cultura.sul 82 - 3 jul 2015

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www.issuu.com/postaldoalgarve 8.431 EXEMPLARES Mensalmente com o POSTAL em conjunto com o PÚBLICO JULHO 2015 n.º 82 D.R. Festivais de Verão: Um roteiro pelos palcos da música p. 5 Rota Omíada, a herança do al-Andalus p. 2 D.R. Fotografar o Verão p. 7 D.R. Espaço AGECAL: Festa da Pinha p. 3 Sala de leitura: O que eu (não) sei de livros D.R. p. 8 D.R. Espaço ALFA: Escolas: Pontes para o acesso à cultura p. 10 D.R. Um olhar sobre o património:

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• CONHEÇA O CULTURA.SUL DESTE MÊS • Sexta-feira (dia 3/07) nas bancas com o PÚBLICO e o POSTAL • Partilhe o seu caderno mensal de Cultura no Algarve • EM DESTAQUE: > MISSÃO CULTURA: Rota Omíada, a herança do al-Andalus, por DR Cultura do Algarve > ESPAÇO AGECAL: A Cultura no Algarve: Tradição e a Festa da Pinha, por Marco Taveira > LETRAS E LEITURAS: Os Interessantes – O romance de uma geração, por Paulo Serra > PANORÂMICA: Música para todos nos festivais de Verão, por Ricardo Claro > ARTES VISUAIS: Qual a importância do reconhecimento da criatividade dos artistas? por Saul Neves de Jesus > ESPAÇO ALFA: Fotografar o Verão, por Raúl Grade Coelho > SALA DE LEITURA: O que eu (não) sei de livros, por Paulo Pires > O(S) SENTIDO(S) A 37º N: Julho, por Pedro Jubilot > DA MINHA BIBLIOTECA: Panfleto utópico em forma romance: Troika-me, de Maria João Neves, por Adriana Nogueira

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Page 1: CULTURA.SUL 82 - 3 JUL 2015

www.issuu.com/postaldoalgarve8.431 EXEMPLARES

Mensalmente com o POSTAL

em conjuntocom o PÚBLICO

JULHO2015n.º 82

d.r

.

Festivais de Verão: Um roteiro pelos palcos

da música p. 5

Rota Omíada, a herança do al-Andalus

p. 2

d.r.

Fotografar o Verão

p. 7

d.r.

Espaço AGECAL:

Festa da Pinhap. 3

Sala de leitura:

O que eu (não) sei de livros

d.r.

p. 8

d.r.

Espaço ALFA:

Escolas: Pontes para o acesso à cultura

p. 10

d.r.

Um olhar sobreo património:

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03.07.2015 2 Cultura.Sul

AGENDAR

A Rota Omíada no Algarve: Projeto ENPI “UMAYYAD”

Esta rota é um itinerário turístico-cultural que preten-de dar a conhecer a profunda relação humana, cultural, ar-tística e científica que se es-tabeleceu entre o Oriente e o Ocidente, assim como a trans-missão do legado grego latino à Europa através de al-Andalus.

O Algarve é o território por-tuguês com um passado mu-çulmano mais prolongado, sendo o topónimo Algarve procedente do termo árabe al--Gharb (o Ocidente) um caso em que a etimologia das pala-vras nos fala sobre o passado de uma região.

O limite geográfico do mo-derno território algarvio corres-ponde ao espaço que perten-ceu à antiga diocese provincial visigótica e, sequentemente à küra (província) islâmica de Os-sónoba, cuja capital era, inicial-mente em Santa Maria do Oci-dente (Faro) e acabou, a partir do Califado Omíada, sendo substituída enquanto capital pela medina de Xilb (Silves).

A diocese visigótica de Ossó-noba foi conquistada em 713,

para o Califado Omíada de Da-masco, pelas tropas de Abd al--Aziz, filho de Musa, governa-dor da Ifriqiya, atual Tunísia.

A Rota dos Omíadas no Algarve faz parte do projeto internacional “Umayyad”, um projeto financiado pelo pro-grama European Neighbourhood and Partnership Instrument (ENPI) dentro da convocatória Cross Border Cooperation. É li-derado pela Fundação Pública Andaluza El Legado Andalusí e tem como parceiros, em Por-

tugal, a Direção Regional de Cultura do Algarve e o Turis-mo do Algarve.

São parceiros do projeto sete países da bacia do Medi-terrâneo: Portugal, Espanha, Itália, Tunísia, Egito, Líbano, e Jordânia.

O objectivo do projeto é criar um grande itinerário turístico transnacional (Rota dos Omíadas/Umayyad Route) subdividido em rotas nacionais em cada um dos países sócios.

O conjunto dos itinerários

tem como denominador co-mum o rico património legado pela dinastia Omíada, no seu período de expansão ao longo do Mediterrâneo.

O plano de atuação do pro-jeto “Umayyad” prevê a realiza-ção de ações coordenadas, em cada um dos sete países mem-bros, que terão como finalida-de oferecer aos futuros turistas uma oferta de qualidade base-ada num património comum.

Diferentes iniciativas re-lacionadas com a rota serão

desenvolvidas, como a parti-cipação de operadores turísti-cos locais e atividade de difu-são e promoção, assim como a associação de outros atores no campo das atividades turísti-cas e culturais.

Todas as atuações enquadra-das pelo projecto pretendem criar uma maior coesão terri-torial através de um itinerário turístico-cultural sustentado e responsável que optimize a aces-sibilidade e as relações entre os países da bacia mediterrânica.

Iniciativa

A Ria Formosa volta a ser cenário para a produção ci-nematográfica. Este é o reco-nhecimento das característi-

cas ideais que a nossa região possui, quer a nível das pai-sagens magníficas, quer das boas acessibilidades, condi-ções climatéricas e a forma afável como a população re-cebe as equipas.

Em contrapartida, estas iniciativas são uma excelen-te forma de promover a nossa região, dentro e fora do país.

"Hei-de morrer onde nas-ci", de Miguel Munhá, é uma produção da Vagalume Fil-

mes e está a ser filmado na Culatra, Hangares e Farol, com o apoio da Câmara Mu-nicipal de Olhão.

A produção envolve para além de atores reconhecidos nacionalmente, como João Tempera e Duarte Gomes, atores da nossa região como João Evaristo e Tânia Silva e gente da terra que abraça assim este projeto, como são o caso de José Sabino e José Lézinho.

Segundo o produtor e re-alizador Miguel Munhá, esta é uma homenagem às ilhas da Ria Formosa, à cultura de toda essa peculiar região. Dentro desse contexto, dois irmãos (Marinho - o mais velho; Janeca - o mais novo) lutam por sonhos diferentes. Essa diferença de perspetivas irá fazer com que se come-cem a criar conflitos na sua relação. Dividido entre o ir-mão e a ilha, Marinho sente

que tem de proteger a família e a tradição. Dividido entre a família e o seu futuro, Janeca sente precisar de fugir.

“Hei-de morrer onde nasci” é uma história sobre relações familiares, tradições, as ilhas algarvias, e é também a ten-tativa de reflexão sobre o que é a alma de um determinado lugar - neste caso, a casa de Marinho e Janeca (que é uma mistura ficcionada das ilhas Culatra, Hangares e Farol).

Editorial Missão Cultura

Direção Regionalde Cultura do Algarve

Juventude, artes e ideias

Jady BatistaCoordenadora Jornal J

“NOVOS MUNDOS”Até 19 de Julho | Museu de PortimãoTimo Dillner nasceu em Wismar na Alemanha em 1966, vive em Bensafrim, Lagos, há 16 anos. É um artista multifacetado que apresenta pinturas, poe-inturas, poe-mas, obras gráficas, esculturas e vídeo

“PORTUGAL, PAÍS DAS MARAVILHAS”14 e 15 JUL | 21.30 | Centro Cultural de LagosO Boa Esperança, apesar da crise já há algum tempo instalada e de tantas outras contrariedades, pro-mete não poupar nas gargalhadas na sua Revista à Portuguesa

foto: drcalg

O Castelo de Aljezur é um dos monumentos que integra a Rota Omíada

O Teatro das Figuras cumpriu dez anos de função, quer como sala maior da cidade de Faro, quer como palco de referência da região.

