cultura.sul 80 - 8 mai 2015

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www.issuu.com/postaldoalgarve 7.869 EXEMPLARES Mensalmente com o POSTAL em conjunto com o PÚBLICO MAIO 2015 n.º 80 D.R. Da minha biblioteca: Uma Viagem ao Algarve a duas vozes p. 11 Miguel Ângelo a solo e em versão pop p. 5 Entrevista : D.R. Algarve Nature Week 2015 p. 7 D.R. Missão Cultura: “Dez anos depois” p. 2 Sala de leitura: Coração acordeão: a poética de um fole vital D.R. p. 8 D.R. Momento: Monchique, a Montanha Sagrada p. 10 D.R. Espaço ao património:

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• CONHEÇA O CULTURA.SUL DESTE MÊS • Sexta-feira (dia 08/05) nas bancas com o PÚBLICO e o POSTAL • Partilhe o seu caderno mensal de Cultura no Algarve • EM DESTAQUE: > MISSÃO CULTURA: “Dez anos depois” > MOMENTO: Algarve Nature Week, por Ana Omelete > PANORÂMICA: Entrevista: Miguel Ângelo a solo e em versão pop, por Ricardo Claro > SALA DE LEITURA: Coração acordeão: a poética de um fole vital, por Paulo Pires > ESPAÇO AO PATRIMÓNIO: Monchique, a Montanha Sagrada, por Fábio Capela > DA MINHA BIBLIOTECA: Uma Viagem ao Algarve a duas vozes, por Adriana Nogueira

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Page 1: CULTURA.SUL 80 - 8 MAI 2015

www.issuu.com/postaldoalgarve7.869 EXEMPLARES

Mensalmente com o POSTAL

em conjuntocom o PÚBLICO

MAIO2015n.º 80

d.r

.

Da minha biblioteca: Uma Viagem ao Algarve

a duas vozes p. 11

Miguel Ângeloa solo

e em versão

pop p. 5

Entrevista :

d.r.

Algarve Nature Week 2015

p. 7

d.r.

Missão Cultura:

“Dez anos depois”p. 2

Sala de leitura:

Coração acordeão: a poética de um fole vital

d.r.

p. 8

d.r.

Momento:

Monchique, a Montanha Sagrada

p. 10

d.r.

Espaço ao património:

Page 2: CULTURA.SUL 80 - 8 MAI 2015

08.05.2015 2 Cultura.Sul

AGENDAR

Celebra-se amanhã, 9 de Maio, o Dia da Europa ou Dia da União Europeia, uma data que parece mais política do que qualquer ou-tra coisa, mas que celebra a data da Declaração Schuman, realiza-da pelo ministro dos Negócios Estrangeiros de França, em Paris em 1950 e que ditou o arranque da criação daquilo que hoje co-nhecemos como União Europeia.

Culturalmente esta data mar-ca a criação de condições sem paralelo para a paz e para a se-gurança e defesa do património, nunca a Europa gozou de um tão longo período de ausência de conflitos bélicos de larga escala, excepção feita aos Balcãs.

A União Europeia e os tratados e convenções assinados entre os países europeus da UE a 28 e ou-tros Estados Europeus, determi-naram políticas de conservação patrimonial, de fomento e de-fesa das identidades culturais e criaram espaço, com a queda de muitas ditaduras para um fluir li-vre da cultura como forma maior de comunicação entre os povos.

Os orçamentos para a cultu-ra continuam ainda hoje a re-presentar uma ínfima parte das verbas alocadas aos deveres do Estado para com os cidadãos, mas a cultura é hoje, mais ampla, mais difundida, mais tranversal e acima de tudo, muito mais livre.

Os avanços conquistados podem a muitos surgir como dados adquiridos fruto de uma vida na constância da sua exis-tência, mas a verdade é que, num momento em que os di-reitos adquiridos se debatem com o totalitarismo das libera-lidades de Governos e políticos desregrados, importa sublinhar sempre que há conquistas que não podem ser descuradas e que a liberdade e o direito à cul-tura são lutas permanentes con-tra quem as ouse desrespeitar.

A Europa e a Cultura “Dez anos depois”

Passaram dez anos desde que teve lugar o “Faro, Capital Nacio-nal da Cultura” (Março de 2005); passaram dez anos desde que foi inaugurado o Teatro Municipal de Faro (Julho de 2005); passa-ram dez anos desde que foi assi-nada a Convenção de Faro, sob o título a Convenção Quadro do Conselho da Europa Relativa ao Valor do Património Cultural para a Sociedade (27 de Outubro de 2005). O que mudou?

Os objetivos de “Faro, Capi-tal Nacional da Cultura 2005” (FCNC) foram estabelecidos em Resolução do Conselho de Minis-tros nº 96/2004, de 19 de Julho, e afirmava que a FCNC pretendia alcançar fundamentalmente os seguintes objetivos: “1 - Resgatar a cidade e a região da marginalida-de cultural, atraindo para as ati-vidades culturais novos públicos e a grande massa da população que delas tem estado afastada; 2 - Apostar na continuidade e na consolidação dos projetos cultu-rais existentes na cidade e na re-gião, e contribuir para a elevação do nível cultural da sociedade algarvia; 3 - Projetar nacional e internacionalmente a cidade de Faro e a região do Algarve, am-bas enquanto polos de turismo cultural e de atividades ligadas às

indústrias da cultura e do lazer.” Por sua vez, reconhecendo a

necessidade de colocar a pessoa e os valores humanos no centro de um conceito alargado e interdis-ciplinar de património cultural, a Convenção de Faro veio salien-tar o valor e as potencialidades de um património cultural bem gerido, enquanto fonte de desen-volvimento sustentável e também de qualidade de vida numa socie-dade em constante evolução.

A Convenção de Faro reconhe-ce que cada pessoa, no respeito dos direitos e liberdades de ou-trem, tem o direito de se envol-ver com o património cultural da sua escolha, como expressão do direito de participar livremente na vida cultural consagrada na Declaração Universal dos Di-reitos do Homem das Nações Unidas (1948) e garantido pelo Pacto Internacional relativo aos Direitos Económicos, Sociais e Culturais (1966). Cada um de nós possui uma responsabili-dade individual e coletiva no processo contínuo de definição e gestão do património cultural. O património cultural tem tam-bém um contributo principal para o diálogo intercultural.

O valor da actividade cultural para a vitalidade económica e para o desenvolvimento de co-munidades sustentáveis tem sido reconhecido em vários documen-tos da UNESCO: as conclusões da Conferência Mundial sobre Polí-ticas Culturais, de 1982, da Co-

missão Mundial sobre Cultura e Desenvolvimento denominado “Our creative diversity” de 1995, da Conferência Intergoverna-mental sobre Políticas Culturais de 1998 e do Conselho da Euro-pa, intitulado “In from the Mar-gins”, de 1997. Não esqueçamos também os diversos instrumen-tos do Conselho da Europa, desig-nadamente: Convenção Cultural Europeia (1954); Convenção para a Salvaguarda do Património Ar-quitectónico da Europa (1985); Convenção Europeia para a Pro-tecção do Património Arqueoló-gico (1992, revista); e Convenção Europeia da Paisagem (2000).

Novas políticas, novos consumos

Os estudos científicos vieram

demonstrar que as alterações verificadas nas políticas edu-cativas e culturais, da segunda metade do século XX, tiveram um papel determinante nas características sócio demográfi-cas, motivações e interesses das pessoas. Também sustentam a evidência de uma nova cultura de consumo em que produtores e mediadores culturais, e turís-ticos, desempenham um papel fundamental porque permitem colocar à fruição de todos (visi-tantes e residentes) a produção realizada. Para os destinos turís-ticos do Sul da Europa, em que a participação da população na fruição cultural é ainda reduzida e a produção muito frágil, a pro-cura de produtos e serviços cul-turais por parte dos turistas (na-cionais ou estrangeiros) constitui

um contributo que não pode ser negligenciado, para a sustentabi-lidade da região.

Algumas cidades da região re-únem condições para constituir uma oferta cultural organizada em rede. Essa organização só tra-ria benefícios, uma vez que não possuem, por si só, de forma iso-lada, uma capacidade de atração comparável a outras cidades his-tóricas de renome internacional. A criação de uma marca regio-nal, com base na identidade co-mum das cidades, reforçará cer-tamente a identidade da região.

