ato) que ninguém maispode fazer no lugar dele. São as obrigações encontradas nosexemplos anteriormente indicados do cantor lírico, pintor ecirurgião.

A infungibilidade material da obrigação de fazer decorreda especialidade, capacidade ou fama do sujeito passivo. Emoutras palavras, quem é ou não substituível, nestasubespécie de obrigação de fazer, é exclusivamente a pessoado devedor, e não a prestação. Não basta que a mesmaconduta possa, em tese, ser desempenhada por qualquerpessoa com iguais aptidões ou capacitação profissional paratornar-se fungível a obrigação de fazer. Pelo contrário, serámaterialmente infungível a obrigação se o devedorcontratado for de tal forma especial — por sua capacidadeintelectual, expertise, fama ou qualquer outro atributoexclusivo — que não tem nenhum interesse o credor nosresultados da mesmíssima ação dele esperada, casopraticada por qualquer outra pessoa. Se preciso de uma

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mesa para a sala de jantar e a encomendo de um famosodesigner, surge uma obrigação de fazer materialmenteinfungível. Veja que rigorosamente o mesmo resultado —uma mesa de sala de jantar — eu poderia obter pelo trabalhode qualquer marceneiro, mas não me interessam o móvelapenas e suas utilidades, mas especificamente o objetoprojetado e assinado pelo designer que contratei.

As obrigações de fazer classificam-seem infungíveis (o sujeito passivo éinsubstituível) ou fungíveis (ele podeser substituído). Aquelas, por sua vez,subdividem-se em juridicamenteinfungíveis (declaração de vontade) oumaterialmente infungíveis (as demais).

A importância da classificação das obrigações nestasespécies e subespécies está ligada à sua execução judicial.Varia a forma pela qual o credor pode obter em juízo a

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satisfação de seu direito, segundo a natureza da obrigaçãode fazer.

3.3. Execução da obrigação de fazerA execução da obrigação é judicial quando o sujeito

passivo não a executa voluntariamente (Cap. 13, item 2). Emcasos tais, o credor aciona a máquina judiciária com oobjetivo de obter, mediante a atuação do Estado, o resultadoigual ao que adviria da execução voluntária da obrigação.Sendo pecuniária a obrigação inadimplida, bens dopatrimônio do devedor são penhorados e vendidos paraque, com o dinheiro apurado na venda, se satisfaça o créditodo sujeito ativo. Aqui, a execução judicial garante ao credoro mesmo resultado que decorreria do seu cumprimentoespontâneo.

Nem sempre, porém, é jurídica ou materialmente possívelobter, na execução judicial de obrigação de fazer, umresultado idêntico ao da voluntária. Em razão de um valorjurídico e moral aceito pelas sociedades democráticas donosso tempo, não é admissível infligir ao devedor qualquersorte de constrangimento físico e pessoal capaz de levá-lo afazer o que ele não quer (nemo ad factum praecise cogipotest). Não comporta o Direito contemporâneominimamente soluções que forcem manu militari o devedora fazer, contra a sua vontade presente, aquilo a que seobrigara anteriormente.

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Na ordem constitucional brasileira, há apenas duashipóteses de obrigações civis cujo cumprimento pode serforçado por medidas de constrangimento físico do devedor.Trata-se da prisão por dívida, cabível apenas para forçar opagamento de obrigação alimentícia ou a restituição de coisadepositada (CF, art. 5º, LXVII). Mesmo assim, uma veztranscorrido o prazo máximo da lei, o sujeito passivo dessasobrigações é posto em liberdade e nenhum outroconstrangimento físico se lhe pode infligir, caso permaneçarecusando-se a executá-las voluntariamente. É, assim, umagarantia constitucional dos devedores das obrigações defazer, em geral, a de não serem forçados física epessoalmente a cumpri-las.

Neste contexto, a lei não poderia deixar de fixar, comoregra, a solução das obrigações materialmente infungíveis defazer em perdas e danos. Quer dizer, não fazendo o devedorinsubstituível o que prometera, o credor terá, em princípio,direito apenas de ser indenizado pelo descumprimento daobrigação. É o que estabelece o art. 247 do Código Civil:“incorre na obrigação de indenizar perdas e danos o devedorque recusar a prestação a ele só imposta, ou só por eleexequível”. Se o famoso pintor contratado para pintar umatela se recusa a fazê-la, não há ordem judicial capaz de movê-lo no sentido de executá-la. Caberá apenas ao contratanteexigir a devolução de eventuais valores antecipados e aindenização pelos danos materiais (se houver) e morais.

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Também só pode ser resolvida em perdas e danos aobrigação de fazer do cantor lírico, do renomado cirurgião oude qualquer outro sujeito passivo insubstituível.

O descumprimento das obrigações defazer em que o sujeito ativo éinsubstituível e obrigou-se por açãodiferente de declarar a vontade (isto é,as materialmente infungíveis) implicaunicamente o dever de indenizar asperdas e danos. Não há, no atualestágio de evolução do Direito, meiospara forçar o sujeito passivo a fazer oque ele não quer mais.

Além da hipótese de recusa, prevê a lei também a daimpossibilidade da prestação na obrigação materialmente

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infungível de fazer. Agora, o devedor não se nega a fazer oque se obrigara, mas está impossibilitado. A prestação nãopoderá mais se verificar, no tempo e lugar avençados, emrazão de obstáculo intransponível que impede o sujeitopassivo de comportar-se como havia se comprometido.Imagine que o pintor do exemplo anterior sofra um acidentevascular e perca a capacidade motora indispensável àexecução da tela. Pense no cantor lírico que não pôdeapresentar-se no teatro por ter sido acometido de umafortíssima gripe, de que derivou séria rouquidão. Considere ahipótese de o médico cirurgião abater-se por stress que oafasta do trabalho por alguns meses. Nestes casos, não hárecusa, mas impossibilidade de praticar o ato objeto deobrigação.

As consequências da impossibilidade de prestação daobrigação de fazer variam segundo exista ou não culpa dodevedor. Se ele não foi o culpado pelo obstáculo, aobrigação se resolve, retornando as partes à situaçãopatrimonial anterior à sua constituição (CC, art. 248). Noexemplo acima, o pintor perdeu sua capacidade motora emrazão de acidente vascular. Não pode, portanto, ser culpadopela impossibilidade de execução da obrigação. Deverestituir ao contratante os valores eventualmente recebidose está liberado de fazer o que havia prometido. Se, por outrolado, o sujeito passivo é culpado pela impossibilidade daprestação, equipara a lei esta situação à da recusa. Ele

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deverá indenizar as perdas e danos sofridos pelo sujeitoativo (CC, art. 248, in fine). Desse modo, se ficarcomprovado que o cantor lírico não se preservouconvenientemente da gripe e rouquidão, expondo-se a elasde modo imprudente, o empresário que promove aapresentação da ópera pode exigir a indenização pelosprejuízos que sofrer em razão da ausência do artista.

Se a obrigação de fazermaterialmente infungível tornou-seimpossível, o sujeito passivo nãoestará obrigado a indenizar o ativo senão foi dele a culpa pela perda doobjeto. Se foi dele a culpa, porém, estáobrigado ao pagamento de perdas edanos.

Se a obrigação de fazer é juridicamente infungível, adeclaração de vontade do sujeito passivo pode ser

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substituída por uma decisão judicial (CPC, art. 641). Se ovendedor do imóvel não outorga a escritura pública, ele estádescumprindo a obrigação de transferir o domínio do bemvendido. Esta obrigação, já se viu, pode ser indistintamentedescrita como de dar (item 2) ou de fazer (item 3.1). Descritacomo uma obrigação de fazer, classifica-se entre asjuridicamente infungíveis porque sua execução se faz pelaemissão de certa declaração de vontade perante o Tabelião.Nas obrigações desta subespécie, o juiz pode, julgandoprocedente a ação intentada pelo comprador, proferirsentença que produza os mesmos efeitos da declaraçãorecusada.

A obrigação de fazer juridicamenteinfungível comporta execuçãoespecífica. A declaração de vontade aque se obrigara o sujeito passivo ésubstituída por uma decisão judicialque produz os mesmos efeitos.

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Enfim, quando se trata de inadimplemento de obrigaçãode fazer fungível, a lei faculta ao sujeito ativo sua realizaçãopor terceiro, à custa do sujeito passivo e sem prejuízo daindenização (CC, art. 249). Se a obrigação não é intuitupersonae, quer dizer, se não é insubstituível o devedor,qualquer pessoa com as mesmas habilidades ou capacitaçãoprofissional pode executá-la. O preço dos serviços doterceiro contratado para executar a obrigação de fazerinadimplida deverá ser ressarcido pelo devedor. Também édevida a indenização por perdas e danos derivados dodescumprimento da obrigação. Para exercer esse direito,porém, o credor da obrigação de fazer fungível deve estarespecificamente autorizado por ordem judicial (CPC, art. 634).Assim, se Antonio se obrigara a pintar a casa de Benedito,mas não executa o serviço, este último pode requerer ao juizque o autorize a contratar a mesma pintura de Carlos.Deferido seu pedido, os valores que despenderremunerando Carlos, Benedito poderá cobrá-los deAntonio.

A autorização judicial para mandar executar a obrigaçãofungível de fazer por terceiro, à custa do devedorinadimplente, é dispensável em caso de urgência (CC, art.249, parágrafo único) ou se houver expressa autorização emcontrato.

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Se o sujeito passivo da obrigação defazer fungível a descumpre ou é oculpado pela impossibilidade de suaexecução, o sujeito ativo pode optarentre a execução subsidiária porindenização ou por prestaçãoequivalente.

Em qualquer hipótese, o credor da obrigação fungível defazer tem direito à indenização pelos prejuízos que sofreu emrazão do inadimplemento. Assim, tendo ou não autorizaçãojudicial para contratar terceiro, havendo ou não urgência,sempre será possível ao sujeito ativo demandar aindenização pelas perdas e danos que o descumprimento daobrigação fungível de fazer lhe trouxe.

Em suma, quando o devedor da obrigação materialmenteinfungível de fazer recusa-se a executá-la ou está, por suaprópria culpa, impossibilitado disso, a execução judicial serásubsidiária por indenização. O Estado simplesmente nãotem meios materiais para assegurar ao credor um resultadoigual ou próximo ao que adviria da execução voluntária. Por

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isso, o credor poderá, unicamente, reclamar em juízo aindenização dos prejuízos que sofreu em razão doinadimplemento. Por sua vez, a execução judicial daobrigação de fazer juridicamente infungível é específica. Odestinatário da declaração de vontade recusada pelodevedor tem suprida a ausência desta pela sentença judicial.O credor alcança, assim, por execução judicial, o mesmoresultado que derivaria da execução voluntária. Finalmente, aexecução em juízo da obrigação de fazer fungível pode ser,por opção do credor, subsidiária por indenização ou porprestação equivalente. No primeiro caso, contenta-se ocredor em ser indenizado pelos danos que sofreu; nosegundo, sem prejuízo da indenização, obtém autorizaçãojudicial para mandar executar a obrigação mediante osserviços de terceiro, mas à custa do devedor inadimplente.

4. OBRIGAÇÃO DE NÃO FAZERMuitos dos deveres em função dos quais as pessoas

têm que fazer ou não fazer algo derivam da lei. No campo dodireito penal, sempre que a lei tipifica certa conduta comocrime, imputando-lhe pena, está orientando as ações eomissões que devem ser observadas pelas pessoas. Aocriminalizar o homicídio, a lei determina que não se podematar alguém, isto é, as pessoas estão obrigadas a umaabstenção, a um não fazer. Ao penalizar a omissão desocorro, por outro lado, determina-lhes um fazer. No âmbito

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do direito administrativo, a previsão legal de multa paraquem não mantém limpa a calçada de sua casa indica aosmunícipes algo que eles devem fazer: conservar o passeio.Se a multa é imposta ao motorista que estaciona o veículoem lugar proibido, o dever imposto corresponde a um nãofazer. Finalmente, na seara do direito civil, a lei, ao atribuir aoproprietário ou possuidor de um prédio “o direito de fazercessar as interferências prejudiciais à segurança, ao sossegoe à saúde dos que o habitam” (CC, art. 1.277), está impondoa todos um dever de não fazer, isto é, o de não prejudicarema segurança, sossego e saúde de seus vizinhos. Por outrolado, ao preceituar que “o proprietário construirá de maneiraque o seu prédio não despeje águas, diretamente, sobre oprédio vizinho” (CC, art. 1.301), fixa um comportamentocorrespondente a um fazer. As hipóteses acima são deveres,e não obrigações.

Na obrigação de não fazer, o sujeito passivocompromete-se a omitir determinada ação. Tal como naobrigação de fazer, o objeto da prestação é umcomportamento do sujeito passivo, e não uma coisa. Mas,desta feita, trata-se de uma prestação negativa, quer dizer,um comportamento omissivo. O direito comercial é pleno deexemplos de obrigações de não fazer: o alienante doestabelecimento empresarial normalmente assume aobrigação de não concorrer com o adquirente, para que nãoocorra desvio da clientela; a loja instalada em shopping

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center obriga-se a não abrir nenhuma filial nas proximidades,evitando a concorrência autofágica; os administradores eempregados de confiança comprometem-se a não divulgaros segredos de empresa, na rescisão dos seus contratos detrabalho; nos contatos preliminares destinados anegociações de empresas, assumem os interessados aobrigação de confidencialidade, isto é, de não divulgarem asinformações e dados a que tiverem acesso, principalmenteem vista da possibilidade de não se concretizar a operação.

Duas normas são previstas para as obrigações de nãofazer.

A primeira prevê a resolução da obrigação na hipótesede se tornar impossível ao devedor, sem culpa deste, abster-se do ato que se obrigara a não praticar (CC, art. 250). Se ocumprimento da obrigação torna-se material ou juridicamenteimpossível, por fato alheio à vontade ou conduta dodevedor, é evidente que não se pode exigir dele quecontinue omitindo a conduta objeto da prestação. Ninguémpode ser obrigado ao impossível, nem mesmo nasobrigações de não fazer.

Considere-se, uma vez mais, exemplo extraído do direitocomercial. Nas sociedades anônimas abertas, osadministradores têm o dever legal de divulgar os fatosrelevantes, ou seja, devem tornar públicos os eventos quepodem influir na negociação, em bolsa, das ações emitidaspela companhia. O objetivo da norma é impedir que alguém

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se locuplete indevidamente, no mercado de capitais, por terinformação privilegiada. Se um investidor sabe que acompanhia aberta A está negociando uma parceria (jointventure) com a companhia fechada B, mas o mercado aindanão está informado disso, ele tem condições de adquirirações da primeira (por preço baixo), para revendê-las após oanúncio público da operação (por preço mais alto). De outrolado, os administradores de A e B assumiram, como é praxe,no início dos contatos, a obrigação de confidencialidade,isto é, de não fazerem a divulgação da existência dastratativas. Se, contudo, ocorrer de a Comissão de ValoresMobiliários (CVM), autarquia encarregada de fiscalizar omercado de capitais, exigir dos administradores de A adivulgação do fato relevante, eles estarão impossibilitadosde cumprir a obrigação de não fazer que contraíram peranteB. A impossibilidade do cumprimento da obrigação de nãofazer deriva de ordem emanada de um órgão do Estado, quenão pode ser desobedecida. Não há, assim, nenhuma culpados sujeitos passivos (os administradores de A), razão pelaqual ficam eles liberados da obrigação de confidencialidade.

A segunda norma legal própria das obrigações de nãofazer trata de sua execução judicial específica, em que oEstado assegura ao credor, por meio do aparato judicial, omesmo resultado que decorreria da execução voluntária.Assim, se o devedor descumpre a obrigação de não fazer(faz o que se obrigara a não fazer), o credor pode requerer ao

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juiz que assinale um prazo para que o primeiro desfaça ofeito, sendo isso possível (CC, art. 251). Na hipótese derecusa ou mora do devedor, o credor pode solicitar ao juizque o autorize a desfazê-lo pessoalmente ou por meio deterceiros, à custa do inadimplente (CPC, arts. 642 e 643). Emqualquer hipótese, o devedor está obrigado a indenizar osprejuízos a que der causa.

A autorização judicial para desfazer o que fez o devedorda obrigação de não fazer é dispensável apenas em caso deurgência (CC, art. 251, parágrafo único).

Evidentemente, a norma sobre execução específica daobrigação de não fazer cuida só das hipóteses em que odesfazimento é material e juridicamente possível. Se Carlosse obrigou perante o condomínio de casas a não construirsua residência a menos de 5 metros da divisa do terreno,assumiu uma obrigação de não fazer. A construção feita semobservância desta restrição pode ser material e juridicamentedesfeita. Nesta hipótese, é cabível a execução judicialespecífica, com a autorização do juiz para que o prédio sejaparcialmente demolido pelo próprio credor ou por terceiro, àcusta de Carlos. Na maioria das vezes, no entanto, odescumprimento da obrigação de não fazer é irremediável,porque não pode ser desfeito por razões de ordem materialou jurídica. Se um dos envolvidos com a negociação deempresa, embora tenha assumido o compromisso deconfidencialidade, precipita-se e divulga amplamente a

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existência de tratativas amadurecidas, isto pode até mesmocomprometer a conclusão do negócio. Não há o que sedesfazer, porque não é materialmente possível retornar àsituação anterior à difusão da informação. Outro exemplo: asubscrição de novas ações emitidas por uma sociedadeanônima é irrevogável. Se o acionista se obrigara a nãosubscrever as ações correspondentes ao seu percentual edescumpre esta obrigação de não fazer, sob o ponto de vistamaterial não haveria obstáculos ao desfazimento. O acionistapode, materialmente falando, declarar que não quer mais asações que subscreveu. Como, porém, a subscrição éirrevogável, ela não pode ser desfeita por uma razão deordem meramente jurídica. Esta obrigação de não fazer,portanto, não é passível de execução judicial específicaporque ela (a subscrição das novas ações) não pode serjuridicamente desfeita.

Nos casos em que a execução específica não cabe, porser impossível material ou juridicamente o desfazimento doque foi feito pelo devedor, o credor tem direito apenas àindenização por perdas e danos.

Há duas normas aplicáveis àsobrigações de não fazer. Pela

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primeira, se o cumprimento daobrigação se torna impossível(jurídica ou materialmente falando)por razão alheia à vontade ou condutado devedor, ela se resolve. Pelasegunda, é assegurada a execuçãoespecífica das obrigações de não fazerem que o desfazimento é possível(jurídica e materialmente falando).

Note-se, por fim, que, no rigor da lógica, qualquercomportamento pode ser descrito como um fazer ou nãofazer. Andar é o mesmo que não parar; parar é igual a nãoandar; comer equivale a não jejuar; jejuar é não comer etc.Em termos lógicos, quem se obriga a fazer algo obriga-setambém a não fazer o oposto (contraditório); quem se obrigaa não fazer obriga-se a fazer o inverso (contraditório). Se oadvogado da empresa se obriga a manter determinadainformação confidencial (fazer), ele está obrigando-se a nãodivulgá-la (não fazer), e vice-versa. Para a lógica, portanto,

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não haveria sentido em estabelecer regras próprias para asobrigações de não fazer, bastando aplicar as previstas paraas de fazer.

A lei, contudo, ignora as observações da lógica e trataas obrigações de não fazer como figura distinta das de fazer.Nenhuma implicação relevante, porém, deriva destedistanciamento entre a ordem jurídica e a lógica porque, emúltima análise, são idênticas as normas aplicáveis às duasmodalidades de obrigação. Se alguém culposamente faz oque se havia comprometido a não fazer ou, tambémculposamente, não faz o que se comprometera a fazer, aconsequência é sempre a mesma: ele deve pagar aindenização pelas perdas e danos sofridos pelo outro sujeitodo vínculo obrigacional. Se resta impossível fazer ou nãofazer o que se comprometera, sem culpa do sujeito passivo,ele se libera da obrigação. A execução por meio de terceiro(que faz o que o devedor não fez ou desfaz o que ele fez)depende, tanto na obrigação de fazer como na de não fazer,de autorização judicial, salvo em caso de urgência.

5. OBRIGAÇÕES ALTERNATIVASEm sua estrutura mais simples, viu-se, a obrigação

vincula um credor a um devedor e tem por objeto uma sóprestação. A obrigação complexa é, por sua vez, a que nãoatende a estes pressupostos. A complexidade verifica-se,assim, quando a obrigação possui mais de um sujeito em

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qualquer um dos polos da relação obrigacional, ou mesmonos dois (ativo e passivo), ou se refere a mais de umaprestação. Há, pois, complexidade subjetiva (dois ou maiscredores; dois ou mais devedores) ou objetiva (mais de umaprestação).

As obrigações complexas em relação à prestação podems e r cumulativas ou alternativas. Naquelas, o sujeitopassivo deve ao ativo todas as prestações objeto daobrigação, enquanto nestas, uma delas apenas. Se Antonioobrigou-se perante Benedito a fazer serviços de marcenariade móveis de cozinha, quarto e banheiro, esta é umaobrigação complexa cumulativa. Não se libera o devedorapenas com a entrega de qualquer um deles. Quando, porém,Carlos vende a Darcy um dos filhotes que sua cadelaprenha irá brevemente gerar, a obrigação é complexaalternativa, já que a entrega de qualquer um doscachorrinhos configurará seu cumprimento.

Claro que a complexidade das obrigações alternativasnão tem limite. Alguém pode obrigar-se por entregar uma detrês prestações indicadas e não uma de duas; ou por umaentre quatro. Pode, igualmente, obrigar-se a duas de trêsprestações possíveis; ou a três de quatro, cinco, dezprestações. Para fins didáticos, porém, desconsiderarei estaspossibilidades mais complexas e tratarei apenas daobrigação alternativa em que o sujeito passivo libera-se dovínculo ao entregar ao ativo uma de duas prestações. Este

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corte didático é cabível porque o aumento da complexidadenão altera o regime jurídico da obrigação alternativa. Asregras aplicáveis são iguais, independentemente do grau decomplexidade apresentado pela estrutura do vínculoobrigacional.

A obrigação alternativa, embora complexa, é uma só. Osujeito passivo obriga-se a dar, fazer ou não fazer algo. Oque seja exatamente este algo não está precisado desde logo(embora já se circunscrevam as possibilidades para ele), masderivará de um processo de concentração em momentosubsequente. É diferente, portanto, de um conjunto deobrigações que, interligadas ou independentes, correspondecada uma a dada prestação. O que se multiplica, nasobrigações alternativas, são as prestações, das quais apenasuma será entregue ao sujeito ativo.

A obrigação é alternativa quandocorresponde a mais de uma prestaçãoe o sujeito passivo não precisaentregá-las todas para se liberar. Otítulo constitutivo da obrigação

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alternativa lista as prestações e definea quantidade delas cuja entrega serásuficiente para o devedor darcumprimento ao contratado.

As obrigações alternativas podem ser negociais ou nãonegociais. No primeiro caso, são originadas da vontade daspartes (contratos, basicamente); no segundo, decorremexclusivamente da lei. Exemplos de obrigações alternativasnão negociais encontram-se nos arts. 442 (o comprador decoisa viciada pode exigir a rescisão do contrato comutativoou o abatimento proporcional do preço), 1.273 (o dono decoisa fraudulentamente misturada à de outros tem o direitode adquirir a propriedade do todo, pagando pelo que não eraseu com desconto da indenização, ou renunciar ao que lhepertence mediante completa indenização), 1.701 (a pessoaobrigada a prestar alimentos pode optar entre pagar apensão mensal ou hospedar e sustentar o alimentado) eoutros do Código Civil (cf. Rizzardo, 1999:189/190). Éirrelevante a origem da obrigação alternativa, na definição dodireito a aplicar. Negocial ou extranegocial, o regime jurídicodas obrigações alternativas é idêntico.

No exame das obrigações alternativas, três temas

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reclamam atenção: a concentração, processo dedeterminação da prestação a ser entregue em cumprimentoda obrigação (item 5.1), os sucessos das coisas, como aperda, deterioração ou melhoramento (item 5.2), e asdiferenças entre este tipo de obrigação e a facultativa (item5.3).

5.1. ConcentraçãoConcentração é o processo de determinação da

prestação a ser entregue ao sujeito ativo na execução daobrigação. Tem lugar apenas nas obrigações de dar coisaincerta e nas alternativas. Nestas modalidades, como aindividuação da prestação não ocorre no momento daconstituição da obrigação, deve verificar-se forçosamenteno da execução. A concentração opera-se mediante negóciojurídico unilateral, isto é, por um ato de vontade, umaescolha.

A escolha da prestação a ser entregue caberá a quem ossujeitos da relação obrigacional estabelecerem. Se, no ato deconstituição da obrigação, as partes concordam que odevedor escolha qual das prestações quer entregar quandoda execução, caberá ao sujeito passivo proceder àconcentração. Se estipulam, no entanto, que a escolha seráfeita pelo credor, a concentração fica a cargo deste. Podemas partes também eleger uma terceira pessoa, da comumconfiança delas, para o ato. Prevalecerá, em suma, o que

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tiver sido acordado entre os sujeitos da obrigação.Se não houver acordo em relação ao responsável pela

concentração, a escolha será do devedor. É o que dispõe alei: “nas obrigações alternativas, a escolha cabe ao devedor,se outra coisa não se estipulou” (CC, art. 252). Não tendo aspartes se preocupado em contratar sobre este aspecto darelação obrigacional que constituíam, a lei supletivamentedispõe sobre o assunto. Assim, quando inexistente acordoentre as partes, atribui-se a concentração ao sujeito passivo.Segundo Washington de Barros Monteiro, duas são asrazões da solução legal. A primeira decorre de antigo valorjurídico que preconiza o abrandamento da posiçãonormalmente débil do devedor. A segunda lembra que ocumprimento das obrigações depende essencialmente deatuação do devedor, sendo razoável que a lei o facilite(2001:112/113).

Ao escolher a prestação a ser entregue, o devedor nãopode alterar o objeto da obrigação. É-lhe defeso, porexemplo, dentre as duas prestações alternativas entregarparte de uma e parte de outra (CC, art. 252, § 1º), porque aisto equivaleria alterar unilateralmente a extensão daobrigação. Com ênfase, se o devedor pode, de acordo com oque foi estabelecido com o credor, escolher uma de duaspossíveis prestações, ele não está autorizado a misturá-lasporque isto equivaleria a optar entre três alternativas, e atanto não corresponde o conteúdo da obrigação pactuada.

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Em caso de obrigação de prestações periódicas, se aspartes nada estabelecerem em contrário, a escolha seráexercida em cada vencimento (CC, art. 252, § 2º). Se Antonio,executivo da empresa Beta, pode, todo ano, a título de partede sua remuneração, optar entre a troca do carro ou umaviagem internacional de férias, há entre estas partes umaobrigação alternativa de prestações periódicas. Deste modo,a cada ano, Antonio tem renovada a possibilidade deescolher um veículo novo ou a viagem, independentementeda escolha feita nos anos anteriores, a menos que o contratocom Beta estabeleça regra diversa (a de que Antonio nãopoderia trocar de carro três anos consecutivos, p. ex.).

Se a escolha da prestação a ser entregue cabe a mais deum sujeito, é possível desentendimentos entre eles. Um oualguns consideram mais interessante certa prestação, masoutro ou outros querem solução diferente. Neste caso, ossujeitos optantes devem negociar até chegarem a consenso.A escolha por qualquer critério majoritário depende de eleter sido previsto no título representativo da obrigação. Emcaso de omissão deste, porém, se não for alcançada aunanimidade, qualquer um dos optantes poderá requerer aojuiz que fixe prazo para a obtenção do consenso. Vencido oprazo judicialmente estabelecido sem escolha unânime daprestação a ser entregue, caberá a concentração ao juiz (CC,art. 252, § 3º). Também será deste a escolha se o títulorepresentativo da obrigação contemplar cláusula atribuindo

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a terceiro a concentração, mas o nomeado não quiser ou nãopuder processá-la, e as partes não chegarem a consensosobre como superar o empecilho (CC, art. 252, § 4º).

A tecnologia civilista tem considerado o direito deescolher a prestação insuscetível de cessão independenteda obrigação alternativa a que se refere. Embora admita atransmissibilidade a sucessores e o exercício do direito porrepresentantes, não considera regular a cessão do direito deescolha em separado da obrigação alternativa (Nonato,1959:357). Não é esse, porém, o melhor entendimento damatéria. Não há nada na lei que impeça a cessão de posiçãoativa numa obrigação acessória sem a concomitante cessãode posição (ativa ou passiva) na respectiva obrigaçãoprincipal. Deste modo, a menos que expressamente vedadano instrumento negocial em que se documenta a obrigaçãoalternativa, pode o optante ceder o direito de escolha aterceiros.

A determinação da prestação a serentregue em cumprimento daobrigação alternativa chama-se“concentração”. Trata-se do ato de

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escolha, que será feita por um sujeitode direito (o credor, devedor outerceiro) definido pelas partes oumesmo pelo juiz.

Com a concentração, a obrigação que nascera complexatorna-se simples e como tal passa a ser juridicamentedisciplinada. Se, por exemplo, a escolha cabe ao sujeitoativo, uma vez feita e comunicada ao devedor, a prestaçãopassa a ser exatamente a escolhida. Em outros termos,transforma-se numa obrigação simples, com uma sóprestação a ser cumprida pelo sujeito passivo. Neste caso, odevedor está livre, a partir do conhecimento da escolha feitapelo credor, para vender a coisa preterida a terceiros. Alémdisso, se a obrigação se concentra, também por escolha docredor, numa coisa individuada e esta se perde sem culpa dodevedor, resolve-se a obrigação em razão da regra aplicávela este sucesso negativo nas obrigações de dar coisa certa(CC, art. 234).

Ao encerrar este tópico, cabe atentar para uma hipóteseespecífica, em que a concentração é ato necessariamentesucessivo. Imagine que entre as prestações alternativas háuma de dar coisa incerta. Se a obrigação acaba

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concentrando-se exatamente nesta prestação, seránecessária uma nova concentração, isto é, a individuação dacoisa a ser entregue ao credor. Considere, por exemplo, queCarlos é o sujeito passivo de uma obrigação alternativa quetem por objeto a venda de x bovinos nelore ou y bovinostabapuã, e que lhe cabe escolher qualquer uma delas parasatisfazer o credor. Neste caso, a concentração desenvolver-se-á em duas etapas sucessivas. A primeira destinada aprecisar a prestação a ser entregue (bovinos nelore outabapuã) e a segunda voltada à individuação dos animais.Lembre-se, a propósito, que, antes da segundaconcentração, o devedor não poderá alegar perda oudeterioração da coisa (já que o gênero não perece); e, após aconcentração, a obrigação de dar coisa incerta transmuda-seem de dar coisa certa, submetendo-se, então, às normascorrespondentes a esta última (item 2.2).

5.2. Impossibilidade ou inexequibilidade de prestaçãoalternativa

Para certa doutrina, além da escolha, haveria umasegunda forma de concentração, que não seria mais umnegócio jurídico unilateral, e sim a impossibilidade ouinexequibilidade de uma das prestações da obrigaçãoalternativa (cf. Rodrigues, 2002, 2:49/50). São hipóteses deimprestabilidade de todas menos uma das possíveismaneiras de se cumprir a obrigação. Diz a lei que, “se uma

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das duas prestações não puder ser objeto de obrigação ouse tornada inexequível, subsistirá o débito quanto à outra”(CC, art. 253). Assim sendo, se o sujeito passivo podiaescolher entre duas prestações, a imprestabilidade dequalquer uma delas implicaria a concentração na outra: eledeverá entregar necessariamente a que subsistir. Não há, emcasos tais, nenhum ato de escolha, mas um fato jurídico queafasta a complexidade da obrigação.

Se, por exemplo, uma das prestações objeto daobrigação for inválida porque sua consideração entre asalternativas deu-se por erro, disto decorre a simplificação daobrigação. Está-se diante de uma imprestabilidade jurídica.Se, mais um exemplo, uma das coisas sobre as quais poderiarecair a escolha se perde, também se descarta acomplexidade do vínculo obrigacional, já que resta apenas aoutra coisa para ser entregue ao credor. Aqui, o caso é deimprestabilidade material.

Não se deve confundir, segundo penso, concentraçãocom a eliminação da complexidade, isto é, com asimplificação da obrigação. A melhor forma de operar comestes conceitos é reservar para aquela expressão osignificado de negócio jurídico de escolha, destacando queela não recobre todas as hipóteses de redução damultiplicidade de prestações na obrigação alternativa.

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Além da escolha, também aimpossibilidade ou inexequibilidadeda prestação dá ensejo à superação dacomplexidade objetiva da obrigaçãoalternativa. Se todas menos uma dasprestações é jurídica ou materialmenteimpossível ou inexequível, asubsistente deverá ser entregue pelodevedor ao credor.

Em outros termos, a obrigação alternativa é complexapor se referir a duas ou mais prestações não cumulativas.Para a sua execução, é necessário afastar a complexidade,transformá-la numa obrigação objetivamente simples. Istodecorrerá da escolha feita por um sujeito de direito(concentração) ou da impossibilidade ou inexequibilidade detodas menos uma das prestações alternativas(imprestabilidade). Nos dois casos, a obrigação deixa de serobjetivamente complexa porque resta apenas uma prestaçãoa ser entregue (a escolhida ou a subsistente); mas são fatos

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jurídicos bem distintos.Na superação da complexidade objetiva por

imprestabilidade (jurídica ou material) de uma dasalternativas, não há nenhuma declaração de vontade dequalquer sujeito especificamente direcionada à seleção daprestação a ser entregue. A definição da prestação a serentregue decorre de um outro gênero de fato jurídico (atohumano ou fato natural; ato volitivo ou não etc.). Se umadas coisas que podiam ser entregues ao sujeito ativo foiroubada, sua imprestabilidade deveu-se a ato humanointencional (do ladrão); se se incendiou, pode ter sidocausada por fato natural (um raio), negligência de alguém(descuido no manuseio de inflamáveis) ou mesmo tambémpor ato de vontade (do incendiário). Seja qual for aclassificação do fato jurídico verificado, a complexidade daobrigação desaparece e o sujeito passivo tem, a partir dele,para cumprir, uma só prestação.

5.3. Sucesso das coisas nas obrigações alternativasEntre a constituição e a execução da obrigação

alternativa, as coisas correspondentes às prestações podemeventualmente experimentar mudanças que influenciam osinteresses dos sujeitos envolvidos. Estas mudanças sãosucessos que sobrevêm à coisa, os quais podem sernegativos (perda total ou parcial) ou positivos(melhoramento). Aqui, examino os sucessos anteriores à

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concentração. Isto porque, quando a perda, deterioração oumelhoramento são posteriores à escolha da prestação aentregar, aplicam-se as regras já examinadas sobre ossucessos da coisa certa (item 2.2), lembrando que tambémsão estas regras as aplicáveis às prestações de dar coisaincerta após a individuação do objeto (item 2.4).

Perda. Para compreender as consequências da perda deuma ou de todas as prestações na obrigação alternativa,convém, inicialmente, investigar se o devedor teve culpa noevento ou se este derivou de caso fortuito ou força maior.

Não tendo o devedor nenhuma culpa pela perda, cabedistinguir se todas as prestações se tornaram impossíveis ouse apenas parte delas não pode ser executada.

Quando todas as prestações se perdem sem culpa dodevedor, resolve-se a obrigação alternativa. As partesretornam à condição em que se encontravam anteriormente àconstituição da obrigação, devendo o sujeito passivorestituir ao ativo eventuais pagamentos recebidos. É o queestabelece o art. 256 do Código Civil: “se todas asprestações se tornarem impossíveis sem culpa do devedor,extinguir-se-á a obrigação”. Imagine que Darcy,colecionador de veículos antigos, vendeu a Evaristo,também colecionador, um determinado Volkswagen 1965 ouuma específica Harley-Davidson 1970, podendo entregarqualquer uma destas coisas certas em cumprimento docontrato. Imagine, também, que a oficina em que se

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encontram os dois veículos para reparos incendeia-se emrazão da queda de um raio. Perderam-se, sem culpa de Darcy,todas as prestações de sua obrigação alternativa. Resolve-se esta; quer dizer, Darcy não está mais obrigado a nenhumaprestação, e Evaristo tem apenas o direito à restituição daentrada se a tiver pago.

Já no caso de apenas parte das obrigações se perderemsem culpa do devedor, ele permanecerá obrigado pela quesubsistir. Veja o art. 253 do Código Civil: “se uma das duasprestações não puder ser objeto de obrigação ou se tornadainexequível, subsistirá o débito quanto à outra”. No exemploanterior, assim, se apenas o Volkswagen se encontrava naoficina incendiada, deve Darcy entregar a Evaristo a outraprestação, isto é, a motocicleta antiga. Aqui não se resolve aobrigação, e Darcy, portanto, continua obrigado peranteEvaristo. Apenas operou-se a eliminação da complexidadeda estrutura do vínculo obrigacional. Se antes do casofortuito ele podia escolher entre um ou outro veículo decolecionador, agora ele está necessariamente obrigado aentregar a Harley-Davidson.

Nas hipóteses de perda de uma ou ambas as prestaçõessem culpa do devedor, é irrelevante a quem cabia a escolha.Independentemente do que as partes haviam contratadoacerca da concentração (pelo devedor, credor ou porterceiro), as consequências são as mesmas. Mas, se a perdaé causada por culpa do sujeito passivo (ou de alguém pelo

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qual é responsável, como filho menor ou empregado),importa verificar a quem cabia a escolha, para delimitação daconsequência do sucesso.

A perda, sem culpa do devedor, detodas as prestações de uma obrigaçãoalternativa implica a resolução desta.Já a perda, também sem culpa dodevedor, de apenas uma delas implicaa simplificação da obrigação, isto é,subsiste a outra prestação, que deveser entregue ao credor.

Se a perda decorre de culpa do devedor e a escolhacabia ao credor, as consequências do sucesso negativovariam de acordo com o seu alcance. Assim, se todas asprestações se perderam nestas circunstâncias (culpa dodevedor e escolha pelo credor), o sujeito ativo terá direito aovalor de qualquer uma delas mais indenização por perdas e

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danos. Se tanto o Volkswagen 1965 como a Harley-Davidson 1970 se perdem num incêndio da garagem deDarcy, provocado por sua culpa ou de alguém sob suaresponsabilidade, Evaristo poderá reclamar o valor de um oude outro veículo antigo (optará, normalmente, pelo maisvalioso) e as perdas e danos que tiver experimentado.Decorre do preceituado no art. 255, in fine, do Código Civil:“se, por culpa do devedor, ambas as prestações se tornareminexequíveis, poderá o credor reclamar o valor de qualquerdas duas, além da indenização por perdas e danos”.

Quando a perda causada por culpa do devedor alcançaapenas uma das prestações da obrigação alternativa,cabendo a escolha ao credor, terá este o direito de optarentre a prestação que subsistiu ou o valor da perdida, alémda indenização por perdas e danos. Se, no exemploconsiderado, apenas a Harley-Davidson 1970 seencontrava na garagem incendiada por culpa de Darcy,Evaristo pode reclamar a entrega do Volkswagen 1965 ou ovalor daquela motocicleta, além da indenização por perdas edanos. Esta é a regra do art. 255, primeira parte, do CódigoCivil: “quando a escolha couber ao credor e uma dasprestações tornar-se impossível por culpa do devedor, ocredor terá direito de exigir a prestação subsistente ou ovalor da outra, com perdas e danos”.

Ou seja, nos casos em que há culpa do devedor pelaperda e a escolha é do credor, a prestação perdida é

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substituída pelo seu valor, remanescendo a alternatividadena hipótese de se perder uma só das prestações.

Quando a escolha cabe ao credor,ocorrendo a perda de todas asprestações da obrigação alternativapor culpa do devedor, pode aquelereclamar o valor de uma ou de outramais perdas e danos. Atendidos osmesmos pressupostos (escolha pelocredor e culpa do devedor), se a perdaé de apenas uma das prestações, ocredor pode optar entre o valor daperdida ou a outra prestação, maisperdas e danos.

Quando a escolha não cabe ao

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credor, em se verificando a perdasucessiva de todas as prestações porculpa do devedor, este fica obrigadoao valor da que se perdeu por último,mais perdas e danos.

Finalmente, se a perda deriva de culpa do devedor, e aescolha não compete ao credor (mas ao próprio devedor oua terceiros), a lei trata apenas do caso de perecimentosucessivo de todas as prestações. Nesta hipótese, o sujeitopassivo fica obrigado a pagar ao ativo o valor da prestaçãoque se perdeu por último, acrescido de perdas e danos. Secabia, no exemplo acima, a Darcy escolher qual dos veículosantigos seria entregue a Evaristo em cumprimento daobrigação alternativa, e o Volkswagen perdeu-se num dia e aHarley-Davidson no seguinte, sempre por culpa do devedor,a obrigação será cumprida pelo pagamento do valor damotocicleta mais indenização por perdas e danos. Assimestipula o art. 254 do Código Civil: “se, por culpa dodevedor, não se puder cumprir nenhuma das prestações, nãocompetindo ao credor a escolha, ficará aquele obrigado apagar o valor da que por último se impossibilitou, mais as

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perdas e danos que o caso determinar”.A lei não trata do caso de serem as duas prestações

simultaneamente perdidas. Se acontecer, porém, entendoque o sujeito ativo tem o direito de optar pelo valor de umaou outra prestação, sem prejuízo da indenização por perdas edanos. Não cuida a lei, igualmente, da situação de perda deapenas uma das prestações por culpa do devedor, quandonão é do credor o direito de escolha. Esta lacuna legal nãotem nenhuma importância se a escolha cabe ao devedor. Elesimplesmente entrega a prestação subsistente e, destemodo, dá integral cumprimento à obrigação alternativa. Alacuna, porém, acarreta dificuldades se a escolha estiver acargo de terceiros. Aqui, se a prestação indicada para serentregue for a perdida, deve-se considerar inadimplida aobrigação, respondendo o devedor pelo valor dela maisperdas e danos; se, porém, for a que subsistir, a sua entregacorresponderá ao normal adimplemento da obrigação.

Deterioração e melhoramento. De início, destaco que alei se preocupou apenas com uma das hipóteses de sucessonegativo, a perda. Nada dispõe o Código Civil sobre adeterioração ou o melhoramento, embora estes eventospossam também afetar as obrigações alternativas. Estaslacunas devem ser supridas pela interpretação analógica dosdispositivos atinentes à deterioração ou melhoramento dacoisa certa.

Assim, sempre que, segundo a regra aplicável à

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hipótese de perda, o credor de obrigação alternativa tiverdireito à substituição da prestação pelo respectivo valor(CC, arts. 254 e 255), deve-se reconhecer-lhe, no caso dedeterioração, o direito de optar entre receber este valor ou aprestação deteriorada com abatimento proporcional. Se noincêndio ocorrido na garagem de Darcy, por culpa dele, oVolkswagen e a Harley-Davidson não se perderam, massofreram sérias avarias, Evaristo poderia, se é o titular dodireito de escolha da prestação, optar entre o valor dequalquer uma das prestações (CC, art. 254, in fine) ou porqualquer um dos veículos no estado em que se encontracom abatimento do preço, sempre sem prejuízo daindenização por perdas e danos.

Por outro lado, em caso de melhoramento de uma dasprestações, cabendo ao devedor a escolha, não se antevênenhum problema: ele simplesmente escolherá a outraprestação que não sofreu valorização. Não sendo dele,porém, a escolha e recaindo esta sobre a prestaçãovalorizada, o devedor pode exigir aumento proporcional nopreço. Se com o aumento não anuir o credor da obrigaçãoalternativa, sua execução dar-se-á forçosamente com aentrega da outra prestação. Se ambas as prestaçõesexperimentaram melhoramento e as partes não chegam aacordo sobre o novo preço delas, resolve-se a obrigaçãocom a aplicação analógica do art. 237 do Código Civil.

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5.4. As obrigações facultativasAs obrigações alternativas não se confundem com as

facultativas. Naquelas, o sujeito passivo libera-se mediante aentrega de uma das prestações objeto da obrigação —escolhida por ele, pelo credor ou por terceiros. Já nasobrigações facultativas, o sujeito passivo pode, em vez deentregar a prestação objeto da obrigação, liberar-se mediantea entrega de prestação diversa. O objetivo da facultatividadeé facilitar o cumprimento da obrigação. Aparentemente, asutileza da distinção não parece despertar questões jurídicasde relevo, mas não é bem assim. Várias consequênciasderivam da classificação de certa obrigação como alternativaou facultativa.

Exemplo típico de obrigação facultativa encontra-se nosmercados de futuro de commodities. Neles, o vendedorobriga-se a entregar, em data futura, ao compradordeterminada quantidade de produto agrícola por preço entreeles contratado. Se, na data fixada, aquele produto estivercotado na bolsa (p. ex., na BM&F — Bolsa de Mercadorias eFuturo de São Paulo) por preço superior, o devedor podepreferir a liquidação pela diferença. Quer dizer, em vez deentregar o produto agrícola em espécie, paga ao comprador adiferença entre o preço contratado e o da cotação na bolsa.E se a cotação, naquela data, for inferior, o vendedor podeexigir a diferença do comprador em vez de entregar amercadoria. Na prática, todos os contratos acabam sendo

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executados pela diferença, já que os operadores da bolsanão estão interessados propriamente nas mercadorias, massim em negócios de garantia.

O título estabelece se a obrigação é alternativa oufacultativa. Se o documento representativo da obrigaçãoestipula, por exemplo, que o sujeito passivo pode entregarao ativo qualquer uma das prestações listadas, ele dizrespeito a obrigação alternativa. Caso estipule, porém, que osujeito passivo é obrigado a determinada prestação, tendo afaculdade de executá-la mediante entrega de prestaçãodiversa, o documento refere-se a obrigação facultativa.Raramente se encontrará no teor do instrumentorepresentativo da obrigação o uso das expressõesidentificadoras destas categorias (“alternativa” ou“facultativa”). Será o exame do conteúdo do acordo entre ossujeitos integrantes do vínculo obrigacional quepossibilitará a exata definição da modalidade da obrigação.

As obrigações alternativas não seconfundem com as facultativas.Enquanto as primeiras têm por objetovárias prestações não cumulativas, as

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facultativas possuem uma só, estandoo devedor autorizado a executá-la pelaentrega de outra prestação.

Assim, percebe-se, desde logo, que a faculdade abertaao devedor no sentido de se exonerar da obrigação mediantea entrega de prestação diversa da devida não existe sem aconcordância do credor. Nenhuma das partes podeunilateralmente alterar o conteúdo da obrigação. Se o títuloprevê que o sujeito passivo se obriga a entregar determinadacoisa, sem mencionar a faculdade de prestação diversa, aexecução só se realiza com o cumprimento da primeira. Odevedor só tem o direito de entregar prestação facultativa seo título correspondente ao negócio o autorizar; quer dizer, seo credor, no momento da constituição da obrigação, houveraanuído com esta possibilidade de execução, isto é, com aprestação facultativa.

Ao contrário da alternativa, a obrigação facultativa nãoé complexa. Nela, há uma única prestação devida. Afaculdade aberta ao sujeito passivo de executar a obrigaçãomediante a entrega de prestação diversa destina-se a facilitarseu cumprimento. Desta forma, a prestação devida é aprincipal, e a facultativa, a acessória. Se, por qualquer razão,a prestação principal for inválida, a facultativa também o

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será. Esta é uma nova diferença em relação à obrigaçãoalternativa, posto que, nela, a invalidade de uma dasprestações possíveis não compromete a das demais (CC, art.253). Note-se, também, que, não havendo culpa do devedor,a perda da prestação principal extingue a obrigaçãofacultativa, ao passo que apenas a perda de todas asprestações acarreta igual consequência na alternativa (cf.Azevedo, 1973:50). Por fim, nas obrigações alternativas, aescolha da prestação a ser entregue é, em regra, do devedor,mas as partes podem atribuí-la ao credor ou a terceiros; mas,nas facultativas, é sempre do devedor a escolha entre aprestação principal e a acessória.

6. DIVISIBILIDADE DAS OBRIGAÇÕESAs obrigações podem ser divisíveis ou indivisíveis,

considerando-se a natureza das prestações. Uma obrigaçãoé divisível se a prestação puder ser repartida e indivisível nocaso oposto.

Nas obrigações simples e nas objetivamente complexas,a divisibilidade ou indivisibilidade não desperta maioresindagações. A questão é relevante apenas no contexto dasobrigações subjetivamente complexas, isto é, aquelas emque há mais de um credor ou mais de um devedor. Exemplode obrigação divisível com pluralidade de sujeitos passivosencontra-se nos pools de bancos para financiamento deempreendimento de elevado porte ou de seguradoras para

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seguro de grande valor.Quando é divisível a prestação, presume a lei sua

repartição em tantas obrigações iguais e distintas quantossejam os credores ou devedores (CC, art. 257). Deste modo,s e Antonio deve $ 200 a Benedito e Carlos, como hápluralidade de credores e a prestação é divisível, presume alei que Antonio deve $ 100 a Benedito e $ 100 a Carlos. Sepagar a totalidade do devido a qualquer um dos credores, elenão estará liberado da obrigação de pagar a quota ao outro.Veja que a lei criou uma presunção relativa para a hipótese. Élícito às partes pactuar de forma diversa, estabelecendo, porexemplo, que um dos credores tem direito de receber maiorfatia da prestação que o outro. Supletivamente à vontadedas partes, contudo, a lei brasileira estabelece a repartiçãoda obrigação divisível em tantas quantos sejam os sujeitosda relação. Reproduz, na verdade, antigo primado jurídicoenraizado no direito romano (concursu partes fiunt).

Quando a prestação é indivisível, claro, este primadonão pode reger a matéria. Neste caso, considera-se quetodos os sujeitos passivos estão obrigados à prestação (nahipótese de multiplicidade de devedores) ou que todos ossujeitos ativos têm direito de reclamá-la (na de multiplicidadede credores). “A obrigação é indivisível”, diz a lei, “quandoa prestação tem por objeto uma coisa ou um fato nãosuscetíveis de divisão, por sua natureza, por motivo deordem econômica, ou dada a razão determinante do negócio

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jurídico” (CC, art. 258).Em consequência do dispositivo legal, pode-se falar em

indivis ibilidade material, econômica ou jurídica. Se aprestação é, por exemplo, de dar coisa certa fisicamenteinsuscetível de repartição, como um animal ou veículo, aindivisibilidade é material. Se for dividir o filhote de gatovendido para dois irmãos, morre o bichano e perde-se aprestação simplesmente. Será econômica caso a divisãoreduza ou suprima o valor da prestação. O quadro de famosopintor pode ser material e juridicamente repartido em dois,mas não alcançará mais o mesmo preço no mercado,passando a ser negociado mais como uma curiosidade doque propriamente como obra de arte. Por fim, aindivisibilidade é jurídica quando a lei impede a repartição. Éo caso da prestação consistente em entregar lotes de terrenocom dimensões correspondentes ao tamanho mínimo legalde 125 m2. Como o art. 4º, II, da Lei n. 6.766/79 impede acomercialização de lotes menores do que estes, a prestaçãonão comporta divisão.

Se na obrigação indivisível houver dois ou maisdevedores, cada um deles se obriga pela dívida toda (CC, art.259). Deste modo, o credor pode exigir o cumprimentointegral da obrigação de qualquer um dos sujeitos passivos.Aquele que pagar sub-roga-se no direito do credor emrelação aos demais devedores, ou seja, pode cobrar de cadaum deles a quota-parte da prestação. Imagine que Darcy e

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Evaristo, coproprietários de Furacão, um cavalo de corrida,vendem-no a Germano. Assumem, em decorrência, umaobrigação de dar coisa certa indivisível. Germano poderáexigir a entrega de Furacão de Darcy, mesmo que tenhapago o preço do animal a Evaristo, ou vice-versa. Dequalquer modo, entre Darcy e Evaristo, deve ser repartido opreço recebido por Furacão, proporcionalmente àparticipação de cada um na copropriedade do animal. Sequem entregou o cavalo não foi o que recebeu o pagamento,terá direito de cobrar sua parte do outro devedor (CC, art.259, parágrafo único). Se foi, deve repassar a parte dopagamento ao outro devedor da obrigação de entregar oanimal.

Nas obrigações indivisíveis com maisde um devedor, cada um é obrigadopor toda a dívida, e o que pagar sub-roga-se nos direitos do credor peranteos demais. Já nas obrigaçõesindivisíveis com mais de um credor, opagamento a um deles apenas libera o

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devedor ou devedores se o que recebeuder caução de ratificação do ato pelosdemais.

Por outro lado, se na obrigação indivisível houver maisde um credor, cada um deles pode exigir a prestação porinteiro. O devedor ou devedores apenas estarãodesobrigados, contudo, se o pagamento tiver sido feito atodos os credores conjuntamente ou se aquele que orecebeu der caução de ratificação pelos demais (CC, art. 260).Considere que Hebe e Irene, decoradoras, são credoras deJoão, marceneiro, por uma obrigação de fazer: ele se obrigoua confeccionar uma mesa de jantar para uma casa decoradapor elas. Tanto Hebe como Irene, agindo isoladamente,podem acionar João para obter o cumprimento da obrigação;ele, porém, apenas se desobriga ao entregar a peça para asduas decoradoras em conjunto ou se a que receber o móvelgarantir a ratificação do ato de recebimento pela outracredora. Se ocorrer de Hebe receber a mesa de jantar e, porexemplo, revendê-la a terceiros, dando ao móvel destinaçãodiversa da originariamente acertada com Irene, terá estadireito de cobrar daquela sua parte em dinheiro (CC, art. 261).

A indivisibilidade da obrigação descaracteriza-se

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quando ela se resolve em perdas e danos (CC, art. 263). SeJoão do exemplo anterior não cumpre sua obrigação e Hebee Irene desinteressam-se da mesa e decidem processá-lo porperdas e danos, desfaz-se a indivisibilidade. O valor daindenização deverá ser pago proporcionalmente a cada umadas decoradoras, como nas obrigações divisíveis (CC, art.257).

7. OBRIGAÇÕES SOLIDÁRIASEm princípio, viu-se, as obrigações subjetivamente

complexas (isto é, com mais de um credor ou devedor)dividem-se em tantas quantos sejam os sujeitos de cadapolo da relação obrigacional (concursu partes fiunt). No itemanterior, foi examinada a primeira exceção a este princípio,decorrente da indivisibilidade da prestação. Com ênfase,quando a prestação é indivisível, não se pode repartir aobrigação entre os sujeitos passivos ou ativos por razões deordem material, econômica ou jurídica. A repartição daprestação indivisível importaria a perda da coisa(indivisibilidade material) ou de seu valor (indivisibilidadeeconômica) ou esbarraria em vedação legal ou contratual(indivisibilidade jurídica).

Neste item, será examinada a segunda exceção aoprincípio concursu partes fiunt. Trata-se das obrigaçõessolidárias, isto é, aquelas em que há pluralidade de sujeitos(mais de um devedor ou credor) e unidade de prestação

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contratual ou legalmente estabelecida. “Há solidariedade”,define a lei, “quando na mesma obrigação concorre mais deum credor, ou mais de um devedor, cada um com direito, ouobrigado, à dívida toda” (CC, art. 264).

A solidariedade pode ser passiva ou ativa, segundo apluralidade de sujeitos se refira respectivamente ao polopassivo ou ativo da relação obrigacional. Na solidariedadepassiva, dois ou mais devedores são obrigados pela inteiraprestação, isto é, por toda a dívida (ainda que seja eladivisível). Já na solidariedade ativa, dois ou mais credorestêm direito ao pagamento de toda a obrigação (mesmo quedivisível).

Como é uma exceção ao princípio da divisibilidade dasobrigações, a solidariedade não se presume (Beviláqua,1895:105/106). Para existir, é necessário que tenha sidocontratada entre as partes ou decorra de previsão legal (CC,art. 265). Há, portanto, solidariedade contratual (abrigadaem cláusula expressa de contrato) ou legal (derivada dedisposição da lei). Numa obrigação divisível subjetivamentecomplexa com vários devedores, não havendo cláusulacontratual ou norma legal unindo-os pela solidariedade,aplica-se o art. 257 do Código Civil, ou seja, ela é dividida emtantas quantos sejam os sujeitos passivos, obrigando-secada um pela quota-parte da prestação. O credor, nestaobrigação, só pode exigir de cada devedor a parcelaproporcional da prestação divisível. Isto porque a

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solidariedade resulta da lei ou da vontade das partes; nãohavendo em nenhuma delas a previsão de obrigaçãosolidária, incide o princípio geral do concursu partes fiunt.

A lei prevê diversas hipóteses de responsabilidadesolidária. No Código Civil, por exemplo, dezenas dedispositivos estabelecem solidariedade entre representante erepresentado (art. 149), cedente e cessionário (art 1.146),assim como entre mandantes (art. 680), fiadores (art. 829),gestores (art. 867, parágrafo único), autores da ofensa (art.942), sócios (arts. 990, 993, 1.039, 1.045 etc.), administradoresde sociedade (arts. 1.009, 1.012, 1.016 etc.), cônjuges (art.1.644), testamenteiros (art. 1.986) e outros.

A solidariedade não implica que os obrigados solidáriossejam titulares de direito ou devam na mesma extensão oucondição. Pelo contrário, o título ou a lei podem atribuir asujeitos solidários direitos ou obrigações diferentes (CC, art.266). Assim, Antonio e Benedito podem ser devedoressolidários de Carlos, prevendo o contrato, entretanto, que aobrigação de Antonio é pura e simples e a de Benedito,sujeita ao implemento de certa condição suspensiva. Nestecaso, enquanto não verificada a condição prevista noinstrumento contratual, Carlos só poderá exigir ocumprimento da obrigação de Antonio, malgrado asolidariedade. Uma vez implementada a condição, poderáescolher qualquer um dos codevedores solidários.

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A obrigação é solidária se mais deum credor (solidariedade ativa) oumais de um devedor (solidariedadepassiva) têm direito ou se obrigam àdívida toda. Na solidariedade, queresulta necessariamente de lei oucontrato, excepciona-se o princípio dadivisibilidade das obrigaçõesestatuído pelo art. 257 do CC.

Entre as obrigações solidárias e as indivisíveis, háindiscutível proximidade. Como são exceções do princípio dadivisibilidade das obrigações, tanto numa como noutra, cadasujeito passivo é obrigado à prestação como um todo e cadaativo tem direito a toda ela. Na solidariedade passiva e naindivisibilidade, por exemplo, o credor pode escolherqualquer devedor para exigir o cumprimento da obrigação; eo devedor que pagar tem direito regressivo contra os

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demais. Diferem, porém, uma modalidade de obrigação daoutra pelas razões por que se afasta a aplicação do princípioda divisibilidade. Sendo a obrigação indivisível, a naturezada prestação impede a repartição em tantas quantos sejamos sujeitos. No caso da obrigação solidária, é a vontade daspartes ou a disposição da lei que o impede.

7.1. Solidariedade passivaA solidariedade passiva é muito mais frequente que a

ativa. Na verdade, é extremamente comum se deparar, noscontratos, com a cláusula de solidariedade passiva sempreque são mais de um os devedores. A solidariedade entre ossujeitos passivos é uma garantia normalmente exigida pelocredor: não se cumprindo a obrigação solidária, ele temmaiores chances de obter a execução forçada, na medida emque pode escolher para cobrar, entre os devedores, o queestiver em melhor condição patrimonial. Na solidariedadepassiva, “o credor tem o direito a exigir e receber de um oude alguns dos devedores, parcial ou totalmente, a dívidacomum” (CC, art. 275). Se o credor receber de um dosdevedores solidários apenas uma parcela do devido, pelosaldo não pago continuam todos solidariamenteresponsáveis.

A propositura de ação judicial contra um ou alguns doscodevedores solidários não implica a renúncia, pelo credor,dos direitos relacionados à solidariedade passiva (CC, art.

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275, parágrafo único). Não sendo frutífera a investida judicialcontra os primeiros escolhidos, sempre restará ao credordemandar os demais devedores solidários. Outras atitudes,porém, são consideradas, no plano doutrinário, renúnciatácita à solidariedade. Se o credor, por exemplo, cobra decada devedor apenas a quota correspondente, ou concordaem receber unicamente os juros e multa proporcionais de umdevedor, entende-se que renunciou à solidariedade (Pereira,1962, 2:94/95). Além disso, admite a lei a renúncia expressa,que pode aproveitar um, alguns ou todos os devedoressolidários (CC, art. 282).

O devedor que cumpre (voluntária ou forçadamente) aobrigação tem direito de cobrar, em regresso, dos demaisdevedores solidários. Entre os codevedores unidos pelasolidariedade — ou, como preferem alguns civilistas, narelação interna da solidariedade (Gomes, 1961:50) —, divide-se a obrigação em partes iguais. Torna a operar seus efeitos,em outros termos, o princípio da divisibilidade. Cadacodevedor responde, perante os demais, por uma parteproporcional da prestação (CC, art. 283). Se Darcy, Evaristoe Fabrício são devedores solidários de $ 300, aquele quepagar o credor pode regressivamente cobrar $ 100 de cadaum dos outros. Se forem quatro os sujeitos passivossolidários, cada um é responsável, perante os demais, porum quarto da obrigação; se forem cinco, por um quinto, eassim por diante. Perante o credor, evidentemente, os

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devedores respondem sempre pela totalidade da dívida, emrazão da solidariedade, mas, entre eles, dá-se o rateio.

Se um codevedor solidário ficar insolvente — isto é,desprovido de meios patrimoniais para responder ao menospela respectiva parte da obrigação —, a quota dele serádividida igualmente entre os solventes (CC, art. 283, in fine).Se, no exemplo acima, Darcy paga a dívida e, ao voltar-se emregresso contra Evaristo, descobre que ele está insolvente,terá direito de cobrar $ 150 de Fabrício e arcar, enfim, comos restantes $ 150 da obrigação. Aliás, da divisão entre osdevedores solventes da quota correspondente ao insolventeparticipam também os solidários eventualmente liberados dasolidariedade pelo credor (CC, art. 284).

No caso de a prestação se tornar impossível por culpade um dos devedores solidários, o credor terá direito aoequivalente mais perdas e danos, como em qualquerobrigação. Pelo equivalente, responderão todos osdevedores solidários, mas pelas perdas e danos, apenas odevedor culpado pela perda da prestação (CC, art. 279).Imagine-se que Germano e Hebe venderam a Irene o últimofrasco de sêmen disponível de um famoso cavalo de corridajá falecido e obrigaram-se solidariamente pela entrega. Opreço foi totalmente pago de forma antecipada. Porém, acoisa se perdeu antes da execução da obrigação por culpaexclusiva de Germano. Neste caso, Irene poderá cobrar ovalor da prestação perdida (isto é, o preço que pagou pelo

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sêmen) de qualquer um dos devedores solidários, mas sópoderá cobrar a indenização de Germano. Além disso, seGermano pagar Irene, poderá, em regresso, cobrar a metadedo valor da prestação de Hebe, mas nada do que tiver pagoa título de perdas e danos.

Se a prestação não restou impossível, mas houve morana entrega ao credor por culpa de um dos codevedoressolidários, a regra é diferente. Nesta hipótese, todos osdevedores são solidariamente responsáveis, perante ocredor, pelos juros de mora; entre eles, porém, apenas oculpado pelo atraso responde por tais juros (CC, art. 280).

Na solidariedade passiva, o credorpode exigir toda a dívida, ou partedela, de qualquer dos codevedores. Ocodevedor que pagar tem direito decobrar, em regresso, dos demais aquota-parte. Pela dívida que interessaexclusivamente a um só dos devedores,porém, responde o interessado pelo

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seu valor integral.

Por fim, quando a dívida solidária interessaexclusivamente a um dos devedores, não se procede aorateio proporcional na relação interna da solidariedade.Neste caso, o devedor solidário a quem interessa, comexclusividade, a dívida responde pela integralidade de seuvalor (CC, art. 285). É o caso, entre outros, da fiança noscontratos de locação de imóvel. Na maioria das vezes, prevêo instrumento contratual que o fiador é devedor solidáriocom o afiançado (locatário) pelo pagamento dos aluguéis.Neste caso, porém, a dívida é do interesse exclusivo dequem alugou o imóvel. O fiador, uma vez pagando o locador,tem direito de regresso contra o afiançado pelo valor totaldos aluguéis que tiver pago, e não apenas pela quota-parteproporcional. Por sua vez, o afiançado não pode reclamar dofiador, em regresso, a metade do que tiver pago ao locador,devendo suportar a obrigação inteira.

7.2. Solidariedade ativaNa solidariedade ativa, o polo credor da relação

obrigacional é ocupado por vários sujeitos, sendo que cadaum deles “tem o direito de exigir do devedor o cumprimentoda obrigação por inteiro” (CC, art. 267).

Quando há solidariedade ativa, o pagamento poderá ser

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feito a qualquer credor, enquanto não tiver sido propostademanda judicial de cobrança (CC, art. 268). Uma vez citadoda ação, porém, o devedor deve abster-se de pagar, a nãoser em juízo. Feito como for, o pagamento a qualquer um doscredores extingue toda a obrigação (CC, art. 269). A quitaçãodada por um credor solidário é, assim, suficiente para liberaro devedor da obrigação. A partir dela, caberá aos credores,na relação interna da solidariedade, repartir o valor pago.Deste modo, se o devedor prova perante um credor solidárioque já fez o pagamento da obrigação a outro, nada maispode ser cobrado dele. A satisfação do direito de cada umdos sujeitos ativos solidários, após o regular pagamento aum deles, é assunto a ser resolvido sem envolvimento dodevedor.

A solidariedade ativa é muito rara. Seu estudo, por isso,é desprovido de maior interesse.

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Capítulo 15

TRANSMISSÃODA

OBRIGAÇÃO1. ESPÉCIES DE TRANSMISSÃO

A constituição e execução da obrigação podem importarmutações nos patrimônios dos sujeitos de direitoenvolvidos. Se alguém passa a ocupar um dos polos darelação obrigacional, seu patrimônio sofre mudanças. Sepassa a ser credor, o ativo cresce; se devedor, aumenta opassivo. A obrigação integra, por um ou outro elemento, opatrimônio do sujeito, seja ele sujeito ativo ou passivo. Uma

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das consequências deste aspecto das obrigações é a suatransmissibilidade. O sujeito integrante da relaçãoobrigacional pode alienar a obrigação de seu patrimônio aterceiros. Trata-se de negócio jurídico em razão do qual aobrigação deixa de pertencer ao patrimônio de um sujeito epassa ao de outro. A transmissão chama-se cessão decrédito quando tem por objeto a posição ativa da relaçãoobrigacional. O credor (cedente) transfere a outrem(cessionário) o crédito perante o devedor (cedido).Denomina-se assunção de dívida se o objeto transmitido é aposição passiva do vínculo. Neste caso, o devedor(alienante) transfere a outrem (adquirente, assumido ouassuntor) o débito perante o credor (assuntivo).

A obrigação pode ser transmitida deum patrimônio a outro. Quando osujeito ativo transmite o direito, onegócio jurídico é denominado“cessão de crédito”; quando o sujeitopassivo transmite seu dever, chama-se“assunção de dívida”.

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A transmissão da obrigação pode operar-se por negóciooneroso ou gratuito. No primeiro caso, o ato é acompanhadopor um ganho certo em favor do cessionário (na cessão decrédito) ou do alienante (na assunção de dívidas). Atransmissão gratuita dá-se quando não se verificam estesganhos, quando os sujeitos agem desinteressadamente,movidos por caridade, amizade ou dever familiar. Na maioriadas vezes, convém destacar, a transmissão é onerosa.

De outro lado, a transmissão pode ser negocial (intervivos) ou derivar da morte do sujeito obrigado (mortiscausa). Mas, enquanto naquela admite o direito brasileirotanto a substituição do credor (cessão de crédito) como dodevedor (assunção de dívida), nesta, cabe só a transmissãode crédito. Quer dizer, falecendo o credor, seu direitocreditório passa aos herdeiros ou legatários. O sucessor,após a conclusão do inventário, é o novo titular do direito àprestação. Falecendo, porém, o devedor, não se opera atransmissão. Antes de se partilharem os bens do falecido,pagam-se as dívidas deixadas. Se, porém, os bens dodevedor morto forem insuficientes à satisfação do débito, osherdeiros ou legatários nada recebem, mas também não setornam devedores. Extingue-se a obrigação.

O instituto da transmissão negocial é criação recente dodireito das obrigações. Nos países de tradição românica,

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como o Brasil, as normas do direito obrigacional reproduzem,quase sem alterações significativas, padrões desenvolvidosna Antiguidade pelo direito romano. Não conheceu este,porém, senão a constituição e a extinção da obrigação; atransmissão inter vivos se fazia sempre por meios indiretos,mediante a extinção da obrigação e a constituição de umanova. Uma das razões de o direito romano não terdesenvolvido a figura da transmissão inter vivos aponta-sena pessoalidade da obrigação. O sujeito não podia transferira outrem seu crédito ou débito porque eles eramconsiderados próprios de sua pessoa (cf. Gil, 1983, 212;Alves, 1965:69/70; Mazeaud-Chabas, 1998:1255 e s.).

2. CESSÃO DE CRÉDITOA cessão de crédito insere-se no contexto da circulação

econômica. Normalmente, o cedente é titular do direito decrédito a prazo e, através da cessão, antecipa a realização dovalor correspondente. Com o negócio transmissor docrédito, o cessionário paga-lhe, hoje, o valor da obrigaçãoque vencerá no futuro e passa a ocupar a posição ativa darelação obrigacional, tornando-se o novo titular do direito.Assim, se Antonio é credor de Benedito, no valor de $ 100,por obrigação a vencer daqui a três meses, ele pode negociarseu crédito com Carlos. Recebe, hoje, o valor da obrigaçãoque Carlos irá cobrar de Benedito no vencimento. Costuma-se chamar esta dinâmica, aliás muito comum na economia

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desde a Revolução Comercial, de mobilização do crédito.Como dito, a cessão pode ser onerosa ou gratuita. Se

onerosa, normalmente o cedente recebe do cessionário valorinferior ao da obrigação que está transmitindo. No exemploacima, se tivesse contratado uma cessão onerosa Antonioreceberia, hoje, de Carlos, por exemplo, $ 90, para alienar-lheo crédito de $ 100. Carlos lucraria, com a operação, $ 10,quando recebesse de Benedito o valor integral da obrigação,no vencimento. É esta a hipótese mais comum, porque ocessionário não tem nenhuma vantagem econômica se pagaao cedente o exato valor a receber no futuro. A diferençaentre o valor da obrigação e o pago pelo cessionário reflete,grosso modo, o preço do dinheiro no mercado financeiro,isto é, os juros que os bancos praticam, mas deve observaros parâmetros legais (CC, arts. 406 e 591).

Quando a gratuidade marca a cessão, o cessionárioconcorda em pagar ao cedente o valor da obrigação semqualquer desconto. Normalmente, ele retirará o dinheiro doinvestimento em que se encontra para pagar ao cedente e sóterá a disponibilidade deste mesmo recurso quando dovencimento da obrigação, caso seja ela cumpridapontualmente pelo devedor. Na melhor das hipóteses, ocessionário deixará de receber qualquer remuneração pelocapital entre o desembolso no ato da cessão e o pagamentoda obrigação. A cessão gratuita, por isso, costuma ocorrerapenas entre amigos ou familiares, inspirada por especiais

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laços afetivos ou de parentesco. É, em suma, um presenteque o cessionário dá ao cedente. O presente é, aqui, o custodo dinheiro no interregno entre a cessão e o vencimento daobrigação cedida.

A cessão de crédito pode ser feita pelo credor, emprincípio, sempre que ele quiser. Trata-se de negócio jurídicoq u e não depende de anuência do devedor. O titular docrédito negocia livremente com terceiros a transmissão daobrigação, sem necessidade de obter a concordância préviaou posterior do respectivo sujeito passivo. O credor só estáimpedido de ceder seu crédito se a cessão for incompatívelcom a natureza da obrigação ou contrariar a lei ou o contratocom o devedor. Somente nestas três hipóteses excepciona-se a regra geral da livre transmissibilidade do crédito. Destemodo, um crédito personalíssimo (como o decorrente desalário, vencimentos ou pensão alimentícia) não pode sercedido porque a sua natureza obsta a transmissão. O direitode crédito a auxílio social do governo, em geral, não pode sercedido em razão de expressa proibição na lei. Por fim, se aspartes da relação obrigacional estabeleceram, por acordo devontade, que não seria admitida a cessão do crédito, esta seinviabiliza por convenção entre credor e devedor.

A cessão de crédito independe de

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anuência do devedor. O sujeito ativoda relação obrigacional pode alienarseus direitos a terceiro exceto se issoconflitar com a natureza da obrigação(p. ex., as prestações personalíssimas)ou for proibido por lei ou contrato.

É nula a cessão de crédito feita nas hipótesesexcepcionais referidas. Em consequência, o ato detransmissão da obrigação não produz nenhum efeito: ocrédito continua no patrimônio do pretenso cedente enenhum direito sobre ele passa a titularizar o pretensocessionário. Se, por exemplo, credor e devedor haviamcontratado que o crédito não poderia ser cedido a terceiros,o ato de transmissão não está autorizado pela lei (CC, art.286). Em ocorrendo, será inválido. Protege-se, porém, ocessionário de boa-fé quando a cláusula proibitiva dacessão não consta do próprio instrumento da obrigação.Assim, tendo eventualmente credor e devedor pactuado aintransmissibilidade da obrigação num documento apartado,ela não prejudicará os direitos de cessionários que dele nãotiverem tido notícia (CC, art. 286, in fine).

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2.1. Relações com o cedido e com o cedenteA cessão é uma obrigação que tem por prestação outra

obrigação. A partir dela, o cessionário passa a ter relaçõesjurídicas não só com o cedente, mas também com o cedido.Por razões didáticas, começo pelas relações com o cedido.

Para ter eficácia em relação ao cedido (devedor), acessão deve ser comunicada a ele. A lei menciona comoforma adequada para esta comunicação a notificação, quepode ser extrajudicial. Admite, contudo, qualquer declaraçãodo sujeito passivo feita por escrito, público ou particular, deciência da transmissão da obrigação como bastante tambémpara a plena eficácia do ato.

Lembre-se que a cessão não depende, como afirmado,de anuência do devedor. É negócio jurídico entre o credor eo terceiro adquirente apenas, que se aperfeiçoa e valida sema participação do devedor. Cautelarmente, cedente ecessionário podem colher a concordância do cedido para oato de cessão, mas isto não é necessário. A cessão decrédito é negócio jurídico válido independentemente daintervenção do devedor.

Mas, embora não participe da cessão, para que estaprojete todos os seus efeitos, o sujeito passivo precisa sercomunicado do ato. Por evidente, se não tiver ciência de quea obrigação transmitiu-se do patrimônio do credor origináriopara o de outro sujeito, o devedor não terá como cumprir aobrigação perante o atual titular do crédito. Tanto assim que

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a lei desobriga o “devedor que, antes de ter conhecimentoda cessão, paga ao credor primitivo” (CC, art. 292, primeiraparte).

Embora não precise anuir na cessãode crédito, o devedor deve sercientificado dela para que entregue aprestação ao atual sujeito ativo darelação obrigacional. Assim sendo, odevedor estará desobrigado seproceder ao pagamento ao credororiginário, antes de receber acientificação da cessão.

A cessão não altera em nada a extensão da obrigação. Ocedido continua devedor da prestação exatamente como jáera antes da transmissão. Apenas que, após a ciência dacessão, estará obrigado a entregar a prestação ao

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cessionário, e não mais ao antigo credor. Por esta razãotambém, o cedido, se for cobrado pelo cessionário, podedefender-se opondo qualquer exceção que tiver, inclusive asrelativas à pessoa do cedente. Segundo a lei, “o devedorpode opor ao cessionário as exceções que lhe competirem,bem como as que, no momento em que veio a terconhecimento da cessão, tinha contra o cedente” (CC, art.294). Imagine que Darcy vendeu seu automóvel a Evaristopara pagamento em duas parcelas iguais, sendo a primeira naentrega do veículo e a segunda, em 60 dias. Considere queDarcy, no dia seguinte ao contrato, cedeu o créditocorrespondente à última parcela a Fabrício. Feita a entregado veículo, Evaristo constatou que nele havia sérios vícios.No prazo da lei, restituiu o carro a Darcy, desfez o negócio erecebeu de volta o dinheiro dado na entrada. Se Fabríciotentar cobrar-lhe o valor da segunda parcela, Evaristopoderá resistir a esta pretensão provando que a compra evenda do automóvel da qual se originara o crédito estádesconstituída por vício redibitório. Note que o vício noautomóvel é uma exceção (matéria de defesa) pessoal contraDarcy, mas Evaristo pode argui-la contra Fabrício porque acessão não altera a extensão da obrigação transmitida.

No tocante às relações do cessionário com o cedente,releva a responsabilidade deste último pela existência daobrigação transmitida. O cedente é responsável, perante ocessionário, pela existência do crédito ao tempo da cessão.

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Se transmitir direito que não possui, ele deve devolver aocessionário o valor da transmissão e compor os danos quetiver causado. No caso acima exemplificado, Darcy cedeu aFabrício um crédito que não existia, já que derivado de umacompra e venda rescindida por vícios na coisa. Fabrício, emdecorrência, não podendo cobrar o valor da última parcela(objeto da cessão) do devedor Evaristo, pode reavê-la deDarcy junto com a cabível indenização.

A lei imputa ao cedente a responsabilidade apenas pelaexistência do crédito ao tempo da cessão, não o consideraresponsável pela solvência do devedor. Este é um pontoimportante na disciplina da cessão de crédito. Se transmitirdireito inexistente, o cedente responde perante o cessionárioe deve ressarcir-lhe os prejuízos. Mas se o direito de créditoque transmitiu existia, não há como responsabilizá-lo caso ocessionário não venha a receber o pagamento em razão deinsolvência do cedido. Se não houvesse vício nenhum nocarro vendido a Evaristo e este, em seguida, tivesse suainsolvência decretada, Fabrício não teria direito de cobrarde Darcy o valor da parcela transmitida. A responsabilidadedo cedente limita-se à existência do crédito, não alcança asolvência do devedor (CC, art. 296) (para algumas noçõesintrodutórias sobre insolvência, convém consultar: Cap. 10,item 11.3).

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O cedente não responde pelasolvência do devedor, a não ser quetenha assumido expressamente estaobrigação. Ele responde, porém, pelaexistência do crédito no momento dacessão. Se transmitiu créditoinexistente, deverá ressarcir ocessionário.

Para que o cedente se responsabilize também pelasolvência do cedido, é indispensável que o instrumento decessão contemple cláusula expressa prevendo talresponsabilidade. Se omisso o documento representativo dacessão acerca da matéria, o cedente terá responsabilidadeapenas pela existência do direito que transmitira aocessionário ao tempo da cessão. Quando assumir, pordeclaração de vontade, a responsabilidade também pelasolvência do cedido, o cedente deve pagar ao cessionário ovalor do crédito transmitido, na hipótese de cair insolvente odevedor. Retoma, neste caso, o cedente a titularidade da

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posição ativa na relação obrigacional e pode habilitar-se noprocesso judicial de insolvência (ou na falência) do cedido,para tentar receber pelo menos parte de seu crédito.

Diz a lei que “o cedente, responsável ao cessionáriopela solvência do devedor, não responde por mais do quedaquele recebeu, com os respectivos juros”, acrescido doressarcimento das “despesas da cessão e as que ocessionário houver feito com a cobrança” (CC, art. 297). Aaplicação deste dispositivo deve ser feita com certa cautela.Como visto, na cessão onerosa, o cessionário normalmentepaga ao cedente valor inferior ao do crédito transmitido, paraobter ganhos com a cobrança do montante integral. Quandoa lei afirma que o cedente responde apenas pelo que recebeudo cessionário, isto não significa que este último poderáficar sem a remuneração esperada para o capital. A diferençaentre o valor da prestação transmitida e o pago ao cedentedeve ser considerada “despesa da cessão”. Quantificando:considere que o valor total do crédito cedido era $ 500 e ocessionário pagou ao cedente $ 450 pela cessão; a diferençade $ 50 tem a natureza de “despesa da cessão”, junto comoutros custos envolvidos na operação, porque estemontante, caso não possa ser pago pelo devedor insolvente,terá o mesmo efeito para o cessionário de um gasto feitopara titularizar o crédito.

Assim, se a cessão é feita com assunção, pelo cedente,de responsabilidade pela solvência do devedor, o

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cessionário pode cobrar-lhe o valor integral da prestaçãotransmitida, porque a diferença é uma despesa que o cedenteestá obrigado a ressarcir. Sem esta cautela na aplicação doart. 297 do Código Civil, a cessão onerosa não concederásuficientes garantias aos cessionários e, afastandopotenciais interessados na operação, deixará de cumprirsatisfatoriamente sua função de instrumento de mobilizaçãode crédito (cf. Gonçalves, 2004, 2:209/211).

2.2. Cessão civil e endossoExistem, na verdade, dois instrumentos jurídicos aptos à

mobilização do crédito: de um lado, a cessão de crédito(estudada pelo direito civil); de outro, os títulos de créditos(objeto do direito comercial).

Estes instrumentos não são igualmente aptos àcirculação econômica. A rigor, os títulos de crédito prestam-se melhor a esta finalidade do que o instituto civil da cessão,porque o regime do direito cambiário, que disciplina ostítulos de crédito, funda-se em regras menos rígidas que asdo direito civil.

A transmissão de direitos creditícios documentadosnum título de crédito à ordem denomina-se endosso. Por ele,o credor (endossante) transfere o título e os direitos nelematerializados a outrem (endossatário). Mas, ao contrário docedente (CC, art. 296), o endossante garante, em regra, nãosó a existência do crédito como também a solvência do

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devedor (Lei Uniforme de Genebra, art. 15). Além disso, odevedor não pode opor ao endossatário as exceçõespessoais que eventualmente tenha contra o endossante (LeiUniforme de Genebra, art. 17), enquanto o devedor podedefender-se contra o cessionário arguindo razões de defesapessoal contra o cedente (CC, art. 294).

O regime da circulação do crédito nodireito cambiário é diferente doregime da cessão civil de crédito emdois pontos principais:responsabilidade do sujeito ativoprimitivo pela solvência do devedor eoponibilidade das exceções pessoaiscontra o novo titular do direito. Asregras sobre estes pontos do direitocambiário facilitam mais amobilização do crédito que as do

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direito civil.

Estas diferenças significam mais garantias para oendossatário do que as asseguradas ao cessionário. Porisso, é mais comum, na mobilização do crédito, o emprego detítulos sujeitos ao direito cambiário do que o da cessão civil(Coelho, 1998, 1:406/408). Note-se que estas diferenças nosregimes jurídicos em questão devem continuar existindo,para que os particulares possam encontrar sempre a melhoralternativa jurídica para veicular e amparar os seusinteresses. Se querem titularizar instrumentos maisfacilmente negociáveis, devem optar pelos títulos de crédito(nota promissória, letra de câmbio etc.); caso desejemrestringir a circulação dos direitos correspondentes aonegócio que celebram, convém adotar os instrumentos dodireito civil.

3. ASSUNÇÃO DE DÍVIDAA obrigação passiva também pode ser objeto de

transmissão. Por ela, terceiro assume a dívida do devedororiginário e passa a ser o novo sujeito passivo da relaçãoobrigacional. A exemplo da cessão de crédito, pode ser feitaonerosa ou gratuitamente. Também como se passa com acessão, a assunção onerosa é operação de mobilização de

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crédito e a gratuita só ocorre entre amigos ou familiares.Na assunção de dívida onerosa, o objeto da transmissão

deve ser uma obrigação com vencimento a prazo. O alienantepaga, hoje, ao adquirente o valor da dívida com um descontoe este se obriga a pagar ao credor, no vencimento, seu valorintegral. Para o alienante, a vantagem está em cumprir aobrigação por valor inferior. Seu ganho é certo. Já oadquirente procurará obter lucro na operação empregando odinheiro recebido do alienante num investimento que lherenda, até o vencimento da obrigação, mais que o descontodado sobre o valor total da prestação. O rendimento quesuperar o desconto é a vantagem perseguida peloadquirente da dívida. A assunção é, assim, uma operaçãofinanceira de risco para o assuntor.

Na assunção de dívida, ocorre sucessão singular e nãouniversal. O adquirente do passivo torna-se, com efeito,devedor apenas da obrigação ou obrigações que tiveradquirido. Pelas demais obrigações e dívidas do alienante,não pode o adquirente ser responsabilizado.

A assunção de dívida é a transmissãode obrigação em que terceiro substituio primitivo sujeito passivo na relação

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obrigacional. Depende, para seconstituir, da anuência expressa docredor e implica a liberação dodevedor originário de suas obrigações.

Ao contrário da cessão de crédito, em que o sujeito dopolo oposto da relação obrigacional (no caso, o devedorcedido) não participa do ato, a assunção de dívida dependedo envolvimento deste, isto é, do credor assuntivo. Sem aexpressa concordância do credor, não pode ser feita atransmissão da dívida. Qualquer um dos participantes daassunção, alienante ou adquirente da dívida, pode assinalarprazo para que o credor manifeste sua concordância oudiscordância com a transmissão da obrigação. O prazo é delivre estipulação pela parte que instar o credor, mas osilêncio deste equivale à recusa do assentimento. Quer dizer,a concordância do credor deve ser expressa (CC, art. 299,primeira parte, e parágrafo único). Uma só exceção abre a leia esta regra: o adquirente de imóvel hipotecado podeassumir a dívida garantida pela hipoteca e notificar o credorpara que manifeste sua concordância. Se decorrer o prazo de30 dias sem qualquer manifestação, o silêncio neste caso équalificado pela lei como assentimento (CC, art. 303).

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Feita a assunção da dívida com o consentimento docredor, o devedor primitivo libera-se da obrigação porcompleto. Com o negócio de assunção aperfeiçoadomediante a anuência do sujeito ativo, o alienante daobrigação passiva deixa de ser obrigado e o credor só pode,a partir de então, exercer o seu direito contra o adquirente.Ressalva a lei apenas a hipótese de insolvência doadquirente ao tempo da assunção ignorada pelo credor.Neste caso, o devedor primitivo continua respondendoperante o credor pela obrigação transmitida e, uma vez asatisfazendo, poderá habilitar-se no processo judicial deinsolvência do adquirente para tentar reaver o que lhe haviapago no ato da assunção (CC, art. 299, in fine).

Dita a lei que “o novo devedor não pode opor ao credoras exceções pessoais que competiam ao devedor primitivo”(CC, art. 302). A obrigação do adquirente tem, assim, umarelativa autonomia em relação à do alienante, na medida emque não se transmitem as exceções pessoais. A transmissãode obrigação passiva opera, portanto, certa mudança naextensão da obrigação, efeito não verificável na cessão decrédito. Por exemplo, se Germano é devedor de Irene pelovalor de $ 500 (a vencer) e é dela credor por $ 200 (também avencer), pode ocorrer a compensação quando as duasobrigações se tornarem exigíveis. Neste caso, ambas secumprem simultaneamente mediante o pagamento, porGermano a Irene, da diferença de $ 300. Se antes do

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vencimento delas, porém, Germano transmite sua obrigaçãopassiva a Hebe, com anuência de Irene, é evidente que odireito à compensação não a acompanha. Hebe não podeopor contra Germano o direito à compensação de que eratitular Irene porque se trata de uma exceção pessoal, e, comovisto, o adquirente do débito não pode opor defesa dessetipo ao credor.

O adquirente de obrigação passivanão pode arguir contra o credor asexceções pessoais que o alienantetitularizava. Na assunção de dívida,opera-se certa mudança na extensãoda obrigação, com a relativaautonomia entre os direitos de defesado antigo e do novo sujeito passivo.

Muitas vezes, para assegurar o seu cumprimento, asobrigações passivas são garantidas pelo próprio devedor

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(através de hipoteca, caução de títulos, penhor etc.) ou porterceiros (fiança, aval, hipoteca etc.). Evidentemente, tambémas obrigações garantidas podem ser objeto de transmissão.

Pois bem, em relação às garantias da dívida transmitida,trata a lei de duas situações. Em primeiro lugar, das garantiasespeciais eventualmente concedidas pelo alienante. ParaRenan Lotufo, são desta classificação as garantias pessoaisdo devedor que não foram essenciais à constituição dovínculo obrigacional; aquelas que poderiam ter sidodispensadas pelas partes sem se desinteressarem pelaobrigação (2003, 2:175). Com a cessão, extinguem-se asgarantias especiais, a menos que o devedor primitivoconcorde em mantê-las (CC, art. 300). Claro está, porém, quetudo depende da vontade do credor. A despeito do previstoem lei, se o assuntivo condicionar a concordância com aassunção à manutenção das garantias especiais doalienante, prevalecerá sua vontade ou não haverátransmissão.

A segunda situação referente às garantias da dívidatransmitida tratada pela lei diz respeito à anulação daassunção. Preceitua o art. 301 do Código Civil que, se atransmissão da obrigação passiva for anulada (por qualquerrazão de invalidade dos negócios jurídicos), “restaura-se odébito anterior, com todas as suas garantias”. Assim,invalidada a assunção de dívida, retorna a obrigação passivaao patrimônio do devedor primitivo, perante o qual volta a

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ter seus direitos o credor. As garantias anteriormenteoutorgadas, caso tivessem sido desconstituídas pelo ato deassunção, se restabelecem. Há uma exceção a considerar:não se revigoram as garantias concedidas por terceiros quedesconheciam o vício da transmissão responsável pelaanulação (CC, art. 301, in fine). Por exemplo, imagine queJoão era devedor de Luiz por obrigação na qual Mário eNair eram fiadores. Suponha, agora, que João e Mário,mediante coação, forçam Osvaldo a assumir a obrigaçãopassiva do primeiro. Luiz e Nair desconhecem o vício nadeclaração de vontade de Osvaldo. Luiz, então, concordacom a assunção, ficando João, Mário e Nair desobrigados.Posteriormente, Osvaldo obtém em juízo a anulação daassunção de dívida. Em decorrência, restauram-se aobrigação de João e todas as garantias, exceto as deterceiros que desconheciam o vício; ou seja, a fiança dadapor Mário se revigora, mas não a concedida por Nair.

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Capítulo 16

ADIMPLEMENTODA

OBRIGAÇÃO:PAGAMENTO

1. CONCEITO DE PAGAMENTOPagamento é, tecnicamente falando, uma expressão

ambígua. Em sentido estrito, refere-se ao cumprimento deobrigação pecuniária. Nele, pagamento é a entrega ao sujeito

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ativo de dinheiro, com o preciso objetivo de ser cumprida(adimplida) a obrigação existente entre ele e o sujeitopassivo. Na linguagem cotidiana, normalmente se emprega apalavra apenas nesta acepção. Em sentido largo, pagamentosignifica o cumprimento de obrigação de qualquermodalidade. Aqui, não se restringe ao adimplemento deobrigação pecuniária, mas ao dar, fazer ou não fazer a quecorresponde a prestação. No contexto tecnológico, este é osentido que convém seja dado à expressão. Neste Curso,por isso, pagamento tem sempre o sentido largo, deadimplemento de qualquer obrigação.

Pelo pagamento, é cumprida a obrigação que sujeitava osujeito passivo ao ativo, satisfazendo-se o direito deste.Trata-se de negócio jurídico que põe fim ao vínculoobrigacional (Gomes, 1961:91/93; Gil, 1983:277/280). Eledesfaz a obrigação, desvinculando os sujeitos que estavamunidos por ela. Implica, em termos técnicos, a solução daobrigação (solutio). Após o regular e completo pagamento,feito com a observância das normas legais e contratuaisaplicáveis, o devedor não deve nenhuma outra prestação aocredor, e este nada mais lhe pode exigir.

Quando a execução da obrigação é voluntária, ela seexaure no pagamento. Se a prestação é entregueespontaneamente ao credor, paga-se a obrigação que ovinculava ao devedor. Por isso, alguns autores preferemtomar a expressão “pagamento” como sinônimo de

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cumprimento voluntário da obrigação (Pereira, 1962:144;Rodrigues, 2002:124; Gil, 1983:277; Planiol-Ripert, 1952,7:551). Na execução forçada, porém, pode haver tambémpagamento como um dos atos do processo judicial.Restringir o significado da expressão à hipótese decumprimento voluntário da obrigação não é a melhoralternativa, porque desconsidera a satisfação em juízo dosdireitos do sujeito ativo que, muitas vezes, também échamada de pagamento (CPC, arts. 708 e s.; LF, arts. 149 es.). Na verdade, como a execução forçada é necessariamentemais complexa que a voluntária, ela nunca se exaure no atode entrega da prestação ao credor. De qualquer modo, emdireito civil, estuda-se apenas o pagamento na execuçãovoluntária; do realizado em execuções judiciais ocupam-seoutros ramos do direito (o processual civil e o falimentar).Por essa razão, daqui para diante, sempre que se mencionarpagamento, cuidar-se-á do espontâneo, isto é, do realizadoindependentemente de qualquer constrangimento judicial dodevedor (cf. Diniz, 2003, 2:212).

A expressão “pagamento” tem doissentidos. De um lado, significa aentrega de dinheiro ao sujeito ativo em

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cumprimento de obrigação pecuniária(sentido estrito); de outro, oadimplemento de obrigação dequalquer natureza, mediante a entregaao sujeito ativo da prestação de dar,fazer ou não fazer que lhe é devida(sentido largo).

Por último nestas considerações introdutórias, cabedestacar que o pagamento é um dos modos de extinção daobrigação, mas não o único. Pelo pagamento, feito pelopróprio devedor ou por terceiro, desliga-se o sujeito passivodo vínculo que o sujeitava ao ativo. O ato,consequentemente, acaba com a obrigação, embora possa,em alguns casos, dar nascimento a outra (pagamento porsub-rogação, p. ex.). Por corresponder à execução voluntáriae ao ato objetivado pela execução forçada, porém, opagamento não esgota todas as possibilidades pelas quais aobrigação deixa de existir. Além do cumprimento, extinguem-na diversos outros fatos ou negócios jurídicos — novação,compensação, prescrição etc. —, que serão objeto de exame

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na sequência (Cap. 17).

2. OS SUJEITOSO pagamento é o ato pelo qual a prestação objeto da

obrigação é entregue ao credor. Quem realiza o pagamento,assim, é o sujeito que entrega a prestação — por vezes,designado na doutrina em latim: solvens. Na maioria doscasos, o pagador é o devedor, o sujeito passivo da relaçãoobrigacional. A lei, porém, valida, em determinadascondições, o ato de pagar realizado por terceiros (item 2.1).Por outro lado, o pagamento deve ser feito à parte ativa darelação — o accipiens. O credor, mesmo quando realizado opagamento na pessoa de seu representante, será obeneficiário do ato. É o sujeito a quem a prestação objeto daobrigação deve ser entregue (item 2.2).

2.1. O sujeito que pagaNo pagamento direto, que corresponde ao cumprimento

(voluntário ou judicial) da obrigação tal como esperadopelas partes quando da constituição, o ato é feito pelopróprio devedor, sujeito passivo da relação obrigacional.Como é ele que se encontra sujeito ao credor em razão daobrigação, o pagamento e a consequente extinção dovínculo de sujeição costuma ser do seu interesse.

Embora raramente, o pagamento pode ser feito tambémpor terceiros estranhos à obrigação. Não é fácil, de pronto,

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visualizar exemplos destes casos, porque as pessoas guiamseus atos, em geral, pelo atendimento dos própriosinteresses. Poucas vezes terceiro vê qualquer tipo devantagem em cumprir obrigação que não é dele, isto é, emadimplir no lugar de outrem, o devedor, determinadaobrigação. Quando isso se verifica, porém, incidem asnormas sobre a matéria (CC, arts. 304 a 306).

No pagamento de obrigação por terceiro (isto é, porsujeito diverso do devedor), a lei distingue os efeitos do atosegundo seja o solvens interessado ou não na extinção dovínculo. Exemplo típico de terceiro com interesse no fim dasujeição obrigacional é o fiador. Temendo que o afiançadonão honre, no vencimento, a obrigação garantida, o fiadortem interesse em pagá-la tempestivamente para evitar osacréscimos da mora. Também pode ser considerado terceirointeressado o potencial sucessor (um descendente, p. ex.)que não quer ver afetado em execução judicial determinadobem do patrimônio do devedor que ele espera receber porherança. O terceiro é interessado, portanto, quando odescumprimento da obrigação pode afetar seu patrimônio,efetiva ou potencialmente. No caso do fiador, se o afiançadonão pagar o credor, ele terá seu patrimônio efetivamenteatingido numa execução judicial aforada contra ele; no casodo descendente, a afetação é sempre potencial, porque odesejo de um dia receber, por herança, determinado bempode ser frustrado por fatos jurídicos fora de seu controle

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ou mesmo por atos do sucessor praticados ainda em vida(testamento, alienação, reconhecimento de filhos etc.).

Terceiro sem interesse no adimplemento da obrigação é,a seu turno, o estranho à relação obrigacional que não correo risco de ser, efetiva ou potencialmente, afetado em seupatrimônio caso o devedor a descumpra. Claro que pelomenos uma vantagem extrapatrimonial esse estranho devevislumbrar no ato, para interferir na relação obrigacional como propósito de solvê-la. O terceiro não interessado, assim,costuma motivar-se por sentimentos de afeição, filantropiaou dever moral. Pense no amigo ou parente que, sabendodas dificuldades por que passa o devedor, apresenta-se aocredor com o objetivo de cumprir a obrigação daquele.

Pois bem, vejam-se as diferenças no tratamento jurídicodas duas situações (pagamento por terceiro com ou seminteresse patrimonial na solução da obrigação).

O terceiro interessado tem o direito de pagar aobrigação, independentemente da vontade do devedor oudo credor. Aliás, em se negando o sujeito ativo a receber opagamento do terceiro interessado, assegura a lei possa esteúltimo valer-se das ações judiciais próprias, como aconsignação em pagamento (CC, art. 304, caput; CPC, arts.890 e s.).

Como tem interesse patrimonial na extinção daobrigação e direito de pagar, o terceiro, neste caso, cumpre aobrigação em nome próprio e não no do sujeito passivo. E,

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em consequência, sub-roga-se nos direitos do credor (CC,art. 346, III). Quer dizer, passa a titularizar todos os direitos,ações, privilégios e garantias que tinha o credor primitivocontra o devedor (art. 349).

O terceiro com interesse patrimonialna solução da obrigação tem o direitode proceder ao pagamento,independentemente da vontade dodevedor ou do credor. Neste caso,opera-se a sub-rogação, transferindo-se ao terceiro pagador todos osdireitos, ações, preferências egarantias titularizados pelo credorprimitivo.

O terceiro sem interesse patrimonial na solução da

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obrigação pode fazer o pagamento em nome e por conta dosujeito passivo da relação obrigacional ou em nome próprio.Dependem exclusivamente da vontade do terceiro pagadoros efeitos que pretende emprestar ao pagamento.

Quando o terceiro não interessado (patrimonialmentefalando) na solução da obrigação declara fazer o pagamentoem nome e por conta do devedor, ele pode ser impedido depraticar o ato por oposição do devedor. Perante o credor,destaque-se, o terceiro sem interesse que paga em nome epor conta do devedor tem as mesmas ações judiciaisasseguradas ao terceiro interessado, que conduzem àexoneração do sujeito passivo (a consignação empagamento, basicamente). Mas, para pagar validamente, énecessário que o devedor tenha ciência da intenção doterceiro e a ela não se oponha (CC, art. 304, parágrafo único).Havendo oposição do devedor comunicada ao credor, estenão deve receber do terceiro não interessado o pagamentoda obrigação em nome e por conta do devedor; estarápraticando, neste caso, ato contrário à lei e poderá vir a serresponsabilizado civilmente pelos danos, inclusive morais,que o devedor sofrer com o ato. Além disso, se o terceiropagador declara pagar em nome e por conta do devedor, nãopoderá cobrar nada deste em regresso. Estará, aqui,assumindo integralmente a dívida e renunciando ao direitode ser ressarcido pelo desembolso que realizou.

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O terceiro sem interesse patrimonialna solução da obrigação não podepagá-la “em nome e por conta dodevedor” se este se opuser. Mesmocom o conhecimento e anuência dosujeito passivo, o terceiro pagador nãointeressado que paga “em nome e porconta do devedor” não tem direito aoreembolso do que despendeu com opagamento.

O terceiro não interessado que declara estar fazendo opagamento em nome próprio não tem assegurado, na lei,contra o credor, o mesmo direito do terceiro interessado e donão interessado que paga em nome e por conta do devedor.Ele precisa, por isso, contar com a anuência tanto do credorcomo do devedor para proceder ao pagamento. O terceiropagador não interessado que, nestas condições, solver a

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obrigação em nome próprio terá, em princípio, direito de serreembolsado pelo devedor (CC, art. 305). Estabelece,contudo, o art. 306 do Código Civil que “o pagamento feitopor terceiro, com desconhecimento ou oposição do devedor,não obriga a reembolsar aquele que pagou, se o devedortinha meios de ilidir a ação”. Este preceito não se aplica aoterceiro com interesse na solução da obrigação, porque eletem o direito de proceder ao pagamento independentementeda vontade do devedor; e também não se aplica ao terceirosem interesse na solução da obrigação que faz o pagamentoem nome e por conta do devedor, porque ele não tem direitoao reembolso. Aplica-se o art. 306 apenas ao terceiro nãointeressado que declara pagar em nome próprio. Se ele o fizersem conhecimento do devedor, ou a despeito da oposiçãodeste, ele perde o direito ao reembolso, a menos que proveque o devedor não tinha meios para ilidir a ação.

O terceiro não interessadopatrimonialmente na solução daobrigação só pode pagá-la “em nomepróprio” com a anuência do devedor edo credor. Ele tem, em princípio,

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direito ao reembolso do que despendercom o pagamento. Perde este direito seprocedeu sem conhecimento dodevedor ou a despeito da oposiçãodeste, a menos que o sujeito passivonão pudesse ilidir a ação.

Em nenhuma hipótese o terceiro não interessado se sub-roga nos direitos do credor. Tenha praticado o ato em nomee por conta do devedor ou em nome próprio, o terceiro seminteresse na solução da obrigação não realiza pagamento porsub-rogação. Não se transferem ao patrimônio do solvens,neste caso, todos os direitos, ações, garantias e privilégiostitularizados pelo anterior sujeito ativo. Em outros termos, odireito ao reembolso de que é titular o terceiro nãointeressado que paga em nome próprio não se confunde coma sub-rogação.

Não cabe o pagamento da obrigação por terceiroquando ela tiver por objeto uma prestação personalíssima(intuitu personae). Neste caso, o sujeito passivo éinsubstituível e a obrigação só por ele pode ser cumprida.Quem contrata o parecer de renomado jurista não terá seu

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direito satisfeito senão mediante o fazer da pessoacontratada, de ninguém mais. Terceiro, ainda que tambémjurista afamado, não pode proceder ao pagamento daobrigação entregando ao credor trabalho de sua autoria.Quando a prestação é personalíssima, por conseguinte, nãoincidem as regras acima examinadas.

2.2. O sujeito a quem se pagaNo Brasil da atualidade, quando se trata de obrigação

pecuniária, a maioria dos pagamentos fazem-se através dosistema bancário. Cumpre-se a obrigação, neste caso,normalmente por meio de Transferência Eletrônica deDisponibilidade (TED), Documento de Crédito (DOC),cheque administrativo, boleto bancário ou depósito dedinheiro ou cheque na conta bancária do credor. É raro, nasobrigações pecuniárias de valor não desprezível, ser ocredor procurado pessoalmente pelo devedor para passar-lhe às mãos papel-moeda na quantidade correspondente aovalor da prestação. Quando a obrigação pecuniária éadimplida através de bancos, não costuma haver dúvidasacerca da adequada destinação do pagamento: confirmadoque a liquidação de qualquer daqueles instrumentosbancários resultou em crédito em favor do credor, estácumprida a obrigação. Mas, se a obrigação pecuniária écumprida mediante entrega direta do numerário ao credor(isto se verifica, normalmente, nas prestações de menor

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valor) ou se se trata de obrigação não pecuniária, podemsurgir dúvidas acerca da correta destinação do pagamento.Isto é, a pessoa a quem se fez a entrega da prestação objetode obrigação era mesmo a credora, a parte ativa da relaçãoobrigacional? Quem paga deve acautelar-se adotando asprovidências necessárias para se certificar de que estárealmente cumprindo a obrigação perante o sujeito certo. Seo devedor paga a quem não é o verdadeiro credor, emprincípio não realiza pagamento nenhum. Se for acionadojudicialmente pelo titular do crédito, não poderá alegar tê-lojá satisfeito porque isso, de fato, não aconteceu. O terceironão credor a quem o pagamento foi feito, por evidente, devedevolver o que recebeu indevidamente ao solvens (Cap. 20,item 4), mas o credor não pode ser prejudicado pelo erro emque incorreu o devedor.

Não tem eficácia liberatória, portanto, o pagamento feitoa quem não é o credor. Só se libera o sujeito passivo daobrigação quando a prestação é entregue ao sujeito ativo.Isto em princípio; há duas hipóteses em que o pagamentofeito a quem não é o credor é eficaz, de acordo com a lei:quando o terceiro recebedor é representante de direito dosujeito ativo ou um credor aparente (ou putativo).

O pagamento deve ser efetuado ao

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credor, à parte ativa da relaçãoobrigacional. Se o ato é feito a quemnão é credor, não tem eficácialiberatória, permanecendo o devedorsujeito à obrigação. Em duas hipótesesesta regra é excepcionada: opagamento ao representante de direitodo credor ou o feito ao credoraparente. Nestes casos, embora aprestação não seja entreguediretamente à pessoa do credor, opagamento tem eficácia liberatória.

Na primeira, o representante age em nome do credor. Opagamento efetuado para ele é, na verdade, feito ao própriorepresentado. Quando o devedor paga ao representante dosujeito ativo, está liberando-se validamente da obrigação.

Lembre que a representação pode ser legal ou

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convencional, conforme provenham os poderes dorepresentante de disposição da lei ou da vontade dorepresentado. Os pais representam o filho absolutamenteincapaz porque a lei assim preceitua (CC, art. 1.634, V). Se odevedor entrega a prestação devida a pessoa menor de 16anos aos pais dela, o pagamento é válido e eficaz porquefeito na pessoa de representante legal do credor. Em algunscasos, a representação legal é chamada de “judicial”, porquea pessoa investida nos poderes de representação legal éescolhida pelo juiz. O inventariante, neste contexto, é orepresentante judicial do espólio (Podestá, 1997:136).