Uma década de serviço de uma sala de espectáculos que, advogam alguns, devia ser mais polivalente em termos de luga-res disponiveís, uma vez que, a dimensão da plateia, dizem, é muitas vezes excessiva.

As plateias não são excessivas por definição, são-no por falta de qualidade dos espectáculos, umas vezes, ou por falta de atrac-tividade dos mesmos junto do público, outras tantas.

Depois de um par de anos em que efectivamente o que teve para oferecer - em tempos ma-gros do ponto de vista financei-ro - foi muito pouco e de pouca atractividade e em que a lógica escolhida para a programação não vingou em termos de audi-ências, o Teatro das Figuras dá agora sinais de renascimento.

Há uma lógica de programa-ção que, feita por quem sabe e pensada para a transversalidade na abragência de públicos, de-volveu à sala o movimento e as pessoas.

Regressa-se assim ao que uma sala de referência deve ser, um palco de todos e para todos, do erudito ao mais popular, do clássico ao contemporâneo e aos desafios da modernidade.

Uma década depois, a cidade está diferente e o seu teatro mu-nicipal também. Sem competir directamente com o Lethes, as duas salas completam-se, numa cidade e região que já deram provas de as poder preencher.

Nos palcos da fantasia e do sonho, da arte e da temeridade dos actores, cantores, bailarinos, e performers valentes, há hoje um nome cada vez mais incon-tornável. Teatro das Figuras.

Teatro das Figuras

Ricardo [email protected]

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03.07.2015  3Cultura.Sul

Espaço AGECAL

Grande ecrã

Cineclube de Faro Programação: cineclubefaro.blogspot.pt

Q - ESPAÇO CULTURAL (Jardins do antigo Magistério Primário) | 21.30 HORAS (* sessões gratuitas)

5 JUL* | LUZES DA CIDADE, C. Chaplin, EUA, 1931, 87’9 JUL | O PEDIDO DE EMPREGO, Pedro Caldas, Port, 7’ | DOIS DIAS, UMA NOITE, Jean-Pierre e Luc Dardenne, Bélg, 2014, 95’12 JUL | CORRENTE, Rodrigo Areias, Por-tugal, 15’ | A TERRA TREME, Luchino Vis-conti, Itá, 1948, 160’

16 JUL | CORO DOS AMANTES, Tiago Gue-des, Port, 22’ | O PAÍS DAS MARAVILHAS, Alice Rohrwacher, Itá/Suí/Alem, 2014, 111'19 JUL | LUMINITA, André Marques Port, 20’ | LEVIATÃ, Andrey Zvyagintsev, Fed Rus, 2014, 140’23 JUL | FUERA DE CUADRO, Márcio La-ranjeira, Port/ Arge, 9’ | MR. TURNER, Mike Leigh, RU, 2014, 150’

Cineclube de TaviraProgramação: www.cineclubetavira.com281 971 546 | [email protected]

14ª MOSTRA DE CINEMA EUROPEU - AR LIVRE | CLAUSTROS DO CONVENTO DO CARMO – 21.30 HORAS

17 JUL | PRIDE (ORGULHO), Matthew Warchus, Reino Unido 2014 (120’) M/12

18 JUL | THE IMITATION GAME (O JOGO DA IMITAÇÃO), Morten Tyldum – Reino Unido/E.U.A. 2014 (114’) M/1219 JUL | DEUX JOURS, UNE NUIT (DOIS DIAS, UMA NOITE), Jean-Pierre e Luc Dar-denne – Bélgica/França/Itália 2012 (95’) M/1223 JUL | ALENTEJO, ALENTEJO, Sérgio Tré-faut – Portugal 2014 (98’) M/1224 JUL | IDA, Pawel Pawlikovski – Poló-nia/Dinamarca 2013 (82’) M/14

Cinema no Convento do CarmoJá chegámos à 15ª edição da

Mostra de Cinema Europeu de Tavira, um evento que conhe-ceu a luz nos mágicos Claustros do Convento da Graça no ano 2000. A seguir será a vez da sua parente: a 10ª Mostra de Cine-ma Não-Europeu. O que desde o início pretendemos com estas festas de cinema é oferecer-vos um programa cuidadosamente composto por histórias sensí-veis, de alta qualidade artística e estética, contadas através de imagem e som. No entanto, e infelizmente, a digitalização dos filmes disponíveis na rede de distribuição nacional (e no resto do mundo), a nossa in-capacidade financeira e a total falta de apoios existentes para adquirirmos um sistema de projecção DCP (Digital Cinema Package), pela primeira vez limi-tou a nossa escolha.

Em 2013 conseguimos exibir 13 dos 22 filmes no formato 35mm (celuloid), no ano pas-sado apenas foram cinco, este ano nem um único...

Mesmo assim, e remando plenamente com os remos ao nosso alcance, eis a nossa pro-posta de curtas e longas delícias para este Verão, algumas exibi-das pela primeira vez em solo português. Convidamo-vos a

juntarem-se a nós, diariamente, a partir das 20.30 horas, nestes belos Claustros do Convento do Carmo. Espero que tanto a nossa selecção como o ambiente cria-do mais uma vez vos agrade!

Cineclube de Tavira

Imagem do filme 'Alentejo, Alentejo', de Sérgio Tréfaut, que integra a mostra tavirense de cinema

fotos: d.r.

As tradições, segundo Joaquim Pais de Brito, são “coisas que antes de o ser já o eram”. As tradições admitem um momento em que certo grupo lhes dá nome apontando práticas, maneiras de fazer ou dizer, refaze-rem e serem pertença do grupo. Os costumes e que ainda hoje se prati-cam para manter a incorporação do passado, ligam-se ao presente através das ritualizações de práticas, como é referido por Joaquim Pais de Brito, “devem ter lugar como processo formal e meio de legitimar ou dar pleno senti-do a determinado contexto da vida dos indivíduos ou do grupo”. Há tradições que se encaminham para a marcação de determinadas datas do calendário repetidas em cada ciclo.

As festividades populares têm a sua origem nos velhos cultos naturalísti-cos, em que estas festas são atribuídas

aos ciclos astrais e das estações, aos efeitos na natureza que sensibiliza-ram os criadores.

Algumas celebrações, como por exemplo a Festa da Pinha, fazem parte dessas festividades cíclicas que englobam um conjunto de aconteci-mentos evocativos que se organizam

e repetem anualmente. Aos diferentes ciclos correspondem diferentes ritu-ais e significados, que dão origem a festividades profanas e religiosas. Nos dias de celebração integram-se comportamentos que durante o ano não se manifestam. É durante o tem-po festivo que o homem sai da rotina

habitual para entrar num tempo que parece não ter fim.

Com o passar dos tempos, algumas das celebrações foram sendo utiliza-das de modo abusivo, até se perder a consciência do seu significado origi-nal, apenas perduraram como provas de empenho na tradição ou com fi-

nalidades comerciais. A tradição da Festa da Pinha celebra-

da em Maio corresponde ao ciclo da Pri-mavera. As celebrações, festejadas nessa altura, possuem importante significado sociológico, de reafirmação das sociabi-lidades e vivências comunitárias.

A secular Festa da Pinha de Estoi assinala o regresso dos “almocreves” das viagens pelo interior do País, para onde levaram os produtos algarvios, venderam ou trocaram. Os almocre-ves são agentes de comunicação en-tre as comunidades e cruciais para o abastecimento de bens às vilas e cida-des, em que os próprios transportam figo, alfarroba, amêndoa, peixe que era transportado do Algarve para o Alentejo, e também existem produtos que vinham do Alentejo para o Algar-ve, trigo, e cortiça. No final da tarde de 2 de Maio transportam o alecrim e a pinha, oferecendo produtos à Sr.ª de Ao Pé da Cruz, recebidos com os archotes na noite.