Será fundamental introduzir uma prática sistemática de reco-lha de informação relativa aos pú-blicos e visitantes da região, uma vez que as tendências de procura tendem à fragmentação. Todos os agentes regionais e locais, públi-cos e privados, devem assumir um papel activo na inventariação dos recursos, no conhecimento das diferentes comunidades (re-sidentes e visitantes), na criação de condições de acolhimento, no apoio aos visitantes e na organiza-ção e promoção de actividades e eventos. Uma das vantagens des-ta abordagem será um reforço da notoriedade, da imagem e da identidade e a criação de uma cultura de excelência.

A questão que permanece será: O que mudou? Será que os objectivos do FCNC e da Conven-ção foram concretizados? Como podemos consolidar estes per-cursos e estes objectivos?

A juventude de hoje!

Eis que chegamos, em Olhão, a mais um mês de MOSTRA-TE, mais um mês da Juventude. A Ju-

ventude é hoje um tema central, não só no discurso, como tam-bém na atividade política. Nem sempre foi assim.

Sou de uma geração que, em termos de apoio à Juven-tude, foi muito beneficiada em relação à dos meus pais, e ao longo de toda a minha vida política tenho defendido e tentado implementar cada vez mais estruturas onde os jovens se possam encontrar e

desenvolver os seus projetos.Avançámos muito, e fizemo-

-lo em pouco tempo. Há mais espaços de encontro e inter-câmbio de ideias e projetos, há maior oferta lúdica, cultural e desportiva, há maior sensibili-dade para uma idade especial na vida de todos, onde as ques-tões são mais do que as respos-tas, as dúvidas muito maiores que as certezas.

Falta fazer muito. Falta mais

preocupação laboral com os jovens que terminam a sua for-mação e não têm emprego. Fal-ta respeito pelos jovens, quando responsáveis políticos os incen-tivam a emigrar, sangrando o país da parte mais ativa e sonha-dora da sua população. Faltam programas escolares que res-pondam aos desafios do século XXI e integrem na formação dos jovens as extraordinárias poten-cialidades que a nova sociedade

da informação oferece.Aos jovens cabe-lhes usufruir

dos recursos humanos e mate-riais que colocamos à sua dispo-sição para desenvolverem as suas atividades, a nós, poder político, cabe-nos o mais difícil. Cabe-nos entender os sonhos e aspirações de uma geração que cresce ao som das dificuldades e, ainda assim, insiste em sonhar quan-do lhe deixam. Cabe-nos dar--lhes resposta e esperança.

Ricardo [email protected]

Editorial Missão Cultura

Direção Regionalde Cultura do Algarve

Juventude, artes e ideias

António PinaPresidente da Câmara de Olhão

“NOVOS MUNDOS”De 23 de Maio a 19 de Julho | Museu de PortimãoTimo Dillner nasceu em Wismar na Alemanha em 1966, vive em Bensafrim, Lagos, há 16 anos. ´e um artista multifacetado que apresenta pinturas, poe-mas, obras gráficas, esculturas e vídeo

“DIAS DE FADO”16 MAI | 21h30 | Centro Cultural de LagosTrês fadistas interpretam os mais mediáticos fados que a diva cantou ao longo da sua carreira, tais como “Estranha forma de vida”, “Ai Mouraria”, Maria Lis-boa ou “Povo que Lavas no rio”

d.r.

Isabel Pires de Lima, então ministra da Cultura, na assinatura da Convenção de Faro

Page 3: CULTURA.SUL 80 - 8 MAI 2015

08.05.2015  3Cultura.Sul

Espaço AGECAL

O território do Baixo Guadiana algarvio, raiano e de matriz me-diterrânica, compreende os con-celhos sotaventinos de Vila Real de Santo António, Castro Marim e Alcoutim. A maior densidade populacional no litoral e barrocal é contraposta pelo povoamento disperso na serra, na sua maioria constituída por montes, marcados pela obstinada ruralidade e habitu-ados a sobreviver com os recursos naturais disponíveis. A humaniza-ção do território, fruto do convívio de séculos com povos diferentes e do aproveitamento desses recursos, levou ao desenvolvimento de artes e saberes fundamentais para a sub-

sistência das suas gentes.Mais serrana que costeira, a pai-

sagem do Baixo Guadiana, seca e xistosa, é atravessada pelas tortuo-sas ribeiras afluentes do Guadiana: Vascão, Foupana, Odeleite, Beliche e Rio Seco, em cujas várzeas cres-cem os canaviais, de onde se extrai a cana utilizada para fazer os cestos ou canastras, outrora fundamentais para o armazenamento das frutas colhidas nos pomares ribeirinhos e no transporte do peixe capturado na própria ribeira. A cestaria, um ofício transmitido entre gerações ao longo de várias décadas, marcou a aldeia de Odeleite que, segundo os habitantes, via as ruas cheias de gente que trabalhava a cana, dia e noite, para dar forma aos cestos e engordar o orçamento familiar. Até as mulheres trabalhavam os cestos, facto pouco comum, pela cestaria ser um ofício efectuado quase ex-clusivamente por homens. A altera-ção do contexto social, bem como a evolução dos materiais, tornou barato e acessível o uso do cartão e do plástico, que substituíram os cestos e as canastras em cana, hoje objectos particulares de fruição

turística. A cestaria perdeu assim a sua função original, de uso quo-tidiano, e tornou-se num elemen-to cultural, valorizado, símbolo do

“saber fazer” da comunidade do Baixo Guadiana.

Todavia, a cana continua a ser associada às mais diversas activi-

dades desenvolvidas no território. Na agricultura, é utilizada no va-rejo e na apanha de frutos secos e da azeitona, nas hortas para sus-tentar o crescimento de trepadei-ras, como o feijoeiro, o tomateiro de armar e a ervilheira. A preser-vação dos gestos, usos e modos de trabalhar a cana é fundamental, de maneira a que a sua continuidade e consequente redescoberta face à contemporaneidade seja feita de forma sustentável e com recurso às técnicas tradicionais. A participa-ção das comunidades, detentoras do saber, é essencial, seja no pro-cesso de investigação ou na procu-ra de novos usos.

Numa época em que o turismo de carácter cultural cresce, a dina-mização das artes e ofícios próprios da cana, agora também objecto de cultura e lazer, passará, em parte, pela divulgação em tertúlias ou pa-lestras, mas também na formação de novos artífices, apostando na originalidade e em novos produ-tos, sem que se descaracterizem os materiais e as técnicas tradicionais.

Grande ecrã

Redescobrir a matéria: os trabalhos em cana no Baixo Guadiana

Pedro PiresTécnico de Património Cultural e pós-gra-duado em Património Imaterial, membro do CEPAC/UAlg, onvidado da AGECAL

d.r.

Cineclube de TaviraProgramação: www.cineclubetavira.com281 971 546 | [email protected]

SESSÕES REGULARES | CINE-TEATRO AN-TÓNIO PINHEIRO | 21.30 HORAS

14 MAI | GETT (O PROCESSO DE VIVIANE AMSALEM), Ronit e Shlomi Elkabetz – Is-rael/Al/F 2014 (115’) M/14

21 MAI | I LOVE KUDURO, Mário Patrocí-nio - Port/Angola 2014 (96’) M/1223 MAI | 678 (CAIRO 678), Mohamed Diab - Egípto 2010 (100’) M/1428 MAI | LES COMBATTANTS (OS COM-BATENTES), Thomas Cailley - França 2014 (98’) M/12

Tavira prepara mostras anuais de cinema

Já estamos em plena pre-paração das nossas anuais Mostras de Cinema, que irão decorrer no local habitual, os belos Claustros do Con-vento do Carmo, de 17 a 27 de Julho (Europeu) e de 7 a 17 de Agosto (Não Europeu). Eventos ideais para descobrir e/ou rever filmes de grande qualidade e sensibilidade, num ambiente agradável e atraente em todos os senti-dos, apenas comparável com um cenário do filme de Giu-seppe Tornatore: Nuovo Cine-ma Paradiso...

Entretanto, também não nos esquecemos de trazer a Tavira a nossa oferta semanal de fil-mes diferentes dos que passam nos centros comerciais. E neste mês de Maio propomos mais uma sessão extraordinária no sábado, dia 23: Cairo 678, um filme egípcio surpreendente, com a estreia como realizador do argumentista Mohamed Diab. Um entre centenas de fil-

mes de grande qualidade (e de baixo orçamento - apenas dois milhões de dólares) que nun-ca chegaram a estrear em Por-tugal, apesar de terem pernas

para andar! Iremos exibi-lo no nosso Cineclube com legenda-gem dupla: português e inglês. Por favor não o percam!