Na representação convencional, os poderes dorepresentante são outorgados por declaração de vontade dorepresentado. Vários são os meios de expressão da vontadede outorgar poderes de representação. Tanto érepresentante do credor o mandatário investido nestacondição por procuração outorgada em cartório como omero portador do documento de quitação (normalmente, orecibo). A lei não exige formalidades específicas paravalidade da investidura do representante convencional,bastando que a declaração de vontade do credorrepresentado seja comunicada ao devedor por meiosconfiáveis. Imagine que Antonio, ao adquirir peça deantiguidade de Benedito, informa que ela pode ser entreguea Carlos. Neste caso, o credor procedeu informalmente àindicação de um “representante” para receber, por ele, o

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pagamento (isto é, a entrega da antiguidade). A propósito, alei considera que o portador da quitação está, em princípio,autorizado pelo credor a receber o pagamento. Se o sujeitoativo lança sua assinatura num documento de quitação e opassa às mãos de pessoa de sua confiança, presume-se quea está encarregando de receber o pagamento em nome dele.É outra maneira de o accipiens informalmente indicar terceiropara o recebimento da prestação. Ressalva, contudo, quenão prevalece a presunção se as circunstâncias acontrariarem (CC, art. 311). O devedor não deve pagar oportador do recibo de quitação se for ele, por exemplo, ummendigo. Convém, neste caso, confirmar antes a legitimidadeda posse do documento com o credor, porque o maisprovável é que o mendigo tenha encontrado documento quese extraviou e não esteja realmente autorizado por ele areceber o pagamento (o exemplo é de Maria Helena Diniz;2003, 2: 221).

A segunda hipótese legal de eficácia do pagamentofeito a quem não é o sujeito ativo da relação obrigacionalencontra-se na figura do credor aparente (Gomes,1967:114/126). Para que o pagamento tenha plena eficácialiberatória, neste caso, devem convergir duas condições: aaparência de ser o accipiens o titular do direito ao crédito e aboa-fé do solvens. Diz a lei que “o pagamento feito de boa-féao credor putativo é válido, ainda provado depois que nãoera credor” (CC, art. 309).

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O credor é putativo quando parece ser, mesmo ao maiscauteloso dos devedores, o titular do direito à prestação.Imagine que o funcionário da loja de informáticaencarregado de entregar o notebook ao consumidor depare-se, chegando ao endereço mencionado na nota fiscal, comum homem ao volante de carro saindo da garagem epergunte-lhe se mora ou trabalha naquela casa. Diante daresposta afirmativa, o funcionário entrega-lhe omicrocomputador portátil e colhe sua a assinatura no recibodo canhoto da nota fiscal. Estas circunstâncias indicam queaquele homem poderia ser o credor, ou alguém legitimado areceber a prestação em seu nome. Se estava, na verdade,roubando o automóvel, isto não podia ser percebido pelofuncionário da loja de informática. Neste exemplo, estácumprida a primeira condição para eficácia desta hipótese depagamento feito a quem não é o credor: a aparência de ser oaccipiens o titular do direito. A segunda condição é a boa-féde quem faz o pagamento. Para a eficácia do pagamento aocredor putativo, é indispensável que o devedor desconheçao fato de estar entregando a prestação a quem não titularizao direito de recebê-la. Assim sendo, se o devedor énotificado no sentido de não pagar a determinada pessoa,mesmo que ela aparente ser a credora, e, mesmo assim, o faz,está agindo sem boa-fé; a entrega da prestação, aqui, seriaineficaz como ato de liberação do vínculo obrigacional.

Ao lado das normas de pagamento eficaz, malgrado a

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entrega da prestação a quem não é credor (as hipóteses dorepresentante e do credor putativo), encontram-se noCódigo Civil as do pagamento ineficaz, apesar de feito àpessoa do credor. Em duas situações, note-se, o sujeitopassivo cumpre a obrigação perante o ativo, mas dela não selibera: a) se a quitação é outorgada por credor incapaz quenão se beneficiou do pagamento (CC, art. 310); b) se ocrédito havia sido penhorado em garantia de direitos deterceiros ou por estes questionado (CC, art. 312).

Na primeira situação, o objetivo da ineficácia é aproteção do incapaz. Se o devedor sabe que o credor nãotem capacidade para dar a quitação sem ser representado ouassistido na forma da lei, deve abster-se de entregar-lhediretamente a prestação; deve, para liberar-se eficazmente daobrigação, solicitar a assinatura do representante ou doassistente legal no recibo. Caso não adote esta cautela eentregue a prestação ao incapaz, só estará liberado dovínculo obrigacional se provar que ela reverteu efetivamenteem benefício deste último. É do devedor o ônus da prova. Sepreferiu pagar ao incapaz e eventualmente não se acautelouno sentido de reunir e conservar os elementos quedemonstrem a efetiva reversão da prestação em favor deste,o devedor está obrigado a pagar novamente a obrigação. Arazão de ser do preceito é fácil de entender. O incapaz émerecedor de especial atenção do direito porque não tem odiscernimento suficiente para preservar seus interesses nos

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negócios jurídicos de que participa. Ao assinar a quitação,pode, sem perceber com nitidez, declarar que recebeu maisdo que o realmente entregue. A lei o protege, imputando aodevedor o ônus da prova de que o incapaz foi efetivamentebeneficiado pela prestação descrita no recibo, sob pena deter que entregá-la uma vez mais.

Em duas situações o pagamento éineficaz perante terceiros, mesmotendo sido feito ao sujeito ativo darelação obrigacional: se a quitação édada pelo credor incapaz e aprestação não reverteu efetivamentepara ele ou se o crédito é objeto depenhora ou impugnação conhecidas dodevedor.

Na segunda situação, a ineficácia do pagamento é

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estabelecida em lei para proteção de interesses de terceiros.São duas as hipóteses nela abrangidas. De um lado, a docredor do credor que obteve, em juízo, a penhora do crédito(isto é, da prestação a ser entregue pelo devedor) comogarantia de seu direito. Se da penhora tiver sido intimado odevedor, o pagamento feito ao seu credor será ineficazperante o terceiro exequente. Um exemplo ajudará a aclarar aregra. Se Darcy é credor de Evaristo por $ 100 e deve aFabrício $ 80, este último pode obter, em garantia daexecução judicial, a penhora sobre o crédito que aqueletitulariza. Sendo Evaristo intimado da constrição judicial,fica impedido de pagar o valor devido diretamente a Darcy(deve, para liberar-se da obrigação, depositar o dinheiro emjuízo). Se, a despeito da intimação, proceder ao pagamento,ele será ineficaz perante Fabrício, que pode exigi-lonovamente de Evaristo. De outro lado, abrange a segundasituação de ineficácia de pagamento feito ao credor tambéma impugnação do crédito, por terceiros, se conhecida dodevedor. Imagine que o terceiro reivindica do devedor acoisa objeto da prestação contratada com o credor; édecorrência jurídica da reivindicação que o devedor não apoderia ter alienado a ninguém, de modo que o terceiroimpugna também o direito do credor (o crédito). Após suacientificação, o devedor que realizar o pagamento corre orisco de ter de efetuá-lo novamente ao terceiro, casoprocedente a reivindicação deste.

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3. OBJETO DO PAGAMENTOO objeto do pagamento é a prestação. Entrega-se ao

sujeito ativo a coisa, o fazer ou o não fazer devido. Nasobrigações correspondentes a negócios jurídicos bilaterais,como na compra e venda, por exemplo, tanto o compradorcomo o vendedor devem realizar pagamentos. O vendedordeve a obrigação de dar a coisa vendida enquanto ocomprador é o sujeito passivo da de pagar o preço. Quandoo vendedor entrega o bem objeto de contrato ao comprador,está fazendo o pagamento de sua prestação. Do mesmomodo, quando o comprador entrega o dinheiro do preçocontratado ao vendedor, também está fazendo o pagamentoda prestação a que se encontra obrigado.

Possível sistematização da matéria classifica opagamento, segundo o objeto, em três categorias: emdinheiro, bens e conduta. As obrigações de dar são pagaspelas duas primeiras, enquanto a terceira se refere aopagamento das de fazer ou não fazer.

a) Pagamento em dinheiro. Nas obrigações pecuniárias,o objeto do pagamento é o dinheiro. No Brasil, desde osanos 1930, o pagamento deve ser realizado, em princípio,com moeda corrente nacional, ou seja, a partir de 1994, com oReal (CC, art. 315). São, em regra, nulos de pleno direito osnegócios jurídicos executáveis no Brasil com pagamento emouro ou moeda estrangeira (CC, art. 318; Dec.-lei n. 857/69,art. 1º). Tal vedação absoluta objetiva fortalecer a moeda

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nacional como instrumento de política econômica. Semoedas estrangeiras tivessem curso legal no Brasil e osagentes econômicos pudessem cumprir suas obrigaçõescom elas, as interferências do governo para ampliar oureduzir a liquidez do mercado, visando, por exemplo,administrar as metas de inflação, poderiam resultarineficazes. Excepcionalmente, porém, admite o direitobrasileiro que se paguem obrigações pecuniárias com moedaestrangeira. Seu emprego é permitido em pagamentosrelativos a importação ou exportação, financiamento ougarantias à exportação, compra e venda de câmbio e nasobrigações em que um dos sujeitos seja residente no exterior(exceto locação de imóveis situados no Brasil) (Dec.-lei n.857/69, art. 2º). Afora esses casos, as dívidas de dinheiropagam-se unicamente com Reais.

O pagamento em dinheiro deve serfeito em Reais. Apenas em casosexcepcionais a lei autoriza opagamento em moeda estrangeira:importação ou exportação,

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financiamento ou garantias àexportação, compra e venda de câmbioe se um dos sujeitos é residente noexterior (exceto na locação de imóveissituados no Brasil).

Observa-se, no pagamento em dinheiro, o valor nominalda moeda, isto é, a entrega ao sujeito ativo de cada unidadede papel-moeda de R$ 100,00 (valor nominal ou de face)corresponderá ao pagamento de R$ 100,00 do valor total daobrigação pecuniária, nem mais, nem menos. Este é oprincípio do nominalismo, que visa também fortalecer amoeda nacional. Se o credor pudesse exigir do devedor, nopagamento de obrigação de R$ 50.000,00, a entrega de 600notas de R$ 100,00, o dinheiro brasileiro não valeria o queestampa valer. Cada real, assim, liquida um real do total daobrigação pecuniária, necessariamente.

Durante muito tempo, tomou-se como incompatível como princípio do nominalismo a escala móvel. Até dois terçosdo século passado, discutia-se a validade de cláusulascontratuais de correção monetária em face de preceitoslegais que prestigiavam esse princípio. Na verdade, tratava-

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se de uma confusão. O nominalismo não é incompatível coma escala móvel.

A expressão monetária da obrigação aumenta para que opoder de compra do dinheiro correspondente ao seu valorno momento da execução coincida com o poder de compraexistente quando da constituição. Explico. O dinheiro tem oseu poder de compra variável segundo a inflação oudeflação. Ao longo do tempo, a tendência é a redução, emgraus variados, do poder de compra de todas as moedas,inclusive as mais fortes. A maioria das coisas que se podiamcomprar, em 1994, com R$ 100,00 no Brasil ou com U$100.00 nos Estados Unidos não é mais, hoje em dia, vendidapor tal preço nesses países. Para atenuar a redução do poderde compra do Real, nas obrigações em dinheiro a médio oulongo prazo, é largamente utilizada na economia brasileira acorreção monetária. Prevê-se contratualmente que opagamento será no valor de x Reais corrigidos segundoalgum índice referenciado à perda do poder aquisitivo damoeda nacional (IGP-M, IPCA etc.). Deste modo, entende-seque é preservado o poder de compra da moeda dopagamento. O valor atualizado da expressão monetária daprestação, em princípio, possibilitaria a compra, na execuçãoda obrigação, das mesmas coisas que se poderiam comprarcom igual soma de dinheiro quando da constituição dela.

O nominalismo não se prejudica pela cláusula de escalamóvel porque, prevista esta, continua a se “trocar”, no

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pagamento, igual quantidade de papel-moeda e de valor daobrigação. Se a expressão monetária desta última aumenta, éevidente que será necessária maior quantidade de moeda.Porém, estará sendo ainda observado estritamente o valornominal dela, enquanto cada real em dinheiro solver um realdo valor total da obrigação. De qualquer modo, em razão dosquestionamentos passados, o direito positivo contemplanormas que tornam inquestionável a compatibilização entreo nominalismo e a escala móvel. No Código Civil, porexemplo, prevê-se que “é lícito convencionar o aumentoprogressivo de prestações sucessivas” (art. 316). Mais àfrente, trato de outros temas relacionados à correçãomonetária (Cap. 18, subitem 4.1.2.3).

b) Pagamento em bem. Quando a obrigação de dar nãoé pecuniária, ao sujeito ativo é entregue um bem. O objetodo pagamento, neste caso, são as coisas suscetíveis deavaliação em dinheiro, as valiosas para homens e mulheres.Nesta extensa categoria jurídica, encontram-se não somenteos bens corpóreos, móveis ou imóveis, como os incorpóreos(isto é, os direitos); os divisíveis e indivisíveis; os fungíveise infungíveis. Assim, na locação de um apartamento, olocador cumpre a obrigação contraída dando a posse doimóvel ao locatário; no empréstimo de livro, a prestação doleitor é adimplida pela devolução da coisa certa à biblioteca;na cessão de créditos, o cedente paga sua obrigaçãoentregando ao cessionário um bem incorpóreo; o fazendeiro

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que aliena determinado número de cabeças de gado de certaraça deve pagar a prestação em animais na quantidade e dogênero contratado; e assim por diante. Nesses exemplos, opagamento sempre tem por objeto um bem.

A entrega do bem ao sujeito ativo pode ser feita a títulode transferência da propriedade ou somente da posse. Aobrigação do vendedor paga-se mediante a transmissão dapropriedade do bem objeto de pagamento; já a do locador oucomodante, pela da posse, conservando o solvens apropriedade. Se o pagamento importar transferência dapropriedade do objeto, sua eficácia está condicionada atitularizar o sujeito passivo o direito de aliená-lo (CC, art.307, caput). Em regra, ninguém pode transferir mais direitosdo que possui (há exceções, principalmente no âmbito dodireito comercial); desse modo, somente o dono da coisapode entregá-la a outrem, a título de pagamento deobrigação de dar não pecuniária que importa transmissão depropriedade. A entrega de bem ao sujeito ativo por quemnão é seu dono não é eficaz como pagamento; é ato jurídicoinexistente, insuscetível de solver a obrigação.

Outro modo de estudar esta regra consiste nacontextualização na extensão do direito de propriedade dosujeito passivo. Note que o ativo tem o direito, pelo vínculoobrigacional, de receber o bem que lhe foi entregue por atodo não proprietário. Ora, quando a lei considera ineficaz talato, segue-se que o credor deve restituir ao proprietário o

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bem que não só havia recebido como também deveria ter-lhesido entregue. Como explicar esta previsão legal: o sujeitoativo para quem o bem deveria ter sido entregue empagamento da obrigação fica, pela ineficácia deste, obrigadoa restituir ao passivo o mesmo bem? Se a obrigação é de darcoisa incerta, explica-se a ineficácia pelo reconhecimento aodevedor do direito de escolher ele próprio quais exatamenteos bens a entregar ao credor em pagamento (salvo previsãocontratual em contrário). Se o não proprietário escolheu,para dar ao sujeito ativo em cumprimento da venda de gado,bois e vacas que não seriam os escolhidos pelo proprietário,o pagamento é ineficaz para que prevaleça a vontade deste enão daquele. Não sendo, porém, do devedor a escolha e nasobrigações de dar coisa certa, a única explicação cabívelaponta como valor jurídico prestigiado pelo art. 307, caput,do Código Civil: o direito de o sujeito passivo decidir, nomomento da execução da obrigação, se irá cumpri-la ou não.Trata-se de preceito, deste modo, que reflete uma anacrônicaproteção absoluta da propriedade, de certo modoincompatível com os valores atualmente perseguidos pelodireito civil.

O pagamento a ser feito em bens só éeficaz se quem está pagando tem

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direito de aliená-los. É uma regra detutela do direito de propriedade quedesconsidera o fato de o sujeito ativoreceber, muitas vezes, exatamente aprestação que lhe era devida.

O pagamento mediante transferência da propriedade deum bem feito por quem não tinha o direito de aliená-lo éeficaz apenas numa hipótese excepcional: se o objeto erabem fungível e o credor de boa-fé já o tiver consumido aotempo em que o sujeito passivo reclamar a restituição (CC,art. 307, parágrafo único). Neste caso, na proteção da boa-féd o accipiens, estabelece a lei a eficácia do pagamento,devendo o sujeito passivo proprietário do bem consumidoconformar-se com o ato praticado pelo terceiro nãoproprietário.

Quando o bem correspondente à prestação deve sermensurado ou pesado, o pagamento depende do critério demedida ou pesagem a ser adotado. Se o título não é claroquanto a isso, considera-se que as partes aceitaram oscritérios correntes no lugar da execução (CC, art. 326).Imagine-se que o contrato de venda de imóvel rural medindo

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10 alqueires não define o critério para a medição. O tamanhodo alqueire, sabe-se, varia de região para região no Brasil.Em São Paulo, corresponde a 24.200 m2, em Minas Gerais, a48.400 m2 e no Nordeste, a 27.225 m2 (Diniz, 1998, 1:175). Senão há critério para mensuração definido pelas partes,prevalecerá o adotado no lugar do pagamento da obrigaçãodo vendedor, isto é, o da região em que está localizado oimóvel.

c) Pagamento em conduta. Nas obrigações de fazer ounão fazer, o pagamento tem por objeto uma conduta dosujeito passivo. Esta pode traduzir-se numa prestação deserviços (a obrigação do advogado de defender em juízo osinteresses do cliente) ou em declaração de vontade (a doacionista que se compromete a votar em determinada pessoapara diretor-presidente da sociedade anônima). Asobrigações personalíssimas têm por objeto conduta queapenas o respectivo sujeito passivo pode adotar. Suaexecução forçada, por esta razão, é sempre subsidiária porindenização. O devedor que se recusa a pagar em conduta aobrigação só pode ser judicialmente compelido a indenizar ocredor. As demais obrigações de fazer ou não fazer podemser executadas de forma subsidiária por prestaçãoequivalente ou mesmo específica, porque a conduta objetode pagamento é adotável por outras pessoas além do sujeitopassivo, ou mesmo, no caso de consistir ela na emissão devontade, pelo juiz.

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4. ALTERAÇÃO DO OBJETO DO PAGAMENTOEm princípio, o objeto do pagamento é inalterável, quer

dizer, inalterável por vontade unilateral de uma das partes(solvens ou accipiens). Em virtude do princípio dainalterabilidade do objeto do pagamento, nenhuma daspartes pode sozinha ampliá-lo, reduzi-lo ou substituí-lo.Constituída a obrigação, negocial ou não negocialmente, osujeito passivo é devedor e o ativo credor exatamente daprestação contratada ou prevista em lei, nem mais, nemmenos. O princípio da inalterabilidade do objeto estáassentado no art. 313 do CC: “o credor não é obrigado areceber prestação diversa da que lhe é devida, ainda quemais valiosa”. Desta fórmula conclui-se que a anuência dosujeito ativo é condição necessária para a alteração doobjeto da prestação, se o sujeito passivo a pretende. Nemmesmo se a prestação oferecida pelo devedor for maisvaliosa que a devida, está obrigado o credor a recebê-lacontra a vontade. Veja que a anuência do credor é condiçãonecessária, mas não suficiente, já que também ele não pode,por ato unilateral de vontade, alterar o objeto da prestação.

A inalterabilidade do objeto implica a impossibilidade depagamento parcial contra a vontade de qualquer das partes(exceto se previsto no título da obrigação). Se o credor temdireito ao recebimento de toda a prestação, ele não éobrigado a aceitar parte dela. Do mesmo modo, se o devedorestá obrigado a prestar por inteiro, não pode ser compelido a

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fazê-lo por partes contra sua vontade. Assim é, mesmoquando divisível o objeto da obrigação (CC, art. 314). Odevedor que está obrigado a entregar certa quantia emdinheiro ao credor não pode forçar este último a contentar-se com parte dela. O sujeito ativo pode simplesmenterecusar-se a receber o montante parcial oferecido pelopassivo e, em seguida, acioná-lo judicialmente pordescumprimento da obrigação. A menos que o accipiensaceite a alteração do objeto, a pretendida satisfação de partedo seu direito tem significado jurídico equivalente ao doinadimplemento. De modo similar, embora menos comum, seo credor quer receber, no vencimento, apenas parte daprestação, o devedor que deseja entregá-la inteira não podeser impedido de cumprir a obrigação. Quer dizer, a menosque o solvens aquiesça com a alteração do objeto daprestação, o desejo do credor de receber apenas parte dodevido não tem amparo jurídico.

A prestação não pode ser ampliada,reduzida ou substituída por uma daspartes isoladamente (princípio dainalterabilidade do objeto da

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obrigação). Somente em duassituações opera-se a alteração doobjeto: revisão judicial ou acordoentre os sujeitos da obrigação.

O objeto da prestação pode ser alterado só em duashipóteses.

Primeira, por revisão judicial. Sempre que, entre aconstituição e a execução, o valor da prestação tornar-semanifestamente desproporcional, por motivos imprevisíveis,o interessado pode requerer ao juiz que a corrija com oobjetivo de assegurar seu “valor real” (CC, art. 317). Nasobrigações negociais, considera-se que devedor e credorconcordaram com as respectivas prestações por tomá-las,segundo a perspectiva de cada um, como equivalentes. Há,por assim dizer, equilíbrio entre as prestações do sujeitoativo e do passivo. Ocorre que fatores imprevisíveis podemromper o equilíbrio vislumbrado no momento da constituiçãoda obrigação. Segundo a teoria da imprevisão, se o valor daprestação se altera significativamente em decorrência defatores que a parte não podia antever, é justo que elaobtenha em juízo a revisão desse valor de modo a neutralizaro desequilíbrio superveniente. A teoria da imprevisão será

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examinada mais à frente (v. 3).Segunda, por mútuo acordo entre as partes. De fato, em

concordando o accipiens com a mudança da prestaçãopretendida pelo solvens, ou vice-versa, nada obsta que elaaconteça. Sempre que credor e devedor se puserem deacordo no tocante à forma de se dar cumprimento àobrigação, prevalecerá o contratado entre eles. Assim é,aliás, mesmo se a obrigação tem origem não negocial. SeAntonio foi o culpado por acidente de trânsito, em virtudedo que deve a Benedito indenização por ato ilícito, emconcordando este último, por exemplo, com o parcelamentoou redução do valor da dívida, altera-se o objeto dopagamento. O princípio da inalterabilidade do objeto daobrigação afasta a possibilidade de o sujeito passivopretender, por sua exclusiva vontade, livrar-se da sujeiçãopagando prestação diversa da devida, e a de o sujeito ativoexigir, unilateralmente, prestação diversa da que tem direito.

A alteração do objeto do pagamento por mútuo acordoentre as partes é chamada de dação em pagamento, que seráexaminada em seguida (item 8.3).

5. PROVA DO PAGAMENTOA prova do cumprimento da obrigação cabe ao devedor.

Se for demandado em juízo para entregar a prestação a quese obrigara e alegar que já a adimpliu, caberá a eledemonstrar a veracidade deste fato. Por isso, o devedor que

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cumpre a obrigação tem direito à quitação. Esta é umnegócio jurídico praticado pelo credor consistente nadeclaração de ter ele recebido a prestação correspondente àobrigação. Como a quitação é direito do devedor, pode estelegitimamente reter o pagamento enquanto o credor não lhadá (CC, art. 319).

Normalmente, a quitação adota a forma escrita e o seuinstrumento chama-se “recibo”. Há, contudo, quitação dadapor escrito que se instrumentaliza de modo diverso. Nasassociações, cooperativas, sociedades anônimas e,eventualmente, nas limitadas, a assembleia dos sócios queaprova as contas dos administradores confere a elesquitação pelos atos praticados durante o exercício (períodoanual) a que se refere. Desse modo, se o diretor de umaassociação, após sua saída do cargo, for processado poresta para ressarcir-lhe algum prejuízo, a exibição da ata daassembleia geral aprovando as suas contas no exercício emque o dano teria ocorrido tem os mesmos efeitos de umrecibo. Assim, após a aprovação das contas em assembleia,os administradores daquelas pessoas jurídicas só podem serdemandados se houver fundamento para, antes, serpromovida a anulação do ato assemblear por vício deconsentimento (erro, dolo, coação etc.). Quer dizer, se, porexemplo, o credor de uma obrigação qualquer outorga reciboao devedor por ter sido induzido em erro, a quitaçãooutorgada terá sido negócio jurídico inválido, passível de

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anulação (CC, art. 138). Se o credor quiser cobrar aobrigação, terá de obter, antes, a declaração de anulação dorecibo. A pessoa jurídica que, em assembleia dos sócios,aprovou as contas dos administradores não tem o direito dedemandar contra estes a indenização por eventuais danosderivados de má administração, a menos que o tenha feitopor erro ou outro vício de consentimento. Se este o caso,deverá inicialmente postular a anulação judicial daassembleia que aprovou as contas, para fins dedesconstituição dos efeitos da quitação outorgada.

A quitação também pode decorrer, embora raramente, deatos praticados pelo credor, como a entrega ou inutilizaçãode título. Neste caso, não há instrumento escrito albergandoa declaração do credor no sentido de ter sido cumprida aobrigação pelo devedor.

O recibo de quitação pode ser dado sempre por escritoparticular, mesmo que a obrigação a que se refere só sepossa constituir mediante escritura pública. A hipoteca, porexemplo, só é constituída com a forma pública, mas odevedor que paga a dívida garantida por ela estávalidamente liberado de sua obrigação mesmo que aquitação tenha sido outorgada num documento particular(atendidos, claro, os demais pressupostos, como aaverbação no registro de imóveis). Quanto ao conteúdo, orecibo deve designar o objeto do pagamento (“o valor eespécie da dívida quitada”), o nome do solvens (“devedor,

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ou de quem por este pagou”), tempo e lugar do cumprimentoda obrigação. Além disso, deve conter a assinatura docredor (“ou de seu representante”) (CC, art. 320). Essesrequisitos, atente-se, não são essenciais para a validade eeficácia do documento. Desse modo, mesmo o instrumentode recibo que não os contém inteiramente produzirá osefeitos da quitação se dos seus termos ou circunstânciaspuder resultar que a dívida foi paga (CC, art. 320, parágrafoúnico). Em suma, qualquer documento que abrigue adeclaração do credor no sentido de ter sido satisfeito o seucrédito serve de quitação. O devedor que se encontra naposse dele presumivelmente cumpriu a obrigação. Querdizer, passa a ser ônus do credor demonstrar, pelos meios deprova admissíveis no direito brasileiro, que, a despeito daexibição do recibo, o pagamento não ocorreu.

O pagamento, portanto, prova-se pela demonstração deque o credor declarou ter recebido a prestaçãocorrespondente à obrigação, e o recibo é o instrumento maisapropriado para a produção desta prova.

A prova do pagamento incumbe aodevedor. Por isso, ele tem direito àquitação sempre que cumpre a

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obrigação. Ele pode, inclusive, reter aprestação, enquanto ela não lhe forentregue.

A quitação é a declaração do sujeitoativo no sentido de ter sido satisfeitono seu direito. Normalmente, é dadapor escrito (“recibo”), mas podederivar de atos inequívocos com omesmo sentido jurídico (entrega ouinutilização do título, p. ex.).

As despesas com o pagamento e quitação correm, emprincípio, por conta do devedor. Quem se obriga, porexemplo, a vender bem móvel e entregá-lo no domicílio docomprador assume também a obrigação de arcar com asdespesas relativas à tradição, como transporte, impostos eseguro (CC, arts. 325 e 490). Por conta do credor corremessas despesas apenas se contratado entre as partes(exceção feita às despesas com escritura pública na venda

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de imóveis, em que a regra se inverte: art. 490). Também,destaco, correm por conta do credor as despesas compagamento e quitação acrescidas, se o acréscimo deriva defato sob sua responsabilidade (CC, art. 325, in fine). Emconsequência, se Evaristo assumira a obrigação de entregarvia postal a Fabrício uma coisa móvel, mas este últimoinforma-lhe endereço errado ou incompleto, e ela é devolvidapelos correios, as despesas com a nova remessa não maiscorrem por conta do devedor da obrigação. É Fabrício quemdeverá pagá-la.

Na disciplina da quitação, a lei opera com algumaspresunções relativas (ou seja, que são desconstituídas porprova em contrário da parte em desfavor de quem foiestabelecida). Assim, se o pagamento é parcelado (“emquotas periódicas”), a quitação da última parcela presumeterem sido pagas todas as anteriores (CC, art. 322). Se, nestecaso, o credor outorgar quitação da última quota e,posteriormente, constatar que uma das anteriores não haviasido paga, caberá a ele demonstrar em juízo odescumprimento da obrigação, porque em favor do devedormilita a presunção de tê-la adimplido por completo. Veja,aqui, não é o sujeito passivo que deve provar ter pago aprestação indicada como não paga pelo sujeito ativo, maseste é que deve desconstituir a eficácia probatória do reciboque assinou. Outra presunção do pagamento decorre daentrega ao devedor do título representativo da obrigação

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(CC, art. 324). Feita a entrega, caberá ao credor, em juízo,demonstrar que o devedor, malgrado a posse do título, aindanão cumprira a obrigação, e não a este provar que satisfez odireito daquele. O prazo para o ajuizamento da ação visandodeclarar a subsistência da obrigação é decadencial e de 60dias (CC, art. 324, parágrafo único). A terceira presunçãolegal sobre o tema encontra-se na quitação do capital sem areserva dos juros, caso em que estes presumem-se pagos(CC, art. 323). Se o devedor pagou, com atraso, o principaldevido e negociou com o credor o pagamento dos juros nofuturo, o recibo deve trazer a ressalva destes. Nãoressalvados, consideram-se pagos, em princípio. Isto é, seráônus de prova do credor demonstrar não ter recebido osjuros, não cabendo ao devedor provar que os teria pago.

6. LUGAR DO PAGAMENTONo Brasil, temos o arraigado hábito de usar

intensivamente os serviços bancários para pagamento dasobrigações pecuniárias. Como a economia brasileira sofreu,por muito tempo, processos inflacionários acentuados, aspessoas em geral procuravam manter o dinheiro sempre numinvestimento que ajudasse a protegê-lo da corrosão. Poroutro lado, o sistema financeiro brasileiro cedo aparelhou-separa atender a grande demanda pelos seus serviços. Mesmocontrolada a inflação desde meados dos anos 1990,permaneceu o hábito. Cheques, TEDs, DOCs, boletos

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bancários ou depósito direto na conta corrente do credorsão os instrumentos mais frequentemente utilizados nocumprimento das obrigações pecuniárias. É raro, entre nós, odevedor procurar o credor, ou vice-versa, para proceder aopagamento da obrigação em dinheiro. Por esta razão,questões atinentes ao lugar do pagamento não costumamdespertar significativos conflitos de interesses. A lei,contudo, tem suas normas sobre a matéria, que convémexaminar brevemente.

A obrigação, segundo o lugar do pagamento, classifica-se em quesível ou portável. Quesível é a obrigação em quecabe ao credor procurar o devedor para receber opagamento, enquanto portável é aquela em que o devedordeve procurar o credor para realizá-lo. O título — naverdade, a vontade das partes — permitirá a classificação daobrigação negocial ao indicar o lugar do pagamento: se nodomicílio do devedor, quesível; se no do credor, portável.Não havendo acordo (nas obrigações negociais em que otítulo é omisso em relação ao tema e nas não negociaisenquanto as partes não se entendem), a obrigação será, emregra, quesível. É o que estabelece a lei: “efetuar-se-á opagamento no domicílio do devedor, salvo se as partesconvencionarem diversamente, ou se o contrário resultar dalei, da natureza da obrigação ou das circunstâncias” (CC, art.327).

Desse modo, no direito brasileiro, a obrigação é portável

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em quatro hipóteses: a) acordo entre as partes: se credor edevedor contrataram que o pagamento será feito por este nodomicílio daquele, prevalece a vontade dos sujeitos daobrigação; b) previsão legal: a lei tributária, por exemplo,define a repartição competente do domicílio do contribuintecomo local do pagamento (CTN, art. 159), o que significa queé o devedor que deve procurar o credor para realizá-lo; c)natureza da obrigação: nas vendas feitas por reembolsopostal, a obrigação do vendedor é paga necessariamente nodomicílio do comprador (credor na obrigação daquele deentregar as mercadorias), isto é, na agência dos correiosresponsável pelas entregas no endereço deste último; d)circunstâncias: se desde o início do contrato de execuçãocontinuada sempre foi o devedor que procurou o credor parafazer o pagamento, considera-se que tal fato torna portável aobrigação (CC, art. 330).

Se o título apontar mais de um lugar, caberá ao credor aescolha por um deles (CC, art. 327, parágrafo único). Poroutro lado, se a obrigação consistir na tradição de imóvel ouprestações a ele relativas, o lugar da situação do bem serátambém o do pagamento (CC, art. 328). Se houver motivograve que justifique mudança no lugar do pagamento, ocredor poderá pagar a obrigação em lugar diverso, desdeque não haja prejuízo para o credor (CC, art. 329).

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A inobservância das regras sobrelugar do pagamento não implica ainvalidade ou ineficácia do ato.Mesmo feito o pagamento em lugarindevido, o devedor está liberado daobrigação e o credor teve seu direitosatisfeito.

Estas regras têm importância apenasna hipótese de inadimplemento daobrigação, quando é necessárioidentificar o culpado.

Por fim, cabe discutir a consequência da eventualinobservância das regras sobre o lugar do pagamento. Depronto, assente-se que seu descumprimento não invalidanem torna ineficaz o ato. Se Germano devia pagar a Hebe nolugar x, mas o fez em y, não havendo nenhum outro vício ouirregularidade, o pagamento produz seus efeitos. Quer dizer,

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Hebe não pode cobrar novamente a obrigação de Germano,nem este pode pretender a devolução da prestação. Seapenas a regra sobre o local foi desrespeitada, em suma, opagamento remanesce plenamente válido e eficaz para todosos fins de direito. Qual a utilidade dessas regras, então?Servem para identificar o culpado na hipótese de inexecuçãoda obrigação. Se, por exemplo, a obrigação é portável e ocredor muda de domicílio sem avisar o devedor, não seráculpa deste o retardo no cumprimento da obrigaçãoenquanto não lhe for informado o novo local do pagamento.Se, outro exemplo, é quesível a obrigação, enquanto o credornão procura o devedor para receber seu pagamento, não seconfigura a mora do solvens (Rodrigues, 2002:156). Sãoimplicações como estas que derivam do descumprimentodos preceitos legais sobre o lugar do pagamento.

7. TEMPO DO PAGAMENTONas obrigações, a constituição e execução podem ou

não ser concomitantes. Ao adquirir o jornal, na banca dapraça próxima à minha casa, coincidem os momentos daconstituição e a execução das obrigações correspondentes.Pego o meu exemplar do diário e entrego o dinheiro aojornaleiro. Nestes atos jurídicos convergem o surgimento daminha obrigação de pagar o jornal e da do jornaleiro de meentregá-lo e o cumprimento delas. Ao contratar um seguro-saúde, porém, distanciam-se no tempo a constituição e a

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execução das obrigações correspondentes. Preencho hoje oformulário, forneço informações e pago a primeira prestação.A obrigação está constituída. De minha parte, a execuçãocorresponderá ao pagamento das mensalidades enquantodurar o plano; da parte da operadora, a disponibilização dacobertura dos serviços médicos, laboratoriais e hospitalaresobjeto do contrato, também durante o prazo do plano. Aexecução da obrigação, neste caso, não se verificaconcomitantemente à constituição, mas em seguida a esta.

A execução, viu-se, é feita pelo pagamento. O dia emque a prestação deve ser paga pelo devedor ao credorchama-se vencimento. O tempo oportuno para o regularcumprimento da obrigação pelo sujeito passivo, portanto, éo seu vencimento. Transcorrendo este sem que o devedor,voluntária ou involuntariamente, cumpra a obrigação,caracteriza-se o inadimplemento (Cap. 19).

As partes estabelecem, de comum acordo, a época dovencimento da obrigação. Definem, em geral, o dia em que opagamento deverá ser feito, e a partir do qual se tornaráexigível, mencionando-o direta ou indiretamente no título. Amenção direta faz-se pela indicação da data (dia, mês e ano)em que recai o vencimento; a indireta, por prazos que secontam de termos indicados (um ano após a assinatura docontrato, 10 dias a contar do pagamento da primeiraprestação etc.). De qualquer modo, o vencimento serásempre um dia, no transcorrer do qual deve a prestação ser

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entregue ao credor. Caso o dia do vencimento não seja útil(sábado, domingo ou feriado), o prazo para o cumprimentoda obrigação prorroga-se até o primeiro dia útil seguinte (CC,art. 132, § 1º; Lei n. 7.089/83, art. 1º). Até o fim do dia dovencimento (meia-noite), pode o devedor adimplirtempestivamente a obrigação. Em geral, porém, o pagamentoé feito em horário comercial, de trabalho, durante oexpediente bancário.

Se não tiver sido ajustado o vencimento pelas partes, opagamento pode ser exigido imediatamente, isto é, tão logoconstituída a obrigação (CC, art. 331). Costumam-se usar asexpressões vencimento à vista ou a prazo para designar,respectivamente, o pagamento exigível de imediato ousomente depois do decurso de certo tempo. As obrigaçõesnão negociais, deste modo, caso não se componham credore devedor acerca de sua execução, vencem à vista. O credorvítima de ato ilícito do devedor pode exigir, desde o eventodanoso constitutivo da obrigação, o pagamento a que temdireito.

O pagamento deve ser feito novencimento, que é o dia documprimento da obrigação. Se credor

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e devedor não acertarem, de comumacordo, uma data futura para ovencimento, o pagamento pode serexigido imediatamente após aconstituição da obrigação.

Se o dia em que cair o vencimentonão for útil, o prazo para cumprimentoda obrigação prorroga-se para oprimeiro dia útil seguinte.

No vencimento a prazo, a definição de data futura para aentrega da prestação e extinção da obrigação normalmente éfeita em benefício do devedor. Com maior tempo paracumprir a obrigação, o sujeito passivo pode preparar-semelhor para adimpli-la. Sendo o prazo para pagamentoestabelecido em benefício do devedor, pode este renunciar aele e cumprir a obrigação (em sua inteireza) antes de ser elaexigível pelo credor. Depende a antecipação, neste caso,unicamente da vontade do sujeito passivo, não podendo ocredor recusar a prestação sem motivo (em regra, aliás, tende

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a não o fazer porque tem igual interesse na solução daobrigação antes do vencimento).

Mas o prazo pode ser fixado em benefício do credor oudas duas partes da obrigação. Depende do título ou danatureza da obrigação. No mútuo oneroso de naturezapecuniária, por exemplo, o mutuante tem interesse não só nopagamento do principal como também nos juros que esperareceber. O prazo estabelecido para a recuperação do dinheiroo beneficia porque os juros serão tanto maiores quanto maistempo transcorrer entre a constituição e a execução daobrigação. Claro que, querendo o devedor pagarantecipadamente o mútuo sem desconto dos juros, o credoraceita de pronto. Todavia, como o prazo do vencimento,neste caso, em vista da natureza da obrigação, éestabelecido também em benefício do credor, o devedorsomente poderá pagar antecipadamente com reduçãoproporcional dos juros se houver anuência daquele (Note-seque há regra excepcionando a que decorre da natureza domútuo, se ele configura uma relação de consumo; nestecaso, a lei assegura o direito do consumidor mutuário aodesconto proporcional na antecipação do pagamento —CDC, art. 52, § 2º).

No Brasil, não existem dias de graça. Vencida aobrigação, à vista ou a prazo, não pode o juiz conceder aodevedor tempo suplementar para cumpri-la. Em França, porexemplo, o juiz pode, em consideração à condição do

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devedor ou à situação econômica, ampliar por até um ano oprazo para o pagamento (délai de grâce), salvo emhipóteses excepcionais, como a do devedor cambiário ou dodepositário (Mazeaud-Chabas, 1998:1000/1003). No direitobrasileiro, a exigibilidade da obrigação não pode serpostergada por decisão judicial apenas em razão dedificuldades econômicas do sujeito passivo, seja estaproveniente de razões individuais ou gerais. Se é válida aobrigação, o devedor deve cumpri-la tempestivamente; seinválida, está liberado de fazê-lo; se há fundamento para arevisão judicial, como na hipótese de imprevisão, devecumprir a obrigação nas condições revistas.

Nas obrigações condicionais, o vencimento verifica-secom o implemento da condição. Cabe ao credor provar que odevedor está ciente do implemento da condição (CC, art.332). Se Irene contrata com João, engenheiro civil, aconstrução de uma casa, a obrigação deste último estácondicionada à obtenção da licença para construir expedidapela Prefeitura. Enquanto não licenciada a obra, João nãopode começar a desincumbir-se de suas obrigações. Mas,uma vez implementada a condição, Irene deve comunicar ofato a João; deve, também, conservar a prova dacomunicação, pois, se houver questionamento sobre ovencimento da obrigação do construtor, caberá a ela a provada ciência por este do implemento da condição suspensiva(isto é, da expedição da licença).

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Antes do vencimento, o devedor não está obrigado aopagamento. De sua parte, o credor não o pode exigir. Aliás, osujeito ativo que tenta promover a cobrança judicial dopassivo antes do vencimento da obrigação incorre em atoilícito e tem responsabilidade civil (CC, art. 939) (Cap. 22,subitem 7.2). Apenas se verificar o vencimento antecipadoda obrigação, nas hipóteses delineadas em lei, estará osujeito ativo demandando licitamente o pagamento.

Antes do vencimento, o devedor nãoestá obrigado a entregar a prestação,nem o credor pode exigi-la. É atoilícito que implica a responsabilidadecivil do credor a tentativa de cobrançaantecipada do devedor.

A antecipação do vencimento podederivar de acordo entre as partes oudos fatos descritos em lei (falência do

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devedor, enfraquecimento de garantiasdo credor etc.).

São três essas hipóteses de vencimento antecipado.Primeira, se instaurada execução concursal contra o

devedor (CC, art. 333, I). Sempre que o sujeito de direito nãotem, no patrimônio, ativo suficiente para arcar com o total dopassivo (ou seja, se deve mais do que possui), ele éconsiderado insolvente. Neste caso, o direito determina quese promova contra ele, para a satisfação das dívidas, umaúnica execução da qual todos os credores participem. É aexecução concursal (concurso de credores), que sedenomina falência, quando o devedor é empresário, einsolvência civil, quando não é. Nas duas situações, prevêa lei o vencimento antecipado das obrigações do devedor(LF, art. 77; CPC, art. 751, I). Trata-se de medida destinada aliberar aos credores tratamento paritário. Quer dizer, doconcurso de credores podem participar em condições deigualdade tanto os credores com títulos vencidos como oscom títulos a vencer, porque estes últimos têm o vencimentoantecipado para a data da instauração da execuçãoconcursal.

Note-se que, concretamente falando, esta primeirahipótese de vencimento antecipado não conduz ao imediato

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atendimento do direito do credor, nem pode conduzir a isso.O sujeito ativo da obrigação antecipadamente vencida temapenas o direito de habilitar seu crédito na execuçãoconcursal. O pagamento (que, se houver, será normalmenteparcial, tendo em vista a insuficiência do patrimônio dodevedor) terá lugar em juízo, no momento apropriado deacordo com a tramitação do processo.

Segunda, se forem penhorados em execução por outrocredor os bens hipotecados ou empenhados em garantia daobrigação em foco (CC, art. 333, II). A hipoteca e o penhorsão modalidades de garantias reais. Por elas, bens imóveis(hipoteca) ou móveis (penhor) são vinculados à satisfaçãode determinada obrigação. O credor que goza da garantia deuma hipoteca, por exemplo, procura assegurar o recebimentode seu crédito em função do valor do imóvel gravado. Se odevedor não pagar a dívida, o imóvel hipotecado serávendido em juízo para cumprimento daquela obrigação.Quando, porém, o bem dado em hipoteca ou penhor épenhorado em juízo para atender direitos de terceiros,enfraquece-se a garantia pretendida. Neste caso, paraproteger os interesses do sujeito ativo para quem ela foiconcedida, preceitua a lei o vencimento antecipado. Desdelogo, em outros termos, ele poderá exercer o seu direito egozar da garantia.

Terceira, se as garantias conferidas pelo sujeito passivodeixarem de existir ou forem insuficientes e este, intimado,

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negar-se a reforçá-las (CC, art. 333, III). As garantias podemser fidejussórias ou reais. No primeiro caso, não há um bemespecífico do patrimônio do garantidor vinculado àsatisfação do crédito. São fidejussórias as garantiasconcedidas por fiador ou avalista, por exemplo. No caso dasreais, como visto, vincula-se um bem específico dopatrimônio do devedor (ou do terceiro garantidor) àsatisfação de certa obrigação. Pois bem, qualquer que tenhasido a garantia, se ela se revelar insuficiente ou mesmodeixar de existir, o sujeito passivo deve ser intimado parareforçá-la. Não o fazendo no prazo assinalado pelo credor nanotificação extrajudicial ou pelo juiz na intimação, opera-se ovencimento antecipado da dívida. Com ênfase, se oinstrumento assecuratório do adimplemento não cumpremais a função para a qual foi instituído, o credor passa acorrer risco que não havia assumido na constituição daobrigação. Para proteger seu interesse contra o riscoindesejável, permite a lei que ele possa cobrar o devedorantecipadamente.

Imagine que o Banco Luz é credor de Mário, que temcomo fiador Nair, em razão de empréstimo concedido peloprimeiro. É provável que o Banco Luz tenha estabelecido ataxa de juros do empréstimo em função da garantiafidejussória. As técnicas bancárias recomendam que osjuros devem ser diretamente proporcionais ao risco deinadimplência: quanto maior a possibilidade de o banco não

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ser pago, maiores devem ser os juros praticados. Pois bem,s e Nair cair insolvente, a garantia de que o Banco Luzgozava deixa de ser efetiva. Mário deve apresentar novofiador idôneo para preservar os fundamentos originários donegócio. Se não o fizer, a lei determina o vencimentoantecipado da obrigação e dá ao Banco Luz o direito decobrar Mário desde logo.

Nas obrigações em que houver solidariedade passiva, ovencimento antecipado em relação a um dos devedores nãotorna exigível desde logo a prestação dos demais (CC, art.333, parágrafo único). Se um deles caiu insolvente, porexemplo, o credor pode habilitar-se na execução concursal,mas não pode cobrar a dívida do outro devedor senãodepois de verificado o vencimento da obrigação na épocaprimitivamente estabelecida.

8. PAGAMENTO INDIRETOO pagamento pode ser direto ou indireto. Quando o

devedor entrega a prestação ao credor exatamente naextensão, tempo e lugar convencionados, tal comooriginariamente esperado pelas partes no momento daconstituição da obrigação, diz-se que o pagamento é direto.Quando, porém, a entrega da prestação ao credor é feita sema exata observância dos elementos subjetivos e objetivosoriginariamente caracterizadores da obrigação, é indireto.

São três as hipóteses de pagamentos indiretos. No

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pagamento em consignação, a entrega da prestação é feitamediante depósito judicial ou bancário, e não pela formaoriginariamente estabelecida (item 8.1). No pagamento comsub-rogação, o solvens não é o sujeito passivo ou aprestação entregue foi emprestada por terceiros (item 8.2).Finalmente, na dação em pagamento, a prestação daobrigação altera-se, por acordo entre as partes, no momentoda execução (item 8.3). Anote-se que, enquanto opagamento direto produz os efeitos de liberar o devedor daobrigação e satisfazer o direito do credor, o indireto nemsempre os alcança. No pagamento com sub-rogação, porexemplo, o sujeito ativo tem o seu direito satisfeito (porterceiro), mas o passivo não se libera da obrigação, porquecontinua devendo a prestação.

Examine-se, com vagar, cada uma das hipóteses.

8.1. Pagamento em consignaçãoO maior interessado no cumprimento da obrigação

parece ser o sujeito ativo. Como credor e titular do direito aorecebimento da prestação, ele tem todo o interesse em que opagamento se realize tal como tem esperado desde omomento da constituição. Isto é verdade, mas também aosujeito passivo interessa, na maioria das vezes, oadimplemento no vencimento. Em primeiro lugar, porque selibera do vínculo de sujeição; em segundo, porque os riscossobre a coisa certa, quando é esta objeto da prestação,

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transferem-se ao credor; finalmente, porque, pagando notempo devido, não suporta as consequências da mora (juros,correção monetária, multa etc.). Em outras palavras, odevedor pode ter interesse em pagar a obrigação no prazodevido. Em geral, só deixa de fazê-lo quando identifica maiorproveito no inadimplemento (se os encargos da mora sãomodestos em face da remuneração de capital praticada nomercado) ou se não dispõe dos meios necessários aocumprimento da obrigação (por insolvência, exemplificando).

O devedor interessado em pagar a prestação novencimento pode, contudo, esbarrar em dificuldades.Imagine que o credor se recusa a receber o pagamento, sobpretexto de que teria direito a mais do que o oferecido pelodevedor; ou pense na hipótese de ele negar a outorga daquitação; considere, enfim, que mais de uma pessoa seapresenta como credora disputando a prestação objeto daobrigação. São situações em que o devedor, mesmoquerendo cumpri-la diretamente, vê-se impossibilitado de ofazer por razões externas à sua vontade.

Nesses casos, a lei tutela o interesse do sujeito passivopondo à sua disposição uma forma de pagamento indireto,isto é, um instrumento que possibilita a extinção do vínculoobrigacional e sua liberação da sujeição. Este instrumento éo pagamento em consignação.

Consiste a consignação no depósito da prestação emjuízo (ou, nalgumas hipóteses, num estabelecimento

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bancário, como se verá em seguida). Em outros termos, trata-se de uma medida judicial, em que o demandante é o sujeitopassivo de obrigação cujo pagamento direto estáimpossibilitado sem sua culpa. Se o juiz, a final, seconvencer de que realmente havia obstáculos ao pagamentodireto externos à vontade do demandante, a consignaçãoserá julgada procedente; neste caso, terá a medida judicialos efeitos da quitação: extinção da obrigação, transferênciados riscos sobre a coisa ao credor, não caracterização damora do devedor etc. Se, porém, o juiz não se convencer daalegação do demandante, considerando inexistentes osobstáculos ao pagamento direto apontados, a consignação éjulgada improcedente; aqui, a medida judicial não teránenhum dos efeitos do pagamento direto, resultando que osujeito passivo não cumpriu ainda a obrigação, malgrado odepósito judicial da prestação.

Desse modo, apenas se e quando acolhida a medidajudicial proposta pelo devedor verificam-se o pagamento emconsignação e a consequente extinção da obrigação (CC,arts. 334 e 337). Não sendo este o caso, o depósito judicialda prestação não tem o efeito de liberar o devedor dasujeição obrigacional.

Quando o pagamento direto da

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obrigação é obstado ou dificultado porrazões alheias à vontade do devedor,pode ele se valer do pagamento emconsignação. Esta forma de extinçãodo vínculo obrigacional consiste numamedida judicial (ação de consignaçãoem pagamento) em que a prestação édepositada em juízo. Se julgadaprocedente, a medida terá os mesmosefeitos do pagamento direto.

Podem ser objeto de consignação em pagamento asprestações de dinheiro e bem. Se for pecuniária a obrigação,a lei autoriza que o depósito se faça numa instituiçãofinanceira antes do ajuizamento da ação. Caso o credor, em10 dias, não recuse o pagamento, libera-se o devedorindependentemente do processo judicial (CPC, art. 890, §§ 1ºa 4º). Se a prestação consistir em imóvel ou corpo certo quedeve ser entregue onde se encontre, o credor será citado

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para vir recebê-la (CC, art. 341). Se for coisa indeterminada ea escolha couber ao credor, será este citado para exercer seudireito. Não o fazendo, a individuação da coisa competirá aodevedor, no ato do depósito em juízo (CC, art. 342). Conduta,claro, é insuscetível de pagamento em consignação. O fazere o não fazer não ostentam a materialidade necessária ao atode depósito. Apenas se a obrigação de fazer implica tambéma de dar (pintar o retrato do credor, p. ex.) é possível aconsignação (Pereira, 1962:172).

A consignação em pagamento cabe nas seguintessituações:

a) o credor está impossibilitado de receber opagamento ou dar quitação. Abrange a hipótese tanto aimpossibilidade material, que impede o credor de declarar tersido satisfeito seu direito (encontra-se preso eincomunicável, p. ex.), como a impossibilidade jurídica(insolvência ou falência). Nestes casos, para liberar-sevalidamente da obrigação, o devedor pode depositar emjuízo a prestação devida (CC, art. 335, I).

b) O credor recusa injustificadamente o pagamento. É asituação mais corriqueira. Aqui, divergem os sujeitos daobrigação sobre a extensão do pagamento. O devedor seconsidera obrigado a pagar menos do que o credor entendeser o seu direito. A solução para o conflito de interesses,naturalmente, será dada pelo Poder Judiciário. Se o devedortomar a iniciativa de propor a demanda e quiser tenha esta já

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o efeito de cumprimento da obrigação, deve optar pela açãode consignação em pagamento. Caso contrário, poderámanusear uma simples ação declaratória. Se, naconsignação, o juiz reputar injusta a recusa do credor, odevedor estará liberado da obrigação desde o depósito daprestação; se a tomar como justa, porém, o devedor estaráem mora desde o vencimento (CC, art. 335, I).

c) O credor não vai receber o pagamento. Esta situaçãodiz respeito às obrigações quesíveis, em que cabe ao credorprocurar o pagamento no domicílio do devedor. Em deixandoele de ir receber a prestação, nem mandando procurador emseu lugar, dá-se ensejo ao pagamento em consignação. Odevedor não está obrigado a esperar, indefinidamente, nasobrigações quesíveis, pela iniciativa do credor. Vencida aobrigação e não sendo ele procurado pelo sujeito ativo oupor alguém em nome dele, pode o sujeito passivo ajuizar aação de consignação em pagamento e liberar-se daobrigação que o sujeita (CC, art. 335, III).

d) Incapacidade, desconhecimento, ausência ouinacessibilidade do credor. Se o sujeito ativo é incapaz, nãoestá em condições de receber a prestação e quitar sem adevida representação (incapacidade absoluta) ou assistência(incapacidade relativa). Caso ele se apresente para ser pagodesacompanhado, o devedor tem o direito à consignação doobjeto para poder liberar-se validamente da obrigação. Se selimita a pagar ao credor, sem exigir a assinatura do

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representante ou assistente legal no recibo, passa a ter oônus de prova da reversão efetiva da prestação em benefíciodo incapaz (CC, art. 310). Assim, se Orlando, devedor, éprocurado por Paulo, credor, no dia do vencimento daobrigação, mas percebe que este último se encontrafortemente embriagado, ele pode acautelar-se contra ahipótese de estar diante de um incapaz (CC, art. 4º, II). Terádireito, neste caso, ao pagamento em consignação.

Também pode validamente consignar a prestação emjuízo o devedor que desconhece o credor ou o seuparadeiro. Considere a hipótese de falecimento do devedor.O inventariante não conhece necessariamente os credoresmencionados nos documentos de dívida deixados pelofalecido. Tem o nome deles, mas eventualmente o endereçoestá desatualizado. Não sabe ao menos como procurá-lo.Neste caso, é cabível a consignação judicial da prestação.Igualmente tem direito o devedor de consignar o pagamentose o credor foi declarado ausente ou reside em lugar incertoou de acesso perigoso ou difícil (CC, art. 335, III).

e) Dúvida sobre quem é o credor. Se dois sujeitos seapresentam arrogando a condição de credor, e não sendonenhum deles o indiscutível titular do crédito, acautela-se odevedor que consigna a prestação em juízo (CC, art. 335, IV).Imagine que o credor faleceu e os que se apresentaminvocam a qualidade de legítimos sucessores, exibindo cadaum documentos aparentemente válidos. Se o devedor não

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quiser correr o risco de pagar inadvertidamente a quem nãotem direito ao recebimento, deverá socorrer-se daconsignação judicial da prestação. Demandados ospretendentes ao crédito, caberá ao juiz decidir se algumdeles é o credor legitimado para receber o pagamento.

f) Objeto litigioso. A prestação pode ser objeto delitígio entre dois sujeitos que se pretendem credores daobrigação. O devedor, neste caso, não é parte da discussãojudicial, pouco lhe importando quem realmente é o titular docrédito; interessa-lhe livrar-se da obrigação, pagando aqualquer um deles. Enquanto tramita o litígio, não hápronunciamento judicial definitivo identificando o legítimocredor. Vencida, no interregno, a obrigação, deve o devedorproceder à consignação em pagamento, se não quiser correro risco de entregar a prestação a quem, no futuro, acabaránão sendo reconhecido pelo juiz como credor (CC, art. 335,V). A lei preceitua que “o devedor de obrigação litigiosaexonerar-se-á mediante consignação, mas, se pagar aqualquer dos pretendidos credores, tendo conhecimento dolitígio, assumirá o risco do pagamento” (CC, art. 344). Aliás,na hipótese de dívida vencida na pendência de litígio entresujeitos que se pretendem mutuamente excluir da condiçãode credores, qualquer um deles tem legitimidade pararequerer que o juiz determine ao devedor a consignação empagamento como meio de extinguir a obrigação (CC, art. 345).

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8.2. Pagamento com sub-rogaçãoNo pagamento com sub-rogação, o sujeito ativo recebe

a prestação não do passivo, mas de terceiro, e este passa atitularizar o crédito, com todas as suas garantias eprivilégios. O terceiro (sub-rogado) tanto pode pagar ocredor (sub-rogatário) como emprestar ao devedor osrecursos para o cumprimento da obrigação. Nas duashipóteses, passa a titularizar, perante o devedor, os direitosdo credor satisfeito. A sub-rogação é, assim, a transferênciada posição ativa da relação obrigacional para quem solveu aobrigação no lugar do sujeito passivo ou emprestou-lhe onecessário para tanto (Pereira, 1962:180).

A sub-rogação pode ser legal ou convencional. Naprimeira, a transmissão dos direitos opera-seindependentemente da vontade do sub-rogatário e dodevedor. Corresponde a direito do sub-rogado. Naconvencional, como a designação sugere, a transmissãodecorre de negócio jurídico entre o sub-rogado e o sub-rogatário ou entre aquele e o devedor.

São hipóteses de sub-rogação legal:a) pagamento pelo credor de dívida do devedor comum

(CC, art. 346, I). O credor pode considerar a satisfação de seucrédito ameaçada em razão de outra dívida que o devedortem com terceiros. Neste caso, pode parecer-lhe interessantea solução daquela outra dívida, como medida de proteção doseu direito. A hipótese é rara, mas pode ocorrer

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principalmente se a obrigação sub-rogada tem valorsignificativamente inferior ao da titularizada pelo sub-rogado. Imagine que o devedor está insolvente e possuidiversas dívidas com vários credores, sendo uma delasrepresentativa de dois terços do passivo. O credor destaobrigação mais valiosa considera que os ativos do devedor,se bem administrados, poderiam gerar recursos suficientespara a superação da crise patrimonial. Para isso, porém, serianecessária uma reorganização, que demanda certo tempo.Mas, se um dos pequenos credores obtiver a instauração daexecução concursal, a reorganização não poderá ser feita,frustrando a perspectiva de recuperação do devedor. Poisbem, para evitar essa frustração e buscar assegurar orecebimento de seu valioso crédito, o maior credor podepagar os pequenos credores e sub-rogar-se nos direitosdeles.

b) Adquirente de imóvel hipotecado que paga aocredor hipotecário (CC, art. 346, II, primeira parte). Se oimóvel é dado em hipoteca para garantia de certa obrigação,normalmente ele não é negociado sem que as partes secomponham relativamente à solução desta. Em geral,adotam-se os seguintes esquemas negociais: o vendedorquita a obrigação garantida antes da venda; o compradorpaga pelo imóvel preço menor e assume a dívida; ocomprador quita a obrigação garantida e desconta o valor dopreço do imóvel. É muito difícil alguém concordar em adquirir

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imóvel hipotecado pelo valor “cheio”, isto é, como se elenão estivesse onerado. De qualquer forma, se acontecer, oadquirente pode pagar o credor hipotecário e sub-rogar-senos direitos creditórios deste. Ele se tornará credor dovendedor. Note-se que, aqui, não tem sentido a regra detransferência, pela sub-rogação, de todas as garantias dosub-rogatário ao sub-rogado. O imóvel hipotecado já é depropriedade do credor sub-rogado e não mais do devedor e,assim, não pode representar nenhuma garantia.

c) Terceiro que paga para não ser privado de direitosobre o imóvel hipotecado (CC, art. 346, II, segunda parte).O credor sub-rogado pode ter direito sobre o imóvelhipotecado e considerar que a execução da hipotecaameaçaria o seu exercício. Para preservar seu direito, elepaga o credor hipotecário e sub-roga-se no crédito contra odevedor, passando a titularizar a garantia da hipoteca.Também se cuida de hipótese rara. Pense no promitentecomprador que está pagando as prestações do preço deimóvel hipotecado em favor de terceiros. Se o promitentevendedor não honrar a dívida garantida, o imóvel objeto dapromessa de compra e venda pode ser penhorado e alienadojudicialmente, pondo em risco os interesses do promitentecomprador. Em lhe interessando a operação, poderá pagar ocredor hipotecário com o objetivo de preservar seus direitosde vir a adquirir o imóvel no futuro. Tornar-se-á, pela sub-rogação, credor hipotecário do vendedor.

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d) Terceiro interessado que paga dívida pela qualpodia ser obrigado (CC, art. 346, III). Viu-se já esta hipótesena discussão sobre os sujeitos do pagamento. Quando osolvens não é o devedor, mas terceiro patrimonialmenteinteressado na solução da obrigação, tem ele direito depagá-la e sub-rogar-se nas garantias e privilégios do credor(item 2.1). É o caso do fiador, codevedor solidário,codevedor de obrigação indivisível, sócio comresponsabilidade ilimitada e outros sujeitos interessados emevitar, pela solução da obrigação, que sejam cobrados porela.

O pagamento com sub-rogaçãoimplica a satisfação do direito docredor e a transferência ao terceiro(pagador) não só do crédito como dasgarantias e privilégios de que gozava.

Segundo a origem do ato, a sub-rogação pode ser legal ouconvencional; segundo a extensão da

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satisfação do direito do credor, totalou parcial.

A seu turno, são duas as hipóteses de sub-rogaçãoconvencional:

a) acordo entre sub-rogado e credor. O pagamento comsub-rogação pode derivar de negócio jurídico entre osolvens não devedor e o credor. Diz a lei que se opera atransmissão do direito creditório “quando o credor recebe opagamento de terceiro e expressamente lhe transfere todosos seus direitos” (CC, art. 347, I). A hipótese é muito próximaà da cessão de crédito, tanto que se submete às regras desta(CC, art. 348). Há uma diferença conceitual entre elas,contudo. No pagamento com sub-rogação, a transmissão docrédito deriva do pagamento, isto é, da satisfação do direitodo credor, ao passo que na cessão de crédito decorre deaquisição negocial pelo sub-rogado do direito do sub-rogatário. Como dito, a diferença é conceitual apenas. Paraefeitos práticos, o negócio jurídico de transmissão daposição ativa da relação obrigacional por acordo entrecredor e terceiro pode ser indiferentemente qualificado comosub-rogação convencional ou cessão de crédito. Seja qualfor a exata natureza desse negócio específico, segundo ospadrões conceituais operados pela tecnologia jurídica, as

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consequências serão idênticas, porque ele estará sujeito, emqualquer caso, às mesmas normas: as reguladoras da cessãode crédito.

b) Acordo entre sub-rogado e devedor. A derradeirahipótese de pagamento com sub-rogação compreende aentrega ao credor da prestação que o sub-rogado emprestouao devedor. Se o sujeito passivo da obrigação pecuniárianão tem, no vencimento, o numerário suficiente para pagá-la,e o obtém por empréstimo de terceiro, podem ocorrer duassituações. Na primeira, o empréstimo não é expressamenterelacionado à solução da obrigação. Trata-se de negóciojurídico independente, em que o prestador dos recursos (queé terceiro na obrigação a ser solvida) titularizará os direitosque houver contratado com o mutuário (o devedor naobrigação a ser solvida). Na segunda, a causa doempréstimo é a solução da obrigação, em virtude deespecífica declaração das partes. Nesta última situação,sendo condição expressa do empréstimo a sub-rogação, aomutuante transmitem-se os direitos, garantias e privilégiosdo credor da relação obrigacional extinta.

Note-se que também nos pagamentos de bem podeoperar-se a sub-rogação convencional por acordo entre sub-rogado e devedor, desde que o objeto da prestação sejafungível. O sujeito passivo da relação obrigacional podeestar devendo a entrega de certa quantidade de trigo, de quenão dispõe. Perante terceiro, ele obtém o produto para

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cumprir a obrigação, a título de empréstimo, com a expressacondição de sub-rogação. Neste caso, dá-se o pagamentoindireto aqui examinado.

Por outro critério de classificação, a sub-rogação podes er total ou parcial. É total quando o direito do credor éinteiramente satisfeito com o pagamento pelo terceiro;parcial, quando não se dá a completa satisfação. Destacoque, mesmo na sub-rogação legal, que é direito do sub-rogado, o credor não pode ser compelido a receberpagamento parcial (CC, art. 314). Desse modo, em qualquercaso, a sub-rogação só pode ser parcial se com isto anuir ocredor.

Na sub-rogação total, ao sub-rogado transmitem-setodas as garantias e privilégios titularizados pelo sub-rogatário. Já na parcial, a extensão da transmissão depende,inicialmente, da natureza do ato. Se convencional, as partesestabelecem por acordo de vontades os direitos que passama ser titularizados pelo sub-rogado; se legal, o sub-rogadonão poderá exercer direitos e ações para além do que tiverdesembolsado (CC, art. 350), e o sub-rogatário terápreferência na cobrança da dívida restante, se os bens dodevedor não forem suficientes ao pagamento de todo odevido (CC, art. 351).

8.3. Dação em pagamentoQuando as partes de uma obrigação consensualmente

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estabelecem a alteração do objeto da prestação, oadimplemento denomina-se dação em pagamento. Nestecaso, a prestação que originariamente deveria ser cumpridamediante, por exemplo, entrega de dinheiro será paga embem ou conduta, porque com isto concordam credor edevedor. Dinheiro ou qualquer tipo de bem (móvel ouimóvel, corpóreo ou incorpóreo etc.) ou conduta (de fazer ounão fazer) pode ser objeto da dação em pagamento. Imagineq u e Carlos deve a Darcy $ 500, mas não tem dinheirosuficiente para proceder ao pagamento. É, contudo,proprietário de um imóvel e propõe cumprir a obrigaçãotransferindo a Carlos este bem. Se Carlos concordar — sejaporque considera que o imóvel lhe interessa, por ter valorequivalente ao devido, seja porque simplesmente nãoacredita que o devedor vá cumprir a obrigação do modopreviamente ajustado —, procede-se à transferência dapropriedade do bem e à concomitante quitação da obrigação.

Quando a prestação pecuniária é substituída por bem,na dação em pagamento, assim que as partes o precificam, arelação obrigacional passa a ser regida pelas normas docontrato de compra e venda (CC, art. 357). Isto significa, porexemplo, que, manifestando-se vício na coisa objeto dadação, o accipiens tem o prazo de 30 dias ou 1 ano (se o bemé móvel ou imóvel, respectivamente) para rejeitá-la oupleitear abatimento (CC, art. 445). Se, por outro lado,terceiros reivindicantes obtêm em juízo o reconhecimento da

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propriedade sobre a coisa objeto de dação em pagamento, ocredor evidentemente a perde para eles. Tecnicamentefalando, ele é evicto da coisa, tal como seria o comprador namesma situação. Aliás, diz a lei que, em se verificando aevicção do bem objeto de dação em pagamento,“restabelecer-se-á a obrigação primitiva, ficando sem efeito aquitação dada” (CC, art. 359).

Sendo a prestação substituída por título de crédito, atransferência deste ao accipiens importa a cessão do direitocreditício (CC, art. 358). O sujeito ativo da obrigaçãoadimplida por dação é o cessionário do crédito. Se o credorconcorda em receber, em dação em pagamento, duplicatassacadas pelo devedor contra terceiros, ele se torna o titulardo direito de receber o pagamento destes títulos, ao mesmotempo em que quita a obrigação paga com eles. A lei fala emcessão, mas, se o sujeito passivo endossar os títulos decrédito no ato da dação, aplicam-se as regras próprias dodireito cambiário. Na falta do endosso, valem as normassobre transmissão das obrigações já examinadas (Cap. 15).

A dação em pagamento só tem lugar após o vencimentoda dívida (Gomes, 1961:119; Diniz, 2003, 2:273). A rigor, se aspartes acertam a alteração do objeto da prestação quandoainda não vencida a obrigação, caracteriza-se arerratificação. Para que a alteração do objeto da prestaçãoseja dação em pagamento é necessário que se verifique nocontexto da solução da obrigação, do adimplemento. Se as

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partes não manifestam animus solvendi enquanto declaramaquiescer com a mudança da prestação, não há dação empagamento. A distinção tem relevância meramenteconceitual. Tanto na rerratificação como na dação empagamento, são idênticas as obrigações do sujeito passivoem face da substituição do objeto.

Dação em pagamento é o pagamentoda obrigação em que o devedor, emcomum acordo com o credor, entregaprestação diferente daoriginariamente devida. Substitui-se,assim, dinheiro por bem ou conduta,bem por dinheiro ou conduta ouconduta por bem ou dinheiro.

Para caracterizar-se a dação empagamento é necessário que asubstituição seja feita com o ânimo de

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solver a obrigação. Isto é, enquantorecebe a prestação substituta, com aqual concordara, o credor outorgaquitação ao devedor pela obrigaçãosubstituída.

A intenção de solver a obrigação presente na dação empagamento aproxima-a da novação objetiva (Cap. 17, item 2).Nesta, também as partes têm o intuito de extinguir aobrigação. Mas, enquanto na dação em pagamento aextinção deriva da entrega de prestação diversa pelo sujeitopassivo, na novação objetiva ela decorre da assunção, poreste, de nova obrigação em substituição à primitiva.

Anteriormente à entrada em vigor do Código Civil de2002, parte da doutrina considerava que apenas asobrigações pecuniárias podiam ser cumpridas por dação empagamento (Monteiro, 2001:297/299; Diniz, 2003, 2:269/276),e parte sustentava que qualquer alteração do objeto daprestação derivada de acordo entre as partes no momento daexecução devia ser tratada como dação em pagamento(Gomes, 1961:118/120). O Código Reale pôs fim àcontrovérsia, prestigiando esta última posição: pode-se

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cumprir obrigação de qualquer objeto por dação empagamento (Lotufo, 2003:330).

9. IMPUTAÇÃO DO PAGAMENTOQuando o sujeito passivo deve ao ativo mais de uma

prestação, em razão de um ou vários negócios jurídicos oueventos desencadeadores de obrigação legal, e o pagamentoque tiver realizado puder extinguir pelo menos duas delaspor completo, é necessário definir qual obrigação foi paga.Se Roberto, por exemplo, deve a Saulo uma nota promissóriade $ 100 e uma duplicata também de R$ 100, e, vencidos ostítulos, faz a entrega de apenas $ 100 em dinheiro, precisa serdeterminada a obrigação que o pagamento extinguiu.

Não é irrelevante o tema porque podem variarsignificativamente os encargos da mora previstos para cadaobrigação devida pelo mesmo sujeito passivo àquele credor.Para uma delas, por exemplo, pode ter sido estabelecidamulta de 10% e juros segundo a taxa SELIC, enquanto, paraa outra, não há multa e os juros são de 6% ao ano.Evidentemente, para o devedor interessa que a primeira sejaquitada pelo pagamento realizado, ao passo que, para ocredor, melhor seria que a última o fosse.

A determinação de qual das obrigações se extinguiucom a entrega da prestação que poderia ter solvido qualqueruma delas é feita pela imputação do pagamento.

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Quando o devedor deve mais de umaprestação ao mesmo credor e faz umpagamento suficiente apenas para aquitação de qualquer uma delas, énecessário definir qual obrigação oato extinguiu. Essa definição é aimputação do pagamento, que cabe, emprincípio, ao sujeito passivo.

São pressupostos da imputação: a) mais de uma dívidaentre duas partes iguais (mesmo devedor e mesmo credor);b) liquidez e exigibilidade de todas as dívidas passíveis deimputação; c) fungibilidade das prestações entre si; d)pagamento suficiente para extinguir por completo qualqueruma das dívidas passíveis de imputação.

Desse modo, não se aplicam as regras atinentes àimputação do pagamento se são diversos os sujeitos dequalquer um dos polos da relação obrigacional. Apenas se odevedor está ligado ao credor por mais de uma obrigação

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têm aplicação essas regras. Além disso, as dívidas devemestar vencidas, sendo líquidas e exigíveis. Se uma dasobrigações não venceu ou não foi ainda liquidada (não teveseu valor determinado), não se pode imputar o pagamento aela. Por outro lado, só cabe a imputação do pagamento entreprestações homogêneas, isto é, reciprocamente fungíveis.Não basta que a prestação seja fungível em si; éimprescindível que possa ser substituída pela outraprestação. Se alguém deve x cabeças de gado e y toneladasde soja para a mesma pessoa, ainda que as duas prestaçõestenham valor igual, não é possível a entrega dos bovinos serimputada à obrigação relativa ao cereal, ou vice-versa. Gadoe soja são bens fungíveis em si, mas não o são entre si(Rodrigues, 2002:188/189); não são, em suma, homogêneos.Finalmente, o pagamento dado deve ser suficiente paraquitar qualquer uma das dívidas em consideração, porque ocredor, lembre-se, não pode ser obrigado a receberpagamento parcial (CC, art. 314). Se o devedor deve doistítulos ao credor, sendo um de $ 500 e outro de $ 800, opagamento de $ 500 destina-se à solução daquele e nãopode ser pretendida a imputação a este último contra avontade do credor.

No direito brasileiro, a imputação do pagamento faz-sepelos seguintes critérios. Em primeiro lugar, cabe ao devedorindicar a obrigação a que se refere o pagamento que estárealizando (CC, art. 352). Se não fizer nenhuma imputação, o

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credor deverá indicar a obrigação solvida no recibo dequitação. Caso o devedor aceite a quitação nos termosoutorgados pelo credor, manifestará sua concordância com aimputação e não poderá reclamar contra ela, a menos queprove ter sido vítima de violência ou dolo (CC, art. 353). Nãotendo havido nem a imputação pelo devedor, nem aidentificação da obrigação paga no instrumento de quitação,considera-se resolvida a obrigação vencida em primeirolugar. Se as dívidas passíveis de imputação venceram nomesmo dia, imputa-se o pagamento à mais onerosa (querdizer, àquela para cujo inadimplemento preveem-se maioresencargos) (CC, art. 355). Se forem elas igualmente onerosas,pode-se imputar o pagamento a qualquer uma, já que serãoidênticos os efeitos econômicos e jurídicos num ou noutrocaso.

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Capítulo 17

EXTINÇÃODA

OBRIGAÇÃO1. EXTINÇÃO ORDINÁRIA E EXTRAORDINÁRIA

O destino da obrigação é extinguir-se. Suatransitoriedade, aliás, é assinalada em diversos conceitosclássicos, como, por exemplo, o de Clóvis Beviláqua:obrigação é a “relação transitória de direito, que nosconstrange a dar, fazer ou não fazer alguma coisa, em regraeconomicamente apreciável, em proveito de alguém que, porato nosso ou de alguém conosco juridicamente relacionado,

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ou em virtude da lei, adquiriu o direito de exigir de nós essaação ou omissão” (1895:14). O vínculo obrigacional nãoexiste por si mesmo, já que o seu fim é o que todos, em geral,esperam. Normalmente, o credor anseia ver seu direitoatendido e o devedor quer livrar-se da sujeição; à sociedadetambém interessa que as obrigações se cumpram.

Devem-se distinguir duas hipóteses de extinção dasobrigações. De um lado, aquela normalmente aguardadapelas partes, que corresponde à vontade por elas declaradana constituição do vínculo obrigacional ou à previsão dodireito positivo. Chama-se extinção ordinária e verifica-secom o pagamento direto e voluntário (Cap. 16). Quando olocador entrega as chaves ao locatário, logo em seguida àassinatura do contrato de locação, ou o empresário indenizaespontaneamente o consumidor pelos danos do acidente deconsumo, extinguem-se as obrigações (negocial no primeirocaso; não negocial no segundo) do modo como se esperaque ocorra.

De outro lado, há a hipótese de extinção extraordináriada obrigação. Nela se compreendem fatos, atos ou negóciosjurídicos que importam o fim do vínculo obrigacional por ummodo diferente do pagamento direto e voluntário. O decursodo tempo, por exemplo, é um fato jurídico extintivo daobrigação. Como já examinado anteriormente, o não exercíciode direito no lapso temporal definido na lei importa suaextinção (por prescrição ou decadência — Cap. 12). Também

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os direitos derivados das obrigações se extinguem por essemeio. Se o credor de obrigação alimentar não promove acobrança judicial de seu crédito no prazo de 2 anos,contados do vencimento, ele perde o direito de o fazer (CC,art. 206, § 2º). A morte do devedor que não deixou benssuficientes para a integral satisfação de suas dívidas é outrofato jurídico extintivo de obrigações. Como os credores dofalecido não podem exigir o pagamento dos sucessores,opera-se a extinção do vínculo obrigacional sem o devidopagamento (ou parte dele). A execução judicial, mesmo queespecífica, não corresponde ao exato modo em que seesperava a extinção da obrigação. É, portanto, extinçãoextraordinária.

A obrigação extingue-se,ordinariamente, pelo pagamentodireto, ou seja, pela entrega ao sujeitoativo da prestação a que se refere.Extraordinariamente, ela se extinguepelo não exercício do direitotitularizado pelo sujeito ativo no prazo

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da lei (prescrição ou decadência),morte do credor insolvente, novação,compensação, confusão, remissão,pagamento indireto ou inadimplementoinvoluntário.

Outros fatores de extinção extraordinária das obrigaçõessão examinados a seguir: novação (item 2), compensação(item 3), confusão (item 4) e remissão das dívidas (item 5).No próximo capítulo, estuda-se o inadimplementoinvoluntário (Cap. 18, item 5), isto é, a impossibilidade decumprimento da obrigação em razão de caso fortuito ouforça maior, fato que se caracteriza também como uma formade extinção extraordinária das obrigações (Gallo,2000:340/341).

2. NOVAÇÃOA novação é o negócio jurídico que simultaneamente

extingue uma obrigação e constitui outra. Na novação, aprimeira obrigação é extinta — o que importa a liberação dosujeito passivo do cumprimento da prestação e a decorrenteimpossibilidade de o sujeito ativo exigi-la — e surge novo

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vínculo obrigacional para substituí-la. O sujeito ativo daprimeira obrigação dá-se por satisfeito com a substituiçãodesta pela nova, presumindo-se que, entre a novação e opagamento, aquela atende ao seu interesse. A extinção daobrigação novada conduz a diversas consequências derelevo. Se ela estava, por exemplo, coberta por penhor,hipoteca ou anticrese outorgada por terceiro, e este nãoparticipa do negócio extintivo, a garantia real se desfaz coma novação (CC, art. 364). Em outros termos, surge uma novaobrigação desprovida da garantia real no mesmo ato em quefinda a que se encontrava garantida.

A obrigação substituída pode ser negocial ou nãonegocial, mas a substituta é necessariamente negocial. Anovação depende, em outras palavras, da vontade daspartes, e nunca deriva diretamente da lei. Não há novaçãolegal. Se Antonio deve a Benedito indenização pelos danosdecorrentes de acidente de trânsito, esta obrigação (que énão negocial) pode ser objeto de novação, se, por exemplo,as partes chegarem a acordo no sentido de substituí-la pelaentrega de um bem (esta, agora, é negocial). Toda obrigaçãoválida e mesmo as anuláveis podem ser extintas pornovação; as nulas e as inexistentes, não (CC, art. 367).

Só se verifica a novação quando é indiscutível aintenção das partes em novar, isto é, em substituir umaobrigação por outra, extinguindo-se a substituída. Em outraspalavras, não se presume nunca a novação, devendo ela

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derivar de inequívoca intenção das partes. Não havendoclara intenção no sentido de extinguir uma obrigaçãomediante sua substituição por outra, considera-se que asegunda apenas confirma a primeira. Para a lei, a vontade denovar pode ser expressa ou tácita, mas deve ser inequívoca(CC, art. 361). Assim sendo, mesmo que o instrumentofirmado pelas partes não contenha expressa referência ànovação, esta existirá se de outros elementos for possívelconcluir ter sido vontade das partes extinguir a obrigaçãomediante sua substituição por outra. A mais prestigiadaindicação doutrinária da intenção tácita de novar é a daincompatibilidade entre as obrigações em referência. Assim,se a obrigação nova é incompatível com a antiga, mesmoinexistindo expressa manifestação da vontade de novar,considera-se que a novação operou-se tacitamente (Pereira,1962:202).

Novação é a extinção extraordináriada obrigação (novada) que decorre desua substituição por outra (nova).

Na novação, desaparece a obrigaçãonovada — com a liberação do devedor

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em relação à prestação a quecorrespondia — simultaneamente àconstituição do vínculo relativo ànova.

A novação pode ser objetiva(substituição da prestação) ousubjetiva (substituição de um dossujeitos).

A novação pode ser objetiva ou subjetiva, dependendodo elemento substituído. No primeiro caso, difere aprestação da primeira obrigação em relação à da segunda,mantidas as mesmas partes. Carlos deve entregar soja aDarcy. Antes ou depois do vencimento da obrigação, elesconcordam em substituir a prestação por gado. Evaristodevia $ 100 a Fabrício, mas não tinha como pagar novencimento. Puseram-se, então, de acordo, no sentido deque ele pagaria $105 no prazo de 90 dias. Sendo a intençãoinequívoca dessas partes a novação, a primeira obrigaçãodeixa de existir e surge uma nova com prestação diversa

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(gado em vez de soja, no primeiro exemplo; valor e prazo depagamento diferentes, no segundo). A novação objetiva émuito comum em renegociações de dívidas perante osbancos, quando o mutuário enfrenta dificuldades em cumprirsua obrigação.

Não se confunde a novação objetiva com a dação empagamento. Naquela, o negócio jurídico refere-se a duasobrigações: a antiga, que é extinta, e a nova, que surge. Já,na dação em pagamento, a obrigação é uma só, e a prestaçãoé substituída por acordo entre as partes após o vencimento(Cap. 16, item 8.3). A distinção é relevante. Como nanovação a primeira obrigação se extingue, as condições emque esta se constituíra deixam de operar efeitos jurídicos, evigoram apenas as da nova. Desse modo, se a obrigaçãoestá garantida por terceiro, na condição de fiador, a fiançanão sobreviverá em caso de novação, a menos que o fiadorconcorde em garantir também a segunda obrigação (CC, art.366). Na dação em pagamento, por sua vez, permaneceminalteradas as condições da obrigação caso ela não seextinga. Considere que Antonio deve $ 500 a Benedito, emrazão de um contrato de que participa Carlos como fiador.No dia do vencimento, como Antonio não dispõe dodinheiro para pagar o devido, ele negocia com Benedito aentrega, na semana seguinte, de um automóvel no lugar dodinheiro. Pois bem, se a intenção de Antonio e Benedito eraa de realizarem dação em pagamento, não sendo o veículo

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entregue tal como combinado, Carlos continuará devedor dafiança, já que a obrigação correspondente não se extinguiu.Se, porém, Antonio e Benedito tiveram a intenção decelebrar uma novação, a primeira obrigação (entregar $ 500,com a fiança de Carlos) extinguiu-se e, no lugar dela, surgiua nova (entregar o automóvel). Quer dizer, neste caso,Benedito só poderá reclamar o bem de Antonio e não teránenhum direito de crédito contra Carlos.

Definir, em suma, se determinado negócio jurídico tem anatureza de novação ou de dação em pagamento dependedo exame da vontade das partes (Martins-Costa, 2003:521).Deve-se pesquisar qual a intenção dos sujeitos envolvidos:extinguir uma obrigação mediante sua substituição por outraou alterar a prestação no pagamento. Se dessa pesquisaresultar, de forma inequívoca, que havia animus novandi,aplicam-se as regras da novação. Caso contrário, submete-seo fato às normas da dação em pagamento.

Na novação subjetiva, a prestação não se altera, masuma das partes da segunda obrigação não é igual à daprimeira. Trata-se, note, de hipótese mais rara que a novaçãoobjetiva. Se muda o credor, dá-se a novação subjetiva ativa;se o devedor, novação subjetiva passiva.

Como destacado, a obrigação substituta é semprenegocial e depende, em princípio, da vontade das duaspartes. Existe, porém, uma hipótese de novação sujeitaapenas à vontade do credor. É o caso da novação subjetiva

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passiva chamada de expromissão, que decorre do dispostono art. 362 do CC: “a novação por substituição do devedorpode ser efetuada independentemente do consentimentodeste”. Na expromissão, terceiro apresenta-se ao credor epropõe-se a obrigar-se perante este, desde que sejaoutorgada a quitação de outra obrigação em favor do sujeitopassivo desta. Imagine que o pai fique sabendo que seufilho deu-se mal em alguns negócios e está devendo napraça. Se esse pai procura os diversos credores com oobjetivo de pagar o devido pelo filho num prazo a sernegociado, a novação que ele busca é uma expromissão.Extinguem-se as obrigações de que era sujeito passivo ofilho e constituem-se, para substituí-las, as obrigaçõescontraídas pelo pai. Na expromissão, a novação independeda vontade do devedor, que se libera da sujeiçãoobrigacional mesmo que não queira. Nela, a extinção daobrigação decorre apenas de acordo de vontades entre osujeito ativo e o terceiro.

Quando a novação subjetiva passiva é feita medianteacordo de vontade de que participa o devedor, ela édenominada delegação. Por ela, o sujeito que é credor deuma pessoa e devedor de outra pela mesma importância(delegante) pode orientar o sujeito passivo da primeiraobrigação (delegado) a pagar diretamente o ativo dasegunda (delegatário), quitando-se ambas. A novação pordelegação libera por completo o delegante das obrigações

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que contraíra e obriga o delegado perante o delegatário(Mazeaud-Chabas, 1998:1258/1260).

O devedor pode ser substituído naobrigação independentemente de suavontade. Se a novação por substituiçãodo devedor decorrer apenas do acordoentre o credor e o terceiro substituto,chama-se expromissão; se decorrer deacordo entre os três (credor, devedor esubstituto), seu nome é delegação.

Deve-se ressaltar que na novação subjetiva passiva nãohá pagamento com sub-rogação. O sujeito passivosubstituto não passa a ter, na novação, qualquer direito decrédito perante o devedor da primeira obrigação. Como serecorda, no pagamento com sub-rogação, o terceiro satisfazo direito do sujeito ativo da relação obrigacional e passa atitularizar o crédito (e suas garantias) perante o sujeito

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passivo. Na novação, contudo, opera-se a extinção daobrigação, de modo que o devedor substituído fica quitado,nada mais podendo ser dele cobrado, seja pelo sujeito ativo,seja pelo sujeito passivo substituto.

Também não existe sucessão na novação subjetivapassiva. Quer dizer, o sujeito passivo substituto não ésucessor do substituído. Tanto na expromissão como nadelegação, se o credor concorda com a novação, estámanifestando a vontade de integrar uma relação obrigacionalnova, ao mesmo tempo em que libera o sujeito passivo darelação antiga. Não há sucessão, no sentido de que osegundo devedor não assume a obrigação do primeiro, masuma outra. Se o credor possuía, perante o primeiro devedor,um privilégio, a novação não o preserva se o segundodevedor não se encontra na mesma condição jurídica,exatamente porque não há sucessão.

Se o devedor substituto for insolvente, o credor nãopoderá, em princípio, voltar-se contra o substituído. Anovação extinguiu a obrigação deste e o liberou do vínculode sujeição. Cuida, contudo, a lei de uma situação específica:se tiver havido má-fé do primeiro devedor, ele responderápela solvência do segundo (CC, art. 363). Assim, se o credorprovar, por hipótese, que o primeiro devedor haviaadulterado os documentos comprobatórios da idoneidadeeconômica do segundo, ficam caracterizadas a sua má-fé eresponsabilidade pelo cumprimento da obrigação nova.

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Convém salientar que a primeira obrigação permaneceextinta, mesmo tendo obrado de má-fé o devedorsubstituído. A lei imputa-lhe, neste caso, a responsabilidadepela obrigação nova, e é em função dela (e não da antiga)que o credor pode demandar o primeiro devedor.

Na novação subjetiva ativa, por fim, substitui-se ocredor e fica o devedor quitado em relação ao substituído.Não se confunde com a cessão de crédito (Cap. 15, item 2)porque, nesta, a mesma obrigação é transferida de um credorpara outro, enquanto, na novação, o segundo credor é titularde obrigação nova, diferente da que titularizava o primeiro.Na cessão de crédito, não há extinção da obrigação cedida;pelo contrário, ela permanece íntegra. Na novação subjetivaativa, extingue-se a obrigação de que derivava o direito doprimeiro credor. A relevância da distinção é clara: se aintenção inequívoca das partes era a de novar, e não a detransferir a obrigação, eventuais garantias, privilégios evícios da primeira relação obrigacional não se repetem nasegunda (salvo se expressamente renovadas); mas se era ade ceder o crédito, o novo credor o assume com todas assuas garantias, privilégios ou vícios.

3. COMPENSAÇÃOSe as duas partes da relação obrigacional são

reciprocamente credora e devedora, as obrigações seextinguem até o quanto se equivalem. Esta forma de extinção

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é chamada compensação. Se Darcy deve $ 1.000 a Evaristo eé credora deste no valor de $ 1.000, as duas obrigações seextinguem por compensação. Se deve $ 1.000 e é credora de$ 750, a obrigação correspondente ao crédito de Darcyextingue-se por compensação e a correspondente ao créditode Evaristo tem o valor reduzido para $ 250. Se Darcy deveentregar a Evaristo 600 cabeças de gado nelore e este lhedeve 500 cabeças de gado nelore, as duas obrigações secompensam e se extinguem com a entrega, por Darcy aEvaristo, de 100 cabeças de gado nelore. Trata-se de formade extinção de obrigações que atende à racionalidadeeconômica dos créditos recíprocos. Sua formulaçãonormativa encontra-se no art. 368 do CC: “se duas pessoasforem ao mesmo tempo credor e devedor uma da outra, asduas obrigações extinguem-se, até onde se compensarem”.

No direito brasileiro, a compensação não depende davontade dos sujeitos da relação obrigacional. Opera-se, arigor, mesmo contra a de qualquer um deles. É um fatojurídico: estabelecida a equivalência entre as prestações quedois sujeitos de direito mutuamente se devem, dá-se aextinção até o equivalente. Ao contrário da novação e daremissão das dívidas, a compensação não é negócio jurídico.Verificado o fato descrito nas normas sobre compensação,as obrigações compensadas prontamente se extinguem. Seas partes litigam em juízo, a sentença que proclama acompensação apenas declara a ocorrência do fato jurídico

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extintivo; não decreta a extinção.A tecnologia civilista costuma referir-se a três tipos de

compensação: legal, convencional e judicial (Martins-Costa,2003:577/579; Venosa, 2001:298). A compensação legal é aque se opera, independentemente da vontade das partes,quando preenchidos os requisitos da lei; a convencionalseria aquela em que as partes se outorgam quitação porobrigações recíprocas, mesmo que não atendidos osrequisitos da lei para a compensação; a judicial, finalmente,seria a declarada pelo juiz. Esta classificação não éadequada, porém. Toda e qualquer compensação é semprelegal, porque a extinção da obrigação deriva do fato jurídicoao qual a norma atribuiu esta consequência, qualquer queseja a intenção das partes a respeito. A chamada deconvencional não é sequer compensação, mas um negóciojurídico em que sujeitos capazes com vontadesconvergentes compõem seus interesses com liberdade; e ajudicial também não é propriamente uma “espécie” decompensação, mas apenas a superação de conflito deinteresses entre pessoas que titularizam recíprocos direitos eobrigações, em que a declaração do fato jurídico extintivo éfeita pelo Judiciário.

Vale ressaltar que, embora a compensação seja sempreum fato jurídico e não negócio jurídico, a lei reconhece queela corresponde a direito privado plenamente dispositivo.As partes podem, assim, estabelecer por mútuo acordo que

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não haverá a compensação das obrigações recíprocas, seisto for do seu interesse. Pode, ademais, uma delaspreviamente renunciar ao direito de compensar seu débitocom seu crédito, se lhe interessar fazê-lo. Nestes casos emque os sujeitos de direito concordam que a equivalênciaentre obrigações recíprocas não importará a extinção destas,a compensação não se verifica em atendimento à vontadedas partes (CC, art. 375).

A compensação, no direitobrasileiro, é um fato jurídico, não umnegócio jurídico. Assim, preenchidasas condições que a lei descreve, opera-se a extinção das obrigaçõesindependentemente da vontade daspartes. Não é apropriado, portanto,falar em compensação convencionalou judicial. A lei, porém, admite que aspartes afastem a compensação

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mediante negócio jurídico.

Para que se opere a compensação, são necessárias duascondições: o atendimento ao pressuposto da reciprocidadesubjetiva (item 3.1) e a compensabilidade da prestação (item3.2).

3.1. Reciprocidade subjetivaPara que se extingam as obrigações por compensação é

necessário, em primeiro lugar, que as partes titularizem, umaperante a outra, crédito e débito. É o pressuposto dareciprocidade subjetiva. Se Antonio deve $ 300 a Benedito eeste deve $ 400 àquele, compensam-se as obrigações, demodo que o pagamento do segundo ao primeiro da diferençade $ 100 as extingue por completo, porque um deve e é, aomesmo tempo, credor do outro, e vice-versa. Está atendido opressuposto da reciprocidade subjetiva. Ninguém, porém,pode pretender compensar sua dívida com o crédito quetitulariza perante outrem, numa transversa transferência deobrigação. Se Carlos deve $ 700 a Darcy e é credor de $ 700de Evaristo, ele não pode compensar o que deve à primeiracom o crédito que tem perante o segundo. O devedor sópode pretender-se liberado de sua obrigação porcompensação se titularizar crédito perante o seu credor. É o

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que estabelece a primeira parte do art. 371 do CC: “o devedorsomente pode compensar com o credor o que este lhedever”.

Em decorrência do pressuposto da reciprocidadesubjetiva, o terceiro não interessado que paga no lugar dosujeito passivo, fazendo-o em nome deste ou em seu próprionome, não tem o direito de compensar, neste pagamento, ovalor de eventual crédito que titulariza perante aquele sujeitoativo (CC, art. 376). Imagine que Fabrício é credor deGermano por $ 500 e Hebe deve a Germano $ 800. Fabríciopode, como terceiro, mesmo não interessado, pagar a dívidad e Hebe (CC, arts. 304, parágrafo único, e 305), mas nãopoderá limitar-se ao pagamento da diferença entre o seucrédito e o de Germano ($ 300). A compensação neste casonão se admite porque não há identidade dos sujeitos quetitularizam recíprocos direitos e obrigações. Não estariasendo atendido, em suma, o pressuposto da reciprocidadesubjetiva.

Também em decorrência desse pressuposto, perderá odireito à compensação o devedor que poderia compensarsua obrigação com crédito titularizado perante o credor, seeste ceder o seu a terceiro e aquele foi notificado e não seopôs, ou não foi notificado (CC, art. 377). A cessão de umdos créditos compensáveis, assim, afasta a possibilidade dacompensação porque não há, entre cedido (devedor) ecessionário (novo credor), obrigações recíprocas

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equivalentes. Por esta razão, em princípio, o cedido perde odireito de compensar. O cedido apenas continuatitularizando o direito à compensação perante o cessionárioem duas hipóteses previstas na lei: se não tiver sidonotificado da cessão ou se tiver se oposto a ela.

Um exemplo pode clarificar o assunto. Considere queIrene deve $ 200 a João e este deve a ela também $ 200. Têmambos, assim, direito à compensação de suas obrigações.Considere, então, que João cede seu crédito a Luiz,notificando a cessão a Irene. Se Irene não se opuser, noprazo assinalado na notificação, à transferência daobrigação, perde o direito à compensação. Antes da cessão,João devia a Irene, que devia a João, estando, portanto,atendida a reciprocidade subjetiva. Como, após a cessão,João deve a Irene, que deve a Luiz, não há mais opressuposto e descabe a compensação. Para que Irenepossa compensar com Luiz seu crédito perante João, eladeve provar que se opôs à cessão no prazo da notificaçãoou alegar que não foi notificada. Claro está, por fim, que,podendo o cedido compensar seu crédito com a obrigação, ocessionário, em regresso, deverá ser indenizado pelocedente.

O pressuposto fundamental da

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compensação é de natureza subjetiva,quer dizer, relativa aos sujeitos. Só secompensam obrigações em que osujeito ativo de uma relação é opassivo da outra e vice-versa. Nãoestando presente este pressuposto, nãoincide a norma jurídica que determinaa extinção da obrigação porcompensação. Há só uma exceção,prevista em lei, em benefício do fiador,que pode compensar com o credoreventual crédito que o afiançadotitularize perante este.

Há uma única exceção ao pressuposto da reciprocidadesubjetiva. É a estabelecida em favor do fiador. Reconhece alei que ele pode compensar perante o credor o valor do

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crédito titularizado pelo afiançado (CC, art. 371, segundaparte). Se o afiançado deve $ 500 ao credor garantido e é, aomesmo tempo, seu credor por $ 350, o fiador, cobrado,exonera-se da obrigação alegando a compensação epagando a diferença de $ 150.

3.2. Prestação compensávelAlém do pressuposto da reciprocidade subjetiva, a

compensação depende de outros fatos previstos em lei.Quer dizer, nem todas as obrigações são passíveis decompensação, mesmo quando atendido o pressuposto dareciprocidade subjetiva. Se duas pessoas são, ao mesmotempo, credora e devedora uma da outra, para que hajacompensação nas respectivas obrigações é necessário queas prestações atendam a determinados requisitos legais.

São seis os requisitos cujo atendimento tornam aprestação compensável:

a) Liquidez. Para ocorrer a compensação, as prestaçõesdevem ser líquidas, ou seja, certas quanto à existência edeterminadas na extensão (CC, art. 369). Se um dos sujeitosdas relações obrigacionais deve uma quantia claramenteestabelecida em contrato e é credor por indenização em valorainda discutível e não apurado, descabe a compensação porfaltar ao seu crédito liquidez. Enquanto não for tornada certaa obrigação de indenizar (por decisão judicial condenatóriaou negócio jurídico) ou mesmo enquanto não se quantificar

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o valor do ressarcimento indenizatório (por liquidaçãojudicial ou negócio jurídico), não se verifica a extinção daoutra obrigação, que deve ser cumprida. Claro que, uma veztornada certa e quantificada, a prestação que era ilíquida seliquida e passa a ser compensável.

b) Exigibilidade. Só se compensam prestaçõesvencidas, que podem ser exigidas, inclusive judicialmente(CC, art. 369). Enquanto não vence, a obrigação não podeservir à compensação por faltar-lhe exigibilidade. Dessemodo, mesmo a prestação líquida que ainda não é exigível dosujeito passivo, porque não transcorrido o tempo para ovencimento da obrigação, é imprestável para compensar.Note-se que não é condição da compensação que as duasobrigações vençam no mesmo dia; uma pode ter vencidoantes da outra. É inafastável que as duas sejam já exigíveis.Se Maria deve pagar $ 200 a Nair em 30 de setembro e estalhe deve pagar também $ 200, mas em 30 de novembro, nãohá como qualquer uma delas pretender a compensação emagosto, porque as prestações são, então, inexigíveis. Mesmoem outubro, Maria não pode reclamar ter havido acompensação porque seu crédito ainda não terá vencido. Sóapós 30 de novembro, quando as duas prestações sãoexigíveis, opera-se a compensação. Note-se, porém, que,neste exemplo, Maria, porque não adimpliu a obrigação novencimento, é ainda devedora dos encargos da mora peranteNair (correção monetária, juros etc.) incidentes entre 30 de

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setembro e 30 de novembro.Uma definição relacionada à exigibilidade da prestação

compensável encontra-se no art. 372 do CC, quedesconsidera os prazos de favor, mesmo quandoconsagrados pelo uso geral. Desse modo, se é costume dolocal do cumprimento da obrigação que o credor conceda aodevedor um prazo além do vencimento antes de exigir aentrega da prestação, isto não adia a exigibilidade desta paraos efeitos da compensação. Se no vencimento estavam jápresentes todos os demais requisitos da compensabilidade,extinguiram-se as obrigações, a despeito do costume relativoao prazo de favor.

O requisito da exigibilidade afasta a possibilidade decompensação de obrigações naturais. Como o sujeito ativodessas obrigações, por definição, não pode exigir o seucumprimento, a prestação correspondente não atende a esterequisito da compensabilidade. Também não podem sercompensadas, pela mesma razão, as obrigações prescritas.

Além do atendimento ao pressupostoda reciprocidade subjetiva, a normaque determina a extinção da obrigação

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por compensação aplica-se apenas seas prestações apresentaremdeterminadas características. Assim,para que ocorra a compensação, asprestações devem ser líquidas (certasna existência e determinadas naextensão), exigíveis (vencidas),fungíveis, homogêneas, derivadas decausa lícita e não essenciais para osujeito ativo.

c) Fungibilidade. Só prestações fungíveis sãocompensáveis (CC, art. 369). Se uma das obrigações ouambas se referem a bens infungíveis, não ocorrerá acompensação, mesmo que sejam líquidas e exigíveis. Imagineque um dos sujeitos das relações obrigacionais é vendedorde imóvel (pelo qual já recebeu a totalidade do preço) e deveentregar a coisa certa — o apartamento n. 12 do Edifício dasFlores, situado na Rua Oceano Atlântico etc. —, é

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comprador de um veículo (pelo qual já pagou a totalidade dopreço) e tem direito, por isso, de receber do mesmo sujeitoesta outra coisa certa — automóvel marca x, placa y etc. Oimóvel e o veículo, malgrado correspondam a prestaçõeslíquidas e exigíveis, não se compensam porque não sãofungíveis.

A fungibilidade da prestação impede, igualmente,qualquer compensação em obrigações originadas emcontratos reais, como o comodato ou depósito regular (CC,art. 373, II). O comodatário deve restituir ao comodante, nostermos do contrato, o bem objeto do comodato, e não outroequivalente. Se ele é, também, credor do comodante porcerta quantia de dinheiro, não é cabível a compensaçãoporque falta à obrigação dele, enquanto comodatário,fungibilidade. Em igual situação se encontra o depositário,no depósito regular, que deve restituir ao depositanteexatamente o mesmo bem que lhe foi confiado a título dedepósito. A infungibilidade desta obrigação de restituirafasta o cabimento da compensação com qualquer outra deque seja o depositário credor do depositante. Anote-se que,embora a lei mencione depósito em geral, aincompensabilidade da prestação por carência defungibilidade só se verifica na modalidade regular destecontrato, já que o depósito irregular tem por objeto bensfungíveis, aptos a servirem à compensação (Pereira,1962:215).

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As obrigações de não fazer não se prestam àcompensação porque lhes falta fungibilidade. Se um sujeitode direito assumiu obrigação de não fazer, a omissãocorrespondente ao cumprimento desta é dele apenas e demais ninguém. Não consegue o sujeito ativo obter o mesmoresultado do adimplemento da obrigação em razão daconduta de outrem. A infungibilidade das obrigações de nãofazer impossibilita sua compensação. Por esta razão, também,as obrigações de fazer infungíveis não podem sercompensadas (a rigor, as de fazer fungíveis também não seprestam à compensação; mas isso em virtude dodesatendimento do próximo requisito).

d) Homogeneidade. Para servir à compensação, nãobasta à prestação que se refira a bem fungível. É necessárioque se caracterize, também, a homogeneidade. Quer dizer,mesmo que as prestações recíprocas sejam fungíveis, se nãoforem homogêneas, não pode nenhuma das partesenvolvidas pretender a compensação. Veja, não há dúvidade que laranjas baía são bens fungíveis, assim como o sãoas laranjas pera. Mas, se um agronegociante é devedor de 10toneladas de laranjas baía tipo A e, ao mesmo tempo, credorde 10 toneladas de laranjas pera tipo C, estas obrigações nãose compensam porque, embora as prestações sejam líquidas,exigíveis e fungíveis, não são homogêneas. Vale destacarque, neste exemplo, estão-se considerando tipos de laranjascom preços diferentes (a laranja baía tipo A é, normalmente,

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mais cara que a pera tipo C, no mercado atacadista de SãoPaulo). Certa quantidade de um tipo desta fruta tem,portanto, valor diverso da mesma quantidade do outro tipo.Mas, quero enfatizar, isso não tem importância. Ainda queos bens fungíveis tivessem o mesmo valor, não se dá acompensação se não forem homogêneos. Compensam-se,desse modo, dinheiro com dinheiro, café arábica com caféarábica, gado nelore com gado nelore, laranja baía tipo Bcom laranja baía tipo B etc.

A homogeneidade da prestação é exigida pelo art. 370do CC: “embora sejam do mesmo gênero as coisas fungíveis,objeto das duas prestações, não se compensarão,verificando-se que diferem na qualidade, quandoespecificada no contrato”. Silvio Rodrigues chama asprestações homogêneas de fungíveis entre si para distinguiresta condição de compensabilidade da anterior, a que ele serefere pela noção de fungibilidade em si (2002:218).