O aspecto central comum aos dife-rentes rituais aliados a este ciclo é o peso que neles acolhe o conjunto de práticas relacionadas com o elemen-to vegetal e a floração. Actualmente, a Festa da Pinha continua a mobilizar o povo estoiense. Vai ganhando dimen-são, sendo uma das festas mais caris-máticas de toda a região do Algarve.

A Cultura no Algarve: Tradição e a Festa da Pinha

Marco Taveira Licenciado em Património Cultural pela Universidade do Algarve Convidado da AGECAL

d.r.

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03.07.2015 4 Cultura.Sul

Letras e Leituras

Os Interessantes – O romance de uma geração

Meg Wolitzer nasceu em Nova Iorque, em 1959, onde vive atu-almente. Estudou Escrita Criativa no Smith College e é licenciada pela Brown University. É autora de 30 romances, dois deles já adaptados ao cinema, estando mais dois, segundo parece, em fase de pré-produção para a sua adaptação. Destes últimos Os In-teressantes é o seu mais recente romance.

Os Interessantes, o seu déci-mo romance, foi publicado em 2014 pela Teorema, considera-do o «Melhor Livro do Ano» pelo The New York Times. Juntamente com A Mulher, o outro também em fase de pré-produção, são as duas únicas obras da autora pu-blicadas em Portugal.

Os seus romances inserem--se normalmente numa linha feminista, a excepção é Os Inte-ressantes, um romance de for-mação de identidade que repre-senta o retrato de uma geração.

Numa noite de verão de 1974, seis adolescentes conhecem-se num campo de férias, o «Spirit--in-the-Woods». Cathy, Jonah, Goodman, Ethan e Ash - três ra-pazes e duas raparigas -, todos de Manhattan, aos quais se irá juntar, como que por acidente, Julie: «Numa noite amena no início de julho daquele ano há tanto evaporado, os Interessan-tes reuniram-se pela primeira vez. Só tinham 15, 16 anos, e co-meçaram a utilizar esse nome com uma ironia titubeante. Ju-lie Jacobson, uma intrusa que até podia ser excêntrica, fora convi-dada por motivos inexplicáveis e agora encontrava-se sentada a um canto do chão por varrer, tentando posicionar-se de forma a não incomodar e ao mesmo tempo não parecer patética, o que era um equilíbrio difícil de conseguir.» (p. 11).

Estes jovens são filhos da re-volução sexual marcada pela de-pressão consequente do arrasta-mento da guerra do Vietname e, como é habitual a Meg Wolitzer, o romance centra-se na perspec-tiva de Julie, uma protagonista feminina, como o parágrafo ini-cial demonstra, mas somente para através dela se retratar toda

uma geração que atravessa as questões políticas da época, em que no «final desse Verão, Nixon haveria de abandonar o cargo, deixando um rasto viscoso de lema atrás de si» (p. 14), passando pelo grassar da epidemia da SIDA, até chegar ao terror do 11 de Setembro e à recessão económica.

Na sua condição de “estran-geira” àquele modo de vida de

um grupo de jovens privilegia-dos da “cidade”, e que por isso mesmo podem considerar as ar-tes como área para as suas aspi-rações profissionais, Julie demar-ca-se por vários aspectos: mora nos subúrbios, em Underhill, numa casa igual a tantas outras da classe média-baixa ameri-cana, o que a constrange de a convidar algum dos novos ami-gos; o pai falecera meses antes vítima de cancro; filha de uma mulher recém-viúva, sem ambi-ções além das de criar as filhas. Julie ingressa no campo de férias graças à sugestão da sua profes-sora de inglês, que sabe haver uma vaga e ser possível aceitá-la como bolseira, até porque nin-guém da sua vizinhança ia para campos daquele género, não só porque não tinham dinheiro, mas porque isso nem sequer lhes teria ocorrido: «Todos ficavam na terra e iam ao despojado centro de ocupação de tempos livres, passavam os dias longos com os corpos oleados na piscina mu-nicipal, empregavam-se na gela-daria Carvel ou preguiçavam nas casas húmidas» (p. 16).

Em contraste, ali todos os jo-vens aspiram a grandes feitos e trabalham já no sentido de os alcançar: «Aqueles adolescentes à sua volta, todos eles da cidade de Nova Iorque, eram como rea-leza e estrelas do cinema francês, com um toque de qualquer coi-sa papal. (...) Em suma, naquele verão de 1974, quando ela ou qualquer um deles se distraía da concentração profunda e apática das suas peças de um só ato, ace-tatos para animação, sequências de dança e guitarras acústicas, acabava a fitar uma porta aber-ta para um futuro horrível, pelo que a regra consistia em desviar apressadamente o olhar» (p. 13).

O romance serve assim tam-

bém uma intenção crítica, por vezes satírica, de modo a des-crever a actualidade americana. Curiosamente, a própria perso-nagem não é muito simpática no início do romance, dada a inveja que sente em relação ao novo círculo de amigos, que inesperadamente a irá acom-panhar ao longo do resto da sua vida, e a sua ânsia em que-rer enquadrar-se, pois continua sempre insegura e a achar que a qualquer momento Ash Wolf se aperceba de que foi um erro a te-rem convidado a juntar-se àque-le grupo. Julie passa entretanto a ser Jules, conforme os colegas a apelidam, o que no fundo está associado a um reconhecimen-

to daqueles que ela olha como superiores de como ela própria é um adulto em potência e já não uma criança. É sintomático que seja nesse mesmo verão que Jules tenha descoberto a ironia: «A ironia era uma novidade para si e sabia-lhe inesperadamente bem, como uma fruta de verão até então indisponível. Em breve, ela e os outros seriam irónicos durante grande parte do tem-po, incapazes de responderem a uma pergunta inocente sem carregarem as palavras com um pequeno ajuste mordaz.» (p. 12). E um dos recursos de Jules para melhor assegurar a sua inserção será justamente um certo hu-mor auto-depreciativo, tornan-do-se sarcástica em relação a si própria, ao mesmo tempo que começa a acalentar a esperança de se tornar uma actriz de comé-dia, dado o sucesso que obtém na peça representada no Spirit--in-the-Woods.

Ethan Figman, um rapaz feio, mas cuja confiança o torna atra-ente, eternamente apaixonado por Jules, e um génio da anima-ção, envolvido na história que ele próprio criou sobre um rapaz que entra num mundo paralelo a partir de uma caixa de sapatos debaixo da sua cama; Cathy Ki-plinger, uma jovem dançarina que se encontra em luta contra o tempo e contra as transfor-mações que daí advêm sobre o seu corpo, em crescimento nas partes erradas; Jonah Bay, filho de uma famosa cantora folk, o

jovem belo que se revelará ho-mossexual mais tarde, ele pró-prio dotado para a música, mas cujo talento lhe foi roubado; Ash Wolf, uma bela jovem de boas famílias, que se tornará a melhor amiga de Jules, e o seu irmão, Goodman Wolf, que não parece ter nenhum talento óbvio além do seu carisma e poder de atração irrefutável.

Décadas mais tarde, a amiza-de entre eles mantém-se, embo-ra tudo o resto tenha mudado. Jules resigna-se a ser terapeuta e casa com Dennis Boyd, um simples técnico de radiologia mas um homem sólido que lhe transmite segurança e com quem descobriu o amor que nunca conseguiu dedicar a Ethan; Goodman foge do país devido a ser suspeita de um cri-me que ameaça o seu futuro e coloca em perigo a relação de amizade entre todo o grupo; Cathy abandona a dança e o grupo, e torna-se uma empresá-ria; Jonah dedica-se à engenha-ria mecânica; Ethan é o criador de uma série de televisão de su-cesso e Ash, a sua esposa, é uma encenadora aclamada.

Este é um romance inten-so e envolvente sobre o cres-cimento pessoal, a formação da identidade, a aceitação de quem somos afinal, marcado pela nostalgia e pelo sentimen-to de perda: perda de pessoas, do talento, da ideia que temos do nosso futuro bem como da nossa identidade passada.

Paulo SerraInvestigador da UAlgassociado ao CLEPUL

fotos: d.r.