Cineclube de Tavira

fotos: d.r.

Cineclube de Faro Programação: cineclubefaro.blogspot.pt

IPDJ | 21.30 HORAS 12 MAI | O PEQUENO QUINQUIN, Bruno Dumont, França, 2014, 197’, M/1219 MAI | MAMÃ, Xavier Dolan, Canadá, 2014, 134’, M/1426 MAI | OUTRA FORMA DE LUTA, João Pinto Nogueira, Portugal, 2014, 80’, M/12

A TELA AOS SÓCIOS: UMA QUESTÃO CINE-CLUBISTA | 21.30 HORAS | SEDE CCF14 MAI | CASANOVA, Federico Fellini, Itália, 1976, 155’

21 MAI | QUERELLE, Rainer Werner Fass-binder, França/Alemanha, 1982, 104’, M/1828 MAI | JLG POR JLG, Jean-Luc Godard, França, 1995, 53’, M/12

FILME FRANCÊS DO MÊS | BIBLIOTECA MU-NICIPAL FARO - 21H30 - ENTRADA LIVRE22 MAI | Un Poison Violent, Katell Quil-levere, França, 2010, 92

Cena do filme ‘Cairo 678’, que representa a estreia na realização do argumentista Mohamed Diab

“Os homens precisaram do testemunho dos seus antepassadose cada época precisou dos conhecimentos anteriores para poder criar e inovar”

Xavier Greffe, 1986

Page 4: CULTURA.SUL 80 - 8 MAI 2015

08.05.2015 4 Cultura.Sul

Tocar tambor como quem grita - Günter Grass

O escritor alemão Günter Grass, Prémio Nobel da Literatu-ra em 1999, morreu aos 87 anos, em Abril de 2015. Considerado uma das mais importantes fi-guras da cultura alemã do pós--guerra, Günter Grass tornou-se persona non grata quando confes-sou, na sua trilogia autobiográ-fica, iniciada com Descascando a Cebola (2007), que narra a sua vida entre 1939 e 1959, como se alistou voluntariamente nas SS. No espírito desse processo de descascar a cebola de forma a revelar o núcleo da verdade, Grass escreve como aos 15 anos se apresentou voluntariamente para o serviço militar na Ale-manha nazi e como aos 17 pas-sou a envergar o uniforme das Waffen-SS. E este episódio que ocupa apenas duas páginas no conjunto da sua vida acabou por despertar grande polémica.

O Tambor de Lata, o seu roman-ce de estreia, só foi novamente publicado entre nós no cin-quentenário da sua publicação original (1959), numa tradução melhorada pela D. Quixote. O li-vro foi considerado escandaloso e pornográfico, mas a verdade é que narra de forma cómica, ale-górica e fantástica a história da Alemanha desde o final do sécu-lo XIX até 1960. A obra é repleta de histórias picarescas e cómicas, atravessada por elementos fan-tásticos e mágicos, num registo fluído, eivado de jogos de lingua-gem e de algum barroquismo de linguagem, próximo do carna-valesco, cujo estilo lembra afinal Gabriel García Márquez e talvez por isso mesmo alguns críticos tenham apontado a obra como um exemplo europeu do realis-mo mágico. 

O narrador, na primeira pes-soa, confessa logo nas primeiras linhas que está internado num «asilo de alienados» (pág. 13). Mas o autor, justamente numa época em que se prenunciava a morte do romance, dá novo ímpeto à arte da narrativa e não deixa de ironizar: «Pode-se co-meçar uma história pelo meio e criar confusão, avançando e recuando com ousadia. Pode--se assumir uma pose moderna

(...). Também se pode afirmar logo de início que hoje em dia é impossível escrever um roman-ce, mas depois, por assim dizer dissimuladamente, produzir um bestseller bem espesso para o au-tor se apresentar por fim como o último dos romancistas.» (pp. 15-16).

E será sempre a ironizar, para poder falar de assuntos sérios e delicados do pós-guerra, que a narrativa de Oskar vai discorren-do, a partir de um início desde logo cativante e estranhamente desconcertante: «Começo muito antes de mim; porque ninguém deveria escrever a sua vida sem arranjar paciência para recordar, antes da própria existência, pelo menos metade dos avós.» (pág. 16). Oskar conta então a histó-ria da sua avó materna, Anna Bronski, e de como ela se sentou num batatal, em 1899, com as suas quatro saias, cor de casca de batata, cuja ordem ia trocando consoante o dia da semana, de forma a que a saia melhor ficasse sempre por cima das outras, e de como Joseph Koljaiczek, procu-rado por ser um incendiário, se esconde de dois polícias debaixo das suas saias. Enquanto a polí-cia procura desesperadamente o homem e interroga a mulher sentada frente a uma fogueira, a comer batatas assadas, esta dei-xa sair fundos suspiros enquan-to aponta para outra direção. No final do primeiro capítulo, quando os polícias finalmente desistem de procurar o foragi-do, Anna Bronski ergue-se, des-cobrindo Joseph Koljaiczek, que estava enrodilhado no chão, mas logo se levanta, fecha a bragui-lha, e a partir desse momento «não lhe largou mais as saias» (pág. 24).

O maravilhoso patente nesta obra está especialmente conti-do em torno de Oskar que nas-ce em 1924 com a inteligência de um adulto e uns enormes olhos azuis. No dia do seu tercei-ro aniversário, Oskar recebe um tambor de lata, e nesse mesmo dia, ao ouvir o pai dizer-lhe que quando chegar a adulto será ele a tomar conta da loja da família, ele decide parar de crescer, como forma de evitar as responsabili-dades e pesos ou expectativas próprias de uma idade adulta. Ao longo da sua vida, Oskar irá tocar uma série de tambores, que nas suas mãos ganham um triplo poder: invocatório, pois enquan-to Oskar o percute isso permite--lhe regressar ao passado e resga-tar as suas memórias, como faz no final da sua vida, enquanto

está no asilo e procura escrever as suas memórias; protestatório, como arma de contestação ao que lhe impõem; encantatório, ao jeito do flautista de Hamelin, pois seduz e hipnotiza as pessoas com o som do seu tamborzinho de brinquedo. Oskar tem ainda outra capacidade extraordinária: uma voz «vitricida», que parte vidro de forma tão eficaz como uma arma supersónica.

Esta recusa de Oskar em cres-cer e tornar-se adulto, apesar de possuir as capacidades cogniti-vas de um, simboliza a sua nega-ção de fazer parte de um mundo que ele considera estar a enlou-quecer, consoante se avizinha a Segunda Grande Guerra, e o ru-far do seu tambor representa o seu protesto face à passividade da época, face ao que a História preparava, e que por muito ima-ginável que parecesse acabou por se tornar realidade. Este é, aliás, o princípio subjacente ao realismo mágico: a forma como o mundano e o fantástico se in-terligam de forma comum, em

que os factos mais incríveis não despertam grande estranheza no leitor, se bem que aqui não se trate de eventos mágicos como o levitar de tapetes, mas sim de outros factos absolutamente in-críveis, como o extermínio de milhares de pessoas, aparente-mente aceite de forma natural.

Existe todavia uma certa am-biguidade na leitura da obra pois chega a indiciar-se a possibi-lidade de que Oskar, afinal, não é uma criança, mas sim um anão, o que pode invalidar a questão do maravilhoso, embora não anule a estranheza e a singulari-dade que envolve este romance. Este rapaz incorre também em brincadeiras sexuais precoces com Maria, a mulher que cuida-va dele e que depois casará com o pai, pelo que quando nasce Kurt não se sabe bem se será fi-lho ou neto do marido.

Além da sua natureza física diferente, a diferença de Oskar face à sociedade que o envolve está igualmente patente no seu comportamento e nos papéis

que assume ao longo da sua vida: como chefe de um gangue que assalta lojas, graças ao po-der da sua voz que pulverizava facilmente as monstras; quando se junta a uma trupe circense de anões que entretém as tropas na linha da frente; em Düsseldorf, Oskar torna-se músico de jazz, sempre acompanhado do seu tambor... A (in)sanidade mental do narrador nunca chega a ser claramente confirmada ou des-mentida, ao longo desta densa narrativa de quase setecentas pá-ginas, em que o pequeno Oskar percorre a história alemã desde

1899 até 1954.A título de curiosidade, Gün-

ter Grass visitava regularmente o Algarve, onde possuía uma casa em Portimão, e expunha a sua obra como artista plástico no Centro Cultural de São Lou-renço. No seu dário de viagens, Em Viagem - De Uma Alemanha à Outra (1990), o autor escreve so-bre o Vale das Eiras, onde tinha uma casa, desde 1980, sem tele-visão. Grass gostava de receber, de cozinhar, de desenhar as suas gravuras a tinta de choco, de lula ou de polvo, e de se ocupar das suas plantas.