O requisito da homogeneidade das prestações descartaa hipótese de compensação como forma de extinção dasobrigações de fazer. Boa parte delas estaria já descartada emfunção do requisito anterior, porque as obrigações são, emprincípio, infungíveis, constituídas exclusivamente tendo emvista os atributos pessoais do contratante. Mas mesmo asobrigações de fazer fungíveis não podem ser compensadasporque o requisito da homogeneidade não restaria atendido.Imagine que um oftalmologista assumiu a obrigação de

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atender um dentista, e este, a de tratar aquele médico. Opreço dos serviços de ambos, que corresponde a umaobrigação de dar, pode ser compensado, e nenhum delesdesembolsar nada pelo atendimento que receber do outro;mas as obrigações de fazer (fungíveis) que essesprofissionais assumiram não. Compensá-las é materialmenteimpossível e equivale à não prestação dos serviços. Faltaentre aquelas obrigações a homogeneidade indispensável àcompensação.

Em suma, só as obrigações de dar são compensáveis.e) Causa lícita. A causa das obrigações compensáveis

pode ser igual ou diferente. Compensam-se, assim, créditoderivado de mútuo com débito originado de compra e venda;crédito nascido de contrato com débito oriundo deresponsabilidade civil por ato ilícito; crédito decorrente deprestação de serviços com débito referente a locação etc. Adiferença de causa das dívidas, diz a lei, não impede acompensação (art. 373, caput). A causa da obrigaçãocompensável é, porém, relevante em algumas hipóteses. Nãoadmite a lei a compensação quando a prestação tem causailícita, isto é, deriva a obrigação de roubo, esbulho, furto(CC, art. 373, I) ou qualquer outro crime (sobre ainterpretação extensiva deste dispositivo, ver Martins-Costa, 2003:600). Aquele que se apropria indevidamente devalores da empresa em que trabalha é obrigado a restituí-los,mas não pode pretender a compensação deste seu débito

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originado de ilícito com o valor de férias não gozadas queainda tem para receber. O que furta dinheiro do cofre dovizinho deve restituir o valor furtado; se o criminoso for,eventualmente, também credor desse mesmo vizinho, nãopoderá alegar a compensação, porque sua dívida tem causailícita. Note que, neste segundo exemplo, apenas a vítima, sefor do seu interesse, pode compensar o que deve aocriminoso com o crédito nascido do crime, se atendidos osdemais requisitos da prestação compensável.

f) Inessencialidade. As prestações essenciais ao sujeitoativo não servem à compensação. A primeira hipóteselegalmente prevista de prestação essencial é a insuscetívelde penhora (CC, art. 373, III). A lei processual define quedeterminados bens, reputados essenciais ousentimentalmente caros ao devedor, não podem ser objetoda constrição judicial da penhora. São exemplos de bensimpenhoráveis o anel nupcial, a provisão mensal decombustível, os utensílios profissionais e outros (CPC, art.649). Na sua maioria, exatamente pelo seu valoridiossincrático, os bens impenhoráveis são infungíveis eseriam, já por esta condição, imprestáveis à compensação.Há, contudo, certos bens impenhoráveis que são fungíveis,como o salário ou vencimentos. A lei, em atenção àessencialidade desses bens para o devedor — ou seja, pelasmesmas razões que justificaram sua impenhorabilidade —,obsta que sirvam à compensação. Desse modo, se o

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empregado causa culposamente dano ao empregador, não severifica a compensação do crédito pela indenização com osaldo salarial devido. Note-se, a compensação — enquantofato jurídico extintivo da obrigação — decididamente não severifica, porque excluída expressamente pela lei civil. Pode,entretanto, o empregador proceder ao desconto do valorcorrespondente à indenização, desde que com isto concordeo empregado (CLT, art. 462, § 1º) (as declarações de vontadedas partes da relação empregatícia, sob o estrito ponto devista econômico, levam ao mesmo resultado dacompensação, mas não se confundem, juridicamente, comesta; a compensação é fato jurídico extintivo de obrigação enão negócio jurídico).

A outra hipótese legal em que a essencialidade daprestação para o sujeito ativo obsta a compensaçãoencontra-se na referência às obrigações de alimentar (CC,art. 373, II, in fine). Como os alimentos são destinados aosustento do alimentado, a compensação contra os interessesdeste frustraria o objetivo do instituto. O alimentador nãopode, assim, compensar o que deve a título de alimentoscom créditos que porventura possua perante o alimentado.

3.3. Observações finaisPara finalizar o exame da compensação como fator

extintivo de obrigação, cabem três observações.A primeira diz respeito à compensação de obrigações

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que devem ser cumpridas em lugares diferentes. Como jáassentado anteriormente, o lugar do pagamento não tem,hoje, grande importância, tendo em vista que a expressivamaioria das obrigações pecuniárias, no Brasil, cumpre-se pormeio de operações bancárias, sendo irrelevante o local emque se encontram os sujeitos da relação obrigacional nomomento do adimplemento. De qualquer forma, se a questãodo lugar do pagamento não for indiferente para a parte quese deslocou em função da compensação, é-lhe assegurado odireito à dedução das despesas correspondentes (CC, art.378).

A segunda é pertinente à situação do devedor que seobrigou por mais de uma dívida compensável perante omesmo credor. Estabelece a lei que a compensação se operacom observância das regras atinentes à imputação dopagamento (CC, art. 379). Desse modo, cabe ao devedorapontar qual das obrigações compensáveis ele deseja verextinta por compensação. Se não o fizer, e o credor tambémnão se manifestar, compensam-se as dívidas vencidas emprimeiro lugar ou, se insuficiente este critério, as maisonerosas (CC, arts. 352 a 355).

Finalmente, a terceira observação trata da preservaçãodos direitos de terceiros. A compensação, esclarece-se, nãoprejudicará esses direitos. Se o devedor se torna credor doseu credor, depois de penhorado o crédito deste, não podeopor ao exequente a compensação que eventualmente

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tivesse contra o executado (CC, art. 380). Assim, imagine queOrlando é credor de Pedro e deve a Renato. Este último, naexecução que promove para haver seu crédito, podepenhorar o crédito que Orlando tem com Pedro. Vindo, apósis s o, Pedro a tornar-se também credor de Orlando, nãopoderá ser feita a compensação porque ela prejudicaria osdireitos do exequente Renato. Com efeito, como acompensação extingue a obrigação, ela acarretaria, nestecaso, a desconstituição da garantia do terceiro representadapela penhora. Na tutela dos direitos deste, a lei, então, obstaa compensação.

4. CONFUSÃOPor confusão, extingue-se a obrigação em que o mesmo

sujeito de direito tornou-se credor e devedor. Dois exemplospodem ilustrá-la. No primeiro, considere que o sujeitopassivo da relação obrigacional é o único herdeiro do sujeitoativo. Vindo este último a falecer — antes ou depois devencida a obrigação, mas, em qualquer caso, antes do seuadimplemento —, aquele passa a ser, ao mesmo tempo,sujeito passivo e ativo da obrigação. No segundo exemplo,imagine que os obrigados são sociedades empresárias e queuma delas incorpora a outra (quer dizer, absorve opatrimônio dela numa operação societária). Na incorporação,a incorporadora sucede a incorporada em todos os seusdireitos e obrigações (CC, art. 1.116). Se a incorporada devia

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à incorporadora, ou se tinha perante esta algum crédito,opera-se a confusão extintiva da obrigação.

Deve-se à absoluta impossibilidade material e lógica desobrevivência da obrigação a sua extinção por confusão. Seo credor e o devedor tornam-se o mesmo sujeito de direito,as posições ativa e passiva da relação obrigacional passam apertencer ao mesmo patrimônio. Não há como adimplir estaobrigação, porque a prestação já se encontra no patrimôniode quem é o credor. Para os sujeitos obrigados a mantercontabilidade (como as sociedades empresárias), bastam oslançamentos apropriados que fazem desaparecer o registroda obrigação. Para os demais, a impossibilidade material elógica já suspende qualquer eficácia da obrigação.

A confusão é, tal como a compensação, um fato jurídico.Mesmo quando derivada de negócio jurídico — como noexemplo da incorporação —, o que extingue a obrigação nãoé a declaração de vontade das partes, mas suaconsequência: a reunião no mesmo patrimônio das posiçõesativa e passiva da relação obrigacional. Sempre que severificar esta reunião, tal fato jurídico implicará a extinção daobrigação por confusão.

Duas são as espécies de confusão: total ou parcial (CC,art. 382). Na primeira, a obrigação extingue-se por completo,enquanto, na outra, apenas em parte. Exemplo de confusãoparcial encontra-se nas obrigações solidárias. Se um dosdevedores solidários se confunde com o credor, opera-se a

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extinção de parte da obrigação. Quer dizer, apenas a partecorrespondente à parcela de responsabilidade do devedorsolidário confundido. Remanesce a obrigação com asolidariedade entre os demais devedores (se restarem,evidentemente, pelo menos dois). É o ditado da lei: “aconfusão operada na pessoa do credor ou do devedorsolidário só extingue a obrigação até a concorrência darespectiva parte do crédito, ou na dívida, subsistindoquanto ao mais a solidariedade” (CC, art. 383).

Confusão é o fato jurídico extintivode obrigação derivado da reunião, nomesmo patrimônio, das posições ativae passiva da relação obrigacional.Assim, quando credor e devedorpassam a ser o mesmo sujeito dedireito, dá-se a confusão e a extinçãoda obrigação.

A confusão pode ser parcial, hipótese

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em que a obrigação não se extinguepor inteiro.

Cabe alertar que não se opera confusão se os sujeitosda relação obrigacional não são exatamente iguais. Estaimpropriedade no manuseio do conceito verifica-se, até comcerta frequência, no caso de aquisição de participaçõessocietárias (ações de sociedades anônimas ou quotas delimitada). Se Antonio é credor da sociedade PrimaveraEmpreendimentos Ltda. e adquire a maioria das quotassociais de seu devedor, isto não acarreta a confusão. Osócio é pessoa distinta da sociedade, de modo que Antoniocontinuará credor e Primavera Empreendimentos Ltda.,devedora, sendo irrelevante o fato de o credor ter-se tornadosócio do devedor. Somente quando o credor e o devedor seconfundem num mesmo sujeito de direito, ou seja, apenasquando se reúnem no mesmo patrimônio as posições ativa epassiva da obrigação é que esta se extingue por confusão.

Dispõe, enfim, a lei que, cessada a confusão,restabelece-se a obrigação anterior com todos os seusacessórios (CC, art. 384). Para alguns doutrinadores, trata-sede preceito equivocadamente formulado pela lei. O que sepretendeu regular, segundo este enfoque, não seria acessação da confusão e o restabelecimento da obrigação,

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mas as situações transitórias em que a possibilidade deconfusão está presente, mas ainda não se verificou em suaplena eficácia. Como diz Pontes de Miranda, não háressurreição do crédito (1965, 25:43/44). A confusão, quandoocorre, o extingue e não haveria como reavivá-lo. A normaem foco cuidaria, assim, da renovação da eficácia daobrigação que corria o risco de ser extinta por confusão.Judith Martins-Costa ilustra o fato subsumível ao art. 384 doCC, para esta concepção, com a renúncia à herança. Com ofalecimento, transmite-se o patrimônio do falecidoimediatamente aos herdeiros legítimos e testamentários. Seum destes devia ao de cujus, a obrigação correspondentereúne todos os requisitos para extinguir-se por confusão. Se,contudo, esse devedor renuncia à herança, não chega aocorrer a reunião, num só patrimônio, das duas posições darelação obrigacional. A confusão, que estava prestes aocorrer, não se verifica (Martins-Costa, 2003:646/648).

O art. 384 do CC cuida, no meu modo de ver, da hipótesede anulação do negócio jurídico de que decorreu aconfusão. Se a incorporação da sociedade credora peladevedora é anulada, todos os seus efeitos deixam de seprojetar, inclusive os relacionados à extinção da obrigaçãoque havia entre elas. A anulação do negócio jurídicomotivador da confusão faz cessar esta e restabelece, comtodas as garantias, a obrigação anterior. Na aplicação destedispositivo, porém, com o intuito de preservar os interesses

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de terceiros, tem-se negado o completo restabelecimento decertas garantias reais. Se, após o negócio jurídico que deuensejo à confusão, foi levantada a hipoteca que garantia aobrigação, o imóvel anteriormente onerado pode ter sidovendido. Para tutelar os interesses do terceiro adquirente,considera-se que a anulação daquele negócio jurídico fazcessar a confusão e restabelece a obrigação, mas nãorevigora a hipoteca (cf. Venosa, 2001:323).

5. REMISSÃO DE DÍVIDASA remissão das dívidas é negócio jurídico extintivo da

obrigação. Consiste na declaração do credor, aceita pelodevedor, no sentido de dispensar este último documprimento da obrigação ou de parte dela. Tem os mesmosefeitos liberatórios da quitação (Pereira, 1962:246). Remitida adívida por completo, nada mais pode ser exigido do sujeitopassivo.

Remissão é perdão. O credor libera, por ato de vontade,o devedor do cumprimento da obrigação. Não se trata,porém, de negócio unilateral. Não basta o credor querer, paraque se opere a remissão. Ela depende da concordância dodevedor. Na verdade, nada, neste mundo, é de graça. Operdão que aparentemente só traz benefícios ao sujeitopassivo pode, a bem da verdade, acarretar-lheconstrangimentos. Se ele não está disposto a suportá-los,preferindo cumprir a obrigação, é seu direito. O

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constrangimento moral decorrente do perdão pode, aliás, sermais difícil de aguentar que os eventuais apertoseconômicos relacionados ao cumprimento da obrigação cujaremissão é pretendida pelo credor — só o devedor podeavaliar.

Deve-se distinguir a remissão do não exercício dodireito. Se o credor, vencida a obrigação sem oadimplemento pelo devedor, simplesmente não promove aexecução forçada do crédito, sua inércia não importa aextinção do direito enquanto não transcorrer o prazoprescricional correspondente. Quer dizer, o credor poderá, aqualquer tempo, desde que dentro do prazo de prescrição,abandonar o estado inercial e perseguir o pagamento a quefaz jus, porque seu crédito não se extinguiu. Na remissão, aocontrário, a declaração no sentido de liberar o devedor documprimento da obrigação vincula o credor aos seus termos.Uma vez aceita a liberação pelo sujeito passivo, opera-se aextinção da dívida. Mesmo vindo o credor a se arrepender,no futuro, da liberalidade praticada, nada poderá cobrar dodevedor.

A remissão é, assim, uma espécie de renúncia (Cap. 12,item 1). É, especificamente, a renúncia a direito obrigacionale se traduz sempre num negócio jurídico bilateral (Monteiro,2001:335). Veja que o titular de direito não obrigacional pode,por ato unilateral de vontade, declarar de forma vinculativaabrir mão dele. O deputado pode renunciar ao mandato

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político para o qual fora eleito, independentemente daaprovação de qualquer outro sujeito; o herdeiro poderenunciar à herança por sua exclusiva vontade; qualquerlitigante pode renunciar ao direito de recorrer sem consultaaos demais, e assim por diante. Quando o sujeito é titular dedireito obrigacional como credor, ele simplesmente não podeabrir mão de seu crédito por declaração unilateral devontade. Sem a concordância do devedor, a renúncia(remissão) não existirá.

Antes da entrada em vigor do Código Reale, a doutrinacivilista abrigava séria controvérsia sobre a natureza daremissão, defendendo alguns autores que se cuidava de atounilateral e outros, bilateral (cf., p. ex., Lopes, 2000:321;Gomes, 1961:124; Rodrigues, 2000:229). Ao introduzir nodireito brasileiro o preceito contido no art. 385 (“a remissãoda dívida, aceita pelo devedor, extingue a obrigação...”), oCódigo Civil de 2002 pôs fim à controvérsia. Embora hajaquem considere a questão ainda não resolvida (Lotufo,2003:417/419), a lei, ao condicionar o efeito liberatório àaceitação do sujeito passivo, prestigia a posição que nãoadmite qualquer forma de extinção de obrigação por simplesdeclaração de renúncia do credor.

Em decorrência da natureza bilateral do negócio jurídicoem que a remissão se encerra, o devedor pode opor-se àtentativa de o credor, unilateralmente, pretender liberá-lo dovínculo obrigacional. Assim, se o credor declara a vontade

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de remitir a obrigação, mas o devedor considera que é doseu interesse cumpri-la, este último tem o direito de pagar adívida. Pode o devedor nessa situação, inclusive, valer-se daação judicial própria para alcançar o cumprimento daobrigação, que é a consignação em pagamento (CPC, arts.890 e s.). A recusa em receber o pagamento não tem causajusta quando fundada exclusivamente na intenção do credorde exonerar o devedor da obrigação.

A remissão é o perdão, total ouparcial, da dívida. Trata-se dedeclaração de vontade do sujeito ativono sentido de liberar o passivo documprimento da obrigação. Tem efeitoextintivo desde que atendidos doisrequisitos: a) concordância dodevedor, que não pode serconstrangido a suportar eventualdívida moral em reconhecimento ao

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perdão; b) inexistência de prejuízospara terceiros.

Direitos de terceiros não podem ser prejudicados pelaremissão. O crédito, lembre-se, integra o patrimônio dosujeito ativo e, como tal, garante o cumprimento dasobrigações que ele tem perante terceiros. A declaraçãoexoneratória do credor, mesmo que aceita pelo devedor, nãoterá o efeito de extinguir a obrigação se, por exemplo, aremissão levar o sujeito ativo à insolvência. Não extinguirá,também, a dívida se esta se encontrava penhorada emexecução que terceiro move contra o credor. Nesses doiscasos, o credor do credor é prejudicado pela reduçãopatrimonial que o perdão da dívida importaria.

A remissão, assim, é uma declaração do sujeito ativoliberando o passivo do cumprimento de sua obrigação quedepende, para projetar efeitos extintivos, de aceitação dodevedor e da inexistência de prejuízos a direitos de terceiros.

A remissão pode ser total ou parcial, segundo aextensão da liberação que realiza. Se extinta a obrigação porcompleto, é total; caso contrário, parcial. Na remissãoparcial, o sujeito passivo fica, por evidente, vinculado aocumprimento da parte não remitida. O inadimplemento daparte exigível, porém, não faz ressurgir a dívida por inteiro (a

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menos que seja este efeito expressamente previsto noinstrumento representativo da obrigação). Se o credor, aoremitir parcialmente a obrigação, tinha o objetivo de receberpelo menos parte dela, deveria ter-se cercado de maioresgarantias, porque a remissão, uma vez aceita pelo devedor,só pode ser desconstituída com a expressa concordânciadeste.

A remissão não tem forma prescrita na lei. Pode adotarqualquer uma: escrita, oral, gestual, transmissão eletrônicade dados etc. Normalmente, para a segurança das partes, éfeita por escrito particular, em instrumento assinado pelocredor e devedor. Pode derivar, contudo, de declaraçõesorais, passíveis de prova por outros meios, inclusivetestemunhas (se o valor da remissão era inferior ao décuplodo maior salário mínimo vigente — CC, art. 277). Nadistribuição do ônus probatório, presume a lei ter sidoremitida a obrigação quando o credor entregou,voluntariamente, ao devedor o título representativo dadívida que adota a forma de escrito particular (CC, art. 386).Feita a entrega voluntária do instrumento particular, caberáao credor a prova de que a intenção do gesto não teria sidoa de perdoar o devedor.

A devolução voluntária do bem empenhado, por suavez, não presume a remissão da obrigação, massimplesmente a renúncia à garantia real (CC, art. 387).Antonio, credor pignoratício de Benedito, restitui a este o

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objeto sobre o qual recai o penhor. Presume-se que nessegesto está a manifestação da vontade do credor de renunciarà garantia real, mas não ao direito creditório. Considera-se,então, que Antonio continua credor de Benedito, mas, apósa restituição do bem empenhado, não titulariza mais agarantia pignoratícia; torna-se credor quirografário.

Na hipótese de solidariedade passiva, a remissãoacertada entre o credor e um dos codevedores solidários nãoaproveita aos demais. A obrigação apenas reduz-seproporcionalmente ao quinhão (ou à parte dele, se tiver sidoparcial a remissão) do sujeito passivo declaratário (CC, arts.277 e 388). Exemplo: Carlos, Darcy e Evaristo são devedoressolidários de $ 300 a Fabrício. Se eventualmente Fabrícioremitir, por completo, a dívida de Carlos, a extinção daobrigação deste não importará a liberação de Darcy eEvaristo. Pelo contrário, remanescerá obrigação no valor de$ 200, pela qual Darcy e Evaristo continuarão solidariamenteresponsáveis.

Por fim, registro que não se confundem remissão (ato ouefeito de remitir) com remição (ato ou efeito de remir); aqueleé negócio extintivo da obrigação e este, o resgate de um bemonerado ou sob constrição judicial.

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Capítulo 18

INADIMPLEMENTODA OBRIGAÇÃO

1. O DESCUMPRIMENTO DA OBRIGAÇÃOO credor espera que a obrigação se cumpra

espontaneamente no vencimento, isto é, que a prestação lheseja entregue pelo devedor no tempo e lugar devidos. Nãosó ele. Num certo sentido, a sociedade como um todotambém tem a expectativa de que as obrigações sejamtempestivamente pagas. O cumprimento generalizado dasobrigações contribui para ampliar o grau de confiança entreas pessoas e, consequentemente, a sensação geral desegurança. E não se trata apenas de conforto psicológico.Viver num meio em que há elevado nível de cumprimentovoluntário das obrigações, além da sensação de segurança,representa pagar menos pelos bens e serviços de consumo e

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impostos. Onde todos costumam pagar o que devem, isto é,onde o risco de inadimplência é baixo, os credores em geralnão precisam embutir nos seus preços uma alta taxa (spread)para neutralizar os efeitos do atraso ou descumprimento daobrigação. Veja o caso dos impostos: nos lugares em quetodos os cidadãos pagam regularmente seus tributos,pagam-se menos tributos. Naqueles em que há significativonúmero de inadimplentes, o Poder Público precisacompensar a inadimplência aumentando a carga tributária, aser suportada exclusivamente pelos adimplentes. No Brasil,um dos ingredientes que contribuem para a elevação docusto de vida e para o alto nível de tributação é certamente anefasta cultura, de larga difusão em certos meios, de vervantagem em postergar pagamentos, forçar renegociações esonegar impostos. Se há um aparente e imediato ganhoindividual, ele se perde, pelo menos em parte, em razão daalta no custo de vida que indiretamente causa. Para asociedade como um todo, e não apenas para os credores,portanto, interessa que as obrigações sejam integralmentecumpridas pelos devedores no seu tempo e lugar.

A maioria das obrigações é de fato, paga no vencimentopor espontânea iniciativa do devedor. Delas o Direito nãocuida. O Direito, viu-se (Cap. 2, principalmente), é o sistemasocial criado para superar os conflitos de interesses.Quando a obrigação é paga pelo devedor no vencimento,não se manifesta nenhum conflito. O sistema jurídico nem

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sequer chega a ser acionado. Pode-se mesmo dizer que oDireito seria por tudo inútil se as pessoas nunca deixassemde cumprir seus deveres e obrigações e se, em caso dequalquer desentendimento, sempre alcançassem, comrapidez e justiça, a composição amigável de seus interesses.Seria um mundo sem juízes, advogados, faculdades dedireito ou prisões. Na realidade, porém, conflitos deinteresses surgem, e a sociedade civilizada desenvolveu umsistema (institucionalizado) para superá-los, que é o Direito.Se a obrigação é cumprida tal como deveria ser, nenhumantagonismo se instala nas relações entre os envolvidos, eeste fato não ganha relevância para o sistema de superaçãode conflitos.

O Direito cuida, assim, das obrigações que não sãocumpridas, daquelas em que o devedor não entrega aprestação ao credor no tempo e lugar devidos. Mesmoquando a lei disciplina o adimplemento das obrigações —fixando, por exemplo, os requisitos do pagamento —, o quetem em mira é nortear decisões acerca da verificação, numcaso concreto, do inadimplemento. Ao, por exemplo,estabelecer que “o pagamento deve ser feito ao credor” (CC,art. 308, primeira parte), a lei está, a rigor, preceituando que opagamento feito a quem não é o credor representainadimplemento. Esse dispositivo legal, destaque-se,curiosamente não se aplica aos pagamentos feitos aoscredores. Nestes casos, não surge nenhum conflito de

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interesses que precise ser solucionado a partir da diretrizdada por aquela norma. Quando, então, será ela aplicada?Nos casos em que o devedor pretender sua liberação daobrigação, mesmo tendo feito o pagamento a quem não era ocredor; em suma, quando se verificar o conflito deinteresses: o credor considera-se não pago e o devedorentende que já está liberado da obrigação. O juiz, ao decidiresse conflito norteado pela norma citada, determinará que odevedor pague novamente o credor, ou seja, partirá dopressuposto de que a obrigação está inadimplida.

O inadimplemento verifica-se sempre que a obrigaçãonão é cumprida no vencimento. Ele é também referido pelaexpressão inexecução, e pode ser voluntário (decorrente davontade do sujeito obrigado) ou involuntário (causado porfatos estranhos a esta vontade). Nas obrigações de dar, se odevedor não entrega na data aprazada a coisa objeto daprestação, ou o credor se recusa a recebê-lainjustificadamente, ocorre o inadimplemento. Nas de fazer,ele se manifesta quando o sujeito passivo não age ou deixade prestar o serviço prometido a partir da data dovencimento da obrigação. Já nas de não fazer, diz a lei que“o devedor é havido por inadimplente desde o dia em queexecutou o ato de que se devia abster” (CC, art. 390). Há,enfim, inadimplemento de obrigações de fazer ou não fazerem decorrência de ato do credor que obsta ou não colaborapara o cumprimento delas, se necessária a concorrência de

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condutas dos sujeitos obrigados.Desse modo, se Antonio vende a Benedito seu

automóvel, prometendo entregá-lo em 5 dias úteis, háinadimplemento se deixa de fazê-lo neste prazo. Também nãocumpre a obrigação Benedito se ele se recusar, sem motivojustificável, a receber o veículo no dia do vencimento. Háainda inadimplemento se Carlos, dentista, havia concordadoem tratar dos dentes de Darcy, mas adia indefinidamente aconsulta. Será inadimplemento de Darcy seu nãocomparecimento, na data e no horário agendados, aoconsultório de Carlos, para submeter-se ao tratamentodentário que havia contratado. Veja que o cumprimento daobrigação de fazer assumida pelo dentista depende, nestahipótese, também de conduta do paciente. Finalmente, éinadimplente Evaristo, alienante de quotas de sociedadeempresária, que se obrigara perante Fabrício, o adquirente,a não concorrer no mesmo ramo econômico, caso venha anele operar, descumprindo obrigação de não fazer.

Esses são exemplos de inadimplemento voluntário. Mas,como referido, as obrigações também são inadimplidasinvoluntariamente. Se o devedor não entrega a coisa porqueesta se perdeu numa inundação ou deixa de fazer o que seobrigara porque adoecera, verifica-se inadimplementoinvoluntário. Qualquer fato jurídico escapado ao controledas partes pode dar ensejo à inexecução involuntária: atosde terceiros, eventos naturais, impedimento legal

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superveniente e outros.

O inadimplemento (ou inexecução)significa o não cumprimento daobrigação no modo, tempo e lugardevidos. É voluntário quando derivade culpa de pelo menos um dos sujeitosobrigados (em geral, o devedor) einvoluntário quando causado por fatonecessário de efeitos inevitáveis (atode terceiro, força da natureza,impedimento legal superveniente etc.).

O inadimplemento pode ser absoluto ou relativo (Alvim,1972:7). No primeiro caso, o devedor vê-se impossibilitadode cumprir a obrigação por perda da prestação. No segundo,verifica-se apenas atraso no cumprimento da obrigação, mas

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a prestação permanece íntegra.O inadimplemento absoluto, a seu turno, pode ser total

ou parcial, dependendo de ter perecido ou deteriorado oobjeto. Note que a perda parcial da coisa ou condutadevidas configura também inadimplemento; como o credornão é obrigado a receber prestação diversa da que lhe édevida (CC, art. 313), o devedor não pode pretender sualiberação da obrigação pela entrega da prestaçãodeteriorada, que é, com certeza, algo diferente do devido. Oinadimplemento absoluto, destaco, só pode ocorrer, nasobrigações de dar coisa incerta, após a concentração, enunca se verifica nas obrigações pecuniárias. O gênero,como visto, não perece; assim, enquanto não individuada aprestação na obrigação de dar coisa incerta, é impossívelseu inadimplemento absoluto. O objeto das pecuniárias, porsua vez, é o dinheiro, bem insuscetível de perda (no sentidojurídico da expressão) em qualquer hipótese.

O inadimplemento relativo deriva do atraso nocumprimento da obrigação e é, quando culposo,denominado mora. Neste caso, como a prestação não seperde, o pagamento é ainda possível. A mora normalmente édo devedor, que não entrega a prestação no prazoestabelecido, mas pode também ser do credor, quando ele serecusa injustificadamente a receber a prestação (item 3).

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O inadimplemento pode ser absolutoou relativo. É absoluto seimpossibilitado o cumprimento daobrigação. Verifica-se em caso deperda total ou parcial da prestação. Érelativo se a obrigação deixa de sercumprida ao seu tempo, mas aprestação permanece íntegra. Nesteúltimo caso, quando há culpa dosujeito obrigado, o inadimplementodenomina-se “mora”.

Esta classificação, embora largamente empregada nadoutrina, nem sempre serve à identificação dasconsequências da inexecução das obrigações. Sãoessencialmente idênticas as implicações do descumprimentoculposo da obrigação, seja o inadimplemento absoluto, totalou parcial, ou relativo. Por isso, para bem compreender oslimites da distinção é preciso tangenciar o tema das

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consequências do inadimplemento.

2. CONSEQUÊNCIAS GERAIS DO INADIMPLEMENTOVariam as consequências do inadimplemento segundo

tenha decorrido de culpa dos sujeitos obrigados ou não.Quando, por exemplo, o pagamento não se realiza no tempoe lugar devidos porque o devedor negligencia nos controlesou em outras providências necessárias à sua efetivação(culpa simples), ou porque intencionalmente decidiu nãoentregar a prestação a que se obrigara, sem que houvessejustificativa jurídica para tanto (dolo), ele responde pelosprejuízos que sua conduta culposa causar ao credor. Se, poroutro lado, a falta do pagamento deve-se a fato diverso, nãoimputável à culpa do devedor (caso fortuito ou de forçamaior), ele não será responsável por eventuais prejuízos queo inadimplemento trouxer ao credor.

A inexecução da obrigação podedecorrer de culpa dos sujeitosobrigados, ou de pelo menos um deles,ou de fato jurídico sobre o qual não

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têm controle. O inadimplementovoluntário ou culposo gera para aparte culpada a responsabilidade deindenizar os danos sofridos pela outraparte. O inadimplemento involuntário,ou não culposo, importa a resoluçãoda obrigação. Estas são as regrasgerais da matéria.

De um modo geral, pode-se dizer que o inadimplementonão culposo acarreta a resolução da obrigação. As partes,então, retornam à situação em que se encontravam antes daconstituição do vínculo obrigacional. O sujeito passivo nãopode ser mais forçado a entregar a prestação, mas deverestituir ao ativo eventuais pagamentos que tenha recebido.Já o inadimplemento culposo impõe ao sujeito culpado pelonão cumprimento da obrigação o dever de indenizar osprejuízos que sua conduta ocasiona. A indenização érepresentada pelo pagamento do valor das perdas e danos,juros, correção monetária, honorários de advogado e multa

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estabelecida em cláusula penal. Aqui, porém, está apenas aideia geral das consequências do inadimplemento. À frente,são detalhadas as regras aplicáveis à presença (itens 3 e 4) eausência de culpa (item 6) na inexecução.

Quando a obrigação é pecuniária, não variam asconsequências do inadimplemento de acordo com suaextensão. A classificação apresentada no item anterior —absoluto (total ou parcial) ou relativo — tem importânciapara delimitar as consequências do inadimplemento deobrigações não pecuniárias. A doutrina costuma apontarcomo implicação relevante dessa distinção a possibilidadede emenda do devedor, que existe apenas na hipótese demora e não na de inadimplemento absoluto (cf., por todos,Diniz, 2003, 2:368). A perda ou inutilidade da prestaçãoimpedem, deveras, que o devedor tome a iniciativa dereverter o inadimplemento.

Em outros termos, no inadimplemento absoluto total,que sempre diz respeito a obrigação não pecuniária, aindenização devida pelo inadimplente compensa aimpossibilidade de sua execução pelo exato modo em que foiconstituída. Aqui, o credor simplesmente não tem comoexigir mais o pagamento da prestação devida, nem deequivalente. Substitui-se, então, a obrigação não pecuniáriacuja prestação se perdeu por completo por outra, denatureza pecuniária, que é a indenização. Também temnatureza compensatória a indenização devida na hipótese de

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inutilidade da prestação causada pelo inadimplementorelativo de obrigação não pecuniária. Caracterizada, emtermos objetivos, que a prestação se tornou inútil ao credor,ele não é obrigado a recebê-la e tem direito a indenizaçãoque substitua a obrigação inadimplida. Por outro lado, temnatureza sempre moratória a indenização cabível se aprestação continua útil mesmo após o inadimplementorelativo da obrigação não pecuniária. Nesta situação, ocredor não pode recusar-se a receber a prestação, e aindenização a que tem direito, portanto, não substitui aobrigação inadimplida, apenas atenua os efeitos da mora.Nas hipóteses de inadimplemento absoluto parcial deobrigação não pecuniária, abrem-se à escolha do credor asalternativas de indenização compensatória doinadimplemento ou entrega da prestação deterioradaacrescida de indenização moratória.

3. MORAMora é outro nome para o inadimplemento relativo

culposo. Pode referir-se tanto ao devedor (mora solvendi)como ao credor (mora accipiendi). No primeiro caso,manifesta-se pelo atraso no pagamento por culpa imputávelao sujeito passivo; no último, pela recusa injustificada dosujeito ativo em recebê-lo no vencimento. É o previsto na lei:“considera-se em mora o devedor que não efetuar opagamento e o credor que não quiser recebê-lo no tempo,

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lugar e forma que a lei ou a convenção estabelecer” (CC, art.394).

Quando a mora é do credor, três consequências seprojetam (CC, art. 400). Em primeiro lugar, o devedor isentode dolo fica liberado da responsabilidade pela conservaçãoda coisa. Perdendo-se esta, assim, suportará os prejuízosapenas o credor, mesmo que tenha havido culpa simples dodevedor no evento danoso. Em segundo, o credor deveressarcir o devedor pelas despesas com a conservação dacoisa em que este incorrer. Por fim, se o valor da prestaçãooscilar entre o vencimento e o recebimento pelo credor,prevalecerá no cumprimento da obrigação o que for maisfavorável ao devedor. Se o credor se recusou a receber, noprazo assinalado, o produto agrícola objeto de contrato,mas, quando o seu preço subiu no mercado, mudou depostura e prontificou-se a recebê-lo, o devedor tem o direitode exigir pagamento suplementar pela mesma quantidade ouentregar menos produto pelo valor contratado.

A mora é o atraso no cumprimento daobrigação provocado por ato culposode uma das partes. Está em mora o

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devedor que não entrega a prestaçãoao credor no vencimento, e o credorque injustificadamente se recusa arecebê-la.

Pode verificar-se simultaneamente a mora do credor e dodevedor. É o caso em que nenhum dos dois sujeitosobrigados comparece ao local do cumprimento da obrigaçãono vencimento. Sendo esta a situação, as condutas dossujeitos obrigados neutralizam-se uma à outra, e nenhumdeles pode ser isoladamente considerado culpado peloinadimplemento (Monteiro, 2001:271). A mora do credor e adas duas partes correspondem a fatos raríssimos. Naexpressiva maioria das vezes, quando há mora, ela é dodevedor. Sua caracterização e consequências variam nasobrigações pecuniárias (subitem 4.1.1) e nas não pecuniárias(subitem 4.2.2).

O inadimplemento relativo culposo extingue-se emdiferentes hipóteses. Orlando Gomes as lista: purgação damora, cessação do dever de prestar pela perda da prestaçãoque se verificaria ainda que tivesse sido adimplida aobrigação, novação, remissão, renovação pelo credor doprazo de vencimento e renúncia ao crédito (1961:173). Em

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todas elas, o devedor abandona a condição de inadimplentee cessam os efeitos da mora. Note-se que as quatro últimasdependem da concordância do credor. Ao novar aobrigação, perdoar o devedor, conceder-lhe novo prazo parao pagamento ou renunciar ao seu direito, o sujeito ativo, porsua exclusiva vontade, libera o devedor das consequênciasda inexecução culposa deflagradas por este último. Nestescasos, sem a manifestação de vontade do credor no sentidode anuir com a extinção da mora, permanece o devedorsujeito aos seus efeitos. A segunda hipótese de extinção damora, por sua vez, independe da vontade de qualquer umadas partes (ela será examinada mais à frente: subitem 4.2.2).

A purgação da mora distingue-se das demais causasextintivas do inadimplemento relativo porque consiste eminiciativa exclusiva do sujeito inadimplente e extingue oinadimplemento relativo mesmo contra a vontade da outraparte.

A purgação (chamada também de emenda) é, assim, aextinção da mora derivada de manifestação de vontadeunilateral do inadimplente (CC, art. 401). Caracteriza-sequando o sujeito obrigado que se encontra em mora muda,por atos inequívocos, sua conduta, viabiliza o cumprimentoda obrigação e arca com as consequências do seu anteriorinadimplemento. A purgação da mora não desconstitui osefeitos desta; simplesmente os estanca. A obrigação deindenizar os prejuízos decorrentes do inadimplemento

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tempestivo continua imputável ao sujeito em mora. Se, porexemplo, correram juros no período entre o vencimento daobrigação e a purgação da mora, eles continuam devidos. Aemenda da mora não libera o inadimplente de pagá-los, nemos demais consectários.

A mora, ao contrário doinadimplemento absoluto, pode serpurgada (emendada). A purgaçãoocorre quando o inadimplente (credorou devedor) toma a iniciativa dedesobstruir o cumprimento daobrigação, bem como deresponsabilizar-se pela completaindenização em favor do outro sujeitoda relação obrigacional. Além dapurgação, que cessa os efeitos do

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inadimplemento relativo, outrosfatores podem dar ensejo àdescaracterização deste: perda daprestação que se verificaria ainda quecumprida a obrigação, novação,remissão, renúncia ao crédito etc.

A mora do devedor é purgada, assim, mediante aentrega ao credor (ou depósito em juízo) da prestaçãodevida com todos os consectários, isto é, com os acréscimosprevistos na lei (perdas e danos, juros, correção monetária ehonorários de advogado) e, se houver, no contrato (multaconvencional). A seu turno, a do credor purga-se peladisposição em receber a prestação e sujeitar-seespontaneamente às consequências de sua conduta culposa(p. ex., ressarcindo ao devedor as despesas com aconservação da coisa ou fazendo o pagamento suplementarna hipótese de oscilação de preços).

4. INADIMPLEMENTO VOLUNTÁRIOCulpa, enquanto conceito de direito civil, compreende

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tanto as ações negligentes, imprudentes e imperitas(chamadas de culpa simples), como as intencionais(chamadas de dolo). Se o devedor simplesmente seesqueceu de pagar a obrigação, é culpado peloinadimplemento em razão de sua negligência. Ele deixou defazer os controles ou adotar providências que o ajudassem alembrar do vencimento da obrigação. Não tinha (nunca teve)a intenção de não pagar. Não lhe faltava dinheiro no banco enão tinha interesse nenhum em descumprir a obrigação. Afalta de controle ou de memória, porém, é suficiente paracaracterizar o inadimplemento culposo. Sofre, porconseguinte, esse devedor as mesmas consequências quesofreria caso tivesse deixado de cumprir a obrigação pordolo (isto é, intencionalmente): deve os encargos da mora.

Para o direito civil, na configuração do inadimplementoculposo, não há, em geral, diferenças entre a atuação dosujeito obrigado caracterizada pela culpa simples ou pelodolo. Se Germano não paga a conta do cartão de créditoporque deixou de atentar para o vencimento, escapando-lhea oportunidade de cumprir a obrigação no tempo devido, eHebe não paga a dela porque resolveu gastar todo odinheiro que tinha numa viagem, estão os dois na mesmasituação: devem à administradora do cartão os encargos dacláusula penal (juros, multa e correção monetária).

A distinção entre culpa e dolo é relevante, em matéria deinadimplemento das obrigações negociais, apenas quando

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referentes a contratos gratuitos. Diz a lei que, “nos contratosbenéficos, responde por simples culpa o contratante, a quemo contrato aproveite, e por dolo aquele a quem nãofavoreça” (CC, art. 392, primeira parte). Nos vínculoscontratuais gratuitos, portanto, o inadimplemento culposodo contratante a quem o contrato não beneficia só secaracteriza se tiver havido dolo de sua parte. Não ésuficiente, nestes casos, a culpa simples. Imagine que Irenee João celebraram contrato de doação, em virtude do qualela se obrigou a doar-lhe um quadro de pintor famoso em 3meses. Se, vencido o prazo, Irene se esquecer de cumprir ocontratado, não sofrerá as consequências doinadimplemento culposo, porque inexistiu dolo de sua parte.Mas, se o descumprimento da doação tiver sido intencional,ela responde por perdas e danos, honorários de advogado,correção monetária e, se houver, multa convencional emfavor de João (fica dispensada apenas do pagamento dejuros em razão de dispositivo específico acerca dessecontrato: art. 552, primeira parte, do CC). Excepcionada,assim, apenas a situação do contratante a quem o contratobenéfico não favorece, são sempre idênticas asconsequências do inadimplemento culposo de negóciojurídico, seja ele derivado de culpa simples (negligência,imprudência ou imperícia) ou dolo (intenção). Para asobrigações negociais, o Código Civil é expresso: “noscontratos onerosos, responde cada uma das partes por

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culpa, salvo as exceções previstas em lei” (art. 392, segundaparte).

O grau da culpa é, assim, irrelevante na identificação dasconsequências do inadimplemento de obrigações negociais.Tenha sido levíssima ou gravíssima a ação que levou àinadimplência, deverá o inadimplente suportar os mesmosconsectários. Na disciplina da responsabilidade civil,hipótese de obrigação não negocial, o grau da culpa podeinterferir na liquidação do valor da indenização (Cap. 25, item1.1.1).

O inadimplemento voluntáriodecorre de conduta culposa da parte(em geral, o devedor). Em princípio,ele se caracteriza e implica as mesmasconsequências tanto na hipótese deculpa simples (negligência, imperíciaou imprudência) como na de dolo(intenção). É irrelevante, por outro

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lado, o grau da culpa.As únicas exceções encontram-se nos

contratos gratuitos, em que ocontratante não favorecido respondeapenas pelo inadimplemento doloso, ena responsabilidade civil fundada naculpa, em que o juiz podeequitativamente reduzir o valor daindenização na hipótese de poucagravidade do ato culposo.

Na discussão sobre os fundamentos daresponsabilidade civil subjetiva (Cap. 21, subitem 3.1),pretendo demonstrar que a imputação de consequênciasjurídicas às condutas culposas assenta-se, em última análise,na noção de ser a vontade a fonte das obrigações. Onegligente, imperito ou imprudente que deu causa aoinadimplemento podia ter agido diferentemente. Se não o fez,manifestou de modo indireto a vontade de não cumprir a

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obrigação. A obrigação de indenizar a outra parte (pagando-lhe perdas e danos, juros, correção monetária, multaconvencional e honorários de advogado) é, assim,mediatamente derivada de um querer do sujeito a quem a leiimputa a responsabilidade.

4.1. Inadimplemento das obrigações pecuniáriasAs obrigações cujo pagamento consiste na entrega de

dinheiro ao credor têm, relativamente ao tema da inexecução,duas especificidades. A primeira, elas não podem serdescumpridas absolutamente; a segunda, nunca perdem autilidade em razão do inadimplemento relativo.

Descabe o inadimplemento absoluto das obrigaçõespecuniárias porque o objeto da prestação é bem insuscetívelde perda, no sentido jurídico da expressão. Quando se dizque alguém perdeu dinheiro, a afirmação só pode sercompreendida em termos econômicos: o bem deixou deintegrar seu patrimônio sem contrapartida (patrimonial ouextrapatrimonial). Para o direito, o significado de perda émais restrito e pressupõe a desconstituição do bem. Perda éa deterioração completa da prestação. Neste sentido jurídico,perde-se a casa em razão de incêndio, o automóvel por causado acidente, a marca registrada em virtude dedegenerescência etc. Não é possível, como se percebefacilmente, perder dinheiro desse jeito. A hipótese deinadimplemento absoluto das obrigações pecuniárias, por

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isso, não existe.Em segundo lugar, o inadimplemento relativo da

obrigação pecuniária não importa a inutilidade da prestaçãoem nenhuma circunstância. Como a utilidade da execução daobrigação é mensurada objetivamente, e dinheiro é sempredo interesse de qualquer pessoa, o credor não tem o direitode enjeitá-la a pretexto de não lhe ser interessante ocumprimento a destempo. Aliás, não haveria nem mesmoqualquer sentido lógico ou econômico em tal rejeição, acasoadmitida pelo direito, porque a indenização decorrente épaga em dinheiro.

O inadimplemento de obrigaçõespecuniárias é sempre relativo, e suaexecução intempestiva nunca é inútilao credor. Estas peculiaridadesjustificam o seu estudo em separado doinadimplemento das obrigações nãopecuniárias.

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Em vista dessas especificidades, convém estudarinicialmente o inadimplemento culposo das obrigaçõespecuniárias, para, em seguida, examinar o inadimplementodas não pecuniárias (item 4.2).

4.1.1. Mora do devedor nas obrigações pecuniárias

Dois são os requisitos para a configuração da mora dodevedor nas obrigações pecuniárias: o vencimento daobrigação (elemento temporal) e a culpa do devedor(elemento subjetivo).

Elemento temporal. Não há mora enquanto não forexigível a obrigação. Somente após o vencimento, odescumprimento culposo do devedor a caracteriza. E basta,no direito brasileiro, o simples vencimento para constituir-seo devedor em mora. Segundo a lei, “o inadimplemento daobrigação, positiva e líquida, no seu termo, constitui depleno direito em mora o devedor” (CC, art. 397, caput), e,“nas obrigações provenientes de ato ilícito, considera-se odevedor em mora, desde que o praticou” (art. 398). Querdizer, tanto nas obrigações negociais como nas nãonegociais, o vencimento é suficiente para a constituição dodevedor em mora. Desse modo, se não tiver sido o culpadopelo atraso no pagamento de obrigação líquida (vencida), aprova do caso fortuito cabe ao devedor.

Em outras palavras, no direito privado brasileiro a

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constituição da mora não depende, em regra, de qualquerato de interpelação do devedor. Vigora, entre nós, a regradies interpellat pro homine: a chegada do dia dovencimento equivale à interpelação do sujeito passivo(Rodrigues, 2002, 2:159). Considera-se que o devedor nãoprecisa ser avisado do vencimento da obrigação; o simplesfato do decurso do tempo até a data em que recai ésuficiente para que ele tenha ciência de que é chegado omomento de proceder-se ao pagamento. A mora é, emprincípio, ex re, e não ex persona: deriva tão somente doretardo no cumprimento da obrigação e não de reclamaçãodo credor.

No direito brasileiro vigora oprincípio dies interpellat pro homine,em virtude do qual a constituição emmora do devedor não depende dequalquer ato de cientificaçãopromovido pelo credor (interpelaçãojudicial ou extrajudicial). Quer dizer,

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o simples transcurso do tempo até odia em que recai o vencimento ésuficiente para que o devedor tenhaciência de que deve cumprir aobrigação. Não se exige, a não ser nasobrigações sem termo, interpelação,citação ou notificação do devedorpara constituí-lo em mora.

A regra geral de dispensa de interpelação nacaracterização da mora do devedor é excepcionada quando oinadimplemento diz respeito às obrigações negociais para asquais não se estabeleceu termo. Como não pactuaram aspartes o dia do vencimento, torna-se necessário um ato queo fixe. Este ato é a interpelação do devedor, judicial ouextrajudicial (CC, art. 397, parágrafo único). Cientificado osujeito passivo de que o credor está exigindo a obrigaçãosem termo, e permanecendo aquele inadimplente, constitui-se a mora. A lei, por certo, pode criar outras exceções, mas épreciso ter a clareza de que nem sempre a interpelação,

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quando por ela exigida, destina-se a constituir o devedor emmora; por vezes, objetiva unicamente provar a mora. Aodisciplinar o contrato de alienação fiduciária em garantia debens móveis, por exemplo, estabeleceu a lei que a mora domutuário fiduciante (devedor) dá-se pelo simplesvencimento do prazo de pagamento (Dec.-lei n. 911/69, art.2º, § 3º), mas o mutuante fiduciário (credor) que pleiteia abusca e apreensão da coisa alienada precisa prová-la (STJ,Súmula 72), o que se faz por meio de notificação extrajudicial(sobre a vigência de preceitos do decreto-lei de 1969, mesmoapós a entrada em vigor do Código Civil de 2003, verFigueira Jr., 2002:1198/1200).

Elemento subjetivo. A mora, como se disse, é expressãodesignativa do inadimplemento relativo culposo. Se o atrasono pagamento deve-se a caso fortuito e não à culpa dodevedor, não há mora (CC, art. 396). Significa dizer que odevedor não responderá pelos prejuízos ocasionados peloatraso ao credor. Poderá, eventualmente, vir a sofrer algumprejuízo, caso a prestação perca sua utilidade para o credor,mas não estará nunca obrigado a ressarcir os deste último.

São elementos característicos da mora tanto a culpasimples (negligência, imprudência ou imperícia) como o dolo.O devedor que atrasa o cumprimento da obrigação por meroesquecimento e aquele que age com a intenção de retardar opagamento submetem-se às mesmas consequências.

Uma vez caracterizada a mora do devedor de obrigação

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pecuniária, imputa-lhe a lei a responsabilidade por indenizaros prejuízos do credor (art. 395, caput). O inadimplente deveindenizar por completo o outro sujeito obrigado. Todos osprejuízos que a inadimplência do devedor ocasionar aocredor devem ser ressarcidos. Para alcançar tal abrangência,a indenização deve corresponder a um conjunto um tantocomplexo de variáveis. Certos credores, por exemplo,precisaram contratar os serviços de um profissional daadvocacia para instar seus devedores ao cumprimento daobrigação; outros não. Para os primeiros, a indenização devecompreender o ressarcimento dos honorários despendidoscom a contratação do profissional; para os que nãoprecisaram valer-se de serviços de advogado, é claro que aindenização nada deve cobrir a este título. A complexidadeda matéria obriga que a indenização devida peloinadimplente desdobre-se, na lei, em certas verbasespecíficas. Vou chamá-las consectários para facilitar aexposição do tema.

4.1.2. Os consectários

A indenização a que tem direito o credor, nainadimplência do devedor relativamente a obrigaçãop ecu n iária , pode ser representada por até cincoconsectários: perdas e danos, juros, correção monetária,multa convencional e honorários de advogado. Enquanto osdois primeiros são devidos em qualquer caso de

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inadimplência, os três últimos o são apenas em certascircunstâncias.

A indenização devida peloinadimplente desdobra-se em até cincoconsectários: perdas e danos, juros,correção monetária, honorários deadvogado e multa convencional.

Para a doutrina, na hipótese de inadimplementoabsoluto, os consectários exercem função compensatória,na medida em que, além de reporem os prejuízos, tambémsubstituem a prestação perdida. Já na de inadimplementorelativo, sua função restringe-se à reposição dos prejuízosderivados do atraso na execução da obrigação. São, então,chamados de moratórios. Falam os tecnólogos, então, emjuros compensatórios ou moratórios, perdas e danoscompensatórios ou moratórios, cláusula penalcompensatória ou moratória. Note, porém, que essaclassificação, embora tradicional na tecnologia civilista, alémde imprecisa, não tem relevância no contexto das obrigações

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pecuniárias, que, já foi visto, só podem deixar de sercumpridas relativamente. Os consectários derivados dainexecução voluntária de obrigação de dinheiro, portanto,têm sempre função moratória.

Por fim, a norma que obriga o inadimplente a pagar osconsectários é supletiva. As partes podem, por disposiçãocontratual, limitá-los em patamares inferiores ao da lei oumesmo dispensar seu pagamento. Omisso o contrato, porém,serão devidos segundo os critérios naquela estabelecidos.Também serão aplicáveis esses critérios se o contratosimplesmente mencionar o consectário, sem o quantificar.

4.1.2.1. Perdas e danos

No contexto das consequências do inadimplementovoluntário, a indenização é expressão ambígua. Significatanto o conjunto dos consectários (sentido largo) como umdeles apenas (sentido restrito). Quando se afirma que oinadimplente deve a indenização à outra parte, emprega-se aexpressão em seu sentido largo. Neste caso, refere-se à somados valores devidos a título de perdas e danos, juros,correção monetária, honorários de advogado e multaconvencional. Quando, por outro lado, se diz que aindenização por quebra de contrato submete-se aos arts. 402a 404, caput, do CC, usa-se a mesma expressão em sentidorestrito. Para contornar a ambiguidade, usarei “perdas edanos” (que é, aliás, a expressão da lei) como referência à

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indenização em sentido restrito.Pagar perdas e danos pode ser obrigação principal ou

acessória. Quer dizer, pode ser a própria prestação ou umdos efeitos do inadimplemento. Existem certas obrigaçõesem que o objeto é, desde a constituição do vínculo desujeição do devedor, a indenização do credor. É o caso dasderivadas de responsabilidade civil. O motorista que conduzseu carro em velocidade acima da permitida e causa acidentede trânsito fica obrigado a indenizar os danos decorrentesde sua imprudência. A indústria farmacêutica queinadvertidamente coloca no mercado placebo como seremédio fosse é responsável pela indenização dos danosprovocados pelo acidente de consumo. Assim, nasobrigações não negociais derivadas de ato ilícito (o exemplodo acidente de trânsito) ou de imputação deresponsabilidade objetiva pela lei (o da indústriafarmacêutica), a prestação devida pelo sujeito passivo aoativo é o pagamento das perdas e danos. Nestes casos, aindenização é a obrigação principal. Se não for cumpridatempestivamente pelo devedor, ele fica obrigado também aopagamento dos consectários, inclusive nova indenizaçãopelo atraso no pagamento da originária. A indenização comoprestação é examinada na terceira parte deste Curso.

Excetuando as hipóteses de responsabilidade civil,tanto nas obrigações pecuniárias negociais (mutuário quenão paga a prestação do mútuo no vencimento, p. ex.) como

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nas demais obrigações não negociais (alimentos,contribuição devida pelo condômino ao condomínio edilício,reembolso de capital na retirada de sócio etc.), as perdas edanos são um dos consectários devidos pelo sujeitoinadimplente. Representam, pois, obrigação acessóriaconstituída pelo inadimplemento.

Pagar indenização por perdas edanos pode ser a própria prestação aque se obriga o sujeito passivo ou umdos efeitos do inadimplemento(consectário). As obrigações derivadasde responsabilidade civil têm porobjeto o pagamento das perdas edanos sofridos pelo credor. Nasdemais obrigações pecuniárias, aindenização é devida pelo sujeitoinadimplente como um dos acréscimos

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à prestação.

A medida das perdas e danos está definida na lei: tudo oque o credor efetivamente perdeu e o que razoavelmentedeixou de lucrar (CC, art. 402). Esta fórmula, cujas raízes seencontram no direito romano (Alves, 1965:43), desmembra oconsectário em dano emergente (o que o credorefetivamente perdeu) e lucros cessantes (o que deixourazoavelmente de ganhar). Alguns doutrinadores criticam ouso, pela lei, da expressão “perdas e danos” na designaçãodesses dois desdobramentos, afirmando que seu sentidovolta-se mais para o primeiro somente (sobre o tema, verLotufo, 2003:458/459). Aqui, para fins didáticos, proponhoabstrair-se a crítica, apesar de seu inegável fundamento,tendo em vista que a clássica expressão da lei auxilia asuperação da ambiguidade do termo “indenização”.

O dano emergente corresponde à diminuição patrimonialque o sujeito ativo suporta em razão do inadimplementoculposo do passivo. O locador que não recebe, novencimento, o aluguel devido pelo locatário, para continuarhonrando suas próprias obrigações com terceiros, precisavaler-se do crédito aberto pelo cheque especial. Os juros,taxas e impostos que passa a dever ao banco são perdaspatrimoniais que ele sofre pelo inadimplemento do devedor.Se o aluguel tivesse sido pago tempestivamente, o locador

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não teria contraído a dívida no banco. Correspondem essesencargos bancários ao dano emergente provocado pela morado locatário.

Lucros cessantes, por sua vez, referem-se àrecomposição do custo de oportunidade. A prestação a quetem direito o credor, na maioria das vezes, corresponde abem gerador de novas oportunidades de ganho. O dinheiro aser entregue pelo mutuário ao banco, no vencimento domútuo, será emprestado a outras pessoas, possibilitando aomutuante outros negócios que geram novos ganhos. Se omutuário atrasa o pagamento de sua prestação, o bancoperde a oportunidade de girar o dinheiro que lhe deveria tersido devolvido.

O direito às perdas e danos, por maior que seja seuvalor, não pode redundar lucro indevido ao sujeito ativo.Trata-se apenas de neutralizar os efeitos do inadimplemento,via recomposição do patrimônio da parte inocente. O credornão pode enriquecer em função do inadimplemento dodevedor. Mesmo a parcela das perdas e danos denominada“lucros cessantes” não pode ser compreendida, nemmensurada, como vantagem patrimonial além do que adviriado tempestivo pagamento da obrigação. O devedor só éresponsável pelo pagamento de valor correspondente aoslucros que o credor teria caso não ocorresse oinadimplemento. Isto é, os lucros cessantes servem tambémexclusivamente à recomposição patrimonial, garantindo ao

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credor o recebimento do equivalente aos frutos e produtosque estariam agregados ao seu patrimônio na hipótese deadimplemento tempestivo da obrigação.

As perdas e danos abrangem tudo oque o credor efetivamente perdeu(danos emergentes) e o que elerazoavelmente deixou de ganhar(lucros cessantes). Seu pagamento nãopode ocasionar, contudo,enriquecimento indevido do credor àcusta do devedor inadimplente. Oslucros cessantes apenas repõem nopatrimônio do credor os mesmosganhos que teria na hipótese deadimplemento da obrigação.

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Nas perdas e danos (obrigação acessória nascida doinadimplemento), normalmente não é devido nenhumressarcimento a título de dano moral. Como será examinadomelhor à frente (Cap. 25, item 3), a indenização devida emrazão de responsabilidade civil pode compreender também opagamento relacionado à dor extremada que o agente impôsà vítima. O simples descumprimento de obrigação negocial(ou mesmo de não negocial não relacionada àresponsabilidade civil, como é o caso, p. ex., da dereembolso do acionista dissidente) não costuma causar dorao sujeito ativo passível de indenização moral. De fato, se,no vencimento, o locador não recebe o aluguel, ocondomínio edilício não é pago pelo condômino ou não severifica o pagamento dos alimentos, isso não costumacausar nos prejudicados uma dor de intensidade semelhanteà da perda de um filho num acidente de trânsito, dadiscriminação racial ou da desonra. O simplesinadimplemento dessas obrigações não autoriza, em geral,nada além da recomposição patrimonial, isto é, oressarcimento das perdas efetivas e dos razoáveis ganhosnão realizados. Diz a lei, ademais, que, mesmo na inexecuçãoresultante “de dolo do devedor, as perdas e danos sóincluem os prejuízos efetivos e os lucros cessantes porefeito dela direto e imediato” (CC, art. 403). Desse modo,apenas em casos especialíssimos, com peculiaridades

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extraordinárias, deverá o juiz condenar o inadimplente nopagamento de perdas e danos morais a título deconsectário.

As partes de uma obrigação contratual normalmentepactuam o pagamento de indenização, em caso deinadimplemento. Se o fazem sem qualquer outrodetalhamento, concordam que ela, caso devida, serámensurada nos termos do art. 402 do CC. Podem, contudo,os contratantes, mediante estipulação contratual, limitar ovalor da indenização ou mesmo dispensar o inadimplentedesse consectário. Trata-se de cláusula plenamente válida,porque referente a direito disponível (exceto nas relações deconsumo em que é consumidor a pessoa física — CDC, art.51, I). O pacto exoneratório ou limitador da responsabilidadepor perdas e danos em eventual inadimplemento é raro nosnegócios em geral.

4.1.2.2. Juros

Como afirma Pontes de Miranda, os juros correspondemao que “o credor pode exigir pelo fato de ter prestado ou denão ter recebido o que se lhe devia prestar” (1965, 24:45). Noprimeiro caso, seu pagamento não está associado aoinadimplemento de obrigação. Aqui, correspondem àobrigação do mutuário de remunerar o dinheiro emprestadopelo mutuante ou à do devedor que parcela o pagamento desua dívida com a concordância do credor, remunerando-o

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pela facilidade. Chamam-se, então, juros remuneratórios etêm sempre fundamento contratual. Deles não se cuida, porenquanto, a não ser para precisar o regime jurídico dos jurosdevidos como consectário. No segundo caso, isto é, naqueleem que são exigíveis pelo credor que não recebeu o quedeveriam ter-lhe prestado, os juros derivam doinadimplemento voluntário. Trata-se, agora, da obrigação depagar juros imputada pela lei ao inadimplente. Integra aindenização a que tem direito o credor, por ressarci-lo emfunção do uso, pelo devedor, além do tempo devido, docapital correspondente à prestação inadimplida. Têmfundamento direto na lei e serão chamados, neste Curso, dejuros devidos como consectário.

O valor dos juros devidos como consectário éestabelecido mediante alíquota incidente sobre o total delese referido a certa periodicidade. Os juros são fixados, porexemplo, em 1% ao mês, 12% ao ano, 0,033% ao dia e assimpor diante. Não havendo redução expressa da base decálculo, considera-se incidente a alíquota sobre a totalidadedo devido. Inicia a fluência dos juros na data doinadimplemento ou da constituição em mora do devedor.Nas obrigações sujeitas a termo, são devidos desde ovencimento, por força do preceito dies interpellat prohomine (CC, art. 397, caput); nas derivadas de ato ilícito,desde sua prática (art. 398); e, nas obrigações sem termo,desde a citação inicial em juízo (CC, art. 405) ou interpelação

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extrajudicial (CC, art. 397, parágrafo único) (Lotufo, 2003:465;Venosa, 2001:160).

Os juros remuneratórios, como dito acima, são semprecontratuais, mas os devidos a título de consectário nãodecorrem necessariamente de acordo de vontade das partes.Os juros devidos a título de consectário, assim, podem sercontratuais ou legais, conforme o instrumento em que seencontram os critérios de sua mensuração: a definição daalíquota, periodicidade e base de cálculo. Quando aspróprias partes, nas obrigações negociais, fixam por acordode vontades tais critérios, os juros devidos a título deconsectário são contratuais. Não há limites legais para afixação dos juros devidos como consectário, já que o art. 591do CC diz respeito apenas aos juros remuneratórios. Porexemplo, pode-se pactuar licitamente que o distribuidor(comprador) irá arcar com juros de 5% ao mês, caso atrase opagamento do preço das mercadorias do distribuído(vendedor).

Registro que, embora não haja nenhum limite, no direitopositivo, para a estipulação dos juros como consectários,consolidou-se entendimento jurisprudencial considerandoque, nos contratos bancários, se não houver legislaçãoespecífica, eles só podem ser contratados até o limite de 1%ao mês (STJ, Súm. 379).

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Devem-se distinguir os jurosremuneratórios dos devidos a título deconsectário. Remuneratórios são osjuros contratuais que o mutuário ou odevedor de valor parcelado devempagar ao mutuante ou credor.Representam parte da obrigaçãoprincipal objeto de contrato.

Já os juros devidos a título deconsectário são os que o inadimplentedeve à parte inocente da relaçãoobrigacional como um dosdesdobramentos da indenização.

Os juros devidos como consectáriopodem ser contratuais ou legais. Oscontratuais são os estabelecidos pelas

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partes por acordo de vontade e nãoestão sujeitos a nenhum limiteconstitucional ou infraconstitucional.Os juros legais calculam-se pelasmesmas taxas devidas na hipótese deatraso no pagamento de tributosfederais.

Juros legais, ao seu turno, são os fixados a partir decritério dado exclusivamente pela lei. A fórmula geralencontra-se no art. 406 do CC: “quando os juros moratóriosnão forem convencionados, ou o forem sem taxa estipulada,ou quando provierem de determinação da lei, serão fixadossegundo a taxa que estiver em vigor para a mora dopagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional”.Desse modo, se as partes não convencionaram juros para ahipótese de inadimplemento, ou os convencionaram, masnão definiram critérios para a sua mensuração, eles serãoiguais aos devidos em razão da mora no pagamento deimpostos federais. Também será esta a medida dos jurosdevidos a título de consectário no inadimplemento de

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obrigações pecuniárias não negociais.Atualmente, os juros devidos à Fazenda Nacional em

virtude de atraso no pagamento de impostos baseiam-se nataxa média mensal de captação do Tesouro Nacional relativaà dívida mobiliária federal interna, que corresponde àadotada como referência pelo Sistema Especial deLiquidação e de Custódia (SELIC) para os títulos federais, ousimplesmente taxa SELIC. A taxa SELIC é fixada pela ReceitaFederal no primeiro dia útil do mês seguinte ao de referência.Desse modo, a taxa de setembro é fixada no início deoutubro; a de outubro, no início de novembro e assim pordiante. No mês em que se realiza o pagamento, portanto, nãose conhece a taxa correspondente, que ainda será fixada.Prevê a lei, então, que a taxa SELIC é empregada no cálculodos juros devidos até o mês anterior à liquidação daobrigação tributária, e que se considera sempre 1% (um porcento) a alíquota relativa ao mês do pagamento (Lei n.8.981/95, art. 84, I e §§ 1º e 2º). Estes critérios estabelecidospela lei para os juros de mora devidos à Fazenda Nacional nopagamento tardio de impostos são também os aplicáveispara os juros legais no âmbito civil.

Os juros legais incidentes nasobrigações de direito privado são os

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da taxa SELIC (empregada pelaFazenda Nacional na cobrança dostributos federais em atraso), desde omês seguinte ao do vencimento até oanterior ao da execução tardia,acrescidos de 1% referente a esteúltimo mês.

Assim, se o locatário deixa de pagar ao locador oaluguel no vencimento, o comprador não pagatempestivamente ao vendedor o preço da coisa, oresponsável pelo acidente de trânsito não indeniza depronto os danos que causou, a sociedade não reembolsa odissidente no prazo, se o devedor, enfim, não cumpre aobrigação pecuniária no tempo devido, e as partes nãofixaram por contrato outro critério de mensuração, deve oinadimplente pagar, como um dos consectários, juros sobreo valor em atraso, calculados à taxa SELIC incidente entre omês seguinte ao do vencimento e o anterior ao dopagamento, mais 1% relativo a este último. Não incidemjuros a título de consectário, portanto, se a mora é purgada

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no próprio mês de vencimento da obrigação, a menos que aspartes tenham contratado sua incidência nesta específicahipótese.

Outra importante decorrência do art. 406 do CC é aimpossibilidade de capitalização dos juros legais (isto é, dosjuros devidos como consectários não precificados emcontrato). Enquanto não houver preceito legal que autorize aincidência de juros sobre juros (isto é, a capitalização) namora dos impostos federais, os juros legais nas relações dedireito privado também não poderão ser capitalizados. Emtermos técnicos, a lei veda o anatocismo dos juros legaisdevidos como consectários, já que o art. 591 do CC, quepermite a capitalização anual, aplica-se apenas aos jurosremuneratórios. Evidentemente, se o contrato estabelece queos juros devidos como consectários serão capitalizados,nada há na lei que invalide essa disposição negocial.

4.1.2.3. Correção monetária

Correção monetária é o consectário que visa neutralizara perda do poder aquisitivo da moeda. Esta perda,denominada tecnicamente inflação, é fenômeno que, emmaior ou menor grau, encontra-se em todas as economiascapitalistas. Por mais estável que seja a moeda, com o passardo tempo, compram-se menos coisas com igual quantidadede dinheiro. A correção monetária visa à recuperação dovalor de compra da moeda em que se expressa a obrigação,

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buscando a neutralização dos efeitos da inflação projetadosentre o inadimplemento e a final execução.

Se a lei não obrigasse o devedor a pagar a correçãomonetária do valor devido, beneficiá-lo-ia por uma forma deenriquecimento indevido. Imagine uma inflação de 10% aoano. Se os $ 100 devidos em janeiro são suficientes, nessaépoca, para a aquisição de 10 produtos ao preço de $ 10cada, em dezembro compram apenas 9 ao preço de $ 11. Osefeitos da perda do poder aquisitivo da moeda devem sersuportados pelo inadimplente, e não pela parte inocente. Daía lei imputar ao culpado pelo inadimplemento a obrigaçãoacessória de pagar a correção monetária (CC, arts. 389, 395 e404).

Para que a indenização da parteinocente seja completa, o inadimplentedeve pagar a correção monetária dosvalores devidos. Este consectário visaneutralizar os efeitos da perda dopoder aquisitivo da moeda, verificada

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entre o vencimento e a execuçãotardia.

O cálculo da correção monetária é feito, em geral, emfunção de um índice que periodicamente mede, por critériosvariados, a inflação. Aplica-se o índice sobre o valor a sercorrigido e obtém-se o atualizado, num simples cálculoaritmético.

Para servir de parâmetro à correção monetária, o índicedeve resultar de medições metodológicas da variação dospreços em geral ou num determinado segmento da economia.Deve também ser de conhecimento público ou, pelo menos,das partes diretamente envolvidas. Há diversos índices quese prestam a tal finalidade. Alguns dos mais conhecidos são:a) índice geral de preços (IGP), calculado pela FundaçãoGetúlio Vargas (FGV) em três versões, que variamunicamente em função da data de divulgação: IGP-M, IGP-10e IGP-DI; b) índice nacional de preços ao consumidor (INPC)e o índice nacional de preços ao consumidor amplo (INPCA),calculados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística(IBGE), órgão do Ministério do Planejamento; c) índice depreços ao consumidor (IPC), da Fundação Instituto dePesquisas Econômicas (FIPE); d) custos unitários básicosde construção (CUB), levantados pelos Sindicatos da

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Indústria da Construção Civil (SINDUSCON) para asrespectivas circunscrições, observada a norma NBR 12.721da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT).

Como os índices são calculados por órgãos diversos,públicos ou privados, a partir de metodologias próprias, éimportante informar-se sobre o perfil deles, para encontrar-seo mais adequado à indenização do sujeito ativo. Se aobrigação inadimplida diz respeito a contrato entreempresários industriais, o IGP é o índice mais apropriado, namedida em que 60% de sua composição corresponde àoscilação dos preços no atacado (índice de preços noatacado — IPA). Se forem empresários que operam no ramode construção civil, o índice mais apropriado é o CUB dolocal do pagamento, já que na composição do IGP apenas10% corresponde às oscilações neste segmento (índicenacional de custo da construção — INCC). Se, por fim, aobrigação diz respeito a negócio entre não profissionais(consumidores), os índices mais apropriados são os INPC,INPCA e IPC, que medem as variações dos preços nomercado de consumo.

Nas obrigações pecuniárias negociais, é usual as partesfixarem, na cláusula sobre inadimplemento, o índice a serempregado na correção monetária do valor inadimplido. Oscontratantes têm, em princípio, ampla liberdade para escolhero que melhor atender aos seus interesses. Podem, inclusive,fixar critério de correção monetária diverso de índice,

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valendo-se para a atualização da moeda, por exemplo, dasoscilações de preços de produtos comercializados em bolsasde mercadorias (commodities). Num negócio de compra evenda de ações de uma usina de açúcar, é racional e jurídicoas partes estabelecerem como critério de correção monetáriado valor a ser pago pela participação societária a variação dopreço da “cana padrão” numa praça especificada.

Há, destaque-se, índices cuja utilização na atualizaçãoda moeda é proibida. São índices ilegais para fins de cálculoda correção monetária, que os contratantes estão,evidentemente, impedidos de eleger. Trata-se do saláriomínimo, do ouro e da variação cambial. O primeiro, que serefere ao valor capaz de atender às necessidades vitaisbásicas dos trabalhadores (CF, art. 7º, IV), nunca pode serempregado nas relações privadas como parâmetro deatualização da moeda (Lei n. 6.205/75; Lei n. 8.245/91, art. 17).A oscilação do preço do ouro como parâmetro de correçãomonetária é vedada, também, em qualquer hipótese (CC, art.318; Lei n. 10.192/01, art. 1º, parágrafo único, I). A variaçãocambial, por sua vez, é proibida em termos gerais (CC, art.318), e só pode ser usada na correção monetária noscontratos de arrendamento mercantil lastreados em recursosobtidos pela arrendadora no exterior (Lei n. 8.880/94, art. 6º).Estas proibições atendem exclusivamente às necessidadesda política monetária do governo e, por isso, variam detempos em tempos.

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A correção monetária devida emrazão do inadimplemento é, em geral,calculada em função de um índice deinflação escolhido pelas partes nacláusula penal. Os mais comuns são oIGP-M, da FGV, IPC da FIPE, INPCdo IBGE e o CUB do SINDUSCON.Podem as partes, porém, adotar comoparâmetro de correção monetária avariação de preços de mercadoriascotadas em bolsas ou numa praçaespecificada. Estão proibidas de usarcomo referencial de atualização damoeda apenas o salário mínimo, oouro e a variação cambial.

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A eventual escolha, pelos contratantes, de índice ilegalpara correção monetária da obrigação não importa adispensa do inadimplente do pagamento deste consectário.Afasta-se o índice proibido, é certo, mas permanece íntegra aobrigação acessória. O inadimplente, então, pagará acorreção monetária calculada em função de índice permitido.

Quando as partes contratam o índice a ser utilizado nacorreção monetária em caso de inadimplemento, prevalece,por evidente, o contrato, ainda que se pudesse considerarcriticável a opção feita, em vista do perfil do critérioescolhido. A pesquisa sobre as metodologias eabrangências dos índices, com o objetivo de nortear adefinição do mais apropriado à indenização do credor, cabeapenas quando nenhum índice tiver sido objeto de contratopelas partes ou se o escolhido for ilegal.

É irrelevante o tempo transcorrido entre oinadimplemento e o pagamento do consectário. Ainda que oatraso seja inferior a um ano, será devida a correçãomonetária. A norma legal que limita a periodicidade dacorreção monetária à anual é aplicável apenas aospagamentos tempestivos das obrigações (Lei n. 10.192/01,art. 2º, § 1º). A correção monetária devida como consectário,em outros termos, não é limitada por nenhuma regra deperiodização.

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Por fim, observo que a correção monetária não é exigívelcomo consectário independente dos juros, quando estes sãoos legais calculados pela taxa SELIC. Como a SELIC embutepercentual correspondente à perda do poder aquisitivo damoeda, a cobrança dos juros legais e da correção monetáriarepresentaria anatocismo. Tal cumulação só é possível seexpressamente prevista pelo acordo de vontade firmadoentre credor e devedor.

4.1.2.4. Cláusula penal nas obrigações pecuniárias

Cláusula penal é o acordo de vontades em que ossujeitos da obrigação contratam as consequências doinadimplemento. Não existe, é claro, nas obrigações nãonegociais, a não ser que a respeito delas acabem pondo-sede acordo as partes. Normalmente, a cláusula penal constade todos os contratos escritos. Nela, os contratantesco s t u mam reiterar a imputação ao inadimplente (jápreceituada em lei) do pagamento de indenização, juros,correção monetária e honorários de advogado. Além disso, éusual fixarem na cláusula penal a alíquota, periodicidade ebase de cálculo dos juros, bem como o índice de atualizaçãoda moeda. Já foram delineadas as normas pertinentes a esteconteúdo da cláusula penal (subitens 4.1.2.2 e 4.1.2.3). Cabe,agora, examinar um outro consectário que ela costumacontemplar: a multa convencional.

A função da multa convencional nas obrigações

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pecuniárias é reforçar o cumprimento da obrigação. Se aspartes de um contrato empresarial acordam que o devedorpagará ao credor uma multa de 10% sobre o valor daobrigação caso não a cumpra no vencimento, considera-seque elas pretenderam estabelecer uma consequência demaior gravidade que a disposta em termos gerais na lei, paradesestimular ainda mais o descumprimento do contrato. Amulta convencional torna o inadimplemento altamentegravoso para o devedor e reforça, por esta via, o pagamentotempestivo da obrigação. Esta função do consectário nãotem, contudo, grande relevância jurídica. Se a multacontratada reforça eficazmente ou não o cumprimento daobrigação pecuniária no seu tempo e lugar, é irrelevante parao direito. Ou a obrigação é paga no vencimento, e a multaconvencional não será devida, ou não o é, e aplicar-se-á apena contratada, independentemente de ter elarepresentado, para o inadimplente, um desestímulo à mora.

Nas obrigações pecuniárias, destaco, a multaconvencional não tem a função de prefixar o valor dasperdas e danos para a hipótese de inadimplemento, comoocorre no caso das não pecuniárias (subitem 4.2.4). Isso emrazão de expressa previsão da lei no sentido de que aindenização, no inadimplemento das “obrigações depagamento em dinheiro”, é devida “sem prejuízo da penaconvencional” (CC, art. 404).

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As partes de um contrato podemestabelecer uma pena para a hipótesede inadimplemento. A pena, em geral, éuma multa, e a cláusula que acontempla é chamada “penal”. A leilimita o valor da multa convencional edetermina que ela seja reduzida porequidade em caso de cumprimentoparcial da obrigação ou se formanifestamente excessiva.

A lei limita o valor da cláusula penal, estabelecendo queela não pode ultrapassar o da obrigação principal (CC, art.412). Se o devedor se obrigou a pagar $ 100, o contrato podeestabelecer como pena convencional para o inadimplementoaté $ 100. Antes da entrada em vigor do Código Reale, olimite da cláusula penal era de 10% do valor da dívida, emrazão de preceito (hoje, revogado) constante da chamada lei

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da usura, de 1933. Desde a vigência do atual Código, a penapelo inadimplemento pode ser contratada até empatar com ovalor da obrigação principal.

Essa é a regra geral da limitação da cláusula penal. Emalguns casos específicos, ressalto, a lei estabelece limiteinferior. Assim, o condômino de condomínio edilício que nãopaga sua contribuição fica sujeito à multa de 2% sobre odébito (CC, art. 1.335, § 1º) e o consumidor, se inadimplirfinanciamento, paga multa de 2% do valor da prestação(CDC, art. 52, § 1º). São limites menores que prevalecemsobre o geral, porque se encontram albergados em normaespecial.

Note-se que, mesmo atendido o limite do art. 412 do CC,a pena pode ter seu valor reduzido em juízo por equidade,quando seu montante “for manifestamente excessivo, tendo-se em vista a natureza e a finalidade do negócio” (CC, art.413, in fine). Desse modo, se, num contrato de locaçãoempresarial feito pelo prazo de 24 meses, as partespactuaram como cláusula penal o equivalente a 12 vezes ovalor do aluguel mensal, o limite geral da lei é atendido. Acláusula penal corresponde à metade do valor da obrigaçãoprincipal. Mas, se for locatário um microempresário ouempresário de pequeno porte, na hipótese de ser dele oinadimplemento, deve o juiz reduzir equitativamente o valorda pena.

Também deve ser reduzida a cláusula penal se a

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obrigação principal tiver sido cumprida em parte (CC, art.413). Adotará o juiz, então, um critério de proporcionalidade.Em consequência, se o contrato de locação celebrado por 30meses prevê como multa convencional o pagamento dovalor de 3 aluguéis, o locatário que o pretende rescindir no20º mês de vigência fica obrigado apenas ao pagamento, atítulo de multa, do valor de um aluguel. Como ele cumpriudois terços do contrato, não pode ser penalizado como setivesse descumprido todas suas obrigações.

4.1.2.5. Honorários de advogado

Sempre que o credor tiver contratado advogado para versatisfeito o seu direito, a indenização devida peloinadimplente não é completa se não abranger também oressarcimento dos honorários daquele profissional. Noteque este consectário é imposto ao devedor ainda que nãotenha ocorrido trabalho judicial do advogado do credor, istoé, mesmo que as providências adotadas pelo profissionaltenham sido todas de caráter extrajudicial (notificação,reunião, preparação de minutas de instrumentos de quitaçãoetc.). A lei civil, ao preceituar que o inadimplente deve oshonorários advocatícios, não distingue entre a atuação doadvogado em juízo ou fora dele (CC, arts. 389 e 395), e, ondea lei não distingue, o intérprete não está autorizado adistinguir.

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O devedor inadimplente deve pagaros honorários de advogado do credor,mesmo que a tardia execução daobrigação não tenha dependido demedida judicial. Como a indenizaçãodevida pelo inadimplente deve sercompleta, sempre que o credor tivercontratado advogado para versatisfeito o seu direito, ao devedor éimposta a obrigação de ressarcir oshonorários daquele profissional.

Se a execução é judicial, o juiz fixa o montante a ser pagopelo devedor a título de honorários do advogado do credor.São chamados de honorários de sucumbência, porquepressupõem a condenação do devedor em juízo. O art. 20 doCPC estabelece como parâmetros gerais para a quantificação

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desses honorários percentuais entre 10% e 20% do valor dacondenação (Barbi, 1975:111/113).

Já, se o adimplemento tardio da obrigação ocorreuindependentemente de qualquer providência judicial, não hánorma legal fixando os percentuais de quantificação doshonorários de advogado. Sendo contratual a obrigação,deve-se consultar a cláusula penal acertada entre as partes.Se nela houver a indicação do critério para o cálculo doshonorários de advogado, observa-se o contratado. Caso nãoexista previsão contratual sobre a matéria ou não sendocontratual a obrigação, os honorários de advogado devemser pagos, segundo penso, em percentuais entre 5% e 10%do valor da obrigação em mora, isto é, metade dos fixadospela lei para os honorários de sucumbência em juízo. Afinal,o advogado do credor que obtém a satisfação do direito deseu cliente sem precisar socorrer-se do Poder Judiciáriocertamente trabalha menos que o profissional seu colegaque precisa promover a execução judicial para chegar aomesmo resultado.

Pondero, por fim, que, se o devedor inadimplente, emnegociação com o credor, recusa-se a pagar só esteconsectário, é provável que a composição amigável sejaalcançada. O credor tenderá, neste caso, a liberar o devedordo ressarcimento dos honorários de advogado, arcandodiretamente com a remuneração do profissional que haviacontratado. De qualquer forma, resistindo o devedor a pagar

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os honorários de advogado nos entendimentos mantidoscom o credor, este só os poderá exigir em juízo. Nãochegando, portanto, as partes a acordo sobre aquantificação deste consectário, o conflito de interessesserá levado ao Judiciário, em que prevalecerão os critériosdo art. 20 do CPC.

4.1.3. Conclusão

Nas obrigações pecuniárias, o devedor que não cumpreno vencimento a obrigação deve pagar ao credor, a título decompleto ressarcimento pelos prejuízos que oinadimplemento relativo causou, os seguintes consectários:a) em qualquer caso: a.1) a indenização pelos comprovadosdanos emergentes e lucros cessantes, calculados segundo afórmula geral de apuração de tudo o que efetivamente ocredor perdeu e mais o que razoavelmente deixou de ganhar;a.2) os juros fixados na cláusula penal ou, caso nãoprevistos ou não quantificados, os calculados pela taxaSELIC do mês seguinte ao do vencimento até o mês anteriorao do pagamento, acrescidos de 1% (correspondente ao mêsdo pagamento); b) a correção monetária dos valoresdevidos, apurada pelo índice ou parâmetro constante dacláusula penal ou, em caso de omissão do contrato, poríndice cujo perfil seja o mais adequado à relaçãoobrigacional (exceto se os juros não previstos em contratoforam pagos pela taxa SELIC, que embute a inflação); c) a

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multa convencional, se prevista em contrato ou convenção aque se vincula o devedor; e d) os honorários de advogado,caso o credor tenha contratado os serviços desteprofissional para obter a satisfação de seu crédito judicial ouextrajudicialmente.

4.2. Obrigações não pecuniáriasObrigações não contratuais e não pecuniárias — isto é,

derivadas de fato jurídico, ato ilícito ou ato unilateral devontade, e cujo cumprimento implica prestação diversa daentrega de dinheiro ao credor — correspondem a hipótesesraras e excepcionais. É o caso, por exemplo, da obrigação dealimentar cumprida por meio de hospedagem e sustento, nostermos fixados pelo juiz (CC, art. 1.701 e parágrafo único).Nelas, o devedor, em vez de pagar os alimentos em dinheiroao credor, recebe-o em sua casa e divide com ele a mesa derefeições. O alimentante, aqui, cumpre sua obrigação nãonegocial fazendo algo pelo alimentando, e não dando-lhedinheiro.

Assim, as obrigações não pecuniárias são, em geral,contratuais, e as implicações do inadimplemento costumamser objeto de contrato entre as partes. As limitações econdições legais já examinadas relativamente às obrigaçõespecuniárias são pertinentes também às não pecuniárias. Há,porém, algumas normas que somente a estas últimas seaplicam.

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O inadimplente de obrigação não pecuniária é, a exemplodo que não paga no vencimento dívida de dinheiro, tambémobrigado a indenizar a outra parte pelos danos que ainexecução culposa ocasionou (CC, arts. 389 e 395). Certashipóteses de inadimplemento culposo de obrigação nãopecuniária, a propósito, são tratadas em dispositivosespecíficos, como a da perda da coisa certa (arts. 234 e 239),sua deterioração (arts. 236 e 240), impossibilidade daprestação na obrigação de fazer (art. 248) oudescumprimento da de não fazer (art. 251). Tais normas nãoafastam a incidência das regras da disciplina geral doinadimplemento; ao contrário, são completadas por estas,que definem a extensão da indenização: perdas e danos,juros, correção monetária, honorários de advogado da outraparte e multa convencional.

As obrigações não pecuniárias, relembrando, podem serdescumpridas absoluta ou relativamente. No primeiro caso, ocumprimento da obrigação tal como havia sido determinadona constituição é irremediavelmente comprometido, sejaporque a prestação se perdeu (inadimplemento absolutototal), seja porque se deteriorou (absoluto parcial). Já nocaso de inadimplemento relativo, acontece o atraso nocumprimento da obrigação, que pode, inclusive, inutilizá-la.A prestação, se continuar viável e útil, será ainda devidapelo sujeito passivo e suscetível de cobrança pelo ativo.

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As obrigações não pecuniáriaspodem ser descumpridas em termosabsolutos (perda total ou deterioraçãoda prestação) ou relativos (atraso naentrega da prestação). Em qualquerdesses casos, o devedor é obrigado aindenizar o credor peloinadimplemento a que deu causa.Varia, contudo, a função daindenização devida, que pode sercompensatória (quando substitui aobrigação inadimplida) ou moratória(quando a ela se acresce comoobrigação acessória).

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Os consectários devidos pela parte inadimplente, nahipótese de perda total, substituem a prestação. Sãoconhecidos, por isso, como compensatórios. Posto que aexecução da obrigação nos termos em que se constituíratornou-se impossível, o credor é compensado pelaindenização. Não há, material ou juridicamente falando, outraalternativa. Por sua vez, os consectários devidos nahipótese de perda parcial podem ser compensatórios ou não,em função da escolha do credor. Quer dizer, a parte inocentepode optar entre a indenização compensatória ou a entregada prestação deteriorada mais a indenização que cubra osdanos relacionados à deterioração. Optando por estasegunda via, os consectários serão chamados demoratórios, porque não substituem a prestação. Por fim, osconsectários devidos no inadimplemento relativo deobrigação não pecuniária podem tanto ter funçãocompensatória como moratória, dependendo da inutilidadesuperveniente ou não da prestação. Se o atraso nocumprimento da obrigação tornou a prestação inútil, aindenização a substituirá, revestindo-se de funçãocompensatória; se continua útil a prestação, a despeito damora do devedor, a indenização será moratória.

A lei não opera convenientemente com os conceitos deconsectário compensatório e moratório. Ao distinguir osefeitos da cláusula penal, por exemplo, define-a comoalternativa a benefício do credor na hipótese de “total

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inadimplemento da obrigação” (CC, art. 410), o que não temsentido, já que, uma vez perdido por completo o objeto, aosujeito ativo só restará a possibilidade de cobrar aindenização do inadimplente no lugar da prestação. Adoutrina também é imprecisa ao operar com as noções deconsectários compensatórios ou moratórios, porquerelaciona, de forma simplista, os primeiros aoinadimplemento absoluto e estes últimos, ao relativo. Aimprecisão decorre do fato de os consectários também terema natureza moratória no inadimplemento absoluto parcial, seo credor optar por receber a coisa deteriorada.

No plano econômico, diferem-se os consectáriosmoratórios dos compensatórios apenas no que diz respeitoàs perdas e danos. Como os compensatórios substituem aprestação devida e os moratórios correspondem àindenização suplementar, aqueles expressam-se em quantiasuperior a estes. No inadimplemento absoluto parcial ou norelativo, sempre que a execução se der pela entrega daprestação deteriorada ou a destempo, as perdas e danosterão função moratória.

4.2.1. Inadimplemento absoluto das obrigações nãopecuniárias

Na inexecução absoluta total, a entrega da prestaçãofica irremediavelmente impossibilitada. A coisa certa perde-se por completo (destruição do automóvel locado em

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acidente causado por culpa do locatário), o devedor deixa defazer o que se havia comprometido (o cantor falta à suaapresentação pública) ou age do modo que se obrigara aomitir (o distribuído desrespeita a cláusula de exclusividadee vende diretamente seus produtos na área de atuação dodistribuidor). Já na inexecução absoluta parcial, a prestaçãose deteriora, mas não se impossibilita, como no caso deredução de valor da coisa certa (a peça de antiguidade émachucada no transporte negligente do vendedor até o localda entrega ao comprador).

O inadimplemento absoluto total de obrigação nãopecuniária tem as mesmas consequências econômicas doinadimplemento de obrigação pecuniária, porque deledecorre a imediata constituição de nova obrigação, que,como visto, substitui a inadimplida. Se o vendedor não temcomo entregar a coisa vendida porque esta se perdeu porsua culpa, ele passa a dever ao comprador a indenizaçãocompensatória. A obrigação, que não era pecuniária, é,então, substituída por uma dívida de dinheiro. Se ele nãopaga a indenização ao comprador no vencimento da primeiraobrigação, ele incorre em mora. Submete-se, assim, àsnormas já examinadas do inadimplemento de obrigaçãopecuniária, que é sempre relativo (item 4.1).

Já na hipótese de inadimplemento absoluto parcial, ocredor pode optar por receber a prestação deteriorada mais aindenização moratória ou apenas a indenização

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compensatória. O devedor fica vinculado à alternativalivremente escolhida pelo credor. Diz a lei que, sendoculpado o devedor (pela deterioração da coisa certa),“poderá o credor exigir o equivalente, ou aceitar a coisa noestado em que se acha, com direito a reclamar, em um ou emoutro caso, indenização das perdas e danos” (CC, art. 236).Igual consequência é estipulada para a hipótese dedeterioração da coisa nas obrigações de restituir (CC, arts.239 e 240).

No inadimplemento absoluto total ouparcial das obrigações nãopecuniárias a prestação perdida oudeteriorada é substituída pelaindenização; mas, quando parcial oinadimplemento, o credor pode optarpor receber a prestação deterioradamais indenização.

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Em qualquer caso de inadimplemento absoluto, aindenização (compensatória ou moratória) compreenderá osmesmos consectários já examinados quanto à inexecuçãodas obrigações pecuniárias, isto é, perdas e danos, juros,correção monetária, honorários de advogado e multaconvencional. Há, contudo, certas particularidadesrelativamente às obrigações não pecuniárias no que dizrespeito à cláusula penal (subitem 4.2.3) e juros (subitem4.2.4).

4.2.2. A mora nas obrigações não pecuniárias

A mora no cumprimento das obrigações não pecuniáriascaracteriza-se pela convergência de quatro elementos.Assim, além do atraso no cumprimento da obrigação(elemento temporal) e da culpa de pelo menos um dossujeitos obrigados (elemento subjetivo), que já seexaminaram anteriormente (item 4.1.1), dois outros sãoindispensáveis à configuração do inadimplemento relativodas obrigações não pecuniárias: natureza positiva daobrigação (elemento objetivo) e viabilidade do cumprimentotardio (elemento material).

Elemento objetivo. A mora só pode referir-se àsobrigações positivas (art. 397), isto é, as de dar ou fazer. Nasobrigações de não fazer, inexiste a hipótese deinadimplemento relativo. O sujeito passivo que se obrigou aomitir determinada conduta simplesmente não pode retardar

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o cumprimento da obrigação. Enquanto ele age conforme seobrigara (não fazendo a conduta objeto de prestação),cumpre a obrigação. A partir do momento que faz o quedeveria omitir, descumpre-a irremediavelmente (ainda que emparte). O art. 390 do CC, que preceitua estar inadimplente odevedor de obrigação negativa desde o dia em que executaro ato que deveria omitir, diz respeito apenas ao seuinadimplemento absoluto (Alvim, 1972:133/134 e passim).Este elemento não é relevante nas obrigações pecuniáriasporque elas são sempre positivas.

Elemento material. A viabilidade da prestaçãoinadimplida tempestivamente é requisito da mora nasobrigações não pecuniárias. Se o cumprimento da obrigaçãotornou-se inviável, trata-se de inadimplemento absoluto enão relativo (Gomes, 1961:169/171). A distinção tem certarelevância porque, embora as duas situações acarretem aresponsabilidade pela indenização dos prejuízosocasionados ao credor, há uma diferença entre elas que nãopode ser desconsiderada: enquanto a mora pode serpurgada por iniciativa do devedor, o inadimplementoabsoluto não. Desse modo, se a prestação se perdeu,tornou-se inviável (no todo ou em parte) por culpa dodevedor, o descumprimento da obrigação deve ser tratadocomo inadimplemento absoluto; se ainda conserva suaviabilidade, deve sê-lo como mora. Este elemento não écaracterístico da mora nas obrigações pecuniárias, porque a

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prestação de entregar dinheiro nunca deixa de ser viável (nosentido jurídico da expressão).

Caracterizada a mora nos termos acima assinalados,projeta a lei três consequências: a) imputação ao devedor daresponsabilidade pelos prejuízos do credor (art. 395, caput);b) direito de o credor enjeitar a prestação que se tornouinútil (art. 395, parágrafo único); c) responsabilidade dodevedor pela perda da prestação (art. 399).

A mora sempre importa a obrigação de o devedor pagarao credor indenização que atenue os efeitos do atraso naentrega da prestação. No caso de obrigações nãopecuniárias, a indenização deve abranger igualmente osdanos emergentes e os lucros cessantes. Imagine que umcantor assumiu perante seu empresário uma obrigação defazer, comprometendo-se a apresentar-se em dia e localdeterminados. Se o artista não se apresenta como haviacontratado, o empresário deve cancelar o show e restituiraos espectadores o preço do ingresso. As reduçõespatrimoniais que o empresário credor sofre em função dosdiversos pagamentos a terceiros que continua obrigado ahonrar (músicos, técnicos, aluguel do teatro etc.)correspondem aos danos emergentes que o artista éobrigado a repor. Mas não se exaure neles a medida daindenização devida. O comparecimento do artista ao local daapresentação e o cumprimento da obrigação de fazerassumida representavam para o empresário a fonte dos

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ganhos esperados pelo evento. Inadimplidas taisobrigações, responde o artista faltoso pelos lucroscessantes do empresário, isto é, pelo que este lucraria setivesse acontecido a frustrada apresentação artística. Note-se que o exemplo não é de inadimplemento absoluto, já queo cantor continua em condições de apresentar-se mesmoapós o vencimento da obrigação. Trata-se deinadimplemento relativo que acarretou a inutilidade daprestação para o credor.

Enquanto a primeira das consequências assinaladas écomum às obrigações pecuniárias e não pecuniárias, as duasoutras são exclusivas do inadimplemento destas últimas.

Na mora de obrigação nãopecuniária, além da imputação aodevedor da obrigação de indenizar ocredor, duas outras consequências sãoprojetadas pela lei: a possibilidade deo credor rejeitar a prestaçãoinutilizada pela mora e a

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responsabilidade do devedor poralguns dos fortuitos verificados após ovencimento.

A segunda consequência diz respeito à utilidade daprestação após o vencimento da obrigação. Quando a morainutiliza a prestação, o credor pode enjeitá-la e cobrar aindenização dos prejuízos que tiver sofrido. A inutilidade émensurada em padrões objetivos. Se, para qualquer pessoana posição ativa de uma obrigação da mesma natureza, aentrega da prestação não mais interessar, caracteriza-se ainutilidade. Caso contrário, ela é ainda útil e não pode serenjeitada pelo credor, mesmo na mora do devedor. Noexemplo do promotor de festa que aluga equipamentos desom, a mora do locatário na entrega do produto autoriza olocador a enjeitar a prestação tardia e demandar indenizaçãopelos danos que sofreu. Note-se que a rejeição da prestaçãopelo credor em virtude da mora do devedor não cabe nasobrigações pecuniárias, porque, sendo dinheiro o objetodesta, nunca se verifica a hipótese de inutilidade. Nasdemais modalidades de obrigação positiva (dar coisa certa,dar coisa incerta ou fazer), a inutilização da prestação pelamora do devedor é sempre possível de acontecer, secaracterizada nos termos objetivos assinalados.

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A terceira consequência advinda da mora nocumprimento de obrigação não pecuniária é aresponsabilização do devedor pela impossibilidade daprestação, mesmo quando derivada a perda de caso fortuito(perpetuatio obligationis). Como já assentado, se oinadimplemento absoluto decorre de ato culposo dodevedor, é ele sempre responsável, tenha o evento ocorridoantes ou depois do vencimento da obrigação. Perdida acoisa por culpa do sujeito passivo, deve ele a indenizaçãocorrespondente, ainda que, ao tempo da perda, não fosseexigível a obrigação. Quando, porém, o inadimplementoabsoluto é causado por caso fortuito verificado antes dovencimento, o devedor não se responsabiliza por eventuaisprejuízos sofridos pelo credor. Estando ele em mora, porém,inverte-se a regra, e fica o devedor responsável, como nahipótese de inadimplemento voluntário.

A norma correspondente a essa última consequência(CC, art. 399) é complexa, e sua compreensão reclama maisalgumas considerações. De início, destaco que, para serresponsabilizado o devedor pela impossibilidade daprestação, o caso fortuito deve ter ocorrido necessariamenteapós o vencimento da obrigação. Se anterior, resolve-se aobrigação e ao devedor cabe apenas restituir ao credor oque tiver recebido a título de antecipação, se houve. Sópode o devedor exonerar-se da responsabilidade pelaimpossibilidade da prestação (perdida por caso fortuito

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posterior ao vencimento) se provar que não havia incorridoem retardamento culposo (ou seja, que não se encontravaem mora) (ver Lotufo, 2003:451) ou que a perda da prestaçãoaconteceria mesmo que tivesse pago a obrigaçãotempestivamente.

Código Civil:Art. 399. O devedor em mora

responde pela impossibilidade daprestação, embora essaimpossibilidade resulte de casofortuito ou de força maior, se estesocorrerem durante o atraso; salvo seprovar isenção de culpa, ou que odano sobreviria ainda quando aobrigação fosse oportunamentedesempenhada.

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Exemplo: Laura vendeu a Marcos uma antiguidade.Tratava-se de peça de mobiliário de madeira do século XIX:uma escrivaninha, suponha. No dia do vencimento, a coisavendida não foi entregue. Dois dias após, o prédio doarmazém em que se encontrava a mobília incendiou-se semculpa de Laura (um raio foi a causa do incêndio). Verificou-se, então, a impossibilidade da prestação por caso fortuito.Pois bem, se Laura estava em mora, ou seja, se haviadescumprido culposamente a obrigação, ela deve indenizarMarcos pelos prejuízos que sofreu. Imagine que ele já sehavia comprometido a revender a escrivaninha, por preçomaior, a terceiro. Laura deve, então, pagar a indenização aMarcos (p. ex., a diferença entre os preços pelo qual elecomprou e o que havia pactuado para a revenda, bem comoeventual ressarcimento pela inexecução desta). Considere,agora, duas variantes neste exemplo. Na primeira, Laura nãoé a culpada pelo atraso no cumprimento da obrigação(ocorreu a “isenção de culpa” referida no art. 399 do CC).Não estava em mora, portanto. A escrivaninha não tinhasido entregue porque havia ocorrido um caso fortuito: acidade em que se situa o armazém onde se guardava a peçaestava isolada há dias em razão de fortes chuvas, e ocaminhão da transportadora não conseguia chegar até olocal por ter desabado a única ponte rodoviária existente.Aqui, Laura não se encontra em mora e não pode ser

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responsabilizada pela impossibilidade da prestação. Nasegunda variante, não há incêndio, nem tempestades, e apeça não é entregue a Marcos no vencimento por culpa deLaura, que não controla convenientemente seuscompromissos. Acontece, porém, que a escrivaninha está-seperdendo em virtude da ação de cupins resistentes aos maispotentes inseticidas. Provado que o lastimável dano severificaria ainda que Laura tivesse cumprido sua obrigaçãoa tempo, isto é, que a escrivaninha se perderia mesmo quetivesse sido entregue a Marcos no vencimento, também estáLaura liberada da responsabilidade pela imprestabilidade dacoisa (abstraiam-se, na segunda variante do exemplo,possíveis especificidades — como o conhecimento dainfestação de cupins por Laura antes da venda, a existênciade relação de consumo etc. —, de diferentes implicaçõesjurídicas).

4.2.3. Juros nas obrigações não pecuniárias

Pagam-se em dinheiro os juros devidos a título deconsectários, ainda que a obrigação não seja pecuniária (CC,art. 407). Se o locatário atrasa a restituição do bem locado,sua mora implica não só a obrigação de pagar aluguel peloperíodo do inadimplemento (correspondentes às perdas edanos) como também juros. A base de cálculo desteconsectário pode ser o valor do aluguel ou do bem,dependendo do que as partes contrataram. Não há limites

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constitucionais ou legais para a fixação dos jurosmoratórios ou compensatórios contratados pelas própriaspartes (repita-se que o art. 591 do CC diz respeito apenas aosjuros remuneratórios). Num contrato de compra e venda,assim, é válido pactuar que o atraso na entrega da coisavendida acarretará ao vendedor a obrigação de pagar aocomprador juros de 5% ao mês sobre o valor do contrato.

Em caso de omissão no contrato relativamente aocabimento de juros devidos como consectários ou mesmoquanto aos critérios de sua mensuração, aplica-se o art. 406do CC, que os fixa “segundo a taxa que estiver em vigor paraa mora no pagamento de impostos devidos à FazendaNacional”. Embora a lei mencione, nesse dispositivo, apenasos juros moratórios, o critério da equivalência aos cobradospelo atraso no pagamento de tributos federais deve serempregado, por analogia em colmatação da lacuna legal,também no cômputo dos compensatórios. Ou seja, o art. 406do CC aplica-se sempre que os juros tiverem a natureza deconsectário.

Alguns doutrinadores (Monteiro, 2001:346; Beviláqua,1934, 4:227) denominam “compensatórios” os juros que aquichamei de “remuneratórios”, ou seja, os devidos pelocontratante no cumprimento tempestivo de certasobrigações pecuniárias (mutuário, devedor de preçoparcelado etc.). Como resulta do emprego da expressãoacima, considero “juros compensatórios” apenas os devidos

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como consectário que cumprem a função de substituir,juntamente com os demais desdobramentos da indenização,a obrigação não pecuniária inadimplida. O esclarecimento éimportante para evitar desentendimentos por razõesexclusivamente semânticas.

4.2.4. Cláusula penal nas obrigações não pecuniárias

Cumpre a multa convencional nas obrigações nãopecuniárias duas funções. A primeira é reforçar ocumprimento da obrigação, agravando as consequências dainexecução voluntária. Esta é, como referido, também funçãoda cláusula penal nas obrigações pecuniárias. A segunda équantificar com antecedência o valor das perdas e danos.Esta segunda função da multa convencional nas obrigaçõesnão pecuniárias tem grande importância prática, na medidaem que limita ou até mesmo exclui um dos consectárioslegalmente estabelecidos para o inadimplemento deste tipode obrigação.

A multa convencional nas obrigações não pecuniárias,então, prefixa o valor das perdas e danos devidos peloinadimplente. Quando os contratantes concordam que oinadimplemento de obrigação não pecuniária deve acarretaro pagamento de multa num determinado valor, eles já estãocalculando, de antemão, o prejuízo que eventualdescumprimento do contrato poderia ocasionar-lhes. Emgeral, a pena é estabelecida mediante percentual sobre o

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valor da obrigação inadimplida, reputando-se que as partesse deram por satisfeitas em recebê-lo a título derecomposição dos danos emergentes e lucros cessantes,caso a obrigação não seja cumprida.

Na hipótese de inadimplemento de obrigação nãopecuniária, assim, as partes que contrataram multaconvencional (na cláusula penal) não precisam alegar ouprovar prejuízo para cobrá-la (CC, art. 416, parágrafo único).Definida como função deste pacto a prefixação daindenização devida, dispensa-se a parte inocente dedemonstrar efetivo prejuízo porque se entende que foi davontade e interesse da parte culpada quantificá-lo nomontante da multa convencional. Outra séria implicação dasegunda função da multa convencional é a impossibilidadede o credor exigir indenização suplementar, se não houverespecífica e expressa previsão na cláusula penal imputandoao devedor esta obrigação. Como a multa convencionalquantifica por antecipação as perdas e danos a serem pagaspelo inadimplente, considera-se que o credor, ao concordarcom ela, renunciou ao recebimento da indenização completa,caso se mostrasse o montante de seu prejuízo superior aovalor daquelas.

Imagine que Antonio comprou o automóvel usado deBenedito, que se comprometeu a entregar o veículo em 30dias, sob pena de arcar com multa de 20% sobre o preçocontratado. Neste caso, as partes, inclusive Antonio,

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concordaram que eventual inadimplemento por parte deBenedito causaria prejuízos que aquele percentual cobriria.Se os danos efetivamente causados a Antonio pela mora deBenedito superarem os 20% do valor da obrigação, ele nãopode reclamar mais nada além da multa, porque aquantificação antecipada da indenização contou com suaexpressa concordância. Ao prejuízo que exceder o valor damulta convencional renuncia o credor. É o que decorre doart. 416, parágrafo único, primeira parte: “ainda que oprejuízo exceda ao previsto na cláusula penal, não pode ocredor exigir indenização suplementar se assim não foiconvencionado”.