Meg Wolitzer é autora de 30 romances

'Os Interessantes' foi considerado o Melhor livro do Ano pelo The New York Times

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03.07.2015  5Cultura.Sul

Panorâmica

Música para todos nos festivais de Verão

O Verão é assim por terras lusas há já muitos anos, chega recheado de festivais com sonoridades de to-dos os tipos e para todos os gostos.Há músicas para todos nos festivais de música e há festivais para todas as bolsas, num conjunto de propostas que salpica de destinos musicais o mapa nacional do litoral ao interior e das pequenas localidades às gran-des cidades.

Até meados de Junho, e de acordo com os dados da Associação Portu-guesa de Festivais de Música (APOR-FEST), estavam confirmados 138 festi-vais de música, de norte a sul do país e também nas ilhas.

O Algarve não é, não obstante ser uma das regiões mais movimenta-das do país na época alta, um dos destinos mais pródigos no que toca a este género de festivais, mas tem no seu cartaz de Verão - agora que o Festival MED já se realizou - algumas propostas com programas musicais atractivos, entre as quais o Festival do Marisco em Olhão e a Concentração de Motos de Faro, além da sempre incontornável Fatacil e do Festival F, nestes dois casos ainda com o cartaz por definir.

De acordo com a APORFEST, este ano há 38 novos festivais e não se re-alizam 28 daqueles que marcaram o calendário de 2014, enquanto seis destes eventos prometem ter mais de 25 mil visitantes por dia.

Lisboa é a cidade com mais fes-tivais agendados, 20 ao todo, en-quanto o Porto se fica por metade, dez festivais.

As propostas para o Algarve

O Algarve apresenta para já dois eventos de grande dimensão regio-nal com cartazes definidos.

No caso de festival do Maris-co, que anualmente leva à cidade cubista dezenas de milhar de visi-tantes, a agenda é marcadamen-te portuguesa, como de costume, excepção feita à brasileira Daniela Mercury.

Ao palco do Jardim Pescador Olha-nense sobem este ano Anselmo Ral-ph, Mickael Carreira, José Cid, Fado & Further, com a participação de Júlio Resende, Ana Moura e Ana Bacalhau e, ainda, Richie Campbell.

Longe de ser um festival de música e com uma identidade muito própria, a Concentração de Motas de Faro não deixa todos os anos de apresentar, a quem escolhe entrar no universo motard do Vale das Almas, um car-taz atractivo.

Aos Blind Zero, juntam-se este ano em palco os The Stranglers, bem como os La madre que los parió, os Hot Stu-ff, Sam Alone & The Gravediggers e os ‘gaiteiros’ Red Hopt Chilli Pippers.

Na região, mais do que festivais

de grande dimensão, na calha estão este ano, como sempre, eventos que prometem animação um pouco por toda a parte, longe das multidões imensas que alguns festivais de música atraem e dos gran-des patrocínios de marcas sobejamente conhecidas, o Algarve aposta em eventos de menor dimensão e em eventos com programa-ção variada que vai mui-to além da música por si só.

Certo é que seja no Al-garve ou em qualquer dos fest ivais de música do país, a música vai ofe-recer aos portu-gueses muito para ouvir.

O Cultura.Sul apresenta algu-mas propostas diversificadas do que o país e a região têm este ano para ofe-recer, entre Julho e Agosto, a quem procurar a música por companhia nes-tes dias de estio.

Sonoridades mil, para um pú-blico nacional já habituado a es-tas andanças festivaleiras.

Agora basta escolher o género de música e ambiente e fazer-se ao caminho porque o Verão esse, é sol de pouca dura e os festivais também.

Ricardo ClaroJornalista / [email protected]

NOS ALIVE

9*, 10 e 11 JUL Passeio Marítimo de Algés

Ô Destaques:The Prodigy; Blasted Mecha-nism; James Blake; Magazi-no; Disclosure (Live); The Jesus & Mary Chain; Dead Combo

Ô Bilhetes: (* Esgotado)

Diário: 55€2 dias: 89 €

SUPER BOCK SUPER

ROCK

16, 17 e 18 JUL Passeio Marítimo de Algés

Ô Destaques:Sting; Xinobi; Duquesa; Blur; dEUS; Jorge Palma & Sérgio Godinho; Flo-rence and The Machine; Modernos

Ô Bilhetes:Diário: 50€3 dias: 95 €

Músicas do Mundo Sines

17 a 25 JUL Sines / Porto Covo

Ô Destaques:Alo Wala; Capicua; Cuncor-du e Tenore de Orosei; Flat Earth Society; Niladri Ku-mar; Paolo Angeli

Ô Bilhetes:Preços de bilheteira ainda não disponíveis

MÊDA +

23, 24 e 25 de JUL Mêda

Ô Destaques:D’Alva; Diabo na Cruz; Sam Alone; A Cepa Torta; Club Banditz; Tales and Melo-dies; Blue Trash Can; Low Torque

Ô Bilhetes:Entradalivre

3 a 9 AGO Castelo de Vide

Ô Destaques:Lengalenga - Gaiteiros de Sendim; String Fling, Pau-lo Bastos; Samba sem fron-teiras; Tugoslavic Orkestar; Winga Kan

Ô Bilhetes:Diário: 24 €7 dias: 106 €

MEO SUDOESTE

5 a 9 AGO Zambujeira do Mar

Ô Destaques:Dimitri Vegas and Like Mike; Emeli Sandé; Diogo Piçarra; D.A.M.A.; Buraka Som Sistema; Agir; RegulaSteve Aoki

Ô Bilhetes:Diário: 48 €5 dias: 95 €

34ª Concentração de Motas de Faro

16 a 19 de JUL | Vale das Almas - Faro

Ô Destaques: Blind Zero; The Stranglers; La madre que los parió; Hot Stuff; Sam Alone & The Gravediggers; Red Hopt Chilli Pippers

Ô Bilhetes: 45 € | 30 € dia 18 (sábado) sem refreições

FESTIVAL DO MARISCO

10 a 15 de AGO | Jardim Pescador Olhanense

Ô Destaques: Anselmo Ralph; Fado & Further; Richie Campbell; Mickael Carreira; José Cid; Daniela Mercury

Bilhetes: Dia 10 -12 € | dias 11, 12, 13, 14 - 9 € | dia 15 - 10 €

ANDANÇAS

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03.07.2015 6 Cultura.Sul

Artes visuais

Saul Neves de JesusProfessor catedrático da UAlg;Pós-doutorado em Artes Visuais pela Universidade de Évora

AGENDAR

“PINTURAS DE ROMAN MARKOV”Até 6 de JUL | Espaço de atendimento da EMARPAs inspirações e principal tema das obras de Roman Markov são as paisagens e as gentes, pelas quais se enamora, ao longo das suas viagens

“MOTIM DA COR | COLORFUL RIOT”Até 25 JUL | Galeria Municipal de AlbufeiraExposição de pintura colectiva. Pedro Águas domina a Arte Expressionista, Figurativa e Surreal e o mar é uma das suas grandes fontes de inspiração. Cláudia Marques dedica-se à Arte Expressionista Abstracta

Qual a importância do reconhecimento da criatividade dos artistas?

Os contributos da Psicologia para a Arte variaram ao longo do século XX, acompanhando a própria evolução da investi-gação no âmbito da Psicolo-gia. No entanto, o estudo dos próprios artistas tem perma-necido constante ao longo do tempo, procurando contribuir para a compreensão do com-portamento e da personalidade destes.

A este nível, os estudos con-cluem que os artistas são mais criativos do que a população em geral (Csikszentmihalyi, 1996), mas também salientam o risco mais elevado de pertur-bações depressivas (Kaufman & Sexton, 2006) e de suicídio nos artistas (Andersen, Hawgood, Klive, Kolves, & De Leo, 2010), comparativamente à média da população.

Parece, assim, haver uma re-lação paradoxal da arte, em ter-mos de produção artística, com a psicopatologia e até mesmo o suicídio. Se, por um lado, pare-ce ser mais elevada em artistas a prevalência destas situações que podem traduzir crises psi-cológicas, também, por ou-tro lado, se verifica que a arte pode constituir um instrumen-to para ultrapassar ou superar estas situações de crise, sendo a arte terapia um exemplo disso.