Paulo SerraInvestigador da UAlgassociado ao CLEPUL

Letras e Leituras

fotos: d.r.

Günter Grass, Prémio Nobel da Literatura em 1999

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08.05.2015  5Cultura.Sul

Miguel Ângelo: a solo e definitivamente pop

Cultura.Sul (C.S) - Estará hoje (dia 8 de Maio, data de saída do Cultura.Sul em banca) num concerto em Pêra, Silves, apresentado como acústico. O que podem os espectadores esperar para o concerto desta noite?

Miguel Ângelo (MA) - Neste concerto íntimo apresentarei algumas das novas canções de “Segundo”, mas também via-jarei por outras ligadas à minha carreira. Nestes ambientes mais próximos, além das canções cantadas existem as histó-rias contadas e a participação directa do público, o que tornará certamente a noite muito especial.

C.S - Ontem, em Silves, no âmbito da iniciativa “Lado B”, participou desta tertúlia que tenta revelar uma outra perspectiva sobre os artistas portugueses. Há um ‘lado b’ de Mi-guel Ângelo neste percurso a solo que iniciou em 2012, com o “Primeiro”, face ao conhecido percurso com os Delfins?

MA - O Labo B de cada um é o com-plemento do Lado A, mas não quer dizer que tenha menos importância. O que está menos exposto roda nes-se lado B: as origens, as influências, a presença determinante dos outros nas nossas vidas... Normalmente, é um lado mais obscuro, mais calmo e pessoal. Na minha carreira a solo baseio-me mais no meu lado pessoal do que quando estava com os Delfins, por razões ób-vias. É também nos meus romances

que vou mais fundo ao mergulhar na privacidade das minhas sensações e pensamentos.

C.S - “Primeiro” é encarado como um verdadeiro ‘statement of purpose’ de um futuro a solo. É isto de facto? Como é que vê hoje a reacção do pú-blico a esta escolha?

MA - Vejo muito bem face ao feedba-ck que recebo, mas tenho a noção que estou a construir algo, a iniciar um novo percurso, independentemente de suces-sos ou falhanços passados. Essa declara-ção de intenções, quando anunciei não só o “Primeiro” como o “Segundo” e o “Ter-ceiro”, tem a ver com isso, com a necessida-de de construir um conjunto sólido de novas canções que me acompanhem nos próximos anos, dando-me autono-mia.

C.S - “Timidez”, lançado quatro anos antes, a solo mas com os Delfins ainda ‘no activo’ é muito diverso de “Primeiro”. Neste último temos o re-gisto determinador do que pretende para este caminho a solo?

MA - “Timidez” foi lançado no final dos anos 90, quando os Delfins se afas-taram dos estúdios de gravação por alguns anos. Foi a maneira de dar res-posta ao pedido para a escrita da ban-da sonora do filme Zona J e também de gravar algumas das canções que tinha na gaveta, às quais juntei mais umas ver-sões de canções favoritas. Embora sen-do fruto de uma escolha muito pessoal,

“Timidez” é mais fragmentado que os capítulos da nova trilogia. Nessa altura não planeei nenhum início de carreira a solo, até porque os Delfins eram a mi-nha nave-mãe e por isso nunca encarei o “Timidez” como o início de um percurso a solo, sem no entanto lhe querer retirar a devida importância.

C.S - “Ray’s Bar” é por muitos des-conhecido, mas é para si mais um ca-minho desenhado no âmbito desta segunda fase da carreira?

MA - Quando peguei acidentalmen-te numa guitarra acústica, por volta

de 2004 - quando os Delfins faziam a sua tour unplugged – iniciei uma nova abordagem à composição de canções, ao ponto de basear nela a minha car-reira a solo. Devido a isso aproximei-me muito da música folk - nova e velha - e até de algum country mais ou menos alternativo. “Ray’s Bar” tem muito a ver com isso, o EP foi gravado numa sala de estar e quer em escrita, quer em sono-ridade aproxima-se muito do conceito

que descrevi em cima. Precisava de mui-ta verdade nas novas canções, de uma nova abordagem na escrita de letras e de uma sonoridade nua e crua que soasse intemporal.

C.S - Sente necessidade de se afastar de forma marcante, em termos de re-gisto, face ao som dos Delfins a que está indelevelmente ligado?

MA - Já senti mais, na realidade. Em “Timidez” claramente, até porque o grupo ainda existia, e em “Primeiro” talvez até inconscientemente! Mas chega-se a uma altura em que a fuga

de nós próprios se torna in-consequente e produz efeitos contrários. O velho sonho de estar bem com Deus e o Diabo já queimou muitas pestanas... Com 30 anos de carreira tudo se resume ao nosso essencial, à nossa verdade e vontade. Não quer dizer que não se experi-mentem novas sonoridades, novos caminhos, mas com a distância olha-se para trás e con-segue reconhecer-se uma matriz da qual é impossível afastarmo--nos de modo natural.

C.S - “Segundo” é o seu novo disco, mais pop, já consegue percepcionar a reacção do seu público?

MA - As reacções estão para já a ser melhores do que em re-

lação ao “Primeiro”, na generalidade. Acho que está a chegar a mais gente, a conseguir entrar nalguns sítios onde o “Primeiro” não entrou. Está a vencer preconceitos, o que já é uma vitória e penso que é um disco para palcos maiores, mais eléctrico e mais enérgico.

C.S - A trilogia que integra estes dois primeiros trabalhos completar--se-á com que registo musical? Tem

ideia já?MA - Esta trilogia destina-se a criar

uma base sólida de canções que me permitam seguir uma carreira a solo, reconhecida e apreciada, completando e aumentando a história que tive du-rante 25 anos com os Delfins. “Tercei-ro” encerrará essa trilogia, num futuro próximo.

C.S - Como é que vê a produção de escrita para canções e a composição na cena musical da actualidade em Portugal?

MA - Há na realidade poucos com-positores e autores que escrevam para terceiros, o que deixa muitos bons in-térpretes - a maior parte revelados em programas de televisão – sem nada para cantar ou acrescentar. À excepção do Fado, na música portuguesa impera o conceito de cantautor, muito ligado ao facto da sobrevivência e resistência profissional dependerem da actividade musical ao vivo. No entanto, já se escre-ve mais e melhor em português do que há alguns anos...

C.S - Depois de dois discos a solo, onde é que se vê enquadrado no pa-norama musical, independentemen-te dos chamados rótulos comercial-mente válidos?

MA - Sempre gostei das voltas que a música pop(ular) dá, dos círculos em espiral por cima de si própria. As refe-rências são quase tudo para mim. São o que é importante renovar e comu-nicar, até porque partimos todos dos mesmos princípios humanistas, na so-ciedade ocidental.

Enquadro-me na grande tradição da escrita de canções, com a ambição que essas canções não sejam apenas uma banda sonora distante ou música de dança no elevador e na aula de ginásti-ca. Ambiciono que as canções fiquem e falem por si, depois de partir.

Ricardo ClaroJornalista / Editor

A capa do mais recente disco de Miguel Ângelo

Há vozes inconfundíveis e Miguel Ângelo é uma delas.Associada necessariamente aos Delfins, banda de que foi vocalista por 25 anos, a voz do cantor está hoje plasmada nos álbuns que fazem parte da carreira a solo que decidiu trilhar após o fim do agrupa-mento que lhe deu a fama.“Primeiro” e, mais recente-mente, “Segundo”, são os discos de uma trilogia que o escritor, compositor e músi-co quer que sejam a base de uma carreira a solo sólida.Definitivamente pop, “sem-pre gostei das voltas que a música pop(ular) dá, dos

círculos em espiral por cima de si própria”, para Miguel Ângelo o que importa é mui-to mais do que o rótulo, “en-quadro-me na grande tra-dição da escrita de canções, com a ambição que essas canções não sejam apenas uma banda sonora distante ou música de dança no ele-vador e na aula de ginástica. Ambiciono que as canções fi-quem e falem por si, depois de partir”.Música para ouvir, repetir e deixar entranhar, numa das vozes mais reconhecidas da cena musical portuguesa contemporânea.

fotos: d.r.