Em suma, se a cláusula penal referente a obrigação nãopecuniária, além de mencionar apenas os juros, correçãomonetária e honorários de advogado, limita-se a prever multaconvencional, o credor não pode exigir do devedor acompleta indenização de seus prejuízos, se excederem omontante deste último consectário. É a implicação de umacláusula redigida, por exemplo, nos termos seguintes: “emcaso de inadimplemento, a parte inadimplente pagará à outraparte juros de 1% ao mês, correção monetária calculada peloIGP-M, da FGV, razoáveis honorários de advogado e multano valor de 10% do montante em atraso”. Se nada mais diz acláusula penal, o credor, ao assinar o contrato, manifestousua satisfação com essas implicações do inadimplemento erenunciou à indenização por completo.

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Para que o credor de obrigação não pecuniária quecontratou multa convencional possa ser integralmenteindenizado, é necessário que a cláusula penal (ou outracláusula do instrumento de contrato) expressamentemencione o direito de exigir sua suplementação na hipótesede prejuízo excedente. Seria necessário que à cláusula acimaindicada se acrescentasse, a final, algo como “sem prejuízoda indenização por perdas e danos”. Note, entretanto, que,mesmo neste caso, a multa convencional não perde a funçãode quantificação antecipada dos prejuízos, porque o seumontante, como dita a lei, “vale como mínimo deindenização, competindo ao credor provar o prejuízoexcedente” (CC, art. 416, parágrafo único, segunda parte).No exemplo anterior, se a cláusula penal incluísse expressareferência à indenização, Antonio poderia reclamar, semprovar prejuízo, os 20% da multa convencional, mas só teriadireito ao recebimento de indenização suplementar peloatraso na entrega do automóvel se provasse que suportouperdas e danos além daquele montante.

Nas obrigações não pecuniárias, amulta convencional exerce a função deantecipar a quantificação das perdas e

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danos devidas na hipótese deinadimplemento. Assim, se elas nãosão especificamente asseguradas nacláusula penal, a multa convencionalas exclui; e se o são, as reduz.

A cláusula penal nas obrigações não pecuniárias estãosujeitas aos mesmos limites estudados relativamente àspecuniárias, e também podem ser equitativamente reduzidasem caso de cumprimento parcial da obrigação ou se o valorfor manifestamente excessivo em vista da natureza efinalidade do negócio (CC, arts. 412 e 413).

5. INADIMPLEMENTO INVOLUNTÁRIO: CASOFORTUITO

Quando o inadimplemento não deriva de culpa desujeito obrigado, a hipótese é, em termos técnicos, de casofortuito ou de força maior. Se o descumprimento daobrigação se pode creditar a fato necessário de efeitosinevitáveis, então ele não derivou de culpa dos sujeitosobrigados. Em assim sendo, não se imputa a nenhuma daspartes o dever de indenizar os prejuízos ocasionados à outra

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pelo não cumprimento tempestivo da obrigação.Imagine que o devedor, ao se dirigir ao banco para

pagar a prestação de sua casa no próprio dia do vencimento,é sequestrado e fica em poder dos criminosos por umasemana. Liberado do cativeiro, tem o direito de pagá-la semacréscimos. O sequestro é fato necessário, no sentido deque não se pode exigir do sequestrado qualquer condutapara livrar-se dele sem considerável risco de morte. Além decrimes que vitimam o devedor, grave doença ou acidenteenvolvendo-o ou a pessoa de sua família ou mesmo amigopróximo, inundação, incêndio, greve são fatos que, seimpedirem ou dificultarem seriamente o tempestivocumprimento da obrigação, afastam a culpa do sujeitoobrigado.

Há quem distinga o caso fortuito do de força maior.Agostinho Alvim, por exemplo, após destacar que ainevitabilidade é o elemento comum aos dois conceitos,relaciona o fortuito ao impedimento pertinente à pessoa dodevedor que agiu sem culpa (ou sua empresa) e o caso deforça maior, aos acontecimentos externos (1972:329/334).Outros tecnólogos rejeitam qualquer distinção entre essasfiguras jurídicas. Arnoldo Medeiros da Fonseca, nestecontexto, considera os termos sinônimos (1932:85/103).Penso não haver sentido em procurar distinguir caso fortuitodo de força maior por serem idênticas as implicaçõesjurídicas da inexecução involuntária da obrigação numa e

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noutra situação. A lei, sempre que preceitua determinadaimplicação ao caso fortuito, fá-lo também quanto ao de forçamaior, inexistindo, por isso, razão para distingui-los. Daquipara frente, inclusive, para simplificar, muitas vezes usareiapenas a expressão caso fortuito, registrado que estareitambém me referindo ao caso de força maior.

A inexecução involuntária é causadapor fato necessário de efeitosinevitáveis ou que as partes não podemimpedir (“caso fortuito ou de forçamaior”). Nesta hipótese, nenhuma daspartes é obrigada a indenizar a outrapelos prejuízos que o inadimplementocausar.

Note que os casos fortuitos podem ser eventosprevisíveis. A previsibilidade do fato necessário não osdesfigura como excludente de culpabilidade. O morador de

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metrópole brasileira sabe do risco que corre de ser roubado,por vezes sob graves ameaças e forte violência. Se é eledevedor de obrigação de dar coisa certa e a estavatransportando em direção ao local da entrega, no dia dovencimento, quando foi ela roubada, não se lhe podeimputar culpa pelo não pagamento tempestivo. Apossibilidade do roubo é previsível, mas, ocorrendo, seusefeitos não podem ser impedidos sem grave risco a bens evalores de maior importância, como a integridade física ou avida do devedor ou seus empregados. A relação entre aimprevisibilidade e inevitabilidade do fortuito será vista àfrente (Cap. 24, item 3.1).

O caso fortuito pode comprometer, em definitivo, ocumprimento da obrigação não pecuniária ou apenas atrasá-lo. Na primeira hipótese, o inadimplemento é absoluto.Quando for total a perda, resolve-se a obrigação com aliberação do devedor, que apenas deve restituir ao credoreventuais pagamentos que tenha recebido. É esta aconsequência legal prevista para as obrigações de dar coisacerta (CC, art. 234, primeira parte), pertinente também às dedar coisa incerta após a concentração (art. 245). É também aestabelecida na lei para as obrigações de restituir (art. 238),fazer (art. 248) e não fazer (art. 250). Quando é parcial aperda, ou seja, ocorrendo mera deterioração da prestação,abre a lei ao credor a alternativa de receber a coisa certadeteriorada com abatimento de preço ou dar por resolvida a

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obrigação (art. 235). Sendo esta de restituir, e deteriorada acoisa em razão de caso fortuito, o credor suporta o prejuízo(art. 240). Estas normas, já examinadas anteriormente (Cap.14, itens 2.2 e 2.5), são aqui apenas relembradas.

Se a obrigação é pecuniária, o fortuito pode apenasatrasar seu cumprimento, não sendo possível, neste caso,inadimplemento absoluto.

O inadimplemento absolutoinvoluntário importa a resolução daobrigação. Retornam as partes àmesma situação jurídica em que seencontravam anteriormente àconstituição do vínculo obrigacional.Em consequência, o devedor não émais obrigado a entregar a prestaçãoe o credor não a pode exigir. Se tiverhavido pagamento antecipado, porém,

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o credor tem o direito à devolução.

Quando o caso fortuito não compromete, em definitivo,o cumprimento da obrigação (pecuniária ou não pecuniária),apenas retardando seu cumprimento, opera-se oinadimplemento relativo. Nesta hipótese, a obrigação não seresolve necessariamente, porque sua execução, mesmoatrasada, pode ainda ser útil ao credor. Em função dapreservação ou perda de utilidade da prestação para ocredor, o inadimplemento relativo acarreta a permanência daobrigação ou sua solução.

Se, após o atraso no pagamento motivado por casofortuito, a prestação continua útil ao credor, permanece odevedor obrigado a entregá-la tão logo cessem os efeitos dofato necessário. Considere que a greve dos empregados dobanco em que o devedor tem depositado todo o seu dinheiroé tão generalizada que impede o pagamento da obrigação aocredor no vencimento do título, inclusive mediantetransferência eletrônica ordenada via rede mundial decomputadores. Trata-se de caso fortuito que, malgrado suaintensidade, não inviabiliza em definitivo o adimplemento daobrigação. Assim que cessados seus efeitos erestabelecidos os serviços daquele banco, o devedor temque cumpri-la. Quer dizer, o caso fortuito relacionado ainadimplemento relativo não dá ensejo à resolução da

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obrigação. Note-se, contudo, que, embora seja o vínculoobrigacional preservado, o devedor não se torna obrigado aindenizar os prejuízos que o inadimplemento relativo causou.A falta de pagamento no vencimento deveu-se a fatonecessário e não à culpa dele e, por isso, cabe ao credorsuportar os danos decorrentes na hipótese de preservaçãoda utilidade da prestação.

Se, por outro lado, o inadimplemento relativo derivadode caso fortuito ocasionar a inutilidade da prestação para ocredor, este pode dar a obrigação por resolvida,dispensando o devedor de seu cumprimento e exigindo adevolução de eventuais pagamentos realizados. Imagine queo locador de equipamentos de som foi contratado pelopromotor de uma festa, mas não pôde cumprir a obrigação deentregar os bens locados antes do início do evento, emrazão de uma forte inundação que impediu o deslocamentodo caminhão em que estavam sendo transportados. Para ocredor, mesmo após a cessação dos efeitos do caso fortuito,a prestação inadimplida perdeu toda a utilidade, porque adata da festa já transcorreu e o evento, mesmo sem som, serealizou. O locatário pode considerar resolvida a obrigação eexigir a devolução do pagamento que eventualmente tiverfeito. Neste caso, havendo prejuízo, é o devedor que osuporta.

A utilidade da prestação é estabelecida em termosobjetivos, isto é, com abstração da vontade das partes.

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Assim, ainda que o credor não queira mais a prestação, seela ainda for objetivamente útil a qualquer pessoa que seencontrasse na posição ativa de uma obrigação daquelanatureza, não se resolve a obrigação. Igualmente, ainda queo devedor queira entregar a prestação após o fim dos efeitosdo caso fortuito, se esta não se revela mais útil a qualquerpessoa que ocupasse a posição ativa de obrigação damesma natureza, resolve-se a obrigação. Ressalte-se, nestecontexto, que as obrigações pecuniárias continuam sempreúteis ao credor, no caso de inadimplemento relativo, e,portanto, nunca são resolvidas pelo atraso. Ainda que sejadesejo do credor resolver a obrigação pecuniária, a mora dodevedor não autoriza a resolução porque o dinheiro nãoperde sua utilidade em nenhuma hipótese.

O inadimplemento involuntáriorelativo não importa necessariamentea resolução da obrigação. Se aprestação ainda for útil ao credor,cessados os efeitos do fortuito queatrasara a execução, o devedor é

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obrigado a entregá-la e o credor tem odireito de exigi-la. Se o atraso tiverinutilizado a prestação para o credor,resolve-se a obrigação, caso em que odevedor é obrigado a restituir àqueleeventuais antecipações.

Ao encerrar este item, faço duas observações. Primeira,as regras sobre inadimplemento não culposo têm naturezasupletiva. As partes podem, por acordo de vontade, pactuardiferentes consequências para a hipótese de caso fortuitoou de força maior. Incidem as normas legais examinadas, emdecorrência, apenas na omissão de cláusula contratual sobrea matéria (CC, art. 393, in fine) . Segunda, as regrasexaminadas sobre inadimplemento não culposo absoluto sãoinaplicáveis se, ao tempo em que a prestação se perdeu, odevedor encontrava-se em mora (isto é, se incorrera eminadimplemento relativo voluntário). Neste caso, eleresponde pelo perecimento da prestação, ainda que tenhaeste decorrido de caso fortuito (art. 399), como se examinouanteriormente (subitem 4.2.2).

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6. INADIMPLEMENTO E EXECUÇÃO JUDICIALUma forte tendência entre os tecnólogos, semeada no

direito alemão dos fins do século XIX e frutificada naprimeira metade do século XX, propõe desmembrar o vínculoobrigacional em dois. De um lado, estaria o dever de osujeito passivo entregar ao ativo a prestação (Schuld); deoutro, a sua responsabilidade patrimonial no caso de não aprestar (Haftung). A tendência é conhecida como concepçãoou doutrina dualista da obrigação. A implicação de suadistinção é a possibilidade de dívidas sem responsabilidade(como no caso da obrigação natural) e de responsabilidadesem dívidas (fiança). Malgrado o enorme sucesso quegranjeou e ainda granjeia em todos os países de tradiçãoromânica (Comparato, 1964; Martins-Costa, 2003, passim), aconcepção dualista não é útil senão na ilustração dequestões marginais. Pode-se compreender, sem dificuldade,as repercussões do inadimplemento sem o esquemaconceitual de quebra da obrigação em duas.

Sempre que a obrigação não é paga no vencimento,ocorre o inadimplemento. Se for voluntário, a parte culpadadeve indenizar a outra pelos prejuízos que tiver causado.Esta indenização pode ter função moratória oucompensatória. No primeiro caso, à obrigação principalacresce-se, então, outra, que é a de pagar a indenização. Se odevedor culposamente não paga, no vencimento, a quantiadevida, ele passa a dever não só esta quantia mas também a

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indenização pelo prejuízo que o inadimplemento trouxe aocredor. As “duas” obrigações (principal e acessória) podemser cumpridas voluntariamente. O devedor, dando-se contade sua falta, procura o credor para não só lhe pagar o que jádevia, como também para compensá-lo pelo atraso. No casode indenização compensatória, a indenização substitui aobrigação originária, e também aqui o devedor podeespontaneamente procurar o credor para cumpri-la. Estassituações de fato, perceba, não são relevantes para o Direito,na medida em que não tendem a despertar nenhum conflitode interesses. Vale examinar, portanto, a hipótese em que odevedor resiste a cumprir a obrigação ou a responder pelosprejuízos. Neste caso, o credor deve buscar em juízo asatisfação de seus direitos mediante a execução forçada daobrigação.

Estudou-se, de início (Cap. 13, item 2), que a execuçãoda obrigação é a realização dos objetivos pretendidos pelaspartes (nas obrigações negociais) ou pela lei (nas nãonegociais). É voluntária quando o sujeito passivoespontaneamente paga o ativo, e forçada (ou judicial),quando decorre da atuação do Estado, por meio de um deseus poderes, o Judiciário. Viu-se, também, que a execuçãojudicial pode ser específica ou subsidiária. No primeiro caso,o credor recebe a mesma prestação que receberia caso aobrigação tivesse sido cumprida espontânea etempestivamente. Na execução subsidiária, por não ser

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possível (material ou juridicamente falando) ao Estadoassegurar a entrega ao credor da mesma prestação que elereceberia na hipótese de execução voluntária, satisfaz-se seudireito mediante a entrega de prestação equivalente ou deindenização.

A execução judicial da obrigação só cabe na hipótese deinadimplemento voluntário. Se o sujeito ativo demanda emjuízo o passivo para obter o adimplemento da obrigação quenão se adimplira em razão de caso fortuito, ele não tem odireito que pleiteia e perderá a ação. A execução judicialpressupõe que o demandado tenha sido o culpado peloinadimplemento.

A execução de obrigação pecuniária é específica, já que,por ela, o credor recebe dinheiro, que corresponde à mesmaprestação que teria recebido caso a obrigação tivesse secumprido no vencimento. Como este tipo de obrigação sócomporta inadimplemento relativo, a indenização, nestecaso, tem função moratória.

Já na execução de obrigação não pecuniária, quando oinadimplemento é absoluto total — significa dizer que aprestação se perdeu por completo —, a execução judicialnão pode ser específica; terá que ser subsidiária porindenização, necessariamente, já que não é possível aentrega ao credor da mesma prestação que receberia nahipótese de execução voluntária. Em termos econômicos,como visto, o resultado da execução subsidiária por

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indenização da obrigação não pecuniária totalmenteinadimplida será igual ao da obrigação pecuniária.Juridicamente falando, porém, correspondem a modalidadesdiferentes de execução judicial.

Quando tiver sido absoluto parcial o inadimplemento daobrigação não pecuniária, o credor pode escolher entrereceber a coisa deteriorada ou exigir o valor dela, sempreacrescido de indenização. Optando pela primeira alternativa,a execução judicial será subsidiária por prestaçãoequivalente (a coisa deteriorada, neste caso, equivale à nãodeteriorada, para o credor); optando pela segunda, aexecução judicial será subsidiária por indenização.

Sendo, por fim, relativa a inexecução da obrigação nãopecuniária, se continuar útil a prestação ao credor, aexecução judicial será específica; tendo a prestação seinutilizado em virtude da mora, porém, será subsidiária porindenização.

Na hipótese de execução judicial específica deobrigação não pecuniária, o credor tem o direito de receber,além da prestação contratada, a indenização pelos danosque o inadimplemento provocou. Na de execução judicialsubsidiária por prestação equivalente, tem ele o direito dereceber, além da prestação semelhante, igual indenização.Nestas duas hipóteses a indenização é moratória, porquenão substitui a prestação; é apenas acrescida a ela emressarcimento pelos efeitos da mora. Por fim, na execução

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judicial subsidiária por indenização, o credor tem direito deser indenizado por todos os prejuízos que sofreu, incluindoo valor do ganho que auferiria se lhe tivesse sido entreguetempestivamente a prestação. Note, porém, que, neste caso,sua natureza é diversa. Aqui, a indenização substitui aprestação e não apenas neutraliza os efeitos da mora. Trata-se, então, de indenização compensatória.

A inexecução da obrigação(principal) por culpa de uma daspartes dá ensejo à constituição denova obrigação (acessória): a de oculpado indenizar todos os prejuízoscausados pelo inadimplemento. Estaindenização tem função compensatória(quando substitui a prestação) oumoratória (se visa neutralizar osefeitos da mora).

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Em qualquer caso de inexecução voluntária, oinadimplente deve pagar indenização, porque a simplesentrega da prestação (ou mesmo de seu valor) não ésuficiente para repor o equilíbrio econômico que resultariado cumprimento tempestivo da obrigação. O inadimplementoculposo importa, para a parte inocente, a privação não só daprestação, mas das vantagens e benefícios que dela poderiater extraído. Se a obrigação tivesse sido adimplida a seutempo, modo e lugar, ao patrimônio do credor não se teriaagregado somente a prestação, mas também os frutos ouprodutos dela derivados. O inadimplemento, por assim dizer,causa um desequilíbrio que a execução judicial deve desfazervia indenização (Pereira, 1962:291). Por outro lado, se oinadimplente fosse, na execução judicial da obrigação,forçado a entregar apenas a prestação sem a indenizaçãodos prejuízos causados à outra parte, sua culpa não seriapunida. Com efeito, se a execução voluntária e judicialimportassem as mesmas consequências econômicas para osujeito obrigado, a lei não desestimularia o inadimplemento.

7. INADIMPLEMENTO E INSOLVÊNCIAO inadimplemento da obrigação pode ter por motivo a

incapacidade patrimonial de o devedor honrar todas as suasdívidas. Se em seu patrimônio o passivo supera o ativo (quer

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dizer, seu patrimônio líquido é negativo), o devedor, cedo outarde, começará a ter dificuldades para pagar os credores.Costumam, então, suceder-se várias inadimplências, umaatrás de outra. Este fato jurídico — ter dívidas que superamo valor dos bens — autoriza os legitimados (em geral oscredores) a requerer, em juízo, a declaração de insolvênciado devedor (CC, art. 955; CPC, art. 748). Note, se um sujeitode direito tem menos bens no patrimônio que o valor totaldas obrigações passivas, mas ninguém pede a declaração desua insolvência, então ele não pode ser chamado,tecnicamente, de insolvente. Só o será se e quandodecretada, por sentença judicial, a instauração do processode insolvência.

A insolvência é um concurso de credores, ou seja, umaexecução da qual participam todos os titulares de créditocontra o mesmo executado (insolvente) e que alcança atotalidade dos bens do patrimônio deste. Com ênfase, se odevedor não possui bens suficientes para pagar a todos aquem deve, determina a lei, por medida de justiça, que serealize uma execução única e abrangente, a execuçãoconcursal. Nela, todos os bens do patrimônio do devedorserão vendidos para que o produto possa ser repartido deforma justa, pagando-se, quando possível, parte do crédito acada credor. Quando o devedor é empresário, a execuçãoconcursal chama-se falência e é regida por legislaçãoprópria (LF), objeto de estudo do direito comercial. Quando

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não é, segue as regras do Código Civil (arts. 955 a 965) e doCódigo de Processo Civil (arts. 748 a 786-A) sobreinsolvência.

Os credores, na insolvência, não são tratados todos deforma igual. A lei os distingue em classes, atribuindopreferências e privilégios a algumas delas. O fundamentopara a hierarquização dos credores encontra-se na justiça doatendimento prioritário a determinados créditos. Se, porexemplo, o credor titulariza direito real de garantia, como umahipoteca sobre certo terreno, por exemplo, isto significa queo pagamento de seu crédito terá prioridade sobre os nãogarantidos. É justo que assim seja, porque os juros eencargos que ele se obrigou a pagar para o credorhipotecário ou pignoratício foram certamente reduzidos,tendo em vista a outorga da garantia. O valor do terrenohipotecado foi levado em consideração, nas negociações,pelo credor, ao concordar com determinada taxa de jurosremuneratórios, tendo em vista a redução de riscos que agarantia real proporciona.

Ressalto, contudo, que, embora os credores não sejamtodos iguais na insolvência do devedor, têm eles direito atratamento paritário. Quer dizer, os credores de uma mesmaclasse devem ser tratados igualmente.

Quando o devedor é insolvente, os credores sãoclassificados em quatro classes: 1) credor com garantia real;2) credor com privilégio especial; 3) credor com privilégio

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geral; e 4) credor sem preferência. Nas duas primeirasclasses, não há rateio proporcional entre os credores,porque a satisfação de cada crédito será feita, em princípio,com o produto da venda de um bem particular e individuadodo patrimônio do devedor — o bem sobre o qual recai oônus real ou o privilégio especial. Nas duas últimas, serásempre feito rateio entre os credores, pagando-se a cada umo valor proporcional do crédito, se os recursos disponíveisnão forem suficientes à satisfação integral deles todos (CC,art. 962).

Quando o devedor não tem, nopatrimônio, bens suficientes pararesponder pelo valor total dasobrigações passivas, deve serdeclarada judicialmente suainsolvência. Os credores do insolventesão classificados segundo uma ordemde preferência estabelecida em lei. Em

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primeiro lugar, paga-se o credor comgarantia real com o produto da vendado bem onerado. Em seguida, ostitulares de privilégio especial,também com o produto da venda dosbens sobre os quais ele recai. Depoisdisso, são feitos os pagamentos doscredores sujeitos a rateio, dando-sepreferência aos titulares de privilégiogeral. Os últimos credores a receber,se sobraram recursos, são osquirografários.

O credor com garantia real é o que tem o créditovinculado a um bem do patrimônio do devedor. Se este bemé imóvel, a garantia chama-se hipoteca; se móvel, penhor;se são os frutos e rendimentos de imóvel o objeto dagarantia, denomina-se anticrese. Verificando-se a

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insolvência, o produto da venda do bem onerado serádestinado, inicialmente, à satisfação do credor com garantiasobre ele. Após o pagamento integral do crédito garantido,se restar saldo no produto da venda daquele bem, seráempregado no pagamento dos credores sujeitos a rateio(classes 3 e 4). Por outro lado, se o produto da venda judicialdo bem onerado for insuficiente ao pagamento integral docredor garantido, o saldo não pago de seu crédito participarádos rateios em concurso com os credores sem preferência(classe 4). Em outros termos, é quirografário o créditoremanescente da execução da garantia real (CC, art. 1.430)(Rodrigues, 2003, 5:347)

Os credores com privilégio especial encontram-se, sob oponto de vista econômico, na mesma posição dos titularesde garantia real: o produto da venda de determinado bem évinculado à satisfação de certo crédito. A diferença éjurídica: enquanto a vinculação entre produto da vendajudicial e crédito é feita, na hipótese da garantia real, pelaspartes, na do privilégio especial, é-o pela lei. A hipotecarecai sobre um prédio específico porque credor e devedorassim contrataram. Já o privilégio especial recai sobre certosbens do devedor porque a lei assim o estabelece,independentemente de qualquer declaração de vontade daspartes. Tal como ocorre em relação aos créditos com garantiareal, os recursos remanescentes, após o pagamento integraldo crédito especialmente privilegiado, destinam-se ao

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pagamento dos credores sujeitos a rateio (classes 3 e 4),enquanto o saldo não pago, se houver, concorre com oscredores sem preferência (classe 4).

São hipóteses de crédito com privilégio especial: (a) odos credores por custas e despesas judiciais comarrecadação e liquidação sobre a coisa arrecadada eliquidada; (b) o credor por despesas de salvamento sobre oque se salvou; (c) o credor por benfeitorias necessárias ouúteis sobre o bem beneficiado; (d) o credor por materiais,dinheiro ou serviços empregados na edificação,reconstrução ou melhoramento de prédio, fábrica, oficina ououtra construção sobre o bem edificado, reconstruído oumelhorado; (e) o credor por sementes, instrumentos eserviços empregados em plantação ou colheita, sobre osfrutos agrícolas correspondentes; (f) o locador,relativamente aos aluguéis do ano da declaração dainsolvência e do anterior, sobre o mobiliário e utensíliosdomésticos; (g) o autor, pelos direitos derivados de contratode edição, sobre os exemplares da obra por ele criada, nainsolvência do editor (CC, art. 964).

Em situação específica encontra-se o trabalhador docampo em atividade agrícola, que, por seu salário, temprivilégio especial sobre o produto da colheita em quetrabalhou (CC, art. 964, VIII). Seu crédito tem preferênciasobre eventuais credores pignoratícios em favor dos quaistenha sido outorgada garantia real sobre a mesma

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mercadoria agrícola. Neste caso, portanto, inverte-se aordem de classificação dos credores, devendo ser pagoantes, na insolvência, o trabalhador agrícola que o credortitular de penhor.

Os credores com privilégio geral, por sua vez, são pagoscom os recursos que remanescem no patrimônio do devedorapós a satisfação — com o produto da venda dos bensvinculados — dos créditos com garantia real e privilégioespecial. Como já dito, estão sujeitos a rateio e receberãopagamentos proporcionais aos seus créditos quando foreminsuficientes os recursos para sua satisfação integral. Gozamde privilégio geral os créditos por: (a) despesas de funeraldo devedor, feitas segundo a condição do morto e ocostume do lugar; (b) custas judiciais ou por despesas coma arrecadação e liquidação do patrimônio do insolvente; (c)despesas com o luto do cônjuge sobrevivo e dos filhos doinsolvente, se moderadas; (d) despesas com a doença deque faleceu o insolvente, no semestre anterior à sua morte;(e) gastos necessários à mantença do insolvente falecido esua família, no trimestre anterior ao do falecimento; (f)impostos devidos no ano da declaração da insolvência e noanterior; (g) trabalho doméstico nos seis últimos meses devida do insolvente (CC, art. 965); (h) outros previstos na lei,como, por exemplo, os honorários de advogado (Lei n.8.906/94, art. 24).

Finalmente, se restarem recursos após o pagamento dos

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credores com privilégio especial, serão pagos,proporcionalmente ao valor do crédito de cada um, os quenão titularizam nenhuma preferência (classe 4). São oscredores quirografários, que se definem por exclusão: os quenão se classificam como preferenciais. Se, por exemplo,alguém havia vendido a prazo alguma coisa ao insolvente,ou emprestara-lhe dinheiro sem garantia real, seu crédito nãogoza de qualquer preferência.

Exemplo: considere que Antonio, que vive em casaalugada, tem no patrimônio, entre os ativos, um terreno, doisveículos e o mobiliário doméstico. Suponha que, no passivo,se encontram as dívidas em favor de Benedito ($ 100),garantida por hipoteca sobre o terreno; do locador Carlos ($20), por aluguel atrasado; do advogado Darcy ($ 15), porhonorários profissionais; e do cunhado Evaristo ($ 80), quelhe emprestara dinheiro no último Natal. Declarada ainsolvência de Antonio, os bens foram arrecadados eliquidados (isto é, vendidos judicialmente). Apuraram-se osseguintes valores: pelo terreno, $ 80; pelos veículos, $ 40; epelo mobiliário, $ 30. Como serão feitos os pagamentos nainsolvência? Inicialmente, paga-se Benedito, por ser titularde direito real de garantia, com o produto da venda do bemonerado. Como ele tem crédito de $ 100 e o terrenohipotecado foi vendido por $ 80, destina-se todo o produtoda venda ao credor e fica ele ainda com crédito de $ 20concorrendo na classe dos quirografários. Em seguida,

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p ag a-s e Carlos, que tem privilégio especial sobre omobiliário doméstico (“alfaia”, diz a lei) encontrado noprédio locado. Como este foi vendido a $ 30 e o crédito dolocador é $ 20, ele será integralmente pago e o saldoremanescente, de $ 10, será destinado ao pagamento doscredores sujeitos a rateio. Depois, paga-se Darcy, que,sendo advogado, titulariza privilégio geral. Seu crédito é de $15 e, na massa, há recursos no valor de $ 50. Feito estepagamento, resta saldo de $ 35 para ser divididoproporcionalmente entre Benedito (que ainda não recebeu $20) e Evaristo (que tem a haver $ 80). Em razão daproporcionalidade, enfim, Benedito recebe mais $ 7 eEvaristo, $ 28. O valor residual — ou seja, $ 14 paraBenedito e $ 52 para Evaristo — corresponde à perdadesses credores, tendo em vista que Antonio não possuimais nenhum bem, em seu patrimônio, sobre o qual sepudesse fazer a cobrança.

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Capítulo 19

INTRODUÇÃOÀS

OBRIGAÇÕESEM ESPÉCIE

1. OBRIGAÇÕES EM ESPÉCIEEste breve capítulo tem o objetivo de introduzir as

obrigações em espécie. Com o exame do inadimplemento dasobrigações, empreendido no capítulo anterior, encerra-se o

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que a tecnologia civilista brasileira tem tradicionalmenteestudado como uma teoria geral das obrigações. Nelaconcentram-se os esforços dos tecnólogos da área em buscada identificação e intelecção das normas legais aplicáveis aqualquer tipo de obrigação, inclusive as estudadas emoutros ramos do conhecimento jurídico (direito tributário,comercial, do consumidor etc.). No direito civil, após oestudo da teoria geral, inicia-se o das obrigações em espécie— vale dizer, o das normas específicas aplicáveis aoscontratos civis, responsabilidade civil e algumas outrasobrigações.

Claro, a construção desta teoria geral representa atentativa de sistematização e classificação de certospreceitos normativos num conjunto harmônico. Em outrostermos, ela visa organizar logicamente as normasdisciplinares de qualquer obrigação. Todavia, conferirestrutura lógica a normas jurídicas é, por si só, tarefa difícil.Às vezes, até mesmo impossível, por uma razão simples, masintransponível: não há necessariamente lógica no direito(Coelho, 1992). A tarefa é significativamente dificultada nocampo do direito das obrigações. Quando o materialnormativo a sistematizar e classificar são milenares normasenraizadas no direito romano que se reciclam para regularuma realidade econômica e social cada vez mais complexa,como é o caso das deste ramo jurídico, o resultado —antevê-se — pode ser frustrante. Não há classificação das

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obrigações ao mesmo tempo operacional e abrangente.Para introduzir o estudo das obrigações em espécie,

contudo, não se escapa de classificá-las. E, embora hajaquem considere inadequado o critério de classificaçãosegundo a origem (ou “fonte”), em vista da quantidade ediversidade dos fatos geradores de obrigações (Noronha,2003:413), é dele que me valho, por sua utilidade didática.

Começo pela notícia de uma obra escrita por Gaio, noséculo II, as Institutas. Nela, encontra-se a primeiraclassificação das obrigações segundo a origem: Omnisobligatio vel ex contractu nascitur, vel ex delicto (quesignifica: “toda obrigação nasce de contrato ou de delito”).A divisão bipartite das obrigações, embora largamentedifundida nos direitos de tradição romana, serve apenas parauma aproximação de fins didáticos — objetivos, aliás, dasInstitutas. A incapacidade de ela abarcar todas as situações,ressalte-se, era já notada desde então. Em outros escritos —que se encontram no Digesto organizado no século V porordem do imperador Justiniano —, Gaio fez menção aobrigações que não provinham nem de contrato, nem do queatualmente se conhece por ato ilícito. Ensaiou, primeiro, umaclassificação tripartite, em que a nova categoria deobrigações não estava, porém, claramente definida. Propôs,também, uma quatripartite, acrescentando às obrigaçõescontratuais (ex contractu) e delituais (ex maleficio), asquase contratuais (quasi ex contractu) e as quase delituais

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(quasi ex maleficio). Esta última classificação granjeoutamanho prestígio que ecoa, ainda hoje, no Code Civil deFrança e nos manuais franceses da área (Mazeaud-Chabas,1998:45 e 789). Mesmo na doutrina brasileira, há quem aadote na organização dos temas (Lopes, 2001). Asobrigações quase contratuais nascem de “fatos puramentevoluntários”, como o pagamento indevido, gestão denegócios e o enriquecimento sem causa; já as quasedelituais correspondem à responsabilidade por danoscausados por culpa simples, como a negligência,imprudência ou imperícia (delitual é a relacionada ao dolo).

Ambientadas nesta notícia histórica, podem-se dividiras obrigações, hoje, em negociais e não negociais. Nasprimeiras, encontram-se as derivadas de negócio jurídico,quer dizer, de manifestação de vontade de sujeito de direitointencionalmente voltada à produção dos efeitos previstosem lei. As não negociais derivam de fato jurídico ou atoilícito: não é a vontade do devedor, do credor ou de ambosque gera o vínculo obrigacional, mas o fato qualificado pelalei ou o ato culposo que viola direito subjetivo.

As obrigações negociais subdividem-se em contratuaise não contratuais. Naquelas, o encontro de vontade daspartes faz nascer a obrigação. Correspondem aos contratosos mais variados (compra e venda, doação, seguro, locação,prestação de serviços, leasing, cartão de crédito, plano deassistência médica, distribuição, acordo de acionistas etc.).

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Nas obrigações não contratuais, o negócio jurídico geradordo vínculo é unilateral. E, aqui, abrem-se duaspossibilidades: de um lado, aquelas em que o declarante seobriga (promessa de recompensa, oferta ao consumidor,emissão, aceite, endosso e aval de títulos de crédito etc.) e,de outro, aquelas em que o declarante obriga outrem (gestãode negócios, pagamento indevido etc.).

As obrigações podem resultar, de umlado, de negócios jurídicos (negociais)ou, de outro, de fato jurídico ou atoilícito (não negociais). As negociais,por sua vez, podem decorrer denegócio jurídico bilateral (obrigaçõescontratuais) ou unilateral (nãocontratuais).

Por sua vez, a categoria das obrigações não negociaisreúne os vínculos obrigacionais cuja constituição não deriva

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de negócio jurídico. Nela está a responsabilidade civil, isto é,a obrigação de indenizar os danos sofridos por sujeito comquem o devedor não mantém vínculo negocial ou, semantém, o negócio é circunstancial. Explico. Quando alguémdeve indenização a quem está vinculado por negóciojurídico, este pode ser o fundamento da obrigação deindenizar ou não. Se a indenização é consectário, o seufundamento é o inadimplemento da obrigação nascida com amanifestação de vontade; neste caso, o negócio jurídico é afonte da obrigação de indenizar, seu fundamento. Por outrolado, se a indenização é a própria prestação, o negóciojurídico eventualmente existente entre devedor e credor écircunstancial; a obrigação de indenizar existe a despeito dovínculo negocial (Cap. 21, item 2).

A responsabilidade civil é, em suma, obrigação nãonegocial, mesmo que entre credor e devedor da indenizaçãohaja negócio jurídico. Ela pode ser subjetiva ou objetiva.Quando subjetiva, a responsabilidade civil tem por origemato ilícito culposo ou doloso (obrigação de indenizar vítimade acidente de trânsito, de erro médico, de crimes etc.);quando objetiva, decorre de fato jurídico (fornecer bens aomercado gera responsabilidade pelos acidentes de consumo,p. ex.).

Também se classifica como não negocial a obrigação docondômino (implicação do fato jurídico de dividir apropriedade de um bem com outras pessoas), do alimentador

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(derivada do fato jurídico de ele ter condições de alimentarparente em dificuldades), e outras.

Encontra-se na categoria das obrigações não negociaisuma considerável gama de hipóteses espalhadas pelosvários ramos do direito. São não negociais, por exemplo, asobrigações tributárias, que se constituem em razão de fatosubsumível à hipótese de incidência do imposto,contribuição ou taxa (auferir renda implica a obrigação depagar o imposto de renda, usufruir serviço prestado peloEstado, a de pagar a taxa etc.). A obrigação de a sociedadeanônima pagar o reembolso ao acionista dissidente de certasdeliberações da assembleia geral é outro exemplo albergadonesta classe. O direito de o empregado receber salário,décimo-terceiro, férias remuneradas, licença-maternidade edemais verbas previstas em lei também se deve considerarobrigação não negocial — embora a tecnologia trabalhistaainda opere com o conceito de “contrato de trabalho” —nascida do fato jurídico caracterizador do vínculoempregatício (subordinação pessoal, não eventualidade,remuneração etc. — art. 3º da CLT).

2. QUESTÃO DE ORDEMA tecnologia civilista dedica-se ao estudo da teoria

geral das obrigações e de algumas obrigações em espécie.Segundo o ramo jurídico dedicado ao seu estudo, pode-sefalar em obrigações tributárias, empresárias (também

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chamadas comerciais ou mercantis), consumeristas,trabalhistas, previdenciárias, de direito administrativo eassim por diante. Neste sentido, por exemplo, a obrigaçãonegocial não contratual derivada da vinculação dofornecedor aos termos de sua oferta dirigida ao mercado deconsumo (CDC, arts. 30 e 35) é consumerista, porqueestudada no âmbito do direito do consumidor; a tambémnegocial não contratual representada pelo saque, aceite,endosso e aval de títulos de crédito é mercantil, por virestudada no direito comercial (Coelho, 1998, 1:387/416).

As obrigações em espécie estudadas pelo direito civilsão, inicialmente, referidas por três conceitos: contratoscivis, atos unilaterais civis e responsabilidade civil. Asque não se enquadram em nenhum deles são examinadaspelo desdobramento próprio da disciplina: os alimentosestudam-se em direito de família, as obrigações docondômino na repartição das despesas comuns, no direitodas coisas, as do plagiador de obra, nos direitos do autor, eassim por diante.

Nes te Curso, distribuíram-se as principais matérias dodireito das obrigações civis da seguinte maneira: no próximocapítulo, estudam-se os atos unilaterais de direito civil(promessa de recompensa, pagamento indevido, gestão denegócios e enriquecimento sem causa); na próxima parte, aresponsabilidade civil; no próximo volume, os contratoscivis.

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3. DIREITO DAS OBRIGAÇÕES E A GLOBALIZAÇÃOQuero aproveitar este capítulo para um curto interregno

no desenvolvimento da tecnologia jurídica das obrigações eumas poucas considerações científicas.

Durante a Primeira Guerra Mundial, a Europa não podiamanter sua produção com a mesma regularidade. Além dasnaturais dificuldades criadas pelo extenso conflito paramanter a economia funcionando normalmente, havia tambémo esforço de guerra, que priorizava a produção dearmamentos, belonaves, uniformes e suprimentos para asforças. Do outro lado do Atlântico, empresários norte-americanos identificaram a oportunidade de vender maispara o considerável mercado europeu então desatendido;fizeram investimentos e aumentaram a produção. Aeconomia norte-americana cresceu, no período, em parte porter atendido à demanda nos países aliados do velhocontinente e suas colônias, além de alguns dos antigosconsumidores de produtos europeus espalhados pelomundo.

Terminada a guerra, a Europa retornou à economia depaz e deixou de importar os bens que voltou a produzir.Reativou alguns laços coloniais e a exportação.Paralelamente, com a paulatina reorganização da economiaeuropeia, experimentaram os Estados Unidos umaextraordinária crise de demanda. Como o capitalismo,naquele tempo, não tinha ainda desenvolvido qualquer

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mecanismo de planejamento e organização da economia —visto então como ferramenta típica do comunismo —, aprodução no novo mundo, mesmo após o fim da guerra,continuava a crescer, mas não encontrava mais mercadospara escoamento de seus produtos. O ponto culminante dacrise é marcado, historicamente, pela queda da bolsa devalores de Nova York em 1929.

No transcorrer da Segunda Guerra Mundial, de novo aprodução europeia não se encontrava em condições deatender aos seus tradicionais mercados dos tempos de paz.Uma vez mais, a produção norte-americana cresceu, noembalo das demandas surgidas nesses mercados. A duralição, porém, tinha sido aprendida. Causas e reflexos dascrises de demanda eram já bem conhecidos doseconomistas. Assim, em 1944, quando era possívelrazoavelmente antever que os Estados Unidos sairiamvencedores do conflito mundial, reuniram-se em BrettonWoods representantes de cerca de meia centena deeconomias capitalistas, para começarem a estruturação daordem econômica do pós-guerra. Dessa Conferênciaresultou a criação do Fundo Monetário Internacional (FMI)e do Banco Internacional de Reconstrução eDesenvolvimento (BIRD). O ouro foi substituído pelo dólarnorte-americano como padrão de referência na avaliação dasmoedas, num modelo que sobreviveu até a crise do petróleode 1973. E, principalmente, como meio de ampliação dos

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mercados abertos à economia norte-americana, “decretou-se” o fim da era colonial e seus entraves comerciais —processo inteiramente concluído apenas em 1974, com aRevolução dos Cravos em Portugal.

Os diferentes cenários em que se encontrou a economianorte-americana no fim das duas guerras mundiais ilustramuma necessidade vital do sistema capitalista: a constanteampliação do mercado consumidor. O capitalismo tem sedede mercados. No regime pautado pela liberdade de iniciativa,quando o processo de formação de novos mercados sedetém ou regride, a produção não encontra seu destino e seperde. Junto com ela, perdem-se os investimentos e osvaliosos recursos humanos, materiais e intelectuais nelaalocados. Criar constantemente novos mercados deconsumo é a seiva vital do sistema econômico capitalista.Uma das razões da força da economia norte-americana estáem ter sido a primeira a perceber que remunerar bem ooperário é um modo de ampliar o mercado consumidor. Estanoção, de todo estranha ao capitalismo do século XIX,corresponde a aspecto menos conhecido do fordismo. Suadifusão na indústria norte-americana na primeira metade doséculo passado foi certamente um dos fatores queimpulsionou os Estados Unidos à posição de potênciaeconômica.

A necessidade vital do capitalismo de constanteampliação de mercados torna inevitável o processo de

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globalização. Por ele, fronteiras nacionais vão perdendoimportância e até mesmo qualquer sentido para fins deprodução e circulação de bens e serviços. Integram-sepaulatinamente as economias dos países envolvidos noprocesso, do qual uma das etapas é a criação do mercadocomum.

Criar mercado comum significa, em termos jurídicos,harmonizar as normas referentes a direito-custo, isto é,aquelas que interferem na formação dos preços dosprodutos ou serviços (Coelho, 1998, 1:47/54). O direito dasobrigações possui diversas normas dessa natureza. Por isso,em qualquer processo de integração econômica, ele passanecessariamente por alterações. O objetivo da harmonizaçãoé tornar idênticas as condições de competitividade em todosos países que formam o mercado comum. Para entender esteprocesso, retorne-se novamente no tempo.

Até a Segunda Grande Guerra, o espírito de integraçãoeconômica e união política que viceja hoje na Europa erasimplesmente impensável. Além de viverem em constanteestado de beligerância, competindo por colôniasfornecedoras de matéria-prima e consumidoras de produtosindustrializados, os principais povos europeus procuravamdistanciar-se uns dos outros no plano cultural, marcando ouacentuando características que reivindicavam como únicas.As leis e a doutrina jurídica de direito privado, nessecontexto, serviam de campo fértil para as manifestações de

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afirmação nacional. O Código Civil alemão, que entrou emvigor em 1900, revestiu-se de uma estrutura peculiar,notavelmente diversa da do monumental Código Napoleão,de 1804. Naquele, ademais, um dos conceitos nucleares é ode “negócio jurídico” (Rechtsgeschäft), cuja diferença emrelação ao de “ato jurídico” (acte juridique), construído peladoutrina francesa, é de extrema sutileza (Cap. 10, item 3) e, naminha opinião, não vale os extraordinários esforços teóricosque têm consumido inacreditável quantidade de tempo epapel. Não se trata, como querem alguns autores, de noçõescientificamente evoluídas uma da outra, mas apenas dediferentes modos de cuidar do mesmo assunto, dandoênfase a aspectos distintos (para uma visão no sentidooposto: Gomes, 1967:49/67). A Itália daquele tempo tambémbuscou na lei e na teoria jurídica de direito privadoelementos de afirmação da nacionalidade, em contraposiçãoaos demais povos de grande presença econômica e culturalda Europa. Assim, ao reformular seu Código Civil em plenaguerra, em 1942, produziu um diploma que procurou afastar-se tanto da estrutura francesa quanto da alemã e que, paraisso, apresentava como particular inovação a disciplina dematérias até então afetas, na cultura jurídica do continente,ao direito comercial, e tratadas em código próprio. A teoriada empresa concebida e desenvolvida por autores italianosdo fim do século XIX e início do XX também é apresentada,muitas vezes, como evolução da teoria dos atos de comércio

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do direito francês. A nacionalidade, principalmente nospaíses europeus de unificação tardia (Alemanha e Itália),enxergou na formulação de novos conceitos e abordagensdos temas de direito privado um importantíssimoinstrumento de afirmação.

Os tempos de agora são outros. França, Alemanha eItália não competem mais por colônias. Ao contrário, sãonações envolvidas num extraordinário esforço de integraçãoeconômica que tende a conduzir toda a Europa, em poucasdécadas, a ensaios de unificação política. A globalização —como visto, um processo irrefreável — tem na experiênciaeuropeia o modelo de superação das fronteiras nacionais aser provavelmente seguido em todo o mundo. Em 1995,quando entrou em vigor o Tratado da OHADA(Organisation pour l’Harmonisation en Afrique du Droitdes Affaires — Organização pela Harmonização na África doDireito dos Negócios), dezesseis países da África Central decolonização influenciada pela França (Benim, Burkina Fasso,Camarões, República Centro-Africana, Comoro, Congo,Costa do Marfim, Gabão, Chade, Guiné, Guiné-Bissau, GuinéEquatorial, Mali, Níger, Senegal e Togo) deram início aoprocesso de convergência de seus direitos das obrigaçõescomerciais (Martor-Pilkington-Sellers-Thouvenot, 2002). Umprocesso sem dúvida lento e altamente complexo, masindispensável à integração econômica. A harmonização dodireito levada a efeito pela OHADA tem alcançado

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resultados reconhecidos no mundo todo.O direito das obrigações deve necessariamente passar

por mudanças no processo de formação do mercado comumporque, como dito, possui muitas normas de direito-custo.Se dois países desejam integrar-se economicamente,formando um mercado comum, os empresários com sede emcada um deles devem enfrentar, no outro país, as mesmascondições de concorrência que encontra no seu. Se numdesses países vigorar norma que imputa aos empresáriosmaiores responsabilidades do que no outro, haverádesequilíbrio entre as condições de competitividade. A regrajurídica que agrava a responsabilidade do empresáriorepresenta uma vantagem competitiva para os que nele estãosediados e uma desvantagem competitiva para osestrangeiros. A harmonização do direito-custo visa eliminarvantagens e desvantagens dessa natureza, de modo quetodos possam competir em igualdade de condições nospaíses integrantes do mercado comum.

Em razão do processo deglobalização necessário aocapitalismo como meio de ampliação

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dos mercados, o direito dasobrigações, nas partes em querepercute na formação dos preços deprodutos e serviços (responsabilidadepor acidente de consumo erepercussões da inexecução doscontratos), deve ser e tem sidoharmonizado, com o objetivo deeliminar vantagens e desvantagenscompetitivas.

Neste sentido, no da eliminação das diferenças noâmbito do direito das obrigações, é que deve serconsiderada, por exemplo, a profunda mudança por quepassou o Código Civil alemão em 2002 (ano em que a reformaentrou em vigor). Alguns exemplos servem para demonstrá-lo. Antes, cuidava a lei alemã de nada menos que quatrodiferentes hipóteses de inexecução involuntária porimpossibilidade da prestação (subjetiva ou objetiva, por

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causa concomitante ou posterior); a partir da reforma, cuida-se do assunto de forma unitária, como nos demais direitosde tradição românica, atribuindo-se as mesmasconsequências jurídicas a qualquer caso de inexecuçãoinvoluntária. De outro lado, embora não tenha chegado aoponto de incorporar a “cláusula resolutiva tácita” origináriado direito francês, a reforma simplificou consideravelmenteas formalidades exigidas na resolução dos contratos porinadimplemento (Ranieri, 2002). Aperfeiçoou-se, ademais, adisciplina das cláusulas gerais de negócio (AllgemeineGeschäftsbedingungen) para, por exemplo, invalidarrestrições ou exoneração de responsabilidade do vendedorem caso de reserva mental dolosa (arglistiges Verschweigendes Mangels) (Bauerreis, 2002) e reviu-se a disciplina docontrato de empreitada, instituto contratual que, no direitoalemão, tem sentido muito abrangente (alcança, p. ex., o quechamamos, no Brasil, de contrato de prestação de serviços)(Heseler, 2002).

É certo que o Código Civil alemão continua empregandouma quase impenetrável linguagem hermética (diz-se que elecontinua a ser uma lei feita por professores universitáriospara professores universitários) e conserva a originalestrutura dada pela formulação pandectista (parte geral eespecial). São elementos que o individualizam, sob o pontode vista da cultura jurídica, e cuja conservação não prejudicaa integração econômica. É a saudável e esperançosa

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manifestação de que há espaço, na globalização, para ocultivo da diversidade cultural (Witz, 2002). Por outro lado,as mudanças que não eliminaram diferenças relativamente aodireito das obrigações francês — como na disciplina daprescrição, por exemplo — restringiram-se a temas que nãose expressam por normas de direito-custo e, portanto, nãorepercutem nas condições de competição (Bauerreis, 2002).

Os campos do direito das obrigações mais sensíveis aoprocesso de integração econômica são os daresponsabilidade civil (principalmente por acidentes deconsumo) e da inexecução dos contratos (voluntária ouinvoluntária). Conforme as regras vigentes sobre estasmatérias, vantagens e desvantagens competitivas seestabelecem, travando o desenvolvimento do processointegrativo. Isso porque os empresários, ao comporem ospreços dos produtos ou serviços que oferecem ao mercado,embutem, com o objetivo de preservar suas margens delucro, taxas de riscos maiores ou menores em função dasresponsabilidades que lhes possam ser atribuídas, ou dasconsequências da inadimplência ou insolvência do devedorou mesmo da frustração de faturamento por impossibilidadeda prestação. Maiores responsabilidades ou riscosimputados aos empresários implicam maiores preços aoconsumidor: não há como fugir desta relação semdesestimular a iniciativa privada. O direito a aplicar, por isso,deve ser o mesmo em todo o mercado comum, sempre que

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puder influir a composição dos preços dos produtos ouserviços. E é este o caso das áreas sensíveis do direito dasobrigações a que me referi.

Neste contexto, vale a pena referência à condenação daFrança, em abril de 2002, por má transposição ao seu direitointerno da Diretiva sobre responsabilidade por acidente deconsumo (“fato do produto”). A Corte de Justiça daComunidade Europeia considerou que a norma internafrancesa continha disposições que favoreciam osconsumidores mais do que o estabelecido como padrão paraos países da C.E. E isso criava uma vantagem competitivapara os empresários estabelecidos em França (Canivet,2003:13). Aparentemente, parece um paradoxo. Não é, porém.O empresário alemão, por exemplo, ao vender seus produtosno mercado francês ficaria sujeito a condições maisgravosas do que as vigentes em seu país. Teria maisdificuldade, portanto, de competir pelo consumidor francês.O empresário francês, por sua vez, ao vender suasmercadorias na Alemanha estaria sujeito a regras deresponsabilização menos gravosas do que as adotadas emFrança e teria, desse modo, mais facilidade para competirpelo consumidor alemão. Assim, embora a lei internafrancesa sobre responsabilidade por acidente de consumoprotegesse mais o consumidor do que a vigente nos outrospaíses da C.E., ela é condenável por sua incompatibilidadecom o objetivo do processo de integração econômica, isto é,

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com a incontornável necessidade do sistema capitalista deconstantemente ampliar os mercados.

Quanto ao Brasil, quando os processos de integraçãoeconômica em que se encontra envolvido (MERCOSUL eALCA) deslancharem, certamente teremos que negociar comnossos parceiros a harmonização do direito das obrigações,nos assuntos em que repercute na formação dos preços deprodutos ou serviços.

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Capítulo 20

ATOSUNILATERAIS

1. NEGÓCIOS JURÍDICOS UNILATERAISAs declarações unilaterais de vontade de um sujeito de

direito, na expressiva maioria das vezes, é fato irrelevantepara o direito das obrigações. Se a pessoa manifesta sozinhaa vontade de se tornar credora ou devedora de alguém, istonão costuma ser suficiente para vinculá-la ativa oupassivamente. Quando tem por causa a vontade dos sujeitosde direito, o vínculo obrigacional, para se constituir,depende, em geral, da convergência de declarações de todasas partes. Falo dos contratos, que sempre pressupõem oencontro de vontades dos sujeitos contratantes — mesmoque o vínculo dele nascido importe a constituição deobrigações para somente um deles. Se a Antonio interessa

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um bem ou serviço de Benedito, uma declaração unilateralde vontade dele não costuma bastar para satisfazer seuinteresse. Em geral, para Antonio ter o que quer, precisarácontar com a convergente declaração de vontade deBenedito.

Há, contudo, algumas poucas hipóteses em que aconstituição da obrigação deriva de declaração de vontadede uma das partes apenas, ou seja, de negócio jurídicounilateral. Nelas, basta que um sujeito de direito manifestedeterminada vontade para que surja a obrigação,vinculando-o ativa ou passivamente a outrem.

Essas hipóteses têm despertado, para a tecnologiacivilista, algumas dificuldades na classificação dasobrigações. Doutrinadores de todo o mundo contornamessas dificuldades estudando-as em separado, sempreocupação com a construção de conceitos de maioramplitude em que se pudessem incluí-las. Exceção seencontra no direito francês. Lá, ao lado da maneiratradicional de tratar a matéria, que faz eco a lições do direitoromano e costuma classificar algumas dessas hipótesescomo “quase contratos” (Hubrecht-Vermelle, 1947:151/152),encontram-se também tentativas de agrupá-las de mododiverso, como, por exemplo, a que toma por referência o“enriquecimento injusto externo aos contratos”, vale dizer, atransmissão ilegítima de bem ou bens do patrimônio de umsujeito para o de outro (Voirin-Goubeaux, 1999:423/433). A

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significativa dificuldade de classificar as obrigaçõesderivadas de negócios unilaterais é, de qualquer modo,anotada pela doutrina francesa (Mazeaud-Chabas, 1998:836).

Voltando-se os olhos para o direito positivo, nota-seque os códigos dos países de tradição românica costumamevitar menções a categorias, ao disporem sobre o assunto.Mesmo quando disciplinam os negócios jurídicos unilateraisem dispositivos próximos, como é o caso da codificaçãoitaliana, não os reúnem sob qualquer designação genérica. OCódigo Civil brasileiro — neste particular afastando-se dosdiplomas que influenciaram sua estrutura (os Códigosalemão e italiano) — reúne tais obrigações a partir doconceito de “atos unilaterais” (Título VII do Livro I da ParteEspecial: arts. 854 a 886). Não prevê, contudo, como seria dese esperar dum esforço de sistematização, nenhuma normaintrodutória ou geral aplicável a todas as obrigaçõescolecionadas sob a rubrica — e isto é mais um sinal dadificuldade em que bate o tema. A solução do legisladorbrasileiro, embora criticável (Noronha, 2003:403), serve,porém, como ponto de partida para a análise dessasobrigações.

São quatro os atos unilaterais de direito civil: promessade recompensa, gestão de negócios, pagamento indevido eenriquecimento sem causa.

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Obrigações podem ser geradas pornegócio jurídico unilateral. São civisquatro destas obrigações: promessa derecompensa, gestão de negócios,pagamento indevido e enriquecimentosem causa. A primeira é auto-obrigação(quem declara se vincula comodevedor), enquanto as duas seguintes,alter-obrigações (quem declaravincula-se como credor) e a última,daquela ou desta espécie.

As obrigações decorrentes de negócios jurídicosunilaterais dividem-se em duas classes: a das auto-obrigações e a das alter-obrigações. Na primeira, o sujeitode direito que faz a declaração unilateral de vontade obriga asi próprio. No campo das obrigações civis, inclui-se nestaclasse a promessa de recompensa. Quem promete arecompensa auto-obriga-se a pagá-la a quem cumprir as

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condições ou prestar os serviços indicados na promessa. Adeclaração do promitente gera sua obrigação passiva. Emoutros campos jurídicos estudam-se as demais auto-obrigações, como a vinculação da oferta do fornecedor aomercado de consumo (tratada no direito do consumidor) ouas obrigações cambiais (no direito comercial).

Por sua vez, na classe das alter-obrigações, quem faz adeclaração unilateral de vontade não se obriga, mas aoutrem. São duas as obrigações civis, em que a declaraçãode vontade de um sujeito curiosamente obriga outro a pagar-lhe algo: gestão de negócios e pagamento indevido. Assim,os atos praticados pelo gestor perante terceiros, sepresentes os requisitos legais, obrigam o dono do negócio;além disso, se alguém paga a quem não tem direito aocrédito, o negócio jurídico praticado pelo solvens gera paraquem recebeu indevidamente a obrigação de restituir oindébito. Também fora do direito civil, estudam-se algumasalter-obrigações. É o caso do exercício do direito de retiradapor acionistas ou quotistas, objeto de estudo do direitocomercial. Ao exercer esse direito nas hipóteses autorizadaspor lei, o sócio, com sua declaração unilateral de vontade,gera para a sociedade três obrigações: calcular o valor daparticipação que ele titulariza, reembolsar-lhe esse valor eformalizar o desligamento pelo ato societário adequado.

Finalmente, o enriquecimento sem causa pode consistirnuma auto-obrigação ou alter-obrigação. Em geral, quem se

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enriquece indevidamente torna-se obrigado a compensar oprejudicado em razão dos negócios jurídicos que praticou.Há, contudo, situações em que a declaração do empobrecidoorigina não só a ilegítima transmissão de bens, serviços ouvalores, como também a obrigação de o enriquecido restituiro indevidamente transmitido ou compensar o prejuízo. É ocaso do professor particular que, anos a fio, leciona semreceber honorários. É dele, portanto, o ato negocial que deuensejo não só ao enriquecimento indevido do pupilo, comode sua obrigação de indenizá-lo.

Em suma, a declaração negocial exclusiva de uma daspartes pode implicar sua vinculação a obrigação ativa oupassiva, isto é, à titularidade de crédito ou de débito.

2. PROMESSA DE RECOMPENSAPor vezes, sujeitos de direitos anunciam a disposição de

recompensarem quem preencha determinada condição oufaça algo. É comum, por exemplo, donos de animais deestimação perdidos valerem-se de faixas ou cartazes,afixados proximamente aos locais em que se perderam osbichinhos, para divulgar que pagarão por informações queos levem ao encontro deles. Também o é empresaspromoverem concursos artísticos, prometendo dar aosescolhidos (pelo público ou por uma equipe deespecialistas) um troféu ou eventualmente patrocínio edinheiro. São exemplos de negócios jurídicos unilaterais

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chamados de promessa de recompensa.O sujeito que faz a promessa de recompensa é

denominado “promitente”. Ele se vincula aos termos de suadeclaração de modo a tornar-se devedor de tantos quantospreencham as condições que estabeleceu ou prestem oserviço que deseja (CC, art. 854). Em decorrência, quem querque as tenha atendido ou feito o serviço tem direito decrédito perante o promitente e pode exigir o cumprimento dapromessa — quer dizer, a recompensa —, inclusive em juízo.São irrelevantes as razões que motivaram o credor; aindaque tenha atendido às condições da promessa ou prestado oserviço exclusivamente por interesse em receber arecompensa, o promitente está obrigado ao prometido (CC,art. 855).

Pode-se prometer recompensa em função de qualquerato, fato, coisa, fazer ou condição, segundo a exclusivavontade do sujeito que promete. O objeto a recompensarpode ser uma obra (literária, musical, artística, jurídica etc.),descoberta (arqueológica, científica etc.), informação(paradeiro de pessoa ou animal), prestação de serviços(concurso de arquitetos), um mero fazer (ato caritativo) ouqualquer bem, conduta ou valor do interesse, mediato ouimediato, do promitente. Exige-se apenas que o objeto sejalícito. Prometer recompensar crime ou ato ilícito civil ouadministrativo é negócio jurídico nulo: não obriga opromitente nem beneficia quem atender à promessa (CC, art.

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166, II).

Quem declara publicamente querecompensará o atendimento a certascondições ou determinada prestaçãode serviços tornar-se-á devedor detantos quantos as atendam ou osprestem.

A promessa admite qualquer forma, escrita ou não.Como referido no início, faixas espalhadas em locaispúblicos veiculam validamente promessas de recompensar.“Edital” é o nome que se costuma dar ao instrumento escritoem que se fixam as condições da promessa. Ele deve ter apublicidade que o promitente considerar suficiente aosobjetivos de seu ato. Se está procurando pessoa que viupela última vez numa certa cidade do interior de MinasGerais, pode mandar distribuir panfletos apenas lá. Se querpromover concurso nacional de premiação de talentos, devevaler-se de anúncios na imprensa escrita ou televisão. O

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alcance da divulgação que o promitente dá à sua promessa éirrelevante para fins de constituição da obrigação. Mesmona hipótese de ter sido divulgado o edital apenas entrealguns poucos conhecidos, obriga-se o promitente se seapresentar alguém que atendeu às condições estabelecidasou fez os serviços referidos. Ao contrário do que costumaensinar a tecnologia civilista (cf., por todos, Gomes,1961:243), a publicidade do anúncio não é condição devalidade da promessa de recompensa, mas apenas de suaeficácia.

Eventuais omissões do edital serão supridasexclusivamente pela vontade do promitente. Como se tratade negócio unilateral, os destinatários da promessa,incluindo os que já se tenham empenhado no preenchimentodas condições para recebimento da recompensa ou naprestação do serviço, e mesmo os credores, isto é, os que jálograram alcançar o objeto, não participam do ato. Se opromitente se esquecera de especificar o local deapresentação dos interessados ou redigira cláusula sobredeterminada condição de modo obscuro, por exemplo,somente a sua vontade é eficaz na definição faltante ou noaclaramento dos termos da promessa. Qualquer lacuna nadeclaração que deu origem à promessa de recompensa será,portanto, suprida exclusivamente pelo mesmo sujeito dedireito que a fez (o promitente) ou por quem ele nomear. Noseditais dos concursos privados, aliás, é comum prever

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cláusula sobre colmatação de lacunas atribuindo o poderpara fazê-la aos mesmos julgadores das obras ou trabalhosconcorrentes (algo como “os casos omissos serão decididospelos jurados”).

Somente em uma hipótese deve-se admitir a interferênciado Judiciário na revisão do conteúdo da promessa derecompensa: a de omissões no edital indevidamentesupridas pelo promitente. Como dito acima, as lacunas doedital são colmatadas pela vontade de quem fez a promessa.Não pode ele, porém, exercer abusivamente seu direito. Se,ao definir as matérias anteriormente omissas, o promitentefrustrar legítimas expectativas dos destinatários quepreencheram as condições ou prestaram os serviços, o juizpode alterar a declaração do devedor. Se, por exemplo, apromessa não quantificava a recompensa oferecida (o editalusa expressões como “gratifica-se bem” ou algosemelhante), uma vez preenchida a condição ou prestado oserviço por um dos destinatários, o promitente não podepretender pagar-lhe valor irrisório relativamente ao proveitoque teve. Se o fizer, cabe ao juiz aumentar o valor devido(Monteiro, 2001, 5:393).

A promessa de recompensa pode ser feita com ou semprazo determinado. No primeiro caso, o promitente ficavinculado aos termos da promessa enquanto não se der otermo que fixou. Ela é, então, irrevogável. Diz a lei que, aofixar o prazo, o promitente renuncia ao direito de retirar a

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oferta durante seu transcurso (CC, art. 856, in fine). Osdestinatários do edital que se interessarem pela recompensaprometida com prazo têm assegurado, assim, que, vindo acumprir as condições ou a prestar os serviços no tempoassinalado, tornar-se-ão credores do promitente. Nosconcursos, a promessa de recompensa deve serobrigatoriamente feita com prazo, sob pena de nulidade (CC,art. 859, caput).

Já no caso da promessa sem prazo, o promitente poderevogá-la, desde que dê à declaração revogatória a mesmapublicidade do edital. Para ser revogável, portanto, apromessa não pode ser feita com prazo (CC, art. 856, primeiraparte). Em sendo a promessa revogada, a lei assegura aoscandidatos de boa-fé que tiverem feito despesas com oobjetivo de ganhar a recompensa o direito de seremreembolsados. Note-se que os candidatos não podempleitear indenização por perdas e danos, na medida em que opromitente não incorreu em nenhuma ilegalidade ao revogara promessa. A lei reconhece-lhes apenas o direito aoreembolso das despesas, sem os consectários doinadimplemento (a menos, claro está, que a execução daobrigação de reembolsar tenha que ser judicial, por não a tero promitente cumprido espontaneamente).

Se o objeto pretendido pelo promitente foi realizável pormais de uma pessoa, a primeira que a executar será a titulardo crédito (CC, art. 857). Veja que o credor não será

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necessariamente o primeiro a apresentar-se ao promitentepleiteando a recompensa, mas sim quem tiver atendido àscondições da promessa em primeiro lugar. Se,posteriormente ao pagamento em favor do primeirocandidato a se apresentar, restar provado que era outro otitular do crédito, terá este direito à recompensa e seráaquele obrigado a restituir o indébito. Quando forsimultâneo o atendimento às condições do edital, oscandidatos dividirão a recompensa, se for ela divisível; casocontrário, proceder-se-á a sorteio, obrigando-se o sorteado apagar ao outro (ou outros) a quota-parte correspondente(CC, art. 858). Registro que têm essas normas naturezaclaramente supletiva. Se o promitente estabelecer, no editalou noutro instrumento da promessa, que a recompensa serádada ao primeiro candidato que se apresentar, ainda que nãotenha sido ele o primeiro a executar, ou qualquer outrasolução para a hipótese de simultaneidade na execução,prevalecerá sua vontade em detrimento dos preceitos da lei.

Os destinatários da promessa de recompensa sãointeiramente livres para concorrer ou não ao edital. Por isso,como ninguém está obrigado a atender à promessa,considera-se que quem se interessa por fazê-la adereintegralmente aos termos unilaterais do promitente. Aceita,sem possibilidade de reservas, todas as condiçõesestabelecidas unilateralmente pelo promitente para tornar-sedevedor. A necessária adesão dos candidatos à recompensa

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aos termos da promessa é particularmente importante nodeslinde de certas questões relacionadas a dois tipos destenegócio unilateral: os concursos de mérito (item 2.1) e ospromocionais (item 2.2).

2.1. Concursos de méritoSempre que um sujeito de direito privado dispõe-se a

premiar alguém em função do mérito de seu trabalho,convocando os interessados a se submeterem a julgamento,realiza o negócio jurídico unilateral de promessa derecompensa. São exemplos destes concursos: Prêmio TIMde música, Bolsa Vitae, Prêmio Eldorado para jovensinstrumentistas e outros.

Em princípio, o promitente é inteiramente livre para fixaras condições para a constituição de sua obrigação. Tendopor fundamento a unilateral manifestação de vontade dopromitente, a promessa de recompensa reflete os interessesdele. Se uma fundação quiser, por exemplo, premiar jovenscientistas com o objetivo de incentivar a ciência brasileira,ela pode definir, por exemplo, que só especialistas comdeterminada formação superior, com menos de certa idade enascidos no Brasil estão aptos a se habilitar. Mas, emboraseja negócio jurídico privado, e, portanto, informado peloprincípio da autonomia da vontade, a promessa derecompensa não pode estar condicionada a critérios dehabilitação preconceituosos ou discriminatórios. Não são

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admissíveis condições de habilitação que discriminem oscandidatos em função de raça, credo, sexo ou outrasdiferenças que importem barreiras jurídicas ou socialmentereprováveis. Se a mesma fundação inserir, por hipótese,entre as condições do prêmio ser o cientista do sexomasculino ou ressalvar sua obrigação perante candidatos deascendência árabe, a condição discriminatória é ineficaz.Note-se que a discriminação, embora ineficaz, não invalida apromessa. Quer dizer, o promitente continua obrigado aoprometido, desconsiderada apenas a preconceituosarestrição.

Mas se há essa limitação à vontade do promitente noque diz respeito aos critérios de habilitação dos candidatos,não existem restrições ou interferências quanto aojulgamento do mérito dos trabalhos. O promitente — ou ojulgador ou julgadores por ele nomeados — tem totalliberdade para escolher o candidato a quem será dada arecompensa.

Em geral, o exame do atendimento a todas as condiçõesdo edital é objetivo. Se a promessa é de recompensarprestação de serviços, informação, conduta, sorte ouqualquer objeto não criativo, a constituição da obrigaçãonão pode ficar sujeita à livre apreciação do promitente. Quematende à condição ou presta o serviço é credor, e istodecorre de verificação objetiva dos termos da promessafeita. Quando, porém, se trata de concurso de mérito

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destinado a recompensar criação intelectual, como obra dearte, invenção ou talento artístico, o exame do atendimentodas condições de mérito será inevitavelmente subjetivo. Adiferença é relevante, na medida em que somente no primeirocaso pode o juiz interferir na individuação do credor darecompensa. Imagine que o promitente se propôs arecompensar quem lhe trouxesse informações fidedignas doparadeiro de certa pessoa ou animal. Se alguém lhe forneceinformação, o atendimento às condições do edital seráaferido de modo objetivo. Caso o promitente não lhe pague arecompensa, a pretexto de não terem sido úteis asinformações prestadas, o Judiciário pode ser acionado paraexaminá-las e decidir se o candidato tem o crédito ou não.Mas, se a promessa de recompensa tem por objeto a melhorobra ficcional brasileira do ano, a escolha cabeexclusivamente à pessoa ou pessoas designadas pelopromitente para julgar o mérito dos trabalhos concorrentes.A decisão desses julgadores obriga os interessados e nãopode ser revista em juízo quanto ao mérito. Quer dizer,embora o juiz possa invalidar decisões adotadas em afrontaà lei (que inabilitou obra por força de discriminação sexual, p.ex.), ele não pode premiar trabalho diverso simplesmenteporque o considera de melhor qualidade literária que o eleitopelos julgadores nomeados pelo promitente (ou, na faltadeles, por este mesmo). Apenas o promitente ou osjulgadores por ele nomeados, ademais, podem determinar a

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repartição da recompensa na hipótese de empate, já quesomente eles têm poder para considerar que dois ou maistrabalhos possuem iguais méritos (CC, art. 859, §§ 1º a 3º).

Os concursos são uma espécie depromessa de recompensa. Para seremválidos, devem ser estabelecidos comprazo, o que os torna irrevogáveis.Além disso, quando tiverem por objetopremiar obra de criação intelectual, aescolha do credor entre os candidatoscabe apenas ao julgador ou julgadoresnomeados pelo promitente (e, na faltadeles, a este mesmo). A avaliação domérito dos trabalhos concorrentes ésubjetiva e insuscetível de revisãojudicial.

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Outra especificidade dos concursos de mérito dizrespeito à titularidade do direito do autor dos trabalhosvencedores. A regra é de que “as obras premiadas só ficarãopertencendo ao promitente se assim for estipulado napublicação da promessa” (CC, art. 860). Desse modo, emprincípio, o candidato vencedor continua titularizando osdireitos de autor, a menos que o edital do concursocontemple cláusula em sentido diverso.

Quando o edital do concurso estabelece a transferênciada titularidade da obra premiada para o promitente não énecessária nenhuma específica declaração de vontade doseu autor neste sentido, para que a transferência se opere. Osimples ato de participar do certame significa a adesãointegral do autor à condição. Com ênfase, qualquer um quese inscreva no concurso manifesta a concordância emcumprir por completo as condições do edital, entre as quais,se houver, a transmissão dos direitos referida, até mesmopara ter acesso à prometida recompensa. Considera-se que,senhor pleno de seus interesses, qualquer candidato inscritono concurso deu por equilibrada a troca: atender todas ascondições do edital para, em contrapartida, eventualmentereceber a recompensa. Se reputa excessivo o atendimento aqualquer das condições impostas pelo promitente quandocomparadas ao prêmio oferecido, o destinatário do edital

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simplesmente não deve participar do concurso.

2.2. Concursos promocionaisUma das formas de os empresários promoverem seus

produtos ou serviços, com o objetivo de estimular seuconsumo e vender mais, consiste na realização deconcursos. São conhecidíssimos os instrumentos: vales-brindes do tipo “achou, ganhou”, coleção de um númeromínimo de embalagens (ou de parte delas), sorteio emprogramas de televisão etc. Estes concursos promocionaissó podem ser organizados mediante prévia autorização dogoverno (Lei n. 5.768/71, art. 1º). O ato administrativoautorizador, contudo, visa instrumentalizar o controle daadequada arrecadação dos tributos e não interfere nasrelações entre o empresário que promove o concurso e osparticipantes. Esta relação é regida pelas normas gerais dodireito do consumidor e, em vista da falta de preceitosespecíficos no CDC, pela disciplina da promessa derecompensa do Código Civil.

Convém, de início, assentar que os consumidores nãosão inteiramente livres para contratar a aquisição dos bensou serviços de que necessitam. A necessidade constrange aliberdade e os força a praticar atos de consumoindependentemente de sua vontade. Além disso, encontram-se em situação de vulnerabilidade perante os empresáriosfornecedores, porque não têm todas as informações sobre

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os produtos ou serviços oferecidos no mercado. Em funçãodestas peculiaridades e com o objetivo de proteger osconsumidores, a lei estabelece um regime próprio dedisciplina dos contratos de consumo (Coelho, 1998,3:164/212).

Pois bem, esse regime de disciplina dos contratos deconsumo não se aplica aos concursos promocionais, tendoem vista que a promessa de recompensa é negócio unilateral,não contratual. Quer dizer, entre os candidatos e opromitente não se estabelece vínculo de contrato. A comprado produto ou do serviço é, sem dúvida, um contrato deconsumo, mas a inscrição no concurso promocionalestabelece entre o fornecedor promitente e o consumidorparticipante uma relação de natureza diversa. Trata-se, emsuma, de um vínculo não contratual (eventualmente atémesmo não obrigacional, já que apenas os sorteados serãocredores da prestação prometida pelo fornecedor).

Desse modo, descabe revisão judicial das condições dapromessa, com o objetivo de ampliar as obrigações dopromitente ou os direitos de potenciais interessados. Éimportante ter presente as diferenças entre a obrigaçãonegocial contratual e a não contratual. Quando o empresáriorealiza concurso aberto aos consumidores de seu produto,com o objetivo de ampliar vendas, entre os interessados emparticipar do certame e ele não há contrato de adesão cujascláusulas possam ser revistas judicialmente na hipótese de

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abusividade, lesão ou qualquer outro tipo de desrespeito aoregime dos contratos de consumo. As obrigações dofornecedor perante os vencedores do concurso decorrem denegócio jurídico unilateral e, portanto, não se sujeitam àtutela contratual dos consumidores.

Concursos promocionais sãopromessas de recompensa regidas peloCódigo Civil, tendo em vista ainexistência de normas sobre este tipode obrigações não negociais noCódigo de Defesa do Consumidor.

Ao aderir à promessa de recompensa, o consumidormanifesta sua integral concordância relativamente àscondições unilaterais impostas pelo fornecedor. Tem,lembre-se, total liberdade para participar ou não doconcurso, diferentemente da contratação de bens ouserviços de consumo, que, na maioria das vezes, constrangeos consumidores. Não havendo contrato de adesão, ao juiz

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não será possível alterar as condições da promessa, apretexto de coibir eventuais desequilíbrios entre oatendimento a elas e o prometido. Além disso, não existindona legislação específica (o CDC) nenhuma norma a respeitoda matéria, aplicam-se as do direito civil. Em conclusão, oempresário é livre para estabelecer as condições queentende de seu interesse nos concursos promocionais, e oconsumidor é livre para aderir a elas ou não.

3. GESTÃO DE NEGÓCIOSNormalmente, uma pessoa só pratica atos em nome de

outra quando se encontra investida de poderes derepresentação, como no caso do mandatário (Cap. 10, item6). Se determinado negócio jurídico interessa a alguém, quese encontra impossibilitado, por qualquer razão, de praticá-lodiretamente, ele pode encarregá-lo a pessoa de suaconfiança. Imagine que Carlos deseja adquirir imóvel numlocal distante de sua residência e não está em condições deviajar para negociar diretamente a aquisição (não interessamos motivos que o prendem onde se encontra). Ele pode,então, nomear Darcy como seu representante, outorgando-lhe mandato para agir em nome dele. Todos os atos queDarcy praticar representando Carlos são, na verdade,praticados por este. O devedor da obrigação de pagar opreço e credor da de receber o imóvel é sempre Carlos(mandante), e não Darcy (mandatário). O representado

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vincula-se aos atos praticados em seu nome pelorepresentante porque assim o quis (sua vontade nestesentido se expressou na outorga do mandato) ou porque alei o determinou (como no caso de incapacidade absoluta).

Como dito, em geral, só se praticam atos em nome deoutrem sendo representante do dono do negócio. Há,contudo, alguns atos praticados por quem não é orepresentante contratual ou legal do sujeito interessado, masque acabam importando sua vinculação perante terceiros.Trata-se da gestão de negócios — figura jurídicaclassificada, na lei brasileira, entre os atos unilaterais. Nela,uma pessoa (gestor do negócio) pratica atos em nome e porconta de outra (dono do negócio), vinculando-a, sem serrepresentante contratual ou legal dela.

Em princípio, intervir em negócio alheio sem estar paratanto especificamente legitimado, por lei ou contrato, pareceaté mesmo injurídico. Mas como a gestão de negóciosapenas vincula o dono em atenção aos seus interesses, nãose questiona a pertinência do instituto (Fernandes, 2001,2:205). Assim, imagine que Evaristo saiba do interesse deFabrício, colecionador de carros antigos, de adquirir parasua coleção um Ford modelo T (o famoso Ford Bigode).Considere, então, que Evaristo, passeando por uma feira deveículos, encontra Germano oferecendo à venda umcobiçadíssimo carro deste modelo, do ano em que se iniciousua produção, 1903. Malgrado as tentativas, não consegue

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avisar por telefone celular o amigo, mas nota o interesse nonegócio por alguns outros circunstantes. Não há tempo aperder e Evaristo, então, compra o Ford Bigode de Germanoem atenção exclusivamente do interesse de Fabrício.Verificou-se gestão de negócio: Evaristo atuou como gestorde negócio do qual era dono Fabrício; este se obrigouperante Germano em razão dos atos praticados por Evaristo.

Para que o dono do negócio se obrigue peranteterceiros pelos atos do gestor são dois os pressupostos: a)pronta comunicação do gestor; b) utilidade do negócio parao dono ou ratificação dos atos do gestor. Não concorrendoqualquer um deles, o dono do negócio não se torna devedor,e o terceiro com quem tratou o gestor tem direito de créditoapenas perante este último. No exemplo acima, ausentequalquer desses pressupostos, o vínculo obrigacionalderivado da compra e venda do veículo de coleção não seconstituiria unindo Fabrício a Germano, mas sim Evaristo aGermano, aquele na situação de comprador e este, na devendedor.

A gestão de negócios configura-sequando uma pessoa (gestor) praticaatos em nome de outra (dono do

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negócio), mesmo não sendo seurepresentante legal ou contratual.

O gestor deve comunicarimediatamente ao dono a prática deato em seu nome. Revelando-se útil, emtermos objetivos, o negócio ao dono,impõe-se-lhe ratificá-lo, produzindo agestão de negócios, em decorrência, osefeitos de mandato outorgado no diado seu começo. A ratificação tambémnão pode ser negada pelo donoquando, em seu nome, o gestor pagoualimentos.

Mesmo não sendo útil o negócio aodono, a ratificação poderá serconferida, com ou sem ressalvas.

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Comunicação ao dono. Assim que puder, o gestor éobrigado a comunicar ao dono a prática do ato capaz devinculá-lo perante terceiros. Trata-se de providência previstaem lei, indispensável à constituição da obrigação (CC, art.864). Após enviar a comunicação e enquanto aguardaresposta do dono, o gestor tem o dever de administrar onegócio “segundo o interesse e a vontade presumível”daquele (CC, art. 861). Será reembolsado pelo dono portodas as despesas necessárias ou úteis em que incorrer naadministração do negócio, acrescidas de juros legais(Pereira, 1962, 3:379). É do dono, ainda, a responsabilidadepor indenizar o gestor, caso este venha a sofrer qualquerprejuízo em razão da gestão (CC, art. 869, caput, in fine). Poroutro lado, se, neste interregno, o gestor administrar mal onegócio, sem a diligência habitual do administradorcompetente, ficará responsável pelos danos causados aodono (CC, art. 866). No exemplo já mencionado, Evaristo, tãologo consiga comunicar-se com Fabrício, deve informar-lheda aquisição do Ford Bigode. Enquanto se aguarda aresposta de Fabrício, no sentido de confirmar ou não osatos praticados em seu nome, será da responsabilidade deEvaristo a guarda e conservação do veículo. Se, por culpasua, o Ford modelo T adquirido de Germano sofre algumdano, Evaristo deve ressarcir Fabrício.

Em todo o caso, o gestor administra o negócio sempre

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no interesse do dono. Se o preterir em proveito de interessesseus, o gestor responderá por danos derivados inclusive decaso fortuito. Igual imputação prevê a lei se o gestor fizeroperações de grande risco, ainda que o dono as faça comfrequência (CC, art. 868, caput).

Utilidade do negócio. Diz a lei que, “se o negócio forutilmente administrado, cumprirá ao dono as obrigaçõescontraídas em seu nome” (CC, art. 869, caput, primeira parte).A gestão de negócios tem, assim, sempre por objeto algo útilsob a perspectiva do sujeito em nome de quem o gestoragiu. Se o objeto não atende aos interesses do dono, ogestor está, a rigor, administrando negócio próprio. Deve,por isso, o gestor munir-se de razoável certeza quanto àutilidade do negócio para o dono, se não quiser assumir orisco de vir a responder pessoalmente pela obrigação. Autilidade do negócio é mensurada de forma objetiva, emfunção das circunstâncias que o cercam (CC, art. 869, § 1º).Quer dizer, se para qualquer sujeito de direito que seencontrasse hipoteticamente na mesma condição do donodo negócio seria proveitoso realizá-lo, ele é útil.

Se o negócio não for útil ao dono e a gestão lhe trouxer,ademais, prejuízo, o gestor deverá providenciar para que ascoisas retornem ao estado anterior. Caso seja impossível oretorno, ou não o obtendo o gestor, responderá pelaindenização dos prejuízos a que deu causa (CC, art. 863). Atémesmo na hipótese de danos oriundos de caso fortuito

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responde o gestor que iniciou negócio inútil ao dono, amenos que prove que estes teriam se verificado mesmo seele houvesse se omitido (CC, art. 862).

Ratificação do dono. O dono do negócio, prontamenteinformado pelo gestor, deve responder no sentido deconfirmar ou enjeitar os atos praticados em seu nome, paraque se constitua sua obrigação perante terceiros. É aratificação pelo dono do negócio dos atos praticados pelogestor em seu nome um dos pressupostos para obrigar-se.

A ratificação não pode ser negada em duas hipóteses:(i) se o negócio é objetivamente útil ao dono (Gomes,1959:437/438); ou (ii) se diz respeito a alimentos por eledevidos (CC, art. 871). Desse modo, a rigor, o segundopressuposto para a constituição da obrigação emdecorrência de gestão de negócios consiste na alternativaentre a utilidade destes para o dono ou a ratificação. Sendoútil o negócio, a ratificação é obrigatória; sendo ratificadosos atos, não se indaga de sua utilidade. Note-se que os atosrelacionados ao cumprimento de obrigação alimentar dodono pelo gestor são tratados de modo particular pela lei, ematenção aos interesses do alimentado: neste caso de gestão,a utilidade para o dono é presumida em termos absolutos.

De qualquer modo, conferida sem ressalvas aratificação, retroagem seus efeitos ao dia do começo dagestão. Todos os atos do gestor legitimam-se com aratificação, mesmo os anteriormente praticados.

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Quando a ratificação pode ser negada, ao dono éfacultado inserir-lhe qualquer ressalva, como airretroatividade dos efeitos, limitação da extensão dosnegócios, insubsistência de determinada garantia etc. Osefeitos da ratificação com ressalva projetam-se nos termosnela indicados. Quer dizer, as ressalvas têm o efeito delimitar as responsabilidades do dono e, consequentemente,ampliar as do gestor quanto à administração do negócio noperíodo antecedente à ratificação.

Prevê a lei que o ato de confirmação pura e simplesprojeta os efeitos próprios do contrato de mandato (CC, art.873). Conferida sem ressalvas, a ratificação da gestão denegócios importa as mesmas consequências jurídicas datempestiva outorga de poderes de representação pelo donoem favor do gestor. Veja que não se opera a convolação dagestão em mandato. Simplesmente, a lei imputa à gestão denegócios ratificada sem ressalvas os mesmos efeitos queadviriam da outorga pelo dono de procuração ao gestor nodia em que ela se iniciou.

4. PAGAMENTO INDEVIDOO pagamento indevido é o feito para quem não titulariza

a condição de credor. Do pagamento indevido decorre aobrigação para o accipiens de restituir o que ilegitimamenterecebeu (CC, art. 876). Se Hebe, por equívoco, paga a Ireneos R$ 10.000,00 que devia, na verdade, a João, ela realiza

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pagamento indevido. Do negócio jurídico de Hebe (opagamento) decorre a alter-obrigação para Irene de restituir-lhe aquela quantia.

No plano dos pressupostos subjetivos para aconstituição da obrigação de restituir o indébito, salienta-secaber ao solvens que agiu voluntariamente a prova do erro, eao que agiu involuntariamente, a da coação (CC, art. 877). Noexemplo, se Hebe pretende ter de volta o dinheiro entregue aIrene, deve provar que o fez por erro ou coação, queimaginava, por exemplo, ser Irene procuradora de João (erro)ou que tivera sido forçada a fazer-lhe o pagamento, mesmosabendo não ser ela a real credora (coação).

O pressuposto do erro ou coação deve ser dispensadona hipótese de indevido objetivo, como no caso depagamento de obrigação nula. Se o solvens paga obrigaçãoabsolutamente inválida, o accipiens recebe prestação a quenão tem direito. Caracteriza-se, portanto, o pagamentoindevido. Aqui, não tem importância se o solvensequivocara-se relativamente à validade da obrigação ou sefora forçado a cumpri-la a despeito do vício. Terá direito,mesmo inexistindo erro ou coação, à devolução do queentregou por conta da obrigação insubsistente, apenas emrazão da nulidade (Mazeaud-Chabas, 1998:794). Esta regranão se aplica na hipótese de invalidade por ilicitude doobjeto, conforme se examina mais à frente.

Ainda no plano dos pressupostos subjetivos, ressalte-

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se que, para fins de constituição da obrigação, é, emprincípio, irrelevante se o accipiens recebeu o indébito deboa ou má-fé. Quer dizer, ele terá a obrigação de restituir,ainda que não tenha recebido o pagamento maliciosamente.No exemplo, feita a prova do erro ou da coação por Hebe,Irene torna-se obrigada a devolver-lhe os R$ 10.000,00,mesmo que os tivesse recebido em completa e inegável boa-fé. A boa ou má-fé do accipiens tem relevância apenas nahipótese de perda ou deterioração da coisa por fortuito, ouna definição dos direitos que o repetidor titulariza ou dosconsectários a que fica obrigado. Diz a lei que, “aos frutos,acessões, benfeitorias e deteriorações sobrevindas à coisadada em pagamento indevido, aplica-se o disposto nesteCódigo sobre o possuidor de boa-fé ou de má-fé, conforme ocaso” (CC, art. 878). Desse modo, se o accipiens estava deboa-fé e a coisa se perdeu ou se deteriorou por fortuito, estáliberado da obrigação de restituir (CC, art. 1.217); ainda, serecebera o pagamento de boa-fé e agregou à coisa recebidaalguma benfeitoria necessária ou útil, terá direito àindenização (CC, art. 1.219); se estava de má-fé e a coisa sedeteriorou ou se perdeu por fortuito, responderá pelaindenização dos danos do solvens, salvo provando que adeterioração ou perda teriam acontecido mesmo que ela nãolhe tivesse sido entregue (CC, art. 1.218), e assim por diante.

Em relação aos pressupostos objetivos da constituiçãoda obrigação, vale lembrar, de início, que pagamento é,

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tecnicamente falando, a entrega da prestação ao credor,qualquer que seja sua natureza. Assim, o conceito não serestringe ao cumprimento de obrigação pecuniária. Quemcumpre qualquer obrigação de dar, fazer ou não fazer realizapagamento também; se o fizer com erro ou coação parapessoa diversa do credor, terá direito à restituição. Imagineq u e Hebe devia restituir um bem locado a João, masinadvertidamente entregou-o a Irene, tomando-a porrepresentante do locador. Demonstrando o erro, tem direitode receber de volta o mesmo bem para realizar o pagamentocorretamente, isto é, para restituí-lo a João.

Exige a lei, ademais, o pressuposto da licitude dopagamento indevido. Não tem direito à repetição o solvensque “entregou algo para obter fim ilícito, imoral ou proibidopor lei” (CC, art. 883). Se Luiz havia vendido maconha aMaria, mas acabou entregando a droga a Nair, irmã gêmeada compradora, porque as confundiu, não terá direito àrestituição.

Finalmente, se o pagamento indevido diz respeito aobrigação de fazer ou não fazer, o accipiens deve indenizar osolvens (CC, art. 881). Por evidente, nestes casos não épossível a restituição do indébito, e, por isso, a lei impõeàquele que se locupletou indevidamente o ressarcimentodos prejuízos suportados pelo solvens. Considere queOrlando, segurança particular, havia se comprometido acuidar da casa de Patrícia. Errou, contudo, a localização da

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moradia da contratante dos serviços e acabou zelando pelasegurança de bem imóvel pertencente a Queiroz. Enquantoestava guardando a propriedade, ocorreu uma tentativa defurto que Orlando diligentemente frustrou. O serviço objetode pagamento indevido, claro está, não comporta restituição.Queiroz, porém, é obrigado a indenizar Orlando, na medidado proveito que teve, por lhe terem sido úteis os serviços dosegurança. As consequências do pagamento indevido deobrigação de fazer ou não fazer aproximam-se doenriquecimento sem causa.

O pagamento é indevido quando oaccipiens recebe prestação a que nãotem direito. É o caso, por exemplo, dopagamento em que o solvens errou naidentificação do credor ou solveudívida sujeita a condição, antes deesta ocorrer. Não se consideraindevido, porém, o pagamento feito

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antes de vencer a dívida, depois de elaprescrever ou de obrigação natural.

Considera-se indevido o pagamento de obrigaçãosujeita a condição quando realizado antes de implementadaesta (CC, art. 876). Se a exigibilidade do pagamento dependeda implementação de condição, suspensiva ou resolutiva, oaccipiens, ao recebê-lo antes desta, tem o que não lhe éainda devido — e, talvez, nunca venha a ser, caso acondição não ocorra. Por isso, deve restituir ao solvens oindébito. Em situação diversa encontra-se o credor querecebe a prestação antes do vencimento. Neste caso, não seconsidera indevido o pagamento porque o transcurso dotempo é um fato jurídico irresistível. Se a condição pode ounão se realizar, justificando-se a restituição, o vencimentocertamente se dará no futuro. O devedor que cumpre aobrigação antecipadamente, portanto, não tem direito àrestituição do que pagou.

Por outro lado, não configura pagamento indevido o dedívida prescrita. Se o devedor desatento quanto à fluênciado prazo prescricional entrega ao credor a prestação, nãotem lugar a restituição. Como a extinção do direito (ou dapretensão, se se preferir) em razão do decurso do tempo éprevista pela lei em benefício do devedor, o ato de pagar

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dívida prescrita deve ter os mesmos efeitos de uma renúncia.Igualmente não é indevido o pagamento de obrigaçãonatural. Se o devedor paga dívida que não lhe poderia serjudicialmente exigida, presume-se que o fez por sua livrevontade. Ao seu turno, o credor da obrigação natural temdireito à prestação, embora não a possa exigir em juízo.Quando é pago, portanto, recebe o que lhe é devido (CC, art.882).

5. ENRIQUECIMENTO SEM CAUSAO enriquecimento, em si, nada tem de imoral ou ilegal.

Ao contrário, quando fundado em causa jurídica legítima, ésempre objeto de proteção pelo direito. A vítima de danosmorais, ao ser indenizada, experimenta necessariamente umenriquecimento patrimonial, já que o dinheiro recebido nãorepõe nenhuma perda de bem; destina-se, isto sim, a atenuara dor causada por acidente ou conduta culposa de outrem.Nada há de reprovável nesse enriquecimento, nem noresultante de trabalho honesto e dedicado, de rendimento devalores mobiliários ou investimentos, de prêmios lotéricosetc. A juridicidade da causa torna o enriquecimento digno deamparo da ordem jurídica. De outro lado, a falta defundamento jurídico para a causa do enriquecimento afasta aproteção da lei.

Enriquecimento sem causa é a vantagem patrimonialauferida por um sujeito de direito sem fundamento jurídico.

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O enriquecimento indevido importa a obrigação para osujeito que auferiu a vantagem patrimonial infundada(enriquecido) de compensar o sujeito às custas de quemaumentou seu patrimônio (prejudicado). Na maioria dasvezes, o enriquecimento sem causa faz-se acompanhar doempobrecimento de algum sujeito de direito, mas não é esteum elemento essencial do instituto. A doutrina apontaexemplos em que um sujeito tem vantagem por usar, semrazão jurídica, recursos alheios e que devem ser tratadoscomo enriquecimento sem causa. Veja um deles: se alguémocupa casa de veraneio de outrem sem autorização, sendocerto que o imóvel estaria de qualquer modo vazio naqueleperíodo, dá-se o enriquecimento do ocupante sem oempobrecimento do proprietário (Nanni, 2003:107 e 236).Desse modo, embora na maioria das vezes haja concomitanteenriquecimento de um e empobrecimento de outro sujeito, acorrelação não é indispensável (em sentido contrário, verPereira, 1962, 2:253).

A coibição do enriquecimento sem causa não é umaquestão moral. Ao contrário, ela deve ser feita com vistas àadequada distribuição de riquezas e recursos em sociedade.Note-se que muitas normas legais encontram seufundamento racional último na coibição do enriquecimentosem causa. Por exemplo, o preceito que impõe aoinadimplente a obrigação de pagar correção monetária dovalor devido (CC, art. 389) pode ser, sem dificuldade,

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descrito como modalidade de repressão a enriquecimentosem causa. Se o inadimplente não pagasse a correçãomonetária, em razão da perda do poder aquisitivo da moeda,ele despenderia menos do que teria despendido se tivessesido pontual, e, por sua vez, o credor receberia menos doque teria recebido na hipótese de adimplemento tempestivoda obrigação. O enriquecimento do devedor inadimplente e oempobrecimento do credor derivados da ausência depagamento da correção monetária não teriam causa jurídica.Outro exemplo: a dívida de jogo não pode ser judicialmentecobrada, no direito brasileiro (CC, art. 814, caput, primeiraparte), porque não há causa jurídica para o enriquecimentodo jogador vitorioso e o empobrecimento do perdedor. Amera sorte não é considerada, para o nosso direito,fundamento jurídico suficiente à transferência forçada dovalor em jogo do patrimônio deste para o daquele. Seriaenriquecimento sem causa, portanto, a execução judicialdesse contrato (Sá, 1973:188). Mais um: a lei proíbe que oscontratos que constituam garantia real contemplem cláusulaestabelecendo que o credor se torna proprietário do bemonerado, na hipótese de inadimplemento do devedor. É aproibição do pacto comissório nos contratos que instituempenhor, hipoteca, anticrese (CC, art. 1.428). Considera-se queessa cláusula tem natureza usurária, porque normalmente osbens dados em garantia real de um crédito têm valor superiorao deste. Se do inadimplemento da obrigação garantida

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pudesse decorrer a consolidação da propriedade do credorsobre a coisa onerada, ocorreria inevitável enriquecimentosem causa: o credor estaria adquirindo coisa mais valiosapelo preço do seu crédito.

O sujeito de direito que auferevantagem patrimonial sem razãojurídica obriga-se perante aquele àcusta de quem enriqueceu.Dependendo do caso, deve restituir obem ilegitimamente auferido (CC, art.884), partilhar lucros ou compor osprejuízos que causou.

O objeto da obrigação nascida do enriquecimento semcausa é a composição dos interesses dos envolvidos. Oenriquecido pode ser obrigado a restituir ao prejudicado oque lucrou indevidamente, ou parte disso, ou apenas reporos danos que este sofreu. Depende das circunstâncias em

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que a vantagem ilegítima foi auferida e da forma maisadequada de compensar o prejudicado. A lei brasileira, arigor, trata apenas de uma das hipóteses de enriquecimentosem causa, a que se traduz pela ilegítima transferência debem do patrimônio do sujeito prejudicado para o doenriquecido. Diz: “aquele que, sem justa causa, se enriquecerà custa de outrem, será obrigado a restituir o indevidamenteauferido” (CC, art. 884). É o caso, por exemplo, do vendedorque já recebeu parcelas do preço da coisa em adiantamento,se ocorre inexecução total involuntária. Ele deve restituir aocomprador as parcelas recebidas, para não enriquecer semcausa.

Todavia, na hipótese de uso indevido de bem doprejudicado, o enriquecimento sem causa não sedesconstitui mediante restituição. No exemplo da ocupaçãoda casa de veraneio que não iria ser usada, o enriquecimentosem causa do ocupante e o prejuízo do proprietário secompõem, sem dificuldade, com a imposição ao enriquecidoda obrigação de pagar o aluguel de mercado pelo uso doimóvel. Não há restituição de nada suprimido do patrimôniodo prejudicado, mas compensação pelo uso não autorizadode bens dele. Conforme as circunstâncias, aliás, a vantagempatrimonial auferida pelo enriquecido deve ser dividida como prejudicado, ou entregue a este. Se o uso não autorizadode bens ou direitos do prejudicado trouxe acréscimospatrimoniais ao enriquecido, eles podem pertencer, no todo

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ou em parte, ao prejudicado. Não estarão sendopropriamente restituídos a este, porque nunca antes lhepertenceram. É a hipótese da exploração econômica peloenriquecido de uma ideia original do prejudicado. Os lucrosadvindos da atividade, para que não se verifiqueenriquecimento sem causa, devem ser repartidos entre osenvolvidos ou, conforme o caso, entregues ao prejudicado.Depende a consequência da conduta do enriquecido. Seteve acesso à ideia do prejudicado em conversa com este, éjusto que fique com parte dos lucros, mas, se o acesso foifraudulento, deve perdê-los todos em favor do prejudicado.A lei brasileira, como dito, trata apenas de uma dashipóteses de enriquecimento sem causa. A melhor forma decompensação entre os envolvidos nas demais é construídapela tecnologia jurídica e jurisprudência.

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Terceira Parte

RESPONSABILIDADECIVIL

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Capítulo 21

INTRODUÇÃO ÀRESPONSABILIDADE

CIVIL1. EXTERNALIDADES

Vivendo em sociedade, estamos todos interagindo. Aação ou omissão de qualquer pessoa interfere com asituação, interesses e bens de outras, para pior ou melhor.Estas interferências por vezes são chamadas deexternalidades, conceito adotado por alguns economistasque se revela útil também à tecnologia jurídica. O quecaracteriza a interação como externalidade é a inexistência de

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compensação entre as pessoas envolvidas. Se quem tem asituação piorada pela ação alheia não é compensado porisso, ou se aquele que ganhou não compensa ninguém pelamelhora que experimentou, a interferência é umaexternalidade. Caso contrário, isto é, na hipótese decompensação dos prejuízos ou ganhos, dá-se ainternalização da externalidade. A externalidade é negativase a ação de uma pessoa prejudica outra; e positiva, sebeneficia.

Se alguém intencionalmente causa dano ao patrimôniode outrem, a convivência em sociedade pressupõe aobrigação de aquele repor a este os prejuízos causados. Estainteração é externalidade negativa que deve serinternalizada. Se o será de fato ou não, é questão diversarelacionada à efetividade da norma jurídica. Na hipótese, porexemplo, de o causador do dano não titularizar em seupatrimônio bens de valor suficiente à recomposição devida,a vítima quedará prejudicada. Isto, porém, não altera anatureza da interação — permanece sendo uma externalidadeque deve ser internalizada. Há, de outro lado, uma infindávellista de externalidades que não comportam internalização.São ações ou omissões de algumas pessoas que prejudicamou melhoram a situação, interesses ou bens de outras e quenão devem ser compensadas. É também a convivência emsociedade que pressupõe a inexistência, neste caso, daobrigação de repor prejuízos ou restituir ganhos.

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Ao caminhar pela Avenida Paulista, em São Paulo,respiro ar poluído também pela emissão de gás carbônicodos ônibus que nela trafegam. Isto, claro, não é bom paraminha saúde, mas os empresários de transporte urbano queexploram linhas naquela via não me devem nada comoindenização. Note, por outro lado, que há menos pessoasnas calçadas daquela avenida porque algumas viajam nosônibus postos em circulação no local por aqueles mesmosempresários. Isto me favorece porque contribui para adesobstrução das calçadas, tornando minha caminhada maisprazerosa e célere. Nada devo, porém, como paga àquelesempresários de transporte urbano que me proporcionaram obenefício.

Há muitos outros exemplos de externalidades que nãocomportam internalização. A concorrência entre doisempresários que exploram o mesmo segmento de mercadoimplica necessariamente mútuas interferências nosrespectivos negócios, cuja compensação não pode serreclamada (a menos que extrapolados os limites da lealdadecompetitiva). Se um deles promove campanha derebaixamento temporário dos preços (“liquidação”) oupromete sortear automóvel entre seus consumidores, estasações podem subtrair clientela do outro. Os prejuízos oureduções de ganhos que este último sofre com a queda dofaturamento não são compensáveis. O inverso tambémocorre. Imagine que um dos concorrentes deixou de investir

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o necessário em treinamento de pessoal e a qualidade doatendimento aos consumidores se deteriora; ou, então, queele simplesmente resolve encerrar suas atividades naquelesegmento; o aumento da clientela do outro concorrenterepresenta ganho insuscetível de compensação.

São outras externalidades negativas que não comportaminternalização: o incômodo provocado pelo cheiro da tintarecém-usada na pintura do apartamento vizinho; a lentidãono tráfego nas proximidades de um shopping center causadapelo excesso de veículos que nele entram e saem; ostranstornos oriundos de greves legais; o desapontamentode não poder assistir ao filme porque a sala de projeções jáestá lotada pelas pessoas que chegaram antes. Nestescasos, os atingidos não têm direito à compensação pelo quesofreram em razão das condutas alheias. E são, enfim,exemplos de externalidades positivas igualmente nãointernalizáveis: a melhora do entorno urbano em decorrênciada demolição de velho cortiço e construção, no local, deedifício de escritórios; a progressão na classificação numconcurso ou em vestibular para ingresso em universidadepela desistência de alguém melhor posicionado; osurgimento da oportunidade de conquistar a pessoa amadaem razão do divórcio dela. Nelas, quem se beneficia não estáobrigado a compensar quem deu ensejo ao benefício.

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As interferências positivas ounegativas que cada um de nós sofre ecria para as outras pessoas com quemconvivemos em sociedade são“externalidades” quando não sãocompensadas. As interferênciascompensadas são “internalidades”. Asnormas de responsabilidade civilcuidam da internalização dasexternalidades.

Muitos dos exemplos apresentados acima dizemrespeito a assuntos cotidianos, de pouca ou nenhumarelevância. Quando prejudiciais, importam merosdesconfortos ou diminutas perdas que o atingido absorvesem dificuldades; quando benéficas, representam ganhosocasionais, que a maioria das pessoas não se empenha emconseguir. Não cabe concluir disto, porém, que aexternalidade insuscetível de internalização seria a de

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pequena ou nenhuma repercussão para o prejudicado oubeneficiado. Não é a irrelevância da externalidade para esteque afasta a internalização. Muitas externalidades não sãointernalizáveis, a despeito de sua vital importância para oatingido. Pense no portador de grave doença rara. Aindústria farmacêutica não tem interesse em investir enormessomas de dinheiro na pesquisa e desenvolvimento deremédios voltados ao tratamento daquele mal por uma friarazão econômica, mas facilmente compreensível: em vista dararidade da doença, é pequeno o número de potenciaisconsumidores e improvável a recuperação dosinvestimentos. Mesmo os centros de pesquisas públicosnão costumam dedicar-se às doenças raras porque devemfazer uso racional dos recursos de que dispõem. Como nãohá dinheiro suficiente para a pesquisa de todas as doenças,o administrador público deve estabelecer prioridades.Representa o melhor emprego para os recursos públicos suadestinação à pesquisa de tratamento de surtos, epidemias oude doenças que atingem muitas pessoas. Maiores parcelasda população serão beneficiadas com esta hierarquização doque com o investimento dos mesmos recursos na pesquisade tratamento de males incomuns. Em suma, o portador dedoença rara é imediatamente atingido pela inexistência depesquisas científicas, pelas decisões adotadas no âmbito daindústria farmacêutica ou centros públicos. Sofre prejuízo damais extremada relevância para sua vida, que, no entanto,

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não é passível de compensação.A internalização de proveitos opera-se, nas sociedades

complexas dos nossos tempos, por meio das regras jurídicasque reprimem o enriquecimento sem causa. Viu-se que essasregras não se limitam às que especificamente tratam doinstituto (CC, arts. 884 a 886), mas espalham-se por váriassearas da ordem jurídica e expressam-se por diferentesmeios, como a exigibilidade da correção monetária noinadimplemento das obrigações, a inexigibilidade de dívidade jogo, a proibição do pacto comissório (Cap. 20, item 5).De outro lado, a internalização de prejuízos é viabilizadapelas normas de responsabilidade civil — apenas esteaspecto da questão passa a interessar daqui para diante.