Há evidências empíricas, mas também biográficas, de que os sujeitos mais criativos são também aqueles mais susceptíveis de apresentar problemas de saúde mental (Papworth & James, 2003), ou uma predisposição para a doença bipolar afectiva, de-pressão e suicídio (Kaufman & Sexton, 2006; Rihmer, Gonda

& Rihmer, 2006). Numa das investigações cujos resulta-dos são mais representativos, pois foi utilizada uma amos-tra de 55.474 sujeitos, Voracek (2006) verificou que a criati-vidade e o suicídio estão sig-nificativamente relacionados.

Face aos resultados obtidos nestas investigações, uma ques-tão de fundo que podemos colocar, é se o risco de doen-ças mentais nos artistas é por serem artistas ou é por serem criativos?

A análise doutros grupos que apresentam elevada criativida-de, como é o caso dos cientis-tas, pode ajudar a clarificar esta questão. Diversas investigações têm permitido identificar algu-mas características que distin-guem os artistas da população em geral, mas que também são obtidas nos cientistas, em par-ticular a elevada criatividade. Einstein chegou mesmo a re-ferir que “a imaginação é mais importante do que o conheci-mento”, aproximando as carac-terísticas dos cientistas às dos artistas (Araújo-Jorge, 2004).

Além disso, muitos cientistas são simultaneamente artistas. Em particular, Root-Bernstein e Root-Bernstein (1999) enume-raram 73 cientistas reconheci-dos que também eram artistas, nos mais diversos domínios da arte (visual, escrita ou mu-sical). Segundo estes autores, há uma “imaginação criativa universal”, pelo que aprender a pensar criativamente numa área, pode permitir compreen-der o pensamento criativo em todas as outras. Esta perspec-tiva encontra apoio na Teoria das Inteligências Múltiplas de Gardner (1994), ao considerar que somos todos inteligentes e criativos, embora de forma diferente. Segundo esta teoria, a inteligência é considerada como a capacidade para resol-ver problemas e projetar algo útil num dado contexto cultu-ral, distinguindo-se entre oito tipos de inteligência, as quais se encontram presentes em todos os sujeitos, só que com domi-

nâncias diferentes. Os processos criativos utiliza-

dos por artistas são muitas ve-zes idênticos aos utilizados pe-los cientistas. Por exemplo, há artistas, mesmo não surrealis-tas, que utilizam o período de sono, incluindo o sonho, para criar, pois têm “acordares cria-tivos” com a ideia daquilo que pretendem produzir. E não são só os artistas visuais que utili-zam o período de sono para desenvolver acordares criativos. Também os escritores, sobre-tudo os poetas, o fazem, che-gando alguns a dormir com um caderno e uma caneta ao lado da cama para escreve-rem notas ou fazerem esboços com as ideias que têm quan-do acordam. Este processo é também utilizado por muitos investigadores e cientistas, sendo conhecidos os casos de Hadamard e de Poincaré, no âmbito da invenção matemá-tica (Jesus, 1988, 2007).

Tal como têm sido identi-ficadas semelhanças nos pro-cessos criativos entre artistas e cientistas, também têm sido observados problemas de saú-de mental em cientistas, da

mesma forma que se têm ve-rificado com os artistas (Mon-real, 2000), pelo que não nos parece ter sentido atribuir, de forma direta e linear, perturba-ções emocionais ou doenças do foro mental aos artistas.

Parece-nos que o reconhe-cimento ou não do trabalho criativo dos artistas pode ser um aspeto muito importante para compreender o desenvol-vimento ou não de problemas de saúde mental.

Aliás, várias investigações verificaram a importância da realização do sujeito e do re-conhecimento pelos outros como uma dimensão prote-tora para prevenir a depressão nos sujeitos criativos.

Assim, não obstante as per-turbações apresentadas por alguns artistas, como Goethe, Mozart, Beethoven e Dalí, o re-conhecimento pelo seu traba-lho permitiu-lhes continuar a criar e a produzir, alternando os períodos mais difíceis com períodos de auto-realização e de elevada produção artística criativa.

Por seu turno, Van Gogh apresentou episódios de psi-cose que interferiram com a sua criatividade, tal como pode ser revelado pelo conte-údo de algumas das centenas de cartas escritas ao seu irmão. Segundo Monroe (1978), Van Gogh apresentou uma pro-

dução artística que traduzia uma combinação de criativi-dade e persistência, associada a stresse constante e abuso de absinto. Ao contrário dos ante-riores, Van Gogh pintou várias centenas de quadros, mas ape-nas vendeu um único quadro em vida, tendo sido internado num hospital psiquiátrico nos últimos tempos da sua vida e tendo-se suicidado aos 37 anos de idade.

Esta situação de alguma psi-copatologia do próprio artis-ta, podendo levar ao suicídio, como resultado de falta de re-conhecimento pela sua obra, pode ser encontrada também em Ernst Kirschner (considera-do o “pai” do expressionismo alemão), por exemplo, que se suicidou pouco depois de grande parte das suas obras te-rem sido destruídas pelo regi-me nazi, traduzindo a falta de reconhecimento das mesmas.

Os exemplos indicados ilustram a importância do re-conhecimento social da pro-dução artística realizada, po-dendo marcar a fronteira entre o “génio” e o “louco”.

Talvez se Van Gogh tivesse sido reconhecido em vida, em vez de ter desenvolvido psico-patologia, pudesse ter sentido estímulo para a concretização da sua criatividade e de todo o seu potencial artístico, não se tendo suicidado. Assim, podemo-nos perguntar o que seria de Van Gogh se tivesse obtido reconhecimento logo em vida e o que faria Dalí se não tivesse obtido desde logo esse reconhecimento?

Nota: Este artigo integra o li-vro “Construção de um percurso multidisciplinar, integrativo e de síntese nas Artes Visuais”, de Saul Neves de Jesus ([email protected]).

Todas as receitas obtidas com a venda deste livro revertem a

favor da compra de uma mesa de gravura para o curso de Artes Vi-

suais da Universidade do Algar-ve. Pode ser adquirido na Fnac de Faro (Forum Algarve) ou em Fnac

online (http://www.fnac.pt/)

Pintura 'Auto-retrato com a orelha cortada', de Van Gogh (1889)

d.r.

Pintura 'Auto-retrato mole com fatia de bacon assado', de Salvador Dali (1941)

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03.07.2015  7Cultura.Sul

Espaço ALFA

Está na altura do ano em que aumenta o número de fotógrafos que tiram ima-gens a tudo o que os rodeia. Quer seja por se encontra-rem de férias, quer seja pe-las festas que todos os anos se comemoram para além da beleza da paisagem nes-ta época. Destaque para o sol algarvio na nossa região.

São muitas as máquinas fotográficas disponíveis, uns optando pelas mais avança-das que o mercado oferece mas também são muitos os que ficam felizes com as pe-quenas compactas.

Hoje em dia há uma nova moda. São muitos os telemó-

veis que em qualquer festa são erguidos para captar o momento.

Quer isto dizer que o gos-to pela imagem aumentou? Não sei se será totalmente verdade. Que o número de fotógrafos aumenta durante o Verão disso não tenho dú-vidas. Que os conhecimentos aliados à fotografia aumen-taram isso já é um pouco relativo.

Aumentar o número de fotógrafos não significa au-mentar a qualidade das ima-gens captadas. Essa é uma da funções que associações como a ALFA – Associação Livre Fotógrafos do Algarve desenvolve.

É assim feito o convite a todos os fotógrafos que queiram aprofundar um pouco os conhecimentos e participar nos nossos pas-seios temáticos que vejam as informações em www.alfa.pt. Não esqueçam de fotografar o Verão.

Fotografar o Verão

Raúl Grade CoelhoMembro da ALFA

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03.07.2015 8 Cultura.Sul

Sala de leitura

Um título aparentemente pretensioso para esta breve reflexão (porventura politi-camente incorrecta) em tor-no de labirintos e fascínios, dúvidas e (poucas) certezas, mitos e realidades que povo-am o cativante universo dos livros e da leitura, evocando assim, com saudade, a me-mória de uma singular ami-ga, colega e cúmplice destas andanças.