Panorâmica

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08.05.2015 6 Cultura.Sul

As descobertas na ciência podem ser fonte de inspiração artística?

Artes visuais

Saul Neves de JesusProfessor catedrático da UAlg;Pós-doutorado em Artes Visuais pela Universidade de Évora

Um aspeto pouco abordado nas relações entre a arte e a ci-ência diz respeito a conceitos ou descobertas científicas poderem servir como fonte inspiradora das criações artísticas.

Diversos têm sido os artistas que consideram que a obra de arte “é filha do seu tempo”. Nes-se sentido, a produção artística pode ser influenciada por múlti-plos fatores, em particular pelas descobertas da ciência no perí-odo em que a criação artística ocorre.

Por exemplo, as ideias de Go-ethe sobre as cores tiveram um importante impacto sobre o tra-balho de Turner, o qual produ-ziu inclusivamente uma pintura intitulada “Luz e Cor (Teoria de Goethe)” (1843).

A Teoria da Relatividade de Einstein tem sido uma das des-cobertas que mais tem procu-rado ser expressa na produção artística. Em particular, há vá-rias publicações que destacam a influência da Teoria da Relati-vidade na pintura surrealista de Remedios Varo, nomeadamen-te pelo físico Alan Friedman (2000), no artigo “Física influen-cia a arte: evidências na pintura surrealista de Remedios Varo” (“Physics influences art: evidence in surreal painting of Remedios Varo”). Mas considera-se que a teoria da relatividade de Eins-tein está também presente em obras doutros artistas, em particular Picasso, Mondrian, Kandisnky, Marinete e Salva-dor Dali. Este último parece ter sido aquele que melhor expres-sa a influência desta teoria nal-guns dos seus trabalhos. Neste âmbito, destaca-se a sua pintu-

ra “A persistência da memória” (1931), em que coloca três re-lógios no mesmo espaço, suge-rindo que no mesmo espaço se expressam diferentes tempora-lidades. Isto não obstante Dali referir que a inspiração para o desenho dos “relógios moles” tenha surgido quando estava a comer um queijo Camembert derretido (Úbeda, Marquès & Pons, 2004).

Da análise feita sobre a influ-ência que as descobertas ocor-ridas na ciência tiveram na pro-dução realizada pelos artistas, enquanto tema dos trabalhos destes, concluímos que Dali foi provavelmente o artista em cuja obra, ao longo de todo o seu percurso e de forma intencional e sistemática, foram integrados temas estudados no âmbito científico, correspondendo a importantes descobertas ocor-ridas durante o século XX em diversos domínios científicos.

Nesse sentido, abordou nos seus trabalhos artísticos temas como a bomba atómica ou a elucidação da estrutura do DNA, sendo até considerado que tinha uma “obsessão pela ciência” (op. cit., 2004).

Para Dali existia, antes de tudo, metafísica, a qual se di-versificava em ciência e em arte. Considerava que o único grande conhecedor de arte e metafísi-ca era Leonardo Da Vinci e, tal como os artistas do Renasci-mento, aspirava associar arte e ciência.

Assim, a sua obra reflete as principais teorias e descobertas científicas do século XX, indo os seus interesses desde a ma-temática, a física e a genética, até à psicologia e à psicanálise.

A Psicologia, sobretudo na sua componente de Psicanálise, era uma das ciências em que Dali mais se apoiava, como revela o seu quadro “O enigma do dese-jo” (1929), em que repete a pa-lavra “Ma mere” inúmeras vezes em espaços que representam a força do inconsciente. E a in-fluência da psicanálise vai estar presente ao longo do percurso

artístico de Dali, tendo inclusiva-mente feito o “Retrato de Freud” (1937). Um outro quadro que se destaca na sua obra foi realizado uns anos mais tarde, “Sonho cau-sado pelo voo de uma abelha à volta de uma romã, um segundo antes de despertar” (1944), em que o cenário do sonho ocupa quase toda a tela, aparecendo a abelha à volta da romã apenas como um pormenor quase im-percetível.

Aliás, muitos dos trabalhos realizados no âmbito do surre-alismo têm conteúdos oníricos na sua base. Dali coloca nas pin-turas o inconsciente, o universo submergido revelado pelas teo-rias de Freud e os símbolos re-feridos por Freud na “Interpre-tação dos sonhos” (1900), livro considerado como a “bíblia” de Dali (Barnes, 2009). O próprio Dali referia: “Eu trabalho cons-tantemente no momento de dormir. As minhas melhores ideias vêm dos meus sonhos e a atividade mais Dalineana produz-se enquanto durmo” (op. cit., 2004). A importância do dormir no processo criativo é também expressa na sua pin-tura “Sono” (1937).

No âmbito das ditas “ciências

exatas”, nos anos 30 Dali foi in-fluenciado pelo Princípio da In-certeza de Eisenberg (1927), um enunciado da Mecânica Quân-tica, segundo o qual pode ha-ver interferência sobre o objeto quando tentamos avaliá-lo. Nes-te sentido, o que se vê depende do próprio observador, pois o observador determina a própria realidade com a sua observação. Este pressuposto coincide com as conclusões também obtidas pelas investigações realizadas no âmbito da teoria da forma (Gestalt), tendo Dali destacado a importância deste aspeto em várias obras. Vejam-se os seus trabalhos “O enigma intermi-nável» (1938) e “Rosto deitado» (1935), bem como “O rosto de Mae West” (1934-35).

Nos anos 40, surge um inte-resse particular pela Física Nu-clear, pelo que nos seus qua-dros os objetos decompõem-se em partículas que flutuam no espaço como átomos. É o caso das obras “A separação do átomo” (1947), “Equilibrio intra-atómico duma pluma de cisne” (1947), “Galáctea de es-feras” (1952) e “Desintegração da persistência da memória” (1952/54). Em relação a este

último, Dali referiu que “após vinte anos de absoluta imobili-dade, desintegraram-se agora os relógios moles dinamicamente” (Maddox, 1990). Este retomar de alguns temas trabalhados anteriormente, traduz um sen-tido evolutivo na forma de os abordar ao longo do seu per-curso, indo integrando novas perspetivas e influências.

Conforme referiu Dali: “A era atómica moderna é muito ele-gante. Não há nada tão alegre como a colisão e explosão dos conflitos intra-atómicos da Físi-ca Nuclear. A minha maior ale-gria é contemplar estes terríveis conflitos dos eletrões e dos áto-mos, todos saltando e bailan-do numa sensação eurítmica extraordinária” (op. cit., 2004).

Em 1953, na revista “Na-ture” (vol.171, nº4356) é pu-blicado o artigo “A estrutura molecular do ácido nucleico”, por Watson e Crick, os quais ganharam o Prémio Nobel, em 1962, pela descoberta da estrutura do ADN. Nesse pe-ríodo, Dali afirmou: “Hoje a única estrutura legítima é a estrutura molecular do ácido desoxirribonucleico” (op. cit., 2004). Inspirado nesta teoria

pintou, por exemplo, “Paisa-gem de borboletas (O Grande Masturbador numa paisagem surrealista com ADN)” (1957) e “Galacidalacidesoxyribonuclei-doácido” (1963).

Dali conheceu pessoalmente Watson em 1965, tal como ha-via conhecido Freud em 1938, ou Ilya Prigogine, Prémio Nobel da Química (1977). Isto porque Dali gostava de aprofundar as teorias propostas através do di-álogo com os próprios autores das descobertas científicas.

Nas matemáticas, conheceu René Thom, vencedor da Me-dalha Fields, com os seus traba-lhos sobre a teoria das catástro-fes, sendo considerado que as curvas das suas equações estão presentes no último quadro de Dali, “A cauda da andorinha” (1983).

Também conheceu Thomas Banchoff, que trabalhava com princípios da matemática so-bre objetos a quatro dimen-sões, sendo especializado em geometria diferencial, procu-rando desenvolver métodos gráficos em computador. O quadro “Em busca da quarta dimensão” (1979) traduz a in-fluência deste cientista.

Dali, que não acreditava na morte (“Não creio na minha própria morte. Não creio na morte em geral e em particu-lar na morte de Dali”; op. cit., 2004), morreu em 1989, ten-do na sua mesa de cabeceira li-vros dos cientistas Stephen Ha-wking, Matila Ghyka e Erwin Schrodinger, traduzindo a sua “intimidade” com a ciência até ao fim da sua vida.