2. CLASSIFICAÇÃO DA RESPONSABILIDADE CIVILA responsabilidade civil é a obrigação em que o sujeito

ativo pode exigir o pagamento de indenização do passivopor ter sofrido prejuízo imputado a este último. Classifica-secomo obrigação não negocial, porque sua constituição nãoderiva de negócio jurídico, isto é, de manifestação devontade das partes (contrato) ou de uma delas (atounilateral). Origina-se, ao contrário, de ato ilícito ou de fatojurídico. O motorista que desobedece às regras de trânsito edá ensejo a acidente torna-se devedor da indenização pelosprejuízos causados: o ato ilícito (desobediência às regras detrânsito) gera sua responsabilidade civil. A seu turno, o

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empresário que fornece ao mercado produto ou serviçodefeituoso deve indenizar os prejuízos derivados deacidente de consumo: o fato jurídico (explorar atividadeeconômica de fornecimento de produtos ou serviços)origina, aqui, a responsabilidade civil.

A obrigação de indenizar prejuízos pode também nascerde relação negocial. O inadimplemento de qualquer contratoimplica, em regra, para o inadimplente a obrigação de pagarperdas e danos, como já examinado (Cap. 18, subitem4.1.2.1). Indenizar danos, portanto, nem sempre éresponsabilidade civil, nem sempre é obrigação nãonegocial. Ao contrário, pode ser decorrência do estabelecidoem cláusula de contrato negociado entre o devedor e ocredor da indenização. Assim, se toda responsabilidade civilé obrigação compensatória de danos sofridos pelo sujeitoativo, o inverso não se pode afirmar. Veja que, noinadimplemento de contrato, indenizar danos é consectário,enquanto na responsabilidade civil corresponde à própriaprestação.

A classificação da responsabilidade civil como nãonegocial não significa que entre os sujeitos da relaçãoobrigacional nunca exista negócio jurídico. Ele até podeexistir, mas não será o fundamento da obrigação. Entre opassageiro e a empresa de transporte por ônibus existe umcontrato de consumo. Se houver acidente de trânsitodurante a execução do contrato, a empresa deve indenizar os

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danos sofridos pelo passageiro. A obrigação de indenizar,porém, não nasce do contrato de transporte, mas sim do fatojurídico de ser o transportador empresário. O negóciojurídico é, neste caso, circunstancial; representa aspectosecundário da questão. Tanto assim que, se for nulo ocontrato — por incapacidade absoluta de um doscontratantes, por exemplo —, isso não desconstitui aobrigação: a empresa continua obrigada do mesmo jeito.

A doutrina tradicionalmente divide a responsabilidadecivil em contratual e extracontratual. No primeiro caso, hácontrato entre o credor e o devedor da obrigação deindenizar; no segundo, não. Quando o advogado indeniza ocliente por ter perdido o prazo para contestar, suaresponsabilidade é considerada por este enfoque comocontratual porque entre os sujeitos da obrigação deindenizar (prestação) há um contrato de mandato. Já nahipótese do acidente de trânsito, entre os motoristas não hánenhuma relação contratual, e o enfoque tradicional chama ahipótese, então, de responsabilidade civil extracontratual. Adoutrina, então, dedica-se a discutir as diferenças entre umae outra espécie de responsabilidade, tendo ultimamentepredominado o entendimento de que não há relevância nadistinção (Tunc, 1989:32/46). Com efeito, segundo as leisbrasileiras, se o consumidor vitimado por acidente deconsumo demandar o ressarcimento contra o fornecedor teráo mesmo direito, seja sustentando o pleito na relação

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extracontratual, seja na contratual — quadro que se repetenas demais hipóteses da chamada responsabilidade civilcontratual.

Como a distinção entre responsabilidade civil contratuale extracontratual não tem relevância prática — já que aindenização devida será igual, haja ou não entre credor edevedor da obrigação de indenizar (como prestação) umarelação negocial —, trata-se, a rigor, apenas de definir olugar mais adequado, na tecnologia jurídica, para aexposição da matéria (cf. Alpa, 1999, 4:102/107). E, paratanto, os tecnólogos ora consideram a responsabilidade civilcomo gênero desdobrável em responsabilidade contratual enão contratual (Noronha, 1999:41/44; Dias, 1954; Gomes,1961:277), ora como espécie de obrigação não contratual(Lopes, 2001; Rodrigues, 2002:8/11).

Fico com a solução de classificar a responsabilidadecivil como não negocial. Para mim, mesmo quando existarelação contratual entre credor e devedor da obrigação deindenizar, se esta é a própria prestação (e não um simplesconsectário), estamos diante de uma relação jurídica nãonegocial, cujo fundamento não é o negócio jurídico, mas atoilícito ou fato jurídico. Em função da classificação aquiadotada, descarto a distinção tradicional da doutrina entreresponsabilidade civil contratual e extracontratual. Operoapenas com a classificação entre responsabilidade subjetivae objetiva. Qualquer que seja a escolha, porém, interessa ter

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presente que a obrigação de indenizar danos, quando é aprópria prestação e não mero consectário, terá a mesmaextensão havendo ou não vínculo negocial entre credor edevedor.

Responsabilidade civil é a obrigaçãoem que o sujeito ativo pode exigir opagamento de indenização do passivopor ter sofrido prejuízo imputado aeste último. Constitui-se o vínculoobrigacional em decorrência de atoilícito do devedor ou de fato jurídicoque o envolva. Classifica-se comoobrigação não negocial.

Última observação: a responsabilidade civil contratualnão se confunde com o inadimplemento do contrato. Emborase possa até dizer que o dano causado pelo contratante tem

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o significado de descumprimento das obrigaçõescontratadas, isto não é o essencial. As obrigações nãonegociais são aquelas cuja constituição deve-se ao atoilícito ou ao fato jurídico pertinente e não ao negócio queeventualmente exista entre as partes. Deve-se verificar se aobrigação de indenizar é a prestação ou mero consectário. Sefor a prestação, a obrigação entre credor e devedor éresponsabilidade civil (contratual ou extracontratual); se forconsectário, é inadimplemento de contrato. Se o engenheiroatrasa a execução da obra e indeniza o proprietário, estápagando um consectário; mas, se o prédio ruiu por suaimperícia, a indenização é a prestação devida. No primeirocaso, incidem as normas do inadimplemento de contrato; nosegundo, as da responsabilidade civil. Há apenas umasignificativa diferença entre elas: o grau de culpa do devedorpode influir na mensuração da prestação, mas não influi nado consectário (Cap. 25, subitem 1.1.1).

3. ESPÉCIES DE RESPONSABILIDADE CIVILSão duas as espécies de responsabilidade civil:

subjetiva e objetiva. Na primeira, o sujeito passivo daobrigação pratica ato ilícito e esta é a razão de suaresponsabilização; na segunda, ele só pratica ato ou atoslícitos, mas se verifica em relação a ele o fato jurídicodescrito na lei como ensejador da responsabilidade. Quemresponde subjetivamente fez algo que não deveria ter feito;

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quem responde objetivamente fez só o que deveria fazer. Ailicitude ou licitude da conduta do sujeito a quem se imputaa responsabilidade civil é que define, respectivamente, aespécie subjetiva ou objetiva.

Quando o motorista desobediente às leis de trânsito éobrigado a indenizar os danos do acidente que provocou,sua responsabilidade é subjetiva. Se imprimiu velocidade aoveículo superior à permitida no local, ultrapassou o semáforofechado, negou preferência, se descumpriu, enfim, o Códigode Trânsito Brasileiro, ele não agiu como deveria ter agido;incorreu em ilícito. Desta sua falta surge a obrigação deressarcir os prejuízos sofridos pelas vítimas do acidente. Poroutro lado, quando o fabricante de refrigerantes é obrigado aressarcir os danos causados pela quebra de garrafa em quese havia concentrado maior quantidade de gás que asuportável, a responsabilidade é objetiva. O fornecedor agiuexatamente como deveria ter agido: empregou os maisdesenvolvidos equipamentos e processos de produção, bemassim os mais aprimorados controles de qualidade, treinouadequadamente seus funcionários e fez todos osinvestimentos para evitar que produtos defeituosos fossemoferecidos ao mercado. Em razão da falibilidade humana,porém, algumas garrafas com defeito acabaram provocandolesões nos consumidores. Não houve nenhum ilícitoimputável ao fabricante; ao contrário, é plenamente lícitooferecer bebidas refrigerantes ao mercado. Mesmo assim, ele

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é responsável civilmente pelos prejuízos. Suaresponsabilidade se origina do simples fato jurídico devender produtos no mercado.

A responsabilidade civil pode sersubjetiva ou objetiva. No primeirocaso, o devedor responde por atoilícito (constitui-se a obrigação emrazão de sua culpa pelo eventodanoso); no segundo, por ato lícito (aresponsabilidade é constituída adespeito da culpa do devedor).

Variam os pressupostos da responsabilidade civil deacordo com a espécie. Para que um sujeito de direito sejaresponsabilizado subjetivamente é necessária aconvergência de três: a) conduta culposa (culpa simples oudolo) do devedor da indenização; b) dano patrimonial ouextrapatrimonial infligido ao credor; c) relação de

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causalidade entre a conduta culposa do devedor e o danodo credor. O primeiro pressuposto pode ser denominado“pressuposto subjetivo”, por ser referido à negligência,imprudência ou imperícia (culpa simples) ou mesmo àintenção (dolo) do sujeito causador do dano. Se ele tivessese comportado como determina a lei, se não tivessepraticado o ilícito, o evento danoso não ocorreria; foi a suaculpa ou dolo que provocou o dano. No âmbito daresponsabilidade civil subjetiva, o pressuposto subjetivo,isto é, a culpa do devedor, é elemento indispensável àconstituição da obrigação. A responsabilidade do devedor,nela, tem por fundamento último a manifestação de vontadedo sujeito obrigado (subitem 3.1).

Já, para a caracterização da responsabilidade objetiva,bastam dois pressupostos: a) dano patrimonial ouextrapatrimonial suportado pelo credor; b) relação decausalidade entre a conduta do devedor descrita em lei e odano do credor. Aqui, o pressuposto subjetivo é irrelevante.Se o sujeito a quem se imputa a obrigação foi negligente,imprudente, imperito ou teve a intenção de causar danos épor tudo irrelevante. Simplesmente, isso não se discute. Suaresponsabilidade existirá e terá a mesma extensão emqualquer hipótese. Mesmo que ele tenha sido absolutamentecorreto e se comportado sempre de acordo com a lei,responderá pela indenização dos danos. Não era exigível dodevedor que se comportasse de maneira diversa; ao

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contrário, exigia-se dele que fizesse nada mais nada menosdo que fez. Sua responsabilidade tem por fundamento, comose verá adiante (subitem 3.2), a socialização dos custos.

É possível divisarem-se duas subespécies deresponsabilidade civil. De um lado, a responsabilidadesubjetiva de culpa presumida; de outro, a responsabilidadeobjetiva pura. Naquela, o pressuposto subjetivo é relevante,mas não cabe à vítima provar a culpa do sujeito a quem elaimputa a responsabilidade. Cabe-lhe apenas produzir emjuízo a prova dos demais pressupostos (dano e relação decausalidade). A pessoa a quem a responsabilidade éimputada, porém, livra-se da responsabilização provando ainexistência de culpa. Trata-se de uma das formulaçõeserigidas durante o longo processo de elaboração dosfundamentos da responsabilidade objetiva (subitem 3.3). Aoseu turno, na responsabilidade objetiva pura, é suficiente àconstituição da obrigação a existência do dano, sendoirrelevantes tanto o pressuposto subjetivo como a relaçãode causalidade. A responsabilidade do Instituto Nacional doSeguro Social (INSS) relativa ao pagamento do benefício emfavor do empregado vítima de acidente de trabalho é destasubespécie, já que nenhuma conduta imputada ao devedortem relação de causa e efeito com o dano sofrido pelo credor(subitem 5.2).

3.1. Fundamento da responsabilidade civil subjetiva

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Um dos valores cultivados pela civilização de raízeseuropeias é o de que a vontade é a fonte última de qualquerobrigação. As pessoas obrigam-se apenas porque querem.Não se pode imputar obrigação a alguém contra a suavontade, nem obrigá-la a mais do que ela concorda em seobrigar. Este valor caro às ideologias liberais encontra-senos fundamentos do caráter vinculativo da lei nademocracia. Somos obrigados a obedecer os mandamentoslegais porque foram aprovados por nossos representantes,isto é, em nosso nome. Ao eleger deputados e senadores, asociedade confere a eles o poder de representação, deexpressão de uma pretensa vontade geral. O contribuinte,assim, paga os impostos determinados na lei porqueexpressou, pelo mecanismo da democracia representativa,sua concordância. Presume-se a vontade do devedor. Emsuma, se a obrigação não provém imediatamente da vontadedo sujeito obrigado (contrato), provém mediatamente dela(lei aprovada por representantes democraticamenteescolhidos).

Esse valor é o fundamento da responsabilidade civilsubjetiva. Ao imputar a quem incorre em ilícito a obrigaçãode indenizar os prejuízos decorrentes, a lei prestigia a noçãode que a vontade é a fonte de todas as obrigações. Não o fazapenas pelo mecanismo geral que vincula qualquer lei àvontade dos seus destinatários na organização democrática.Se assim fosse, não haveria diferença entre os fundamentos

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das duas espécies de responsabilidade civil, visto queambas se assentam em dispositivos legais. A imputação daresponsabilidade civil subjetiva funda-se no valor davontade como fonte última de qualquer obrigaçãoprincipalmente por uma relação argumentativa (ideológica)específica.

Quem é responsabilizado por ato ilícito é-o porque agiucomo não deveria ter agido. Foi negligente naquilo em quedeveria ter sido cuidadoso, imperito quando tudo dependiade sua habilidade, imprudente se era exigida cautela, oucomportou-se conscientemente de modo contrário aodevido. Em suma, uma conduta diversa era exigida docausador dos danos. Não há responsabilidade civil subjetivase ausente esse pressuposto da exigibilidade de condutadiversa. Imagine que grave acidente de ônibus ocorre nascercanias de pequena cidade onde trabalha apenas um únicomédico, que tem que se desdobrar para atender duasdezenas de pacientes graves em condições precárias,totalmente adversas. Após longas horas de heroico esforço,já comprometida sua capacidade de concentração, acabaincorrendo num erro; é evidente que ele não pode serresponsabilizado. Estando além da capacidade humana dequalquer profissional médio manter a acuidade naquelasmesmas condições, era mesmo inexigível a perícia que faltou.Não se pode responsabilizar aquele médico pelo erro porquenão seria exigível dele conduta diversa (a de permanecer

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plenamente concentrado e hábil mesmo após longo tempode trabalho em condições estressantes).

A responsabilização por ato ilícito pressupõe aexigibilidade da conduta diversa. Se o sujeito de direito fez oque não deveria, ele é responsável exatamente porqueestava ao seu alcance não fazer; ou, por outra: se não fez oque deveria, é responsável porque fazer era-lhe possível. Aocomportar-se de certa maneira, quando poderia comportar-sede outra, o sujeito de direito manifesta, num certo sentido,sua vontade.

Quando se tem em mira o dolo, não há maioresdificuldades na identificação da vontade do sujeito causadordo dano na constituição da obrigação de indenizar. Se omotorista lança conscientemente seu veículo sobre opedestre com a intenção de atropelá-lo (dolo direto),manifesta inequívoca vontade de fazê-lo. Em conseguindo oobjetivo, responderá pelos danos ligados à morte ou lesãodo pedestre porque quis causá-los diretamente. Note-se queigual responsabilidade terá o motorista que conscientementelançar o veículo apenas com o objetivo de assustar otranseunte (dolo indireto). Neste caso, também responderápelos mesmos danos, não porque os quis diretamente, masporque teve a vontade de correr o risco de causá-los.

Também no caso de culpa simples, a despeito daausência da intenção de causar danos ou de assumir osriscos de causá-los, é a vontade do sujeito de direito que se

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encontra nos fundamentos de sua responsabilização. Aqui,a relação entre responsabilidade e vontade pode não parecerimediata, mas existe. Se o sujeito foi negligente quando aconduta diligente estava ao seu alcance, agiu de um dosmodos possíveis; considera-se, então, que escolheu essemodo, como poderia ter escolhido o outro. Se foi imprudentequando poderia ter sido cauteloso, ou imperito quando nãoexistiam condições adversas ao competente desempenhoprofissional, também fez o sujeito uma escolha (Tunc,1989:115). A opção pela conduta negligente, imprudente ouimperita não é intencional, nem ao menos consciente (casofosse, configurar-se-ia o dolo indireto e não a culpa simples),mas a exigibilidade da conduta diversa — que pressupõeseja ela plenamente factível — leva à identificação de umcerto ato de vontade pelo qual se responsabiliza o sujeito.Não há contradição na ideia de vontade inconsciente — apsicologia já a identificou há tempos.

Em última instância, a imputação deresponsabilidade ao culpado peloevento danoso fundamenta-se na noçãoda vontade como fonte da obrigação. A

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ação ou omissão negligente,imprudente ou imperita ou mesmo aintenção de causar dano correspondemà conduta diversa da juridicamenteexigível. A exigibilidade de condutadiversa pressupõe pelo menos duasalternativas abertas à vontade(consciente ou inconsciente) do sujeitopassivo. Se o devedor agiu como nãodeveria, o fez por ato de vontade.

O marco histórico identificado na origem da imputaçãode responsabilidade pelos danos em razão da culpa é a LeiAquília, editada na República Romana, provavelmente noséculo III a.C. Essa lei prescrevia as consequências decertos eventos danosos (p. ex., a morte ou ferimento deescravos ou animais de rebanho) para quem os houvessecausado. Obrigava-os, em suma, a reparar os prejuízos nosbens de produção. Substituía-se, em relação a estes, a antiga

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pena de Talião — que autorizava a vítima a causar danoproporcional no agente causador do dano —, por nãoatender mais à racionalidade exigida pelo desenvolvimentoda organização econômica escravagista do Império Romano.Com efeito, o “olho por olho, dente por dente” sóaumentava o prejuízo (em vez de um escravo morto, eramdois), revelando-se verdadeiro disparate em termos deeficiência econômica.

Na Lei Aquília não se encontra, ainda, qualquer noçãogeral de imputação de responsabilidade. Aparentemente, oobjetivo era afastar a aplicação da pena de Talião apenas nahipótese de danos a bens de produção. Os pretores ejurisconsultos, porém, aplicaram a Lei Aquíliaextensivamente na responsabilização por outros danos alémdos que contemplava (Lima, 1960:21/22), e isso deu início aolongo processo de elaboração do princípio “nenhumaresponsabilidade sem culpa”. Marcos importantes desseprocesso são as obras de Domat e Pothier, jusnaturalistasfranceses, que contribuíram para o amadurecimento dosconceitos ao longo do século XVIII. Outro marco é o CódigoCivil de Napoleão, que, em 1804, foi o primeiro a prescrevernorma geral imputando responsabilidade civil por danos aquem os tivesse causado culposamente (Alpa-Bessone,2001:25/42).

3.2. Fundamento da responsabilidade civil objetiva

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O princípio nenhuma responsabilidade sem culpa écaracterístico de todos os direitos dos países ocidentaisdurante o século XIX. Só respondia por danos nopatrimônio alheio quem tivesse sido o culpado por eles;afora esta hipótese, cada um suportava a perda de seus bens(res perit domino). Nas hipóteses de culpa da vítima ou casofortuito, à falta de específica manifestação de vontade, nãose podia imputar responsabilidade a quem quer que fosse.Os acidentes inevitáveis — como incêndios causados porfagulhas produzidas por locomotivas a vapor, morte ouincapacitação do operário na operação de equipamentosfabris, defeitos em produtos não derivados de culpa ou dolodo fornecedor etc. — eram considerados a contrapartida quedeveríamos todos suportar em função dos benefícios deviver em sociedade (Alpa-Bessone, 2001:42/114). Se alocomotiva a vapor simplesmente não pode funcionar semproduzir fagulhas, não é culpa da estrada de ferro o incêndioem alguma plantação em imóvel lindeiro. A seu turno, ofazendeiro deve pagar certo “preço” por viver em sociedadee beneficiar-se também da rapidez do transporte pelas viasferroviárias: o “preço” de suportar a perda da colheita, casotivesse ele o azar de ver sua propriedade incendiada.

Ao longo do século XX, a indispensabilidade dopressuposto subjetivo para a imputação de responsabilidadepor danos foi paulatinamente questionada. De um lado,agredia cada vez mais o senso geral de justiça o desamparo a

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que o princípio nenhuma responsabilidade sem culparelegava as vítimas dos acidentes inevitáveis. O princípio daculpa acabava conduzindo, na significativa imagem pinçadapor Mario Bessone, a “nada muito diferente de uma loteriaimoral” (Alpa-Bessone, 2001:112). De outro lado, o acúmulode capitais já era suficiente à implantação de aprimoradosmecanismos jurídicos de socialização dos custos. Surge eamadurece a responsabilidade objetiva, em que o devedor éobrigado a indenizar os danos do credor, mesmo não tendonenhuma culpa por eles.

Na modalidade objetiva, o devedor responde por atolícito. Sua conduta não é contrária ao direito. Nada dediferente é ou seria jurídica ou moralmente exigível dele. Nãoobstante, arca com a indenização dos danos experimentadospela vítima do acidente. A noção de responsabilidade porlícito não tem sido facilmente operada por parte datecnologia jurídica, que resiste em aceitar a hipótese deimputação de obrigação a quem fez exatamente o que deveriater feito, que não desobedeceu minimamente às leis emvigor. Alguns autores buscam conceitos gerais em quepossam ancorar as duas espécies de responsabilidade civil,de modo a afastar o desconforto da obrigação não negocialque existe a despeito da licitude do ato do devedor. Falam,por exemplo, numa antijuridicidade, isto é, contrariedade aosdireitos alheios que existiria na exploração de atividadescriadoras de riscos (Iturraspe, 1982, 1:117/121). Ou, na linha

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do proposto inicialmente por Savatier (Tunc, 1989:152),afirmam a existência de um dever geral de não causar danosa outrem — expresso pela locução latina neminem laedere—, que seria desrespeitado pelo sujeito a quem se imputatanto a responsabilidade subjetiva como a objetiva(Noronha, 2003:484).

Penso que estas tentativas de configurar aresponsabilidade objetiva como a consequência de umacerta desconformidade com o direito são infrutíferas. Se oMunicípio responde objetivamente pela desvalorização deimóveis urbanos produzida por viaduto que implantou navizinhança (penso no caso do “Minhocão”, em São Paulo),isto não significa que a obra viária fosse de alguma formairregular. Do mesmo modo, quando o fornecedor deprodutos ou serviços é obrigado a indenizar,independentemente de culpa, os danos dos acidentes deconsumo ocorridos dentro de certa margem estatística dedefeituosidade inevitável, não quer isso dizer que suaatividade se apresentasse minimamente ilegal. Pelo contrário,tanto a construção do viaduto como a colocação de bens ouserviços no mercado são atos plenamente lícitos, sobquaisquer dos aspectos que se considere a questão.

É racional imputar responsabilidade

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por danos a quem agiu exatamentecomo deveria ter agido quando osujeito passivo da obrigação deindenizar ocupa posição econômicaque lhe permita socializar os custos dasua atividade entre os beneficiáriosdela. Nessa posição encontram-se, porexemplo, os empresários, o Estado e asagências de seguro social.

A rigor, mais que infrutíferas, são desnecessárias asbuscas de algum traço de antijuridicidade nas condutas quedão ensejo à responsabilidade objetiva. Como pretendodemonstrar, é racional — sob o ponto de vista jurídico,econômico e moral — a imputação de responsabilidadeobjetiva a determinados sujeitos de direito, mesmoreconhecendo e reafirmando a plena licitude de seuscomportamentos causadores do dano.

O fundamento da responsabilidade objetiva, isto é, daimputação da obrigação de indenizar danos a quem agiu

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exatamente como deveria ter agido, é a socialização decustos. Todo sujeito de direito que se encontra numaposição econômica que lhe permita socializar os custos desua atividade entre os que são atendidos por ela podem edevem ser objetivamente responsabilizados. O Municípioque constrói o viaduto realiza obra viária em proveito detodos os munícipes. A mesma obra pode implicar, porém,desvalorização de imóveis urbanos da vizinhança,prejudicando seus proprietários. A responsabilidadeprescinde da ilicitude da conduta lesiva porque o Município,ao cobrar os impostos dos munícipes, reparte entre estes (osbeneficiários da atuação estatal) o valor das indenizaçõespagas aos donos dos prédios desvalorizados (osprejudicados). Ao seu turno, o empresário respondeobjetivamente pelos danos derivados de acidentes deconsumo porque pode, por cálculos estatísticos, mensurarquantos de seus produtos ou serviços serão oferecidos aomercado com defeitos potencialmente lesivos aosconsumidores. Feito o cálculo, ele pode embutir no preçoque pratica a taxa de socialização dos custos do acidente deconsumo. Cada consumidor pagará pelo produto ou serviçoum pouco mais, mas terá a garantia de ser indenizado casovenha a ter o azar de ser vitimado pelo inevitável acidente. OINSS está obrigado a pagar às vítimas de acidente detrabalho, independentemente de pesquisar a culpa peloevento, o valor do benefício previsto em lei porque dispõe

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dos meios de socializar os custos correspondentes entretodos os expostos ao risco (empregados) e os beneficiadospela atividade arriscada (empregadores e sociedade),mediante a cobrança das contribuições sociais, além dorecebimento das dotações cabíveis do orçamento público.

Ocupar posição econômica que permite a socializaçãodos custos — como é o caso do Estado, do empresário oudo INSS — é fundamento racional suficiente para aimputação de responsabilidade civil por ato lícito. Não hánenhuma transgressão a norma jurídica ou mesmo a preceitomoral por parte do sujeito apto a promover essa socialização.Pelo contrário, ao desempenhar sua atividadeexclusivamente nos quadrantes da legalidade, acabacumprindo a função distributiva. Aqui, não se impõe aocausador de danos uma sanção com o objetivo dedesestimular a prática ilícita — esta, como se verá, é uma dasfunções da responsabilidade subjetiva. Apenas se alocamrecursos de forma racional, compatibilizando a eficiência naadministração da escassez e redução das injustiças nadistribuição. As atividades que deram ensejo ao danoindenizável não devem ser desestimuladas; pelo contrário, oproveito que a generalidade das pessoas delas usufruem évisto como altamente compensador em face dos danoscausados a alguns poucos. A questão, portanto, não éreduzir ou suprimir os ganhos, mas distribuir entre todos osbeneficiados o custo com as indenizações dos danos que a

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atividade causa. Não é, por exemplo, o caso de suspendertodos os voos comerciais, em razão dos acidentes com osaviões de passageiros, mesmo com o objetivo de poupar, acada ano, a vida de algumas milhares de pessoas. Asviagens aéreas são indispensáveis ao regular funcionamentoda economia do mundo todo, e, ademais, atendem, nomesmo período anual, de modo seguro centenas de milhõesde passageiros. A imputação de responsabilidade objetivaàs empresas de transporte aéreo (ainda que tarifada, porvezes) permite preservar a atividade econômica útil a toda asociedade e atenuar as injustiças no tratamento dos riscosque ela necessariamente encerra.

A objetivação da responsabilidade permite, por fim, aabstração de qualquer juízo de valor na imputação daobrigação. O devedor deve pagar a indenização não porquefez algo irregular, que merece punição. Nem poderá, poroutro lado, exonerar-se por nada ter feito de errado. Suaculpa é irrelevante para qualquer efeito: não constitui aobrigação, nem a afasta; não a aumenta ou diminui. Não estáem jogo, em suma, qualquer apreciação moral de suaconduta, mas exclusivamente sua aptidão econômica parasocializar os custos da atividade entre os beneficiados porela.

3.3. Teorias de transiçãoAinda hoje, como registrado, encontram-se tecnólogos

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resistentes à noção de responsabilidade civil desvinculadada ilicitude. Aceitam a responsabilidade objetiva,independente de culpa, mas procuram, por meios diversos,ligar a imputação da obrigação de indenizar a alguma pechade desconformidade com o direito. Há um século, aresistência era ainda maior: nem sequer a noção deresponsabilidade sem culpa admitia facilmente a comunidadejurídica.

Em razão do extremo apego ao princípio da culpa — e aovalor que a alicerça, caríssimo ao capitalismo, da vontadecomo fonte última de todas as obrigações —, à discussão eelaboração dos fundamentos a partir dos quais se justificavaimputar responsabilidade a quem agira licitamentecorresponde uma trajetória não linear. As formulaçõesensaiadas pelos avanços pontuais procuravam abrigo nop rincíp io nenhuma responsabilidade sem culpa. Osargumentos construídos em vista da responsabilização poratos lícitos até meados do século XX pagaram tributo àideologia do seu tempo: o devedor sempre aparecia, dealgum modo, como culpado. Denomino estas elaborações deteorias de transição, porque atenderam às necessidades demomento histórico em que imperava o princípio da culpa,mas responsabilizavam sujeitos de direito por danoscausados sem absoluto prestígio ao pressuposto subjetivo.A transição, nesse tempo, ao meu ver, não era a do modeloda responsabilidade subjetiva para a da objetiva (este

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movimento não existe: item 7), mas a do modelo de uma sóespécie de responsabilidade civil (nenhumaresponsabilidade sem culpa) para o da convivência de duasespécies (subjetiva e objetiva).

São quatro as teorias de transição:a) responsabilidade contratual. Uma das formulações

desenvolvidas no contexto da transição do modelo único deresponsabilização para o dúplice foi a de considerar oacidente uma espécie de descumprimento de obrigaçãocontratual. Desenvolveu-se, por exemplo, na matéria relativaaos transportes de pessoas. Se o passageiro era vitimadopelo acidente no trem em que viajava, ele tinha direito de serindenizado pela estrada de ferro porque entre eles havia umcontrato de transporte não inteiramente cumprido pelatransportadora. A estrada de ferro assumira, perante opassageiro, a obrigação de levá-lo incólume ao destino — acláusula de incolumidade é ínsita ao contrato de transportede pessoas. O acidente, assim, representavadescumprimento da obrigação contratual, cabendo então àestrada de ferro responder como qualquer outro contratanteinadimplente pelos danos causados. Ao se considerar oacidente nos transportes como descumprimento de cláusulacontratual, dispensa-se a vítima de provar a culpa daempresa transportadora. A prova dos danos durante otransporte é suficiente à demonstração da existência docontrato entre as partes e do descumprimento da cláusula de

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incolumidade.A fórmula de buscar no vínculo contratual o

fundamento para a responsabilização sem culpa também setentou no campo do acidente de trabalho. Sinctelette, juristabelga, e Narc Sauze, francês, sustentaram teorias que, emsuma, visualizavam como cláusula do contrato de trabalho agarantia de segurança que o empregador dava ao operário(Lopes, 2001:332).

A solução, embora representasse já um avanço nomovimento de ampliação da proteção das vítimas dosacidentes da era contemporânea, esbarrava em limitesconsideráveis. Ao tempo dessa formulação como teoria detransição, nos fins do século XIX, o princípio da autonomiada vontade não afastava a ressalva de responsabilidade porvia contratual. Além disso, não servia à proteção de vítimasque não mantinham contrato com a empresa de transporte,como o transeunte. Ocupava-se, ademais, a doutrina doestafante e infrutífero debate sobre a unicidade ou dualidadeda noção de culpa (cf. Iturraspe, 1982, 1:78/80). Desde logo,por isso, a matéria teve que ser objeto de disciplina jurídicaespecífica. No Brasil, a lei cuidou da responsabilidade civildas estradas de ferro em 1912, antes mesmo da entrada emvigor do nosso primeiro Código Civil. Essa lei foiextensivamente interpretada pelos tribunais, aplicando-se,desde logo, a outras modalidades de transporte (Cap. 23,subitem 4.5).

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As teorias de transição procuraramjustificar a ampliação das hipóteses deresponsabilização sem descartar oprincípio “nenhuma responsabilidadesem culpa”. A primeira delassustentava-se nas obrigaçõescontratuais do sujeito passivo daobrigação de indenizar, como, porexemplo, nas derivadas da cláusula deincolumidade ínsita aos contratos detransporte.

b) Responsabilidade com presunção de culpa. Nadadenuncia mais o apego à noção da culpa como pressupostoinafastável da responsabilidade civil como a afirmação desua presunção com vistas a ampliar a proteção das vítimas

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dos acidentes da era contemporânea. Esta “teoria desalvação”, na feliz imagem de Giselda Novaes Hironaka(2003:222), procurou, a seu tempo, facilitar a indenização dasvítimas estabelecendo, em lei, a presunção da culpa dosujeito a quem a responsabilidade era imputada. Valeram-sedessa formulação a lei de responsabilidade civil das estradasde ferro, de 1912, e o nosso primeiro Código Civil, de 1916,ao disciplinar a responsabilidade dos donos de animais, porexemplo.

A presunção legal pode ser absoluta ou relativa (Cap.10, item 8.1). No primeiro caso, não se admite contraprova.Quando a lei cria uma presunção desse tipo (juris et de jure),ela torna indisputável o fato presumido. Já na presunçãorelativa (juris tantum), é admissível a contraprova. Se umfato é relativamente presumido pela lei, isto significa apenasuma certa distribuição do ônus de prova, mas a ocorrênciado fato continua disputável. Os dois tipos de presunçãoforam empregados nas formulações de transição. A lei de1912, por exemplo, estabelece presunções absolutas deresponsabilidade civil das estradas de ferro. Quer dizer, elasnão se livram da obrigação de indenizar a vítima do prejuízocausado pela exploração de sua atividade, mesmo queprovem a total ausência de culpa pelo evento danoso. Já nadisciplina da responsabilidade dos donos de animais, oCódigo Beviláqua estabelecia presunção relativa. Aodemandante dispensava-se o ônus de provar a culpa do

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dono do animal relativamente à guarda. Mas o dono,demandado, exonerava-se de responsabilidade provando,por exemplo, que guardava e vigiava com cuidado preciso oanimal, ou seja, que não tinha culpa pelo evento danoso.

Note que a presunção absoluta de culpa equivale àobjetivação da responsabilidade, na medida em que tornairrelevante o pressuposto subjetivo. A ideologia dominanteno fim do século XIX e início do XX não permitia, contudo,imputar responsabilidade a quem não tivesse sido culpadopelo dano. Isso contrariava a noção da vontade como fonteúltima das obrigações. Ainda que absolutamente presumida,a culpa não podia ser descartada na disciplina daresponsabilidade civil. Não havia ainda suficiente acúmulode capital e amadurecimento dos meios de socialização decustos que permitisse a completa negação do princípionenhuma responsabilidade sem culpa.

A segunda teoria de transiçãoalargou as hipóteses deresponsabilização civil preservando aculpa como seu pressuposto por meioda presunção desta.

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Se a presunção da culpa era relativa,a obrigação não se constituía caso odemandado provasse ter agido com acautela exigível de alguém na mesmasituação. Se absoluta a presunção, eraindisputável a existência da culpa.

c) Responsabilidade por culpa administrativa. Estateoria de transição tinha aplicação limitada àresponsabilização do Estado. Fundava-se na noção de que aculpa do Poder Público não era igual à dos particulares.Liberava a vítima de provar a conduta culposa do agente oufuncionário público, sendo suficiente à obtenção doressarcimento a demonstração de falha no serviço. Quandoo serviço público não existe, funciona mal ou tardiamente, osdanos derivados desta falha não podem ser suportados pelocidadão e devem ser ressarcidos pelo Estado. Se o serviçopúblico não foi eficiente como deveria, haverá certamente aculpa de alguém; não é necessário prová-la, contudo. Aprova da falha no serviço da Administração Pública bastapara constituir-se a obrigação de indenizar os prejuízos(Meirelles, 1964:611).

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A teoria da culpa administrativadispensava o prejudicado de provar aconduta culposa do agente oufuncionário público. Era suficiente,para obter a indenização, a prova dafalha do serviço público.

d) Responsabilidade pela guarda da coisa. O CódigoCivil de Napoleão, em célebre dispositivo, fixa as trêshipóteses de responsabilização de um sujeito de direito: porfato próprio, por fato de terceiro que se encontre sob suaresponsabilidade e por fato de coisa sob sua guarda. Porquase um século, a terceira hipótese não despertou maioresatenções. Era considerada, a exemplo das duas outras,responsabilidade por culpa. Para obter a indenização, avítima deveria provar ter sido o acidente causado por coisainanimada (máquina), cuja conservação ou operação peloproprietário não era adequada; isto é, cabia-lhe a prova daculpa do guardião da coisa para ter acesso à indenização.

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Nos fins do século XIX, porém, a doutrina e a jurisprudênciaencontravam-se em busca de soluções mais justas para osdanos provocados por acidentes dessa natureza, cujaquantidade havia aumentado em razão da invenção ouaperfeiçoamento de algumas máquinas (veículosautomotivos, principalmente, como os automóveis, bondes,ferry boats e locomotivas). A complexidade das inovaçõesimpedia que a vítima provasse, com facilidade, a culpa naconservação ou operação da coisa.

A parte final daquele dispositivo do Código Napoleãoajudou na busca. Construiu-se, a partir dela, a tese de que avítima de acidente por fato de coisa inanimada não precisariaprovar senão o dano, presumindo-se a culpa do guardião dacoisa na sua conservação ou operação. As coisas destinam-se a servir ao seu proprietário ou a quem detém a posselegítima sobre elas. Seu uso em proveito deles, contudo,pode expor outras pessoas a riscos de acidente, se não édada à coisa a correta conservação e operação. É dever,assim, de todo o proprietário ou usuário de coisas mantê-lase usá-las adequadamente, de modo a não causar prejuízos aterceiros. Se aconteceu o acidente por fato da coisa,presumivelmente sua conservação e operação não foramadequadas; quer dizer, o guardião da coisa não cuidou delacomo seria necessário. Sua culpa pode ser, por isso,presumida (Diniz, 2003, 7:486/488).

Inicialmente, a tese não foi aceita pelos tribunais na

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Bélgica e em França, sob o argumento de que a lei, sepretendesse tratar a responsabilidade por fato da coisa demodo diverso das outras duas hipóteses — fato próprio e deterceiro —, tê-lo-ia feito por dispositivo específico(Mazeaud-Chabas, 1998:560). Aos poucos, algumasdecisões a adotaram, pressupondo a culpa do guardiãocomo meio de facilitar a indenização da vítima,principalmente nos casos de acidente de trabalho. Oargumento da ausência de previsão legal específica, porém,continuava impressionando e impedindo a larga aceitação datese. Em 1922, foi aprovada uma mudança no dispositivo delei em questão, para incluir expressa previsão no sentido deser da vítima a prova da culpa do guardião, quando osdanos são causados por incêndio em prédio. A mudançalegislativa, à primeira vista, era prejudicial à tese dapresunção da culpa do guardião. Os que a advogavam,contudo, valeram-se dela para construção de argumentodecisivo: se a lei precisou imputar de forma expressa o ônusde prova da culpa do guardião à vítima numa situaçãoexcepcional (incêndio), é porque a regra geral é a dapresunção; se não existisse a presunção de culpa nodispositivo já desde antes da reforma de 1922, a previsãoexcepcional seria dispensável.

Em 1930, a tese da presunção de culpa do guardião dacoisa inanimada foi adotada pela Corte de Cassação. Desdeentão, pacificado o entendimento jurisprudencial, ela se

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difundiu não só em França, como também em outros países.A presunção afirmou-se como absoluta, não mais seadmitindo a exclusão da responsabilidade do guardiãomediante a prova da inexistência de culpa (Rodrigues,2002:92). Tem sido largamente utilizada, inclusive nafundamentação da responsabilidade do poluidor pelos fatosdos dejetos industriais (Martin, 1992). Os que consideram aobjetivação como estágio evolutivo de toda aresponsabilidade civil aplaudem a tese da responsabilidadepela guarda do direito francês como clara manifestaçãodessa tendência (Dias, 1954, 2:32/34; Lima, 1960:125). Naverdade, encaixa-se melhor num contexto de transição, emque não se havia ainda encontrado fundamento racionalpara afastar o pressuposto subjetivo (Gil, 1983:258).

A derradeira teoria de transição é adoutrina, criada no direito francês, deresponsabilidade pela guarda da coisainanimada (máquinas). O proprietáriodo automóvel, por exemplo, respondepelos acidentes causados pelo veículo

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porque se considera que não teriahavido o dano se a coisa tivesse sidoadequadamente conservada e operada.

A doutrina da responsabilidade pela guarda suscita,entre outras questões, a da identificação do guardião. Emprincípio, ele é o proprietário da coisa inanimada, mas hásituações em que a posse da coisa está, legítima ouilegitimamente, em mãos de terceiros — locatário,empregado, ladrão etc. Mesmo em alguns desses casos, ajurisprudência francesa tem considerado o proprietário oguardião, para fins de imputar-lhe responsabilidade pordanos. No direito brasileiro, a tese da responsabilidade pelaguarda da coisa repercutiu em obras doutrinárias, masrecebeu tímida acolhida nos tribunais (Rodrigues,2002:95/97). Os caminhos pelos quais se tem procurado,entre nós, ampliar a proteção da vítima de acidentescausados por máquinas são outros.

4. FUNÇÕES DA RESPONSABILIDADE CIVILA função da responsabilidade civil é principalmente

ressarcir os prejuízos da vítima. A recomposição dopatrimônio ou do direito do sujeito lesado por ato

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juridicamente imputável a outrem é o objetivo primário dasregras de responsabilização. Não deixa de existir, nestaprimazia, ranços da vingança pessoal que inspirara a regrade Talião. Ao sujeito ilegitimamente lesado é reconhecido odireito de receber compensação, pecuniária ou não, cujacontrapartida é a redução do patrimônio do devedor,causador do dano ou responsável por ele. Afastando osvestígios do primitivo arquétipo, aponta-se o ressarcimentoda vítima como meio de tutela da indenidade. A ordemjurídica procura garantir a todos os sujeitos a preservaçãode seus direitos (patrimoniais ou da personalidade), nosentido de assegurar sua recomposição sempre queimputável a outrem qualquer sorte de prejuízo que osacometa.

Tanto a responsabilidade civil subjetiva como a objetivacumprem a função de compensação. Seja na hipótese dedano causado por culpa do devedor, seja na de imputaçãode responsabilidade por ato lícito, a função da regraconstitutiva do vínculo obrigacional é transferir dopatrimônio do devedor para o do credor bens queneutralizem o prejuízo por este último experimentado. Ocumprimento da obrigação de indenizar reconduz o credor àcondição anterior ao evento danoso. A funçãocompensatória visa reequilibrar o que o prejuízodesequilibrou.

A compensação é feita normalmente mediante

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pagamento em dinheiro. A obrigação constituída porresponsabilidade civil é via de regra pecuniária. Disso não sesegue, porém, que equivalha invariavelmente ao danosofrido. Quando o prejuízo é meramente patrimonial, acompensação é equivalente ao dano. O devedor tem aobrigação de pagar ao credor o valor do prejuízo. Não seopera, neste caso, enriquecimento da vítima, que deveapenas ver seu patrimônio recomposto à mesma condiçãoanterior ao dano. Já se o prejuízo é (exclusiva ouinclusivamente) extrapatrimonial, no caso de danos morais, ovalor a ser pago em dinheiro não é equivalente ao dano. Ador moral é, rigorosamente falando, insuscetível de avaliaçãopecuniária. O dinheiro que o devedor paga, nesta hipótesede compensação, não tem relação nenhuma com qualquertipo de redução do patrimônio do credor. Sempre que devidaa indenização por danos extrapatrimoniais, a vítimaenriquece. A função da responsabilidade civil, assim, écompensar o credor do vínculo obrigacional, sejarecompondo prejuízos patrimoniais na mesma medida, sejaassegurando-lhe aumento no patrimônio em contrapartida àdor moral experimentada.

A principal função daresponsabilidade civil é compensar os

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danos sofridos pelo sujeito ativo. Seforem eles exclusivamentepatrimoniais, a indenização teráequivalência ao valor dos danos, e ocredor não se enriquece com opagamento. Se foremextrapatrimoniais, não há estaequivalência e o credor enriquece como cumprimento da obrigação deindenizar.

Além da função compensatória, cumprem as duasespécies de responsabilidade civil também outra que lhes écomum: a preventiva. Ao determinar a constituição devínculo obrigacional cuja prestação é a compensação deprejuízos, a lei contribui para a prevenção destes. Aresponsabilidade subjetiva e a objetiva, porém, cumprem afunção preventiva de modo diferente. Para compreender adiferença, convém examinar antes as funções específicas de

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cada espécie: enquanto a responsabilidade subjetivasanciona atos ilícitos, a objetiva viabiliza a socialização decustos.

Quem retorna aos tempos em que os pretores ejurisconsultos romanos davam interpretação ampliativa daLei Aquília ou em que os juristas franceses discutiam ocritério geral da responsabilidade civil que acabouinspirando o Código Civil de Napoleão, percebe que oprimeiro vetor a nortear a identificação das externalidadesnegativas que deveriam ser internalizadas foi a repressão acondutas indesejadas. A lesão no patrimônio de um sujeitodevia ser compensada porque era derivada de um ato ilícitode alguém. Se todos haviam se comportado como deviam, odano seria suportado pelo próprio lesado (res perit domino),já que proveniente de infortúnio. A responsabilidade civiltem, então, desde o início o sentido de coibir condutasproibidas.

Note-se que, ao cumprir a função sancionatória, aresponsabilidade civil subjetiva aproxima-se das duas outrasórbitas de responsabilização jurídica: penal e administrativa.Ao motorista que, transitando em velocidade muito acima dapermitida, provoca acidente de trânsito com vítima fatalimputa a lei responsabilidade civil (deve indenizar os danosmateriais e morais), penal (comete crime de homicídioculposo) e administrativa (incorre em infração pela qual émultado). As sanções correspondentes a essas três órbitas

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de responsabilização jurídica são consequências negativasdiversas e autônomas — nem sempre sobrepostas — que alei estabelece para as condutas indesejáveis. A punição naforma da lei é a única via admissível nas sociedadesdemocráticas de evitá-las.

A responsabilidade civil, quandosubjetiva, cumpre também a funçãosancionatória. A obrigação deindenizar representa a punição dosujeito passivo pela prática do atoilícito.

A função sancionatória é exclusiva da responsabilidadecivil subjetiva, constituída em decorrência da prática de atoilícito. No âmbito da responsabilidade civil objetiva, odevedor responde mesmo não tendo incorrido em nenhumailicitude. Praticou apenas atos conformes ao direito vigente,que importam benefícios não somente para ele, como paraoutros ou mesmo para a sociedade como um todo. Sua

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obrigação de indenizar não decorre de nenhuma condutaindesejável e, portanto, não tem sentido considerá-la umapena.

A responsabilidade civil objetiva cumpre a funçãoespecífica de socializar custos de certa atividade. Aresponsabilidade por acidentes de consumo ilustra bem omecanismo. Pense no fornecimento de energia elétrica, feitopor inúmeros cabos que atravessam o País, espalham-sepelas cidades e capilarizam-se no interior das casas,apartamentos, escritórios, lojas e prédios. Essa imensa rede,ao mesmo tempo em que proporciona uma imensurável gamade comodidade (desde o banho quente diário até operaçõesfinanceiras via internete) a quase todos os brasileiros,também os expõe a riscos consideráveis. Se uma antena desustentação é danificada — por raio, ato de vandalismo outerrorismo, acidente causado por terceiros ou qualquer outroevento diverso de culpa da concessionária — e, emdecorrência, rompem-se os cabos de alta tensão, isso podeimplicar danos fatais às pessoas atingidas pela descargaelétrica. Se formos tratar a questão unicamente à luz dop r in c íp io nenhuma responsabilidade sem culpa,chegaríamos à conclusão da irresponsabilidade daconcessionária. Afinal, no exemplo aqui cogitado, ela agiuexatamente como deveria ter agido na manutenção eoperação da rede: o rompimento do cabo de alta tensãodecorreu de fortuito (raio) ou de atos não imputáveis a ela

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(vandalismo, terrorismo etc.). Tratando, porém, a hipótese nocontexto da responsabilidade objetiva, percebe-se, antes detudo, que os consumidores de energia elétrica são osbeneficiários de sua oferta ao mercado de consumo (claroque não são os únicos: também a concessionária sebeneficia com os lucros auferidos). São eles que terãoacesso às inúmeras comodidades proporcionadas pelaeletricidade. O fornecimento da energia, porém, implicatambém riscos de danos às pessoas em geral, a quasetotalidade delas também consumidoras de eletricidade. Poisbem, a responsabilidade por indenizar os danos associadosao fornecimento de energia elétrica pode ser imputada àconcessionária porque ela ocupa uma posição econômicaque lhe permite, sem dificuldade, socializar os custoscorrespondentes entre os beneficiários do fornecimento.Cada consumidor, ao pagar sua conta de luz, irá desembolsarum pouco mais pela energia, para que todos tenhamos agarantia de indenização no caso de acidente de consumo.Em suma, o ressarcimento pelos prejuízos dos acidentes narede de transmissão compõe o custo da energia elétrica. Este— como todos os demais custos, diretos ou indiretos, daatividade de fornecimento de eletricidade — é embutido nopreço a ser pago pelo consumidor. Em consequência, quemse beneficia da atividade arca com os riscos a elaassociados. A responsabilidade civil objetiva realiza, dessemodo, a socialização de custos (alguns autores preferem

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falar em “socialização de riscos” ou “distribuição deperdas”, operando com conceitos semelhantes).

A responsabilidade civil, quandoobjetiva, cumpre também a função desocialização de custos. Os exercentesde algumas atividades podemdistribuir entre os beneficiários delasas repercussões econômicas dosacidentes, mesmo que não tenhamnenhuma culpa por eles.

Assim, de um lado, a função compensatória é comum àresponsabilidade civil subjetiva e objetiva; de outro, afunção sancionatória é específica da subjetiva e a desocialização de custos, da objetiva. Por fim, existe, comodito, uma outra função comum às duas espécies, que é apreventiva. Tanto a responsabilidade subjetiva como aobjetiva auxiliam a prevenção dos danos; fazem-no de modo

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peculiar, porém.A sanção imposta pela responsabilidade civil subjetiva

tem em mira, em última análise, evitar novos danos da mesmanatureza. O motorista, apenado com a obrigação de indenizara vítima de sua imprudência, em tese tende a procurar sermais cauteloso — pelo menos, isso também se espera daaplicação das normas de responsabilização civil subjetiva. Aprópria função sancionatória, assim, pode expressar-setambém pela ideia de prevenção. Desestimulando ascondutas ilícitas causadoras de prejuízos a interesse alheio,a sanção civil contribui para que estes sejam evitados.Referir-se à contribuição da lei para que novos danos damesma natureza não ocorram seria apenas um mododiferente de explicar a punição. Sanção e prevenção são,desse modo, indissoluvelmente ligadas.

A responsabilidade civil objetiva, por sua vez, nãocumpre função sancionatória. Por definição, o devedor daobrigação de indenizar não incorreu em nenhum ilícito. Eleresponde pelo dano apenas porque se encontra numaposição econômica que lhe permite socializar os custos desua atividade entre os beneficiários dela. Ao serresponsabilizado, ele não é punido, até mesmo porque nadafez de ilegal, segundo o direito em vigor. A indenizaçãodevida pelo Município aos proprietários de imóveisdesvalorizados pela proximidade de determinada obra viárianão é uma sanção imposta a ele com o objetivo de puni-lo

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por algo que não deveria ter feito.Aparentemente, por não ser sanção, a responsabilidade

civil objetiva também não cumpriria a função preventiva. Senenhuma mudança de comportamento é exigível do devedor,a imputação da responsabilidade não teria o efeito dedesestimular a conduta originária dos danos. Temia-se, nopassado, que a responsabilidade objetiva, além de não servircomo medida de prevenção, acabasse contribuindo para oincremento dos acidentes por retirar o freio moral àscondutas potencialmente danosas (cf. Ripert, 1925:207/226).Parecia que, se o sujeito responderia de qualquer forma pelaindenização, não seria estimulado a observar condutas maiscautelosas, aprimorar controles na produção ou circulaçãode bens ou serviços, atentar para os efeitos prejudiciais deseus atos, ou seja, de algum modo alterar seucomportamento para evitar o dano. A função preventiva, porisso, sempre foi relacionada ao pressuposto subjetivo, àrepressão aos atos ilícitos (cf. Alpa, 1999:138/139).

Assim não é, contudo. Mesmo não tendo funçãosancionatória, a responsabilidade civil objetiva cumpre, aseu modo, a função de prevenir novos prejuízos ouacidentes. O mecanismo preventivo é diverso do que opera aresponsabilidade subjetiva, mas existe. Em vez de proibir aconduta originadora dos danos e sancionar a transgressão,a lei estimula o agente a buscar a prevenção como meio deredução dos seus custos. Na competição empresarial, todos

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sabem, estar em condições de vender produto de igualqualidade do concorrente por preço mais baixo é fatordecisivo. Se um empresário consegue reduzir a margemestatística dos acidentes de consumo inevitáveis associadosao seu produto, ele poderá praticar preço menor que os dosconcorrentes que não conseguiram a mesma redução. Emoutros termos, ele terá menos custos a socializar entre osconsumidores que os demais empresários com que compete,e poderá cobrar por seu produto preço inferior ao deles. Aseu turno, quando a Prefeitura é instada a considerar entreos custos de qualquer obra viária as eventuais indenizaçõesaos proprietários que teriam seus bens desvalorizados, elapesquisará melhores empregos para os recursos de quedispõe, investindo na busca de solução para o problema dotráfego que não desvalorize os imóveis vizinhos.

A responsabilidade, por fim, cumprefunção preventiva. Quando subjetiva,ao sancionar o ato ilícito desestimulaa sua prática; quando objetiva, aotratar a indenização como custo de

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atividade estimula a prevenção dosacidentes ou prejuízos como medida deracionalidade econômica.

Guido Calabresi assinala que, ao desestimular condutaspotencialmente danosas, a responsabilidade civil contribuipara a redução da quantidade e gravidade dos acidentes e,consequentemente, dos custos a eles relacionados.Previnem-se acidentes tanto por meio de proibição adeterminados atos ou atividades como tornando estasmenos lucrativas. Para Calabresi, aliás, a função preventivada lei é mais importante até mesmo que a de compensar asvítimas pelos prejuízos. Privilegiado o objetivo de reduçãodos custos associados aos acidentes, a responsabilidadecivil é mais eficiente ao evitá-los que ao atenuar seus efeitos(1970:24/31). Desse modo, a prevenção é função tanto daresponsabilidade civil subjetiva como da objetiva, embora demodos bem diferentes (Alpa-Bessone, 2001:22/23; 566/578).

Para encerrar, vale registrar o alerta de André Tunc parao fato de que a prevenção de acidentes depende, naverdade, de uma política ampla, que se valha de meios maisefetivos que a ameaça da responsabilização (1989:141 epassim). Em suma, a responsabilidade civil pode contribuircom a prevenção de danos e acidentes, mas não substitui

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medidas realmente capazes de promover mudançascomportamentais e culturais, que são de naturezapedagógica.

5. PRINCÍPIO DA INDENIDADEA convivência em sociedade pressupõe tanto a

internalização de algumas externalidades negativas como anão internalização de outras delas. Não há organizaçãosocial sem interferências prejudiciais de algumas pessoassobre a situação, interesses ou bens de outras, mas apenasuma parte delas deve ser compensada (Tunc, 1989:24). Adificuldade com que se deparam legisladores, juízes etecnólogos do direito no tratamento da matéria resideexatamente em segregar as externalidades negativas quedevem ser compensadas das demais; em outros termos,consiste em definir que prejuízos derivados de condutasalheias são indenizáveis e quais não o são.

Viu-se acima (item 1), no exemplo do portador de doençarara, que não é a relevância do prejuízo para a vítima quedetermina sua ressarcibilidade. Prejuízos sem granderelevância para a vítima são indenizáveis (o fornecedor tem aobrigação de indenizar o consumidor, mesmo que seja ínfimoo valor do dano), ao passo que não o são alguns deconsiderável repercussão (uma concorrência competente elealmente empreendida pode levar à falência o negócioalheio sem que o dono deste possa reclamar ressarcimento).

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A externalidade negativa é internalizável, na verdade, emfunção das necessidades gerais da organização econômica,às quais corresponde um complexo sistema de valoresdesenvolvidos pela sociedade e expressos nas normasjurídicas imputadoras de responsabilidade civil. Isso ficaclaro, por exemplo, no aparecimento da responsabilidadeobjetiva no século XX. A imputação de obrigação deindenizar a quem não comete nenhum ilícito, bem assim asmudanças ideológicas que acompanharam a evolução doinstituto jurídico pressupõem determinado acúmulo decapital. Se algum gênio jurídico tivesse eventualmenteformulado a teoria da responsabilidade objetiva antes doamadurecimento do capitalismo, é provável que suaelaboração não tivesse repercussões de relevo; seriaconsiderada um verdadeiro equívoco de seu autor.

Até o início da segunda revolução industrial (1860-1914), os acidentes que vitimavam os operários em seucontato diário com as máquinas não eram consideradosindenizáveis. Mesmo hoje, com constantes campanhaseducativas e desenvolvimento de tecnologias de segurançado trabalho, há uma margem estatística de inevitabilidadenesses acidentes. O operário muitas vezes se desconcentra esofre a lesão por descuido dele mesmo. No passado, em quemedidas preventivas não existiam e o empregador não sedera conta dos prejuízos que ele próprio sofre com osacidentes de trabalho, estes se multiplicavam matando ou

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ferindo milhares de operários. A inevitabilidade afastava ahipótese de culpa ou dolo do empregador e classificava oevento como caso fortuito: ninguém respondia pelos danos.O operário arcava sozinho com as consequências doacidente; se perdia a capacidade laborativa, ficavacondenado à miséria. Desde o fim do século XIX, porém, oacúmulo de capital possibilitou a criação de mecanismos deamparo dos empregados na hipótese de acidente detrabalho, no contexto da seguridade social (Tunc,1989:27/28; Russomano, 1979:303/312). Foi Bismarck,chanceler da recém-unificada Alemanha, que criou, em 1888,o primeiro sistema público de compensação de acidentes detrabalho. Em todo o mundo, principalmente no decorrer doséculo XX, surgiram, com as contribuições dos assalariados,dos empregadores e de toda a sociedade, fundosresponsáveis pelo pagamento de algum auxílio aoacidentado — que, se não os indeniza por completo, pelomenos reduz as repercussões do evento danoso inevitável.Esses fundos distribuem os custos dos acidentes entre aspessoas expostas a eles (empregados) e os beneficiadospela atividade geradora do risco (empregadores esociedade). No Brasil, o INSS deve aos acidentados umbenefício previdenciário específico (Lei n. 8.213/91, arts. 19 a21).

A definição das externalidades negativas passíveis deinternalização não deriva da simples vontade dos homens e

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mulheres envolvidos com a elaboração e aplicação dasnormas jurídicas. No passado, os danos inevitáveisderivados de uma atividade não eram indenizáveis, e hojesão, não porque subitamente se atentou para a injustiça daexclusão da responsabilidade na hipótese, mas sim porque oacúmulo de capital é já suficiente para a internalização dessaexternalidade. No futuro, dependendo do desenvolvimentoda organização econômica, talvez o portador de doença rarapossa ter o seu infortúnio de alguma forma compensado pelasociedade.

Em termos puramente lógicos, a regra seria a dairresponsabilidade. Em princípio, cada um deveria arcar comseus próprios prejuízos, e a imputação a outrem deresponsabilidade civil por eles teria natureza de exceção. Aotitular do interesse ou bem prejudicado caberia o ônus deprovar o ato ou fato constitutivo da obrigação de alguém oindenizar, se quisesse ser ressarcido pelos danos. Esseesquema, que dava certa congruência lógica à inserção daresponsabilidade civil no direito das obrigações, foilargamente aceito durante muito tempo. Mas, desde meadosdo século passado, não tem mais servido à estruturação dosfundamentos da disciplina. O valor básico desenvolvidopela jurisprudência e tecnologia jurídica no tratamento dosconflitos de interesses relacionados a acidentes e danos emgeral tem sido, desde então, o da busca da ampliação daindenidade.

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Pelo princípio da indenidade, aelaboração, interpretação e aplicaçãodas normas de responsabilidade civildevem ser feitas com o objetivo defacilitar o acesso da vítima àindenização. Não é possível sustentar-se nele, porém, a indenidade plenaprometida pelo Estado mutualista;muito menos a indenidade absoluta,que parece ser incompatível com avida em sociedade.

Privilegia-se, então, a preservação da situação,interesses e bens de cada um. Como se todostitularizássemos o direito de não os ter alterados contranossa vontade. Se qualquer conduta alheia interfere

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negativamente na situação, interesses ou bens de certosujeito, ele tem assegurado pelo Direito o retorno ao statusquo ante — tal passa a ser o valor perseguido pelas normasimputadoras de responsabilidade civil. Chama-se a noção deprincípio da indenidade. Em função dele, a regra é a daindenizabilidade de qualquer dano sofrido por um sujeito dedireito por causa de outra pessoa; a exceção é a inexistênciade responsabilidade.

O princípio da indenidade inverte a equaçãofundamental do tratamento da matéria, que afirmava airresponsabilidade como regra, e alarga o âmbito deincidência das normas imputadoras de responsabilidadecivil. Busca-se por ele a facilitação do acesso da vítima àindenização.

Em decorrência desse princípio jurídico, o objetivo daresponsabilidade civil tem sido amparar a vítima, facilitandoa recomposição dos prejuízos. Mas não se pode desprezarque o grau de internalização das externalidades negativas éregido, em última instância, pelo estágio de evolução dasforças produtivas e não por decisões livres dos sereshumanos. Não há acúmulo de capital suficiente, porenquanto, para cogitar-se da indenidade plena (emboraesteja já em curso experiência com este objetivo na NovaZelândia — subitem 5.1). Em suma, o princípio da indenidadenão implica a responsabilização de todo sujeito cuja ação ouomissão seja, direta ou indiretamente, prejudicial a alguém.

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Até mesmo porque indenidade plena não significaindenidade absoluta: para que seja possível a vida emsociedade, algumas externalidades negativas não são e nãodevem ser internalizáveis.

5.1. Estado mutualista: a experiência neozelandesaQuando a preservação da situação, interesse ou bem

dos sujeitos lesados por conduta alheia garante-se apenaspor norma de responsabilidade civil (isto é, por preceitoslegais de direito privado), surgem duas preocupações. Deum lado, a indenidade pode ser ameaçada pela incapacidadeeconômica do agente a quem se imputa o dano. Se nãodispuser ele de recursos patrimoniais para cumpririnteiramente a obrigação indenizatória, a vítima continuaráarcando com pelo menos parte do prejuízo. Por outro lado,também não parece justo nem racional que a imputação deresponsabilidade civil possa levar o devedor da obrigaçãoindenizatória à ruína econômica. Pode ocorrer de o valor dodano provocado por uma só conduta negligente equivalerou superar o do patrimônio amealhado ao longo de umadedicada vida de trabalho. Diante destas preocupações,costuma-se apontar como solução a obrigatoriedade dacontratação de seguros privados ou mesmo a implantaçãode sistemas públicos de socialização de riscos. São medidasque visam tornar efetivos os objetivos prestigiados peloprincípio da indenidade.

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Além dos fundos de seguridade social destinados aoamparo de vítimas de acidente de trabalho, outrosmecanismos de socialização das repercussões econômicasde eventos danosos desenvolveram-se ao longo do séculoXX. Os acidentes automobilísticos, por exemplo,despertaram preocupações semelhantes aos de trabalho,porque mesmo os motoristas mais cautelosos vez por outraos causam. Pesquisas nos Estados Unidos concluíram queos motoristas cometem em média um erro a cada trêsquilômetros, e que, numa cidade planejada comoWashington, os bons condutores (como tais definidos osque não se envolvem em acidente há quatro anos), incorremem mais de nove erros de quatro tipos diferentes em cincominutos de direção (Tunc, 1989:116).

A obrigatoriedade do seguro privado é um dosinstrumentos da lei para buscar a ampliação da indenidadenos casos de acidente de trânsito. No Brasil, todo oproprietário de veículo automotor terrestre é obrigado acontratar seguro para a cobertura de danos pessoaiscausados em eventos dessa natureza (Lei n. 6.194/74). Emalguns lugares, como na Argélia ou em Québec, os segurosautomobilísticos são públicos; representam, como propõeAndré Tunc, um ramo da seguridade social (1989:29). Aimputação de responsabilidade civil, nestes casos, é, porassim dizer, substituída por instrumentos de direito público:norma administrativa que condiciona o licenciamento do

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veículo à contratação do seguro obrigatório ou criação daseguradora pública. No limite, cogita-se de um Estadomutualista, isto é, de organização estatal que se arvorafunção de seguro de todo e qualquer dano. Além do quepropõe o Estado do bem-estar social — isto é, proveraposentadoria, auxílio-desemprego, pensão por morte eamparo em caso de acidentes de trabalho —, o Estadomutualista busca garantir a plena indenidade em qualquerhipótese de evento danoso que possa vitimar seusjurisdicionados: trânsito, erros médicos, má conservação depasseios públicos, sequelas psíquicas de crimes sexuais etc.

Existe, até hoje, uma única experiência de Estadomutualista. Trata-se da Nova Zelândia, que, em 1974, criouum inédito sistema de reparação de danos provocados porqualquer tipo de acidentes, não somente os de trabalho eautomobilísticos, cuja administração foi atribuída a umaagência estatal, a Accident Compensation Commission(ACC). Em virtude desse sistema, qualquer cidadãoneozelandês e mesmo o estrangeiro residente ou visitanteque vierem a sofrer acidente na Nova Zelândia têm o direitode receber da ACC o pagamento das despesas médico-hospitalares com tratamento, transporte e reabilitação, alémde pensão semanal, indenização por incapacidadepermanente e pelos danos morais sofridos. Em caso demorte, o cônjuge e os filhos têm direito aos benefícios. AACC também paga — por enquanto apenas para cidadãos

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neozelandeses — tratamento psicológico às vítimas deestupro e outros crimes sexuais.

Atualmente, os recursos do sistema são provenientesde dotação orçamentária (isto é, dinheiro resultante dopagamento de tributos em geral), contribuições (premiums)pagas pelos empregadores, tomadores de serviços,profissionais autônomos e empregados domésticos, além deimposto incidente sobre o preço dos combustíveis e parte dataxa de licenciamento de veículos.

O sistema neozelandês de busca da ampla indenidadetem-se aperfeiçoado desde a implantação. Houve reformasem 1982, 1990, 1992, 1998, 2000 e 2001. A mais significativadelas, por se referir a aspectos fundamentais de um Estadomutualista, foi a de 1998, durante o governo do PartidoNacionalista. Nela, a lei foi alterada para se admitir o seguroprivado de acidentes de trabalho, retirando o monopólionesse setor da ACC. Com a eleição dos trabalhistas, porém,restaurou-se em 2000 o critério anterior, de cobertura pelaseguridade social de todos os eventos danosos. O objetivoda reforma de 2001, a seu turno, foi acentuar a adoção pelaACC de medidas preventivas dos acidentes, com o objetivode contribuir para a economia dos recursos existentes.

Em razão desse sistema, a lei neozelandesa não imputaresponsabilidade civil ao sujeito que causa o acidente(Tunc, 1989:81). Se, em viagem a Auckland, um brasileiro éatropelado por imprudência do condutor do automóvel, ele

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terá direito de receber os benefícios da ACC, mas nãopoderá processar o motorista ou o proprietário do veículo.Da mesma forma, se um neozelandês sofre acidentepraticando rafting no rio Shotover, e, ao ser submetido acirurgia reparadora num hospital de Queenstown, tem omovimento de suas pernas irreversivelmente danificados porerro médico, ele não pode reclamar indenização contra oprofissional ou o estabelecimento hospitalar, mas apenaspleitear na ACC os benefícios da lei (Injury Prevention,Rehabilitation, and Compensation Act, de 2001).

Está em curso, desde os anos 1970,na Nova Zelândia, uma experiênciaúnica até agora de implantação doEstado mutualista. Todos os acidentesgeram para o Estado a obrigação depagar um benefício ao acidentado, masninguém pode ser civilmenteresponsabilizado por eles.

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Embora a Nova Zelândia pareça estar bastante satisfeitacom o sistema, nenhum outro país, até agora, ousou imitá-la— nem mesmo a Austrália, a despeito das enormessemelhanças culturais, históricas e econômicas que a unemao vizinho. A experiência do Estado mutualistaprovavelmente não deve expandir-se, senão após um novogrande ciclo de acumulação capitalista que permita a criaçãode mecanismos sociais de garantia da plena indenidade. Nãoparece próximo, porém, esse cenário. Até lá, continuarásendo por meio da responsabilidade civil — isto é, porregras de direito privado — que as vítimas poderão buscarcompensação pelas externalidades negativas que asatingem.

5.2. Responsabilidade objetiva puraSão quatro os sistemas de responsabilidade civil: a

subjetiva clássica, subjetiva com presunção de culpa,objetiva simples e objetiva pura. Nos dois primeiros, opressuposto subjetivo é relevante, enquanto nos últimosnão. Os sistemas subjetivos distinguem-se, por sua vez, peladistribuição do ônus da prova. Numa demanda judicial emque se pleiteia a indenização de danos regida pelo sistemada responsabilidade subjetiva clássica, cabe ao demandante(vítima) provar a culpa do demandado; se a regência damatéria faz-se pelo sistema de responsabilidade subjetiva

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com culpa presumida, o ônus da prova inverte-se e aodemandado (a quem se imputa a responsabilidade) competedemonstrar a inexistência de culpa para exonerar-se daobrigação. No Brasil, a responsabilidade do proprietáriopelos danos causados pela ruína do imóvel rege-se pornorma de presunção de culpa (CC, art. 937). Finalmente, ossistemas objetivos distinguem-se pela relevância da relaçãode causalidade na constituição do vínculo obrigacional.Quando simples (ou “comum”), não há responsabilidadedaquele que, de algum modo, não contribuiu para oacidente; na pura (ou “agravada”), ao contrário, o devedorobriga-se a despeito de inexistir qualquer relação decausalidade que ate sua atividade ao dano.

A responsabilidade dos fundos públicos é classificadacomo objetiva pura, porque prescinde, para a suaconstituição, de relação de causalidade entre qualquerconduta dela, devedora do benefício, e o dano suportadopela vítima credora. Se a responsabilidade subjetiva estácondicionada a três pressupostos (culpa do devedor, danodo credor e relação de causalidade entre aquela e este), e aobjetiva simples a dois (dano do credor e relação decausalidade entre atividade ou ato do devedor e este), asubespécie objetiva pura depende apenas do dano infligidoao sujeito ativo da relação obrigacional. Esta subespécie,porém, escapa do interesse do direito privado. Cuida dasobrigações constituídas por responsabilidade objetiva pura

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no ramo ou ramos do direito público. Das obrigações, noBrasil, que a lei reserva ao INSS trata o direitoprevidenciário.

O sistema de responsabilidade objetiva pura procuraafastar as ameaças ao princípio da indenidade que a soluçãode direito privado oferece. Quando o devedor da obrigaçãode indenizar não tem patrimônio suficiente para recompor oprejuízo por completo ou o cumprimento da obrigação o levaà ruína, o resultado é incontestavelmente injusto efrustrante. O seguro de responsabilidade civil costuma serapontado como alternativa (Tzirulnik, 2000; Alpa, 1993), masesbarra em dificuldades de cumprir o objetivo de afastaraquelas ameaças à indenidade, principalmente a partir dasubstituição, generalizada no mundo todo, da cláusula lossoccurence pela claims made. Por enquanto, apenas asocialização dos riscos pela constituição de fundos públicosresponsabilizáveis segundo o sistema de responsabilidadeobjetiva pura tem-se apresentado como alternativa eficienteà solução de direito privado.

Registre-se que é considerada por alguns tecnólogoscivilistas como exemplo de responsabilidade civil objetivapura a das estradas de ferro por danos derivados de ato deterceiro que vitima o passageiro durante o transporte (Dec.n. 2.681/12, art. 18). Se alguém atravessa com seu veículo aferrovia desrespeitando o bloqueio que anunciava apassagem do trem, é evidente que a culpa pelo desastre não

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cabe à estrada de ferro. Ela tem, no entanto, aresponsabilidade de indenizar os danos sofridos por seuspassageiros, cobrando-os em regresso do culpado peloevento. Para os que veem nesta hipótese exemplo deresponsabilidade objetiva pura, não se teria estabelecidoqualquer relação de causalidade entre o dano suportadopelo credor e a conduta do devedor, mas este respondeporque a atividade geradora do risco traz-lhe vantagens. Oagravamento da objetivação no sentido de dispensar atémesmo a relação de causalidade é vista, então, como novaetapa evolutiva da tendência iniciada com a superação dopressuposto subjetivo (cf., por todos, Noronha, 1999:37/38).

Não concordo com essa forma de classificar a matéria,que acaba reconhecendo hipótese de responsabilidadeobjetiva pura no campo do direito privado. Naresponsabilização do empresário por acidente de consumocausado por ato de terceiro (é este o caso do desastre nalinha ferroviária não derivado de culpa da estrada de ferro)não se encontra, a meu ver, nenhuma modalidade diversa deobjetivação. Regem a matéria normas do sistema deresponsabilidade objetiva simples. Independentemente daorigem — ato do empresário, de seus empregados ou deterceiros —, o acidente de consumo é custo da atividadeempresarial, que as normas de responsabilidade civilsocializam entre os consumidores. Desse modo, pelaclassificação adotada neste Curso, não há imputação de

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responsabilidade civil pura regida por normas de direitoprivado. A responsabilidade objetiva pura é sempre matériade interesse do direito público.

5.3. Distorção do princípio da indenidade: o Judiciário comojusticeiro

Pelo princípio da indenidade, a lei deve facilitar o acessoda vítima à indenização. A interpretação e aplicação dasnormas de responsabilidade civil, subjetiva ou objetiva,devem ser feitas com atenção a este princípio, não hádúvida. Não se podem, porém, perder de vista osfundamentos de cada espécie de responsabilidade civil,sempre que discutida a imputação a um sujeito da obrigaçãode indenizar. Do princípio da indenidade não se segue quetodo e qualquer dano deva ser reparado. Continuam a existirexternalidades negativas não suscetíveis de internalização.

Por vezes, a má compreensão do alcance do princípio daindenidade se traduz numa infeliz tendência de setores doPoder Judiciário no sentido de condenar certos sujeitos dedireito a indenizar outros tão somente pelo fato de seremmais ricos. Quando o consumidor demanda o empresário, oparticular processa o Estado ou o necessitado reclama doINSS, muitas vezes alguns juízes adotam um raciocíniosimplista ao imputarem a responsabilidade ao demandado.No fundamento da decisão encontram-se difusas referênciasà objetivação da responsabilidade e ao princípio da

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indenidade, mas a leitura atenta da sentença ou acórdãopermite concluir que a razão verdadeira da condenação eraapenas a condição econômica mais favorável do réu.

A lógica, no plano isolado da lide em julgamento, éirrepreensível. Para o demandado, tendo em vista sua forçaeconômica, a condenação representa impacto econômico oupatrimonial de pequena ou nenhuma relevância, facilmenteabsorvível; para o demandante, por outro lado, está emquestão muitas vezes a própria sobrevivência e a de suafamília. Não custa nada, em outros termos, condenar aqueleempresário, o Estado ou o INSS a pagarem o relativamentepouco pleiteado pelo autor. Movidos, então, por sincerosvalores de justiça, os juízes adotam a solução simplista: tiramdo rico para dar ao pobre. Adotam postura que já foiqualificada alhures, em referência ao comportamento dejurados envolvidos com o julgamento de causas cíveiscontra empresas nos Estados Unidos, como a de ummoderno Robin Hood, impulsionada pela natural simpatiaque desperta no espírito do julgador popular a causa dofraco em litígio contra o forte (cf. Hans, 2000:13 e 22).

Essa distorção do princípio da indenidade trata opatrimônio dos réus como verdadeiras cornucópias, de ondese podem extrair recursos infindáveis para aplacarinfortúnios alheios. Normalmente esses réus são sujeitos dedireito a quem a lei imputa responsabilidade objetiva e,portanto, ocupam posição econômica que lhes permite

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socializar custos da atividade; são vistos, assim, comocapazes de suportar sem dificuldade qualquer condenação(deep pocket method); isto, porém, é um equívoco. Se, noplano isolado da lide, o pleito tem pequeno ou nenhumimpacto para o patrimônio do demandado e relevância ímparpara o do demandante, sua repetição pode importar sériocomprometimento não só para o condenado como para todaa sociedade. No limite, se os empresários de um setor sãonormalmente condenados a suportar indenizaçõesimputadas em razão do método deep pocket, quem acabapagando por isso, é o consumidor do produto ou serviço emquestão. Essas indenizações pressionam os preços paracima, são fontes de carestia. No mundo de economiaglobalizada, além disso, tal distorção do princípio daindenidade conduz ao afastamento de investidoresestrangeiros, que vão procurar oportunidades de negócioem outros países de maior racionalidade nos marcosinstitucionais.

O juiz, ao apreciar casos de responsabilidade civilobjetiva, deve atentar para o mecanismo de socialização decustos que ela forçosamente viabiliza, de modo a não acabaragravando de forma injusta aqueles que, em última análise,vão suportar as consequências da decisão judicial.Considere, por exemplo, a jurisprudência que temresponsabilizado o Banco Central pelos prejuízos aosinvestidores quando decretada a liquidação extrajudicial dos

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bancos em que tinham investimentos. Muitas vezes, elaapenas protege a ganância de algumas poucas pessoas àcusta de toda a sociedade. Com efeito, às vésperas de crisede liquidez, o banco tende a oferecer remuneração por seustítulos (CDB) com juros acima do mercado, com o objetivoúnico de captar os recursos de que tanto necessita. Osgananciosos que investem em títulos de banco nessasituação apenas pensam no ganho imediato; por ignorânciaou má-fé, não consideram o risco que correm — maior doque os associados à maioria dos demais investimentos. Se acrise de liquidez levar o banco ao estado de insolvência, oBanco Central decreta sua liquidação extrajudicial. Emconsequência, é provável que aquele investidor perca seudinheiro, ou pelo menos demore muito a receber de voltaparte dele. Quando a justiça considera o Banco Centralresponsável objetivamente por danos dessa natureza,tomando-o como uma espécie de seguradora geral dosconsumidores de serviços bancários, o resultado é a divisãoentre todos os brasileiros, contribuintes dos impostos quealimentam a dotação orçamentária daquela autarquia, doressarcimento pela perda dos poucos investidores atraídospela excepcional taxa remuneratória. A opção por investir notítulo de maior remuneração acaba, pois, revelando-se ato depura ganância desastrosa, mas completamente isenta deriscos. Em vez de estes serem suportados apenas peloinvestidor que buscava remuneração acima da do mercado,

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foram socializados entre todos os brasileiros que pagamseus impostos, em razão da decisão judicial que deuinterpretação distorcida ao princípio da indenidade.

Uma distorção do princípio daindenidade tem-se verificado nainfundada imputação deresponsabilidade a empresários, aoEstado ou ao INSS, apenas em razãoda melhor condição econômica delesem face do sujeito que pleiteia aindenização.

Embora menos comum, a responsabilidade subjetivatambém tem sido imputada em decorrência de igual distorçãodo princípio da indenidade, isto é, somente pelacircunstância de ser o demandado mais rico que odemandante. Claro que, a exemplo da aplicação do métododeep pocket na imputação de responsabilidade objetiva, a

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decisão é revestida por referências superficiais ao princípioda indenidade que mal disfarçam a verdadeira motivação dojuiz. Se trabalhador braçal de parcas rendas fica paraplégicoapós ser atropelado por veículo conduzido pelo motoristaparticular de um próspero profissional liberal, ainda quetenha sido o evento causado exclusivamente por culpa davítima, o extraordinário drama pessoal que emerge dos autosjudiciais pode levar o juiz, muitas vezes inconscientemente, acondenar o demandado — apenas porque esta é a únicaforma de garantir àquela vítima alguma renda, estando claroque isso não importará pesados encargos à outra parte. Purodistributivismo movido pela vontade de atenuar os azarescom que são surpreendidos os desafortunados. Nestahipótese, porém, o condenado não terá meios de socializaras repercussões econômicas da distorcida decisão, já quenão ocupa posição econômica que o permita, e as suportarásozinho.

6. DANOElemento comum a qualquer espécie (ou subespécie) de

responsabilidade civil é a ocorrência de danos ao credor.Tanto na responsabilidade civil subjetiva como na objetiva,incluindo a subespécie pura, não se constitui o vínculoobrigacional se o credor não tiver sofrido dano. Odesatendimento a este pressuposto caracteriza hipótese deexclusão de responsabilização (Cap. 24, item 2).

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Uma pessoa pode incorrer em ato ilícito sem acarretardanos a ninguém. Não tem, neste caso, responsabilidadecivil. Mesmo configurado o pressuposto subjetivo, se daconduta culposa não resultar prejuízo a outrem, a obrigaçãode indenizar não existe. Se um comerciante se estabelece emzona residencial, pratica ato ilícito, infringente da leimunicipal que proíbe e sanciona a localização irregular. Alémda responsabilidade administrativa, efetivada por medidascomo multas ou fechamento do estabelecimento, o ato ilícitogera a responsabilidade civil perante os moradores da zonaresidencial, caso eles tenham experimentado algum prejuízo.Se, pelo contrário, os vizinhos até apreciavam o comércio aliinstalado, frequentando a loja e consumindo os produtospostos à venda, e não suportaram dano nenhum emdecorrência do ilícito, inexistem as condições para aimputação de responsabilidade civil ao comercianteirregularmente estabelecido.

Também nas hipóteses sujeitas à responsabilizaçãoobjetiva a ocorrência de dano é condição essencial àconstituição da obrigação de indenizar. Considere o exemploda colocação no mercado de alguns automóveis com defeitode fabricação no sistema de freios. O defeito é gravíssimoporque compromete, em pouco tempo, o funcionamento dosistema e pode ocasionar sérios acidentes. A fábrica alerta-se para o problema após a venda de meia centena de carrosdefeituosos, mas antes de qualquer evento danoso.

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Promove, então, um eficiente recall e consegue consertartodos aqueles veículos. A possibilidade de graves prejuízospara os donos dos automóveis defeituosos e para osfamiliares e amigos que eles transportaram antes do reparoera enorme. Não ocorreu, porém, nenhum dano, e, por isso,não há qualquer responsabilidade civil do fornecedor.

A existência de dano é condiçãoessencial para a responsabilidadecivil, subjetiva ou objetiva. Se quempleiteia a responsabilização nãosofreu dano de nenhuma espécie, masmeros desconfortos ou riscos, não temdireito a nenhuma indenização.

Convêm classificarem-se os danos de acordo com osseguintes critérios:

a) materiais ou pessoais. Os danos materiais atingembens, enquanto os pessoais matam ou comprometem a

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integridade física ou moral de homens ou mulheres.Qualquer tipo de bem pode ser danificado, inclusive os

incorpóreos. O concorrente desleal que usurpa marcaregistrada inflige danos a um bem imaterial que se traduz naperda de faturamento por desvio ilegítimo de clientela. Adespeito da imateralidade do bem danificado, chama-sematerial o dano neste caso, em contraposição aos queafligem a própria pessoa do sujeito ativo da obrigação deindenizar.

A classificação tem relevância jurídica em primeiro lugarem função da maior importância da perda na hipótese dedanos pessoais. Nenhuma coisa, por mais importante,necessária ou útil que seja para seu dono, vale mais quequalquer ser humano. Este valor jurídico fundamental temimplicação, por exemplo, na exclusão de ilicitude em razão deestado de necessidade. Lembre-se, não é ato ilícito o queredunda danos a coisa alheia ou lesão a pessoa com oobjetivo de remover perigo iminente (CC, art. 188, II). Dessemodo, não está obrigado a indenizar os danos quem agevisando preservar sua pessoa ou seus bens ou os deoutrem, porque não incorreu em conduta culposa. Note que,no estado de necessidade, o direito de um sujeito éforçosamente sacrificado para salvar o de outro. Para quenão se caracterize o ato ilícito, o sacrifício deve sernecessário e não pode ultrapassar os limites doindispensável para remoção do perigo iminente. Faltando

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qualquer um desses requisitos, quem se excedeu nos danoscausados pelo estado de necessidade tem a obrigação deindenizá-los.

Na aferição dos requisitos do estado de necessidadecomo excludente de ilicitude, tem relevância a distinção entredanos materiais e pessoais. Entre duas coisas, não se exigeque a sacrificada seja menos valiosa que a salvaguardada(Monteiro, 2001, 1:291). Assim, se tanto o dano causado porquem estava em estado de necessidade como o evitado erammateriais, o valor de cada um deles é irrelevante para adescaracterização do ato ilícito. Claro, se o sacrifício impostoao bem alheio foi maior do que o necessário para a remoçãodo perigo de dano ao bem próprio, haverá ilicitude, mas istoindependentemente de qual dos bens valia mais ou menos.

Também não há como operar com qualquer noção devalor dos danos em questão (o causado e o evitado) quandoo perigo iminente ameaçava pessoa e, para salvaguardá-la,era necessário o sacrifício de outra. No naufrágio em altomar, Antonio está tendo dificuldade para manter-se à tonap o r q u e Benedito, que não sabe nadar, agarrou-seatabalhoadamente ao seu pescoço. É lícito que Antonio,para salvar a vida, use a força para livrar-se de Benedito,ainda que o ato signifique a morte dele.

Quando, porém, alguém em estado de necessidadecausa dano pessoal com o objetivo de evitar dano material, aexclusão da ilicitude não tem lugar. Quem sacrifica a

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integridade física ou moral ou mesmo a vida de uma pessoapara remover perigo iminente sobre coisa incorre sempre emato ilícito, por mais valioso que fosse o bem posto a salvo.

Danos materiais são os que atingemas coisas, inclusive os bensincorpóreos. Pessoais são os danosinfligidos a homem ou mulher queatingem sua integridade física oumoral ou causam-lhe a morte.

Além dessa implicação, a classificação entre danosmateriais e pessoais tem importância no campo dos seguros.As coberturas costumam variar para as hipóteses de danomaterial ou pessoal. Para os proprietários de veículosautomotores terrestres, ademais, o seguro para cobertura dedanos pessoais é obrigatório (DPVAT), mas é facultativo dedanos materiais.

b) Patrimoniais ou extrapatrimoniais. Danospatrimoniais são os que reduzem o valor ou inutilizam por

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completo bens do credor da indenização. Implicam semprediminuição do patrimônio da vítima. Extrapatrimoniais, porsua vez, são os relacionados à dor por ela experimentada.Não repercutem no patrimônio do credor da obrigação deindenizar, e são chamados, também, de danos morais.

O ato ilícito ou acidente podem causar somente danospatrimoniais. Considere, por exemplo, o esbulho de umterreno baldio. Por mais incômodos que o evento traga aoproprietário, não implica nenhuma dor merecedora decompensação pecuniária. De outro lado, eles podem implicarsomente danos extrapatrimoniais. Pense na dorexperimentada por quem lê no jornal notícia falsa dofalecimento de familiar. O fato não impacta de nenhumaforma o patrimônio do leitor. É comum, porém, que o mesmoevento danoso cause danos dessas duas espécies. Comodemonstra Aguiar Dias, em sua origem, o dano é uno,embora possa projetar efeitos patrimoniais ouextrapatrimoniais (1954, 2:428). A perda do pai num acidentede trânsito implica para o filho menor danos patrimoniais —representados pelos gastos com sustento, moradia,educação, lazer e demais necessidades custeadas peloascendente — e extrapatrimoniais — a dor pela morte dapessoa querida. O evento danoso, nota-se, foi um só, mascom repercussões materiais e morais.

Os danos, mesmo os morais, quase sempre secompensam em dinheiro. É pecuniária a maioria das

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obrigações de indenizar nascidas da responsabilidade civil.Quando se trata de compensação de danos patrimoniais, ovalor da indenização equivale ao prejuízo. Nesta hipótese, ocumprimento da obrigação restitui o patrimônio defasadopelo dano à condição anterior ao evento. A vítima nãoenriquece com o ressarcimento dos danos patrimoniais. Jáquando se compensam danos extrapatrimoniais, o valor daindenização não pode ser estabelecido como equivalente aoprejuízo no patrimônio da vítima, simplesmente porque estenão ocorre. É ainda compensação pelo dano moral, mas nãoequivalente a este. O sujeito ativo da relação obrigacionalcorrespondente à compensação de danos extrapatrimoniaisenriquece com a indenização. A relevância destaclassificação repercute, portanto, na mensuração daindenização (Cap. 25).

Danos patrimoniais são os quereduzem o patrimônio da vítima;extrapatrimoniais os que causam-lhedor merecedora de compensação.

Os danos materiais são

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necessariamente patrimoniais e osextrapatrimoniais, sempre pessoais.

Os danos materiais são necessariamente patrimoniais.Se o evento compromete ou reduz o valor de alguma coisa,isto repercute no patrimônio do proprietário, diminui-o. Osdanos pessoais, por sua vez, podem ser patrimoniais ouextrapatrimoniais. Se alguém tem a locomoção motoraprejudicada por atropelamento causado por culpa domotorista de um ônibus de transporte urbano, as despesasmédico-hospitalares com o tratamento, a perda de rendapelos dias parados e o custeio de novas necessidades comutensílios e reforma da casa integram os danos patrimoniaisque devem ser indenizados pela empresa proprietária doveículo. A dor suportada pelo cônjuge não culpado pelorompimento do vínculo matrimonial exemplifica hipótese dedanos pessoais extrapatrimoniais. Assim, enquanto osdanos patrimoniais podem ser materiais ou pessoais, osextrapatrimoniais são invariavelmente pessoais.

c) Diretos ou indiretos. Os danos diretos são aquelespara os quais contribuiu unicamente o evento danoso; sãosua consequência imediata. Já os indiretos são os danosdecorrentes dos diretos; são a consequência mediata doevento danoso. O vizinho, aproveitando-se da ausência dos

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donos da casa, faz ligação de força clandestina com oobjetivo de furtar eletricidade. Por descuido, desliga ofornecimento regular. Como consequência da falta deenergia elétrica, o congelador não funciona. Além de seperderem todos os congelados, o próprio equipamento ficaimprestável pela impregnação dos odores exalados dosalimentos deteriorados. O furto de eletricidade correspondeao dano direto, enquanto a perda do congelador e de seuconteúdo ao indireto.

Não se podem confundir os danos indiretos com oslucros cessantes (Gomes, 1961:273). A parte da indenizaçãocorrespondente ao que a vítima razoavelmente deixou delucrar integra a compensação pelos danos diretos e nãodeve ser considerada consequência mediata do eventodanoso.

Dano direto é a consequênciaimediata do evento danoso; indireto, aconsequência mediata. O ato ilícito oufato jurídico desencadeia o danodireto e este dá ensejo ao indireto.

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Em razão do princípio daindenidade, a vítima tem direito àindenização tanto pelos danos diretoscomo pelos indiretos.

A tecnologia civilista tem ensinado que, em regra, osdanos indiretos não são indenizáveis. Responderia odevedor da obrigação de indenizar pelos danos indiretosapenas de forma excepcional. Os autores brasileiros queargumentam nesse sentido não apresentam, porém, osparâmetros da regra de exceção (Diniz, 2003:63; Gomes,1961:273; Pereira, 1989:316). Penso que a lição deve serdescartada, prestigiando-se o princípio da indenidade. Deum lado, não há razões para excluir da indenização o valordos danos indiretos. De outro, a facilitação do acesso davítima à indenização, que tem inspirado o direito deresponsabilidade civil, tem o objetivo de garantir ao sujeitopassivo da obrigação o mais completo ressarcimento. Arecuperação do patrimônio do credor à condição anterior aoevento danoso só se verifica inteiramente se os danosindiretos forem também indenizados.

d) Individuais ou coletivos. O dano é individual quandolesa uma ou algumas pessoas e coletivo quando um

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conjunto considerável (por vezes, indeterminado) depessoas sofre a lesão.

A responsabilidade civil é uma obrigação em que nopolo ativo está aquele que sofreu danos e no passivo, o quelhe deve pagar a indenização compensatória. Como emqualquer obrigação, a cada polo da relação jurídicacorresponde uma parte, um centro de interessesconvergentes. E cada parte, por sua vez, pode referir-se a umsó sujeito de direito ou a dois ou mais. Em outros termos, aresponsabilidade civil pode ser obrigação simples (um sócredor prejudicado ligado a um só devedor a quem se imputaa obrigação de indenizar) ou complexa (mais de um credor oumais de um devedor). A questão jurídica pertinente àcomplexidade da parte passiva da responsabilidade civil dizrespeito à solidariedade dos sujeitos aos quais se imputa aobrigação de indenizar, que será examinada mais à frente(Cap. 25, item 5). A classificação dos danos em individuais ecoletivos insere-se no tema da complexidade da parte ativada obrigação de indenizar.

Quando mais de um sujeito de direito é credor deindenização em função da responsabilidade civil do devedor,duas hipóteses devem ser distinguidas: na primeira, o danolesou duas ou mais pessoas ligadas por vínculo específico,como o de parentesco, condomínio, parceria etc. Não seconsidera, aqui, malgrado a pluralidade de sujeitosocupantes do polo ativo da relação obrigacional, que o dano

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tenha sido coletivo. Se alguém culposamente atropela e mataum homem casado com filhos menores, a viúva e os órfãossão sujeitos ativos da obrigação por responsabilidade civildecorrente do ilícito. Quando esbulhada a posse de imóveltitularizado em condomínio por dois ou mais amigos, ocrédito pela indenização cabe aos condôminos. Caso osinteresses objeto de uma parceria sejam prejudicados porculpa de terceiros, integram a parte ativa da relaçãoobrigacional os parceiros. O dano, porém, não é coletivonesses casos, porque entre os credores há um vínculojurídico específico.

Pense, agora, em danos ao meio ambiente, ao regularfuncionamento do mercado ou a consumidores. Aqui,estamos diante de uma hipótese diversa de complexidade daparte ativa do vínculo obrigacional. Quando óleo vazadurante a operação de descarga de navio petroleiro,contaminando o mar, prejudicados são não só ospescadores privados da atividade econômica enquantoduram os trabalhos de limpeza, os moradores da região, osturistas e os que vivem do turismo, o Estado que vê reduzidaa arrecadação tributária, como até mesmo gerações futuras,constrangidas a viver num meio ambiente menos íntegro. Poroutro lado, se dois oligopolistas combinam praticar preçoigual pela mesma matéria-prima, todos os que se encontramna cadeia de produção à jusante, bem assim osconsumidores finais de produtos ou serviços que a

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empregam como insumo, sofrem as consequências danosasdo abuso do poder econômico perpetrado. Enfim, se umempresário qualquer promove publicidade enganosa de seusprodutos, ele pode lesar um número considerável deconsumidores. Nesses exemplos, o dano é coletivo e está-sediante de uma espécie particular de complexidade da parteativa da relação obrigacional por responsabilidade civil.

Coletivos são os danos ao meioambiente, à coletividade dosconsumidores, ao funcionamentoregular do mercado e outros. Acoletivização dos danos importa, noâmbito do direito civil, questõesatinentes apenas à liquidação daindenização. A constituição do vínculoobrigacional atende aos mesmospressupostos legais,

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independentemente da extensão dosdanos provocados.

Os danos coletivos despertam, no âmbito do direitoprocessual civil, questões atinentes à legitimidade ativa parapromover a responsabilização judicial dos sujeitos passivosda obrigação, em caso de lesão a direitos difusos, coletivose individuais homogêneos. Para os fins do direito civil, asquestões relativas à obrigação de indenizar são idênticas,quer sejam ou não coletivos os danos. Quem temresponsabilidade civil subjetiva só responde em caso deculpa, tenha causado prejuízos a uma só pessoa, a muitas oua um grupo indeterminado delas. A natureza e ospressupostos de sua responsabilização não se alteram porter sido coletivo o dano. Do mesmo modo, se ao sujeito a leiimputa responsabilidade civil objetiva, ele respondeindependentemente de culpa, qualquer que tenha sido aextensão do prejuízo causado. Ainda que um só homem oumulher tenha sido o prejudicado, a responsabilizaçãocontinua prescindindo do pressuposto subjetivo se assimestiver previsto pela lei. É indiferente se os interesseslesados são individuais simples, homogêneos outransindividuais — a responsabilização existirá ou nãosempre em função dos mesmos requisitos. Em suma, a

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extensão do dano é irrelevante na discussão dos elementosde constituição do vínculo obrigacional: constitui-se aobrigação de indenizar segundo os mesmos pressupostoslegais, tanto na hipótese de danos individuais simples comona de coletivos. A coletivização dos danos importaconsequências, no âmbito do direito civil, unicamente naliquidação do valor da compensação.

e) Intencionais ou acidentais. Os danos podemdecorrer da deliberada intenção do agente de causá-los. É ocaso do dolo, que gera responsabilidade civil subjetiva. Maspodem acontecer sem que ninguém tenha tido a intenção deproduzi-los. Neste caso, são acidentais. Os acidentes geramresponsabilidade civil subjetiva em caso de culpa simples doagente. A negligência, imperícia ou imprudência dão origema danos acidentais. Também geram os acidentesresponsabilidade civil objetiva, quando o sujeito a quem seimputa a obrigação de indenizar ocupa posição econômicaque lhe permite a socialização dos custos de sua atividade.Neste caso, consideram-se inevitáveis, quando ocorridosapesar da inexistência de culpa. A importância destaderradeira classificação é meramente ilustrativa e didática. Aextensão da obrigação mede-se, de ordinário, pelonecessário à compensação justa da vítima; é, portanto,idêntica, sejam intencionais ou acidentais os danos.

O termo “acidente” é empregado, muitas vezes, nosentido genérico de evento causador de danos,

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independentemente da intencionalidade ou não do agente.Expressões como acidente de trânsito, de consumo ou detrabalho referem-se, respectivamente, a qualquer eventodanoso na circulação de veículos, na utilização de produtoou serviço defeituoso e no desempenho de função laboral, enão apenas àqueles em que não houve a intenção de causarprejuízos. Quando contraposto aos atos ilícitos, deve serqualificado de “inevitável”.

7. CONCLUSÃOAs duas espécies de responsabilidade civil — subjetiva

e objetiva — não são excludentes. Pelo contrário,complementam-se. Há hipóteses em que convém imputar aosujeito passivo responsabilidade subjetiva, e há aquelas emque o mais adequado é a imputação de responsabilidadeobjetiva. Em outros termos, além de definir queexternalidades negativas devem ser internalizadas, adisciplina da responsabilidade civil também estabelece comose dará a internalização: a título de sanção ao ato ilícito docausador do dano ou de socialização de custos.

De início, pareceu aos tecnólogos civilistas que aresponsabilidade objetiva tenderia a substituir a subjetiva,numa trajetória de evolução do direito. Raymond Saleilles,por exemplo, jurista francês a quem se atribui o mérito de tersido um dos pioneiros na formulação da teoria objetiva,procurou sustentar-se numa nova interpretação do mesmo

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dispositivo do Código Napoleão que dispunha sobre aresponsabilidade subjetiva. Para ele, a expressão fauteinserida naquela norma não poderia ser lida como culpa, massim como causa (fait). Ao pretender que a lei, na verdade, jáprestigiava a responsabilidade objetiva, Saleilles revela quenão a tinha como espécie complementar da subjetiva, mascomo o modo mais evoluído de tratar toda hipótese deresponsabilização civil.

Enquanto a responsabilidade sem culpa era tratadacomo teoria de substituição do modelo fundado na culpa,dividiram-se os tecnólogos em subjetivistas e objetivistas,envoltos num estéril debate sobre a proeminência de umaespécie sobre a outra. Apenas com o passar do tempo edesenvolvimento dos estudos é que a tecnologia passou aconsiderar a hipótese de convivência entre as duas.Significativa ilustração dessa mudança de perspectivaencontra-se, a propósito, na literatura jurídica brasileira:Alvino Lima, um dos mais conceituados tecnólogosdedicados ao tema, batizara sua tese de cátedra, em 1938,como da culpa ao risco, título que sugere a evolução detodo tipo de responsabilidade rumo à objetivação;posteriormente, ao publicá-la em 1960, denominou-a culpa erisco, afastando do título a denotação de movimentoevolutivo (Pereira, 1989:20).

É indiscutível que a responsabilidade subjetivaantecede à objetiva, na tradição jurídica ocidental, em mais

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de vinte séculos — longo tempo que separa a Lei Aquíliadas preocupações com a indenização dos acidentes quevitimavam operários nos fins do século XIX, marcoshistóricos da responsabilidade subjetiva e objetiva,respectivamente (cf. Dias, 1954, 1:25 e 58/63). Esta tábuacronológica, porém, não é indício suficiente de evolução deuma espécie de responsabilidade civil para a outra; parecemais indicar a do modelo único de responsabilização para odúplice.

O desafio que se abre à tecnologia civilista, hoje,portanto, é a de distinguir (com a máxima clareza possíveldentro dos limites de um discurso retórico) as hipóteses aque cada espécie de responsabilização melhor se ajusta. Terem vista as funções que cumprem os respectivos modelos e,a partir delas, indicar quais danos devem ser indenizadoscom fundamento na culpa do agente causador e quais osque devem viabilizar a socialização de custos de certasatividades. Imputar responsabilidade objetiva a quem não seencontra em posição econômica de socializar custos éirracional; não tem sentido. De outro lado, responsabilizarcom fundamento na culpa quem se encontra nessa posiçãoeconômica, sem ao menos estabelecer uma presunçãorelativa, significa negar à vítima a indenização; também nãotem sentido.

O princípio da indenidade é, sem dúvida, o objetivo quetem impulsionado a disciplina da responsabilidade civil. Ele,

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porém, é infértil na identificação das externalidades quedevem e das que não devem ser internalizadas. Afirmar que alei deve facilitar às vítimas dos acidentes o acesso àindenização — valor jurídico e moral cuja pertinência éinquestionável — não basta à delimitação dos fundamentosapropriados da responsabilização em cada caso. Em outrostermos, a imputação de responsabilidade objetiva a todosque se encontram em condições econômicas de socializarcustos é inspiração do princípio da indenidade. Aidentificação de quem responderá objetivamente, porém,nada tem que ver com a facilitação do acesso da vítima àindenização, mas apenas com a posição econômica queocupa o devedor da obrigação de indenizar.

Como regra geral, aresponsabilidade civil é subjetiva. Emprincípio, só responde por danoscausados a outrem quem tiver sidoculpado por eles. Como regra especial,ela é objetiva se expressamenteprevista em lei ou se o sujeito passivo

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ocupa posição econômica que lhepermite socializar os custos de suaatividade.

Para concluir, cabe destacar a forma com que seestrutura a complementaridade entre as duas espécies deresponsabilização. Como regra geral, a responsabilidade ésubjetiva; em princípio, ninguém responde por danos quenão tenham sido causados por ato ilícito, ou seja, por suaconduta culposa ou dolosa (CC, art. 927, caput). Como regraespecial, a responsabilidade é objetiva sempre que a leiexpressamente o estabelece ou quando o devedor daobrigação de indenizar ocupa posição econômica que lhepermite socializar os custos da atividade que explora entreos beneficiários desta (CC, art. 927, parágrafo único). Ashipóteses que se enquadram em cada uma das regras deresponsabilização serão examinadas nos capítulos seguintes(a geral, ou subjetiva, no Cap. 22, e a especial, ou objetiva,no Cap. 23).

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Capítulo 22

RESPONSABILIDADECIVIL SUBJETIVA

1. RESPONSABILIZAÇÃO POR ATOS ILÍCITOSA responsabilidade civil subjetiva é a obrigação

derivada de ato ilícito. O sujeito que incorre na ilicitude édevedor da indenização pelos prejuízos decorrentes de suaconduta e o prejudicado, o credor. A prestação é a entregade dinheiro em valor correspondente aos prejuízospatrimoniais e compensadores dos extrapatrimoniais. Atoilícito, recorde-se, é a conduta culposa violadora de direitoque causa prejuízo a outrem (CC, art. 186). Corresponde acomportamento repudiado pela sociedade, proibido por lei.

A imputação da responsabilidade civil subjetiva é, naverdade, apenas um dos instrumentos de que dispõe o

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direito para desestimular os comportamentos indesejáveis eindicar as condutas socialmente aceitáveis. Os outros doisinstrumentos são a responsabilidade penal e aadministrativa: aquela decorre da tipificação de certas açõesou omissões humanas como delitos (crimes oucontravenções), e esta da qualificação de atos como infraçãoadministrativa. A sanção civil efetiva-se sempre pelaimputação ao culpado pelo ilícito da obrigação de entregarao prejudicado dinheiro (equivalente ao prejuízo patrimonialou compensador do extrapatrimonial). A sançãoadministrativa vale-se, principalmente, da imposição daobrigação de entregar dinheiro ao Estado (multa); adota,também, meios de execução direta, como a suspensão deatividade (fechamento de indústria poluidora), remoção debens (guinchamento de veículo estacionado irregularmente)e outras. A sanção penal, por fim, é feita por medidas derestrição da liberdade pessoal (detenção, reclusão, prisão,prestação de serviços à comunidade) por vezes conjugadacom a obrigação de entregar dinheiro ao Estado (multapenal).