Ler é um direito e não um dever. A reivindicação cen-tral subjacente às campa-nhas de incentivo à leitura devia ser a do direito de cada cidadão ter ao seu dispor a maior panóplia possível de livros que lhe permitam, se quiser, ler o que for melhor para si, o que mais lhe agra-dar e da forma que mais lhe convier. Ninguém tem ne-cessariamente de gostar de ler, nem fazem sentido cer-to tipo de apreciações mo-rais ou intelectuais sobre quem não lê. Além disso, um indivíduo não se torna necessariamente (friso este advérbio) melhor pessoa ou mais solidário por ler mui-to. Uma certa mistificação/sobrevalorização da leitura tende a vê-la, acriticamente, como um poderoso instru-mento redentor, não exis-tindo, contudo, um forçoso vínculo entre a prática da leitura e um comportamento dotado de maior humanida-de e bondade. Ainda assim, e mesmo que os livros possam não salvar, curar ou humani-zar o mundo (o importante será mesmo acreditar nessa utopia como se fosse tangí-vel), é imenso e precioso o seu potencial de sonho, de-sassossego, lucidez e prazer. Escreveu Adília Lopes: “os li-vros não são feitos / de car-ne e osso / e quando tenho / vontade de chorar / abrir um livro / não me chega / preciso de um abraço / […] / no en-tanto gosto muito / de livros / e acredito na Ressurreição / dos livros / e acredito que no Céu / haja bibliotecas / e se

possa ler e escrever”.Ler (certo tipo de textos,

sobretudo literários, que vi-vem muito da metáfora) aju-da a reparar (depois de olhar e ver, como diria Saramago) no que está para lá do ime-diato e óbvio, permitindo captar melhor, pelo estímulo da imaginação e do sentido crítico, o que vive nas entre-linhas das palavras, nas suas camadas mais subterrâneas, para lá da epiderme da es-crita. Daí que Mario Vargas Llosa insista na ideia de que um “público comprometido com a leitura é [mais] críti-co, rebelde, inquieto, pouco manipulável e não crê em slogans que alguns fazem passar por ideias”.

Ler é tomar todos os dias um (útil e necessário) banho de humildade, fazendo-nos perceber que o nosso mundo é, de facto, muito pequeno perante as inúmeras e sur-preendentes portas e janelas que as palavras nos abrem. Alexandre O’Neill, em 1972, dizia que procurava na poe-sia uma forma de (se) desim-portantizar (“dégonfler”, em francês), ou seja, um modo de aliviar os outros e a si mesmo da importância que se julga ter, pois “só alivia-dos podemos tirar o ombro da ombreira e partir frater-nalmente, ombro a ombro, para melhores dias, que o mesmo é dizer, para dias mais verdadeiros”.

Ler faz-nos “parar para ou-vir gritar baixinho” (expres-são feliz do escritor Sandro William Junqueira), pondo--nos, pela forma como são enunciadas/reinventadas, a pensar duas vezes em coisas que em não poucos momen-tos banalizamos ou damos pouca relevância no dia-a--dia. Ler é uma forma pri-vilegiada e deliciosamente “egoísta” de estar sozinho e no meio de muita gente ao mesmo tempo. Ler é tam-bém encontrar sem (muitas vezes) ter de procurar, bas-

tando disponibilidade, mais do que esforço.

Ler é sinónimo de prazer, por deleite estético e/ou fácil imersão do leitor no univer-so ficcional que lhe é apre-sentado. Isso não quer dizer, contudo, que essa forma de ler, baseada na experiência hedonista que certas obras proporcionam, seja melhor ou mais recomendada do que outras (mais exigentes/herméticas, duras e menos “confortáveis” para o lei-tor), ou que o sujeito que a pratica se converta, por isso,

num leitor mais capaz ou até num leitor de outro tipo de textos.

Ler pode promover o de-senvolvimento intelectual e aumentar as capacidades de expressão oral e escrita dos seus praticantes, mas isso não é necessariamen-te (sempre) verdade. Se em primeira instância a leitura permite, de facto, armaze-nar informação (à imagem de outras formas de comu-nicação), gerar conhecimento, por seu lado, implica quer a capacidade, por parte do lei-

tor, de articular criticamente elementos do mundo inte-grados num dado contexto histórico-cultural, quer uma competente manipulação de sistemas de referência e in-terpretação específicos, do-tados de maior ou menor complexidade.

Ler encerra ainda uma du-alidade fundamental: trans-mitir uma (estranhamente) empática sensação de fami-liaridade, de inesperada (e até, por vezes, reconfortan-te) identificação no leitor, na medida em que, de al-guma forma, este já sentiu, pensou, projectou/desejou ou vivenciou aquilo que lhe é dado a (re)conhecer; ou, por outro lado – e sobretu-do, direi eu –, levar o leitor a não compreender me-lhor, a desaprender, a sair da sua “caixa”, incomodan-do, testando os (seus e do meio em que está inserido) limites/regras/convenções e semeando interrogações e inquietações que ficam a pairar/marinar na sua mente e corpo, que nem os podero-sos solavancos interiores que Flaubert associava à fruição dos bons livros. Álvaro Ma-galhães, escritor, terá sin-tetizado bem a questão: A literatura serve sobretudo – se é que serve para alguma coisa – para lidarmos com o desco-nhecido: o amor e a morte. E se pararmos para analisar, a maioria das histórias são so-bre o amor ou sobre o amor e a morte. E são destas que mais gostamos de ler.

O que eu (não) sei de livros

Paulo PiresProgramador culturalno Município de [email protected]

Para a Maria Lua (1966-2012)

fotos: d.r.

Leitura em voz alta e o prazer do som

Leitura (também) como pacto de sentido com o silêncio

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03.07.2015  9Cultura.Sul

O(s) Sentido(s) da Vida a 37º N

AGENDAR

“VIDA E OBRA DE FRIDA KAHLO”Até 10 JUL | AlgarveShopping - AlbufeiraExposição reúne 27 fotografias originais que marca-ram não só a pintura e a vida artística de Frida Kahlo mas, sobretudo, a sua maneira de ser e o seu estilo único que influenciou decisivamente a moda

“AS FLORES ABREM MAIS DEPRESSA AO DOMINGO”Até 15 AGO | Galeria de Arte do Convento do Espírito Santo - LouléChristine Henry apresenta um tema imensamente divisível, que é a dobra. Há o dobrar, desdobrar, redo-brar incessantemente os espaços e as temporalidades da experiência

Julho

Pedro [email protected]

Longe do mar

Basta-me procurar-te se estou longe do mar. No teu olhar espelha-se o vasto horizon-te. As curvas do teu corpo foram desenhadas como um mar ondulado onde me espraio, no areal da tua cama, na espuma do teu sexo, na concha do teu amar.

Frente ao mar

Nenhum homem está só frente ao mar. Há sempre um poema que se escapa das bolhas

gasosas da cápsula de moléculas líquidas soltas do marulhar da tempestade.

Linha de mar

funâmbulo em linha bamba de equadornesta hora do mês que divide o resplendorde o dia se igualar à noitepara lá de que hemisfério se move?ósculo de verão ou érgastulo de inverno

Ria de mar

Quero tirar a manhã para pescar na ria azul. A linha já lançada repousa agora na corrente fria. Os peixes não nadam por aqui.

Resta-me um livro de hemingway que trago na mochila, com cheiro a sandes de conserva de cavala à portuguesa e a paisagem que só olhos treinados neste horizonte daqui conseguem perceber como se modifica.

Baixa-mar

Que os corações desenhados na baixa-mar serão apagados pela enchente. Que os desejos escritos no céu serão invisíveis quando as nu-vens chegarem de norte. Que os beijos d’ água são de um sal que cristalizará. E que o resto são cantigas, mesmo essas leva-as o vento

Suão e … apesar de o saber eu sempre acre-ditarei em ti.

Quarto de marTodos os dias me custa abandonar o teu quar-

to azul, os lençóis de sol, essa cama de verdes limos, almofadas de espuma. Deixo esta singela e ténue mensagem escrita a cana d’água sobre a cómoda de areia: amo-te. volto já.