Nota: Este artigo integra o livro “Construção de um percurso

multidisciplinar, integrativo e de síntese nas Artes Visuais”, de Saul Neves de Jesus ([email protected]),

podendo ser adquirido na Fnac de Faro (Fórum Algarve). Todas as

receitas obtidas com a venda deste livro revertem a favor da compra

de uma mesa de gravura para o curso de Artes Visuais

da Universidade do Algarve

Obra “A persistência da memória” (1931), de Salvador Dali

d.r.

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“ALBUFEIRA, UMA COSTA DIVERSIFICADA”Até 30 MAI | Galeria de Arte Pintor Samora Barros – AlbufeiraRicardo Belela mostra, através das suas fotografias, a magnífica costa do concelho de Albufeira, onde começam as praias rochosas e acabam os grandes areais do sotavento algarvio

“LIFE IS A SECOND OF LOVE”8 MAI | 21.30 | Centro Cultural de LagosConcerto revelará Rita Redshoes num registo mais próximo e intimista do habitual, em que os novos temas conviverão com os menos recentes

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08.05.2015  7Cultura.Sul

Momento

Algarve Nature

Week 2015

Foto de Ana Omelete

Espaço ALFA

Eu nunca fui de fazer fotografia de desporto, foram poucas as oportunida-des que procurei, os meus interesses gra-vitam mais para os outros géneros, mas não quer dizer que não goste de a fazer. A fotografia de desporto requer teleob-jetivas mais caras, no mínimo 300mm para cima, se quisermos fotografar com a proximidade que desejamos e a foto-grafia tem tudo a ver com proximidade. Ser criativo neste género pode ser um grande desafio, uma vez que podere-mos estar limitados por diversos facto-res. Além da relação proximidade/dis-tância, temos que lidar com a restrição do espaço em que nos podemos movi-mentar. Se estamos juntamente com o público, que vem em massa para estes eventos, a compactação é tal que se tor-

na difícil escolher os melhores sítios. Se estamos dentro do recinto das provas, os lugares destinados aos fotógrafos são igualmente pré-definidos e geralmente os ângulos não são os melhores e temos igualmente que competir o espaço com os outros fotógrafos. Em alguns casos, temos que lidar com os mesmos facto-res meteorológicos que os concorren-tes, calor, frio, vento, chuva, poeira ou lama, está tudo lá para nos dificultar a nossa visão e, claro, testar ao limite os equipamentos fotográficos, por isso to-mem algumas precauções nesse senti-do, nomeadamente, sacos de proteção e panos para limpar as lentes. Mas em última instância, o resultado final vai depender imensamente destes dois fa-tores seguintes, a obrigação de leitura da antecipação da ação e a sorte, que dada à velocidade que os acontecimentos fluem, irá ser determinante.

Para nós, a criatividade do ângulo, proximidade, antecipação e sorte, fa-zem a fotografia... a técnica, precisão e esforço extremo fazem o atleta! Tudo isto converge para um momento deci-sivo que geralmente não dura mais de um milésimo de segundo.

Desporto e fotografia, ambos ligados por momentos decisivos

Mauro RodriguesMembro da ALFA

1ª Etapa da Taça de Portugal de Downhill - São Brás de Alportel - 2015

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08.05.2015 8 Cultura.Sul

Um olhar sobre o património

Sala de leitura

Por um Museu participativo, participe você também!

No próximo dia 18 de maio irá celebrar-se o Dia Internacio-nal dos Museus. Esta celebração proporciona, anualmente, uma oferta diversificada de activida-des abertas à sociedade, subor-dinadas a um tema. O tema deste ano é “Museus para uma sociedade sustentável”, através do qual se pretende promover a reflexão sobre a actuação hu-mana e as suas repercussões sobre o meio em que actua,

promovendo igualmente o de-bate sobre o papel dos museus no processo de transição para uma sociedade sustentável.

Este último objectivo é bas-tante revelador e inquietante ao mesmo tempo. Revelador por-que assume que, apesar de to-dos os avanços - tecnológicos e não só - ainda estamos longe de ser uma sociedade sustentável; e inquietante porque ainda assim, somos diariamente confronta-dos com situações que nos “es-fregam na cara” que ainda esta-mos muito longe deste sonho. E atenção! Quando falamos em desenvolvimento sustentável não nos retiremos da equação, porque afinal de contas nós pró-prios sofremos as repercussões dos nossos gestos e atitudes.

E o que tudo isto tem a ver com museus? Pode ter tudo a

ver ou então pode não ter nada a ver. Depende do museu e do que ele queira para si próprio.

Longe vão os tempos em que os museus eram vistos como cápsulas do tempo, nas quais estavam encapsulados os ob-jectos e artefactos que fizeram a nossa história. Repositório do passado, que se apresenta-va aborrecido e desprovido de interesse, ao longo dos últimos anos foi sendo reinterpretado, reanalisado e apresentado de diversas formas com o objecti-vo de cativar um maior número de visitantes. Nesta reinvenção do museu, enquanto espaço de lazer e conhecimento, o envol-vimento da comunidade onde está inserido é de significativa importância. E este envolvimen-to tem que ser transversal a essa comunidade, ou seja, abrangen-

do todas as faixas etárias, desde os “pequenotes” até aos seus avós, com objectivos de actu-ação concretos para cada uma delas e acima de tudo corres-pondendo às suas necessidades concretas, que podem estar di-recta ou indirectamente ligadas à Museologia.

Directa ou indirectamente porque o papel de um Mu-seu deve, e à priori tem todas as condições para o fazer, de-sempenhar um papel activo na educação e transmissão do conhecimento sobre o qual ele trata, mas também deve promo-ver uma participação activa na comunidade, despoletando a reflexão e o pensamento crítico e criativo, tendo por base o in-centivar o adquirir consciência sobre o que fomos e o que so-mos com o intuito de promover

a reflexão sobre o que queremos ser. E desta forma o Museu, en-quanto entidade viva da socie-dade, deixa de ser algo do pas-sado para se transformar numa entidade de futuro. Com uma visão aberta para o exterior, com um olhar escrutinador e uma postura interventiva acerca dos diversos fenómenos sociais, políticos e culturais, como não poderia deixar de ser, os níveis de envolvimento de, para e com a comunidade serão certamen-te diferentes. Como ficou pro-vado com três casos recentes e sintomáticos deste tipo de en-volvimento: nos EUA e na Aus-trália, no seguimento da morte de negros às mãos da polícia e do assassinato de três jovens muçulmanos (EUA) e no segui-mento de um caso de sequestro por parte de um refugiado ira-

niano (Austrália), os profissio-nais dos museus chamaram a si um papel activo e interventivo na discussão das problemáti-cas associadas a estes eventos. Estas acções, só por si, fortale-cem o sentimento de pertença para com o Museu e para com a comunidade, numa relação de dois sentidos, contribuindo então para que o nosso desen-volvimento se não sustentável, pelo menos que seja consciente.

Aproveito ainda para de-safiá-lo: dia 16 de maio cele-bra-se a Noite Europeia dos Museus e, durante a qual, os vi-sitantes serão desafiados a des-cobrir estes espaços em horá-rios menos convencionais. Mas não se assuste. Os museus não mordem! Aventure-se, parta à descoberta e se for caso disso, surpreenda-se!

No princípio era o ar… Para Anaxímenes de Mileto, filósofo grego do séc.VI a.C., era essa a substância básica da existência, o princípio único criador, om-nipresente e essencial ao cresci-mento de todas as coisas. O acor-deão vive desse sopro vital, dos ditames de um fole (im)previsí-vel que parece conter a vida toda lá dentro: sereno ou ofegante, re-laxado ou contraído, sonoro ou (mais) silencioso – como o pulsar de um coração, que precisa desse “vento” que lhe insufla o fôlego primordial.

A analogia não é inocente, bebida na feliz metáfora de Alexandre O’Neill presente no poema “Acordeão”, de 1946, o qual o poeta remata com o sin-crético verso “coração acordeão”. É esse acordeão – que consegue afinar pelo diapasão do coração e sabe como tocar nas teclas mais sensíveis dessa misteriosa e palpitante “escala cromática” invisível aos olhos – que inebriou músicos como Édith Piaf ou Ja-

cques Brel, entre muitos outros. No tema “L’accordéon de la vie”, que Brel gravou em 1953 e es-treou no Olympia de Paris em 1964 (valendo-lhe uma ovação em pé de três minutos), surge o irrepetível acordeão do velho músico, que faz o público so-nhar, chorar, dançar, e que tem o condão de percorrer os quatro cantos da vida e do amor. E há mesmo um neologismo da lavra de Brel, quando, a certo passo, a letra nos relembra que a vida, para que a possamos perdoar, acordeona para nós.