Há atos simultaneamente ilícitos para o direito penal,administrativo e civil. O exemplo já referido do motorista quetransgride norma de trânsito e causa acidente com vítimafatal é desta categoria: ele comete crime de homicídio, incorreem infração contra as normas de circulação (CTB) e praticailícito civil que o obriga a ressarcir os danos provocados.

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Outro exemplo pode-se apontar na repressão aos abusos dopoder econômico. Os empresários que, por exemplo, seassociam para fraudar concorrência pública incorrem noilícito administrativo consistente em infração contra a ordemeconômica (Lei n. 8.884/94, art. 21, VIII), praticam crimecontra a Administração Pública (Lei n. 8.666/93, art. 90) e sãocivilmente responsabilizáveis pelos prejuízos decorrentes(Lei n. 8.884/94, art. 29). Ainda quando têm por pressupostoo mesmo ato, as três esferas de sanção, de desestímulo deconduta indesejável, guardam autonomia. Por isso, o inter-relacionamento delas é complexo.

Sempre que um ato é tipificado como delito ouqualificado como infração, cabe a imputação deresponsabilidade civil ao criminoso ou infrator, sem prejuízo,conforme o caso, da responsabilidade penal ouadministrativa. O sujeito que comete delito ou incorre eminfração é necessariamente devedor da indenização pelosprejuízos decorrentes. Desse modo, quem mata alguémresponde criminalmente, no sentido de sujeitar-se à pena dereclusão de 8 a 20 anos (CP, art. 121). Além dessa sanção dedireito penal, o homicida é obrigado a indenizar os prejuízospatrimoniais e extrapatrimoniais derivados de seu crime. Se avítima tinha filhos menores que dela dependiam, é obrigadoa indenizá-los pela perda do pai ou mãe provedores (danospatrimoniais), bem assim pagar-lhes e ao cônjuge eascendentes a indenização pela dor experimentada (danos

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extrapatrimoniais). Neste caso, porém, não há que se falar eminfração. O ilícito tem desdobramentos apenas para o direitopenal e civil.

De outro lado, se alguém se estabelece comercialmenteem zona classificada como residencial pela lei do Município,incorre em infração administrativa. Sujeita-se às sanções demulta e fechamento da atividade, de acordo com oestabelecido pela norma municipal. Além dessaresponsabilidade de direito administrativo, o infrator terátambém a obrigação de indenizar os vizinhos prejudicadospatrimonial ou extrapatrimonialmente pelo desrespeito aozoneamento. Não há, entretanto, nenhum crime no irregularestabelecimento comercial. Trata-se, pois, aqui, de ilicitudesomente para fins de direito administrativo e civil.

Mas, se todo ilícito penal ou administrativo importam aobrigação de reparar os danos (se houver, claro: cap. 21,item 6), o inverso não se verifica. Nem toda responsabilidadecivil tem por pressuposto a concomitante tipificação do atoilícito como delito ou sua qualificação como infraçãoadministrativa. É possível a responsabilização civil de umsujeito de direito por ato que não importa quaisquer sançõesalém da compensação pelos danos causados. Se, aomanobrar lenta mas descuidadamente o veículo na garagemdo edifício onde moro, bato no automóvel de outrocondômino, minha negligência é ato ilícito para o direitocivil, o que me torna devedor pela importância equivalente

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aos prejuízos causados ao bem do vizinho. Meu ato nãorepercute, todavia, no âmbito do direito penal ouadministrativo; não é delito, nem infração administrativa.Outro exemplo: numa troca de tiros num bar, fere-se umacriança. O autor do disparo é absolvido na esfera criminal,porque reconhecida a excludente da legítima defesa. Nãoobstante, deve ser condenado, na esfera civil, pelaindenização dos danos (RT, 808/225; 789/225).

Há três diferentes órbitas deresponsabilização dos atos ilícitos. Noplano criminal, os delitos (crimes oucontravenções) são punidos com penasprivativas de liberdade. Noadministrativo, as infrações punem-secom multa e medidas satisfativas(fechamento de atividade, remoção debens etc.). No âmbito civil, sancionam-se as condutas culposas pela

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imposição ao autor do dano daobrigação de indenizá-lo.

Há, como dito, independência entre as três esferas deresponsabilização. Alguém pode incorrer em ato ilícito para odireito civil, penal e administrativo, mas acabar nãorespondendo nos três âmbitos. Se o titular do direito àindenização é um indivíduo, ele pode preferir não promover aresponsabilização judicial do culpado, por razões que só lhedizem respeito (p. ex., o interesse em se poupar da lembrançade fato doloroso), e ninguém poderá fazê-lo em seu lugar.Nesse caso, embora passível de responsabilização civil, oagente não será compelido a indenizar os danos causados.Por outro lado, a aplicação da lei penal interessa a toda asociedade, mas se as provas reunidas no inquérito policialsão insuficientes à denúncia do crime pelo MinistérioPúblico, o agente permanecerá impune. Finalmente, se nãochegar à autoridade administrativa o conhecimento dosfatos que qualificam a infração, o infrator não será autuado edeixará de responder pelo ilícito administrativo. Nessescasos, a responsabilização não se verifica porque não seadotam as providências necessárias para tanto.

Mesmo com as providências acima indicadas(ajuizamento da ação civil de responsabilidade, oferecimento

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da denúncia e autuação administrativa), o agente poderá nãoser responsabilizado nas três esferas, ou sê-lo numa delas enão nas demais. A multa pode ser judicialmente invalidadaem razão de vício formal do auto de infração (incorretaindicação do fundamento legal, p. ex.), comprometendo aresponsabilização administrativa do infrator. Isso nãoinfluirá na ação civil de indenização, que pode concluir pelacondenação do mesmo sujeito ao pagamento daindenização. A ação civil de indenização pode ser julgadaimprocedente porque a vítima não conseguiu provar aextensão de seus danos, enquanto o processo penal leva àcondenação do réu por ter o promotor de justiça provado ocrime e a autoria.

No entrecruzamento das três esferas deresponsabilização, deve-se observar apenas um limite àautonomia delas: quando a existência do ato ilícito ou aidentificação de seu autor estiverem definitivamenteestabelecidas no juízo criminal, estas matérias sãoinsuscetíveis de rediscussão na ação civil (Gonçalves,2002:481/519). Imagine que Antonio danificaintencionalmente bem do patrimônio de Benedito. Isso écrime (CP, art. 163) e gera responsabilidade civil (CC, art. 927,caput). Pois bem, se Antonio é condenado no processopenal, ele não pode, ao embargar a execução para cobrançada indenização (processo civil) que Benedito lhe move,negar o fato nem a autoria do dano. Resta-lhe, por exemplo,

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discutir o valor da indenização ou alguma questãoprocessual. Mas, para todos os efeitos (penais ou civis),está já decidido que houve danos no patrimônio deBenedito e que Antonio é o culpado por eles. Estabelece alei que “a responsabilidade civil é independente da criminal,não se podendo questionar mais sobre a existência do fato,ou sobre quem seja o seu autor, quando estas questões seacharem decididas no juízo criminal” (CC, art. 935). Emconsonância com este preceito, as legislações processuaispenal e civil tratam a sentença penal condenatória transitadaem julgado como título executivo judicial (CPP, art. 63; CPC,art. 584, II).

2. O PRESSUPOSTO SUBJETIVOSempre que houver ato ilícito (civil, penal ou

administrativo), o sujeito que o praticou é devedor daobrigação de indenizar os prejuízos decorrentes. Há, como jáexaminado, dois critérios para definir ato ilícito: no primeiro,é o ato sancionado pelo direito positivo; no segundo, o queviola culposamente direito subjetivo (Cap. 11, item 1).

Visto como ato sancionado pelo direito positivo, o ilícitoé a conduta culposa descrita na norma como antecedente daresponsabilidade civil. A lei e demais normas jurídicassempre imputam consequências a atos ou fatos jurídicos.Descrevem condutas às quais ligam implicações com oobjetivo de nortear a solução dos conflitos de interesses

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manifestados em sociedade. As consequências imputadaspelas normas jurídicas podem ser negativas, neutras oupositivas. Quando negativas, chamam-se sanções e estãoligadas à descrição de condutas indesejáveis. Têm, então, oobjetivo direto de punir o agente e o indireto de desestimulara repetição da conduta. A maioria das normas jurídicasenquadra-se nesta primeira categoria. No outro extremo,quando as consequências são positivas, chamam-se prêmiose estão ligadas às condutas especialmente proveitosas. Seuobjetivo é estimular pessoas a praticar determinados atos.Os subsídios e isenções que a lei concede paradeterminadas atividades econômicas, com o objetivo defacilitar sua exploração e contribuir para o desenvolvimentoregional, são exemplos de consequências legais destanatureza. Por fim, há as consequências neutras, ligadas àscondutas que não são nem reprováveis, nem especialmenteproveitosas. Podem ser percebidas pelas pessoas a quemsão imputadas como negativas, mas isto não lhes retira aneutralidade. Com a imputação de consequências neutras, odireito visa obter a racional alocação dos recursos e nãopunir ou premiar este ou aquele sujeito. A responsabilidadecivil objetiva é uma consequência neutra que a lei associa adeterminados fatos.

A imputação da obrigação de indenizar pode ser, assim,uma sanção (consequência negativa, no sentido de procurardesestimular condutas indesejáveis) ou não (consequência

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neutra). Em sendo sanção a consequência prevista em lei, oato ao qual é conectada será ilícito. Para identificar, então, osatos geradores de responsabilidade civil subjetiva, à luzdeste primeiro critério, deve o intérprete ou aplicador da leivasculhar a ordem jurídica em busca de norma (geral ouespecial) que descreva a conduta culposa em foco comoantecedente da obrigação de indenizar. O critério dedefinição do ato ilícito em função do direito positivo, note-se, falha porque exige do intérprete ou aplicador da leiidentificar o objetivo da imputação nela veiculada —desestimular condutas indesejáveis ou apenas realocarrecursos de forma racional — mas não fornece osparâmetros para isso.

Dois são os modos de conceituar oato ilícito. Em função do direitopositivo, ele é a conduta descrita nalei como antecedente da sanção. Emcontraposição ao direito subjetivo, é oato culposo que o viola e causa danos.Este último corresponde à alternativa

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adotada pelo Código Civil.

Visto, por outro lado, como violação a direito subjetivo,o ato ilícito define-se como a conduta intencional,negligente, imprudente ou imperita que causa dano a umsujeito de direito. Na caracterização do ilícito por estecritério, o intérprete ou aplicador da lei volta a atenção aostraços característicos da ação ou omissão daquele a quem sepretende imputar a obrigação de indenizar. Preocupa-se coma identificação, neles, dos pressupostos subjetivos daresponsabilização fundada na culpa. Tomar certo ato porilícito para fins de imputar ao agente responsabilidade civilsubjetiva corresponde ao mesmo processo argumentativo deidentificar, numa situação de fato, o pressuposto subjetivodesta espécie de responsabilização. Ato ilícito é o culposoou o praticado com abuso de direito.

Pois bem, em função da insuficiência do critério dedefinição do ilícito a partir do direito positivo, deve-seprivilegiar o de contraposição ao direito subjetivo. Nele, atoilícito define-se como a violação culposa e danosa do direitode outrem. É este, aliás, o critério adotado pela lei no Brasil:“aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ouimprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda queexclusivamente moral, comete ato ilícito” (CC, art. 186). Nestecontexto, são três os elementos constitutivos da

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responsabilidade civil subjetiva: a) ato ilícito do devedor(culposo ou abusivo); b) dano patrimonial ouextrapatrimonial para o credor; e c) ligação de causalidadeentre o ato e o dano. Os elementos estudados neste item —ato humano (subitem 2.1), culpa (subitem 2.2) e abuso dedireito (subitem 2.3) — correspondem ao primeiro deles ecompõem o “pressuposto subjetivo” da responsabilidadecivil subjetiva.

2.1. Ato humanoO primeiro elemento constitutivo da responsabilidade

civil subjetiva é um ato de ser humano — de um homem oumulher, adulto ou criança. Atendidos determinadospressupostos, esse ato humano dará ensejo àresponsabilização de um sujeito de direito. O civilmenteresponsável pelo ato poderá ser a própria pessoa física queo praticou, outra pessoa física (como no caso deresponsabilidade por atos de terceiros — Cap. 23, item 6.1),uma pessoa jurídica ou mesmo um ente despersonalizado emnome dos quais se considera praticado o ato humano. Odano causado pela condução culposa de um carro resultasempre de ato do motorista. Ele pode gerar responsabilidadecivil para o próprio motorista (se é o dono do veículo) oupara o seu empregador, seja este pessoa física (o causadordo dano é motorista doméstico), pessoa jurídica (dirigeônibus de transporte urbano) ou ente despersonalizado

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(trabalha como manobrista para um condomínio de edifício).O ato característico de ilícito pode ser comissivo (um

fazer) ou omissivo (um não fazer). Isto é, a responsabilidadecivil subjetiva pode originar-se tanto de ato positivo (ação)como negativo (omissão). No primeiro caso, um movimentofísico do ser humano desencadeia eventos que direta ouindiretamente causam danos a um ou mais sujeitos dedireito; no outro, a falta de um preciso movimento físico éjuridicamente considerada a causa do prejuízo. Esta é a liçãotradicional da tecnologia civilista (cf., por todos, Lopes,2001:178). A rigor, porém, a ação e omissão correspondem amodos diferentes de descrição da conduta culposa. A faltade movimento físico pode ser referida como movimentotambém. Afirmar que certo profissional foi imperito ou quee le não agiu com perícia resulta igual. A negligência éomissão de diligência; imprudência, ausência de cautelasrecomendáveis ou exigíveis; o dolo corresponde à falta derespeito a direito de outrem. Se o salva-vidas não socorreu obanhista em perigo aparentemente incorreu numa omissão.Pode-se, contudo, descrever a mesma conduta como atopositivo: o salva-vidas negligenciou a execução de seutrabalho. Em nada altera, quanto às consequências jurídicas,a descrição do comportamento culposo ensejador do danocomo uma ação ou omissão (Cf. Alpa, 1999, 4:259/267).

A tradicional distinção tecnológica tem, no entanto,grande valor ilustrativo, cumprindo função didática. Sua

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operacionalização, porém, deve ser feita sempre com atençãoa esta peculiaridade. Ninguém pode ser responsabilizado ouexonerado da obrigação de indenizar, nem se pode pretendera subjetivação ou objetivação da responsabilidade, apenaspor qualificar-se o ato causador do dano como comissivo ouomissivo.

2.1.1. Ação

A ação é um movimento físico qualquer: acionar ogatilho de arma de fogo, acelerar o automóvel, assinar umdocumento, deixar cair ou atirar um objeto, atiçar cão feroz,falar mal de alguém, fincar cercas em terreno alheio etc.Trago exemplos de ações que podem ser relevantes para odireito, mas qualquer movimento físico serviria para ilustrar aação, dos simples reflexos até os que dependem desofisticadas operações mentais: desde levantar o braço paraproteger o rosto até digitar no teclado do microcomputadorum texto de conteúdo filosófico. Como movimento físico, aação desencadeia necessariamente eventos, muitos dosquais não têm importância nenhuma para o direito, sãoirrelevantes à solução dos conflitos de interessesmanifestados em sociedade. Quem anda desloca ar — nem aação nem seu efeito são fatos jurídicos; por outro lado,quem aciona o gatilho de arma de fogo pode matar alguém— neste caso, a ação é fato jurídico.

As ações podem ser conscientes ou inconscientes,

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segundo a área do cérebro responsável pelo comando.Consciente é o movimento físico em resposta a comandosprocessados na área do cérebro que sugerem o completocontrole da ação e seus efeitos pelo ser humano que age.Inconsciente, o movimento que não é acompanhado poressa sensação de controle. Graduando as açõesinconscientes, distinguem-se os atos reflexos, instintivos eautomáticos (cf. Iturraspe, 1982, 1:15/17). Atos reflexos sãoimpulsos nervosos involuntários normalmente associados àdefesa do organismo. Não há nenhum controle daconsciência na execução dos movimentos físicoscorrespondentes. Aproximo-me da churrasqueira paraconferir o ponto da carne e encosto a mão inadvertidamentenum espeto quente. A simples percepção do calor na mão ésuficiente para desencadear a ordem do cérebro no sentidode afastá-la rapidamente. Os atos reflexos podem sercondicionados em razão de experiência direta, mas nãoaprendidos a partir de aquisição de conhecimentosracionais.

Os atos instintivos, por sua vez, atendem anecessidades orgânicas e já são passíveis de controleracional. A concupiscência desperta energia libidinosa ecaso não haja ou não funcionem freios racionais, o serhumano procura a imediata satisfação sexual. A fometambém pode impulsionar atos instintivos de busca aosalimentos, que podem levar o ser faminto até mesmo a matar

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por comida, caso também não o detenham freios racionais.Os instintos não são adquiridos pelo ser humano porcondicionamento ou aprendizagem; trazemo-los, por assimdizer, em nossa herança genética. É a “parte animal” dehomens e mulheres, cuja importância para nossa vida é maiordo que gostaríamos de aceitar.

Por fim, atos automáticos são os inconscientesaprendidos com base na repetição. No início do processo deaprendizagem, são atos conscientes praticados peloaprendiz em função da orientação de instrutor. Uma vezaprendidos, os atos são comandados pelo cérebro com graumínimo de consciência. Os atos de condução de umautomóvel exemplificam-nos. O jovem, na autoescola, éapresentado aos movimentos físicos que precisa realizarpara obter determinados efeitos da máquina. Com o passardo tempo, a repetição desses movimentos torna-osautomáticos. O motorista experiente não precisa de totalconsciência das ações que realiza para bem dirigir o veículo:o pedal afunda a embreagem ao mesmo tempo em que a mãodireita larga o volante e pega o câmbio, sempre que apercepção de velocidade do carro recomenda a mudança demarcha; a percepção da aproximação ao veículo que trafegaà frente faz o pé esquecer-se do acelerador e pressionar, emmedidas variáveis, o breque. Outros atos automáticospermeiam o cotidiano das pessoas: digitar o teclado domicrocomputador, nadar, andar de bicicleta, alongar-se,

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observar regras de etiqueta à mesa etc.Nem todos os atos humanos, evidentemente, são

geradores de responsabilidade civil subjetiva. Para teremesta implicação jurídica, é necessário, antes de tudo, quesejam voluntários, isto é, que o movimento físicodesencadeador dos eventos danosos tenha sido animadopela vontade de um homem ou mulher. Note-se que vontadee consciência não são conceitos coincidentes, nem para odireito nem para a psicologia. A vontade é característica doato passível de ser controlado racionalmente com vistas arealizar certo objetivo, selecionado entre duas ou maisalternativas. Há vontade sempre que há possibilidade dedecisão. A consciência é o efetivo controle do ato. Os atossob controle das áreas de consciência do cérebro sãosempre voluntários, mas o inverso não é verdadeiro. Hávontades inconscientes, como a que se expressa pelaimprudência na condução do veículo. Os atos automáticosde direção podem ser controlados, e isto indica que sãovoluntários. Se serão ou não postos sob o controle dasáreas de consciência do cérebro do ser que age é questãodiversa.

Os atos de vontade podem serconscientes ou não. Os atos instintivos

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(busca da satisfação sexual) eautomáticos (direção de veículosautomotores) são inconscientes, masvoluntários, e por isso geramresponsabilidade civil quando ilícitos.

Desse modo, para gerar responsabilidade civil subjetivao ato humano deve ser voluntário, mas não necessariamenteconsciente. O estuprador muitas vezes pratica ato instintivo,de pura satisfação da libido. Será responsabilizado (civil epenalmente, aliás) porque podia e devia ter posto o instintosob controle da razão. O motorista que provoca acidente porter ultrapassado o limite de velocidade máxima para o localonde transitava na maioria das vezes pratica, ao acelerar oveículo, ato automático, inconsciente. Como podia e deviater controlado o ato, é este voluntário e gerador deresponsabilidade civil subjetiva pelos danos decorrentes.Em suma, não há responsabilidade civil subjetiva sem que odano tenha sido causado pela vontade, consciente ouinconsciente, de alguém.

2.1.2. Omissão

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A omissão só gera responsabilidade civil subjetiva sepresentes dois requisitos: a) o sujeito a quem se imputa aresponsabilidade tinha o dever de praticar o ato omitido; e b)havia razoável expectativa (certeza ou grande probabilidade)de que a prática do ato impediria o dano. No exemplo deMaria Helena Diniz, o instrutor distraído, ao deixar de acudiro aluno que está morrendo afogado na piscina durante aaula de natação, responde pelos danos advindos de suaomissão culposa (2003, 7:45). Encontram-se os doisrequisitos nesse caso. O instrutor tinha, em decorrência dafunção exercida, o dever de praticar o ato, isto é, acudir oaluno, e há razoável expectativa de que o salvaria doafogamento se tivesse agido. Os demais alunos presentes àaula não respondem pela omissão, por não terem o dever dezelar pela integridade do colega, assim como nãoresponderia o instrutor se demonstrado que o aluno seafogara por ter sofrido fulminante ataque cardíaco, porque,neste caso, nenhuma ação dele seria suficiente para salvar-lhe a vida.

Somente se presentes esses dois requisitos a omissão étida como causa do dano. Ausente qualquer um deles, afalta de ação poderá ser eventualmente uma condição dodano, mas não será sua causa jurídica. Explico. Alguém éassaltado na rua, quando não havia por perto nenhumpolicial. É provável que o policiamento ostensivo epreventivo na região tivesse evitado o crime. A falta do

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policiamento, então, contribuiu de alguma forma para oocorrido. Ela não pode, porém, ser considerada causa dodano experimentado pelo cidadão assaltado. Foi meracondição do evento, já que a presença da força policialpoderia ter evitado o assalto, mas não o ocasionou. Se,contudo, a metros do local do assalto havia policiais que operceberam e nada fizeram para socorrer o cidadão, aomissão deles é considerada juridicamente causa do eventodanoso. Como é dever daqueles funcionários públicos atuarna repressão ao crime e havendo razoável expectativa de quea intervenção deles pouparia o cidadão da perda, para a lei oevento causador desta foi o ato omissivo dos policiais. OEstado, assim, não pode ser responsabilizado pela omissão-condição, mas é inteiramente responsável pela omissão-causa do evento danoso (cf. Mello, 1981:144/147).

A falta de movimento físico impeditivo da concretizaçãodo dano considera-se causa deste (e, portanto, geradora deresponsabilidade civil) se a ação omitida é exigível eeficiente. A exigibilidade da ação omitida verifica-se quandoo omisso tinha o dever de praticá-la; a eficiência, quando aação evitaria o dano com certeza ou grande probabilidade.Se quem se omitiu não tinha dever de agir ou se a ação seriainsuficiente para evitar o dano, a omissão deve ser tida comomera condição deste.

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A omissão pode ser causa oucondição do evento danoso. Será causase quem nela incorreu tinha o dever deagir e sua ação teria, com grandeprobabilidade, evitado o dano. Ausentequalquer um desses requisitos, écondição.

Apenas a omissão-causa implicaresponsabilidade civil pelos danos quea ação teria evitado.

A exemplo das ações, as omissões desencadeadoras deresponsabilidade civil subjetiva devem ser voluntárias, masnão precisam ser necessariamente conscientes. Se, noexemplo anterior, o policial não enfrenta o assaltante pormedo, o instinto de sobrevivência que lhe trava a ação éjuridicamente a causa do dano experimentado pelo cidadãoassaltado. O Estado, neste caso, é obrigado a indenizar osprejuízos.

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2.2. CulpaA identificação da culpa como pressuposto da

responsabilidade civil remonta, como visto, ao direitoromano. Mais precisamente, à Lei Aquília, que afastou asolução ditada pela pena de Talião quando o dano acometiabens de produção (escravos e animais de rebanho,especificamente). Em razão disso, a expressão“responsabilidade aquiliana” tornou-se referência àobrigação de indenizar não derivada de relação contratualentre causador e vítima dos danos. Atualmente, com aduplicidade de fundamentos assentada no campo daresponsabilidade civil, “aquiliana” passou a ser referência àobrigação de indenizar derivada de culpa. Em suma, é hojesinônimo de responsabilidade civil subjetiva.

Culposo é o ato negligente, imprudente, imperito ouintencionalmente destinado a prejudicar alguém. É, pordefinição, antijurídico, violador de direitos subjetivosalheios (Beviláqua, 1934, 4:219; Gonçalves, 2002:35/37). Daíconfundir-se com a própria noção de ato ilícito. Ao praticarato culposo, nunca se age de acordo com a lei.

Reparte-se a culpa em atos intencionais e nãointencionais. No primeiro caso, é chamada de dolo. Agedolosamente quem provoca prejuízos a outrem, ao praticaratos com o objetivo ou o risco de causá-los. Estamodalidade de culpa compreende tanto o dolo direto, emque o prejuízo é a finalidade perseguida pelo agente, como o

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indireto, em que o dano ocasionado não era propriamente oobjetivo, mas o agente assumiu de forma consciente o riscode provocá-lo. Quando Antonio, querendo prejudicarBenedito, incendeia a casa deste, há dolo direto. O objetivoperseguido era especificamente o de pôr fogo na morada deBenedito, para afligir-lhe a perda. Se, porém, a intenção deAntonio, ao queimar umas tábuas velhas no jardim da casade Benedito, era apenas a de fazer uma brincadeira com este,confiando que as chamas não sairiam de seu controle, o doloserá indireto se a casa for incendiada e perder-se. O objetivo,aqui, não era incendiar a morada de Benedito, mas Antonioassumiu de forma consciente o risco de produzir esse danoao fazer a infeliz brincadeira.

De outro lado, a culpa por atos não intencionaisabrange a negligência, imprudência e imperícia (culpasimples). O negligente não faz o que deveria fazer e oimprudente faz o que não deveria. No trânsito, o motoristaque não aciona o pisca-pisca antes de fazer a conversão énegligente (deveria acioná-lo), e o que atravessa o semáforovermelho, imprudente (não poderia atravessar o cruzamentonaquele momento). A exata classificação de determinado atoculposo como negligência ou imprudência, porém, não érelevante. Em primeiro lugar, porque as consequências sãoiguais para qualquer uma dessas hipóteses. Além disso, osatos correspondentes a fazer ou não fazer podem serdescritos de forma inversa sem maiores dificuldades. A

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omissão de acionar o pisca-pisca ao convergir pode serdescrita também como a ação de convergir sem acionamentodo pisca-pisca, e o que era não fazer o que deveria passa aser fazer o que não deveria.

Imperícia, por fim, é a culpa não intencional nodesempenho de profissão ou ofício. Difere-se da negligênciaou imperícia por pressupor uma habilidade especial,formação superior ou mesmo conhecimento técnico ouespecífico do agente culpado. O dentista que não obturaadequadamente a cárie é imperito, por exemplo. A imperícianão foi referida especificamente na lei civil brasileira, quemenciona unicamente as hipóteses de negligência eimprudência na configuração do ato ilícito (CC, art. 186).Refere-se a ela, porém, a lei penal (CP, art. 18, II), inexistindomotivos para não a considerar como forma particular de atonegligente ou imprudente. Também sob o ponto de vista dosdesdobramentos práticos, não tem maior importância aquestão, já que a imperícia conduz às mesmasconsequências das demais espécies de culpa simples.

A culpa que dá ensejo àresponsabilidade civil corresponde aato voluntário, que deveria ter sido

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diferente. Sem a exigibilidade deconduta diversa, não há ação ouomissão culposa.

Embora sempre voluntária, a culpapode corresponder a ato intencionalou não. No primeiro caso, chama-sedolo, que pode ser direto (o danocausado era a intenção do seu autor)ou indireto (o autor assumiu o risco decausar o dano). A culpa nãointencional, a seu turno, é anegligência, imprudência ouimperícia.

Para a constituição da obrigação de indenizar porresponsabilidade civil subjetiva, a regra é a da irrelevânciada gravidade da culpa. Exceto em casos excepcionais (item

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7), qualquer que tenha sido a natureza da ação ou omissãocausadora do dano — isto é, tenha ela derivado de dolo,negligência, imprudência ou imperícia —, constitui-se arelação obrigacional entre o prejudicado (credor) e o autordo dano (devedor). Responde pela indenização tanto o queincorre na mais levíssima negligência como o movido pelaintenção deliberada de prejudicar. Neste aspecto — o daconstituição do vínculo obrigacional —, a responsabilidadecivil subjetiva e a obrigação de indenizar pordescumprimento de obrigação contratual se assemelham.Tanto num como no outro caso, o grau da culpa é, emprincípio, irrelevante.

Atente, porém, para aspecto diverso da matéria, o daquantificação da indenização. Neste, distanciam-se aresponsabilidade civil subjetiva e a obrigação de indenizardecorrente da inexecução culposa das obrigaçõescontratuais. Submete-se a responsabilidade civil subjetiva anorma especial, que autoriza o juiz a reduzir equitativamenteo valor da indenização “quando houver excessivadesproporção entre a gravidade da culpa e o dano” (CC, art.944). A seu turno, como a obrigação de indenizar emdecorrência do inadimplemento de obrigação contratual nãoestá sujeita a nenhuma regra especial, aplica-se a geral, quedesconsidera o grau da culpa na quantificação dosconsectários (Cap. 18, item 4).

A questão é relevante apenas na hipótese de

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sobreposição de responsabilidade civil subjetiva einexecução culposa de contrato. Quando não hásobreposição, inexistem dúvidas acerca da aplicação daregra especial. Se o motorista incorre em infração de trânsitolevíssima e causa danos imensos à vítima, o juiz, atento àpequena gravidade da culpa, pode reduzir equitativamente aindenização. Como não há qualquer vínculo contratual entredevedor e credor da indenização, o conflito de interessesentre eles é superável segundo as normas especiais daresponsabilidade civil subjetiva, não se cogitando aaplicação das gerais do direito das obrigações. Havendo,contudo, sobreposição, a dúvida poderia surgir: resolvido oconflito de interesses a partir das regras sobreresponsabilização aquiliana, caberia a redução equitativa emfunção da gravidade da culpa; resolvido, porém, a partir dasregras gerais de inadimplemento das obrigações, descaberiaa redução. Assim, por exemplo, se pequeno erro médicocausou dano de monta ao paciente, a obrigação de indenizardecorre da responsabilidade civil do profissional ou doinadimplemento do contrato de prestação de serviçoscelebrado entre as partes? Se se fundar a condenação doprofissional nas regras de responsabilidade civil subjetiva, écabível a redução equitativa em função da pouca gravidadeda culpa; ao contrário, fundando-se no inadimplemento docontrato de prestação de serviços, não terá lugar essadiminuição.

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Como resolver o impasse? Considero que a resposta seencontra na natureza da obrigação de indenizar. Quando nãohá vínculo obrigacional nenhum entre credor e devedordessa obrigação, os conflitos de interesses entre elesresolvem-se sempre pelas regras da responsabilidade civil.Quanto a isso, estão todos de acordo. Entretanto, se houverentre credor e devedor da obrigação de indenizar um vínculonegocial, é necessário verificar se nele está o fundamentodela. Em outros termos, deve-se examinar se a indenização édevida como prestação ou como consectário. Se o vínculonegocial entre credor e devedor da obrigação não éessencial para a constituição desta, mas secundário,circunstancial, então a indenização é a prestação devida e osconflitos de interesse se resolvem segundo as normas daresponsabilidade civil. Se, de outro lado, é essencial, aindenização deve-se a título de consectário. Para saber se onegócio jurídico é essencial ou circunstancial, basta fazer o“teste da invalidação”, ou seja, verificar se a obrigação deindenizar subsistiria ou não se ele fosse nulo. Feito o teste,se se concluir que a obrigação de indenizar continuariaexistindo mesmo na hipótese de invalidade absoluta, então onegócio jurídico não é essencial, e a indenização é devida emfunção da responsabilidade civil do devedor. Por outro lado,se se concluir que ela deixaria de existir caso fosse nulo onegócio, então ele não é circunstancial, e a indenização éapenas devida como consequência do inadimplemento da

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obrigação negocial. No primeiro caso, ela é a prestação; nosegundo, mero consectário.

Sempre que houver entre credor edevedor da indenização vínculonegocial, é necessário verificar se eleé o fundamento da obrigação ou meracircunstância.

Se a obrigação de indenizar nasceudo negócio jurídico, a indenização temcaráter de consectário e submete-se àsnormas do inadimplemento.

Se a obrigação decorreu de atoilícito ou fato jurídico, a indenizaçãorepresenta a própria prestação e segueas normas da responsabilidade civil.

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Imagine que o engenheiro civil é contratado paraconstruir uma casa em certo prazo. Se ele ultrapassa o prazocontratado, ocorre o inadimplemento e ele é obrigado apagar ao dono da obra, entre outros consectários, aindenização por perdas e danos. Aqui, o fundamento para aobrigação de indenizar é o negócio jurídico, e a indenizaçãoé mera consequência do inadimplemento. Se o contratofosse nulo — pense no caso de objeto ilícito, porque a casa,em razão da lei ambiental, não poderia ser legalmenteconstruída naquele lugar —, a indenização pelo atraso nasobras não seria devida. Considere, agora, que a casa, depoisde pronta, ruiu e matou o filho do dono da obra. Agora, ofundamento da obrigação de indenizar é a imperícia doengenheiro civil; quer dizer, sua culpa, o ato ilícito quepraticou. A circunstância de haver entre credor e devedor daindenização um contrato de construção é de nenhumarelevância. Tanto assim que sua eventual nulidade nãoextingue a obrigação de o engenheiro responder pelo ato deimperícia.

2.3. Abuso de direitoSegundo a lei vigente no Brasil, considera-se ato ilícito

o exercício de direito sem a observância dos “limitesimpostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou

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pelos bons costumes” (CC, art. 187). Em princípio, oexercício de um direito corresponde a ato lícito e não pode,por isso, implicar a responsabilidade aquiliana do sujeito queo titulariza. Ao contrário, o titular de um direito deve verassegurada pelo Estado a oportunidade de exercê-loplenamente. Faltando esta segurança, falta o próprio direito,já que o seu titular não poderá opor-se aos queeventualmente o impedem de praticar os atos em que afaculdade ou a prerrogativa jurídica se manifestam. Paramerecer a tutela do Estado, contudo, o direito subjetivo deveser exercido regularmente. Quem exerce direito extravasandoos limites da regularidade — ditados pelo fim econômico ousocial deste, pela boa-fé e bons costumes — não podebuscar amparo aos seus atos. Mais: se causar danos, seráresponsável por indenizá-los.

Esta particular ilicitude — o exercício de direito semobservância dos limites que o cercam — tem sido referidapela noção de abuso de direito (Cap. 11, item 2). Ilustramsua aplicação casos famosos como o Clément-Bayard, dajurisprudência francesa do início do século XX, em que certofazendeiro, proprietário de imóvel contíguo ao de um hangarde dirigíveis, foi condenado a desfazer a divisa que haviaerguido, por consistir esta em altas colunas de madeira compontiagudas varas de ferro. A estranha opção para adivisória dos terrenos não tinha outra justificativa senão pôrem risco os dirigíveis em manobra de pouso ou decolagem.

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Não trazia qualquer proveito para quem a erguera e impediao regular desenvolvimento da atividade econômica dohangar. Não convenceu a defesa do fazendeiro escudada noexercício do direito de propriedade. A divisória estava emseu imóvel, onde, em tese, como proprietário, poderia fazertudo o que a lei não proibisse. Por inexistir proibiçãoexpressa de dividir terrenos com altas varas pontiagudas,pretendia o fazendeiro mantê-las, a despeito dos prejuízospara o vizinho. A condenação é invocada como exemplo doque propõe a teoria do abuso de direito: quem exerce seudireito ultrapassando os limites ditados pela finalidadeeconômica ou social, boa-fé ou bons costumes, não praticaato lícito.

A noção de abuso de direito suscitou, na tecnologiajurídica dos países de tradição românica, um intenso debate.O questionamento partiu da pertinência da expressão. Comocriticava Planiol, “a nova doutrina se assenta inteiramentenuma linguagem insuficientemente estudada; a sua fórmula,o uso abusivo dos direitos, é uma logomaquia porque, se euexerço o próprio direito, o meu ato é lícito, e quando é ilícitoé porque excedo o meu direito e atuo sem direito. É precisonão nos deixarmos enganar pelas palavras; o direito cessaonde o abuso começa, e não pode haver uso abusivo dumdireito, pela razão irrefutável que um só e mesmo ato nãopode ser, ao mesmo tempo, conforme ao direito e contrário aele” (Planiol-Ripert, 1952, 6:798/806).

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Na verdade, o debate despertava maior interesse atémeados do século passado, quando a lei costumava tratar deforma absoluta certos direitos, principalmente o depropriedade. Mas, à medida que, desde então, foram-seincorporando às ordens jurídicas de diversos países(Alemanha, Suíça, Portugal, Argentina e mesmo na antigaUnião das Repúblicas Socialistas Soviéticas) normas que,implícita ou explicitamente, fazem referência à ilicitude daextrapolação dos limites do direito subjetivo, a relevância dadiscussão tem arrefecido. Substitui-se o debate dosfundamentos da noção de abuso de direito pelainterpretação e aplicação da norma legal correspondente.

Em síntese, duas são as questões fundamentais para oentendimento da matéria. A primeira diz respeito àconfiguração do abuso de direito; a segunda, à suaclassificação. A lei brasileira traz resposta inequívoca paraambas, daí o desinteresse em alongar-se nos meandros darica discussão travada, no passado, sobre o tema.

Procuraram solucionar a questão da configuração doabuso de direito três proposições diferentes. De acordo coma primeira, abusivo é o ato desprovido de moralidade, ouseja, atentatório ao preceito moral básico que manda nãoprejudicarmos intencionalmente o próximo. Era esta aposição de Georges Ripert. A segunda proposição buscoucaracterizar o abuso em função dos seus efeitos. Seriaabusivo o exercício de um direito sempre que dele

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decorressem danos anormais. Defenderam-na Charmont eCarbonnier. Por fim, a proposição que configurava o abusode direito de forma objetiva, pela extrapolação dos limitesfixados pelos seus fins econômicos ou sociais, cujapaternidade é atribuída a Josserand (cf. Ripert, 1925:186/190;Sá, 1973:330, 349/357 e 404/420).

Como se percebe da simples leitura do art. 187 do CC, alei brasileira optou pela terceira proposição na questão daconfiguração. Desse modo, no Brasil, ainda que nãotransgrida nenhuma proibição legal específica, exerceabusivamente o direito o titular que transpõe determinadoslimites que o circunscrevem. Esses limites são ditados portrês vetores:

a) finalidade econômica ou social. Os direitossubjetivos não são tutelados pela ordem jurídica comatenção apenas aos interesses do titular. Evidentemente,esses interesses não são desconsiderados, vistorepresentarem a razão de ser da atribuição dos direitossubjetivos. É na compatibilização dos interesses do titulardo direito subjetivo com os dos demais sujeitos com queinterage e a própria comunidade que se encontra o limiteditado pela finalidade econômica ou social dele.

Exemplo de abuso de direito que transgride o limite dafinalidade econômica encontra-se na concorrência desleal.Todos titularizam o direito à liberdade de iniciativa ecompetição, por força de preceitos constitucionais que o

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asseguram (CF, art. 170). A finalidade econômica dessedireito é estruturar o mercado com vistas ao seu regularfuncionamento. Por isso, quem exerce o direito à liberdadede iniciativa e competição praticando atos de concorrênciadesleal — como espionagem empresarial, divulgação defalsa notícia sobre concorrente, exploração de segredo deempresa alheio etc. — tumultua o funcionamento regular domercado e ultrapassa os limites do direito subjetivo à livreiniciativa e competição. Abusa dele, portanto. Emdecorrência, a concorrência desleal gera responsabilidadecivil se tipificada como crime ou se prejudicial à reputaçãoou aos negócios alheios (Lei n. 9.279/96, arts. 195 e 209).

Por sua vez, exemplifica o abuso transgressor doslimites impostos por sua finalidade social a outorga deemancipação do filho feita com o objetivo de exonerar ospais de responsabilidade civil por atos dele. Emdeterminadas condições, isto é, quando o menor se encontrasob a autoridade e em companhia dos pais, estes sãocivilmente responsáveis pelos danos causados por ele. Aemancipação por outorga é direito não só dos pais como,num certo sentido, do filho mesmo. Tem lugar quando este,antes de alcançar a maioridade, já dá mostras de suficienteamadurecimento para administrar diretamente seus negóciose interesses. Quando falta este pressuposto de fato, oexercício do direito é abusivo, e a emancipação por outorganão produzirá o efeito pretendido de liberar os pais de

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responsabilidade pelos atos do filho menor.b) Boa-fé. A harmoniosa convivência em sociedade

pressupõe a boa-fé de todos em qualquer interação. Mentir,ocultar a verdade, não explicitar intenções claramente oubuscar proveitos ilegítimos induzindo outros sujeitos emerro são condutas qualificadas pela má-fé, ainda que tenhama aparência de regular exercício de direito. A alegação pelodemandado, como matéria de defesa em juízo, de fatos quesabe inverídicos, com o objetivo de postergar a tramitaçãodo processo, é exemplo de abuso de direito transgressor doslimites impostos pela boa-fé. Todos titularizam direito àampla defesa e ao contraditório (CF, art. 5º, LV). Este direitoconstitucional, porém, deve ser exercido de boa-fé — comooutro qualquer, aliás. A lei coíbe, por conseguinte, alitigância de má-fé (CPC, arts. 16 e 17).

c) Bons costumes. Este vetor limitativo dos direitos é,dos três indicados pela lei, o de menor importância. Os bonscostumes correspondem às condutas que, pela expectativageralmente nutrida pelas pessoas, serão observadas emdeterminadas situações. O restaurante tem o direito dereservar mesas a determinados clientes, segundo seuspróprios critérios. Normalmente estabelece um limitetemporal para a aceitação da reserva. Entre as pessoas quenão reservaram mesas com antecedência, o bom costume éobservar a ordem de chegada, na destinação das que sevagam. Quando o restaurante dá preferência a pessoa

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famosa (artista, político ou esportista), mesmo ela não tendofeito a reserva antecipada, incorre em exercício abusivo deseu direito, por transgredir limites ditados pelos bonscostumes.

A lei brasileira configura o abuso dedireito pela exorbitância dos limitesfixados por sua finalidade econômicaou social, boa-fé e bons costumes. E oclassifica como ato ilícito.

No plano da classificação do ato abusivo, trêstendências diferentes manifestaram-se. A primeira o arrolavaentre os atos ilícitos. Era a posição de Planiol, por exemplo,que, abstraída sua contundente crítica à expressão, nunca seposicionou contrariamente ao objetivo de coibir o exercícioirregular dos direitos subjetivos. A segunda tendênciatratava o abuso de direito como categoria sui generis,situada entre os atos lícitos e os ilícitos. Segundo estaconcepção, os atos jurídicos dividir-se-iam em conformes enão conformes. Aquela categoria abrigaria os atos lícitos, ao

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passo que esta se desdobraria em desconformes lógico-formais (ilícitos) e desconformes axiológico-materias(abusivos). Advogaram-na com variações mais ou menossutis, por exemplo, Cunha de Sá e Josserand. Por fim, houvequem abstraísse a classificação entre os lícitos e ilícitos paratratar a figura da abusividade como instrumento deinterpretação e flexibilização das normas jurídicas (Sá,1973:331, 337/342 e 471; Martins, 1935).

Também resulta da mera leitura do dispositivo legal emfoco (CC, art. 187) que o direito brasileiro acolheu a primeiradas tendências de classificação do abuso de direito. Ele seenquadra indiscutivelmente entre os atos ilícitos. Dissodecorre, entre outras implicações, a responsabilidade civil dotitular do direito abusivamente exercido pelos danos a quedeu causa. Em decorrência da classificação do abuso dedireito como ato ilícito, considera-se a culpa inerente àextrapolação dos limites de seu exercício. Transgredir os finseconômicos ou sociais de um direito, a boa-fé ou os bonscostumes é conduta culposa que importa a obrigação deindenizar eventuais danos decorrentes.

Antes de encerrar esse tópico, convém destacar que,para o jurista português José de Oliveira Ascensão, o art.187 do CC não teria incorporado ao direito brasileiro normaexpressa coibindo o abuso de direito. Para ele, trata odispositivo de algumas (e não de todas) as formas deexercício irregular do direito, deixando de contemplar os atos

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emulativos, que correspondem ao núcleo histórico do abusode direito (2005).

3. PROFISSIONAIS LIBERAISProfissionais liberais são os prestadores autônomos de

serviços especializados que, pela relevância e complexidadedestes, devem possuir formação superior e habilitação dadapelo órgão específico de fiscalização. Dois, portanto, são oselementos que identificam o profissional liberal: de um lado,a necessidade de formação superior e sujeição a controleespecífico, nos termos da lei reguladora da atividade em foco(elemento institucional), e, de outro, a autonomiaeconômica como prestador de serviços (elementoeconômico). São profissionais liberais, desde queestabelecidos autonomamente, médicos, dentistas,psicólogos, advogados, engenheiros civis, arquitetos,contadores, veterinários etc.

O elemento institucional de identificação do profissionalliberal liga-se às especificidades do serviço que presta aosseus clientes. São serviços de alta complexidade, para cujaexecução é necessário dominar conhecimento científico etecnológico. Tratar enfermidades, defender interesses numconflito ou administrar construções são atividades aoalcance apenas de quem se dedicou a aprofundados estudose práticas supervisionadas. Conhecimentos técnicos, cursosrápidos, treinamentos, habilidades manuais ou simples

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experiência em ateliês, escritórios ou oficinas não bastampara o adequado desempenho dessas complexas atividades.Em vista de tais particularidades, a lei só permite prestar osserviços correspondentes depois de preenchidas duasexigências formais: diplomação em curso superior eminstituição de ensino autorizada a funcionar pelo governofederal e inscrição no correspondente órgão de classe(Conselho Profissional ou Ordem).

O profissional liberal deve ter formação superior, epreferivelmente deve atualizar-se de forma constante(participando de entidades profissionais e seus congressos,fazendo pós-graduação e cursos de educação continuada,assinando revistas especializadas, adquirindo livros etc.),não só porque os serviços que presta o exigem, mas tendoem vista a sua relevância para a sociedade. As mesmasrazões encontram-se nos fundamentos da fiscalização doexercício profissional por órgãos de classe. Os ConselhosProfissionais (CRM, CREA, CRO, CRP, CRMV etc.) e aOrdem dos Advogados do Brasil são autarquiascorporativas encarregadas pela lei de habilitar osprofissionais liberais e fiscalizar o exercício da profissão.Note que não basta a existência de órgão de classe para quea atividade fiscalizada se defina como profissão liberal. Senão for exigida formação superior, o prestador de serviçosnão se considera profissional liberal. É o caso, por exemplo,dos representantes comerciais ou dos corretores de imóveis,

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que, malgrado tenham as atividades sujeitas a controlessimilares aos das profissões liberais (pelo Conselho Federale Conselhos Regionais), não são prestadores de serviçosdesta categoria porque inexigível a diplomação em cursosuperior.

O elemento econômico de identificação diz respeito àforma como a atividade é desenvolvida. Para ser liberal, oprofissional deve ter sua própria organização de prestaçãode serviços. Não é liberal, assim, ainda que preenchido oelemento institucional, o profissional de formação superiorque trabalha numa empresa ou organização públicaprestadora de serviços. Se o médico é, por exemplo,empregado de um hospital, clínica ou operadora de planoprivado de assistência à saúde (OPPAS) ou é funcionáriopúblico, ele não exerce sua atividade profissional comoliberal. Da mesma forma, não se considera assim o advogadoempregado de empresa ou de escritório de advocacia quenão lhe pertence.

Considera-se profissional liberal oprestador autônomo (elementoeconômico) de serviços especializados,

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para cuja execução exige a leiformação superior e sujeição àfiscalização pelo órgão de classe(elemento institucional). A lei imputa-lhe responsabilidade civil aquilianapelos danos que causar aoscontratantes de seus serviços.

A lei define expressamente como subjetiva aresponsabilidade civil do profissional liberal: “aresponsabilidade pessoal dos profissionais liberais seráapurada mediante a verificação de culpa” (CDC, art. 14, § 4º).Na aplicação deste preceito, deve-se pesquisar a presençado elemento econômico de identificação do profissionalliberal. Se cometido o erro médico por profissionalempregado de hospital ou OPPAS, a responsabilidade porindenizar o paciente é do empregador; é, ademais, objetiva(cf. Stoco, 1995). Se cometido por profissional liberal, é deleapenas a responsabilidade civil; e subjetiva.

Veja que boa parte das cirurgias é feita em hospital, massó desta circunstância não deriva sua responsabilidade,

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caso o erro seja do cirurgião. Isso porque o médico imperitopodia ser ou não liberal. Os cirurgiões liberais operam nohospital em que estão cadastrados, do qual não sãoempregados — aliás, o modelo tem-se espalhado por todasas especialidades médicas tornando os grandes hospitais,na verdade, apenas o local devidamente equipado para aprestação de serviços por profissionais liberais. Se for esseo caso, a responsabilidade pelo erro médico é subjetiva, e ohospital não responde (a menos, é claro, que seja imputávela ele o defeito do serviço — equipamentos ou instrumentosimperfeitos, erros de seus empregados que auxiliaram acirurgia etc.) (cf. Zuliani, 2003:56).

Os profissionais liberais respondem subjetivamentepelos danos que causam a seus clientes porquedesempenham sua relevante atividade de forma nãoempresarial (CC, art. 966, parágrafo único). Não ocupam, emdecorrência, posição econômica que lhes permita socializaros custos da atividade. A receita que auferem com aaplicação dos conhecimentos especializados adquiridos nocurso superior e na prática profissional, descontados oscustos de organização da prestação dos serviços, destina-seao seu sustento e de sua família; não pode ser consideradalucro pela exploração de atividade empresarial (Cap. 23, item4). É racional, portanto, que a responsabilidade civil dosprofissionais liberais seja fundada na culpa. Aliás, em outrospaíses, como os Estados Unidos, os profissionais liberais

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também respondem apenas por imperícia, e nuncaobjetivamente (Phillips, 1974:100/103).

Há atividades relevantes e complexas, para cujaexecução é exigida formação superior e fiscalização porórgão de classe, mas que raramente são exploradas de formaautônoma. Enfermeiros, agrônomos, administradores deempresa, economistas, jornalistas e engenheiros de certasespecialidades (químicos, mecânicos, mecatrônicos, deprodução etc.) são exemplos de profissionais de formaçãosuperior em relação aos quais o elemento econômico deidentificação da atividade liberal não é comum. Esta, porém,é mera questão de fato, que nada altera no direito a aplicar.Se e quando qualquer um deles se estabelecerautonomamente, a responsabilidade civil por danosderivados de sua atividade será subjetiva.

3.1. Questão de ordemParte da tecnologia jurídica civilista toma a expressão

responsabilidade civil como gênero, desdobrado nasespécies contratual e extracontratual. Entre as hipótesesalbergadas na responsabilidade contratual estuda a dosprofissionais liberais. De fato, entre eles e seus clientes, hásempre um contrato, oral ou escrito, circunstância quejustifica a classificação (cf., por todos, Gonçalves, 2002).Outra parte prefere dividir as obrigações em contratuais eacontratuais, inserindo a responsabilidade civil, inclusive a

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dos profissionais liberais, entre estas últimas (cf., por todos,Lopes, 2001). As duas alternativas são satisfatórias naestruturação do entendimento sobre o assunto.

Qualquer que seja a forma de organizar a exposição damatéria, concordam todos que, na responsabilidade dosprofissionais liberais pelos danos que causam no exercíciode suas atividades, verifica-se a sobreposição dos regimesda responsabilidade contratual e aquiliana. Sob a vigênciado Código Beviláqua, a sobreposição não despertavamaiores preocupações, sendo irrelevante, para fins deconstituição e quantificação da obrigação de indenizar, se alesão fosse entendida como inadimplemento de obrigaçãocontratual ou imperícia profissional. Com a entrada em vigordo Código Reale, no entanto, a sobreposição desperta umaquestão específica, na medida em que a lei passou aautorizar, na quantificação da indenização porresponsabilidade civil (obrigação não negocial), a reduçãoequitativa do seu valor pelo juiz em função da poucagravidade da culpa do causador do dano (CC, art. 944,parágrafo único). Como a autorização não existe para aresponsabilidade derivada de descumprimento de contrato,passa a ser relevante o regime disciplinar da indenização:contratual ou aquiliana? Como já assentado acima, anatureza da indenização — se prestação ou consectário —resolve a questão (subitem 2.2).

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3.2. Profissionais da saúdeOs profissionais liberais da saúde são os que

desenvolvem atividades especializadas ligadas à condiçãodo organismo humano. O médico é o exemplo imediato.Tomo-o por referência para discutir os aspectos ligados àresponsabilização civil desta categoria de profissionais. Asobservações que seguem, tecidas em torno do trabalho dosmédicos, são também pertinentes à responsabilidade civil deoutros profissionais liberais de saúde, como dentistas,fisioterapeutas, nutricionistas, instrutores de educação físicaetc. Todos assumem obrigações de meio, e não de resultado,e respondem apenas por danos causados por imperícia naaplicação dos conhecimentos especializados de sua área.

3.2.1. Médicos

De Hipócrates até o século XIX, os médicosconsideravam que a causa de algumas doenças era aimpureza do sangue. Com base na difundida teoria doshumores, os males eram vistos como manifestação do humorviciado em certas partes do organismo, principalmente osangue. Prescreviam, então, como tratamento a sangria.Tirando do doente a maior quantidade possível de sangueruim, a tendência seria a melhora de seu estado de saúde. Oprocedimento largamente adotado fundava-se em raciocíniológico sustentado pelas autoridades acadêmicas da área.Correspondia, em suma, à ciência da época. Desde o século.

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XIX, sangrar o paciente com o objetivo de curá-lo passou aser visto como inconcebível despropósito, uma verdadeiraiatrogenia. A sangria não só não curava o paciente comotambém o privava de valiosa força orgânica de combate dadoença que o acometia. Dizem que George Washington,primeiro presidente dos EUA, morreu em razão das sangriasque lhe aplicaram respeitáveis médicos da época notratamento de uma amidalite. A premissa da impureza dosangue como causa de enfermidades era equivocada.

Esse episódio da história da medicina é assustador. Osprocedimentos atualmente adotados pelos médicos sãosustentados em pesquisas empíricas e raciocínios lógicosaceitos pelas autoridades acadêmicas da área. Isto é, suaeficiência no tratamento de enfermidades sustenta-se nomesmo fundamento que fazia a medicina, no passado,recomendar a sangria. Aprimorou-se, sem dúvida, a ciência— inclusive porque aprendeu com seus erros —, masninguém tem ou pode dar qualquer garantia de infalibilidade.O funcionamento do organismo humano é muito complexo, ecada pessoa tem suas peculiaridades, podendo reagir deforma única aos procedimentos geralmente adotados paracasos idênticos. A receita infalível na cura de milhões depacientes pode mostrar-se ineficaz num caso particular, semexplicação conhecida para isso.

A obrigação dos médicos, neste cenário, só pode ser demeio, e não de resultado. Com efeito, mesmo usando os

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instrumentos de diagnose mais avançados, empregandocorretamente as técnicas mais aprimoradas, prescrevendocom precisão as terapias e medicamentos maisdesenvolvidos, a enfermidade pode não ser curada.Soluções plenamente eficazes no tratamento de pacientescom o mesmo mal podem não surtir igual efeito numa pessoadeterminada. É humanamente impossível, portanto, obrigar omédico pelo resultado. Obriga-se ele simplesmente a adotaros procedimentos recomendados pela medicina com o maiorzelo e dedicação profissional, informando o paciente sobreos benefícios e riscos da terapêutica indicada. O resultadopretendido — a cura da enfermidade — está fora do alcancedo mais capacitado profissional médico.

Note que a obrigação do médico é de meio e não deresultado em função de sua própria natureza, em razão dagrande complexidade do funcionamento do organismohumano e dos limites da ciência. Não decorre do contratoentre o profissional e o paciente. É claro que, se o médicoestá bastante seguro de sua competência — ou é um toloirresponsável — e assume contratualmente obrigação deresultado (a cura), não obtido este pode o paciente reclamara indenização por inadimplemento de contrato. Nãoexistindo, porém, específica combinação neste sentido entreas partes, a responsabilidade do profissional seránecessariamente de meio. Adotando com perícia osprocedimentos recomendados para o caso do paciente, o

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médico não responderá se, no final, mostrarem-se estesinsuficientes à cura.

São exemplos de imperícia médica: não suspenderterapia que causa reação anormal no paciente; esquecerinstrumento cirúrgico no interior do corpo do paciente; nãoobservar normas técnicas de assepsia; negligenciar nasolicitação dos testes pré-operatórios (RT, 798/376);prescrever medicamento ou anestésico sem atentar àidiossincrasia do paciente; errar na dosagem domedicamento; retardar a cesariana quando já constatada ainviabilidade do parto normal; empregar técnica ultrapassadacondenada pela literatura atualizada; trocar exames; atuar emárea estranha à da respectiva especialidade sem o devidopreparo e atualização (cf. Diniz, 2002:269/270; Gonçalves,2002:375/380; Zuliani, 2003).

O médico tem, pela natureza de suasfunções e não pelo contrato queestabelece com o paciente, obrigaçõesde meio e não de resultado. Não éresponsável, em outros termos, pela

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cura dos enfermos que trata, mas pelaperita adoção dos procedimentosrecomendados pela medicina.

No trabalho em equipe, cada profissional respondepelos seus próprios atos, não existindo solidariedade pelaimperícia alheia. Foi-se o tempo em que se considerava ochefe da equipe médica responsável por culpa in eligendodos demais profissionais (cf. Gonçalves, 2003:205/207). Emvista da imensa especialização do conhecimento médico e dacomplexidade inerente a cada área, cada membro da equiperesponde apenas pelos atos que pratica. Numa cesariana,por exemplo, o cirurgião obstetra ocupa-se dosprocedimentos relacionados à liberação do bebê do útero.Cortado o cordão umbilical, sua atenção volta-seexclusivamente à mãe. O pediatra neonatal responsabiliza-sepela recepção do recém-nascido. No seu canto, o anestesistacuida do fluxo do anestésico e monitora as funções vitais daparturiente. É essencial que cada membro da equipe médicaconcentre-se na sua função. A imputação deresponsabilidade a um deles pelo trabalho do outropressupõe um dever de fiscalização por tudo incompatívelcom a divisão de tarefas recomendadas pelas modernastécnicas cirúrgicas e altamente prejudicial ao paciente. A

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responsabilidade subjetiva dos profissionais liberais éindividual, ainda que trabalhando em equipe.

3.2.2. Medicina de embelezamento

Quero insistir que o tipo da obrigação do médico(obrigação de meio) decorre da natureza de sua atividade, enão do contrato com o paciente: em matéria deresponsabilidade civil, o negócio jurídico eventualmenteexistente entre credor e devedor da indenização é, comovisto, circunstancial. Insisto para questionar o entendimentoda jurisprudência no sentido de existir uma hipótese em queo médico teria responsabilidade de resultado: a cirurgiaplástica destinada unicamente ao embelezamento dopaciente (mal denominada cirurgia estética). Pelo quepredomina nos tribunais, se a cirurgia plástica se destina acorrigir deformidade congênita ou adquirida (num acidentede trânsito ou de trabalho, p. ex.), o cirurgião atua nasmesmas condições que seus colegas médicos de outrasespecialidades. Assume, então, obrigação de meio. Mas, seo procedimento tem o objetivo único do embelezamento, nãohavendo propriamente um mal a curar, o cirurgião assumeobrigação de resultado. Obrigar-se-ia, neste caso, a alcançar,com sua técnica cirúrgica e habilidades, o padrão de belezaprometido. Neste caso, não alcançado o objetivo contratado,ele responderia por indenizar o paciente (cf. Gonçalves,2002:366/370).

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Em primeiro lugar, é necessário desfazer a enormedistância entre a plástica corretiva e a estética que a retóricajurídica estabeleceu. Não há fundamentos para tratar as duashipóteses como essencialmente diversas. Deve-se odistanciamento a resquícios do preconceito que cercou, noinício, a cirurgia plástica de objetivos meramente estéticos.A doutrina noticia célebre julgado da primeira metade doséculo passado, em França, em que o cirurgião plástico foicondenado, por erro médico, a indenizar a paciente (Dias,1954, 1:303/310). O interesse no caso não reside tanto nadecisão condenatória — afinal, os relatos indicam ter mesmoocorrido uma deplorável imperícia do profissional. Ointeresse está, como aponta Aguiar Dias, na condenação dopróprio procedimento: considerou-se que a responsabilidadedo médico decorria de ter concordado em fazer operaçãoplástica em pessoa completamente sã, apenas com oobjetivo de aprimoramento estético. A jovem paciente erabonita e esbelta, mas tinha as pernas desproporcionalmentegrandes. O objetivo da intervenção foi reduzi-las por ablaçãode gordura (o que foi motivo de verdadeiro escândalonaquela época é hoje largamente aceito e praticado nasinúmeras clínicas de lipoaspiração de todo o mundo). Emoutros termos, assentou-se que, se o único objetivo daoperação cirúrgica é aformoseamento estético de pessoasaudável, realizá-la já é, por si, conduta culposa.

Julgados como esse — cujos fundamentos ainda se

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encontram na jurisprudência francesa dos anos 1960 (Lopes,2001:232) — ilustram a fase que Caio Mário da Silva Pereiradesigna como a de rejeição pelo direito da cirurgia plásticade razões meramente estéticas (1989:155/156). Os resquíciosda rejeição ainda ecoam no preconceituoso tratamentojurisprudencial do procedimento de objetivo exclusivamenteestético como um caso à parte. Na verdade, a extraordináriamelhora de autoestima que a cirurgia plástica bem-sucedidaproporciona, em homens e mulheres, é fator de saúde,independentemente de seu caráter corretivo ou de simplesaformoseamento.

Mas o que, decisivamente, sustenta a natureza deobrigação de meio dos cirurgiões plásticos nas intervençõesmotivadas apenas por razões estéticas é a presença dasmesmas razões que impossibilitam os médicos das demaisespecialidades de assumir compromissos de resultado. Aciência médica, embora possa estabelecer padrões geraisaltamente confiáveis para os procedimentos que recomenda,não consegue controlá-los de forma absoluta. Em casoscorrespondentes a certas margens estatísticas, manifestar-se-ão especificidades que fogem ao controle da medicina.Cada organismo reage diferentemente à “agressão” dacirurgia, e influi enormemente nos resultados da plástica oestado psíquico do paciente. Este quadro encontra-se emtodas as especialidades médicas, inclusive na medicina deembelezamento. Em suma, a intervenção cirúrgica de razões

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meramente estéticas expõe o paciente a riscos, tanto quantoqualquer outra (Aguiar Jr., 1995:40).

Ao contrário do que entende ajurisprudência, ao realizar cirurgiaplástica de razões puramente estéticas,o médico assume também obrigação demeio, e não de resultado. A medicinade embelezamento está sujeita aosmesmos limites das demais áreas deespecialidade médica.

Afirma-se, por outro lado, que a obrigação do cirurgiãoplástico, nesta hipótese, seria de resultado porque opaciente, ao submeter-se à cirurgia de razões meramentees téticas , quer alcançar um objetivo específico — oembelezamento — e não apenas contar com a diligente ecompetente atuação do profissional (Lopes, 1980:62). Esteargumento, porém, não procede. Em primeiro lugar, porque

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nada há de específico nas expectativas do paciente por ter acirurgia razões puramente estéticas. Sempre que alguémprocura um médico quer alcançar um objetivo específico: acura de doença, melhoria do estado geral de saúde,controles preventivos etc. Deste fato, porém, não decorreseja a obrigação do médico de resultado. Em segundo lugar,porque não é possível, mesmo na cirurgia de motivosmeramente estéticos, garantir de forma absoluta o resultadosatisfatório. Em outros termos, a questão não pode serresolvida pelo que deseja o cliente, mas sim pelo que éobjetivamente factível.

A medicina de embelezamento, hoje em dia, não seresume à cirurgia plástica. Dermatologistas têm-se dedicado,cada vez mais, a tratamentos de objetivos meramenteestéticos. Também respondem por obrigações de meio, e nãode resultado. Em idênticas condições encontram-se osdentistas, quando realizam trabalhos de finalidades de puroaformoseamento, como o branqueamento dos dentes, oalinhamento sem caráter de correção funcional, colocação dejaquetas etc. Assumem esses profissionais de saúdeobrigação de se empenharem com perícia e diligência naexecução do trabalho e não pelo resultado alcançado.

3.2.3. Prova da culpa

Os médicos liberais respondem civilmente pelos danosinfligidos à integridade física ou moral e à saúde, ou pelo

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falecimento de seus pacientes, se decorrentes de suaimperícia. Não se pode perder de vista que a deterioraçãoprogressiva do organismo, cuja velocidade é ditada pelamaior ou menor capacidade de reação às cotidianasagressões do ambiente, bem como a morte são inevitáveis. Omédico que age com perícia pode apenas eventualmenteadiá-las. Responde, claro, por dolo, quando teve a intençãode infligir danos ao paciente, firmou atestado falso ou omitiudeliberadamente o socorro que tinha o dever de dar. Aforahipótese de culpa intencional, contudo, a responsabilidadecivil constitui-se só quando sua imperita atuação precipitaos processos naturais de deterioração, capacidade de reaçãoao ambiente e morte do organismo humano.

Em razão da complexidade dosprocedimentos da medicina atual epara realizar os objetivos do princípioda indenidade, o juiz deve inverter oônus da prova do pressupostosubjetivo da responsabilidadeaquiliana dos médicos sempre que

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verossímil a alegação apresentadapelo paciente.

Desse modo, não provada a culpa do profissional naadoção dos procedimentos recomendados pela ciênciamédica, o dano deve ser suportado pelo próprio paciente. Aprova do dolo ou imperícia cabe, em regra, à vítima, mas, emvista da crescente complexidade da matéria e em atenção aoprincípio da indenidade, deve o juiz determinar a inversão doônus probatório com base na lei de tutela dos consumidores(CDC, art. 6º, VIII) sempre que verossímil a alegaçãoapresentada, como ensina Ênio Santarelli Zuliani (2003).Neste caso, não será exigido da vítima provar a culpa domédico que a atendeu, mas deste demonstrar que seconduziu exatamente como recomenda a medicina. Não setrata de uma presunção de culpa estabelecida na lei paratodo e qualquer demanda de indenização por erro médico,mas de inversão que o juiz pode ou não determinar, em vistados elementos levados pela vítima aos autos. Se foreminverossímeis as alegações aduzidas, não tem lugar ainversão do ônus probatório.

3.3. AdvogadosÉ necessariamente de meio a obrigação profissional do

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advogado. Quando atua na advocacia contenciosa, não temcomo comprometer-se a obter o resultado da demandafavorável ao cliente. Por maior que seja a tendência dojulgamento num sentido, não há garantia absoluta de vitóriaem nenhuma contenda judicial. Se advogado consultivo,também não tem obrigação de resultado: caso seu parecernão prevaleça, ele não pode ser responsabilizado. Obriga-se,na verdade, a empenhar-se na defesa em juízo dos interessesde seus clientes ou no estudo aprofundado da questão quelhe é submetida.

O advogado tem, em decorrência, responsabilidade civilsubjetiva pelos danos que causa ao cliente quando falta aocumprimento da obrigação de meio, quando comete erro nodesempenho da profissão. São exemplos de imperíciaprofissional de advogado: perder o prazo da contestação ourecurso; deixar de protestar títulos que lhe foram confiados àcobrança, sustentar a conclusão de parecer em dispositivode lei revogado, caso vigore outro com comando em sentidooposto; não propor a discussão de cláusula essencial aosinteresses do cliente no transcurso de negociações dumcontrato; não advertir, oralmente ou por escrito, o clienteacerca do risco, quando houver, de determinadas condutasou decisões serem consideradas ilegais (cf. Dias, 1954,1:328/338).

A configuração do erro no desempenho da profissão deadvogado liberal nem sempre é fácil. Algumas falhas são

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inequivocamente produto da ignorância e por elas devemresponder os profissionais, sem perdão. Mas a crescentecomplexidade da matéria jurídica, a multiplicação dedissensos jurisprudenciais e o esgarçamento de valorestradicionais do Direito dificultam distinguir, em determinadashipóteses-limite, se ocorreu ou não o erro. Ninguém discordaque a perda de prazo para a prática de ato processual é culpagrave do advogado. Mas, em alguns casos, a jurisprudênciadiverge sobre o prazo em vigor (p. ex.: o de embargos naexecução de Cédula de Crédito Industrial: 48 horas ou 10dias? — Coelho, 1995:439). Se o profissional protocoliza amanifestação no prazo mais largo, está sendo imprudente,em vista da divergência nos tribunais? Deve serresponsabilizado se restar decidido que atuouextemporaneamente, mesmo tendo acerca do prazo legal amesma convicção de parte considerável da jurisprudência edoutrina? Nestes casos de dúvida, sempre que o advogadopuder sustentar o ato praticado em precedentesjurisprudenciais, entendimentos doutrinários autorizados oumesmo em argumentos jurídicos sólidos, ele não responderápor eventuais danos sofridos pelo cliente.

A responsabilidade civil dosadvogados liberais por danos aos

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clientes cabe na hipótese dedescumprimento das obrigações demeio ínsitas à sua função. Cumprindocom diligência e perícia sua atividade,não pode o advogado serresponsabilizado pelo resultado doprocesso judicial eventualmentedesfavorável ao cliente.

Além da hipótese de imperícia no cumprimento daobrigação de meio, o advogado, evidentemente, respondetambém por dolo, se teve a intenção de infligir danos a quemcontratou seus serviços ou assumiu deliberadamente o riscode causá-los. O exemplo típico é o da traição de mandato. Seo advogado recebe pagamento ou vantagem da parteadversária para fraquejar na defesa dos interesses de seuconstituinte, ou mesmo para praticar ato que o sacrifique,incorre em ato doloso constitutivo de responsabilidade civilsubjetiva.

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3.4. Engenheiros civisA denominação engenheiro civil deve-se à primeira

classificação que a profissão teve no Brasil: de um lado, osespecializados na construção de fortes e armamentos, ouseja, os engenheiros militares; de outro, os demais, os civis.Hoje em dia, ela designa os profissionais da engenharia deconstrução, em vista da crescente lista de especializações(químico, eletricista, mecânico, de comunicação, deprodução etc.).

O engenheiro civil é profissional liberal comresponsabilidade pelo resultado de seu trabalho. Secontratado para construir a residência do cliente, eleresponde pela solidez e segurança do imóvel construído,bem como pela conformidade com os projetos(arquitetônico, estrutural, elétrico, hidráulico, de paisagismoetc.). Note que o engenheiro civil pode ser contratado paraempreitar a obra ou simplesmente para gerenciá-la, e adiferença é essencial para delimitação de suaresponsabilidade.

No primeiro caso, o contrato com o cliente é deempreitada, regido por disposições específicas do CódigoCivil (arts. 610 a 626). Nele, o engenheiro assume a obrigaçãode construir o imóvel com sua equipe (pedreiros, pintores,eletricistas etc.), fornecendo também os materiais ou não. Alei disciplina a responsabilidade do empreiteiro, fixando osprazos para manifestação dos defeitos (5 anos, a contar da

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conclusão do serviço) e interpelação pelo dono da obra (180dias).

No segundo caso, o contrato é de prestação deserviços, obrigando-se o engenheiro a administrar a obra.Aqui, ele cota o preço dos materiais, seleciona empreiteiras,providencia licenças e registros, fiscaliza o andamento dostrabalhos e propõe soluções técnicas ao seu cliente. Suaobrigação é também de resultado, mas limitada ao escopodas funções gerenciais que desempenha. Ocorrendoproblema com o material empregado, o dono da obra nãopode reclamar contra o engenheiro civil se era oculto odefeito. A reclamação terá que ser feita contra o fornecedordo material. Se oriundo de má execução dos serviços doempreiteiro, é contra este que deverá voltar-se a queixa dodono da obra. Mas, se o problema decorre de soluçãotécnica inadequada ou deficiência de gerenciamento — que,muitas vezes, atrasa o cronograma da obra —, o engenheiroé o responsável. Outra diferença em relação ao contrato deempreitada está no prazo para a reclamação contra defeitos,que é o da lei de tutela dos consumidores: 5 anos, a contardo conhecimento do dano e de sua autoria (CDC, art. 27).

Suponha, então, que uma casa recém-construídadesabou e causou danos pessoais e materiais. Considereque o desabamento decorreu de erro na construção: asfundações não haviam sido feitas como indicado peloprojeto estrutural. Neste caso, o engenheiro civil responde

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pelos danos, qualquer que tenha sido a relação contratualcom o dono da obra (empreitada, em qualquer de suasmodalidades, ou gerenciamento), já que se obrigara peloresultado, isto é, por entregar ao dono da obra um imóvelsólido, seguro e construído em conformidade com osprojetos.

O engenheiro civil liberal assumeobrigação subjetiva pelo resultado daobra que executa como empreiteiro ouadministra. Se o prédio não apresentara solidez e segurança exigíveis, ouestiver gravemente desconforme comos projetos respectivos, havendo culpado engenheiro, deve ele indenizar odono da obra pelos prejuízospatrimoniais e extrapatrimoniais.

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Igual à responsabilidade do engenheiro civil tem oarquiteto que, além de projetar, também executa ou gerenciaa obra.

4. ACIDENTE DE TRÂNSITOO trânsito é um ambiente propício aos acidentes. Os

motoristas, mesmo os mais cautelosos, incorrem em errosconstantemente e parte deles causam danos. Embora nãosejam, em tese, sempre evitáveis, os acidentes de trânsitogeram responsabilidade civil subjetiva. Em primeiro lugar,porque os condutores, exceto se dirigem veículospertencentes a empresas ou ao Estado, não geram eventodanoso em que o responsável se encontre em posiçãoeconômica que lhe possibilite socializar os custos daatividade. Mas não é isto apenas. A responsabilidadesubjetiva é importante como sanção imposta às condutasimprudentes dos motoristas, com o objetivo de contribuirpara a redução dos acidentes de trânsito e suas gravesconsequências para a sociedade e economia brasileiras.

Sendo subjetiva a responsabilidade ligada aos acidentesde trânsito, cabe à vítima provar a culpa do motoristademandado (ou empregado do demandado). Em algunscasos, essa prova é tão singela que sugere até mesmo certaobjetivação da responsabilidade. Pense no caso doabalroamento de veículo estacionado na via pública. Omotorista que conduzia o carro abalroador evidentemente é

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o culpado, já que o outro automóvel envolvido no desastreestava imóvel. É tão clara a exclusiva responsabilidade daimprudência do condutor do veículo em movimento peloacidente que não se dá relevância ao fato de o outroencontrar-se eventualmente parado em local proibido(Gonçalves, 2002:791/793). Não há aqui, entretanto,responsabilidade objetiva ou presunção de culpa, massimplesmente uma hipótese de prova fácil do ato ilícito, pelaevidência da conduta culposa do demandado.

Não há dificuldade também na prova da culpa domotorista na hipótese, por exemplo, de atropelamento depedestre que caminhava pela calçada. Se o veículo, paraatingir a vítima, abandonou o leito carroçável e avançousobre o passeio, é claro que nada mais é necessário àdemonstração da imprudência do condutor. Veja que se estátratando aqui só do elemento subjetivo. Pode ser que odemandado não seja responsabilizado se demonstrar quenão se encontram presentes outros elementos daresponsabilidade aquiliana, como a relação de causalidade,por exemplo. Ou seja, se ele prova a ocorrência de casofortuito (quebra do eixo da direção) ou ato de terceiros(acabara de ter sido abalroado por outro veículo em altavelocidade), elide sua responsabilidade.

Também é relativamente fácil a prova da culpa peloacidente de trânsito no caso de desrespeito às regras depreferência. Todos os motoristas as conhecem ou intuem,

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embora nem sempre as respeitem. Em termos gerais, apreferência é estabelecida por sinal luminoso (semáforo,farol ou sinaleira) cujas cores atendem a padrãointernacional: verde significa a preferência para atravessar;vermelho, a obrigatoriedade de dar preferência; e amarelo, atransição entre aquela condição e esta, alertando osmotoristas sobre a mudança no sentido da preferência. Agecom culpa quem desrespeita os significados dessas cores(RT, 792/280). Não havendo o sinal luminoso, o direito àpreferência é do veículo que trafega pela via preferencial.Quem vai pela secundária — identificada pela placa “Pare”ou pelo triângulo branco de moldura vermelha com a basepara cima — deve aguardar, pacientemente, a oportunidadepara atravessar.

A via preferencial não é identificada pela maior largura,pela denominação mais sugestiva (“avenida” em vez de“rua”), pelo maior volume de tráfego ou pelo melhor tipo decalçamento. É a sinalização sempre o critério decisivo paraidentificação da ordem de preferência. Para os cruzamentosnão sinalizados, as regras são as seguintes: nas rotatórias,tem preferência o veículo que nela já ingressou; nos demais,o que vem da direita (Gonçalves, 2002:791/814).

Têm preferência, independentemente da via em quetrafegam, os veículos especiais destinados a transportes deemergência, como as ambulâncias, viaturas de polícia ou docorpo de bombeiros, desde que acionem o sinal sonoro

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indicativo da urgência (sirene), bem como os de altasautoridades acompanhados de batedores.

Entre o veículo motorizado e o não motorizado ou opedestre, a preferência é, em princípio, destes últimos.Quando há ciclovias sinalizadas ou faixa de segurança, nãohá exceções: o motorista deve parar o automóvel e aguardara travessia da bicicleta ou pedestre. Mesmo que o sinalluminoso esteja verde (ou “aberto”) para o motorista, se opedestre ainda não concluiu a travessia na faixa desegurança, é deste último a preferência. Nas áreas em queinexistem as sinalizações indicadas, a preferência é doveículo motorizado. O pedestre que deseja atravessar a ruafora da faixa de segurança, ou nos cruzamentos em que elanão foi pintada, deve aguardar a passagem do automóvel.

Quando o demandante prova em juízo que o demandadodescumprira regra de preferência e isto dera ensejo aoacidente de trânsito, desincumbe-se do ônus de provar aculpa. Nada mais lhe é exigido relativamente à demonstraçãodo elemento subjetivo. De novo, não se trata de objetivaçãoda responsabilidade ou presunção de culpa, mas unicamentede exemplo em que não é difícil ao credor da indenizaçãoproduzir a prova do comportamento culposo do devedor.

Note, o motorista titular da preferência não estáautorizado a conduzir-se imprudentemente. O direito depreferência não dispensa o motorista das mesmíssimascautelas que está sempre obrigado a observar enquanto

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dirige. Assim, se o pedestre está atravessando a rua fora dafaixa e o motorista o vê a tempo de reduzir a velocidade doveículo e até mesmo pará-lo, se necessário, para evitar oatropelamento, é seu dever fazê-lo. Não se livra deresponsabilidade invocando a preferência. Só seráexonerado de indenizar o pedestre atropelado se provar queeste atravessara a rua de forma abrupta, ou lançara-se contrao veículo, movendo-se em tempo curto demais para que omotorista pudesse evitar o choque de forma eficiente.Nestes casos, porém, a prova da culpa ou de suainexistência é mais complexa.

Pode-se considerar, por fim, também fácil a prova daculpa do motorista ao colidir na traseira do veículo quetrafegava à frente no curso normal de rolamento. Afacilidade deriva da evidente transgressão à regra de trânsitoque obriga aos condutores observar razoável distância emrelação ao veículo da frente (cf. Azevedo, 1994:50).

A responsabilidade pelos acidentesde trânsito é subjetiva, cabendo àvítima provar a culpa do demandadoou seu preposto. Em diversas

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situações, quando flagrantementedesrespeitadas as leis do trânsito, éfácil produzir a prova: atropelamentode pedestre na calçada, colisão comveículo estacionado, abalroamento portrás do veículo e inobservância deregra de preferência.

Quando não for fácil a produção daprova da culpa, deve o juiz, ematenção ao princípio da indenidade,ser tolerante na avaliação dos indíciosapresentados pela vítima e severo noexame do prontuário do motoristademandado.

Embora extensa a lista de hipóteses em que a prova daculpa do demandado não representa dificuldade para o

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demandante, não se pode generalizar a noção. Em váriosacidentes de trânsito, a prova do elemento subjetivorepresenta difícil obstáculo para a vítima transpor ao pleiteara indenização. Não há, para esses casos, nenhuma normalegal estabelecendo a inversão do ônus da prova em funçãoda verossimilhança do alegado pela vítima, já que não existeentre as partes relação de consumo. Em prestígio aoprincípio da indenidade, o juiz deve ser tolerante naapreciação das provas produzidas, considerando comespecial atenção os indícios trazidos pelo demandante e osantecedentes do demandado (se no seu prontuário há, p. ex.,o registro de infrações graves ou gravíssimas, se járespondeu por outros acidentes de trânsito etc.).

A subjetivação da responsabilidade por acidentes detrânsito não corresponde à solução adotada por todos ospaíses de tradição românica. Em França ou na Itália, porexemplo, acidentes de circulação geram responsabilidadeobjetiva (Tunc, 1989; Alpa-Bessone, 2001:460/470). Emlugares sob a influência da tradição anglo-saxã, são maiscomuns os mecanismos de direito público, como os sistemasno-fault, que, nos anos 1970, eram adotados por cerca demetade dos estados norte-americanos (Alpa-Bessone,1976:377/383) e pela Nova Zelândia.

5. ACIDENTE DE TRABALHONo início da segunda revolução industrial, na Inglaterra,

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considerava-se que os operários, ao aceitarem o empregonas fábricas, assumiam diretamente o risco de suportar osdanos de acidente de trabalho (Tunc, 1989:66). Até 1891,dava-se, no caso de acidentes laborais, interpretaçãoextensiva a princípio assente na common law, segundo oqual era vedado ao sujeito que concordara em correr riscosreclamar contra os danos correspondentes (volenti non fitinjuria). Entendia-se, então, que a simples ciência dos riscospelo trabalhador era suficiente para a presunção de quetinha concordado em assumi-los. Caso não tivesseconsiderado suficientemente seguras as condiçõesoferecidas pelo empregador, não devia ter aceito o trabalho.Naquele ano, no famoso caso Smith vs. Baker, a Casa dosLordes mudou o tratamento da matéria, ao afastar apresunção pelo simples conhecimento do risco. A máximavolenti non fit injuria só deveria ter aplicação, segundoesse julgado, quando fosse expressa a assunção dos riscos(Street, 1906:164/170).

Com o acúmulo de capitais e a decorrente mudança nosvalores cultivados pela sociedade, passou-se a considerarque as repercussões econômicas do acidente de trabalhodeveriam ser suportadas não só por todos os empregadosexpostos ao risco como pelos beneficiários diretos eindiretos das perigosas atividades laborais que executam.Ao longo do século passado, criaram-se, então, comcontribuições de empregados, empregadores e de toda a

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sociedade, os sistemas de seguro social para a coberturados acidentes laborais. No Brasil, o INSS é o responsávelpelo pagamento do benefício previsto na legislaçãoprevidenciária (Lei n. 8.213/91, arts. 19 a 21). Ele é devido emqualquer acidente de trabalho, independentemente da causa.Além desse benefício, tem o acidentado direito de reclamardo empregador a indenização, caso tenha sido deste a culpapelo evento danoso.

Em outros termos, um acidente de trabalho pode sercausado por motivos vários. Em primeiro lugar, por casofortuito. Imagine que o funcionário da distribuidora deenergia elétrica está consertando a antena de sustentação decabos de alta tensão no exato momento em que ela é atingidapor um raio. Outra hipótese é a de acidente causado porimprudência ou negligência do próprio empregado. Estudosmostram que a rotina do trabalho manual desconcentra aatenção do trabalhador, que, então, descuida da própriasegurança. De qualquer modo, a culpa pelo acidente detrabalho pode ser, e muitas vezes é, do acidentado. Se opedreiro trabalha na construção civil sem capacete, porquese esqueceu de colocá-lo ou se recusa a fazê-lo, e é atingidopela queda de um tijolo, ocorre acidente de trabalho porculpa do empregado. Em terceiro lugar, o acidente podederivar de culpa de terceiros. Pense na secretária que,retornando de ônibus do escritório em que trabalha para suacasa, fere-se num acidente de trânsito. Por força de lei,

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considera-se o evento acidente de trabalho, porque ocorridono trajeto deste para a casa do trabalhador. Finalmente, aculpa do acidente pode ser do empregador. Se,intencionalmente ou não, faltam no local de trabalho osequipamentos de segurança, ou os empregados não sãoadequadamente informados (inclusive por treinamentosperiódicos, se necessário) sobre os riscos a que se expõem,ou não há devida manutenção dos equipamentos emáquinas, a culpa pelo acidente de trabalho é doempregador.

Como dito, em qualquer das quatro situações acimadelineadas em função da causa do acidente, o acidentadotem direito de pleitear, ao INSS, o benefício da legislaçãoprevidenciária. A responsabilidade, neste caso, é objetivapura. Desse aspecto da matéria, todavia, não cuida o direitocivil, mas ramos específicos do direito público. Sem prejuízodo recebimento do benefício, porém, pode o acidentadodemandar a indenização pelos danos correspondentesquando o acidente de trabalho tiver sido causado porconduta culposa de alguém (RT, 787/371). São as duasúltimas situações acima indicadas. Na do acidente detrânsito, o empregado tem direito de ser indenizado pelocausador do evento. A responsabilidade, como jáexaminado, é subjetiva nesse caso: o empregado acidentadodeve provar a culpa do terceiro para responsabilizá-lo pelosdanos (item 4).

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Finalmente, no caso de acidente de trabalho ocasionadopela culpa do empregador, tem o acidentado direito àindenização plena de seus prejuízos (patrimoniais eextrapatrimoniais). Trata-se de responsabilidade aquiliana,fundada na culpa (Diniz, 2003, 7:438). Se o empregador épessoa preocupada com a segurança no trabalho, investesempre na melhoria do ambiente de trabalho, treina seusempregados periodicamente, põe à disposição deles roupas,acessórios, instrumentos e equipamentos de proteção,estimula seu correto uso, orienta os supervisores a nãotolerarem o descaso com os riscos, quando, enfim, adotatodas as providências exigíveis à adequada prevenção dosacidentes de trabalho, não se pode imputar-lhe culpa peloevento danoso. Se, por outro lado, negligencia nasprovidências e investimentos, incorre em imprudência naorganização do ambiente de trabalho com vistas aeconomizar custos, não treina nem orienta seus empregadosde forma eficiente, então, ausente o fortuito, culpa exclusivada vítima ou ato de terceiro, é dele a responsabilidade peloacidente de trabalho.

A responsabilidade do empregadorpelos danos advindos de acidente de

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trabalho é subjetiva. Ele só estáobrigado a indenizar os acidentes secausados por sua culpa ou dolo naadoção das medidas de segurança dotrabalho.

A natureza subjetiva da responsabilidade doempregador por acidente de trabalho decorre de normaconstitucional. O art. 7º, XXVIII, da Constituição Federalimputa ao empregador a obrigatoriedade de contratar segurocontra acidentes de trabalho e a responsabilidade peloscausados por seu dolo ou culpa. Essa norma é especial ehierarquicamente superior ao Código Civil, e, por isso, nãofoi alterada pela configuração dada à responsabilidade dosempresários pela entrada em vigor deste (Cap. 23, item 4). Aindenização devida diretamente pelo empregadorcorresponde à diferença entre o valor coberto pelo seguroobrigatório e o do total dos danos sofridos pelo empregadoem razão do acidente de trabalho originado de culpa ou dolodo primeiro. O restante é pago pela seguradora denunciada àlide ou diretamente na liquidação do seguro. Em devoção aoprincípio da indenidade, deve-se admitir a ação direta do

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empregador contra a seguradora contratada pelo empregado,especialmente em situações especiais, como a da falênciadeste.

Concluindo, a vítima do acidente de trabalho causadopor culpa ou dolo do empregador tem, em princípio, o ônusde provar o elemento subjetivo, o dano e a relação decausalidade (RT, 803/264). Não prevê a lei nenhuma regraespecífica de inversão do ônus da prova em favor doacidentado em caso de verossimilhança. Atende, no entanto,ao princípio da indenidade, e à facilitação do acesso davítima à indenização, a valoração mais tolerante do conjuntoprobatório pelo juiz. Fortes indícios de negligência doempregador no trato dos assuntos relacionados à segurançae higiene do trabalho podem ser acolhidos como prova desua culpa.

6. RESPONSABILIDADE COM CULPA PRESUMIDA:RUÍNA DE PRÉDIO

Em termos gerais, a ruína de prédio (pronto ou emconstrução) pode ser causada por fatores naturais — comoabalos sísmicos, desmoronamentos, enchentes outempestades — ou pela falta de reparos. Naquela hipótese,verifica-se o caso fortuito, excludente de qualquerresponsabilidade subjetiva. O prejudicado pela ruína devesuportar os danos. Já a ruína causada por falta de reparospode gerar responsabilidade para o proprietário ou para a

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incorporadora ou construtora.Começo pela hipótese mais abrangente: a

responsabilidade da incorporadora ou construtora, comfundamento na legislação de tutela dos consumidores. Éresponsabilidade objetiva, independe de culpa doempresário responsável pelo empreendimento (CDC, art. 12).Tem lugar a responsabilização sempre que verificadoqualquer defeito de construção, manifesto ou oculto. Oprazo para efetivá-la é de 5 anos, contados do conhecimentodo dano e de sua autoria (CDC, art. 27). Desse modo, se ruiredifício de apartamentos causando danos aos vizinhos outranseuntes, eles têm direito à indenização a ser paga pelaincorporadora ou construtora, em caso de defeito deconstrução. Os vizinhos ou transeuntes, nesse caso, nãotêm ação contra os proprietários (ou promitentescompradores) das unidades condominiais.

O dono do prédio responde pelos danos derivados daruína quando sua causa não for natural nem defeito deconstrução. Em outros termos, quando for culpado pelaprecária manutenção do imóvel.

É importante destacar que o proprietário temresponsabilidade subjetiva. Quer dizer, se tiver sido diligentena manutenção do prédio, mandando fazer os reparosperiódicos que a construção comporta, ele não respondepelos danos derivados da ruína. Se o defeito de manutençãoera oculto, não se podendo prever o desabamento, não

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existe o elemento subjetivo indispensável à constituição daobrigação de indenizar. A imprevisibilidade do eventodanoso afasta a culpa do proprietário e configura aocorrência do fortuito. A consequência é a mesma da ruínacausada por fatores naturais: cada prejudicado arca com seupróprio prejuízo.

A responsabilização do proprietário pelos danoscausados pela ruína de prédio representa a única hipóteseremanescente no direito brasileiro de culpa presumida. Trata-se de presunção relativa, em que a prova pelo demandado dainexistência de conduta culposa o exonera de qualquerobrigação (Rodrigues, 2002:128), a despeito dos esforços departe da doutrina no sentido de pretendê-la absoluta (Dias,1954, 2:82; Lima, 1960:131/137). De acordo com a lei, “o donode edifício ou construção responde pelos danos queresultarem de sua ruína, se esta provier de falta de reparos,cuja necessidade fosse manifesta” (CC, art. 937). Em vistadeste preceito, considera-se que à vítima cabe unicamente aprova do dano e da relação de causalidade entre ele e a ruínado prédio pertencente ao demandado (Gonçalves, 2003:504).Se não demonstrar que o evento originou-se de defeito deconstrução ou de defeito oculto de manutenção, o dono doprédio em ruína será obrigado a indenizar os danos. Se restarprovado que o bem ruiu por defeito de construção, à vítimarestará pleitear o ressarcimento perante o fornecedor doproduto (incorporadora ou construtora); mas, se o defeito de

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manutenção não era manifesto, a imprevisibilidade da ruínaacarreta a irressarcibilidade dos danos.

Na responsabilização do dono doprédio pela ruína decorrente dedefeito manifesto de manutenção,presume-se a culpa. Cabe aoprejudicado provar os danos e arelação de causalidade; a seu turno, oproprietário apenas se livra deresponsabilidade provando que odefeito era de construção e não demanutenção, ou que este era oculto.

Antes de concluir, deve-se considerar ainda a hipótesede defeito de construção em obra feita por engenheiro civilliberal. Aqui, não existe nenhum empresário incorporador ou

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construtor que possa ser responsabilizado objetivamentepelos danos. Todavia, se a vítima provar a culpa doengenheiro, é ele responsável por indenizar-lhe os prejuízos,nos termos da legislação tutelar dos consumidores (CDC,arts. 14, § 4º, e 17), independentemente do formato de suaatuação — empreitada ou gerenciamento de obra (subitem3.4). Neste caso, contudo, o proprietário também pode serresponsabilizado pelos danos, com direito de regressocontra o profissional liberal. Não existe, ressalte-se, normade presunção de culpa para a situação. O art. 937 do CCaplica-se apenas aos defeitos de manutenção. Emconsequência, a vítima de prejuízos causados por ruína deprédio em razão de defeito de construção deve provar aculpa in eligendo do proprietário, se pretender receber oressarcimento deste. Provar, em síntese, que o demandadonão se cercou das cautelas normalmente exigíveis nacontratação dos serviços profissionais de engenheiro civil:não pesquisou como devia a idoneidade e competência docontratado, optou pelo menor preço em detrimento daqualidade dos serviços etc.

7. RESPONSABILIDADE EM FUNÇÃO DO GRAU DECULPA

O grau da culpa, em regra, não é relevante para aconstituição da obrigação de indenizar fundada emresponsabilidade civil, no direito brasileiro. Se determinado

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sujeito de direito tem responsabilidade civil subjetiva porseus atos, tanto faz se incorre neles por negligêncialevíssima ou dolo hediondo, é devedor da indenização pelosdanos causados. Existem, porém, duas exceções, em que ograu da culpa é elemento de constituição da obrigação: a dotransporte de cortesia (subitem 7.1) e a da cobrança indevida(subitem 7.2).

7.1. Transporte de cortesiaNão existe preceito legal nenhum tratando a hipótese de

forma excepcional. A jurisprudência, porém, tem consideradoo grau da culpa na imputação de responsabilidade portransporte de cortesia. Diz a Súmula 145 do SuperiorTribunal de Justiça: “no transporte desinteressado, desimples cortesia, o transportador só será civilmenteresponsável por danos causados ao transportado quandoincorrer em dolo ou culpa grave”. Quando é leve a culpa dotransportador desinteressado, ele não responde pelos danosinfligidos ao carona, no acidente por ele causado.

Note-se que todo transporte de cortesia é gratuito, maso inverso não se verifica. As empresas de transportecoletivo urbano são obrigadas, por força de leis municipais edo Estatuto do Idoso (Lei n. 10.741/03, art. 39), a transportargratuitamente pessoas com mais de 65 anos de idade. Não ofazem por cortesia, mas apenas porque estão obrigadas aisso. Respondem por danos que esses passageiros não

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pagantes vierem a sofrer também de forma objetiva (RT,805/262) (Cap. 23, item 4.5). Apenas se condiciona aresponsabilização ao grau de culpa na hipótese detransporte de cortesia, isto é, o gratuito oferecido porcortesia do transportador. Em suma, no caso de carona.

O transportador desinteressado não deve serresponsabilizado de forma objetiva como no caso detransporte oneroso de pessoas. Quem concede a carona estáapenas sendo cortês com o passageiro ou passageiros deseu veículo. A inexistência de pagamento pelo transporteimpede, ademais, qualquer socialização de custos. Suaresponsabilidade deve ser, portanto, subjetiva, fundada naculpa. Desse modo, se o carona se machuca num acidente detrânsito pelo qual não é culpado seu gentil transportador,terá direito de pleitear a indenização apenas contra o terceirocausador do evento danoso. Não há sequer solidariedadeentre o transportador desinteressado e o culpado peloacidente.

Para constituir-se a obrigação deindenizar os prejuízos sofridos pelousuário de transporte desinteressado

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(carona), é necessário que otransportador tenha agido com culpagrave ou dolo.

O tratamento excepcional do transporte de cortesia dadopela jurisprudência é criticado pela doutrina. Maria HelenaDiniz sustenta que o transportador deve ter o mesmo zelopela incolumidade dos passageiros que traz em seu veículo,tanto no transporte gratuito como no oneroso (2003, 7:494).Concordo. Se existem razões para tratar diferentemente otransporte de cortesia do oneroso, submetendo aquele àresponsabilidade subjetiva e este à objetiva, não há motivopara excluir a responsabilização pela pequena gravidade doato ilícito. Ainda seguindo a lição de Maria Helena Diniz, aexemplo do que se verifica com as demais hipóteses deresponsabilização subjetiva desde a entrada em vigor doCódigo Reale (CC, art. 944, parágrafo único), as culpas leve elevíssima devem somente influir na liquidação daindenização, isto é, na quantificação do valor a ressarcir (cf.2003, 7:494).

7.2. Cobrança indevidaA cobrança indevida pode gerar responsabilidade civil

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do credor, dependendo do grau de sua culpa. Aresponsabilidade civil decorrente de cobrança indevidaimplica a obrigação de restituir o indébito e mais umacréscimo. Este plus tem a natureza de indenização punitiva(punitive damage); é uma sanção civil pela ilicitudepraticada. Variam, contudo, os pressupostos e o critério dequantificação do acréscimo segundo algumascircunstâncias.

Inicialmente, é necessário verificar se há ou não, entrecredor e devedor, uma relação de consumo. Se o credor seenquadra no conceito legal de fornecedor (CDC, art. 3º:explora atividade de venda de bens ou prestação deserviços) e o devedor, no de consumidor (CDC, art. 2º:adquire bem ou serviço como consumidor final), a relaçãojurídica entre eles é de consumo. Se não se enquadram ossujeitos da obrigação num ou noutro conceito legal, arelação jurídica entre eles é civil. É o caso, por exemplo, darelação entre o banco financiador (credor) e o empresáriofinanciado (devedor), ou da derivada da venda de carrousado a prazo para o amigo, entre o vendedor (credor) e ocomprador (devedor).

Se a cobrança indevida se insere numa relação deconsumo, há um pressuposto específico para a imposição daindenização punitiva: o consumidor deve efetivamente terpago o indébito. Se o fornecedor cobra valor superior ao seucrédito, mas o consumidor atento recusa-se a pagar o

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excesso, não incide a norma de responsabilização civil. Estepressuposto não tem pertinência se a cobrança indevida sereferir a relação civil. Neste caso, a indenização punitiva éexigível, mesmo que o devedor não tenha efetivamente feitoo pagamento. Para este caso, o pressuposto é diverso:consiste no ajuizamento da cobrança. Enquanto o credoradota medidas extrajudiciais somente, não há fundamentopara a imputação de responsabilidade. Resulta istoclaramente da previsão de exoneração da responsabilidade,se antes da contestação o credor desistir da cobrançajudicial (CC, art. 941).

Outra diferença significativa entre as duas hipótesesrelaciona-se ao grau de culpa exigido para aresponsabilização. Na relação de consumo, exonera-se ofornecedor em caso de “engano justificável” (CDC, art. 42,parágrafo único, in fine). Quer dizer, para constituir-se aobrigação, neste caso, é necessário dolo ou culpa grave docredor. Já na cobrança indevida numa relação civil, temconsiderado a jurisprudência que apenas havendo provairrefutável de dolo é devida a indenização punitiva (RT,806/379). “A cobrança excessiva, mas de boa-fé, não dálugar às sanções” aqui examinadas, afirma a Súmula 159 doSupremo Tribunal Federal. A culpa, mesmo grave, nãoacarreta a responsabilidade aquiliana de credores dumarelação civil. Se a incabível cobrança judicial se explica pelafalta de controles administrativos adequados dos

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pagamentos recebidos, por mais grave que seja anegligência do credor, ele arca apenas com os ônus própriosda sucumbência, previstos na legislação processual civil, enão se sujeita à indenização punitiva.

A derradeira diferença entre as duas hipóteses deresponsabilidade por cobrança indevida diz respeito àquantificação do acréscimo. Na relação de consumo,presentes os pressupostos assinalados (prévio pagamentodo indébito pelo consumidor e culpa grave ou dolo dofornecedor), além da restituição do indébito, é devido oequivalente ao pagamento em excesso. Diz a lei que “oconsumidor cobrado em quantia indevida tem direito àrepetição do indébito, por valor igual ao dobro do quepagou em excesso, acrescido de correção monetária e juroslegais, salvo hipótese de engano justificável” (CDC, art. 42,parágrafo único). Desse modo, se o consumidor pagou $20,quando devia apenas $15, não sendo justificável o enganodo fornecedor, este deve restituir-lhe os $5 excedentes epagar-lhe mais $5 de indenização punitiva.

Para a hipótese de cobrançaindevida prevê a lei brasileira aimposição de indenização punitiva. Os

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pressupostos e o critério dequantificação desses danos variamconforme exista, ou não, entre credor edevedor uma relação de consumo.

Por sua vez, na responsabilidade por cobrança indevidaderivada de relação civil, distingue a lei duas situações. Deum lado, a cobrança de valor já pago, no todo ou em parte,sem ressalvas; de outro, a de valor superior ao devido. Noprimeiro caso, o dolo do credor implica indenização punitivano valor do “dobro do que houver cobrado” do devedor; “e,no segundo, o equivalente do que dele exigir” (CC, art. 940).Assim, considere que Antonio é credor de $100 de Benedito,importância da qual já recebera, como parte do pagamento,$30. Se Antonio ajuizar dolosamente cobrança judicial por$100, o valor da indenização punitiva a que se sujeita é $200(o dobro do que cobra). Se, por outro lado, Benedito nãohavia feito pagamento parcial nenhum, e Antonio cobra-lheem juízo $120 em vez de $100, também agindo com dolo, aindenização punitiva será de $120 (o equivalente ao exigido).

Por fim, a cobrança indevida na relação civil édisciplinada também no caso de o credor demandar odevedor antes do vencimento da obrigação. Neste caso, a

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indenização punitiva consiste no desconto dos juroscorrespondentes, tenham sido ou não convencionados, e nopagamento do dobro das custas (CC, art. 939).

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Capítulo 23

RESPONSABILIDADECIVIL OBJETIVA

1. RESPONSABILIZAÇÃO POR ATOS LÍCITOSPor duas formas, o sujeito de direito pode ser

responsabilizado objetivamente, isto é, por danos causadosem razão de atos lícitos. A primeira é a específica previsãolegal; a segunda, a exploração de atividade em posição quelhe permita socializar os custos entre os beneficiados porela. Denomino aquela de formal, e esta, de material. Tem,assim, responsabilidade objetiva formal o sujeito de direito aquem norma legal específica atribui a obrigação de indenizardanos independentemente de culpa. De outro lado, temresponsabilidade objetiva material o sujeito obrigado aindenizar, mesmo sem ser culpado pelo dano, por ocuparposição econômica que lhe permite socializar os custos de

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sua atividade. As duas hipóteses estão albergadas noparágrafo único do art. 927 do CC: “haverá obrigação dereparar o dano, independentemente de culpa, nos casosespecificados em lei” (responsabilidade objetiva formal)“ou quando a atividade normalmente desenvolvida peloautor do dano implicar, por sua natureza, risco para osdireitos de outrem” (responsabilidade objetiva material).

Pode ocorrer a sobreposição das duas modalidades deresponsabilidade objetiva. Quer dizer, a lei pode estabelecer,ao lado da norma geral de objetivação do art. 927, parágrafoúnico, in fine, uma norma específica que a reforce. É o caso,por exemplo, dos empresários fornecedores de produtos.Para eles, o Código Civil objetiva a responsabilidade nãosomente no preceito geral mencionado, como numespecífico, o art. 931. Sobrepõem-se, então, no caso deempresários que fornecem ao mercado produtos (osindustriais, construtores etc.) as duas modalidades deresponsabilidade objetiva: a formal, no art. 931 do CC (etambém no art. 12 do CDC), e a material, no fim do art. 927,parágrafo único. A norma de responsabilização material, porevidente, pode integrar qualquer diploma legal, e nãonecessariamente o Código Civil. Assim, há também asobreposição no caso dos empresários prestadores deserviços, tendo em conta o art. 14 do CDC, e no do Estado,considerando-se o art. 37, § 6º, da CF.

Em virtude da possibilidade de sobreposição, a

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distinção entre os dois fundamentos de responsabilidadecivil objetiva, no atual estágio de evolução do direitopositivo brasileiro, pode não apresentar, em alguns casos,maior importância prática. Isto porque a maioria dashipóteses em que caberia a responsabilidade objetivamaterial está já prevista num dispositivo de lei específico —no Código Civil, no Código de Defesa do Consumidor, naConstituição ou em leis esparsas.

São duas as modalidades deresponsabilidade objetiva: a previstaem preceito específico de lei(responsabilidade formal) e a derivadada exploração de atividade cujoscustos podem ser socializados entre osbeneficiários (responsabilidadematerial). Quando o legislador, atentoà segurança nas relações jurídicas,prevê em preceito próprio hipótese de

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responsabilidade objetiva material, adistinção entre as modalidades perdeimportância prática.

A sobreposição entre as duas modalidades não écompleta. Há, de um lado, sujeitos com responsabilidadeobjetiva material sem que lei específica a preveja. Umacooperativa de grande porte, capaz de socializar seuscustos, responde objetivamente pelos danos derivados desua atividade, malgrado inexista qualquer disposiçãoespecífica nesse sentido (subitem 4.2). Há, de outro lado,sujeitos com responsabilidade objetiva formal que nãodispõem de meios para socializar custos. É o caso, entreoutros, dos pais pelos atos do filho menor que se encontrasob sua autoridade e na companhia de pelo menos um deles.Não têm os pais como repassar as repercussões do dano; aocontrário, devem absorvê-las por completo. Aresponsabilidade objetiva exclusivamente formal, assim, nãose justifica pela racionalidade na alocação dos recursoseconômicos. Cumpre, no exemplo, a função de compatibilizaros interesses da vítima (no sentido de ser indenizada) e osdo agente causador dos danos, que, por ser incapaz, mereceparticular proteção da ordem jurídica. Na responsabilização

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dos pais, em determinadas situações, pelos danos causadospor filhos menores, a responsabilidade objetiva compatibilizaos interesses destes (protegidos em razão da incapacidade)e os do prejudicado.