Um marSe o dia do juízo final trouxesse um sol as-

sim tão radiante, um mar de águas tépidas e calmas, um areal deitado em sossego não me importava de continuar a viver cada dia como se fosse o último.

Casa de mar

Estou na ria. Vem a minha casa. Depois dei-tamo-nos todo o dia no colchão liquidificado, sobre lençóis lisos de azul formosa. Comeremos das conchas frescas. À noite enquanto as caden-tes Perseidas choverem, desejaremos apenas só mais outro dia.

Mar de lua

Da muralha sobre a praia se deseja um novo dia infinito. Onde o mar se em-prata de lua ou se vai na-mouriscar. Só aqui se não deseja pa-rar o tempo. E se acaso souberes de outro lugar assim de tão belo, poderás vir um dia trocar de morada comigo.

fotos: d.r.

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Escolas: pontes para o acesso à cultura!

Nos dias que correm, trans-parece a noção de que recai sobre a Escola o peso da res-ponsabilidade por todos os problemas da sociedade atual e pela falta de preparação das gerações futuras para intervir nessa mesma sociedade, em constante e acelerada mudan-ça, que tudo exige desta ins-tituição educativa. Por outro lado, também pesa sobre a Es-cola o dever de encontrar as soluções necessárias para re-solver os problemas das quais é acusada de ser a causadora.

A Escola, no contexto atu-al de mudança da sociedade, não pode continuar a perpe-tuar um papel de mera trans-missora de conhecimentos científico-práticos, preco-nizados em matrizes curri-culares rígidas e uniformes para todos os alunos, através de estratégias, atividades e metodologias monótonas e desinteressantes, mantendo modelos inalterados em rela-ção às práticas de há décadas atrás, conservando-se inatin-gível, inacessível e dissociada dos pais, da comunidade e da Cultura.

Contudo, a verdade é que todos passamos por ela e to-dos somos moldados nela, nas nossas formas de pensar e agir, o que torna a organi-zação escolar uma das mais relevantes na sociedade, uma vez que, de alguma maneira, irá ter influência sobre todas as outras. É, portanto, funda-mental que a Escola assuma as funções que lhe são ine-rentes, ao nível do desenvol-vimento integral dos alunos, em toda a sua plenitude e multidimensionalidade, con-templando a aquisição, com-preensão, operacionalização e desenvolvimento das com-petências e conhecimentos necessários à intervenção na sociedade, transformando--os em atores sociais aptos a contribuir para a produção de mudanças na realidade social em que se inserem.

Esta conceção de Escola e da sua função converge para o sentido de uma escola para todos, uma Escola que ensi-na a conhecer, conhecendo; a compreender, compreenden-do; a fazer, fazendo; a ser, sen-do; a estar, estando e a viver em comunidade, vivendo. Ou seja, através das vivências pro-porcionadas no seu seio. Esta noção é assumida e defendida pelo pessoal docente do Agru-pamento de Escolas Manuel Teixeira Gomes, reforçado pe-las condições financeiras atuais que impedem, na maioria dos casos (e cada vez mais) o aces-so dos alunos e suas famílias à Cultura, Ciência, Desporto e Ambiente, tornando-se nos-so lema proporcionar o mais diversificado leque de experi-ências educativas aos alunos, incorporando nas práticas di-árias a “construção” de pontes de acesso a estas dimensões.

Neste sentido, e especifica-mente no que respeita ao aces-so à Cultura, são encontradas e dinamizadas com os alunos atividades diversas, ao longo do ano letivo, abrangendo desde o nível Pré-Escolar e 1.º Ciclo até ao nível Secundário. Estas iniciativas incluem o de-senvolvimento de oficinas pe-dagógicas em parceria com o Museu de Portimão, quer se tratem de incursões ao espa-ço físico desta instituição para desenvolvimento de atividades educativas ou visita guiada às exposições temáticas, quer se-jam visitas de estudo às ruínas de Alcalar, ou mesmo a rece-ção dos técnicos do museu nas salas de aula da E.B. 1 Major

David Neto para o desenvolvi-mento de atividades culturais, alicerçando relações de inter-câmbio escolar de dentro para fora e de fora para dentro do contexto escolar.

No caso específico do nos-so Agrupamento, procuramos diversificar as ofertas culturais disponibilizadas aos alunos, proporcionando-lhes o acesso a sessões de Cinema, peças de Teatro, espectáculos Musicais, exposições de Pintura, entre outros, encontrando-nos sem-pre em busca de opções ino-vadoras e significantes, uma vez que estamos conscientes que muitos dos nossos alu-nos, por condições financeiras adversas, só têm oportunida-de de aceder a estas realida-

des em contexto escolar e em companhia dos seus profes-sores, uma vez que a Cultu-ra, infelizmente, importa um custo acrescido não acessível a todas as carteiras em tem-po de crise, como aquela que atravessamos.

Outro aspeto relevante na integração dos alunos no pa-trimónio cultural constitui a prática direta de atividades culturais, nas quais se pro-porciona a participação das crianças enquanto atores na realização de peças teatrais, espectáculos de dança e can-ção, em sessões de partilha e transmissão das tradições com a participação dos en-carregados de educação e ou-tras personalidades de relevo

da comunidade, entre outras oportunidades de desenvolvi-mento cultural em ação, den-tro da comunidade educativa e fora dela, alargada ao âmbi-to da comunidade local. No presente ano letivo, a título de exemplo da participação cul-tural, para além dos portões da escola, teremos duas can-ções a concorrer à “Chaminé d’Ouro”, nas quais se encon-tram envolvidos alunos do 1.º e 2.º Ciclos do Ensino Básico e respectivos professores de música.

A preocupação da Direção do Agrupamento com o acesso dos alunos à Cultura e com o desenvolvimento dos seus co-nhecimentos e das suas com-petências ao nível do Patrimó-nio Cultural, conduziu a que se desenvolvesse, neste ano letivo, um Programa de Educação Es-tética e Artística, dinamizado pela Direção Geral de Educa-ção, com a participação de to-dos os alunos, educadoras de infância e professores do 1.º ciclo do ensino básico, com o objectivo de dotar os profissio-nais educativos de estratégias e ferramentas práticas de di-namização das competências dos alunos ao nível da arte, do teatro, da música e da dança. O propósito do projeto será conti-nuar a implementar as estraté-gias trabalhadas, no sentido de promover melhorias significa-tivas nos alunos e nas práticas letivas a médio e longo prazo, ainda que os resultados já se comecem a vislumbrar. Conti-nuaremos, portanto, a apostar numa Escola como ponte para o acesso à Cultura!

Soraia Pinho Professora do 1.º Ciclo do Ensi-no BásicoAdjunta da Direção do Agrupa-mento de Escolas Manuel Tei-xeira Gomes – Portimão

Atividade pedagógica nas ruínas de Alcalar

fotos: d.r.

Oficina pedagógica no Museu de Portimão

Ficha Técnica:

Direcção:GORDAAssociação Sócio-Cultural

Editor: Ricardo Claro

Paginaçãoe gestão de conteúdos:Postal do Algarve

Responsáveis pelas secções:• Artes visuais:

Saul de Jesus• Espaço AGECAL:

Jorge Queiroz• Espaço ALFA:

Raúl Grade Coelho• Espaço ao Património:

Isabel Soares• Da minha biblioteca:

Adriana Nogueira• Grande ecrã:

Cineclube de FaroCineclube de Tavira

• Juventude, artes e ideias: Jady Batista

• Letras e literatura: Paulo Serra• Missão Cultura:

Direcção Regionalde Cultura do Algarve

• Momento:Ana Omelete

• O(s) Sentido(s) da Vida a 37º N: Pedro Jubilot• Panorâmica:

Ricardo Claro• Sala de leitura:

Paulo Pires• Um olhar sobre o património:

Alexandre Ferreira

Colaboradoresdesta edição:Marco TaveiraSoraia Pinho

Parceiros:Direcção Regional de Cultu-ra do Algarve, FNAC Forum Algarve

e-mail redacção:[email protected]

e-mail publicidade:[email protected]

on-line em: www.postal.pt

e-paper em:www.issuu.com/postaldoalgarve

facebook: Cultura.Sul

Tiragem:8.431 exemplares

Um olhar sobre o património

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03.07.2015  11Cultura.Sul

Da minha biblioteca

Adriana NogueiraClassicistaProfessora da Univ. do [email protected]

Pode a literatura mudar a vida dos leitores?