“L’accordéoniste”, um dos pri-meiros sucessos de Piaf (datado de 1940 e composto por Michel Emer), por seu lado, conta a his-tória de uma prostituta que não conseguia ficar indiferente ao apelo magnético do pequeno ra-paz alegre que tocava acordeão, cuja sonoridade emanada pelos seus dedos finos e longos de ar-tista parecia penetrar-lhe a pele deixando-a num misto de tensão e euforia, emocionada, sem fôle-go, em catarse purificadora, num tempo suspenso. Essa música (a “java”) acalentava-lhe na alma o sonho de uma vida a dois, livre e sem constrangimentos, depois da terrível guerra, num regresso que tragicamente não aconte-ceria…

Cerram-se os olhos por mo-mentos e a esperança, o desen-canto, a ironia, a melancolia, a (violentíssima) ternura, a ale-

gria ganham no acordeão uma dimensão singular de expressi-vidade e densidade psicológicas através dessa fascinante mecâni-ca, plena de essência e complexi-dade (feita de ar, fole, palhetas, caixas harmónicas de madeira e “corredores” ora abertos ora oclusos – como os labirintos da subjectividade humana), que ora alinha, ora solavanca/questiona e “desarruma” o corpo e o espírito.

Nos anos 50 do século passa-do o reputado fotógrafo Robert Doisneau andou dias a fio pelas

ruas parisienses seguindo o cha-mamento voluptuoso de uma acordeonista e de uma cantora que espalhavam pela multidão o plangente lamento “Tu ne peux pas t’figurer comme je t’aime” (tema de Suzy Delair, com Paul Miskari). Impressionou-lhe o contraste de atitude entre as duas figuras e, sobretudo, o aparente desapego e indiferença com que a jovem instrumentista derramava a poderosa melodia, numa postura quase luxuriante, ociosa, levemente impiedosa, a

qual lhe conferia um encanto bruxuleante capaz até de atear uma grande fogueira em plena Idade Média, como Doisneau escreveria.

O magnetismo da presença, a força profunda e ardente (felina) do olhar e o desprendimento en-volvente da acordeonista – e por-que o impacto performativo de um instrumento é indissociável desse precioso diálogo corporal, técnico, cénico-visual e emocio-nal com o mesmo – confluíam assim numa melopeia aneste-siante que inundava ruas, bares e becos, hipnotizando a curio-sa e atenta lente de Doisneau. Seria uma das suas fotografias mais icónicas, captada de 1953 em Paris.

O imaginário colectivo e a tradição portugueses estão, aliás, repletos de indivíduos que, de acordeão ou concerti-na na mão, se tornaram numa espécie de deuses, de figuras míticas, que cativavam pelo sentido poético, estético, lírico das suas vivências. A imagem do acordeonista cego (alguém que tem os olhos na ponta dos dedos) tem, neste particular, uma espe-cial ressonância na memória po-pular, pela sua presença assídua e emblemática em festas, feiras e mercados (e nas ruas) onde

tocava, cantava e/ou vendia fo-lhetos de cordel, entusiasmando até muitos futuros praticantes para a fruição da música. Como se a cegueira lhe conferisse, pela sensibilidade e vivência inerentes, ainda mais verdade, ocultação (apelativa) e envolvência à sua música, fazendo-nos parar para ouvir/sentir o gemer, o grito do seu fole-salvação, a máquina de vento que carrega consigo e que parece falar como uma orquestra.

Para os antigos os ventos sim-bolizavam transições do passado para o futuro. Em tempos mais recentes, muitos têm sido os novos fôlegos criativos na arte de reinventar o acordeão. Um exemplo marcante (entre ou-tros possíveis): Yann Tiersen, na banda sonora d’O fabuloso desti-no de Amélie Poulain (2001), sou-be, como poucos, acordeonar a vida, neste caso uma história ar-rebatadora de nostalgia, solidão trágica, descoberta, reencontro, sonho, pequenos gestos e amor. No fundo, uma (intemporal) valsa do destino modulada por uma musicalidade rente à pele e ao coração, que nos guia pelas nossas mais insondáveis e cati-vantes ruas interiores…

(a 6 de Maio assinala-se o Dia Mundial do Acordeão)

Coração acordeão: a poética de um fole vital

Paulo PiresProgramador culturalno Município de [email protected]

Se vires como se alonga em minhas mãos a músicaentendes o que eu digo acordeão da lua

David Mourão-Ferreira

Alexandre FerreiraLicenciado em PatrimónioCultural pela UAlg

d.r.

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08.05.2015  9Cultura.Sul

Maio

Pedro [email protected]

O(s) Sentido(s) da Vida a 37º N

Em terra de silêncio

Em 1975, António de Macedo (escritor, cineasta e prof. universitário; Lisboa 1931), realizou o filme «O Princípio da Sabedoria», cujos exteriores foram rodados maioritaria-mente em Estoi, esse pedaço esquecido em terra de silêncio, junto ao palácio rococó que em 1909 o arquiteto Domingos da Silva Meira encheu de escultura e que há pouco voltou a ser resgatado ao abandono e destruição.

Um seixo

Um seixo saltita na água parada e sal-pica gotas com brilho. Tanta emoção, que se evapora, e mergulha enfim, juntando-

-se aos seus pares no fundo, num des-canso. Até que as correntes das estações os repuxem mais para lá da sua vasa...

Cada dia é uma cançãoCada dia é uma canção que se junta a este

álbum de litoral. Hoje de um instrumental feito de vento a bater nas portadas, a puxar nuvens para a faixa costeira e que sopram as notas molhadas sobre as pautas de areias, as terragens dos caminhos, e das flores do tempo que faz agora.

Sul, Sol e Sal

Durante este mês a Galeria Sul, Sol e Sal (r. vasco da gama, 18 - Olhão) estará no Real Ma-rina Hotel & Spa (Olhão) a mostrar uma expo-sição colectiva - retrospectiva da sua atividade iniciada em dezembro último. Fotografias de António Jorge Nunes, Paulo Côrte Real e Jorge Jubilot; uma instalação de Joana Rocha e cerâ-mica de Lucia Minder

«Viagem ao Algarve»

«Viagem ao Algarve» (los libros del estra-perlo, 2014 – tradução de António Cabrita)

é título do livro de Diego Mesa (Ayamon-te,1962), inspirado na «Viagem a Portu-gal» de José Saramago, que Cristina Felício apresentará na noite de sábado, 9 de maio, na Casa Álvaro de Campos em Tavira, pelas 21h45, e que contará com leituras de textos por alunos da escola secundária de Tavira e ainda com o fadista Tiago Nené.

Sessão da tarde

Tardes de diversão e cultura com fados acontecem no Ginásio Clube de Faro (r. ivens, 12), numa organização da Associa-ção de Fado do Algarve, que vem promo-vendo quinzenalmente aos domingos à tarde sessões de fado em que tomam parte associados que desejem cantar nesta tertú-lia, evento que se inicia às 16h30 e pode ser visitado na página facebook da associação.

Crescer“Existe algo de opressivo nos locais onde cres-

cemos. Gostámos de lá ter vivido e gostamos de lá voltar, mas viver ali seria muito estranho”.

Já não sei bem onde (acho que foi num fil-me) recolhi esta citação do escritor norte--americano John Updike, mas captou-me pelo facto de se aplicar tão bem ao que eu penso e sinto apesar de continuar a amar o local onde em dias subia às açoteias e miran-tes observando o horizonte das horas azuis sem fim. As ilhas eram mundos a conquis-tar em breve. Depois descia à rua e corria livremente…

Lugar de segredos

Sento-me numa pedra junto ao canavial, e no silêncio possível por estes dias, consi-go ouvir as passagens do vento. Contemplo a ribeira e a água em serena queda. Se um dia reparar ou souber que ela já não corre por entre as pedras far-te-ei saber que… me fui deste… outrora lugar de segredos a que chamam ‘Pego do Inferno’, estranho nome para um sítio que se faz valer de um elemen-to tão vital.

fotos: d.r.