A responsabilidade objetiva, formal ou material,corresponde sempre a norma especial, aplicável a casosparticulares. A regra geral continua sendo a daresponsabilidade civil subjetiva, isto é, por ato ilícito. Dessemodo, se ausentes os pressupostos da lei para aresponsabilização objetiva, a vítima poderá pleitearindenização provando a culpa do demandado. Ainda noexemplo da responsabilidade dos pais por atos dos filhosmenores: a imputação objetiva está sujeita ao pressupostode que se encontrem estes sob a autoridade e em companhiadaqueles (CC, art. 932, I). Não preenchido o pressuposto,portanto, os pais não têm a responsabilidade objetiva.Podem, porém, ser subjetivamente responsabilizados se avítima provar a culpa deles no evento danoso. Imagine queAntonio empreste o carro para seu filho menor Beneditodirigir. Evidentemente, Benedito não é habilitado, porquenão tem a idade mínima para isso (18 anos). Se ele causaracidente de trânsito sem estar na companhia de Antonio,não se atende ao pressuposto legal de atribuição deresponsabilidade objetiva aos pais por atos de filhosmenores. Mas Antonio poderá ainda ser responsabilizadopor culpa, já que incorreu num ato ilícito ao emprestar o

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automóvel ao filho.

A regra geral é a de imputação deresponsabilidade civil subjetiva: todosrespondem pelos seus atos ilícitos. Aresponsabilização objetiva é regraespecial. Quando ausentes ospressupostos da imputação deresponsabilidade objetiva, maspresente o elemento subjetivo, caberáa responsabilização do demandado porculpa.

Os elementos da responsabilidade civil objetiva sãodois: os danos patrimoniais ou extrapatrimoniais do credor ea relação de causalidade entre eles e ato ou atividade dodevedor. Não se discute o elemento subjetivo, por ser

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irrelevante eventual culpa do sujeito passivo do vínculoobrigacional. Destaco que não ocorre, na objetivação, apresunção de culpa do obrigado a indenizar, mas suacompleta desqualificação como elemento constitutivo daresponsabilidade civil. Quando alguém é objetivamenteobrigado a indenizar danos, na imputação da obrigação nãohá qualquer desaprovação jurídica ou moral aos atospraticados, como ocorre na responsabilização subjetiva. Aobrigação de indenizar é apenas a operacionalização de umeficiente mecanismo de alocação de recursos na sociedade.

2. TEORIA DO RISCOAté agora, não fiz referência à teoria do risco. A

postergação tem sido, claro, intencional e há uma razão paraisso: nela há ainda o ranço da desaprovação jurídica oumoral do devedor, que importa certa relativização daobjetividade buscada. Justificar a imputação daresponsabilidade objetiva pelo mecanismo de socializaçãode custos das atividades — abstraindo por completo acriação dos riscos como fundamento da obrigação — afastaa relativização. Nenhuma exposição tecnológica do direitocivil brasileiro pode, contudo, ignorar a teoria do risco. Elainspirou os elaboradores do Código Civil, e isto é motivosuficiente para seu estudo. Ademais, corresponde àfundamentação tecnológica mais aceita e difundida, até omomento, para a imputação de responsabilidade objetiva.

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De acordo com a teoria, toda atividade humana geraproveitos para quem a explora e riscos para outrem. Otransporte ferroviário, por exemplo, é atividade lucrativa paraa estrada de ferro. Com o preço das passagens vendidas,custeia a atividade e proporciona lucro ao proprietário. Deoutro lado, os passageiros, os donos da carga transportadae os dos imóveis lindeiros à ferrovia correm riscos de danoem decorrência do transporte ferroviário. Pois bem, pelateoria do risco, imputa-se responsabilidade objetiva aoexplorador da atividade fundado numa relação axiológicaentre proveito e risco: quem tem o proveito deve suportartambém os riscos (ubi emolumentum, ibi onus). Se, para aestrada de ferro, é impossível exercer sua atividade sem criarriscos para terceiros, vindo estes a sofrer danos em virtudedo transporte ferroviário, deve ela ser obrigada a indenizá-los. Em outros termos, porque a estrada de ferro objetivalucrar com a atividade criadora do risco, ela tem também aobrigação de suportar os danos decorrentes.

A atribuição da responsabilidade pelos danos a quemaproveita a atividade geradora dos riscos é a formulaçãomais corrente da teoria. Chama-se teoria do risco-proveito.Notam-se, contudo, algumas variações que põem maiorênfase num ou noutro aspecto da questão. Assim, se ofundamento da responsabilidade objetiva repousa naexposição aos riscos da atividade, fala-se em risco-criado;se na sua inevitabilidade, em risco-profissional.

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Fernando Noronha desmembra os riscos de atividades aque se refere o art. 927, parágrafo único, do CC em três. Oprimeiro, denomina risco de empresa. Está relacionado aosacidentes de consumo, de trabalho e demais derivados daexploração de atividade empresarial. O empresário — quemexerce profissionalmente atividade econômica para aprodução ou circulação de bens ou serviços — devesuportar todos os ônus resultantes de eventos danososacarretados por sua atividade econômica. Ao segundo,refere-se por risco administrativo. Diz respeito à obrigaçãoimposta à pessoa jurídica pública de indenizar os danosderivados da realização do interesse público, para distribuí-los pela coletividade beneficiada. Finalmente, o risco-perigo.Quem se aproveita duma atividade lícita potencialmenteperigosa deve responsabilizar-se pelos danos que causar.Noronha esclarece que, inicialmente, a responsabilidadeobjetiva assentava-se no perigo de danos, noção que, hojeem dia, complementa a do risco de empresa e administrativo(2003:486). De fato, há direitos positivos, como o italiano,português ou mexicano, que enfatizam a periculosidade daatividade na caracterização da responsabilidade objetiva pordanos (Gonçalves, 2003:314/315; Alpa-Bessone,2001:331/335).

A teoria do risco é amplamente difundida nos países detradição românica. Despertou críticas, no início, dossubjetivistas, no contexto dos debates que contrapunham as

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espécies de responsabilidade civil, e resistiu muito bem aelas (Lima, 1960:189/202). Não tem sido, porém, alvo demaiores questionamentos da parte de quem admite hipótesesde responsabilização sem culpa. A tecnologia jurídica dá-se,em suma, por satisfeita com a concepção de justiçadistributiva que nela se encerra: a quem ganha com aatividade cabe o ônus de arcar com os riscos dela.

Pela teoria do risco, quem tem oproveito de certa atividade deve arcartambém com os danos por ela gerados(ubi emolumentum, ibi onus). Emdecorrência, deve ser imputadaresponsabilidade objetiva a quemexplora atividade geradora de riscopara que não venha a titularizarvantagem injurídica.

Há três espécies de risco: risco de

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empresa (o empresário que busca olucro com a atividade econômicaexplorada tem o ônus de arcar com oseventos danosos por eladesencadeados), risco administrativo (oEstado deve ser objetivamenteresponsabilizado para distribuir asrepercussões econômicas darealização do interesse público entreos beneficiados) e risco-perigo (quemse aproveita de atividade que expõedireitos de outrem a perigo deveresponder na hipótese de danos).

Há, contudo, na teoria do risco, resquícios daresponsabilização civil como resposta a certo tipo dedesconformidade em relação ao direito. O princípio nenhuma

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responsabilidade sem culpa é de tal forma arraigado àcultura jurídica dos países de tradição românica, quedificulta a aceitação da noção de responsabilidade civildesacompanhada de qualquer desaprovação jurídica oumoral do ato ou atividade causadora do dano. No fundo,como dito, encontra-se o apego à ideologia individualista davontade como fonte última das obrigações (Cap. 21, subitem3.1). Por essa razão, o processo de amadurecimento daresponsabilidade objetiva na tecnologia jurídica é lento, nãolinear e ainda está em curso.

Ao estabelecer a relação entre proveito e ônus, a teoriado risco sugere que a falta de responsabilização importariavantagens indevidas para quem explora a atividade. Se osujeito a quem beneficia não respondesse pelos danoscausados em função dos riscos criados, ocorreria umenriquecimento injurídico — está implícito nos fundamentosda teoria. Resquícios da natureza sancionatória daresponsabilidade subjetiva encontram-se ainda na noção daoneração do beneficiado pela criação do risco comofundamento da objetivação.

Todavia, a menção aos riscos na elaboração dosfundamentos racionais e axiológicos da responsabilidadeobjetiva é por tudo dispensável, assim como é também oestabelecimento de relação entre proveito e ônus nocontexto da justiça distributivista. A socialização dos custosda atividade entre os beneficiários — tal como descrita (Cap.

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21, subitem 3.2) — fornece suficiente fundamento moral,jurídico e econômico para a imputação de responsabilidadepor atos lícitos. É cabível e oportuno espancar de vez todasas resistências à plena objetivação da responsabilidade civil,sempre que presentes seus pressupostos.

3. SIGNIFICADO DE “ATIVIDADE”A responsabilidade objetiva material é imposta, pela

parte final do parágrafo único do art. 927 do CC, àqueles cujaatividade normalmente desenvolvida implica, por suanatureza, risco para os direitos de outrem. Que significado sedeve atribuir à expressão “atividade” nesse dispositivo?Quando é “normalmente desenvolvida”, e quando não?Responder estas questões é necessário para delimitar oalcance da imputação. Neste item, abstraio aresponsabilidade objetiva formal, com vistas a tornar osargumentos menos complexos. Não há prejuízo nestaabstração, visto que a previsão específica em lei leva àimputação da responsabilidade objetiva, independentementedas respostas apresentadas.

Atividade, para os fins do dispositivo em foco, nãopode ter o significado singelo de conjunto ordenado deatos. Esta solução implicaria tratar toda responsabilidade porato isolado de forma subjetiva fundado no caput do art. 927do CC, e a derivada de dois ou mais atos ordenados, semprede forma objetiva, lastreado na parte final do parágrafo único

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desse dispositivo. Explico. Se atividade é tomada no sentidomais corriqueiro de multiplicidade de atos articulados emvistas de um objetivo, somente a hipótese de danoscausados por um único ato poderia implicarresponsabilidade aquiliana. Esse, porém, não pode ser ocritério de distinção entre as espécies de responsabilidade,porque não haveria fundamento na discriminação.Interpretar atividade como conjunto ordenado de atosimplicaria inconsistências jurídicas como a seguinte: sepessoa enfurecida danifica o carro do desafeto com umaúnica e certeira martelada, a responsabilidade seriasubjetiva; se o danifica sem furor e sopesando friamentecada ato, mediante sucessivos e cotidianos agravos aoveículo, responderia de forma objetiva.

A sucessão de atos ordenados, ressalto, é essencialpara a identificação da atividade ensejadora deresponsabilidade objetiva material. Não basta, porém, se sequerem descartar implicações desarrazoadas como aassinalada. Poder-se-ia argumentar com a adjetivaçãoempreendida pela lei, no sentido de que a atividade geradorade responsabilidade objetiva seria a que o agentereiteradamente explora. No dispositivo fala-se em “atividadenormalmente desenvolvida”, o que sugere um conjunto deatos ordenados e habituais. Mas ainda assim não serásuficiente, porque não tem sentido tratar subjetiva ouobjetivamente certa hipótese em função da reiteração ou

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habitualidade do que o agente faz. Se qualquer conjuntoordenado de atos com vistas a alcançar certo objetivo,repetitiva ou habitualmente praticados, gerasseresponsabilidade objetiva material, chegar-se-ia a conclusãotambém inconsistente sob o ponto de vista jurídico: omotorista que diariamente faz determinado trajeto da casapara o escritório teria responsabilidade objetiva se causasseacidente de trânsito, porque dirigir ali seria uma atividadenormalmente desenvolvida por ele; mas, no dia em quevariasse o trajeto, sua responsabilidade por acidente detrânsito passaria a ser subjetiva, porque dirigir por aquelasoutras vias não correspondia a atividade normalmenteexercida por ele.

Também não resolve as questões propostas o dito finaldo dispositivo de lei referido. Para gerar responsabilidadecivil objetiva material, a atividade deve expor a riscosdireitos de outrem, mas não basta a presença dessaexposição para a constituição da obrigação de indenizar.Como assentado (Cap. 21, item 1), a convivência emsociedade implica necessariamente interações: quem ageinflui na situação, interesses e bens de outra ou outraspessoas sempre. As implicações que a conduta de alguémtraz para a situação, interesses e bens de outrem podem serpositivas ou negativas. Não são, porém, todas asexternalidades negativas que comportam internalização.Quer dizer, não é simplesmente da circunstância de gerar

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risco que decorre a responsabilidade. Há atividades queimportam risco a direitos de outrem e que não geramresponsabilidade civil de quem as explora. Por exemplo: osadministradores de empresas ou de investimentosespeculativos são contratados, muitas vezes, para seremcriadores de risco. Como o retorno financeiro é diretamenteproporcional ao risco de perda, há profissionais cujaatividade importa inegavelmente criação de risco a direitosde pessoas interessadas em lucros extraordinários. Os danosporventura relacionados a esses riscos não sãoindenizáveis. Outro exemplo: o portador de doença rara sofreas consequências da falta de investimentos na pesquisa demeios de tratamento. É certo que a atividade da indústriafarmacêutica não gera o risco da doença rara, mas deladeriva a inexistência de pesquisas que levem à cura.

A prática de atos racionalmente ordenados e comhabitualidade bem como a exposição a riscos de direitos deoutrem são essenciais à identificação da atividadeconstitutiva da responsabilidade civil objetiva material, mas,de novo, não bastam. A atividade a que se refere a lei, naparte final do parágrafo único do art. 927 do CC, é a queviabiliza a socialização de custos. Não havendo específicaprevisão legal atribuindo responsabilidade objetiva,ninguém deve ser responsabilizado por ato lícito, se nãotiver meios de socializar os custos de sua atividade.

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Por “atividade normalmentedesenvolvida”, que implica, “por suanatureza, risco para os direitos deoutrem” (CC, art. 927, parágrafoúnico), deve-se entender aquela emque for possível a socialização doscustos.

O empresário responde por acidentes de consumoporque são estatisticamente previsíveis. Dessa forma, elepode incorporar ao preço dos produtos ou serviços queoferece ao mercado algo como uma “taxa” de absorção deriscos de danos. Os consumidores, um dos beneficiários daatividade em questão (sem ela, não teriam acesso aos bensou serviços de que necessitam ou querem consumir), aopagarem preço um pouco mais elevado pelos produtos ouserviços, estão assumindo sua parcela na repercussão dosacidentes marginalmente inevitáveis. Opera-se, desse modo,a socialização dos custos. Quem não se encontra em

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condições de realizá-la, à falta de específica previsão legalatributiva de responsabilidade objetiva, não pode serresponsabilizado sem culpa. É o caso dos profissionaisliberais pelos danos relacionados à sua atividade, dosmotoristas pelos acidentes de circulação, dos empregadosou administradores pelos prejuízos que suas atividadesprovocam a seus empregadores ou contratantes etc.

4. RESPONSABILIDADE DOS EMPRESÁRIOSAntes da entrada em vigor do Código Reale, já previa o

direito brasileiro algumas hipóteses de responsabilidadeobjetiva dos empresários. O exemplo mais significativoencontra-se na responsabilização por acidente de consumo,que, nos termos do Código de Defesa do Consumidor,independe de culpa (arts. 12 e 14). Afora, porém, nassituações alcançadas por essas previsões esparsas, aresponsabilidade dos empresários era, como a dos demaissujeitos de direito, em regra, subjetiva. O Código Realemudou substancialmente o tratamento da matéria. Atento aofato de os empresários sempre ocuparem posição econômicaque lhes permite socializar os custos da atividadeempresarial entre os consumidores dos produtos ouserviços oferecidos ao mercado, passou a lei a imputar-lhesresponsabilidade objetiva por todos os danos a elaassociados.

Exemplo da mudança empreendida encontra-se na

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responsabilização por acidentes de trânsito. Antes davigência do Código Reale, era subjetiva a responsabilidadedos empresários pelos danos causados por seusempregados motoristas, na condução dos veículos daempresa. Não existia norma afastando a incidência doprincípio nenhuma responsabilidade sem culpa. Ao entrarem vigor a nova codificação, os empresários passaram a terresponsabilidade objetiva por todos os danos relacionadosà sua atividade, por se submeterem sempre à parte final doparágrafo único do art. 927 do CC (responsabilidade objetivamaterial). Considere, para ilustrar, o acidente de trânsitocausado pelo motorista de um caminhão de empresa demudanças. Antes da vigência do Código Reale, tinhanatureza diversa a responsabilidade do empresáriorelativamente aos danos sofridos, de um lado, peloconsumidor de seus serviços e, de outro, pelo pedestre ou oproprietário do outro veículo envolvido. Pelos danosinfligidos ao consumidor — a perda dos móveis e utensíliostransportados, o atraso na organização da nova morada etc.— respondia objetivamente (CDC, art. 14), mas, pelosacarretados aos não consumidores — o pedestre atropelado,o proprietário do veículo abalroado etc. —, aresponsabilidade era subjetiva. Hoje, não há mais essadivisão. Todo e qualquer prejudicado por dano imputável aempresário é indenizado no regime da objetividade, ou seja,independentemente da culpa.

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Restou, no direito brasileiro, uma só hipótese deresponsabilização subjetiva dos empresários, a dosacidentes de trabalho. Por força de preceito constitucional, oempresário é responsável pela indenização dos danossofridos por seus empregados no trabalho apenas quandoos causou por culpa ou dolo (CF, art. 7º, XXVIII). A exceçãose justifica, na medida em que os custos relacionados aesses acidentes associados à atividade empresarial já seencontram socializados, por meio dos instrumentos dodireito previdenciário. Ao se obrigar o INSS a pagar aoacidentado o valor do benefício correspondente, a leidistribui a repercussão econômica do evento entre osempregados expostos ao risco e os beneficiários daatividade laboral, isto é, os empregadores e toda asociedade. A imputação de responsabilidade objetiva aosempresários por acidente de trabalho apenas alteraria ouniverso das pessoas alcançadas pela socialização: em vezdos contribuintes do sistema de seguro social, seriam osconsumidores daquele específico produto ou serviço aarcarem com as repercussões econômicas do acidente detrabalho. Deve continuar subjetiva, portanto, aresponsabilidade dos empresários neste caso.

A imputação, em regra, de responsabilidade objetiva aosempresários é plenamente justificável. Encontram-se elessempre numa posição econômica que lhes permite socializar,entre os seus consumidores, os custos da atividade

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empresarial. Note-se, não é a objetivação daresponsabilidade que induz o empresário a repartir com seusconsumidores os custos associados aos acidentes. Se assimfosse, caberia até mesmo questionar sua pertinência ejustiça. Afinal, se estivesse ao alcance do direito poupar osconsumidores das repercussões dos acidentes associadosàs atividades empresariais, recomendariam os valores dejustiça que o fizesse. Isso, porém, está fora do alcance daordem jurídica. Não é a responsabilidade objetiva que gera asocialização dos custos — ela acontece de qualquer modo,já que o preço dos produtos e serviços pago pelosconsumidores deve sempre ser suficiente para o empresáriorecuperar investimento e custos, além de obter lucro. É ínsitoao sistema capitalista de produção, portanto, o mecanismodescrito pela noção de socialização de custos. Aresponsabilidade objetiva, na verdade, apenas tem lugarquando o devedor está em condições de socializar os custosde sua atividade. A lei aproveita-se de uma situação de fatopara, de um lado, facilitar o acesso da vítima à indenização(princípio da indenidade) e, de outro, realocar os recursoseconômicos de forma mais racional.

A responsabilidade dos empresáriospelos danos associados à exploração

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de atividade empresarial é, em regra,objetiva. Apenas pelos acidentes detrabalho eles respondem por culpa oudolo.

A responsabilidade objetiva dosempresários é simultaneamentematerial (por encontrarem-se elessempre numa posição econômica quelhes permite socializar os custos daatividade empresarial entre seusconsumidores) e formal (em vista dediversos preceitos, do Código Civil ede outras leis, que mencionamexpressamente a irrelevância da culpapara sua imputação).

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A responsabilidade objetiva dos empresários suscitadiversas questões, a maioria delas tratada por outros ramosda tecnologia jurídica (direito comercial, do consumidor,ambiental etc.). Em sede de direito civil, cabe o exame doslineamentos gerais da matéria.

4.1. Conceito de empresárioO Código Civil define “empresário” dando à expressão

um significado técnico. Ele deve ser conhecido e semprerespeitado na aplicação das normas jurídicas. O intérprete eo aplicador da lei devem desconsiderar significados nãotécnicos das expressões sempre que houver uma definiçãolegal. Devem tratar o preceito que abriga a definição comoparte de todas as normas jurídicas em que for empregada.

Empresário, nos termos da lei, é a pessoa que “exerceprofissionalmente atividade econômica organizada para aprodução ou circulação de bens ou serviços” (CC, art. 966,caput). Desmembra-se, aqui, a definição em três elementoscom o objetivo de examiná-la:

a) atividade econômica e organizada. A atividadeexplorada pelo empresário ostenta duas características: éeconômica e organizada. A atividade é econômica se temaptidão para gerar lucro a quem a explora. Ter aptidão, note-se, não significa alcançar necessariamente o efeito para oqual se está apto. Quer dizer, a atividade econômica éexplorada tendo em vista seu potencial de lucratividade. Não

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há garantia nenhuma, porém, de que ela será realmentelucrativa. Há sempre o risco de insucesso para qualqueratividade econômica, por mais aprimorados e conclusivosque tenham sido os estudos indicativos de sua viabilidade epotencialidade. Veja que abstraio, por ora, a questão dafinalidade lucrativa. Interessa, aqui, apenas apontar aaptidão para gerar lucros que torna econômica a atividade.Quem explora atividades estéreis na geração de lucros, assimconsideradas as de proveito meramente moral, intelectual,físico ou social, não se considera empresário.

A organização da atividade, por sua vez, diz respeito àforma como ela é explorada. Este é o elemento maisimportante da definição de empresário. O exercente deatividade econômica considera-se empresário, para efeitostécnicos, quando lhe dá um determinado nível deorganização, isto é, quando emprega mão de obra, comprainsumos, adquire ou desenvolve tecnologia e investe capitalnum determinado volume característico da empresarialidade.A mesma atividade econômica pode ser ou nãodesenvolvida de forma organizada, empresarial. Pense nocomércio de algumas peças do vestuário, como camisetas oubonés. Tanto a loja de departamentos como o comercianteambulante podem explorar essa atividade econômica. É certoque a primeira o faz de modo empresarial, ao contrário doambulante, no caso de ele contar apenas com seu própriotrabalho e do de familiares, investir pouco dinheiro e

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prescindir de conhecimentos especializados deadministração de negócios.

b) Produção ou circulação de bens ou serviços. Aatividade do empresário consiste em produzir ou circularbens ou serviços. A produção de bens corresponde àindústria e construção civil. A montadora de automóveis, ofabricante de roupas, de remédios, de eletrodomésticos, bemcomo as construtoras de prédios de apartamento ouescritórios são exemplos de empresários. A circulação debens é a atividade comercial de intermediação na cadeia deescoamento de mercadorias. O supermercado, aconcessionária de automóveis, a loja de departamentos e afarmácia são empresários. Produção de serviços, a seu turno,significa a prestação de serviços. Desse modo, o hotel,hospital, estacionamento, instituto de beleza são tambémempresários. Por fim, a circulação de serviços liga-se àintermediação na prestação de serviços. A agência deturismo e a de propaganda são empresários que circulamserviços. Claro que não basta, como visto, dedicar-se àprodução ou circulação de bens ou serviços para serempresário. Se não houver a organização da atividade comouma empresa, quem produz ou circula bens ou serviços nãoé considerado tecnicamente empresário.

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Considera-se empresário quemexerce profissionalmente atividadeeconômica organizada para aprodução ou circulação de bens ouserviços.

c) Profissionalidade. O requisito da profissionalidadedesdobra-se em dois: habitualidade e intuito lucrativo. Paraser considerado empresário o exercente da atividadeeconômica deve habitualmente organizá-la. Quem,precisando ganhar dinheiro rapidamente para atender a certanecessidade, vende alguns móveis e objetos de arte podeaté mesmo fazê-lo com organização empresarial, mas nãoserá empresário por faltar-lhe o atributo da habitualidade.

Por fim, o intuito lucrativo. A atividade econômica podeser explorada com ou sem objetivo de lucro. Ela, pordefinição, é a atividade apta a gerar lucros, mas quem aexplora pode estar motivado por interesses altruístas,culturais, sociais etc. Considere a associação que mantémum hospital para tratamento de crianças portadoras dedeficiência física. A organização e prestação de serviçoshospitalares é atividade econômica — porque tem a aptidão

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de gerar lucros. Mas a associação não os explora com afinalidade lucrativa. As diferenças que eventualmenteconquista entre receitas e despesas aplicam-se na realizaçãodos fins caritativos que a inspiram. Para que o exercente deatividade econômica organizada seja consideradojuridicamente empresário, seu móvel deve ser o lucro. Nãohá atividade empresarial sem finalidade lucrativa.

4.2. Atividades econômicas não empresariaisA empresarialidade na produção ou circulação de bens

ou serviços — isto é, volume na contratação de mão deobra, no capital investido, na compra de insumos e noemprego de tecnologias — é, no campo do direito privado, acondição para a socialização de custos. Por essa razão, a leiimputa aos empresários responsabilidade objetiva pelosdanos relacionados à atividade que exploram. A produçãoou circulação de bens ou serviços só se considera, comovisto, empresa se reúnem também as características daorganização e profissionalismo. Quem explora atividadeeconômica não organizada empresarialmente — comercianteambulante, pequeno feirante, professor particular de línguaestrangeira etc. — não é empresário. Também não o é quemo faz sem profissionalidade — a fundação cultural ao venderbonés para sustentar suas atividades, a associação de pais emestres ao organizar a festa junina etc.

A produção ou circulação de bens ou serviços também

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não é empresarial quando a lei assim o estabelece de modoparticular. Com efeito, há certas atividades que sãolegalmente definidas como não empresariais, ainda quepresentes todos os requisitos do conceito de empresário.São três as hipóteses mais relevantes: as atividades rurais,as dos profissionais liberais e as das cooperativas.

Exercem atividade rural os que extraem da naturezaprodutos úteis ao consumo humano. O fazendeiro, pescador,extrativista, pecuarista pertencem a esta categoria deprofissionais. Para eles, a lei brasileira reservou umas is temát ica sui generis, atenta a duas realidadesextremamente diversas, que são a da grande empresacapitalista do campo (responsável pelos agronegócios, p.ex.) e a dos pequenos produtores (ligados à agriculturafamiliar, p. ex.). O exercente de atividade rural pode optar porser empresário ou não. Se quiser se submeter às regraspróprias a que se sujeitam os empresários (inclusive aobjetivação na responsabilidade civil), ele deve inscrever-sena Junta Comercial; caso contrário, não será juridicamenteconsiderado empresário (CC, art. 971). Desse modo, a grandeempresa capitalista do campo é explorada por quem atende aessa formalidade, enquanto o pequeno produtor tende adesenvolver seu negócio sem ela. A questão, embora seresolva aparentemente por simples pesquisa aosassentamentos do registro de empresas, esconde umacomplexidade. O exercente de atividade rural sem inscrição

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na Junta Comercial pode ou não ter responsabilidadeobjetiva pelos danos por ela causados. Ele não se submeteàs regras aplicáveis aos empresários, e sua responsabilidadenão é, portanto, necessariamente objetiva. Depende aresposta à questão da capacidade econômica de socializarcustos. Uma questão de fato, para cuja solução é irrelevantea inexistência da formalidade do registro.

Em outros termos, o exercente de atividade rural seminscrição na Junta Comercial não é empresário e, por isso,não se sujeita à regra da responsabilidade objetiva formal(CC, art. 931). Mas, se estiver em condições de socializar oscustos de sua atividade entre os adquirentes dos produtosque retira diretamente da natureza, submete-se à regra daresponsabilidade objetiva material (CC, art. 927, parágrafoúnico, in fine). Assim, a responsabilidade do exercente deatividade rural não registrado na Junta Comercial é subjetiva,a menos que a vítima demonstre que ele, em razão dadimensão da atividade explorada, dispõe de instrumentos desocialização de custos.

Os profissionais liberais são prestadores de serviços,mas submetem-se aos regimes próprios de sua formação.Mesmo que contem com o auxílio de colaboradores ouauxiliares não se consideram empresários, por expressaprevisão da lei (CC, art. 966, parágrafo único). Médicos,advogados, engenheiros, arquitetos, psicólogos,veterinários e outros prestadores de serviços especializados,

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para cuja execução é legalmente exigida formação superior esujeição à fiscalização pelos pares, não são juridicamenteconsiderados exercentes de atividade empresarial. Viu-se,aliás, que sua responsabilidade é subjetiva (Cap. 22, item 3).

Não são considerados empresários,ainda que a atividade exercida reúnaas características das empresariais: osprofissionais liberais (salvo se sãoelementos de empresa), os exercentesde atividades rurais (exceto seinscritos na Junta Comercial) e ascooperativas.

A questão dos profissionais liberais, contudo, não ésimples como a dos exercentes de atividades rurais. A leiexcepciona da exclusão do conceito de empresário(reenquadrando-o, portanto, neste) os profissionais liberaisque sejam elemento de empresa. Quer dizer, quando a

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unidade produtora de serviços profissionais cresce a pontode ocupar o titular basicamente com as tarefas de suaorganização, afastando-o, pouco ou muito, do cotidiano daprofissão liberal, caracteriza-se a exceção da exceção. Querdizer, o profissional liberal, neste caso, é empresário. Dessemodo, o médico em seu consultório não é empresário, aindaque contrate auxiliares e colaboradores. Já o médico dono deum grande hospital, que trabalha muito mais na organizaçãodo estabelecimento do que clinicando, é elemento deempresa e, portanto, empresário. Sua responsabilidade será,então, objetiva, igual à dos demais empresários.

A exceção da exceção não tem pertinência no caso dosadvogados, que, por força da legislação reguladora daatividade, nunca podem ser considerados empresários.Mesmo o escritório de advocacia com enorme quantidade deadvogados, que adote padrões de organização empresarialna estruturação e prestação de seus serviços, teráinvariavelmente responsabilidade subjetiva.

Em regime jurídico idêntico aos dos profissionaisliberais encontram-se artistas e escritores (CC, art. 966,parágrafo único).

A responsabilidade civil dosprofissionais liberais não empresários

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é subjetiva. Se são elementos deempresa, passa a ser objetiva. A dosexercentes de atividades rurais nãoinscritos na Junta e a das cooperativasé subjetiva, a menos que se lhes possaatribuir a responsabilidade objetivamaterial, em vista do porte do negócio.

Finalmente, as cooperativas. Quando a atividadeeconômica é explorada por sociedade desta específicacategoria, por expressa disposição de lei, não se consideraempresarial (CC, art. 982, parágrafo único). Trata-se, aqui, demera questão formal. Sempre que para explorar certaatividade de produção ou circulação de bens ou serviços osagentes se unem como cooperativados, desveste-se ela docaráter empresarial. Consequentemente, a cooperativa tem,em princípio, responsabilidade subjetiva. Poderá, contudo,dependendo de seu porte, ser objetivamenteresponsabilizada, quando tiver meios de socializar os custosda atividade entre os beneficiários dela. Responde, então,objetivamente não porque seja empresária (o que

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decididamente não é), mas por estarem presentes osrequisitos da responsabilidade objetiva material, assentadosno art. 927, parágrafo único, in fine, do CC.

4.3. Empresário individual e sociedade empresáriaO empresário pode ser uma pessoa física ou jurídica. No

primeiro caso, é empresário individual; no segundo,sociedade empresária.

Atualmente, as atividades econômicas de importânciasão exploradas por sociedades empresárias. Raramente apessoa física se interessa por desenvolvê-las de formaindividual. Em primeiro lugar, porque exigem capital elevado,que apenas a reunião de investidores e empreendedores emsociedade é capaz de levantar. Em segundo, porque, paralimitar a responsabilidade pelas obrigações relacionadas àatividade econômica, atenuando os efeitos de eventualinsucesso da empresa, a constituição de sociedadeempresária é indispensável. Deve-se atentar, por outro lado,para o fato de que as sociedades empresárias, emborapossam assumir outras formas, adotam praticamente apenasa da limitada ou da anônima. Correspondem estes tipossocietários a mais de 99% das sociedades empresáriasregistradas nas Juntas Comerciais de todo o País. Não háinteresse nos demais tipos (nome coletivo, comanditasimples ou comandita por ações) porque os objetivos dalimitação da responsabilidade e atenuação dos riscos de

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insucesso não se alcançam inteiramente por meio deles(Coelho, 1998, 2:22/23).

Interessa ter presente a distinção entre empresárioindividual e sociedade empresária, no exame da matériarelativa à responsabilidade civil, para os fins de identificar apessoa a quem se imputa responsabilidade objetiva. Ésempre o empresário que responde pelos danos advindos daexploração da atividade empresarial. Quando é ele pessoajurídica, será a sociedade empresária, portanto, aresponsável, e não os seus sócios. Em razão da autonomiadas pessoas jurídicas, examinada anteriormente (Cap. 8, itens1, 2 e 4), os sócios da sociedade empresária não sãoempresários. Eles não têm, em consequência,responsabilidade objetiva pelos danos derivados daexploração de atividade empresarial. A vítima do acidente deconsumo, por exemplo, pode pleitear a indenização contra asociedade empresária que forneceu o produto ou serviçoperigoso ou defeituoso, sem provar-lhe a culpa. Masnenhum direito tem contra sócio da sociedade empresária, amenos que prove ter sido o dano causado diretamente porconduta culposa do demandado.

Em outros termos, a sociedade empresária limitada ouanônima responde objetivamente pelos danos relacionadosà atividade econômica que ela, pessoa jurídica, explora. Osseus sócios ou acionistas, contudo, não têmresponsabilidade objetiva por tais danos. Apenas

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demonstrando a eventual culpa de um ou mais deles, cujaconduta tenha concorrido diretamente para o eventodanoso, poderá ser-lhes imputada responsabilidade. Esta é,portanto, subjetiva. A responsabilização dos sócios dasociedade empresária, aliás, terá especial lugar se a condutaculposa ensejadora da obrigação de indenizar consistiu namanipulação fraudulenta da autonomia patrimonial dapessoa jurídica aparentemente responsável; isso porque,neste caso, caberá a desconsideração da personalidadejurídica, permitindo a imputação da obrigação diretamente aosócio que praticou o ato fraudulento ou o abuso de direito(Coelho, 1998, 2:31/56). De qualquer modo, não existindoculpa do sócio da sociedade empresária pelo dano, ele nãopoderá ser responsabilizado.

Empresário pode ser pessoa física oujurídica. No primeiro caso, denomina-se empresário individual; no segundo,sociedade empresária. Tanto numacomo noutra hipótese, suaresponsabilidade pelos danos

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relacionados à exploração deatividade econômica é objetiva,independente de culpa.

Os sócios da sociedade empresárianão são tecnicamente falandoempresários. Eles, portanto, não têmresponsabilidade objetiva e só seobrigam a indenizar os danosdecorrentes da atividade da sociedadese tiverem concorrido, com culpa, parasua ocorrência. Sua responsabilidade,quando houver — inclusive por forçada desconsideração da personalidadejurídica da sociedade empresária —, ésempre subjetiva.

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Para encerrar, preste atenção ao adjetivo que o CódigoCivil empregou na identificação da pessoa jurídicaexploradora de atividade empresarial: é uma sociedadeempresária e não empresarial. Quer dizer, ela própria é osujeito empresário, e não os seus integrantes. É a pessoajurídica que investe capital, adquire ou desenvolvetecnologia, circula insumos e contrata mão de obra, e não osseus sócios. Sugeriria consequências jurídicas bem distintasa opção pelo outro adjetivo; neste caso, seria uma sociedadede empresários.

4.4. Acidente de consumoO empresário responde pela qualidade dos produtos ou

serviços que fornece ao mercado de consumo. Para entendera extensão da obrigação legal, convém distinguirmos entrepericulosidade, defeituosidade e vício de fornecimento(Coelho, 1994:54/100; 1998, 1:245/286).

O fornecimento é perigoso quando o produto ou serviçonão apresenta nenhuma impropriedade, mas o consumidorsofre dano ao usá-lo em razão do desconhecimento acercados riscos a que fica exposto. A definição da periculosidade,note-se, não decorre das características inerentes aoproduto ou serviço. Nenhum fornecimento é perigoso em si.Ele se torna perigoso em função das informações que oconsumidor tem acerca dos riscos envolvidos com o seuconsumo. Mal informado sobre os danos que pode

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eventualmente sofrer, usa o produto ou serviço de formainapropriada e se lesiona.

Considerem-se, no aclaramento do conceito, doisprodutos: a faca e o cinto de segurança. Com a primeira,pode-se ferir seriamente ou até mesmo matar alguém; a faca,contudo, não é produto perigoso. O cinto de segurança, porsua vez, é produto feito para a proteção do consumidor, maspode ser perigoso. A chave para estas questões encontra-seno conjunto de informações detidas pelo consumidor médio.A faca não é perigosa, porque todos nós temos totalconhecimento dos riscos a que nos expomos ao manuseá-la.Desde pequenos, somos treinados em casa para tomarcuidados com os talheres, e a faca participa de nossa vida detal modo que nenhum consumidor ignora os riscos a elaassociados. De outro lado, o cinto de segurança podetornar-se um produto perigoso, caso não sejaconvenientemente utilizado. Quem viaja com o cintoafivelado no banco de passageiro totalmente reclinado pode,em caso de choque frontal do veículo, morrer estrangulado.A pessoa sobrevive ao impacto, mas morre por falta de ar.Aparentemente, ao reclinar o banco para a viagem opassageiro estaria mais seguro com o cinto. É a deficiêncianas informações sobre o uso adequado do produto que otorna perigoso.

Fornecimento defeituoso, por sua vez, é aquele em queo produto ou serviço apresenta uma impropriedade, e é ela

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que provoca o dano ao consumidor. Ao contrário doperigoso, o consumidor utiliza o produto ou serviço tal comodeveria, e encontra-se normalmente bem informado acercados riscos envolvidos. O acidente de consumo aconteceporque há alguma coisa de errado no fornecimento. Oremédio em cujo processo de fabricação adicionou-se doseequivocada do elemento ativo, a garrafa de refrigerante comconcentração de gás superior à tolerável pelo vidro, a quedado avião motivada por falha humana (erro do piloto) e oconsumo de comida estragada no restaurante são exemplosde fornecimentos defeituosos. A impropriedade no produtoou serviço é a causa do dano experimentado peloconsumidor, por isso, se não houvesse o defeito, o acidentenão teria acontecido.

Finalmente, o fornecimento é viciado quando aimpropriedade no produto ou serviço existe, mas é inócua,no sentido de não causar danos de monta aosconsumidores. Se o eletrodoméstico simplesmente nãofunciona, o pacote não contém a quantidade indicada doproduto, a agência de turismo esqueceu-se de comunicar areserva ao hotel, o banco não informou adequadamente ocorrentista sobre as taxas que cobra por seus serviços, ou,em casos semelhantes, o consumidor sofre dissabores eprejuízos de pouca importância, mas a impropriedade ésanada com o conserto ou troca do produto, reexecução doserviço, desfazimento do contrato ou indenização.

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A mesma impropriedade pode caracterizar fornecimentodefeituoso ou viciado — depende se causa ou não danos demonta ao consumidor (cf. Lisboa, 2003:512/514). Se oproblema no sistema de freios manifesta-se quando oautomóvel trafega em baixa velocidade, não há danosrelevantes para o consumidor. Trata-se de fornecimentoviciado, que se resolverá com o reparo ou substituição dobem, ou rescisão do contrato de consumo. Já, se aqueleproblema aparece quando o automóvel viajava em altavelocidade, e disso decorre sério acidente com danosmateriais e pessoais, então a hipótese é de fornecimentodefeituoso.

O fornecimento de produtos ouserviços sem qualidade pode ser detrês categorias: perigoso, defeituosoou viciado.

Perigoso é o fornecimento em que oproduto ou serviço não apresentanenhuma impropriedade. Os danos são

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devidos à má utilização peloconsumidor deficientemente informadosobre os riscos.

Defeituoso, aquele em que o produtoou serviço tem uma impropriedade eela é a causa do dano.

Viciado, por fim, é o fornecimentoem que a impropriedade do produto ouserviço não gera danos de monta aoconsumidor.

Verifica-se acidente de consumo nashipóteses de fornecimento perigoso edefeituoso.

Sintetizo: no fornecimento perigoso, não há nenhumaimpropriedade no produto ou serviço. Eles são exatamente oque deveriam ser. O dano ao consumidor não decorre, então,

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de defeito, mas da insuficiência de sua informação acercados riscos envolvidos no ato de consumo. Já nosfornecimentos defeituoso e viciado, há impropriedade noproduto ou serviço. Eles não são o que deveriam ser.Diferem-se pela relevância dos danos decorrentes. Se aimpropriedade causa danos de monta ao consumidor, édefeito; caso contrário, limitando-se a alguns desconfortosou a valores que o consumidor pode absorver, é vício.

O acidente de consumo pode ter por causa fornecimentoperigoso ou defeituoso. Nas duas hipóteses, aresponsabilidade do empresário é objetiva, mas há certasparticularidades a examinar.

4.4.1. Fornecimento perigoso

Viu-se que o fornecimento é perigoso não em funçãodas características do produto ou serviço, mas pelo grau deinformação dos consumidores acerca dos riscos envolvidoscom o ato de consumo. A responsabilidade do fornecedorpelo acidente causado por fornecimento perigoso decorre,neste contexto, da ausência de informações suficientes eadequadas aos consumidores acerca dos riscos à saúde ouintegridade física e patrimônio deles. Estabelece a lei que “ofornecedor de produtos ou serviços potencialmente nocivosou perigosos à saúde ou segurança deverá informar, demaneira ostensiva e adequada, a respeito de sua nocividadeou periculosidade”; dispõe, também, que “a oferta e

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apresentação de produtos ou serviços devem assegurarinformações corretas, claras, precisas, ostensivas e emlíngua portuguesa sobre (...) os riscos que apresentam àsaúde e segurança dos consumidores” (CDC, arts. 9º e 31).Se o empresário vende ao mercado produtos ou prestaserviços sem fazê-los acompanhar de informações queatendam aos ditames da lei, ele responde por todos osacidentes de consumo decorrentes.

Em outros termos, o consumidor deve ser capacitado amanusear o produto ou gozar o serviço sem riscos, a partirdas informações a ele prestadas pelo empresário. Sedeterminado produto ou serviço simplesmente não pode serconsumido sem riscos, mesmo após a assimilação dasinformações de segurança pelos consumidores, então setrata da hipótese referida em lei como “alto grau denocividade ou periculosidade”. Neste caso, o fornecimento éproibido (CDC, art. 10). Se restar demonstrado que a simplestransmissão de informações em embalagens ou no manualseria insuficiente para preservar os consumidores dos riscosassociados ao produto ou serviço — para a completasegurança de quem os manuseia seria indispensável, porexemplo, formação superior ou treinamento técnicoespecífico —, o empresário não poderia tê-los fornecido aomercado de consumo, por apresentarem alto grau denocividade ou periculosidade. Se transgrediu a proibição eos forneceu, será responsável pelo acidente de consumo,

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mesmo que tenha fornecido as informações da melhor formapossível.

Se o empresário fornece informaçõesadequadas e suficientes acerca dosriscos do produto ou serviço queoferece ao mercado, e não há nestesnenhuma impropriedade, eventualacidente de consumo só pode decorrerde culpa exclusiva da vítima. Se asinformações não eram adequadas esuficientes, ou se o manuseio semriscos do produto ou serviço não erapossível sem formação outreinamentos específicos, o empresárioresponde pelo acidente. Neste caso,

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não tem relevância jurídica eventualmá utilização do produto ou serviçopelo consumidor.

Em relação ao fornecimento que não apresenta alto graude nocividade ou periculosidade, a transmissão deinformações de segurança aos consumidores no próprioproduto, sua embalagem ou manual, ou pelo funcionárioencarregado da execução do serviço, exonera o empresáriode responsabilidade se atendidos os requisitos da lei(ostensividade, correção, clareza, precisão etc.). Dessemodo, se a embalagem do brinquedo trazia a advertência deser “inapropriado para menores de 3 anos, por conter peçaspequenas que podem ser engolidas”, o empresário atendeu àexigência legal de transmitir aos consumidores informaçãosuficiente sobre os riscos associados ao produto. Caso acriança morra sufocada por ter-se entalado em sua gargantauma peça do brinquedo, não será imputável ao empresárioqualquer responsabilidade pelo acidente de consumo.

O fornecimento perigoso caracteriza-se pela deficiênciadas informações sobre os riscos. Neste caso, considera-seque o consumidor mal informado pelo empresário não é oresponsável pelo evento danoso. Cabe, então, ao empresárioresponder objetivamente pelos danos sofridos pelo

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consumidor (RT, 794/404). Sendo, contudo, suficientes eadequadas as informações que o empresário presta acercados riscos de seu produto ou serviço, a culpa pelo eventodanoso é exclusiva do consumidor.

4.4.2. Fornecimento defeituoso

A falibilidade é inerente a qualquer ação humana. Tome-se uma atividade econômica qualquer. É sempre o resultadode um conjunto articulado de ações de homens e mulheres:os trabalhadores e administradores da empresa. Por mais quese controle a qualidade dessas ações, alguns produtos ouserviços serão oferecidos no mercado com defeitos. Atémesmo porque o controle de qualidade é também uma açãohumana, e, portanto, falível. Há inafastavelmente umamargem estatística de defeituosidade em todos osfornecimentos. Ela dará ensejo a inevitáveis acidentes deconsumo. Os danos causados por fornecimento defeituosonão decorrem, portanto, de culpa do empresário, mas dainsuperável falibilidade do ser humano (cf. Leães,1987:125/165).

É claro que, sendo o empresário o culpado pelo defeito— no caso de negligenciar no constante aprimoramento doprocesso de produção ou nos controles de qualidade, porexemplo —, sempre foi obrigado a indenizar o acidente. Oselementos da responsabilidade subjetiva estão todospresentes na hipótese: a culpa do empresário, o dano sofrido

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pela vítima do acidente de consumo e a relação decausalidade entre uma e outro. Por isso, antes da afirmaçãoda responsabilidade objetiva do empresário pelos acidentesde consumo (que, no Brasil, se verifica com a vigência doCDC, em 1991), os inevitáveis, assim entendidos aquelespara os quais não concorrera qualquer conduta culposa doempresário, eram tratados como fortuito. Em decorrência,suportava a vítima diretamente os seus prejuízos.

Com a objetivação da responsabilidade do empresário, aquestão da culpa na colocação de produtos defeituosos nomercado é desqualificada. Desvincula-se a responsabilidadepelos danos do acidente de consumo de qualquer valoraçãoda conduta do empresário (Marins, 1993:94/97). Responde oempresário, tenha ou não agido negligentemente no trato daquestão. A vítima do acidente de consumo — que pode sero consumidor ou qualquer outra pessoa (CDC, art. 17) —deve provar apenas que sofreu danos e que eles foramcausados por fornecimento defeituoso (Lopes, 1992:63/66).

A responsabilidade dos empresáriospelos acidentes derivados de defeitonos seus produtos ou serviços é

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objetiva, porque não há meioshumanamente possíveis de evitá-los deforma absoluta.

O produto ou serviço é defeituoso quando não oferecea “segurança que dele legitimamente se espera” (CDC, art.12, § 1º). A avaliação da deficiência de segurança deve serfeita não em função das expectativas nutridas pelosconsumidores, mas pelas condições objetivas do próprioproduto, considerando-se o desenvolvimento da ciência etecnologia, o perfil do público-alvo a ser atendido e atémesmo a conjuntura econômica (cf. Alpa, 1989:30/36). Nãopode ser considerado defeituoso um automóvel popular, porexemplo, por não ter airbag. O custo deste acessório desegurança ainda é alto e inviabiliza sua colocação emprodutos destinados a atender as necessidades de consumode camadas da população de menor poder aquisitivo.

4.5. Empresários do ramo de transporteNa noite chuvosa de 6 de maio de 1937, durante as

manobras de pouso no aeródromo de Lakehurst, próximo aNova York, concluindo a viagem iniciada em Frankfurt, odirigível Hindenburg incendiou-se. Em segundos, o fogo

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consumiu por completo a imensa fuselagem, que pareceuevaporar. Filmado, foi talvez o primeiro acidente de grandesproporções transformado em espetáculo. Nos noticiáriosque era costume exibir no início das sessões de cinema, foivisto por milhares de pessoas nas cidades mais populosas.Mais de sessenta anos depois, na manhã ensolarada de 25de julho de 2000, logo após decolar do aeroporto Charles deGaulle, nos arredores de Paris, um supersônico concorde daAir France espatifou-se no solo. O estouro de um dos pneusteria causado choque interno no tanque de combustíveis,ocasionando o incêndio do avião. Registrado por diversascâmaras domésticas, o espetacular acidente foi visto pelomundo todo no noticiário televisivo do mesmo dia.

Os dois acidentes foram marcantes. O de Nova Yorkassinalou o fim da era dos dirigíveis de passageiros, e o deParis, o da única experiência de aviões supersônicos emoperações comerciais. Erra, no entanto, quem pensa que asuspensão desses meios de transporte deu-se em razão dainsegurança. Embora o espetáculo dos acidentes sugira ocontrário, as estatísticas não são impressionantes. Entre1928 e 1937, somente os dois maiores dirigíveis do mundo (oGraff Zeppelin e o Hindenburg) realizaram 181 travessiasoceânicas e transportaram mais de vinte mil pessoas, sãs esalvas. No acidente de Nova York, dos 97 passageirostransportados, 61 sobreviveram. Os concordes da Air Francee da British Airways, por sua vez, transportaram a média

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anual de cinquenta mil passageiros em voos regulares entrea Europa e os Estados Unidos. Operaram de 1976 a 2003, eno único acidente com vítimas de sua história faleceram 113pessoas. As razões para a desativação desses meios detransporte foram comerciais: dirigíveis e supersônicosrepresentaram, cada um a seu tempo, meios de transportecharmosos porém economicamente inviáveis.

Um dos primeiros temas a revelar a insuficiência dop rin c íp io nenhuma responsabilidade sem culpa notratamento dos acidentes da era contemporânea foi o dosdanos derivados de um tipo de transporte, o ferroviário. Apartir de sua larga difusão em várias partes do mundo, no fimdo século XIX, em relativamente pouco tempo, surgiramlegislações disciplinando a responsabilidade das estradas deferro de modo particular. Valendo-se de uma dasformulações de transição, estabeleceu a lei a presunçãoabsoluta de culpa delas pelos acidentes associados aotransporte ferroviário. O Brasil acompanhou a tendênciaeditando, em 1912, o Decreto n. 2.681. Nele se estabelece aresponsabilidade objetiva (viu-se que a presunção absolutade culpa equivale à desqualificação do pressupostosubjetivo) das estradas de ferro por todos os acidentesligados à atividade empresarial que exploram. Desse modo,elas respondem pela perda total ou parcial, furto ou avariadas mercadorias transportadas (art. 1º), pelo atraso notransporte (art. 7º, 2ª alínea), por danos pessoais (art. 17) e

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materiais (art. 23) em caso de desastre, ainda que causadopor culpa de terceiros (art. 18) e também pelos prejuízos queprovocarem aos proprietários marginais (art. 26).

A responsabilidade objetiva das estradas de ferro foiestendida, pela jurisprudência, aos empresários de outrosramos de transporte. De início, o Decreto n. 2.681 foiaplicado analogicamente aos danos no transporte urbanopor bondes elétricos; em seguida, associados ao transportepor ônibus (RT, 792/272). Em 1952, o Tribunal de Justiça deSão Paulo decidiu que a responsabilidade do transportador,independente do veículo utilizado, é sempre objetiva(Rodrigues, 2002:99/101).

A responsabilidade objetiva dasestradas de ferro, estabelecida nodireito brasileiro em 1912, foiestendida pela jurisprudência paratodos os transportadores em meadosdo século passado. Hoje, a matéria édisciplinada pelo CDC e pelo CC.

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Avançado para sua época, o Decreto n. 2.681/12 adotouprincípios de responsabilização que, no direito brasileiro dehoje, são aplicáveis a todos os empresários, e não somenteaos de transporte: quanto aos prejuízos sofridos pelosconsumidores, desde 1991, com a entrada em vigor do CDC;em relação aos infligidos a não consumidores, desde 2003,com a vigência do CC. Atualmente, portanto, otransportador responde objetivamente por indenizar osdanos causados ao remetente de mercadorias e aopassageiro, nos termos do art. 14 do CDC, e aosproprietários marginais e qualquer outro prejudicado, emrazão dos arts. 927, parágrafo único, in fine, e 931 do CC.

4.6. Empresários do ramo de albergariaA responsabilização objetiva dos empresários do ramo

de hospedagem encontra-se nos dispositivos do CódigoCivil específicos da responsabilidade por atos de outrem(CC, arts. 932, IV, e 933). Deve-se isso apenas ao descuidona sistematização da matéria. Hotéis, hospedarias, alberguese quaisquer outros estabelecimentos do ramo dehospedagem respondem pelos danos sofridos por seusconsumidores, tal como qualquer outro empresário.Respondem, inclusive quando provenientes de conduta deoutros hóspedes. Se alguém hospedado num hotel é furtado

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pelo ocupante do quarto contíguo, terá direito de reclamar aindenização contra o fornecedor dos serviços dehospedagem.

Os empresários do ramo dehotelaria, bem assim os deestabelecimentos de educação ousaúde que prestam serviços em regimede internação, respondemobjetivamente pelos danosprovenientes de atos dos seusconsumidores neles albergados.

Idêntica regra deve ser observada na responsabilizaçãode empresários que, mesmo não operando diretamente noramo de hospedagem, albergam seus consumidores. É ocaso dos estabelecimentos de educação que prestamserviços em regime de internato. Se, num colégio interno,dois estudantes se envolvem numa briga, pelos danos que

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mutuamente um infligir ao outro responde o estabelecimentoeducacional. Se os educandos causam danos a terceiros,também responde o educandário. Este é o caso igualmentedos hospitais e hospícios. Quem é neles internado paratratamento tem direito à indenização, caso venha a sofrerdanos pela ação de outro paciente. Assim como deve serindenizada qualquer pessoa prejudicada por atos dosdoentes internados nessas instituições. Se o louco quefugiu do hospício agride o pedestre, o estabelecimento desaúde responde objetivamente pelos danos.

5. RESPONSABILIDADE DO ESTADOA Constituição Imperial (1824-1891) prescrevia: “a

Pessoa do Imperador é inviolável e Sagrada: Elle não estásujeito a responsabilidade alguma” (art. 99). Essedispositivo, que parece aos nossos olhos uma anacrônicacuriosidade histórica, na verdade, expressava secularprincípio jurídico nascido nas monarquias absolutistas. Naorigem, o princípio da infalibilidade real do direito inglês (theking can do no wrong) preservava não só a pessoa do rei,mas também o Estado de responsabilidade. Quando seexpressou na Constituição Imperial brasileira, porém, já tinhasentido restrito e punha a salvo de qualquerresponsabilização civil ou penal apenas o monarca emembros da família real. Pelo dano causado por culpa deseus funcionários ou servidores sempre respondeu o Estado

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no Brasil (Mello, 1981:159).Nosso primeiro Código Civil continha dispositivo

imputando às pessoas jurídicas de direito públicoresponsabilidade subjetiva. Para obter indenização pelosprejuízos sofridos em razão da atuação estatal, cabiam aodemandante as mesmas provas exigidas nas hipóteses geraisde responsabilização civil, incluindo a do pressupostosubjetivo. Se o prejudicado não provasse a conduta culposado agente público, não tinha direito ao ressarcimento. Aresponsabilidade subjetiva do Estado foi prevista tambémnas Cartas de 1934 e 1937.

A Constituição de 1946 mudou a regra. Aresponsabilidade civil do Estado passou a ser objetiva e temsido desta espécie desde então. A transição de um paraoutro regime, contudo, não foi imediata. Esbarrou nadistinção que doutrina e jurisprudência faziam entre atos deimpério e de gestão, procurando circunscrever a estesúltimos a responsabilidade do Estado (Meirelles, 1964:616).Na ordem jurídica vigente, a objetivação é afirmada no planoconstitucional (CF, art. 37, § 6º: “as pessoas jurídicas dedireito público e as de direito privado prestadoras deserviços públicos responderão pelos danos que seusagentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, asseguradoo direito de regresso contra o responsável nos casos dedolo ou culpa”) e legal (CC, art. 43: “as pessoas de direitopúblico interno são civilmente responsáveis por atos dos

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seus agentes que nessa qualidade causem danos a terceiros,ressalvado direito regressivo contra os causadores do dano,se houver, por parte destes, culpa ou dolo”).

A objetivação da responsabilidade do Estado viabiliza asocialização dos custos da atividade estatal. Ela se destina,necessariamente, à realização do interesse público e deve sersuportada por toda a sociedade. Como os custos daatividade estatal são pagos com recursos provenientes,mediata ou imediatamente, dos tributos recolhidos doscontribuintes, a indenização dos danos causados pelosagentes do Estado é, em última análise, paga pela sociedade.Não é relevante a questão da licitude ou ilicitude do atocausador do dano; a indenização será devida em qualquerhipótese pelo Estado. Note-se que, se houver ato ilícito(dolo ou culpa) por parte de seu agente, terá o Estado direitode regresso contra ele. Paga, então, ao prejudicado erecupera com o agente culpado o valor da indenização.Sempre que eficaz o exercício do direito de regresso, não severifica a socialização dos custos da atividade estatal.

A responsabilidade objetiva do Estado imputa-se àspessoas jurídicas de direito público (União, Estados-membros, Distrito Federal, Municípios e autarquias comoINSS, INPI, OAB, CRM etc.) e às de direito privado queprestam serviços públicos (empresas de transporte aéreo,concessionárias de rodovias ou de alguns serviços detelecomunicações etc.).

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A responsabilidade do Estado é objetiva em qualquerhipótese, independentemente da natureza do ato que deuensejo ao prejuízo. Para Oswaldo Aranha Bandeira de Mello,contudo, ela tem lugar apenas se os danos decorrem de atoscomissivos. Pelas omissões, a responsabilidade da pessoajurídica de direito público seria ainda subjetiva (1974:487).No mesmo sentido é o entendimento de Celso AntônioBandeira de Mello (1980:822/823; 1981:149). Essa distinção,note-se, não tem sido aceita pelos tribunais, queresponsabilizam o Estado independentemente de culpa doagente tanto no caso de ação como de omissão danosa naprestação do serviço público (Gonçalves, 2003:290). E ela,realmente, não tem sentido. A rigor, como já assentado, açãoe omissão são apenas modos diferentes de descrever amesma conduta. Se o motorista do carro oficial não detém oveículo a tempo de evitar o choque, sua conduta pode serdescrita como ato omissivo (deixou negligentemente defrear) ou comissivo (continuou acelerandoimprudentemente). Não há, desse modo, fundamento naproposição tecnológica referida.

Para que o Estado se responsabilize objetivamente pelodano, não se exige que o causador seja funcionário públicoefetivo ou comissionado. O preceito normativo menciona aresponsabilidade das pessoas jurídicas de direito públicopelos danos causados por seus agentes, conceito amplo quealcança toda e qualquer pessoa a serviço do Estado. Por

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outro lado, se o dano é provocado por quem não cumpreessa condição, o Estado não é responsabilizável. Seintegrantes de movimentos ecológicos radicais destroem aplantação de produtos transgênicos, não haveráresponsabilidade civil do Estado porque os causadores dodano não são seus agentes. A responsabilidade objetiva doPoder Público não equivale a um seguro social deindenidade (Meirelles, 1964:615/616). Para que o Estado sejaresponsabilizável por atos causados por quem não é seuagente, torna-se imprescindível lei específica. É o caso, porexemplo, dos danos advindos de atentados terroristascontra aeronaves de matrícula brasileira operadas porempresas nacionais de transporte aéreo público. Por elesresponde a União, até o limite de um bilhão de dólares, porforça do expressamente estabelecido pela Lei n. 10.744/03.Sua origem remota é a Medida Provisória n. 2(posteriormente convertida na Lei n. 10.309/01), editadaalguns dias após os atentados às torres gêmeas do WorldTrade Center em Nova York, em 11 de setembro de 2001. Aoestabelecer a responsabilidade do Estado por atos deterceiros que não são seus agentes, a lei muda o universo depessoas que arcarão com as repercussões dos danos. Emvista da lei mencionada, se avião brasileiro for derrubado porterroristas, caberá à sociedade brasileira como um todo — enão aos consumidores dos serviços de transporte aéreo daempresa atingida no atentado — arcar, em última instância,

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com os danos.

A responsabilidade do Estado pelosdanos causados por atos ou omissõesde seus agentes, nesta qualidade, éobjetiva. Desse modo, toda asociedade arca com o custo darealização do interesse público.

Para encerrar, algumas observações sobre aresponsabilização do Estado por atos jurisdicionais. O juiz é,sem dúvida, agente público. E pode errar. Não existem,portanto, motivos para afastar-se a responsabilidadeobjetiva do Estado por erro dos membros do PoderJudiciário, como pensavam no passado os que temiam pelaautonomia do magistrado (cf. Gonçalves, 2002:206). Acondenação de inocente implica relevantes danos ao réu;não reconhecer a eficácia de título executivo prejudica ocredor, assim como reconhecê-la quando não há traz danosao devedor; imputar responsabilidade objetiva a quem

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responde por culpa, ou vice-versa, acarreta danos aodemandante ou ao demandado, conforme o caso; obrigarsócio por dívida da sociedade em hipótese não autorizadapor lei prejudica-o, assim como resta prejudicado o credor nahipótese inversa se o Judiciário não imputar ao sócio aobrigação social. Nesses casos todos, não há razões morais,lógicas, econômicas ou jurídicas para afastar-se aresponsabilidade objetiva do Estado. A Constituição, aliás,prevê sua responsabilidade por indevida condenação ouexcesso no cumprimento da pena: “o Estado indenizará ocondenado por erro judiciário, assim como o que ficar presoalém do tempo fixado na sentença” (CF, art. 5º, LXXV).

Note-se que a jurisprudência não hesita emresponsabilizar o Estado por atos judiciais não jurisdicionais— isto é, os que o juiz pratica quando não está dizendo odireito: administração de pessoal lotado no cartório judicial,expedição de alvará em inventários, aprovação dehonorários periciais, levantamento de dinheiro depositadoem juízo etc. —, se evidente dolo ou fraude do magistrado.Há julgados condenando o Estado a indenizar, por exemplo,a apropriação pelo juiz de dinheiro do espólio, por meio daexpedição de alvará ilegal. Mas a jurisprudência pareceresistir na imputação de responsabilidade à pessoa jurídicade direito público por erro em ato jurisdicional, mesmo emcasos de rescisão de sentença ou acórdão (Araújo,1981:144/179). A resistência, aqui, não deriva unicamente da

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dificuldade de distinguir erro de interpretação divergenteno enfrentamento de matérias jurídicas — ventilada noexame da responsabilidade civil dos advogados (Cap. 22,item 3.3) —, mas também do temor de afrontar a autonomiado juiz. As dificuldades, porém, devem ser enfrentadas e otemor dissipado, quando não houver fundados motivos paraele. A objetivação da responsabilidade, lembre-se, implica aabstração de qualquer juízo de valor sobre a condutaensejadora do dano. Trata-se apenas de distribuir riscos,alocando os recursos econômicos de forma racional. Errosnos atos jurisdicionais acontecem, porque os juízes sãohumanos e falíveis. A responsabilidade objetiva permite queas repercussões econômicas desses erros sejam distribuídasentre os beneficiários em geral da atuação do PoderJudiciário (identificados na figura dos contribuintes) e nãoapenas pelos jurisdicionados vitimados.

6. RESPONSABILIDADE PURAMENTE FORMALA responsabilidade objetiva puramente formal é a

prevista num dispositivo específico de lei, mas não referentea devedor em condições de socializar os custos da atividadegeradora do dano. Sua fundamentação não se encontra naracional alocação dos recursos, mas no privilegiamento dointeresse da vítima de ser indenizada. Por vezes, quando osinteresses do causador do dano também são merecedores detutela especial pelo direito, como é o caso dos incapazes, a

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imputação de responsabilidade objetiva puramente formalprocura temperá-los com a indenidade do prejudicado.

A responsabilidade objetiva puramente formal alcança:a) os pais pelos atos dos filhos menores (subitem 6.1.1); b)tutores e curadores pelos atos dos tutelados e curatelados(subitem 6.1.1); c) empregadores pelos atos dos empregados(subitem 6.1.2); d) o habitante de prédio ou parte dele pelosdanos causados por queda ou arremesso de coisa (subitem6.2.a); e) os que agem para remover perigo iminente, se oprejudicado não foi o culpado (subitem 6.2.b); e f) o dono oudetentor do animal, pelos danos que este causar (subitem6.2.c).

Não são hipóteses de responsabilidade puramenteformal as albergadas nos incisos IV e V do art. 932 do CC,que se referem respectivamente aos “donos de hotéis,hospedarias, casas ou estabelecimentos onde se alberguepor dinheiro, mesmo para fins de educação, pelos seushóspedes, moradores e educandos” e “os que gratuitamentehouverem participado nos produtos do crime, até aconcorrente quantia”. Os primeiros porque são empresáriose, como tais, submetem-se também à responsabilizaçãoobjetiva material (item 4.6). Os últimos porque sua obrigaçãode restituir funda-se na repressão ao enriquecimento semcausa e não decorre propriamente de responsabilidade civil(Dias, 1954, 2:202).

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6.1. Responsabilidade por ato de outremEm princípio, cada sujeito de direito responde pelas

consequências de seus próprios atos. Quando a sociedadeempresária é obrigada a indenizar dano ambiental causadopor seu empregado no desempenho das funções laborais,ela, na verdade, está sendo responsabilizada por ato próprio.Sendo pessoa jurídica, age sempre por intermédio de pessoaou pessoas físicas, ou seja, pelos representantes legais,empregados e administradores que trabalham na suaorganização empresarial. Há, contudo, certas situações emque a lei responsabiliza um sujeito de direito por ato deoutrem. É chamada de complexa a responsabilidade civilreferente a dano ou acidente causado por ato de terceiro.Para facilitar a exposição da matéria, chamo o sujeito dedireito a quem é imputada a responsabilidade por ato alheiode responsável, e aquele cuja conduta deu causa ao dano decausador.

A responsabilidade complexa é objetiva, no sentido deque independe de culpa do sujeito passivo (CC, art. 933). Oprejudicado deve provar a culpa do causador, mas não a doresponsável. Se o menor de 18 anos, ao dirigir o automóveldo pai, sob a autoridade deste e na sua companhia, causouacidente de trânsito, o prejudicado deve demandar aindenização contra o genitor. Para tanto, tem o ônus deprovar a culpa do filho (causador) pelo acidente de trânsito,mas não precisa provar a do pai (responsável). Se não houve

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culpa do filho pelo dano que sofreu, a vítima não terá direitoao crédito pela indenização em face do pai. Somente aresponsabilidade civil deste último é objetiva.

Note-se que, em termos estritos, pode ser questionávela possibilidade de qualificar a conduta do incapaz comoculposa. A incapacidade conduz à inimputabilidade: nãopodem ser ilícitos os atos dos incapazes. O argumento,contudo, não deve impressionar. Qualquer conduta pode serexaminada com abstração de seu agente e reputada culposaou não em função da lesão a direitos alheios. Se criança de 4anos aciona o gatilho de arma de fogo e mata um adulto, épossível abstrair-se sua inimputabilidade e vislumbrar a açãocomo imprudência (culpa simples) caso tivesse sidopraticada por agente capaz.

Em consequência da objetivação da responsabilidadecomplexa, perdem importância as discussões que permeavama tecnologia civilista do passado sobre a culpa in vigilandoe in eligendo — aquela diz respeito à falha dos pais nocumprimento de seus deveres de bem educar e fiscalizar osfilhos menores ou do dono do animal no de guardá-loadequadamente, enquanto esta liga-se à má escolha dosempregados e prepostos. Com a entrada em vigor do CódigoReale, essas categorias só se operacionalizam se não tiveremsido preenchidas todas as condições legais da imputaçãoobjetiva, mas houver fundamento para obrigar o responsávela indenizar os danos sob o regime da responsabilidade

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subjetiva.

Em casos especiais, a lei atribui aum sujeito de direito (responsável) odever de indenizar os danos devidos àação culposa de outro (causador).Chama-se, nestes casos, aresponsabilidade de complexa.

No estudo da imputação a um sujeito de direito daobrigação de indenizar por danos causados por outrem,convém distinguir, de um lado, a responsabilidade por ato deterceiro incapaz, como os menores e interditos (subitem6.1.1), e, de outro, por ato de terceiro capaz, que são osempregados domésticos, serviçais e prepostos (subitem6.1.2).

6.1.1. Ato de incapaz

São três as hipóteses de responsabilidade complexa porato de terceiro incapaz: a dos pais pelos filhos menores, a do

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tutor pelos pupilos e a do curador pelos curatelados. Sãopostos em tutela os menores quando falecidos ou julgadosausentes os pais, ou se decaídos do poder familiar. Nestescasos, nomeia-se tutor, ao qual compete dirigir a educaçãodo menor, defendê-lo e prestar-lhe alimentos, cumprindo osdeveres que normalmente são dos pais. A seu turno, estãosujeitos à curatela os incapazes interditos (deficientesmentais, viciados em tóxicos etc.). O curador os representaou assiste, segundo o grau de incapacidade do interdito. Ascondições para a constituição da obrigação de indenizar sãoiguais nas três situações: o causador deve estar sob aautoridade do responsável e na companhia dele (CC, art.932, I e II).

Essa última condição não é difícil de caracterizar: se oresponsável não estiver fisicamente próximo ao causador nomomento em que a conduta culposa deste desencadeia oevento danoso, não se pode considerar que estejam um nacompanhia do outro. A pressuposição é a de que os pais,tutor ou curador têm o dever de evitar a ação danosa dofilho, tutelado ou curatelado, detendo-o com eficiência eprontidão. A proximidade física do responsável e docausador é, assim, essencial para demonstrar que este seencontrava na companhia daquele. Dispensar a proximidadefísica do responsável por ato de incapaz, na constituição desua obrigação de indenizar, significa ignorar condiçãoexpressa estabelecida pela lei para a responsabilidade

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objetiva dele; significa ignorar, em suma, a lei. Não há, assim,responsabilidade complexa por ato de incapaz se oresponsável não estava presente no local do evento danoso.No caso de responsabilidade dos pais pelos atos dos filhosmenores, basta a companhia de um só deles (o pai ou a mãe)para cumprir-se a condição legal.

Por sua vez, a condição da autoridade na relação entreresponsável e causador envolve maior complexidade. Estarsob a autoridade do responsável é uma situação especial,em que não se encontram todos os causadores incapazes.Não tem, por exemplo, na relação de filiação, o mesmosignificado de poder familiar. Como todos os filhosmenores estão sempre sob o poder familiar (CC, art. 1.630),disso decorre que apenas em situações especiais eles seencontram sob a autoridade dos pais. A lei não temexpressões inúteis, e o legislador ter-se-ia valido do termotécnico “poder familiar” se quisesse a ele se referir. Poisbem, se estar sob a autoridade dos pais é mais restrito quesubmeter-se ao poder familiar, é necessário divisarem-se assituações em que isso se verifica.

Há autoridade paterna e materna quando as ordens dopai e da mãe são normalmente acatadas e respeitadas pelosfilhos. Atualmente, os jovens são estimulados pelaeducação e pela mídia a cultivar opiniões próprias, a teratitudes independentes. Este aparentemente salutarprocesso de autoafirmação é, porém, acompanhado da

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erosão da autoridade dos pais, principalmente naadolescência. Cada vez mais, é difícil aos pais exercer suaautoridade. Por isso, se restar demonstrado pelo demandadoque, embora estivesse em sua companhia, o causador nãomais se submetia à autoridade dele, não se preenche umadas condições legais da responsabilização objetiva.

Os pais respondem objetivamentepelos atos dos filhos menores queestiverem em sua companhia e sob suaautoridade. Nas mesmas condições,respondem os tutores e curadorespelos atos dos respectivos pupilos ecuratelados.

Em suma, os pais, tutores e curadores respondem poratos dos filhos, pupilos e curatelados se estavam presentesao evento danoso (requisito legal da companhia) e se oscausadores não tinham o hábito de desobedecer-lhes as

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ordens (requisito legal da autoridade). Apenas quandopresentes essas duas condições, é possível cogitar deimputação ao responsável da obrigação de indenizar. Vejaque elas não reintroduzem o pressuposto subjetivo naimputação da responsabilidade civil. Continua irrelevante seo responsável colaborou ou não culposamente para o dano,se negligenciou especificamente no momento em quedeveria ter detido o causador.

Quando não estiverem presentes esses requisitos, ospais, tutores e curadores não têm a obrigação de indenizaros atos dos filhos, pupilos e curatelados. Nesta situação, avítima não ficará ao desamparo, porque preserva o direito deser indenizada pelo incapaz causador do dano (CC, art. 928,primeira parte). Igual direito terá a vítima caso osresponsáveis não disponham de meios suficientes para opagamento da indenização (CC, art. 928, segunda parte).Nessas hipóteses, contudo, além de reger-se a obrigaçãopelo regime da responsabilidade subjetiva, o valor daindenização será apurado de forma equitativa e nuncapoderá privar do necessário o incapaz ou seus dependentes(CC, art. 928, parágrafo único).

Para encerrar, cabe ligeira observação sobre aresponsabilidade no caso de acidente causado por pessoadesprovida de discernimento. Houve tempo em que seequiparavam ao caso fortuito os danos derivados deconduta de amental, por não ter o agente a inteira

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compreensão das consequências de seus atos. A agressãode um louco era vista, no enquadramento jurídico do fato,como algo semelhante à do ataque de animal selvagem semdono. O princípio da indenidade e a imputação deresponsabilidade objetiva aos curadores, hoje, fornecem abase para a indenização da vítima pelos danos causados poramental (cf. Gonçalves, 2003:391/396).

6.1.2. Ato de capaz

Responde o empregador objetivamente pelos danoscausados por seu empregado, no exercício do trabalho ouem razão dele (CC, arts. 932, III, e 933). A hipótese dizrespeito, basicamente, ao empregado doméstico. É claro quepelos danos causados por empregado de empresa respondetambém o empregador objetivamente, mas este fato estáenglobado nos que geram responsabilidade para osempresários, matéria já examinada (item 4).

Desse modo, se o motorista particular causa acidente detrânsito, o prejudicado tem direito à indenização a ser pagapelo empregador. Deve provar a culpa do empregadodoméstico causador do acidente, mas está dispensado deprovar a do empregador responsável.

É irrelevante para a responsabilização do empregador seo causador estava regularmente registrado como seuempregado ou não. Basta a existência entre eles da relaçãode subordinação característica do vínculo de emprego (CLT,

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art. 3º), para que surja a obrigação de indenizar. Havendo asubordinação hierárquica, presume-se que o subordinadocumpria ordens do superior ou que, se não, pelo menostrabalhava em benefício deste. É presunção absoluta, namedida em que prevê a lei a responsabilização objetiva doempregador. Quer dizer, a demonstração de que oempregado, ao causar o dano, havia desobedecidoespecífica orientação ou ordem do empregador não oexonera de responsabilidade. Dá ensejo apenas ao direito deregresso do responsável contra o causador.

O empregador responde pelos danoscausados pelo empregado na execuçãodo trabalho ou em razão deste. Aresponsabilidade é objetiva tanto nahipótese de ser o empregadorempresário como na de empregadodoméstico.

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Igual à responsabilidade objetiva do empregador é a docomitente pelos atos dos serviçais e prepostos. Sãohipóteses tratadas na lei, mas de rara ocorrência. Sempre quehouver entre dois sujeitos relação de subordinaçãohierárquica, ainda que ausentes os demais elementoscaracterísticos do vínculo de emprego (remuneraçãoassalariada e habitualidade), o superior é responsávelobjetivamente pelos danos derivados de conduta dosubordinado, na execução de tarefa de interesse do primeiro.

6.2. Outras hipótesesAlém da responsabilidade complexa, em três outras

hipóteses o direito brasileiro imputa a obrigação de indenizara sujeitos que não se encontram em posição econômica quelhes permita socializar os custos da atividade. São elas:

a) queda ou arremesso de coisas. O sujeito atingido porcoisas caídas ou lançadas de um prédio tem o direito àindenização pelos danos que sofrer. Devedor da obrigaçãode indenizar é, em princípio, o habitante do prédio, aqueleque nele reside ou exerce atividade econômica ouprofissional. O habitante pode ser o proprietário, possuidor,usufrutuário, locatário ou comodatário do imóvel. Suaresponsabilidade decorre do fato de usar o bem. Estandodesabitado o imóvel, a responsabilidade é imputada aoproprietário.

A responsabilidade é objetiva e, portanto, independe de

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culpa: tanto faz se a coisa caiu por descuido ou foipropositadamente lançada, responde pelos danos ohabitante. Nos termos da lei, “aquele que habitar prédio, ouparte dele, responde pelo dano proveniente das coisas quedele caírem ou forem lançadas em lugar indevido” (CC, art.938).

O dispositivo refere-se à queda ou lançamento de coisassólidas (dejectis) ou líquidas (effusis), e, para constituir-se aobrigação, deve ser inapropriado o local em que se projetam.O atingido deve ter a expectativa da indenidade, porencontrar-se em lugar onde não se devem arremessar coisas.Havendo, por exemplo, demarcação ostensiva e clara de sera área destinada a recolha de entulho nas proximidades deuma demolição, não incide esta específica norma deresponsabilidade objetiva (Gonçalves, 2002:242/243).

Em alguns casos, pode ser impossível à vítimaidentificar de que parte do prédio a coisa caiu ou foiarremessada. Num condomínio de edifício, cada apartamentoou escritório é uma unidade autônoma. Se o pedestre nacalçada é atingido por coisa lançada dum prédio deapartamentos, nem sempre se consegue identificar comprecisão a unidade do responsável. Ela pode ter sidoarremessada, por exemplo, de qualquer dos apartamentoscom janelas para a rua, situados entre o quinto e o décimopavimento, mas não se consegue individuar com maiorexatidão a unidade de que partiu o arremesso. Em casos tais,

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a responsabilidade será solidária entre todos os habitantesde cujas unidades a coisa poderia ter sido lançada. Note-seque, nesta hipótese, o condomínio não é o sujeito passivoda relação obrigacional; são-nos os habitantes de todas asunidades de que poderia ter partido a coisa (Rodrigues,2002:131/132; Pereira, 1989:114/115).

O habitante do prédio, ou de partedele, responde objetivamente pelosdanos ocasionados pela queda ouarremesso de coisas sólidas oulíquidas em lugares indevidos.

Caindo a coisa acidentalmente, o fato tem repercussõesexclusivas na órbita civil, criando a obrigação de o habitanteindenizar os danos eventualmente causados. Quandodolosamente arremessada, porém, caracteriza-se tambémilícito penal. Lembra Maria Helena Diniz, no tratamento dotema, a contravenção penal tipificada como “arremessar ouderramar, em via pública, ou em lugar de uso comum, ou deuso alheio, coisa que possa ofender, sujar ou molestar

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alguém” (Dec.-lei n. 3.688/41, art. 37) (2003:492).b) Estado de necessidade e legítima defesa de terceiro.

A remoção de perigo iminente não constitui ato ilícito, porexpressa determinação legal (CC, art. 188, II). Aquele quesacrifica direito alheio para salvar o seu de perigo iminentenão pratica ato ilícito. Mas os danos derivados da remoçãode perigo iminente devem ser indenizados. Por se tratar deindenização por ato lícito, é ela objetiva, independente deculpa. Se alguém, para fugir de assalto, acelera o carro e, nafuga empreendida, danifica outro veículo ou atropelapedestre, seu ato é plenamente lícito porque destinado aremover perigo iminente. Deverá, contudo, indenizar osprejuízos provocados (CC, art. 929).

A obrigação de indenizar danos causados pela remoçãode perigo iminente não existe se o prejudicado teve culpapelo risco. Só é devida a indenização pelo autor de danos naremoção de perigo, quando criado este por terceiro (RT,509/69). São, então, três os personagens envolvidos: oculpado pelo risco, o autor do dano e o prejudicado. Emboralícito o comportamento do autor do dano, deve ele indenizaro prejudicado. Terá, contudo, direito de regresso contra oculpado (CC, art. 930, caput). Por exemplo: Antonio, para nãoser atropelado por Benedito — que trafegava com seuveículo em alta velocidade numa rua exclusiva de pedestres—, joga-se para o lado e acaba caindo sobre Carlos,machucando-o seriamente. Antonio, autor dos danos, é

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obrigado a indenizar Carlos, o prejudicado, e, depois, podecobrar o valor pago de Benedito, o culpado pelo perigo.Note-se que, sendo o risco causado por fortuito, como nahipótese de desgoverno do veículo, não haverá obrigaçãode indenizar, porque descaracterizada a relação decausalidade. Neste caso, cada um arca com os prejuízos quesofreu (Cap. 11, item 3.c).

Igual ação tem o autor dos danos contra o beneficiadopor ato de legítima defesa de terceiro (CC, art. 930, parágrafoúnico). Aqui a situação é semelhante à do estado denecessidade, mas envolve quatro personagens: o agressor,o defendido, o defensor e a vítima. Se o defensor, paraimpedir que o agressor lese o defendido, acaba causandodanos à vítima, ele é obrigado a indenizá-los (RT, 795/156),malgrado sua ação de legítima defesa tenha sido lícita (CC,art. 188, I). Por exemplo: Darcy aponta arma de fogo contraEvaristo, ameaçando-o de morte. Nesse momento, chegaFabrício, irmão de Evaristo. Ele também está armado edispara contra Darcy, que consegue fugir ileso. O projétildisparado por Fabrício, porém, mata Germano, quetransitava pelo lugar. O ato de Fabrício (defensor) é lícito,porque praticado em legítima defesa da vida do irmãoEvaristo (defendido), mas ele tem responsabilidade objetivapelos danos causados aos dependentes de Germano(vítima). Deve pagar a indenização e, depois, cobrá-la emregresso de Darcy (agressor).

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Os danos causados na remoção deperigo iminente (estado denecessidade) ou legítima defesa devemser indenizados se o prejudicado nãotiver sido o culpado. Trata-se deresponsabilidade objetiva porque o atocausador dos danos é lícito.

c) Danos causados por animal. O dono ou o detentordo animal responde objetivamente pelos danos por elecausados (CC, art. 936). Hipóteses ilustrativas encontram-senos lamentáveis casos de lesão física ou mesmo mortecausadas por cães de guarda (em especial, de raças de maioragressividade, como doberman, fila, rotweiller, pitbull etc.).Como é objetiva a responsabilidade, não interessa se o donoteve ou não culpa, se mantinha ou não o bicho sob devidavigilância e guarda, se o educara convenientemente ou não.Basta, para sua responsabilização, que o animal tenha

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causado dano a outrem. A responsabilidade do detentortambém é objetiva. Se o animal não pertencia a quem seencontrava na posse dele no momento do evento danoso, oprejudicado pode pleitear a indenização contra o dono ou opossuidor. Se o cavalo morde criança quando montado poramigo do seu proprietário, respondem ambos (dono edetentor) pelos danos.

O dono ou detentor do animal só não responde pelosdanos se provarem a culpa da vítima ou força maior. Assim,se o cão mordeu alguém que o atiçava ou o gado danificou oveículo que trafegava pelo pasto, não há responsabilidadedo dono por ser da vítima a culpa. Por outro lado, se o donotrazia o cão de guarda à coleira, de forma regular, mas sofreufulminante ataque cardíaco e não pôde mais segurar oanimal, verifica-se o fortuito excludente deresponsabilização.

A responsabilidade por fato do animal é objetiva,qualquer que seja a natureza deste. Não há dúvidas de quedanos provocados por animal domesticado (cães, gatos,cavalos etc.) geram a obrigação de indenizar. Também nãohá quanto à responsabilidade dos donos ou detentores deanimais selvagens sobre os quais exerçam a guarda (leões decirco, tigres do jardim zoológico etc.). Mas, os fatos deanimais silvestres ou selvagens que vivem soltos no habitatnatural correspondem a casos fortuitos. Por eles nãoresponde, por exemplo, o proprietário do imóvel onde se

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verificou o dano. Outro aspecto da questão a considerar é airrelevância do caráter da ação do animal. É indiferente se obicho agiu conforme a expectativa normalmente nutrida emrelação à sua espécie ou raça (secundum naturam) ou demodo inesperado (contra naturam sui generis); nas duashipóteses, o dono ou detentor terá responsabilidadeobjetiva (Pereira, 1989:107). Não se exonera, portanto, daobrigação de indenizar o proprietário do cão de raça tidacomo dócil que, frustrando a expectativa nutrida em relaçãoao seu comportamento, morde violenta e repentinamentealguém.

O dono ou detentor respondeobjetivamente pelos danos causadospelo animal, mesmo que seucomportamento tenha sido inesperadoem razão da espécie ou raça. Libera-seda obrigação apenas se provar culpada vítima ou força maior.

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Se o dano provocado pelo animal verifica-se numarodovia, a titular ou concessionária desta também temresponsabilidade objetiva pela indenização (CDC, art. 14;CTB, art. 1º, § 3º) (RT, 803/243), malgrado entendimentojurisprudencial em sentido contrário (RT, 815/187). Oprejudicado, neste caso, pode optar por responsabilizá-la ouao dono ou detentor do animal. Tenderá a demandar a titularou concessionária da rodovia, até mesmo porque, deordinário, faltar-lhe-ão meios para identificar o dono oudetentor.

7. RESPONSABILIDADE POR DANO AMBIENTALAté meados do século passado, os impactos trazidos

pelas atividades econômicas ao meio ambiente eramconsiderados ônus da sociedade. Suportá-las era necessáriopara que pudéssemos ter acesso aos produtosindustrializados, a transportes mais rápidos, à comodidadeda vida urbana. Toda atividade humana representa umainteração com o meio ambiente; mas, a partir de certa medida,essa interação o degrada. Em meados do século passado,percebeu-se a urgência na adoção, no mundo todo, demedidas de sustentabilidade do meio ambiente. Asatividades produtivas deveriam reduzir a degradação alimites controláveis, que não pusessem em risco a naturalsobrevivência do planeta e dos seres que nele habitam.

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Formulou-se, então, o princípio jurídico do poluidor-pagador, que transferiu o ônus da degradação do meioambiente de toda a sociedade para o exercente da atividadepoluidora.

No Brasil, a lei imputa ao poluidor a responsabilidadeobjetiva pelos danos causados ao meio ambiente por suaatividade (Lei n. 6.938/81, art. 14, § 1º), expressando, assim, oprincípio do poluidor-pagador. Há os que consideram aobjetivação da responsabilidade por danos ao meioambiente fundada em norma constitucional (Venosa, 2001,4:149/153). Apontam o art. 225, § 3º, da CF como disposiçãoatributiva de responsabilidade civil objetiva. Não concordo.O preceito constitucional em foco cuida das atividadesconsideradas lesivas ao meio ambiente passíveis de sançãopenal e administrativa, e, portanto, de atos ilícitos. Trata-sede norma sobre responsabilidade aquiliana. No Brasil, assim,a responsabilidade do poluidor é objetiva por força de leiordinária em vigor desde 1981.

Qualquer sujeito de direito — pessoa física ou jurídica,pública ou privada — é poluidor quando desenvolveatividade causadora de degradação ambiental (art. 3º, IV). Osempresários e o Estado, assim, são objetivamenteresponsáveis pelos danos ao meio ambiente que asrespectivas atividades causarem. Veja que qualquer pessoapode contribuir para a degradação do meio ambiente. Oconsumidor, ao jogar pilhas usadas no lixo comum, o dono

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de automóvel de passeio, ao expelir o motor de seu veículogás carbônico, e o proprietário de terreno em cidade praiana,ao remover árvores para construir a casa de veraneio, estãosendo poluidores do meio ambiente. A imputação daresponsabilidade objetiva pelos danos, porém, nãoconsegue alcançar todas as hipóteses de degradaçãoambiental, até mesmo porque a lei menciona a exploração deuma atividade como sua causa.

Em razão do princípio poluidor-pagador, a pessoa física ou jurídica,pública ou privada, ao exploraratividade que importe degradação domeio ambiente, torna-se objetivamenteresponsável pela indenização dosdanos.

Além da regra geral atributiva de responsabilidade civilobjetiva por danos ao meio ambiente, a ordem jurídica cuida

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de hipóteses específicas, sempre responsabilizando opoluidor independentemente de culpa. Por exemplo, noscasos de acidentes nucleares (CF, art. 21, XXIII, c; Lei n.6.453/73, art. 4º), rejeitos radioativos (Lei n. 10.308/01, arts. 19e 20) e resíduos de agrotóxicos (Lei n. 7.802/89).

A complexidade da matéria relacionada à indenizaçãodos danos causados ao meio ambiente justifica seu estudoaprofundado em disciplina própria, o direito ambiental. Numcompêndio de direito civil, cabe apenas mencioná-labrevemente na lista das hipóteses de responsabilidadeobjetiva.

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Capítulo 24

EXCLUSÃO DARESPONSABILIDADE

1. ELEMENTOS E EXCLUDENTES DARESPONSABILIDADE

Recordando: os elementos da responsabilidade civilvariam segundo a espécie. Quando subjetiva, são três: a)culpa do devedor; b) dano patrimonial ou extrapatrimonialdo credor; c) relação de causalidade entre a conduta culposado devedor e o dano do credor. Já no caso da objetiva, dois:a) dano patrimonial ou extrapatrimonial do devedor; b)relação de causalidade entre ato ou atividade do devedor e odano do credor.

O ônus de provar os elementos constitutivos daresponsabilidade civil é, em princípio, da vítima

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(demandante). Assim é independentemente da espécie deresponsabilidade, subjetiva ou objetiva. Em alguns casosparticulares, com o objetivo de prestigiar o princípio daindenidade, essa regra geral é excepcionada. Assim, quandoo dano decorre de ruína de prédio em construção ou pronto,a lei presume a culpa do proprietário (Cap. 22, item 6). Outroexemplo: nos acidentes de consumo, quando verossímil aalegação do consumidor lesado, a lei autoriza a inversão doônus probatório. Neste caso, ao fornecedor demandadocaberá provar a inexistência dos elementos de suaresponsabilidade. Se responde subjetivamente, como osprofissionais liberais, poderá exonerar-se provando inclusivea inexistência de culpa; mas, se a responsabilidade éobjetiva, só será liberado da obrigação de indenizarprovando a inexistência do dano ou da relação decausalidade.

Mesmo quando o ônus de prova dos elementos daresponsabilidade civil cabe à vítima, o demandado poderesistir à pretensão aduzida suscitando uma excludente deresponsabilidade. Se o fizer, é dele o ônus de prová-la.Note-se, ao réu duma ação de indenização civil abrem-seduas alternativas estratégicas: aguardar o autor sedesincumbir do ônus de provar os elementos daresponsabilidade, apostando no seu insucesso, ou arguir eprovar uma ou mais excludentes. Os riscos e vantagens decada estratégia serão sopesados pelo advogado que

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patrocina a defesa dos interesses do demandado.São três as excludentes de responsabilidade:

inexistência de dano ou da relação de causalidade e acláusula de não indenizar.

Verificada a excludente, aresponsabilidade civil não se constitui.

São três as razões de exclusão daresponsabilidade civil, subjetiva ouobjetiva: a inexistência de danos ou darelação de causalidade e a cláusula denão indenizar.

À vítima, em princípio, cabe provaros elementos constitutivos daresponsabilidade civil, enquanto aodemandado incumbe a prova daexcludente que tiver suscitado.

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As excludentes são comuns a ambas as espécies deresponsabilidade civil, tendo em vista que, abstraído opressuposto subjetivo (conduta culposa do devedor),equivalem-se seus elementos constitutivos da obrigação deindenizar: dano e relação de causalidade. A inexistência dedano (item 2) ou da relação de causalidade (item 3), bemcomo a cláusula de irresponsabilidade (item 4) excluem tantoa responsabilidade civil subjetiva como a objetiva.

2. INEXISTÊNCIA DE DANOO dano do credor é indispensável à constituição da

obrigação de indenizar. Pode ser pequeno ou grande,individual ou coletivo, patrimonial ou não — sua ocorrênciaé condição inafastável da responsabilidade civil subjetiva ouobjetiva. Mesmo que o ato do demandado tenha sido ilícitoou sua atividade tenha exposto direitos do demandante aconsideráveis riscos, se não houve danos, não se criaqualquer vínculo obrigacional.

A prova do dano compete à vítima. Ela deve apresentardocumentos, produzir perícia ou trazer testemunhas quecomprovem, em juízo, o prejuízo sofrido. É de suaresponsabilidade, também, a prova da extensão dos danos(RT, 803/391). Em homenagem ao princípio da indenidade,assentaram-se certos padrões que facilitam a prova. Assim,

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admite-se que o proprietário de veículo abalroado emacidente de trânsito orce o conserto em duas ou três oficinasidôneas, contrate o serviço da mais barata delas, pague poreles e, na sequência, ajuíze a ação reparatória pleiteando aindenização. Este procedimento, embora não previsto em lei,é tradicionalmente adotado, com vistas a abreviar o tempode não uso do veículo danificado e reduzir, no interessetambém do devedor, o montante dos prejuízos.

Todos os danos devem ser provados, porque não sepresumem. Quando se trata de prejuízos ao patrimônio docredor, a prova costuma ser mais fácil. Fotografia do bemdanificado e documentos como recibos de despesas, notasfiscais e orçamentos muitas vezes são suficientes para ademonstração do dano e sua extensão. Em casos maiscomplexos, assim os de acidente de consumo, danosambientais ou ao patrimônio histórico, uma perícia técnicapode ser necessária. Já em relação aos danos morais, por serinacessível a intimidade emocional da vítima, a prova é maisdifícil. Há a tendência de se presumir a dor em casosespecíficos, como a morte de filho (RT, 802/176, 794/308).Ela, porém, não representa a melhor forma de tratar a matéria.A demonstração do sofrimento moral digno de compensaçãopecuniária deve ser feita pela vítima (RT, 797/277), ainda quepor elementos indiciários, variáveis segundo ascircunstâncias do caso. A presunção do dano estimula aautovitimização e a simulação da dor, e não tem base no

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direito positivo.Caso a vítima não prove a verificação do dano e sua

extensão, não terá direito à indenização, mesmo que odemandado não tenha suscitado qualquer excludente deresponsabilidade.

Se o demandado alegar que não existiu dano, é dele oônus de prova deste fato desconstitutivo do direito àindenização (RT, 803/391). A regra é igual para os danospatrimoniais e morais. Se o réu afirma que a vítima nãoexperimentou nenhuma dor merecedora de reparaçãopecuniária, deve demonstrá-lo. Também é dele o ônus deprovar a presença de qualquer fator de redução do valor daindenização, como o baixo grau de sua culpa, a culpaconcorrente da vítima ou, no caso de danos morais, a poucasensibilidade dela para eventos como o danoso (Cap. 25,subitens 1.1 e 3.4).

O dano e sua extensão devem serprovados pela vítima, tanto nahipótese de responsabilidade subjetivacomo na objetiva. A regra também seaplica aos danos morais, que não

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devem ser presumidos em nenhumcaso. Se o demandado alegar ainexistência do dano ou questionar aextensão pretendida pela vítima, é deleo ônus de provar os fatoscorrespondentes.

Do cotejo das provas produzidas (ou não) pelas partesdo processo, o juiz, norteado pelas regras de distribuição doônus probatório, decidirá se ocorreu o dano e, em casopositivo, qual a extensão.

3. INEXISTÊNCIA DE RELAÇÃO DE CAUSALIDADEPara que se constitua a responsabilidade civil, em

qualquer caso, é necessário que exista um liame entre credore devedor. A responsabilidade civil existe quando não hávínculo negocial entre os sujeitos obrigados ou ele écircunstancial, quer dizer, irrelevante para a constituição daobrigação de indenizar. A relação creditória deriva, então,necessariamente de vínculo diverso da manifestação devontade dos sujeitos obrigados (ou de um deles apenas).

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Praticado o ato ilícito ou verificado o fato descrito na normajurídica (provocar culposamente acidente de trânsito,oferecer bens ou serviços ao mercado de consumo, ter filhomenor causador de prejuízo, cometer crime etc.), constitui-seo vínculo obrigacional.

A norma descritiva dos fatos ensejadores daresponsabilidade civil toma como causa do dano algum atoou atividade do devedor. Somente se constitui o vínculoobrigacional se cumprido este requisito, portanto. Querdizer, quando o dano sofrido pelo demandante não foicausado pelo demandado, não há direito à indenização. Oatropelado deve ser indenizado pelo motorista do veículoapenas quando a causa do acidente for imputável a esteúltimo. Se o atropelamento ocorreu por culpa da própriavítima (desatenta ao atravessar a rua fora da faixa), deterceiro (que deu um tiro no pneu do carro, desgovernando-o) ou por fortuito (motorista jovem e saudável sofreufulminante ataque cardíaco enquanto dirigia), não há relaçãode causalidade entre o dano do demandante e a conduta dodemandado.

A relação de causalidade é condição da obrigação deindenizar tanto na hipótese de responsabilidade subjetivacomo objetiva — é dispensada apenas na subespécieobjetiva pura, de cujo estudo se ocupam ramos do direitopúblico (Cap. 21, subitem 5.2). A exclusão deste elemento deresponsabilização verifica-se em três hipóteses: caso fortuito

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ou de força maior (subitem 3.1), culpa de terceiro (subitem3.2) e culpa exclusiva da vítima (subitem 3.3). Desse modo,ao demandante compete a prova da relação de causalidadeentre o dano que sofreu e ato ou atividade do demandado(cf. Noronha, 2003a:748/450). A este último, caso tenhaalegado a excludente de inexistência da relação, cabe provaro fortuito, a culpa de terceiro ou exclusiva da vítima.

3.1. Caso fortuito ou de força maiorFortuito — caso fortuito e de força maior são

sinônimos (Fonseca, 1932:85/103), por isso uso apenas aprimeira expressão — é todo evento desencadeador dedanos em que não há culpa de ninguém. Caracteriza-se porsua imprevisibilidade ou inevitabilidade. No dizer da leiargentina, corresponde a todo fato “imprevisível ou, seprevisível, inevitável” (cf. Iturraspe, 1982, 3:39). Assim, nemtodo fortuito é imprevisível, mas sempre será inevitável. Ainevitabilidade do dano pode originar-se da impossibilidadede antecipar-se a ocorrência do evento desencadeador ou dade obstar seus efeitos. A queda de um cometa na Terra podeser evento previsível, mas, por enquanto, é totalmenteinevitável. Em ocorrendo, os danos que provocar não serãoindenizáveis.

A inevitabilidade pode ter razões diversas. Em primeirolugar, como visto, explica-se pelo desconhecimento de suaocorrência. Se o dano é imprevisível, não há como evitá-lo,

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claro. Raios “caem” no solo a todo momento, mas não épossível antecipar o seu local exato. Está-se aqui diante deinevitabilidade cognoscitiva. Em segundo lugar, podedecorrer da insuficiência dos conhecimentos científicos etecnológicos amealhados pela humanidade. A queda docometa ilustra a hipótese. Neste caso, a inevitabilidade ématerial, porque em nenhuma circunstância o fato previsívelpoderia ter seus efeitos bloqueados. Em terceiro lugar, oinevitável pode derivar da falta de economicidade nasmedidas destinadas a obstar os efeitos do evento. Numcarro popular, não há condições de se instalar airbag. Defato, o custo dessa instalação aumentaria o preço do veículode tal modo, que ele deixaria de ser popular; não maisatenderia ao consumidor de baixa renda. Os danos pessoaisque poderiam ser evitados por aquele dispositivo desegurança tornam-se inevitáveis não pela imprevisibilidadeou materialidade do evento, mas apenas por razões deracionalidade econômica. Trata-se, aqui, de inevitabilidadeeconômica.

Em todos os casos de inevitabilidade, verifica-se ofortuito e não haverá relação de causalidade entre o dano docredor e ato ou atividade do devedor. Na hipótese deinevitabilidade econômica, é necessário distinguir ainexistência de recursos da sua utilização mais racional.Explico com dois exemplos. Em São Paulo, em dois ou trêsdias por ano, devido às fortes chuvas do verão, a passagem

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de nível do vale do Anhangabaú enche de água, causandodanos aos motoristas surpreendidos com a enchente. Trata-se de evento totalmente previsível, mas o custo das obrascapazes de evitar seus efeitos é enorme, muito maior que osdanos causados. A Prefeitura até dispõe dos recursos pararealizá-las, mas decididamente há outras demandas muitomais relevantes a serem atendidas, não só no melhoramentoda malha viária como no campo da saúde, educação, moradiae transportes públicos. Destinar os recursos existentes paraevitar a enchente no local naqueles poucos dias do verãonão parece ser o emprego mais racional deles, em face deoutras demandas que poderiam atender. Aqui, não háfortuito, e as vítimas devem ser indenizadas pelos danosdaquelas enchentes anuais. Pense, agora, num municípiopobre, em que os recursos econômicos sãoinquestionavelmente insuficientes para a manutenção dumhospital ou de ambulância aérea. Os doentes devem, sempreque precisam de internação hospitalar, viajar centenas dequilômetros, por estradas de terra ou asfalto precário, até acapital. É previsível que a falta do hospital e o tempo daviagem causem a morte de algumas pessoas. Como não hárecursos para obstar os efeitos desses fatos, porém, verifica-se a inevitabilidade do fortuito. Não há direito à indenização,neste caso.

Dois são os tipos de fortuito. De um lado, os fatos danatureza, como a queda do cometa, de raio, inundação,

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furacão, terremoto, desmoronamento etc. Vou chamá-lofortuito natural. De outro, atos humanos não culposos,como a produção em massa, prestação de serviçosempresariais, atendimento ao interesse público etc. Designo-o fortuito humano.

Não basta para caracterizar o fortuito natural, note-se,que o evento desencadeador dos danos seja fato danatureza (Dias, 1954, 2:364). É necessário que também severifique a inevitabilidade (cognoscitiva, material oueconômica). Se, num ano, fortes chuvas de verão, em nívelpluviométrico recorde, causa inundações diversas pelacidade, em pontos que nunca antes se tinham verificado, háfortuito. Se danos de igual intensidade se repetem mais umaou duas vezes, ainda é possível falar em imprevisto. A partirda terceira repetição, porém, não há mais imprevisibilidade(inevitabilidade cognoscitiva). Se houver meios de preveniros efeitos danosos (evitabilidade material) e recursos paracusteá-los (evitabilidade econômica), deixa de existir ofortuito. Considera-se, então, que a falta de obras deprevenção é a causa dos danos (RT, 787/425).

O fortuito humano caracteriza-se também pelainevitabilidade dos danos. Como já assentado, por maisdiligente e cuidadoso que seja o empresário a respeito docontrole de qualidade de seus produtos e serviços, pormaior que seja sua preocupação quanto à segurança detrabalhadores e consumidores, dentro duma margem

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estatística, erros acontecem inevitavelmente. Deve-se isto àfalibilidade inerente à condição humana, fatordesencadeador de danos que nenhum empresário tem meiosde neutralizar de forma absoluta. A inevitabilidade é material.Não se pode falar em culpa, porque o empresário e seusempregados e colaboradores não são negligentes,imprudentes, imperitos, nem têm a intenção deliberada deprovocar prejuízos. Ao contrário, são diligentes, prudentes,competentes e bem intencionados. Como são humanos,porém, falham, e de suas falhas decorrem danos. Causam umtípico acidente inevitável da era contemporânea.

Os autores que consideram qualquer hipótese deresponsabilização como decorrência de ato com algum traçode desconformidade relativamente ao Direito e que,portanto, rejeitam a ideia da responsabilidade objetiva comoconsequência de prática lícita, por coerência questionam anoção de fortuito humano. Para Jorge Mosset Iturraspe, porexemplo, o fortuito é tipicamente um fato da natureza (1982,3:39/46).

O fortuito é todo eventodesencadeador de danos não originadopela culpa de alguém. Pode referir-se

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a fatos da natureza (enchentes, quedade raio, terremoto) ou humanos(produção em massa, prestação deserviços empresariais).

A característica fundamental dofortuito é a inevitabilidade. O evento éinevitável em razão daimprevisibilidade (inevitabilidadecognoscitiva), da incapacidadehumana de obstar seus efeitos danosos(inevitabilidade material) ou da faltade racionalidade econômica em obstá-los (inevitabilidade econômica).

O fortuito natural ou humano ésempre excludente daresponsabilidade civil subjetiva,

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porque descaracteriza a relação decausalidade entre o dano do credor e aconduta culposa do devedor. Quandoobjetiva a responsabilidade, porém,apenas o fortuito naturaldescaracteriza a relação decausalidade.

O fortuito, natural ou humano, exclui a responsabilidadesubjetiva em qualquer hipótese. Se o prédio ruiu em razão defato natural imprevisível, o dono não é obrigado pelosdanos. Da mesma forma, se o empresário emprega os maismodernos instrumentos de segurança do trabalho e treinaadequadamente seus empregados, o acidente de trabalhocertamente não decorreu de culpa sua e pode ter derivado defortuito humano. Por isso, o empresário não seráresponsável pela indenização do empregado acidentado. Notocante à responsabilidade objetiva, contudo, apenas ofortuito natural é excludente. A objetivação daresponsabilidade visa transferir as consequências dofortuito humano — da vítima para o agente que detém as

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condições econômicas de socializar custos. Para alcançar talobjetivo, este tipo de fortuito não pode evidentemente servirde excludente. Desse modo, se o jovem que assistia a showde rock no gramado dum estádio é atingido por um raio (nãoatraído pelos para-raios do local), o fortuito natural exclui aresponsabilidade do empresário promotor do espetáculo. Aocontrário, se aquele jovem é pisoteado por outrosespectadores, que procuravam atabalhoadamente abandonaro local quando o palco incendiou-se, o defeito no serviçocausador de acidente de consumo não é excludente deresponsabilidade do empresário, mesmo caracterizando-secomo fortuito humano por não ter havido culpa de ninguémpelo incêndio.