É esse o desafio final de Troika-me, primeiro romance de Maria João Neves.

A autora vive em Tavira, onde, no seu consultório filo-sófico, aplica um método que criou e registou, partindo da Fenomenologia do Sonho, da filósofa e escritora espanho-la María Zambrano (1904-1991), ao qual chamou Racio-vitalismo Poético. Doutorada em Filosofia e a terminar um pós-doutoramento em Estéti-ca Musical, esta investigado-ra universitária partiu destes seus conhecimentos para, através da literatura, fazer uma proposta de mudança para Portugal.

Utopia?Não será, certamente, por

acaso que Thomas More é ci-tado na epígrafe inicial, nem que uma das personagens da Utopia tenha dado nome a uma outra deste romance: Rafael Hitlodeu (indicação dada pela autora na Nota Fi-nal, p.303). O livro de Thomas More baseia-se, precisamente, na conversa que manteve com este português que teria en-contrado uma sociedade ideal, não destruída pelos interesses particulares e egoístas.

É precisamente esta situa-ção que é colocada no Troika--me, sintetizada num diagnós-tico que identifica as causas da doença de que o nosso país padece («ineficiência crónica e melancolia psicótica» - p.121) que, a serem sanadas, resol-veriam o problema da nação (apresento a lista em forma re-sumida): 1 – Nepotismo, pois

não são os melhores a ocupar os cargos; 2 – Assédio sexual, como resquício do feudalis-mo na atitude dos dirigentes de empresas e instituições; 3 – Titulitis – «Portugal sofre de inflação de títulos» (p.123); 4 – Prolixidade – «Portugal é um país perdulário. Desba-rata não apenas os recursos económicos mas, sobretudo, esbanja palavras» (p.124); 5 – Pessimismo – «Os portugueses têm uma disposição natural para atender ao lado mau das coisas. Cultivam a auto-depre-ciação» (p.124).

Panfleto utópicoem forma romance

Parafraseei o subtítulo das Aventuras de João Sem Medo, pois também seria este o subtítulo que daria ao Troika-me.

O romance desenvolve-se em torno de um grupo de amigos, todos eles com capacidades di-

ferentes, que as põem a render quando o momento de mudan-ça surge, pois há uma altura em que alguém tem de fazer alguma coisa para mudar o país.

Uns misteriosos envelopes chegam, lacrados e sem reme-tente, ao consultório de Fran-cisco, médico, e ao gabinete de Rafael, professor no Instituto Superior Técnico, na área de informática. Contêm apenas re-cortes de jornais com notícias de situações como as descritas aci-ma, relativamente ao diagnósti-co do país, como, por exemplo, sobre um presidente de câmara que, mesmo após o mandato perdido, continuou a licenciar, contrariando pareceres técnicos e violando o PDM (p.56); sobre o aumento da pobreza infantil, citando a Caritas Crisis Report (p.88); sobre a alteração ao orde-namento das listas dos candida-tos a bolsas da Fundação para a Ciência e Tecnologia (p.104), etc. Estas notícias incomodam verda-

deiramente estes dois amigos e, sem que um saiba que o outro também recebia aquele tipo de envelopes, embarcam numa aventura e encontram-se a fazer parte de uma espécie de think tank, grupo de pensadores ati-vos, que pretende levar à prática uma série de medidas que per-mitam consertar as deficiências de Portugal. Mas como quantas mais cabeças, melhor se pensa, os restantes membros do grupo vão-se juntando: Isabel, pintora; Patrícia, bailarina; Ivo, músico (e algarvio, que acentua a sua pro-núncia regional, quando está nervoso ou irritado); Mena, so-ciobióloga; e Laura, o elemento de equilíbrio do grupo, especia-lista de Filosofia, especialmente em María Zambrano. É ela que traz a questão ética necessária à discussão das medidas a tomar, considerando que «se reduzir-mos a moralidade a uma ques-tão biológica, deixamos de ser responsáveis pelos nossos actos» (p.202).

«Considerar o bem dos outros talvez seja a única forma de nos salvarmos

a nós próprios»

Com esta frase (p.114) ter-mina o penúltimo episódio da

primeira das três partes que compõem o livro (intitulada «Século XXI – Portugal Feu-dal»), resumindo a preocu-pação subjacente a este «pan-fleto»: não podemos pensar apenas em nós, se queremos uma mudança na sociedade, onde todos temos lugar.

Um dos capítulos (o livro tem capítulos de tamanhos diferentes, mas todos peque-nos, que permitem um mu-dar – aparente – de assunto) conta uma situação vivida por Laura:

«“Quem é aquela senhora?” Laura dirigiu o olhar para uma das mesas onde, enros-cada no kispo vermelho, a pe-quenina cabeça grisalha en-terrada nas mãos, uma idosa com corpo de criança dormia placidamente.

“Não conhece a Graça?”Laura abanou a cabeça

confirmando o desconheci-mento: “Vive aqui?”

“Não conhece a Graça?”, insistiu o dono do estabele-cimento. “Costuma vir para aqui quando abro. Depois vai para o bar do irlandês ali do outro lado do rio, anda assim, à mercê. Vive sozinha, tem síndrome de Down. To-dos protegemos a Graça!”»

(p93).Estas atitudes de gente boa

contrastam com a realidade que se vive no país. Alguns tentam fazer justiça pelas próprias mãos, como é nar-rado no episódio «A revolta dos xaringados», em que «os dispositivos de cobrança electrónica da Via do Infan-te foram inutilizados a tiros de caçadeira» (p.86), mas ou-tros vão simplesmente defi-nhando.

É contra este estado em que o país se encontra (o país e não só. Um dos episó-dios passa-se na Grécia) que este grupo de gente educada e criativa procura aplicar os seus conhecimentos, encon-trando soluções práticas. As-sim se desenvolve a segunda parte («Troika-me»), dando origem à terceira parte, mais pequena, que funciona quase como um epílogo. Aí, em re-sultado das ações das pessoas preocupadas e resolvidos os problemas identificados an-teriormente, já o nosso país é conhecido como Porto-Graal, «devido à sua ascensão a nú-mero um no ranking de pa-íses com melhor qualidade de vida», tendo-se tornado numa «nação sem cunhas, sem assédio e sem burocra-tas. Na generalidade, os por-tugueses de hoje são gente ativa, bem-disposta e bonita que sabe gracejar sobre os tempos acabrunhados e taci-turnos que já lá vão» (p.277).

Uma utopia ou uma pos-sibilidade? Como em todas as utopias, surgem soluções mais ou menos radicalizadas, apresentadas com mestria e algum humor.

Maria João Neves consegue criar uma obra muito interes-sante e provocadora, para ser lida e discutida por quem se preocupa com a atualidade, com a qual podemos aprender muita coisa, principalmente filosofia e música, assuntos de especialista que a autora nos consegue apresentar com sim-plicidade e clareza.

'Troika-me' é o primeiro romance de Maria João Neves

d.r.

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“CAMINHOS”Até 28 JUL | Galeria de Arte Pintor Samora Barros - AlbufeiraDesde pequena que Susana Gonçalves sente um forte apelo pelo desenho, possuindo um gosto e curiosi-dade peculiares pelo mundo da arte

“EXPRESSÕES DE ARTE”Até 24 JUL | Antigos Paços do Concelho de LagosExposição colectiva de Laurentino Cabaço e Cae-tano Ramalho, numa mostra da diversidade dos seus estilos na pintura em diversas temáticas por si apresentadas

Panfleto utópico em forma romance: Troika-me, de Maria João Neves

Page 12: CULTURA.SUL 82 - 3 JUL 2015

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