3.2. Culpa de terceiroA culpa de terceiro desfaz o liame de causalidade entre a

conduta do devedor (culposa ou não) e os danos cujaindenização se pleiteia. O exemplo típico é o do acidente detrânsito entre três veículos que trafegam no mesmo sentidopor via de dupla mão de direção. O motorista do veículo A,que vai à frente, para para convergir à esquerda em manobranão permitida naquele local. Logo atrás, para também oveículo B. O motorista do veículo C, que vinha por último,porém, não freia e provoca a colisão (Azevedo, 1994:52). Oproprietário do veículo A não tem direito de pleitear aindenização contra o motorista do veículo B, embora seu

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carro tenha sido danificado por este. Não há relação decausalidade entre a conduta do motorista do veículo B e osdanos em A, porque a culpa do acidente de trânsito é deterceiro, isto é, do condutor de C. A infração de trânsitocometida por quem dirigia A, embora represente condutareprovável e culposa, não poderia ter sido, por ela apenas,causa do evento danoso. Por esta razão, o únicoresponsável pela indenização é o condutor de C, que nãobrecou o veículo a tempo de evitar o choque (RT, 607/117).

A exemplo do fortuito, o ato culposo de terceiro, paradescaracterizar a relação de causa e efeito e excluir aresponsabilidade do demandado, deve ser inevitável(Rodrigues, 2002:173). A inevitabilidade pode originar-se desua imprevisibilidade ou de obstáculos materiais. O buracona rodovia sem a devida sinalização deve-se à culpa daconcessionária. A imprevisibilidade deriva da legítimapresunção do motorista de que não seria surpreendido porum defeito dessa ordem na pista. A inevitabilidade materialencontra-se no exemplo acima da colisão envolvendo trêsveículos. O motorista do veículo B podia, pelo espelhoretrovisor, antever a colisão, mas nada poderia fazer paraimpedi-la.

Quando a culpa pelo evento danoso é

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de terceiro, desconstitui-se a relaçãode causa e efeito entre o prejuízo davítima e o ato ou atividade dodemandado. Neste caso de excludente,a vítima terá direito de promover aresponsabilização do terceiro culpado.

Quando a culpa é do terceiro, exclui-se aresponsabilidade do demandado cuja conduta ou atividadenão causou o dano. Não se exclui, por evidente, a do terceiroresponsável, contra quem a vítima deve voltar-se. Note-seque são independentes as situações do primeiro e dosegundo demandado. Aquele pode ter responsabilidadesubjetiva e este, objetiva, ou vice-versa. Cada qualresponderá segundo o direito aplicável. Se o motorista bateseu carro em outro, em razão da manobra que fez paracontornar o imprevisível buraco na rodovia, o primeirodemandado teria em tese responsabilidade subjetiva. Aalegação e prova da excludente de culpa de terceiro (nocaso, a concessionária rodoviária) exonera-o de qualquerobrigação. Quando a vítima demandar a concessionária,imputará àquele segundo demandado responsabilidade

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objetiva.A excludente relacionada a culpa de terceiro, no

contexto da responsabilidade objetiva, envolve umaespecificidade. Deve-se distinguir entre atos de terceirosinternos e externos (cf. Dias, 1954, 2:360). Note-se quealguns autores preferem falar em fortuito interno ou externo(Rodrigues, 2002:178/179), ao tratar do mesmo assunto. Dequalquer modo, apenas os externos são excludentes deresponsabilidade.

A classificação do ato culposo de terceiro como internoou externo depende do exame da atividade do demandado edas expectativas legítimas que ela desperta nas pessoasexpostas aos seus riscos. Se o demandado explora atividadede que se espera certa garantia, será interno o ato culposode terceiro que a frustre. Haverá, neste caso,responsabilização pelos danos decorrentes. De outro lado,se da atividade explorada pelo demandado não se esperadeterminada garantia, a frustração desta por culpa deterceiro configura ato externo. Aqui, opera-se a excludenteda responsabilidade objetiva, e a vítima só pode demandar ocausador culpado do dano.

Para compreender o critério de classificação cogite-se deduas atividades empresariais: banco e transporte urbano porônibus. Em relação à primeira, nutre-se legítima expectativade segurança relativamente aos crimes contra o patrimônio.O banco organiza-se fortemente para proteger seu

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patrimônio. Espera-se, pois, que a segurança organizadapelo empresário no interesse de seu próprio negócio tambémampare os clientes enquanto se encontram no interior daagência bancária. Em havendo roubo, furto, estelionato,latrocínio ou outros crimes que vitimem alguém que seencontrava numa agência de banco, verifica-se ato deterceiro interno. O banco, assim, é responsável por indenizaro cliente na hipótese de furto de talonário de cheques ecartão emitido em seu nome praticado na agência por quemnão era seu empregado ou preposto (RT, 784/186; 806/193).

Ao seu turno, o empresário do transporte coletivo porônibus explora atividade de que se esperam legitimamentedeterminadas garantias associadas ao meio empregado. Seocorrer acidente de trânsito, o passageiro deve serindenizado pela empresa de transporte, ainda que o eventodanoso tenha sido causado por clara culpa do motorista dooutro veículo envolvido. Neste caso, o ato do terceiro éinterno à atividade do devedor, porque diretamente ligadoao serviço de transporte pelas ruas da cidade, onde apossibilidade de acidente de trânsito está sempre presente.Observa-se, então, a Súmula 187 do STF, pertinente aqualquer meio de transporte: “a responsabilidade contratualdo transportador, pelo acidente com passageiro, não é ilididapor culpa de terceiro, contra a qual tenha ação regressiva”.

Quando, porém, o dano decorre de frustração a garantiaque não se espera especificamente da atividade em questão,

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o ato culposo de terceiro que o causa é classificado comoexterno. Se motorista tresloucado lança seu veículo sobre ocaixa eletrônico e causa danos ao cliente que se encontravaem seu interior, não há responsabilidade do banco. Damesma forma, a empresa de transporte de pessoas nãoresponde por assalto a seus passageiros (RT, 785/396),assim como a de carga não pode ser responsabilizada peloseu roubo à mão armada (RT, 816/232).

A exclusão de responsabilidade objetiva por ato deterceiro é, contudo, ainda controvertida. Não é pacífico quea excludente tem cabimento só quando a conduta culposado terceiro é externa à atividade do demandado. Há decisõesjudiciais, de um lado, isentando empresas de transportecoletivo urbano da obrigação de indenizar quando oacidente de trânsito tenha sido provocado por terceiros (RT,799/246) e, de outro, imputando-lhes responsabilidade pordanos decorrentes de um crime de estupro, porque a vítimacomeçou a ser perseguida pelos estupradores dentro doônibus (Couto, 2001, julgado 050), ou de ferimento à bala depassageiro que se encontrava na plataforma de embarque(RT, 795/228).

3.3. Culpa exclusiva da vítimaQuando o dano decorre de culpa exclusiva da vítima,

também não se estabelece a relação de causalidade entre elee o ato ou atividade do demandado. Na verdade, neste caso,

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é a vítima que causou o dano e não há razões para imputar-se a quem quer que seja a responsabilidade pela indenizaçãodos prejuízos. A vítima deve suportá-los inteiramenteporque foi apenas dela a culpa pelo evento danoso. Nãobasta que o demandado tenha-se envolvido direta ouindiretamente com o dano para que surja suaresponsabilidade. É necessário que seus atos ou atividadestenham sido a causa do prejuízo. A culpa exclusiva da vítimaafasta esta possibilidade.

Mesmo se objetiva a responsabilidade, a culpa exclusivada vítima é excludente. Assim, se foi seriamente lesada pormordidas de ferozes cães de guarda ao adentrar semautorização em imóvel alheio, não terá direito à indenizaçãoporque foi exclusivamente dela a culpa (RT, 787/229). Damesma forma, se as informações prestadas pelo empresárioacerca dos riscos oferecidos por seus produtos ou serviçossão adequadas e suficientes, e o consumidor sofre danospor ignorar as recomendações de segurança, não haveráacidente de consumo por periculosidade. Descaracteriza-se arelação de causalidade entre os danos e a atividadeempresarial do fornecedor porque a culpa pelo acidente éexclusiva da vítima (CDC, art. 12, § 3º, III). Se o semáforo nãoestava funcionando, mas o acidente de trânsito ocorreu porcomprovada imprudência do motorista, não responde oPoder Público, porque não se estabelece relação decausalidade entre o evento danoso e a falha na prestação do

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serviço público. Em outros termos, mesmo que o semáforoestivesse em perfeitas condições de funcionamento, oacidente teria ocorrido caso o demandante não tivesse sidoprudente. A culpa pelo dano, assim, é da própria vítima eexclui a responsabilidade objetiva do Estado (RT, 804/251).

A culpa exclusiva da vítima também é excludente nahipótese de danos extrapatrimoniais. Se exame laboratorialde tipagem sanguínea indica incompatibilidade do fator RHentre o filho e seus pais, mas estes só se interessam em fazernovo exame um ano depois, pela dor experimentada nesseperíodo não responde o laboratório. O sofrimento deveu-sea culpa exclusiva das vítimas (RT, 783/395).

Se provado que o dano decorreu deculpa exclusiva da vítima,descaracteriza-se a relação decausalidade entre ele e a conduta ouatividade do demandado. Exclui-se, emdecorrência, a responsabilidade deste.

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Para excluir a responsabilidade civil, a culpa da vítimadeve ser exclusiva. Quando há concorrência de culpa, ouseja, quando tanto demandante como demandado agiramculposamente e causaram o dano, verifica-se fato que, nodireito brasileiro, repercute unicamente no valor daindenização (CC, art. 945). Se a vítima, portanto, tevequalquer participação culposa no evento, fará jus àindenização, mas o valor desta deve ser reduzidoproporcionalmente ao grau de sua culpa (Cap. 25, subitem1.1.2).

4. CLÁUSULA DE NÃO INDENIZARCredor e devedor da obrigação de indenizar em razão de

responsabilidade civil podem, circunstancialmente, estarligados por um negócio jurídico. Isto ocorre nas hipótesesque a doutrina tradicionalmente chama de responsabilidadecivil contratual: imperícia do profissional liberal (erromédico, falha culposa do advogado ou do engenheiro civiletc.), acidente durante o transporte (por qualquer meio),acidentes de consumo quando o causador do defeito noproduto ou serviço é o fornecedor direto (varejista) etc.

Viu-se já que o negócio jurídico não é o fundamento daresponsabilidade civil, porque o devedor responde não emrazão do acordo feito com o credor, mas sim por ter incorridoem ato ilícito (responsabilidade civil subjetiva) ou por ter-secaracterizado o fato jurídico imputador da obrigação

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(responsabilidade civil objetiva). Mesmo que o negóciojurídico seja nulo — por incapacidade da parte, ilicitude doobjeto ou inadequação da forma —, a obrigação de indenizarcontinua existindo, porque sua fonte é diversa.

Pois bem, o negócio jurídico, se, de um lado, não é ofundamento da responsabilidade civil, de outro, pode conterdispositivo que a exclua. As partes podem, por acordo devontades, estabelecer que determinados danos não serãoindenizados, ou o serão dentro de um limite. É a cláusula denão indenizar ou de irresponsabilidade (Pereira,1989:305/306). Trata-se de excludente que pressupõenecessariamente vínculo negocial de contrato entre ossujeitos envolvidos (cf. Dias, 1947:241/246). Por meio dela,as partes concordam em repartir as repercussões de eventosdanosos.

Em termos gerais, por força do princípio da autonomiada vontade, qualquer dano pode ser excluído por cláusulacontratual. O sujeito pondera seus interesses e manifesta aconcordância em arcar sozinho com os danos queeventualmente vier a sofrer na execução do contrato,renunciando ao direito de pleitear indenização contra o outrocontratante, mesmo que seja da culpa deste. Numa situação,porém, a lei a considera nula: nas relações de consumo emque o consumidor é pessoa física (CDC, art. 51, I). Nestahipótese, ainda que tenha sido pactuada entre as partes, aobrigação de indenizar por responsabilidade civil existe. Nos

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contratos civis ou empresariais, ou mesmo nos de consumoem que o consumidor é pessoa jurídica (associação,fundação, sociedade microempresária destinatária final doproduto etc.), é plenamente válida a exclusão ou limitação deresponsabilidade por vontade das partes.

Quando os sujeitos da obrigação deindenizar por responsabilidade civilestão vinculados também a negóciojurídico, a vontade das partes não é ofundamento da indenização, mas podeexcluí-la ou limitá-la. A cláusula denão indenizar ou deirresponsabilidade é válida, salvo nasrelações de consumo em que oconsumidor é pessoa física (CDC, art.51, I).

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A cláusula de não indenizar deve ser expressa. Não cabeconcluir sua existência do conjunto de disposições devontade albergadas no instrumento contratual, se não existirexpressa menção à exclusão ou limitação daresponsabilidade civil de um ou de ambos os contratantes.Não existe cláusula de não indenizar implícita. Isso porqueveicula renúncia a direito, e a presunção é de que ninguémconcorda com a restrição aos seus direitos senão de formainequívoca. A cláusula de irresponsabilidade não éexcludente de indenização nos casos de culpa grave oudolo. Normalmente, a ressalva é escrita no instrumentocontratual. Mas, ainda que não venha, o contratante quetiver agido com culpa grave ou dolo deve a indenização dosdanos que provocar, a menos que haja circunstânciasespecialíssimas a marcar o caso. A cláusula deve serexpressa, mas a ressalva quanto à culpa grave ou dolo podeser implícita. Afinal, a cláusula de irresponsabilidade não éuma autorização para o contratante descuidar-se naexecução do contrato ou, pior, para intencionalmenteprejudicar a outra parte.

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Capítulo 25

INDENIZAÇÃO1. O VALOR DA INDENIZAÇÃO

A obrigação de indenizar oriunda da responsabilidadecivil é, na quase totalidade das vezes, pecuniária: o devedora paga mediante entrega de dinheiro ao credor.Excepcionalmente pode ser não pecuniária, quando odevedor cumpre sua obrigação repondo as coisas à situaçãoem que se encontravam antes do evento danoso. Em tese,assim, os danos sofridos pelo proprietário do automóvelabalroado no acidente de trânsito poderiam sercompensados de duas maneiras pelo devedor: consertandoo veículo ou entregando ao prejudicado o dinheirosuficiente para isso. Adotada a primeira maneira, ter-se-ia aresponsabilidade civil como obrigação não pecuniária (ou,como se costuma mencionar, reparação natural ou innatura); a segunda, pecuniária. Nada impede, com efeito,que o devedor seja condenado a reparar diretamente osdanos do acidente em vez de pagar ao credor o valor

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correspondente ao prejuízo (sobre a execução específica daobrigação de indenizar, ver Yarshell, 1996). No direitopositivo brasileiro, porém, há uma só hipótese deindenização que compreende a reposição da coisa objeto delesão: é a derivada de usurpação ou esbulho (CC, art. 951).

Há quem considere a reparação natural melhor que apecuniária, principalmente na composição de danosextrapatrimoniais (cf. Cianci, 2003:59/62). Na Argentina, a leia privilegia no atendimento aos danos morais, reservando àindenização em dinheiro função subsidiária (cf. Iturraspe,1982, 4:179/180). Não há, porém, esta primazia. Ao contrário,a indenização pecuniária é sempre preferível à reparaçãonatural. Impor ao devedor a obrigação de desfazer o danonunca é melhor que solucionar o conflito mediante entregade dinheiro. Claro que a alternativa tem lugar apenasnaquelas situações em que é materialmente possível odesfazimento do dano, o retorno da coisa à situação anteriorao evento danoso. No caso de danos morais, essapossibilidade simplesmente não existe. Não há como apagara dor vivenciada pelos pais em razão da morte do filhocausada por erro médico, do jovem vítima de dano estéticonum acidente de trânsito, da mulher estuprada, da pessoahonrada cujo nome foi indevidamente lançado em cadastrode inadimplentes, do trabalhador exposto a vexame ao seracusado de roubo num supermercado, da irrecuperávelperda de coisa com valor de afeição, e assim por diante.

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A reparação natural, a rigor, é mais inconveniente que asolução pecuniária. Em primeiro lugar, porque o devedorcostuma não ter o mesmo empenho que o credor teria norefazimento do estado anterior ao dano. Normalmente, oprejudicado está muito mais interessado na recuperação dacoisa do que o condenado a fazê-la. Em razão do menorinteresse, é provável que o devedor procure economizar noscustos, negligencie no controle de qualidade, não seincomode com a ausência de caprichos. O resultado dareparação natural costuma ser inferior ao que adviria derefazimento encomendado e gerenciado pelo credor daindenização. Em segundo, tende a eternizar o conflito,porque é consideravelmente maior a complexidade envolvidana outorga de quitação. Se o cumprimento da obrigaçãoconsiste em entregar quantia certa de dinheiro, não hánenhuma dificuldade em confirmá-lo ou desconfirmá-lo. Já,se consiste num fazer, o cumprimento desperta questõesatinentes a prazo, especificações e qualidade, cuja soluçãoreclama muitas vezes custosas perícias técnicas. Pense numdano ambiental ou ao patrimônio histórico e as dificuldadesque envolvem os trabalhos de restauro. Em terceiro lugar, asolução pecuniária é mais eficiente sob o ponto de vistaeconômico para ambas as partes. De um lado, para odevedor, a entrega da soma correspondente à completarecuperação do dano importa a transferência dogerenciamento da restauração e de seus riscos. De outro, o

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credor da indenização, porque não está obrigado a gastar odinheiro correspondente à prestação no refazimento da coisadanificada, pode dar-lhe emprego diverso que atenda melhorao seu interesse do momento. Diante da enormidade dosgastos, incorridos pelo causador de grave acidenteambiental no Alasca, no salvamento de alguns poucosanimais, ambientalistas lúcidos questionaram se não seriamelhor usar o mesmo dinheiro na solução de problemasecológicos de maior urgência e envergadura. Em suma, porforça das inconveniências apresentadas pela reparaçãonatural, é normalmente pecuniária a responsabilidade civil.

Embora a obrigação de indenizarpossa ser cumprida mediante areposição pelo devedor da coisa àcondição anterior ao evento danoso(reparação natural ou in natura), omais comum é que tenha a naturezapecuniária e cumpra-se pela entregaao credor do dinheiro compensador do

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prejuízo patrimonial eextrapatrimonial sofrido.

O valor da indenização dos danos pode ser fixado poracordo de vontades entre credor e devedor. São questõesrelativamente autônomas as da existência e extensão daobrigação. As partes podem estar de acordo quanto a uma,mas divergirem no tocante à outra. Se o motorista causadordo acidente de trânsito é pessoa leal e honesta, tende aassumir a responsabilidade pela indenização dos danos depronto. Neste caso, não haverá conflito de interesses acercada constituição da obrigação de indenizar. Caso concordecom o valor proposto pelo motorista do veículo danificado,o encontro de vontades alcançará também a extensão daobrigação. Se discordarem acerca do montante dos danos,provavelmente este será objeto de discussão judicial. Deigual modo, haverá disputa em juízo se inexistir consensosobre a culpa pelo acidente, mesmo concordando as partesacerca do valor dos danos. Produzida a prova da culpa, eassentada forte propensão à responsabilização, podemchegar a acordo judicial com mais facilidade. De qualquermodo, quando o valor da indenização é objeto de acordoentre prejudicado e responsável, a obrigação passa a sernegocial, sujeita às regras próprias dos negócios jurídicos

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bilaterais.Quando não há acordo sobre a obrigação de indenizar

por responsabilidade civil, a existência e extensão dessassão estabelecidas pelo juiz a partir dos parâmetros do direitopositivo. As normas que norteiam a decisão sobre aexistência dessa obrigação não negocial foram já examinadasnos capítulos antecedentes: constitui-se a responsabilidadecivil com o atendimento dos pressupostos próprios de cadaespécie — na subjetiva, a culpa do devedor, o dano docredor e a relação de causalidade; na objetiva, o dano e arelação de causalidade —, caso não se verifique excludente.Resta examinar as normas referentes à extensão daobrigação.

Sempre que a lei cria uma obrigação não negocial eladeve fixar, e em geral fixa, os critérios para a mensuração daprestação. Ao imputar a determinados sujeitos a obrigaçãode prestar alimentos, ela preceitua que o valor da prestaçãoatenderá às necessidades do alimentado e às possibilidadesdo alimentador (CC, art. 1.694, § 1º). Ao atribuir ao acionistao direito essencial ao recesso, na hipótese de dissidênciarelativamente a certas deliberações da assembleia geral,enuncia que o devido pela sociedade anônima a título dereembolso será calculado com base no valor patrimonial oueconômico da ação (LSA, art. 45). Para a quantificação daobrigação de indenizar por responsabilidade civil, as balizassão estabelecidas por algumas normas legais e, em relação

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aos danos extrapatrimoniais, por vastíssima contribuição dajurisprudência. O objeto deste capítulo final da partededicada à responsabilidade civil é o estudo dessas balizas.

1.1. A culpa e o valor da indenizaçãoA culpa pode influir no valor da indenização. Quando

referente ao sujeito passivo da obrigação de indenizar, suadesproporção em face do valor dos danos possibilita aredução equitativa pelo juiz, nos termos do art. 944,parágrafo único, do CC (subitem 1.1.1); quando referente aoativo, sua contribuição para o evento danoso reduz aindenização, por força do art. 945 do CC (subitem 1.1.2).

1.1.1. Grau de culpa do devedor

A influência do grau de culpa do devedor no valor daindenização é recente no direito brasileiro. Sob a vigência doCódigo Beviláqua, o grau de culpa era irrelevante paraquaisquer efeitos de responsabilidade civil. A existência eextensão da obrigação de indenizar independiam de ter sidoa culpa do autor dos danos levíssima ou de extremagravidade. Se pequeno erro médico causava danos de montaao paciente, isso não diminuía a quantia devida peloprofissional. A entrada em vigor do Código Reale alterousignificativamente a disciplina da matéria. Sempre que tiversido pouca a culpa do devedor, em confronto com adimensão dos danos, abre-se ao juiz a possibilidade de fixar

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indenização menor.Claro que a redução equitativa da indenização em razão

do grau de culpa do devedor impõe à vítimaresponsabilidade por parte dos danos sofridos. Ela arcadiretamente com a parcela correspondente à reduçãoproporcionada. Opera-se, então, distribuição equitativa dovalor dos danos entre responsável e prejudicado. Quantomenor o grau de culpa do devedor, mais a hipóteseaproxima-se do fortuito, em termos jurídicos, justificando-seassim a solução por equidade. O juiz não deve, nos casos deculpa leve ou levíssima, tratar o devedor da mesma formaque os culpados em maior grau; não deve, por outro lado,deixar a vítima desprotegida. Na ponderação que fizer, devebuscar o equilíbrio entre os dois polos de interesses.

Cabe a redução equitativa em qualquer hipótese deresponsabilização em que tenha havido baixo grau de culpado devedor. Nas de responsabilidade subjetiva, sempre serácabível avaliar a intensidade da conduta culposa dodevedor, tendo em vista que sem culpa não há a obrigaçãodesta espécie. Mesmo nas hipóteses de responsabilidadeobjetiva, cabe avaliar o grau de diligência e zelo do devedornas questões afetas à segurança de sua atividade. Apresença ou ausência de culpa, e o grau desta, comoassentado, é sempre irrelevante para a questão da existênciada obrigação. Para definir-se sua extensão, porém, érelevante. Se o dono do animal provar que o guardava

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cercado de todos os cuidados possíveis, ele não se exonerada obrigação porque é esta objetiva, independe de culpa;mas pode o juiz, reconhecendo a leveza da culpa, reduzirequitativamente o valor da indenização. Do mesmo modo, oempresário responde por acidente de consumo de formaobjetiva, quer dizer, ainda que tenha empregadodiligentemente na produção os mais avançados processosdisponíveis e o melhor controle de qualidade. Mas não éjusto tratar igualmente o empresário relapso e o preocupadocom a questão da segurança. Obrigado ele está, a despeitode sua diligência, mas o valor da indenização pode ser menorem função dela.

Na hipótese de ter sido baixo o graude culpa do devedor e elevado omontante dos danos, a lei faculta aojuiz que reduza equitativamente ovalor da indenização. Neste caso,distribuem-se, por equidade, os danosentre a vítima e o responsável.

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De outro lado, cabe a redução equitativa qualquer queseja a natureza dos danos a indenizar. A indenizaçãocompensatória tanto dos patrimoniais como dosextrapatrimoniais pode ter o valor influenciado pelo grau deculpa do devedor. Especialmente na fixação do valor dosdanos morais, deve o juiz fazer a ponderação equitativa,quando tiver sido de menor gravidade a culpa do devedor;com efeito, neste caso o impacto da distribuição equitativano patrimônio do credor será menor ou, por vezes, neutro.Se, numa determinada hipótese, têm os tribunais fixado odano moral em torno de 500 salários mínimos, o juiz pode,diante da pouca gravidade da culpa do devedor, reduzir aindenização correspondente a 400 ou 300 salários mínimos,por exemplo.

1.1.2. Culpa concorrente do credor

É possível, e não raro, que o dano tenha decorrido deculpa concorrente das partes. Pode-se verificar aconcorrência da culpa do credor para o prejuízo tanto nashipóteses regidas pela responsabilidade subjetiva como pelaobjetiva. Se os motoristas dos dois veículos colidentestrafegavam em velocidade excessiva, não se pode atribuir aculpa pelo acidente a nenhum deles isoladamente (RT,791/367). Se o consumidor comprovadamente sabia do

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recall e, mesmo assim, não levou o veículo ao conserto, édele também em parte a culpa pelos danos do acidente deconsumo que vier a ocorrer. Se o empregado concordou emexecutar tarefa perigosa para a qual não estava habilitado e oempregador não se opôs, há concorrência de culpas (RT,797/306).

São duas as formas de o direito da responsabilidadecivil tratar a concorrência de culpa da vítima: considerá-laexcludente de responsabilidade ou fator de redução daindenização. Nos Estados Unidos, em que aresponsabilidade civil é matéria de competência estadual enão da Federação, varia de estado para estado a disciplinalegal aplicável. Alguns estados norte-americanos adotam oprincípio da contributory negligence, em que a vítima queconcorreu culposamente para o evento danoso perde odireito à indenização. Outros consagram princípio diverso,d a comparative negligence, em que a vítima, malgrado oconcurso de culpa, tem direito à indenização, mas em valorreduzido proporcionalmente à sua participação no eventodanoso. Richard Posner registra, a propósito, que o únicoestudo empírico disponível concluiu ser menor o cuidadotomado pelos motoristas nos estados em que vigora ocomparative negligence (1992:171/175). A confirmar-se talconclusão em outros estudos, seria o caso de se considerara concorrência de culpa como excludente deresponsabilidade uma alternativa melhor, no contexto da

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política de prevenção de acidentes.No direito brasileiro vigente, de qualquer modo, a

concorrência de culpa do credor não influi na questão daexistência da obrigação de indenizar. Esta se constitui,mesmo que tenha havido culpa grave do prejudicado noevento danoso. Tem ela importância apenas na questãoconcernente à extensão da obrigação. Quando o credorcontribuiu, com sua conduta culposa, para o dano, suaindenização não pode ser integral; deve ser reduzidaproporcionalmente ao grau das culpas dos sujeitosenvolvidos. Diz a lei que a concorrência de culpa do credordá lugar à redução proporcional da indenização: “se a vítimativer concorrido culposamente para o evento danoso, a suaindenização será fixada tendo-se em conta a gravidade desua culpa em confronto com a do autor do dano” (CC, art.945).

A redução proporcional por concorrência de culpa cabe,também, em qualquer hipótese de responsabilização. Não há,na lei, nenhuma discriminação que autorize o intérprete aconsiderá-la inaplicável, por exemplo, à responsabilidadeobjetiva. Se para o acidente, além dos buracos na pista darodovia, foi decisivo também o excesso de velocidade domotorista, há culpa concorrente e o valor da indenizaçãodeve ser proporcional, a despeito de ser objetiva aresponsabilidade da concessionária (RT, 785/255). Ademais,a regra da redução por concorrência de culpa deve ser

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prestigiada até mesmo para evitar-se o enriquecimento semcausa daquele que conscientemente busca envolver-se numevento danoso (claro, de repercussões que não oincomodam em demasia) com o objetivo único de pleitear aindenização. É o caso, por exemplo, daqueles que, tendo ocheque devolvido pelo banco indevidamente, não sepreocupam em esclarecer logo o assunto. Aguardam acomunicação da ocorrência ao cadastro de emitentes decheques sem fundos (CCF), para que tenha fundamento oseu futuro pleito judicial de responsabilização. Se é certoque ao demandante, na maioria das vezes, não interessasuportar os danos, não se deve ser ingênuo a ponto dedesconhecer a figura da “vítima profissional”. De qualquermodo, mesmo que não tenha havido a intenção de serenvolvida pelo dano, a culpa concorrente da vítima é atoilícito; corresponde a conduta reprovável pela sociedade. Ocredor que contribuiu para a ocorrência do prejuízo e osimplesmente alcançado pelo dano não podem ser tratadosda mesma forma. Em suma, tanto na responsabilidade civilsubjetiva como na objetiva, se o credor concorreuculposamente para a ocorrência do prejuízo, só terá direito àindenização parcial, e deve suportar a parte do valor dosdanos correspondente à proporção de sua culpa.

É obrigatória a redução proporcional da indenizaçãoindependentemente da natureza do dano. A culpaconcorrente da vítima reduz o crédito tanto da indenização

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dos danos patrimoniais como dos extrapatrimoniais. Se oprejuízo no patrimônio e a dor experimentada pelo sujeitoativo deveram-se, em parte, à sua própria negligência,imprudência, imperícia ou ato intencional, o valor daindenização deve ser fixado de modo a refletir esse fato.

Sempre que a vítima tiverconcorrido, com sua conduta culposa,para a ocorrência do evento danoso,determina a lei que o valor daindenização reflita a proporção de suaparticipação. A redução proporcionalé devida, mesmo nas hipóteses deresponsabilidade objetiva e decompensação de danosextrapatrimoniais.

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Diferentemente da redução equitativa em função do levegrau de culpa do devedor — que é uma faculdade abertapela lei ao juiz —, a relacionada à concorrência da culpa docredor é impositiva. Quer dizer, tendo o credor contribuídoculposamente para o dano, o juiz não pode deixar de reduziro valor do seu crédito pela indenização.

Por fim, havendo concorrência de culpa, é provável queas partes da relação obrigacional sejam reciprocamentecredora e devedora. No acidente de trânsito em que os doismotoristas foram culpados, cada um deles deve ao outro aindenização pelos danos que causou. Dá-se, então, acompensação total ou parcial. Compensam-se totalmente asobrigações recíprocas quando os danos sofridos por cadaparte se equivalem. Aqui, ninguém deve nada a ninguém. Acompensação parcial ocorre, por sua vez, quando sãodiversos os montantes dos danos experimentados por cadasujeito obrigado. Se apenas um dos veículos capota ou sechoca a um poste em razão do acidente causado por culpaconcorrente, é provável que o crédito por indenizaçãotitularizado pelo seu proprietário supere o do outro. Tambémé relevante, para que se verifique a compensação, oajuizamento das ações pelos dois sujeitos, que serãojulgadas simultaneamente (conexão de causas), ou aapresentação de reconvenção pelo primeiro a serdemandado (ação do réu contra o autor dentro do mesmoprocesso). Se apenas um dos envolvidos no acidente

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ingressa em juízo atrás da indenização, e o réu limita-se acontestar a demanda, em sendo acolhida a ação, não haverácréditos a compensar, mas apenas a obrigação de ocondenado indenizar o demandante.

1.2. Indenização tarifadaA indenização é tarifada quando a lei estabelece limite

para sua fixação pelo juiz. Por razões diversas, pode a leiconsiderar que determinado dano deva ser suportado emparte pela vítima por não atender ao interesse público aimputação ao sujeito passivo de responsabilidade por seuvalor integral.

Em razão do princípio da indenidade, a tarifação daindenização tem sido desprestigiada. A jurisprudência nãotem aplicado, por exemplo, os limites estabelecidos na Lei n.7.565/86 (Código Brasileiro de Aeronáutica — CBA) para aresponsabilização civil do transportador aéreo, construtoraeronáutico e empresa de administração de aeroporto. Astarifas são, por exemplo: 3.500 OTNs por passageiro outripulante, para a responsabilidade por danos pessoais (art.257); 150 OTNs em caso de atraso do transporte (art. 257) oudano, perda ou avaria de bagagem (art. 260); 3 OTNs porquilo, para atraso, dano, perda ou avaria de carga, salvodeclaração especial de valor (art. 262) etc. Em função daindexação das tarifas em Obrigações do Tesouro Nacional(OTNs), que já não mais circulam, é necessário proceder-se à

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atualização dos limites legais, mediante a substituição doindexador (RT, 799/243). Atualizada, a tarifa estabelece ovalor máximo da indenização devida. No plano internacional,convenções também limitam a responsabilidade civil dasempresas de aviação (RT, 785/256). O CBA afasta a limitaçãoda responsabilidade civil nas hipóteses de dolo ou culpagrave da empresa devedora, embora a definição dada a estaúltima corresponda, tecnicamente, à de dolo indireto (art.248, § 1º). A vítima de acidente aéreo, segundo a lei, só temdireito à indenização completa de seus prejuízos quandoprovar a intenção da empresa demandada, ou de seusprepostos, no sentido de provocar o resultado danoso ou ade correr o risco de causá-lo (RT, 790/335).

Carlos Roberto Gonçalves, um dos mais profundosdoutrinadores brasileiros da atualidade, em matéria deresponsabilidade civil, apoiando-se em precedente do STJ,sustenta que nenhum dos dispositivos de tarifação daindenização por danos morais foi recepcionado pela ordemconstitucional inaugurada em 1988 (2002:40/41). De fato,como a Carta em vigor assegura a “indenização por danomaterial, moral ou à imagem” no dispositivo referente aodireito de resposta (art. 5º, V), sem estabelecer qualquerlimitação, tem a doutrina concluído que a lei ordinária nãopoderia tarifá-la.

A limitação da responsabilidade pelos danosassociados ao transporte aéreo, contudo, justifica-se como

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medida necessária à viabilização econômica da atividade. Osriscos do ar devem ser repartidos entre a empresatransportadora e os passageiros, para possibilitarem preçosrelativamente acessíveis a estes e capacidade deinvestimento para aquela (cf. Rodrigues, 2002:239/246).Como os acidentes aéreos costumam implicar enormesdanos materiais e pessoais, e, dentro duma margemestatística, não são evitáveis, a repartição dos riscos entrefornecedor e consumidor do serviço é necessária.

Ainda em relação à tarifação dos danos associados aotransporte aéreo, têm doutrina e jurisprudência consideradoque ela não mais subsiste desde a vigência da Constituiçãode 1988. O argumento aponta para a mudança operada naextensão da responsabilidade objetiva do Estado às pessoasjurídicas de direito privado prestadoras de serviços públicos(CF, art. 37, § 6º). Antes da Carta em vigor, a normaconstitucional estabelecia a objetivação daresponsabilidade, no preceito equivalente, apenas àspessoas jurídicas de direito público. As empresas detransporte aéreo e de infraestrutura aeronáutica encaixam-se,sem dúvida, nesse conceito: são de direito privado eexploram serviço público. Em seguida, o argumento contrárioà recepção da norma tarifadora conclui da responsabilidadeobjetiva constitucional a impossibilidade de limitação. Nãohavendo limite para a responsabilidade civil do Estado,entende Carlos Roberto Gonçalves, em suas atualizadas

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lições sobre o tema, que também não poderia haver para asconcessionárias e permissionárias de serviços públicos, porterem o mesmo fundamento constitucional (2002:294). Há,também, os que reputam as normas de tarifação do CBArevogadas pelo CDC (RT, 815/366).

Indenização tarifada é a limitadapela lei para compatibilizar ointeresse privado da vítima voltado àindenização dos danos e um interessepúblico. O Código Brasileiro deAeronáutica também tarifa aresponsabilidade das transportadorasaéreas, construtoras aeronáuticas eempresas de infraestruturaaeroportuária, para viabilizar aacessibilidade dos preços dos serviços

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de transportes aéreos e a preservaçãoda capacidade de investimentos delas.

Considero, contudo, ainda vigentes e constitucionais ospreceitos do CBA que tarifam a responsabilidade civil. Deve-se, com efeito, distinguir entre os pressupostos deconstituição da obrigação de indenizar e os critérios defixação do valor da indenização — aqueles são pertinentes àexistência da obrigação, estes à extensão. Não há nenhumaincompatibilidade entre a objetividade e a tarifação daresponsabilidade civil, porque dizem respeito a aspectosdiversos da matéria. Alguém pode ser responsabilizadoindependentemente de culpa dentro de limites, se o interessepúblico — expresso em lei — assim o recomendar. Aimputação de responsabilidade objetiva às pessoas dedireito privado prestadoras de serviço público diz respeito àexistência da obrigação, mas não à sua extensão. Trata-se, ameu ver, de salto lógico concluir das normas constitucionaisinvocadas a proibição da indenização tarifada pela leiordinária.

Quanto à alegada revogação do CBA pelo CDC, deve-serejeitar o argumento em vista da especificidade das normasde tarifação nas indenizações devidas aos consumidores deserviços ligados aos transportes aéreos, que subsistem à

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entrada em vigor dos preceitos gerais do códigoconsumerista. A lei geral, lembre-se, não revoga a leiespecial.

Antes de encerrar, para registro histórico, lembro adiscussão sobre a tarifação de danos extrapatrimoniaisrelacionados ao exercício da liberdade de manifestação dopensamento. A inconstitucionalidade desta tarifação foiafirmada pela jurisprudência, na fixação da indenização porofensa à honra por informação injuriosa, caluniosa oudifamatória veiculada pela imprensa. A Lei n. 5.250/67 (Lei deImprensa) tarifava a responsabilidade civil dos jornalistas(art. 51) e das empresas de comunicação (art. 52): aquelesrespondiam, conforme o caso, até limites máximos quevariavam de 2 a 20 salários mínimos, enquanto estas tinhama responsabilidade limitada a 200 salários mínimos.

O STF, em 2009, considerou não ter sido a Lei deImprensa recepcionada pela Constituição Federal, razão pelaqual deixou de vigorar, desde 1988, a tarifação nela prevista.Ela era, contudo, justificável, tendo em vista a necessidadede se compatibilizarem dois valores extremamenteimportantes para a sociedade: de um lado, o interesseprivado à própria honra, expressão de um direito dapersonalidade, e, de outro, o público na liberdade deimprensa e manifestação do pensamento. A tarifação daindenização visava, em suma, impedir que indenizaçõeselevadas pudessem pôr em risco a liberdade de imprensa e

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de manifestação do pensamento. Como a indenização écusto da atividade jornalística, quem as suporta, no final,são os consumidores de jornais. Tarifar a responsabilidadecivil de jornalistas e empresas de comunicações atende aointeresse público de qualquer sociedade democrática notocante à ampla difusão das informações.

Em cidades de menor porte, uma só condenação porresponsabilidade civil pode levar à falência seu único jornal,com prejuízo indiscutível à população da região. Mas osdispositivos estabelecendo os limites tarifários da lei nãotêm tido ampla eficácia. Algumas doutrinas e jurisprudênciasconsideravam inconstitucional a tarifação das indenizaçõesmorais estabelecida na Lei de Imprensa.

2. DANOS PATRIMONIAISA indenização mede-se pela extensão do dano. É este o

critério geral para a fixação do valor devido a título deressarcimento dos danos patrimoniais (CC, art. 944, caput).Quantifica-se, em decorrência, o valor da reduçãoexperimentada pelo patrimônio do credor, em todos os seusaspectos, e fixa-se, então, o principal da prestação dodevedor. Sobre ele incidem juros, correção monetária ehonorários de advogado, nas condições examinadas para asobrigações em geral (Cap. 18).

Para ser completa, a indenização dos danos patrimoniaisdeve abranger também os lucros cessantes, e não apenas as

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perdas ocorridas. Isto é, na avaliação da reduçãoexperimentada pelo patrimônio do credor, não se podeignorar o custo de oportunidade, quer dizer, o potencial degeração de riquezas representado pelos bens delesuprimidos pelo evento danoso. Se o veículo acidentado erausado pelo proprietário numa atividade econômica qualquer,a indenização não estará completa se restrita aos reparos. Obem danificado criava oportunidades de ganhos para o seutitular, que, por isso, deve receber também o valor do lucroperdido em razão dos dias parados. A norma do art. 402 doCC, portanto, aplica-se integralmente à liquidação dos danoscobertos pela responsabilidade civil: “as perdas e danosdevidas ao credor abrangem, além do que ele efetivamenteperdeu, o que razoavelmente deixou de lucrar”.

Ao fixar como critério geral da indenização dos danospatrimoniais a extensão do dano, a lei afasta qualquer formade enriquecimento do credor. O valor da indenização develimitar-se a repor, da forma mais completa possível, opatrimônio da vítima ao estado anterior ao evento danoso.Apenas na indenização por danos extrapatrimoniais verifica-se necessariamente o enriquecimento do credor, que, por tercausa jurídica legítima, é objeto de proteção do direito (Cap.20, item 5). A vítima de danos exclusivamente patrimoniais,portanto, não pode enriquecer com o recebimento daindenização.

Ao lado do parâmetro geral de mensuração da

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indenização dos danos patrimoniais segundo a extensão dodano, a lei estabelece também alguns critérios especiais.Destinam-se a nortear a liquidação do dano em casosespecíficos. São eles:

a) homicídio. A lei apresenta elenco exemplificativo dereparações necessariamente incluídas na indenização devidapelo homicida: a.i) “pagamento das despesas com otratamento da vítima, seu funeral e o luto da família” (CC, art.948, I); e a.ii) “prestação de alimentos às pessoas a quem omorto os devia, levando-se em conta a duração provável davida da vítima” (inciso II). Em relação às reparaçõesmencionadas em a.i, nunca se discutiu sua pertinência quemquer que tivesse morrido. As discussões giravam em tornodo padrão do funeral, da indenizabilidade das despesas coma construção de jazigo e com a realização das cerimôniasfúnebres da religião professada pelo defunto ou seusfamiliares. Não há dúvidas de que a indenização deve ser amais completa possível, abrangendo todas as despesas quenão teriam sido feitas, pelo menos não naquele momento, senão fosse o homicídio.

Em relação, porém, às reparações referidas em a.ii, nota-se a evolução da jurisprudência no tratamento do tema emfunção da pessoa falecida. Quando morto o homem,presumia-se ser ele o responsável pelo sustento da família.Os filhos têm, neste caso, direito à indenização que lhesgaranta sustento e educação. Devem receber do homicida o

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que receberiam do pai, caso ele não tivesse falecido. Oslimites temporais para essa indenização são dois,prevalecendo o que primeiro se verificar: de um lado, aexpectativa de vida do provedor, mensurada em função dados brasileiros em geral — 65,5 anos para os homens e 72para as mulheres, segundo a OMS (RT, 802/194; 799/288);de outro, a idade em que normalmente as pessoas comoportunidade de estudo concluem a formação superior epodem prover o próprio sustento — 25 anos (cf. RT,806/137). Observa-se, que se tinha a vítima mais de 65 anos,o homicida vem sendo condenado a indenizar seu ato peloprazo correspondente à sobrevida estimável de 5 anos (RT,785/363).

Quando morta a mulher administradora do lar (isto é,sem trabalho fora de casa) ou o filho menor, a jurisprudênciaevoluiu da negativa à aceitação da indenizabilidade. No casoda administradora do lar, de início considerava-se que omarido deixava de ter despesas com a sua morte, nãohavendo o que se indenizar portanto. Hoje, reconhecendo-se a importância e valor do seu trabalho na organização dacasa, imputa-se ao homicida também a obrigação deindenizar os danos patrimoniais correspondentes infligidosaos que dele se beneficiavam (marido, filhos, ascendentesetc.). De modo similar, quando morto filho menor sematividade remunerada, também evoluiu no mesmo sentido ajurisprudência. No início, quando o incapaz não tinha ainda

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atividade remunerada, concluía-se pela inexistência de danospatrimoniais, já que não contribuía para as despesas da casa.Hoje, entende-se que é devida a indenização pelos danospatrimoniais correspondentes caso as condiçõeseconômicas da família indiquem que o menor, se tivessesobrevivido, começaria a trabalhar assim que possível econtribuiria para as despesas do lar enquanto morasse comos pais (isto é, até os 25 ou 30 anos). Indeniza-se, nessecaso, a frustração da legítima expectativa de futuro amparona velhice que os pais nutrem em relação aos filhos (RT,790/288; 786/301).

O valor da reparação a.ii tem correspondido a doisterços da remuneração aferida pelo falecido, na presunçãomais que razoável de que pelo menos um terço de seusganhos era despendido com seu próprio sustento (RT,791/367). O devedor é condenado a pagá-la em prestaçõesmensais, corrigidas pela variação do salário mínimo.Dependendo da condição econômica do devedor, o juiz tem-no obrigado a constituir um capital (p. ex., investimento emtítulos públicos, por meio de fundo administrado porinstituição financeira) que garanta o pagamento dasindenizações mensais (RT, 799/289).

O critério geral para quantificação

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do valor da indenização pelos danospatrimoniais é o da extensão doprejuízo. Compreende as perdasefetivamente sofridas e os lucrosrazoáveis não ganhos.

Além desse critério geral, sãoprevistas normas específicas para ashipóteses de homicídio, lesão à saúde,lesão à capacidade de trabalho, danospor perícia de profissionais da saúde eusurpação ou esbulho de coisa.

b) Lesão à saúde. O critério da lei para a indenização daslesões à saúde é o do ressarcimento “das despesas detratamento e dos lucros cessantes até o fim daconvalescença, além de algum outro prejuízo que o ofendidoprove haver sofrido” (CC, art. 949). Na verdade, emboraabrigado num preceito específico, o critério reproduz o

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parâmetro geral das perdas efetivamente sofridas e dosrazoáveis lucros não ganhos. Desse modo, se a vítima deatropelamento submeteu-se a cirurgia e só pôde retornar àsua atividade produtiva após meses de recuperação, suaindenização abrange o valor das despesas médico-hospitalares e o dos ganhos não aferidos no período.

O dano estético que pode acarretar a lesão à saúde ésempre extrapatrimonial (subitem 3.3.e) e esporadicamentepatrimonial. Verifica-se a última hipótese se a vítima vivia daimagem, como os artistas ou modelos (Cap. 7, subitem 4.4.3),e esta restou prejudicada pelo dano estético. Aqui, ocausador da lesão indeniza também danos patrimoniais,representados pelo comprometimento da expectativa derazoáveis ganhos.

c) Lesão à capacidade de trabalho. Se a vítima teve suacapacidade de trabalho inteiramente comprometida oudiminuída, a indenização deve compreender, “além dasdespesas do tratamento e lucros cessantes até ao fim daconvalescença (...), pensão correspondente à importância dotrabalho para que se inabilitou, ou da depreciação que elesofreu” (CC, art. 950, caput). O devedor da indenização,assim, é condenado a pagar mensalmente à vítima aremuneração equivalente à que recebia em caso deinabilitação ou parte proporcional, se ocorreu apenasredução da capacidade de trabalho. Na apreciação do casoem julgamento, deve o juiz compatibilizar os interesses da

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vítima em ser indenizada da forma mais completa possívelcom os da integração dos portadores de deficiência àsociedade. A indenização, em suma, não deve serdiscriminatória no sentido de imputar à vítima a pecha dainutilidade. Se o acidentado fica tetraplégico, é provável quesua inabilitação para atividades laborativas seja plena. Mas,se perdeu um membro, não deve ser desestimulado acontinuar produtivo. No exemplo de Silvio Rodrigues, oviolonista que perde o braço num acidente não pode maisdesempenhar seu trabalho de músico, mas não está excluídode outros mercados de trabalho (2002:233).

O limite temporal da indenização, neste caso, é o daduração da vida da vítima. Em outros termos, o devedorresponsabiliza-se pelo pagamento de uma pensão vitalícia aocredor (RT, 791/297). Aqui, não tem sentido levar em conta aexpectativa de vida, já que o lesado sobreviveu ao eventodanoso. Se o prejudicado era menor e ainda não exercianenhuma atividade lucrativa, tem decidido a jurisprudênciaque o valor da pensão seja liquidado quando o menoralcance a idade em que provavelmente começaria a trabalhar(entre 14 e 25 anos, dependendo da situação econômica dafamília), para que haja elementos mais confiáveis ao cálculoda redução ou do comprometimento da capacidadelaborativa.

Admite a lei que, por escolha do credor, a indenizaçãoarbitrada pelo juiz em razão da diminuição ou perda da

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capacidade laborativa seja-lhe paga não em prestaçõesmensais, mas de uma só vez (CC, art. 950, parágrafo único).Esta alternativa, embora mencionada na lei apenas para ocaso de lesão à capacidade de trabalho, estende-se aqualquer hipótese de crédito por indenização paga emprestações (Rodrigues, 2002:217).

d) Profissionais da saúde. Os profissionais da saúde —médicos, enfermeiros, dentistas, nutricionistas etc. —respondem subjetivamente pelos danos que sua imperíciaocasionar à vida ou integridade física dos pacientes por elesatendidos (Cap. 22, subitem 3.2). A lei determina que seobservem, neste caso, os mesmos critérios de mensuraçãoda indenização fixados para as hipóteses de homicídio, lesãoà saúde e à capacidade de trabalho aqui examinados (CC, art.951).

e) Usurpação ou esbulho. Na fixação do critério demensuração da indenização por usurpação ou esbulho,prevê o direito positivo brasileiro a sua única hipótese dereparação in natura. Consiste na restituição da coisa, seainda existir ao tempo do cumprimento da obrigação.Esclarece a lei que a devolução do bem usurpado ou objetode esbulho não exonera o devedor do pagamento de valor atítulo de reparação pela deterioração e lucros cessantes (CC,art. 952, primeira parte). Se alguém subtrai o táxi pertencenteao vizinho e se vale do veículo para ganhar dinheirotransportando passageiros recolhidos na rua, fica obrigado a

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restituí-lo ao proprietário, pagar o correspondente aodesgaste do bem durante o período do desapossamento e osganhos que tiver auferido.

Se a coisa não existe mais ao tempo da restituição, aindenização deve compreender o seu valor, estimado pelopreço de mercado (art. 952, parágrafo único, primeira parte).Continua, de qualquer modo, o devedor obrigado aopagamento da reparação pela deterioração (desvalorizaçãodo veículo) e dos lucros cessantes. Com isso, sãocompensados os danos patrimoniais. Se a coisa usurpada ouobjeto de esbulho tinha especial valor para seu dono (valorde afeição), é devida ainda a indenização extrapatrimonial(subitem 3.3.f).

3. DANOS EXTRAPATRIMONIAIS OU MORAISA trajetória da indenização por danos morais no direito

brasileiro pode ser dividida em duas fases nítidas: antes edepois de 1988. A fase anterior é marcada pela discussãosobre seu cabimento; vou chamá-la fase do questionamento.A segunda, pela superação de qualquer dúvida, na doutrinae jurisprudência, acerca de sua pertinência; chamo-a fase doconsenso.

Na fase do questionamento, dividiam-se os estudiosos ejulgadores em duas grandes posições. De um lado, punham-se os que rejeitavam a indenização por danos morais. Seusfrágeis argumentos iam desde a afirmação da imoralidade do

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ato de compensar a dor com dinheiro até a impossibilidadede calcular o valor exato da compensação (cf. suma dasteses de rejeição em Diniz, 2003, 7:87/98). Não é o caso deaprofundá-los e discuti-los neste compêndio, tendo em vistaserem hoje meras curiosidades históricas, inoperantes nainterpretação e aplicação do direito. A rejeição daindenização por danos morais predominou na doutrina ejurisprudência até os anos 1960.

Na admissão da indenizabilidade dos danos morais, nafase de questionamento, predominavam os entendimentosde aceitação relativa. E, curiosamente, opunham-se, de umlado, os que só aceitavam os danos morais se houvessetambém condenação em danos patrimoniais aos que, deoutro, só os admitiam quando não houvesse nenhum danopatrimonial. Aqueles argumentavam que a indenização nãopoderia limitar-se aos danos morais (por qualquer razãopróxima às teses de rejeição), mas que, em havendo danospatrimoniais, a compensação pela dor deveria integrar oressarcimento do credor, para que fosse completo (RT,496/172). Se não tivesse havido dano patrimonial, porém,não caberia compensar exclusivamente a dor. Os últimosconsideravam, por sua vez, que o instituto se destinavaapenas àquelas situações em que o ilícito não geravaprejuízos pessoais ou materiais, mas só ofensa à honra docredor, como no protesto indevido de títulos. Neste caso,para não ficar a vítima sem qualquer indenização, caberia

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compensar-lhe os danos extrapatrimoniais. De outro lado, seos danos patrimoniais já estavam adequadamentecompostos, não caberia acrescer-se nada a título decompensação pelos morais (RT, 503 / 237; 501/192) (cf.Rodrigues, 2002:189/200; Dias, 1954, 2:393/458; Gomes,1961:271). A divergência foi superada em favor dapossibilidade de cumulação, já na fase do consenso, pelaSúmula 37 do STJ (“são cumuláveis as indenizações pordanos material e moral oriundos do mesmo fato”).

No plano legislativo, o Código Beviláqua trazia jáalgumas figuras que sugeriam a indenizabilidade dos danosextrapatrimoniais — como o direito ao dote titularizado pelamulher virgem e solteira que havia sido deflorada por quemse recusava a casar com ela, o cálculo da indenização doofendido na honra que não tivesse sofrido dano patrimonialetc. Além disso, a indenização por danos morais começou aser especificamente mencionada em alguns diplomasesparsos, como o Código Brasileiro de Telecomunicações(1962), a Lei de Imprensa (1967), o Código Eleitoral (1965) e aLei dos Direitos Autorais (1973) (Carmignani, 1996:41 e 44).

Mas, o que assinala a transição da fase doquestionamento para a do consenso é a ConstituiçãoFederal de 1988 (Zuliani, 2002:202). Em dois dispositivos oconstituinte fez menção ao instituto; a partir de então, todos,repentinamente, puseram-se de pleno acordo, sem maioreselaborações, no sentido de que essas normas

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constitucionais resolviam em definitivo a questão (cf.Pereira, 1989:58). Os danos morais ganham, então, autonomiaem face dos patrimoniais, e seu cabimento passa a seradmitido sem reservas pela doutrina e jurisprudência.

Os dois dispositivos da Constituição referentes aosdanos extrapatrimoniais inserem-se no art. 5º, sobre direitose garantias fundamentais. São os incisos V (“é assegurado odireito de resposta, proporcional ao agravo, além daindenização por dano material, moral e à imagem”) e X (“sãoinvioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagemdas pessoas, assegurado o direito à indenização pelo danomaterial ou moral decorrente de sua violação”). Embaladasna vaga modernizante da nova Carta, doutrina ejurisprudência não deram atenção ao fato de o textoconstitucional limitar-se às hipóteses de lesão a certosdireitos da personalidade, e convergiram para a conclusãoda indenizabilidade dos danos morais em toda e qualquersituação de prejuízo. Há julgado, por exemplo, em que odispositivo constitucional é invocado como fundamento daindenização moral estabelecida em favor da vítima de coaçãona assinatura de documentos (RT, 804/226). Penso que aConstituição de 1988 marca a aceitação absoluta dos danosmorais não propriamente em razão do conteúdo daquelesdispositivos, mas de sua hierarquia. Ninguém mais precisavasustentar desconfortáveis argumentos do passado, porqueestava sendo inaugurada uma nova ordem jurídica.

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No direito brasileiro, considera-se,desde a Constituição Federal de 1988,que a indenização pelos danos moraisé admissível em qualquer hipótese. OCódigo Reale estipula seu cabimentona responsabilidade civil subjetiva.Normas esparsas preveem aindenização pelos danos morais nocontexto da responsabilidade civilobjetiva, mas não existe, em relação aesta, nenhum preceito de âmbito geral.

A rigor, contudo, mesmo após a entrada em vigor doCódigo Reale, a única norma na ordem jurídica brasileira queprevê, como regra de âmbito geral, a indenização pelosdanos morais insere-se na disciplina da responsabilidade

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civil subjetiva. É a resultante dos arts. 186 e 927 do CC:“aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ouimprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda queexclusivamente moral, comete ato ilícito”; “aquele que, porato ilícito (...), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo”. Em relação à responsabilidade civil objetiva, há normasde âmbito específico, como, por exemplo, as pertinentes aosacidentes de consumo (CDC, art. 6º, VI: é direito básico “doconsumidor a efetiva prevenção e reparação de danospatrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos”). Nãoexiste, contudo, norma geral de indenizabilidade dos danosmorais na disciplina da responsabilidade civil objetiva.

3.1. Função dos danos moraisTodo evento danoso importa, para quem o sofre, no

mínimo algum desconforto ou dissabor. Se alguém bate nomeu carro, ainda que pague todas as despesas de conserto eo táxi durante sua realização, sofrerei algum desgosto com aperda de tempo, chateação com o dano, adiamento de algunscompromissos etc. São aborrecimentos plenamenteabsorvíveis pela generalidade das pessoas (RT, 789/193;789/256). Também o causador do acidente experimentarádissabores, mas destes — grandes ou pequenos — a lei nãocuida.

Por mais variado que seja o seu grau, não há eventodanoso sem sofrimentos para a vítima; sofrimentos de ordem

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não patrimonial. A grande maioria deles não é e não deve serobjeto de preocupação pelo direito. Cada um cuida de seushumores (RT, 802/309). A indenização por danos morais éuma compensação pecuniária por sofrimentos de grandeintensidade, pela tormentosa dor experimentada pela vítimaem alguns eventos danosos. Imagine o que sente a mulherestuprada, o pai que assiste ao bárbaro espancamento dofilho, o paciente vítima de erro médico numa cirurgia plástica,o trabalhador honrado contra quem foi tirado indevidoprotesto de título. Não são sofrimentos irrelevantes,desprezíveis, facilmente absorvíveis, mesmo pelas pessoasmais amadurecidas e experimentadas. Agride os valores dejustiça cultivados pela civilização do nosso tempo deixar deatender a esses doídos desdobramentos dos eventosdanosos.

A dor não pode ser desfeita. Mesmo sensaçõesposteriores de vingança ou de alívio financeiro não adesfazem. O único instrumento, na sociedade democráticados nossos tempos, que pode servir como resposta aoanseio da vítima de ver também este aspecto do eventodanoso equacionado é o dinheiro. O devedor da obrigaçãode indenizar paga ao credor certa quantia com o objetivoespecífico de compensar a dor. O pagamento da indenizaçãonão repõe os danos morais, apenas os compensam (Reis,1991:103). Não há ressarcimento, mas enriquecimentopatrimonial. O aumento do patrimônio da vítima é a única

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forma, atualmente desenvolvida pelo Direito, para que suaindenização seja a mais justa possível.

Os danos morais podem ocorrer acompanhados oudesacompanhados dos patrimoniais. A rigor, quem fala emdanos está-se referindo aos efeitos do evento, que podemprojetar-se no patrimônio da vítima ou além dele. Têm-seeventos de efeitos exclusivamente patrimoniais, como oacidente de trânsito sem danos pessoais; de efeitosexclusivamente extrapatrimoniais, como o protesto indevidode título sem perda de crédito; e de efeitos patrimoniais emorais, como o acidente de trabalho (Lotufo, 1996). Há quemdistinga entre danos extrapatrimoniais e morais, propondoque aqueles correspondem aos sofrimentos compensáveisque acompanham os prejuízos patrimoniais e estes osmanifestados isoladamente (Gomes, 1961:271). Aqui, não sefaz a distinção: danos extrapatrimoniais e morais sãoexpressões sinônimas.

A função dos danos morais é exclusivamentecompensar a dor extremada da vítima, quando ela se verifica.Quer dizer, só cabe obrigar o devedor a compensar os danosmorais do credor quando este tiver experimentado umsofrimento atroz, de envergadura. Os juízes devem ser muitoprudentes ao decidir pelo cabimento da indenização, paraque não se deixem enganar pela simulação da dor. Quantomenos doloroso tiver sido o evento danoso para a vítima,mas fácil será fingir o sofrimento. Não cabem presunções.

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Afirmar, por exemplo, que a dor da mãe ou do pai pela perdado filho independe de prova, por ser evidente, é umaingenuidade imperdoável num magistrado.

A única função dos danos morais é compensar apungente dor que algumas vítimas sofrem. É importanterepisar o conceito para desvestir por completo a indenizaçãodos danos morais de qualquer caráter sancionatório (cf.Iturraspe, 1982, 4:175/179). Apesar de várias decisões que osinstrumentalizam como medida dissuasória e preventiva (RT,803/233; 785/347), objetivam os danos morais tão somentecompensar a dor; não se destinam a sancionar o devedor ouprevenir novos eventos danosos. Eles não se confundemcom a indenização punitiva (punitive damages), cujoobjetivo, sim, é a penalização do descaso absoluto pelosdireitos alheios (item 4).

Na tecnologia jurídica brasileira, há uma enormeconfusão sobre o tema. A lição de Carlos Alberto Bittarenfatiza a ligação entre a indenização dos danos morais e ocorretivo à conduta do devedor. Na quantificação dosdanos, ensina, o montante deveria servir de advertência aolesante quanto à repulsa do ato lesivo. Deveria sersignificativo, em vista da condição econômica do devedor,de modo a desestimulá-lo (1993:220/222; 1994). TambémMaria Helena Diniz, ao apontar a natureza jurídica dareparação moral, prioriza o aspecto que chama de penal.Aliás, mesmo ao mencionar seu outro aspecto, chamado

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compensatório ou satisfatório, a ilustre doutrinadora reforçaa ideia dos danos morais como medida de repressão,justificando-os como resposta ao menoscabo a interessesjurídicos extrapatrimoniais da parte do lesante (2003,7:98). Aconfusão entre danos morais e indenização punitiva tambéma fazem Aguiar Dias e Pontes de Miranda (cf. Dias, 1954,2:439/440).

Os danos morais têm a função específica de compensara dor. Evidentemente, como ingrediente temático daresponsabilidade civil, são relacionáveis em tese às funçõesgerais da disciplina (Cap. 21, item 4). Desse modo, nocontexto da responsabilidade civil subjetiva, podem até serentendidos como sanção, já que o pressuposto desta é aprática de ato ilícito. Fora deste contexto, porém, afirmar afunção sancionatória dos danos morais é inconsistente. Naresponsabilidade objetiva, os danos morais decididamentenão têm, não podem ter, o sentido de pena. Neste caso, odevedor está respondendo por danos provenientes de atolícito e obriga-se a indenizar não porque tenha feito algoque não deveria, mas simplesmente porque está emcondições econômicas de socializar os custos de suaatividade. Quando o sujeito de direito é responsabilizadoobjetivamente pelos danos sofridos por alguém, aindenização não significa reprovação social, moral oujurídica aos atos praticados. Pelo contrário, abstrai-se porcompleto a questão da licitude ou ilicitude deles.

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De qualquer modo, não se podem confundir as funçõesgerais da responsabilidade civil, que variam conforme aespécie, com a específica dos danos morais. Ou seja, se ocredor não tiver sofrido dor extremada, ainda que tenha sidoo dano proveniente de ato ilícito altamente reprovável, nãosão cabíveis danos morais. De outro lado, se a sofreu, terádireito à compensação, mesmo que vitimada em acidenteinevitável originada de atos lícitos. Imagine que pessoadrogada e embriagada cause dolosamente danos de montaao estabelecimento comercial pertencente a supermercadode rede multinacional, lançando por diversas vezes o seuveículo contra as vitrinas. Causa o delinquente gravesdanos, mas exclusivamente materiais, malgrado o enormerisco a que muitas pessoas (consumidores, transeuntes eempregados) se expuseram em razão de suas condenáveisatitudes. Não é o caso, aqui, de danos morais, porqueninguém sofreu nenhuma tormentosa dor. Veja, agora, outrahipótese. Apesar das muitas providências que a empresatransportadora aérea efetivamente adota quanto à segurançados seus voos, ocorre acidente com diversas mortes. Édevida indenização moral pela grande dor da perda de entesqueridos, embora nenhum ato ilícito tenha sido praticado.

Naquelas hipóteses em que a conduta do devedor foiparticularmente repulsiva, é devida indenização punitiva,que não se confunde com os danos morais. São funçõesdiversas que cada verba indenizatória cumpre. Desse modo,

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o motorista drogado e embriagado do exemplo acima deveser obrigado a pagar indenização punitiva, como forma desancioná-lo pelos atos praticados, enquanto atransportadora aérea não. Já num caso em que, de um lado, ocredor sofre dor extremada e, de outro, é particularmentereprovável a conduta do devedor, são cabíveiscumulativamente os danos morais e a indenização punitiva.

Não é correto, em suma, relacionar especificamente aindenização dos danos morais a qualquer medida corretivada conduta do devedor, porque seu pressuposto reside nagravidade dos efeitos extrapatrimoniais do evento danoso.Apenas a grande intensidade da dor da vítima deve serlevada em conta na condenação do sujeito passivo nopagamento de danos morais.

A única função dos danos morais écompensar a dor da vítima, quandoesta é particularmente tormentosa,pungente. Não têm natureza de sanção,por ser irrelevante a licitude ouilicitude da conduta do devedor ou

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mesmo a especial repulsa que causa.Não se confundem, assim, com aindenização punitiva.

Para encerrar, deve-se distinguir a indenização pela dorda devida em função de distúrbios psíquicos ocasionadospelo evento danoso. A vítima pode ter sofrido, em razão doacidente inevitável ou do ato ilícito que a alcançou,perturbação psíquica capaz de dificultar-lhe o rendimento notrabalho ou os relacionamentos familiares e afetivos. Amulher estuprada, o atropelado ou o sobrevivente dedesastre aéreo podem, depois do evento danoso, retrair-sesocial e emocionalmente. O medo de passar de novo porevento de igual dor intimida-os. São esses efeitos lesões àsaúde mental da vítima. A indenização devida em razão delastem natureza patrimonial (itens 2.b e 2.c), não se confundemcom os danos morais.

3.2. Titulares do créditoUma das questões discutidas em relação aos danos

morais diz respeito aos titulares do direito ao crédito.Quando o credor da indenização é a própria vítima, e trata-sede pessoa física com pleno discernimento, não há dúvida de

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ser ela credora da indenização. Em alguns casos específicos,porém, as características do sujeito ativo da relaçãoobrigacional suscitam questionamentos. São os casosseguintes:

a) grau de parentesco com o falecido. A perdaprematura de filho ou dos pais, num acidente inevitável oupor força de ato ilícito imputável a terceiro, costuma causardor respectivamente no ascendente ou descendente.Costuma ser também doloroso para irmãos, tios, sobrinhos,avós, netos, genro, nora, sogra etc. É necessário fixar umlimite, um determinado grau de parentesco além do qual nãoserá mais indenizável o dano moral. Caso contrário, teriamdireito à indenização aqueles que, por remotas relações deparentesco, ligam-se de algum modo ao falecido. Entende-seque a legitimidade para pleitear os danos morais cabe aosascendentes, descendentes e colaterais até o quarto grauapenas. A partir daí, a lei considera não existir relação afetivasuficiente para justificar, por exemplo, a vocação hereditária(CC, art. 1.839). O mesmo critério deve ser adotado para finsde responsabilidade civil. Se mais de um parente aduz emjuízo a pretensão à indenização moral, devem-se reunir osprocessos para que o demandado não seja condenado avalores excessivos. De qualquer forma, os vínculos afetivosde cada demandante com a pessoa falecida e a intensidadeda dor por eles experimentada serão examinados de formaautônoma (RT, 788/265).

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Em nenhum caso se deve, como afirmado, presumir ador. Mas as circunstâncias a partir das quais se considerater sido especialmente dolorosa a experiência da perdaprematura devem variar segundo o grau de parentesco entrecredor e vítima direta. Entre pais e filhos, deve serreconhecida a dor extremada merecedora da indenizaçãomoral a menos que alguma circunstância particular indiqueque ela não ocorreu. Se não se falavam há anos, um nãofrequentava a casa do outro, o filho deixara a casa paternaabruptamente — são indícios de que talvez a relação entreeles não fosse afetiva o suficiente para justificar opagamento dos danos morais. Já no caso de falecer o tionum acidente, o sobrinho só deve ter direito à indenizaçãopor danos morais se as circunstâncias específicas do casorevelarem uma especial relação afetiva entre eles que fugissedo padrão. Em suma, quanto mais distante o grau deparentesco entre o prematuramente morto e o demandantedos danos morais, maior deve ser a relação de afeto, paraque a dor experimentada seja juridicamente apta a gerar aobrigação. Não basta, assim, a existência da relação deparentesco; é necessário demonstrar (por menos ou maiscircunstâncias de fato, dependendo do grau) que a morteprematura imprimiu pungente dor no espírito dodemandante.

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Apenas se deve reconhecer o direitoà indenização por danos morais emcaso de morte prematura de familiaraos que mantinham com o falecidorelação como ascendente, descendenteou colateral até quarto grau. Além dograu de parentesco, é necessáriodemonstrar o sofrimento digno decompensação pecuniária.

Tem-se reconhecido, por fim, o direito da noiva domorto aos danos morais, se provada a seriedade docompromisso pré-nupcial (RT, 790/438).

b) Dano indireto. Os danos pessoais normalmentegeram sofrimentos não apenas na pessoa diretamentevitimada pelo acidente inevitável ou ato ilícito, mas em seusfamiliares mais próximos e, eventualmente, em amigosíntimos. Em geral, se o filho sofre lesão corporal grave, quelhe acarreta sofrimento atroz, não só ele, mas também os paispassam pela experiência dolorosa; quando um dos cônjuges

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fica paralítico, o outro, se há amor entre eles, sofre tambémdor de mesma intensidade; quem nutre amor fraternal sofretanto quanto o irmão atropelado, e assim por diante. Podem-se divisar, portanto, danos morais diretos e indiretos —estes últimos também chamados em ricochete. Pois bem, osque sofrem dor extremada em função de ato lícito ou ilícitoque vitima pessoa querida têm direito à indenização?

O tema ainda é controvertido na doutrina ejurisprudência. De um lado, resiste-se à ideia daindenizabilidade dos danos morais indiretos, sob oargumento de que o recebimento da indenização peloacidentado exclui a possibilidade de familiares receberem acompensação, mesmo tendo sofrido dor moral. De outro,mantém-se o mesmo valor total da condenação, para que sedivida em tantos quantos forem os familiares atingidos(Cianci, 2003:77/81).

A indenizabilidade dos danos morais indiretos deve serfixada com as mesmas cautelas recomendadas para aidentificação dos familiares de pessoa falecida merecedoresda compensação. Não se deve, em primeiro lugar, reconhecero direito a quem mantinha com a vítima relação deparentesco colateral de mais de quatro graus. Ademais, cabesempre examinar as circunstâncias do relacionamento afetivoque o unia à vítima, para conferir se era provável ter oevento danoso causado dor extrema. Em suma, os danosmorais em ricochete não devem ser negados tão somente

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pelo fato de já os ter recebido a vítima direta do evento.

Os danos morais indiretos ou “emricochete” também são indenizáveis,desde que observadas as mesmascautelas na aferição do sofrimento nocaso de morte prematura de familiar.

c) Pessoa jurídica. A pessoa jurídica, evidentemente,não sente dor; isto é atributo exclusivo da pessoa natural.Mas, como a lei estende a ela determinados direitos dapersonalidade (Cap. 8, item 9), a jurisprudência não podedeixar de considerá-la também credora por danos morais. Amatéria está pacificada na Súmula n. 227 do STJ: “a pessoajurídica pode sofrer dano moral”.

Para saber se uma determinada pessoa jurídica é credorade danos morais, o critério é simples. Abstrai-se suacondição de sujeito de direito não humano e a substitui porum homem ou mulher. Se desta simulação resultar quepessoa física, posta na mesma situação da jurídica,experimentaria dor suscetível de compensação, então não há

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razões para negá-la. Caso contrário, a pessoa jurídica não écredora dos danos morais.

Pessoas jurídicas, em especial as sociedadesempresárias, têm demandado, até agora, indenização pordanos morais basicamente em duas hipóteses:descumprimento de obrigação contratual e abalo de créditopor protesto indevido de título. No primeiro caso, não obtêmsucesso. O descumprimento de contrato não é causa depadecimento do contratante. Por mais dissabores que causa,o inadimplemento contratual não deve ser consideradofundamento para esta indenização. Qualquer pessoa física,posta na mesma situação, não estaria sofrendo o suficientepara ter direito aos danos morais. Já na hipótese de protestoindevido de título, cabe a compensação, porque igualinjustiça levaria qualquer pessoa física (honesta) aexperimentar intenso sofrimento (RT, 797/222).

Vez por outra, justifica-se o pagamento de danos moraisem favor da pessoa jurídica pela lesão à sua honra objetiva,isto é, a reputação que goza. Lembra-se, então, que oprotesto indevido de títulos costuma abalar o crédito edificultar novos negócios (cf. Motta, 1999). Isso é verdade,mas repercussões dessa ordem do protesto indevidocompõem os danos patrimoniais e não os morais.

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A pessoa jurídica tem direito àindenização por danos morais seestiver numa situação em que pessoafísica normalmente sofreria dor dignade compensação pecuniária.

Assim como se tem reconhecido o direito à indenizaçãopelos danos morais às pessoas jurídicas, deve-se reconhecê-lo também aos entes despersonalizados (espólio, massafalida, condomínio de edificação etc.), quando pessoa físicaposta na mesma situação experimentasse sofrimento dignode compensação pecuniária.

d) Deficientes mentais. Questionou-se, de início, se aspessoas portadoras de deficiência mental poderiam sercredoras por danos morais. Afirmava-se que elas, em razãoda deficiência, pela má compreensão dos fatos, seriamincapazes de sofrer. Puro preconceito. Se deficiente mental édiscriminado à porta de um restaurante, cujos funcionárioslhe barram a entrada, seu dano é exclusivamenteextrapatrimonial e é claro que terá direito de ser indenizado.Mesmo sem ter completa compreensão da realidade, senteangústia, medo, humilhação, principalmente pela reação das

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pessoas amigas que o acompanham. Atualmente seconsideram inexistentes quaisquer motivos para negar aosdeficientes mentais a indenização por dano moral.

Os deficientes mentais têm direito àindenização por danos morais, porque,apesar da incompleta compreensão darealidade, são capazes de manifestarsentimentos dignos de compensaçãopecuniária.

e) Sucessores por morte. Questiona-se atransmissibilidade dos danos morais. Se a pessoa que haviaexperimentado a dor extrema merecedora de compensaçãopecuniária falece, seus sucessores podem demandar opagamento? Veja que não está em questão aqui aindenização por danos extrapatrimoniais ligados à morteprematura de familiar. Se Antonio morre num acidente detrabalho, seu único filho e herdeiro Benedito pode ter direitoà indenização por danos morais. Neste caso, contudo, não

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está sucedendo o pai em nenhum direito, mas pleiteandocompensação por dano direto, pela dor que o acidente lheinfligiu. Imagine, no entanto, que Antonio teve um chequedevolvido indevidamente. Trabalhador honesto e reiteradocumpridor de suas obrigações, sofre com a injustiça;amargurado, nem conta o episódio ao filho. Como tem direitoà indenização pelos danos morais correspondentes, procuraum advogado para promover a ação judicial. Antes doajuizamento do processo, Antonio morre num acidente detrânsito. Neste caso, Benedito, que nada sofreu com adevolução indevida do cheque, é sucessor do pai no direito?

Apegada à ideia de que o sentimento psíquico da dornão integra o patrimônio do de cujus, e desaparece porcompleto com o falecimento, a resposta mais usual dadoutrina tem sido a negativa (cf. Silva, 1955:469; Cahali,2000:698; Cianci, 2003:23/29). O direito à indenização pordanos morais é personalíssimo, sustentam os que advogama tese de sua intransmissibilidade. A jurisprudência, a seuturno, tende a admitir a transmissão do direito à indenizaçãomoral (RT, 799/207; 802/203; 792/295).

Os danos morais são transmissíveis. Em primeiro lugarporque, na lei, a regra da transmissão do direito àindenização não exclui os danos extrapatrimoniais (CC, art.943). Além disso, o direito de ser compensadopecuniariamente surge com o evento danoso e, desde logo,incorpora-se ao patrimônio da vítima. Não é a condenação

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judicial que faz surgir o direito à compensação dos danosmorais, mas o ato lícito (na responsabilidade objetiva) ouilícito (na subjetiva) danoso. Apenas a liquidação dos danosmorais depende de decisão judicial. Incorpora-se, comotantos outros direitos, ainda ilíquido ao patrimônio da vítima.E, dessa forma, transmite-se aos herdeiros. Não é a dor,claro, que está sendo transmitida; esta, de fato, épersonalíssima e desapareceu com a morte de quem a sentia.O que se transmite é o direito à compensação pecuniáriapelo dano extrapatrimonial.

O crédito pela compensação da dorsurge, ainda ilíquido, no momento doacidente inevitável ou do ato ilícito.Incorpora-se, desde então, aopatrimônio da vítima. Os efeitos dodano são extrapatrimoniais, mas suacompensação será sempre uma formade enriquecimento patrimonial da

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vítima. Transmite-se, assim, aosherdeiros e sucessores o direito deexigir reparação moral.

Em outros termos, como não há meio diverso decompensar a dor extremada a não ser mediante a obrigaçãopecuniária de indenizar, o efeito extrapatrimonial do danoimplica sempre enriquecimento patrimonial. O de cujus,portanto, transmite a seus herdeiros um patrimônioenriquecido pelo crédito nascido da lesão extrapatrimonial(cf. Gonçalves, 2003:517).

3.3. Hipóteses de danos moraisEm qualquer hipótese de responsabilidade civil,

subjetiva ou objetiva, o credor terá direito à indenizaçãopelos danos morais se tiver experimentado uma dorexcepcional, considerável, significativa, tormentosa,pungente, grande. Desse modo, a lista de hipóteses dedanos morais que segue é meramente exemplificativa econtempla apenas as mais comuns.

a) Morte prematura. A morte de pessoa querida ésempre muito dolorosa. A sensação de perda irremediávelque desperta é única. Relembra a pequeneza de nossa vida,

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sua inacreditável falta de sentido. A religião pode dar algumconforto aos crentes, mas por vezes camufla a dor em vez dediminuí-la. Costuma provocar sofrimento, maior ou menor, amorte de alguém próximo ou conhecido em qualquercircunstância. A dor despertada pelo passamento de pessoaquerida é maior, contudo, quando prematura. A certeza deque todos vamos morrer um dia não atenua a sensação deinjusto abreviamento nos casos de acidentes (de trânsito, deconsumo, do trabalho, aéreo etc.), erros (imperícia médica)ou crimes (homicídio, latrocínio). É quase insuportável aideia de que a vida se perdeu por pouco. Quando morre oente querido por velhice ou doença, a dor é grande, masparece que a morte foi “natural”; quando morre por outrasrazões, ela parece “prematura” e a dor é imensa. Quantomaior o desenvolvimento da ciência médica, e aspossibilidades de cura, maior a sensação de fim irreversível eprematuro. Se falece o recém-nascido por não haver, nalocalidade, UTI neonatal vaga para recebê-lo, pode-secalcular o enorme sentimento de injustiça que toma conta docoração dos pais: por que o meu filho? Não há, contudo,ninguém a responsabilizar apenas pela falta do equipamento.Se tivesse nascido anos antes, ele não teria sobrevivido damesma maneira, por não existir lá nenhuma UTI neonatal.Para que a dor da morte seja indenizável, é necessário tenhasido causada por evento danoso imputável, por regra deresponsabilidade subjetiva ou objetiva, ao devedor.

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b) Ofensa à honra. Na hipótese de calúnia (CP, art. 138:imputar falsamente a alguém fato definido como crime),difamação (CP, art. 139: imputar a alguém fato ofensivo à suareputação) ou injúria (CP, art. 140: ofender a dignidade ou odecoro de alguém), cabe a indenização dos danospatrimoniais e morais decorrentes (CC, art. 953). Se a ofensaà honra dá-se num órgão de imprensa, a lei reconhece odireito à indenização, mas procura compatibilizá-lo com atutela do interesse público representado pela liberdade demanifestação de pensamento, mediante a tarifação daindenização (subitem 1.2) e brevidade do prazo decadencialpara propositura da ação (Lei n. 5.250/67).

c) Ofensa à liberdade pessoal. Na hipótese de ofensa àliberdade pessoal, tem o prejudicado direito à indenizaçãopelos danos patrimoniais e morais sofridos. Caracteriza-se aofensa pelo cárcere privado, dolosa apresentação de queixaou denúncia falsa e prisão ilegal (CC, art. 954). O autor diretoda ofensa é o sujeito passivo da relação obrigacional nashipóteses de cárcere privado e dolosa apresentação dequeixa falsa (RT, 798/339); o Estado responde nas de dolosadenúncia falsa e prisão ilegal, já que estes atos só podem serpraticados por seus agentes.

d) Inscrição indevida em cadastros de inadimplentes.O inadimplemento de obrigações é registrado, na sociedadeurbana contemporânea, em imensos cadastros (bancos dedados). Os mais conhecidos são os dos serviços de

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proteção ao crédito prestados pelas associações comerciais(SPC) ou por empresas privadas (SERASA), os dos cartóriosde protestos de títulos (embora sua função jurídicaprimordial seja diversa) e o cadastro de emitentes decheques sem fundos (CCF) mantido pelo Banco Central. Emvista da grande complexidade que os cerca e da quantidadede registros que realizam, os bancos de dados podemincorrer, por ato próprio ou de terceiros, em erros. Pessoascumpridoras de suas obrigações, que nunca emitiramcheques sem fundos podem, por força deles, ver seus nomesinscritos nesses bancos de dados. É injusto e causaconsiderável dor moral. Cabe a indenização compensatóriadela, sem prejuízo da dos danos patrimoniais que venhameventualmente a ocorrer (RT, 806/274; 803/407).

A jurisprudência considera que a pessoa járegularmente inscrita em cadastro de inadimplentes não temdireito à indenização por danos morais pela sobrevinda deinscrição irregular (STJ, Súm. 385). Não é crível que alguémjustamente inscrito como inadimplente em cadastro deconsumidores possa sofrer qualquer dor passível deindenização pela nova inscrição, já que sua situaçãopsicológica em nada se altera com esta.

e) Dano estético. Por dano estético considera-sequalquer enfeamento na aparência física da pessoa, segundoos padrões de beleza nutridos pela sociedade (Silva, 1961;Magalhães, 1980:18). No passado, dissertava-se sobre o

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tema como se limitado às mulheres jovens e solteiras, para asquais o dano estético podia significar obstáculointransponível ao casamento e infelicidade eterna. Hoje,desvestido dos preconceitos de antanho, o tema érelacionado a qualquer pessoa, homem ou mulher, jovem ounão, independente do seu estado civil. A beleza daaparência física é sumamente importante para a autoestima,principalmente num país tropical. Se a feiúra foi causada poracidente inevitável ou ato ilícito, o enfeado tem direito àindenização moral (RT, 795/369). Note-se bem: ocorrendodano estético, a indenização a ele relacionada compensa já oprejuízo extrapatrimonial da vítima pela dor vivenciada. Nãohá que falar, portanto, em indenização em separado do danoestético e da dor (RT, 789/361).

Claro que, sendo o lesado profissional da imagem(artista, apresentador de televisão, modelo etc.), aindenização deverá ser também patrimonial.

f) Valor de afeição . Na hipótese de usurpação ouesbulho de coisa alheia, se não for possível a restituição dopróprio bem usurpado ou esbulhado, o devedor é obrigado apagar ao credor da indenização o seu valor de mercado (a leifala em “preço ordinário”). Em se tratando, porém, de coisapela qual o credor nutria especial afeição, como joias defamília, antiguidades raras, edição esgotada de um livro etc.,determina a lei o pagamento do dano moral, referido pelanoção de valor de afeição (CC, art. 952, parágrafo único, in

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fine). Trata-se da única hipótese em que a lei estabeleceucritério de quantificação da indenização moral; limitou-a aopreço ordinário. Desse modo, na melhor das hipóteses parao credor, na perda de coisa com valor de afeição, ele temdireito ao dobro do valor de mercado dela.

g) Assédio sexual. O elemento característico do assédiosexual é a insistência do assediador. Na cultura brasileira,flertes com algum tempero malicioso não representamnecessariamente desconforto insuportável para odestinatário ou danos à sua reputação. O assédio surgequando o assediado já fez ver ao assediador não ser bem-vinda a sugestão de intimidade sexual entre eles, mas amensagem não é respeitada. A insistência desautorizada doassediador, principalmente em ambiente de trabalho, dáensejo à responsabilização por danos morais. A prova doassédio normalmente é indiciária, tendo especial relevo apalavra da vítima, se é pessoa equilibrada (RT, 806/319).Para que se verifique a responsabilidade, não é necessárioque o assediador seja superior hierárquico ou tenhaqualquer outra ascendência sobre o assediado. É irrelevantetambém o sexo de um ou de outro, se iguais ou diferentes.

h) Dissolução do casamento. A dissolução docasamento costuma representar perdas patrimoniais para osque se separam. Eduardo de Oliveira Leite lembra aestimativa feita pela Fundação Instituto de PesquisasEconômicas da USP, que aponta aumento nos gastos na

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ordem de 25% quando o marido sai de casa e vai morarsozinho, índice que sobe para 35%, se ele passa a sustentaroutra mulher, e para 50%, se tem outros filhos (2002:133).Essas perdas não são indenizáveis, devendo cada um dosantigos cônjuges reorganizar sua vida com os bens a quetem direito e eventual alimentos. De outro lado, quando adissolução do casamento é acompanhada de dor expressivapara o cônjuge inocente, cabe indenização dos danosmorais (cf. Bittar, 2003). É necessário, como em qualqueroutra hipótese, que tenha o credor da indenização sofridouma dor tormentosa, mais grave que o simplesaborrecimento e stress que toda separação provoca. Se, porexemplo, nas vezes anteriores em que o cônjuge havia sidoinfiel, houve interesse na continuidade do casamento, novainfidelidade pode ser causa do rompimento do vínculomatrimonial, mas não é provável que inflija ao inocente dorextrema digna de compensação pecuniária; por isso, nãodeve ser paga indenização por danos morais nesse caso.

Sempre que o evento danoso implicarexcepcional dor à pessoa vitimada oua familiar, será devida indenização

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por danos morais. Os casos maiscomuns dizem respeito a: morteprematura de parente, ofensa à honraou à liberdade, inscrição indevida emcadastros de inadimplentes, danosestéticos, perda de coisa com valor deafeição, assédio sexual e dissolução docasamento ou noivado.

Nas mesmas condições, a dissolução da relaçãoconcubinária e mesmo do noivado também dá ensejo àindenização dos danos morais.

3.4. Quantificação do dano moralA quantificação dos danos morais é a questão mais

difícil das que suscita a matéria. Como fixar, em reais, o valorque compense a dor extremada que o credor sentiu? Deinício, convém assentar que não há critério de mensuraçãoobjetivo. A dor não se mede por variáveis controladasquantitativamente. Desse modo, embora fosse desejável

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eliminar as diferenças entre os valores das condenações emcasos semelhantes, estas têm sido significativas (cf. Zuliani,2002:212/215). Do exame da jurisprudência, de qualquermodo, pode-se concluir um padrão geral e alguns fatores deredução, aquele e estes sempre subjetivos, isto é, atentos àspeculiaridades dos sujeitos envolvidos.

O padrão geral é o da intensidade da dor. Quanto maioro pesar experimentado pelo sujeito ativo, maior o valor daindenização. Não há e é provável que nunca hajainstrumentos de medição da dor. Assim, em termosobjetivos, não se consegue estabelecer relaçõesquantitativas entre o sofrimento das pessoas. Mas ojulgador pode extremar ou hierarquizar duas ou maissituações dolorosas, pela sua própria experiência de vida. Seo filho é barbaramente espancado até a morte por policiais, ador experimentada pelos pais será grande de qualquer forma;se eles presenciaram os fatos, porém, é ainda maior.Qualquer um pode intuí-lo.

Para fixar o valor da indenização em função do padrãogeral, o juiz deve informar-se sobre os precedentesjurisprudenciais. Considero, inclusive, oportuno que ostribunais criem bancos de dados das decisões proferidas emprimeiro e segundo grau sobre danos morais, alimentadossegundo metodologia que permita comparar valoresatualizados, e dos quais possa valer-se quem queiraconhecer a média em reais das condenações, classificadas

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por tipo de lesão.Alcançado o valor dos danos morais pelo padrão geral,

cabe ao juiz verificar o cabimento de algum fator de redução.Do exame geral da doutrina e jurisprudência, conclui-se apertinência dos seguintes: a) reduzido grau de culpa dodevedor: como examinado, a lei brasileira autoriza o juiz areduzir o valor da indenização na hipótese de desproporçãoentre os danos e o grau de culpa do devedor (subitem 1.1.1);b) concorrência da culpa da vítima: se para o eventodanoso concorreu culposamente a vítima, o valor daindenização deve ser reduzido proporcionalmente àparticipação dela (subitem 1.1.2); c) demora no ajuizamentoda ação: como a dor com o tempo se esvaece, acircunstância de o demandante não ajuizar a ação deindenização tão logo pudesse fazê-lo indica que, mesmotendo sido ela significativa no momento do dano, não é maisao tempo da demanda (RT, 803/193); d) pouca sensibilidadeda vítima: é indispensável levar em consideração o caráterdo demandante; se, por exemplo, ele tinha já diversos títulosprotestados, sua dor diante de um protesto indevido éconsideravelmente menor que a sentida pelo trabalhadorhonesto que nunca inadimpliu suas obrigações; e) atuaçãodo devedor: se a pronta e leal atuação do responsável peloevento danoso diminuiu o constrangimento ou sofrimentoda vítima, dentro dos limites do humanamente factível, ovalor da indenização deve ser também reduzido (RT,

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802/266); f) ser devedor o Estado: reduz-se a indenizaçãomoral imposta às pessoas jurídicas de direito público, tendoem vista ser a sociedade como um todo que realmente arcacom seu pagamento neste caso (Cianci, 2003:62/84; Couto,2001, julgados com remissão preço da dor; Gonçalves,2002:569/578, 2003:366/367; Diniz, 2002, 7:96; Alpa,1999:656/657; Martins-Costa, 2001; Assis, 1999:759).

O padrão geral de quantificação dodano moral é o da intensidade da dor.Estabelecido o valor, em reais, que acompense, deve o juiz verificar se nãohá, no caso, a incidência de algumfator de redução, como o reduzidograu de culpa do devedor, a culpaconcorrente da vítima, a demora noajuizamento da ação de indenização, aconduta do devedor ou a imposição da

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obrigação ao Estado.

Tanto na aplicação do padrão geral como na dos fatoresde redução, deve o juiz julgar por equidade (Casilo, 1987:98)e convém não dar importância acentuada às condiçõeseconômicas dos sujeitos. Apesar de algunspronunciamentos judiciais recomendando considerar acondição socioeconômica das partes na fixação dos danosmorais (RT, 795/198), repugna os valores cultivados pelamoderna sociedade democrática discriminar a pessoa emfunção desses fatores. Quer dizer, 500 salários mínimoscomo compensação da dor da morte prematura do filhopodem representar, para um operário, a oportunidade deadquirir sua casa própria. O mesmo dinheiro não muda nadaa vida de próspero banqueiro. Não poderia o juiz, contudo,para que a indenização realmente tivesse significado paraeste último, decuplicar-lhe o valor apenas em função da suacondição econômica. A dor do pobre não pode valer menosque a do rico, nem vice-versa. Não deve impressionar ojulgador se a indenização por danos morais, assim, vaienriquecer muito ou pouco o sujeito ativo. Enriquecimento,como visto, sempre haverá. Proporcionalizá-lo em vista dacondição econômica do lesado importa discriminação nãotolerada pelo princípio constitucional da igualdade.

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3.5. Um mundo de não me toquesA indenização dos danos morais está exposta a dois

tipos de desvirtuamentos: de um lado, a banalização da dor;de outro, o exagero na fixação do valor devido. Não estouaqui considerando situações de abuso de autoridade oucorrupção no Judiciário, que, embora representem tambémobjeto de grande preocupação, possuem causas edesdobramentos gerais, não específicos da matéria daresponsabilidade civil por dano moral (cf. Passos, 2002).Cuido de decisões proferidas por magistrados honestos ebem-intencionados, que, no afã de garantir à vítima acompleta indenização e pensando aplicar o corretivo aodemandado que imaginam eficiente, consideram passíveis deindenização simples desconfortos ou fixam elevadas somasna condenação.

O primeiro cuidado do juiz, no julgamento de ações emque é pleiteada indenização por danos morais, deve ser o denão banalizar a dor. Destina-se o instituto a atender àquelaspessoas atingidas por acidentes ou atos ilícitos que lhec a u s a ra m profundo sofrimento. Se os sentimentosexperimentados não se caracterizam como uma dortormentosa, excepcional, significativa, não é o caso de fixarindenização por danos morais. Desde sempre, a doutrina temrecomendado moderação no trato da matéria, para que nãose tome por referência nem as pessoas frias e insensíveis,nem as de sensibilidade extremada e doentia, mas as médias

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(Silva, 1955:513).Também deve ficar atento o magistrado para não cair

ingenuamente nas artimanhas da indústria da vitimização. Háos que, diante da chance de se envolverem em situaçõesembaraçosas, propositadamente não reagem a tempo dedesfazer o mal-entendido, com o objetivo de enriquecer comos danos morais. A hipótese de simulação da dor nuncapode ser descartada, principalmente quando o evento nãoimportou danos à vida ou integridade física do prejudicado.Em todos os casos, porém, o juiz não pode contentar-se coma simples alegação do demandante. Se os fatos ecircunstâncias constantes dos autos não sugerirem oexperimento de profunda dor, não deve impor ao demandadoa indenização moral.

Quanto ao segundo desvirtuamento, deve o valor daindenização moral destinar-se unicamente à compensação dador experimentada. A liquidação dos danos morais nãopresta à sanção dos devedores da obrigação de indenizar. Sea conduta do demandado for particularmente reprovável,pode o juiz até mesmo fixar indenização punitiva, masconvém deixar claro, na decisão, que o valor correspondenteà sanção não integra os danos morais. A responsabilidadecivil não tem caráter sancionatório quando objetiva, porqueos danos objeto de indenização (inclusive os morais)decorrem de atos lícitos. Os acidentes inevitáveis da eracontemporânea não deixarão de acontecer pelo aumento no

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valor das indenizações. Eles continuarão ocorrendoenquanto homens e mulheres forem falíveis. Indenizaçõeselevadas apenas importarão, na maioria das vezes, carestia einflação, porque serão, sempre que possível, socializadas.

Dois desvirtuamentos podemcomprometer o instituto dos danosmorais: a banalização da dor e aelevação dos valores da indenização.Se dissabores forem consideradosindenizáveis e o valor dos danosmorais for utilizado como medida dedesestímulo quando o acidente éinevitável, estaremos criando ummundo de não me toques que nãointeressa à sociedade e à economia.

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Em suma, a indenização por danos morais será institutotanto mais prestigiado e justo quanto menos fordesvirtuado. Não interessa à sociedade ou à economia quedissabores, desconfortos, aborrecimentos ou apoquentaçãogerem custos socializáveis. Definitivamente, não interessacriarmos um mundo de não me toques.

4. INDENIZAÇÃO PUNITIVA (PUNITIVE DAMAGES)A indenização punitiva é criação do direito anglo-saxão.

O objetivo originário do instituto é impor ao sujeito passivoa majoração do valor da indenização, com o sentido desancionar condutas especialmente reprováveis. Como opróprio nome indica, é uma pena civil, que reverte em favorda vítima dos danos. Não se confundem a indenizaçãopunitiva (punitive damages) e a compensação pelos danosmorais (pain and suffering damages): a primeira é devidaquando o demandado agiu no evento danoso com dolo,malícia ou imprudência, revelando indiferença quanto aosdireitos dos outros; a última, se houver danos pessoaisgraves (cf. Sustein-Hastie-Payne-Schkade-Viscusi,2002:10/12). A pertinência e eficiência da indenizaçãopunitiva são questionáveis. As elevadas condenações sãoapontadas como um dos motivos do litigation boominiciado nos anos 1990 nos Estados Unidos, e, na Inglaterra,há quem proponha sua abolição (Alpa, 1999:610/611; Tunc,1989:171).

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Pois bem, a indenização punitiva cabe no direitobrasileiro?

Os autores que enfrentaram a questão de forma correta(isto é, tendo clara a distinção entre ela e os danos morais)concluem pela sua inadmissibilidade sem lei que aestabeleça. Carlos Roberto Gonçalves, entre eles, destacaque a função punitiva da indenização é meramente reflexa ouindireta, que sua finalidade precípua é recompor opatrimônio do lesado. Diverge, então, dos que recomendamum plus na indenização por danos morais, a título de penacivil. Sustenta seu argumento não somente nas diferençaseconômicas, históricas e dos costumes verificáveis entre oBrasil e os Estados Unidos, mas também nos conteúdos elimites dos poderes dos juízes e nos sistemas de segurosdos dois países. Por fim, valendo-se de lição de José IgnácioBotelho de Mesquita, conclui que o princípio constitucionalda reserva legal em matéria de penas (CF, art. 5º, XXXIX)impede, na ordem jurídica brasileira, a imposição daindenização punitiva, sem que lei a preveja e fixe os valoresmínimo e máximo (2003:363/366).

De fato, a lei contempla, no Brasil, algumas hipóteses deindenização punitiva. Cabe, por exemplo, na cobrançaindevida (CC, arts. 939 e 940; CDC, art. 42, parágrafo único— Cap. 22, subitem 7.2), na construção que invade soloalheio se houver má-fé (CC, arts. 1.258, parágrafo único, e1.259) e nas relações internas do condomínio edilício (CC,

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art. 1.337). Não há, portanto, incompatibilidade entre odireito brasileiro e o instituto. A questão, em essência, residena definição do alcance do princípio da reserva legal. Diz oinciso XXXIX do art. 5º da Constituição que “não há crimesem lei anterior que o defina, nem pena sem préviacominação legal”. A sanção civil, a exemplo da penal, nãopode existir sem prévia lei que a estabeleça?

Em vista da autonomia das esferas de responsabilizaçãojurídica (civil, penal e administrativa), segue cada tipo desanção seu regime próprio. O princípio da reserva legalaplica-se às sanções de natureza pecuniária cujo resultadoreverte para o Estado. É esse o caso das multas de direitopenal e administrativas. E, com certeza, para impor aoresponsável por danos qualquer sanção pecuniária a sersatisfeita mediante pagamento ao Estado, é necessárioprévia lei que a comine. Mas a indenização que se reverte emfavor do próprio prejudicado (sanção civil) não se submeteàquele princípio constitucional. Aliás, se fosse aplicável àliquidação dos danos o art. 5º, XXXIX, da CF, a indenizaçãomoral não caberia nas hipóteses de responsabilidadeobjetiva (estranhas às relações de consumo) em queinexistisse específica previsão legal, já que a norma deâmbito geral do art. 186 do CC aplica-se apenas àresponsabilidade subjetiva.

Entendo, portanto, ser cabível no direito brasileiro,mesmo sem lei que a estabeleça em termos gerais ou

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específicos, a indenização punitiva nos casos em que aconduta do demandado tiver sido particularmentereprovável. Se restar provado que o cirurgião foi totalmentedisplicente, sem a mínima consideração para com o paciente,indiferente aos efeitos de sua desatenta conduta, aindenização não deve limitar-se à compensação dos danospatrimoniais e extrapatrimoniais da vítima. Cabe acrescer-lheuma verba a título de sanção civil, que integrará o crédito daindenização. Este profissional não pode ser tratado de modoigual ao colega que, embora incorrendo em erro médico,havia agido com total apreço pelos direitos do paciente.

O objetivo da indenização punitiva ésancionar a desconsideração aosdireitos alheios manifestada peloresponsável pelo acidente inevitávelou ato ilícito. Não se confunde com osdanos morais, que visam compensar avítima pela dor extremada quevivenciou.

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A indenização punitiva só pode ser imposta ao devedorda obrigação de indenizar quando exacerbada areprovabilidade de sua conduta. Desse modo, sendosubjetiva a responsabilidade, à prova da culpa deveacrescer-se a da desconsideração aos direitos alheios, parater cabimento a imposição. Sendo objetiva aresponsabilidade, também caberá à vítima fazer as mesmasprovas. Note-se que a objetivação da responsabilidadedesqualifica a discussão da culpa para fins de indenizaçãocompensatória (dos danos patrimoniais e extrapatrimoniais).Em postulando a vítima também a indenização punitiva,chama para si o ônus de provar não só a culpa como adesconsideração dos direitos alheios na conduta dodemandado. Se não forem exigidas essas provas dodemandante, a natureza punitiva da indenização conduziriaao absurdo da sanção imposta a condutas lícitas. Claro que,se a vítima não produzir de modo satisfatório a prova daculpa do demandado e do seu desprezo pelos direitos dosoutros, não fará jus à indenização punitiva, mas continuarátitularizando o direito à indenização compensatória (dosdanos patrimoniais e extrapatrimoniais), quando objetiva aresponsabilidade do demandado.

5. SOLIDARIEDADE E DIREITO DE REGRESSO

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Podem ser dois ou mais os sujeitos causadores do dano.Neste caso, haverá solidariedade entre eles (CC, art. 942, infine). Isso significa, de um lado, que o credor pode acionarqualquer um dos autores do prejuízo pelo valor integral daindenização, e, de outro, que o valor dos danos é divididoentre eles em regresso. Assim, se um grupo de desordeirosvandaliza obra de arte exposta em praça pública, qualquerum é responsável pela totalidade dos danos e pode, em açãoregressiva, cobrar a quota-parte dos demais. Há tambémsolidariedade entre responsável e causador nas hipóteses deresponsabilidade complexa. Assim, se a vítima preferir, podedemandar o aluno causador dos danos em vez doestabelecimento escolar em que está matriculado em regimede internato, por exemplo.

Em tema de responsabilidade civil, o direito de regressoentre devedores solidários deve observar aproporcionalidade da culpa. Diz a lei que “aquele queressarcir dano causado por outrem pode reaver o quehouver pago daquele por quem pagou” (CC, art. 934,primeira parte). Isso significa que cada um responde pela suaparticipação culposa no evento danoso, a menos que sejaimpossível estabelecê-la. No exemplo dos vândalos, para aPrefeitura credora da indenização é indiferente a participaçãode cada um no prejuízo. Ela tem direito de cobrar a totalidadedos danos de qualquer um deles. Na ação regressiva, porém,o que pagou a indenização pode provar a maior culpa de um

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ou outro do grupo, perante a qual sua contribuição para oprejuízo mostra-se relativamente pequena; assim fazendo,poderá cobrar em regresso dos demais desordeiros valorcorrespondente à participação de cada um. Em outrostermos, no regresso regido pelo direito da responsabilidadecivil, a quota-parte dos devedores solidários não ésimplesmente aritmética (total dos danos dividido pelonúmero de autores) se for provada a diferente participaçãoculposa de cada um para o resultado danoso.

Essa forma peculiar de distribuir a obrigação entre ossolidários na ação regressiva tem implicações de relevo. Seum devedor não contribuiu para o prejuízo com qualqueração culposa, ele não deve arcar, no final, com nenhumaquota da indenização. Se tiver sido cobrado em juízo pelolesado e não conseguiu provar a ausência de culpa, deve,evidentemente, pagar-lhe em razão da solidariedade. Mas,em regresso, provando ter sido da culpa exclusiva dosdemais causadores o evento danoso, pode cobrar aintegralidade do que pagou.

Se são dois ou mais os autores dodano, respondem solidariamente pelaindenização. Há solidariedade,

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também, entre o responsável e ocausador nos casos deresponsabilidade complexa. Emregresso, a indenização é repartidaentre os devedores solidáriosproporcionalmente à culpa de cada umpara o evento danoso.

Também tem implicações relevantes a regra daproporcionalidade da culpa na composição regressiva entreos devedores solidários quando se trata de responsabilidadeobjetiva. Se o tutor é responsabilizado por danos causadospelo pupilo, mas não concorreu de nenhuma maneira para odano, ele pode, em regresso, cobrar do tutelado a totalidadedo que pagou ao prejudicado. Se o empregado foi o únicoculpado pelo dano, o empregador pode reaver dele, na açãoregressiva, o valor total pago ao terceiro prejudicado.Quando há culpa ou dolo do agente público, o Estado pode,em regresso, recuperar o valor completo da indenização paga(cf. Azevedo, 1993).

A regra da proporcionalidade na quotização regressiva

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entre os devedores solidários da indenização temimportância, por fim, quando eles respondem objetivamente,mas apenas um deles foi o culpado pelo dano. Se o animal,ao atravessar a rodovia, chocou-se com um veículo, tanto oseu dono como a concessionária são objetivamenteresponsáveis pela indenização. O proprietário do veículopode escolher qualquer um deles para demandar e, comoassinalado, tenderá a escolher a concessionária. Pois bem,se ela indenizar o prejudicado, poderá promover açãoregressiva contra o dono do animal. Se não provar a culpado dono, a concessionária poderá cobrar apenas a metadedo valor desembolsado na indenização do terceiro, já que aresponsabilidade dos dois é objetiva. Mas, se ela provar queo dono não era diligente na guarda de seus animais, a culpapelo acidente é inteira dele e não da concessionária. Nestecaso, então, ela poderá exigir do dono do animal tudo o quetiver pago ao terceiro prejudicado.

O regime específico da solidariedade entre devedores daobrigação de indenizar oriunda de responsabilidade civilveda, por fim, o direito de regresso numa hipótese: se ocausador do dano é descendente menor do responsável (CC,art. 934, in fine). O pai ou a mãe que indeniza danoscausados pelo filho menor (absoluta ou relativamenteincapaz) não tem o direito de reaver deste o que pagou.Trata-se de norma de constitucionalidade duvidosa, em facedo princípio constitucional da igualdade. Em situações

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especiais, inclusive para a proteção dos interesses de outrosfilhos do mesmo responsável, em que a injustiça da vedaçãodo regresso mostrar-se mais intensa, ela simplesmente nãodeve ser aplicada pelo juiz.

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