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“CONCERTO DE RUI MASSENA”8 MAI | 21.30 | Teatro das Figuras - FaroO maestro estreia-se nos palcos como compositor e pianista, acompanhado pelo violino de Gaspar San-tos em dois temas

“QUIM ROSCAS E ZECA ESTACIONÂNCIO”30 MAI | 21.30 | Centro Cultural de LagosJoão Rodrigues e Pedro Alves encontram-se no leque de humoristas mais populares em Portugal, celebri-zados pelos personagens “Quim e Zé” do programa da RTP – Telerural

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08.05.2015 10 Cultura.Sul

Monchique, a Montanha SagradaEspaço ao Património

No âmbito da minha ativi-dade enquanto arqueólogo es-tagiário da Câmara Municipal de Monchique, participei num conjunto de iniciativas subordi-nadas à gestão do património concelhio, tendo em vista o es-tudo, a salvaguarda e a valoriza-ção do seu património cultural, bem como a sensibilização e a educação patrimonial da po-pulação monchiquense. Nesse sentido, partilho aqui alguns apontamentos sobre o poten-cial científico e as particularida-des do património histórico-ar-queológico existente no espaço concelhio de Monchique, assim como algumas reflexões sobre as atividades de índole cultural que tenho desenvolvido nesta mara-vilhosa e peculiar região serrana.

Breve contextualizaçãoda Serra de Monchique

O território concelhio de Monchique situa-se em pleno coração do barlavento algarvio, estando implantado numa área que apresenta uma interessante mistura de características medi-terrânicas e atlânticas. A Serra de Monchique constitui uma incon-tornável referência na paisagem, tanto para as comunidades que habitaram o atual sul de Portu-gal, como para os navegadores que navegaram pelas águas que rodeiam o extremo sudoeste do velho continente. Ademais, integra uma linha de fronteira natural entre o atual Algarve e o Alentejo, “funcionando”, des-de tempos antigos, como uma importante zona de passagem, grosso modo, entre o litoral e o interior. Além de ser uma serra imponente – a mais alta do sul de Portugal –, detento-ra de boas condições naturais de defesa e de locais propícios para o controlo dos territórios envolventes, também possui uma assinalável abundância de água e uma variada fauna e flo-ra. Assume-se, também, como um território de fortes tradições místicas, especialmente religio-sas. Existem diferenças notáveis entre o concelho de Monchique e os concelhos circundantes, as quais influenciaram, ao longo

dos tempos, os usos e costumes dos habitantes deste território.

A Montanha Sagrada

Desde tempos remotos que a Serra de Monchique atraiu dife-rentes povos, em muito devido à copiosidade dos seus recursos naturais, com especial destaque para a qualidade das águas que brotam do seu subsolo. Prova disso, é o fato de ter existido um modesto balneário termal ro-mano nas pitorescas Caldas de Monchique. Embora tenham promovido a sua monumenta-lização, os romanos não foram os primeiros a frequentar este emblemático local, visto que subsistem, na sua envolvência, várias necrópoles e sepulturas atribuídas, especialmente, aos períodos Neolítico e Idade do Bronze. Importa salientar que o testemunho mais antigo que se refere diretamente às águas da Serra de Monchique provém de uma inscrição epigráfica consa-grada às “Águas Sagradas”, pa-tente numa ara romana que foi encontrada no local onde, ou-trora, existiu o balneário termal romano.

Um pouco por todo o espaço concelhio subsistem vestígios patrimoniais do passado, o que indica que este território não passou despercebido às várias comunidades e aos distintos momentos civilizacionais que se sucederam ao longo de mi-lénios no sudoeste peninsular. Através da análise de fontes es-critas sabemos que, durante a ocupação islâmica da Península Ibérica, a Serra de Monchique era denominada por Munt Sãqir – cuja tradução significa “Mon-tanha Sagrada”. Embora não se conheçam referências diretas à denominação romana desta serra, existem indícios de que seria designada por Mons Sacer, portanto a “Montanha Sagrada”.

Gestão e educação patrimonial, arqueologia

e turismo cultural

A “idade de ouro” da arque-ologia no espaço concelhio de Monchique circunscreve-se à década de 1940. Ao longo des-sa incontornável década foram identificados diversos sítios arqueológicos, especialmente monumentos sepulcrais, ten-do sido realizadas as primeiras escavações arqueológicas nesta serra. A partir da década seguin-te constatou-se uma assinalável escassez de investigações arque-ológicas sistemáticas neste espa-ço concelhio. Todavia, ao longo dos últimos anos essa tendência

tem vindo a ser alterada, tendo--se assistido a alguns passos no sentido da identificação, estudo, proteção e valorização do patri-mónio cultural concelhio, bem como para a sensibilização e educação patrimonial da popu-lação monchiquense. Conquan-to constituam pequenos passos são, porém, fundamentais para a abertura de novos e próspe-ros horizontes, tendo em vista a valorização do património con-celhio e, concomitantemente, o desenvolvimento do turismo cultural e o retorno socioeconó-mico para a população monchi-quense – os principais interessa-dos na sua história e herança cultural.

A partir do ano transato su-cederam-se várias iniciativas direcionadas para a educação e sensibilização patrimonial da população monchiquense. A título de exemplo, salienta-se a realização de várias palestras no âmbito do Ciclo de Conferências “História, Memória e Património do Concelho de Monchique”, a execução de visitas guiadas ao património histórico-arqueoló-gico concelhio e a concretização de exposições relacionadas com o património cultural concelhio. O principal intuito dessas inicia-tivas relacionou-se com a apro-ximação entre o conhecimento científico e a população local, sublinhando-se a crescente ade-são e envolvimento da comuni-dade concelhia – especialmente escolar e sénior.

Nos últimos anos verificou-se o desenvolvimento do turismo cultural e do turismo de nature-za no Algarve, como novas “fer-ramentas” de atração turística para “combater” o velho para-digma do turismo de praia. No entanto, para valorizar um terri-tório é fundamental identificar e entender as suas realidades e as suas particularidades, respei-tando-o e “explorando” de um modo não destrutivo as suas potencialidades. Com efeito, é desejável a convivência entre o património e o turismo, através de uma estratégia centrada na sustentabilidade. Para tal, é ne-cessário continuar a fomentar a aproximação entre a comu-nidade científica e a população local, o diálogo entre os órgãos de várias tutelas e das universi-dades e os órgãos de poder local, honrar e incentivar as atividades tradicionais desta região serrana, envolver a comunidade local e a população em geral.

Ainda há um longo cami-nho a percorrer no que respeita ao conhecimento e à valoriza-ção do património cultural da “Montanha Sagrada”, tendo em vista a sustentável “exploração” socioeconómica dos seus recur-sos patrimoniais. Entre as várias carências, destaca-se a inexistên-cia de uma Carta do Património Cultural concelhio e de um Mu-seu de âmbito municipal. Na incontornável obra intitulada Estudos Arqueológicos nas Caldas de Monchique, é referido que “(…) toda a região serrana do Algarve é copioso filão a explo-rar cientificamente”, afirmação que continua atual volvidos mais de sessenta anos, particularmen-te no respeitante ao património histórico-arqueológico do con-celho de Monchique.

Fábio Capela Arqueólogo estagiáriono Município de Monchique

Inscrição epigráfica consagrada às ‘Águas Sagradas’ da ‘Montanha Sagrada’

fotos: d.r.

Cerro do Castelo de Alferce. Acção de sensibilização e educação patrimonial

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08.05.2015  11Cultura.Sul

Da minha biblioteca

Adriana NogueiraClassicistaProfessora da Univ. do [email protected]

Depois de ler o livro de Die-go Mesa, vêm à memória desta cronista uns versos de Camões: «Transforma-se o amador na cousa amada/ por virtude do muito imaginar».

Ao ler o livro de José Sa-ramago, Viagem a Portugal (1981), o mesmo terá acon-tecido a Diego Mesa, escritor natural de Ayamonte e gran-de apaixonado pelo nosso país, que mantém um blogue intitu-lado http://aulajosesaramago.wordpress.com, onde divulga o trabalho que se vai fazendo em prol da disseminação da obra do Nobel da Literatura português, que o inspirou a refazer os seus passos.

Escrito na terceira pessoa, Sa-ramago designa a personagem que percorre o país de lés a lés como «o viajante». E este viajante vai ser, para Diego Mesa, «o ou-tro viajante», já que, assumindo uma personagem equivalente, adota um estilo e retórica reco-nhecíveis para o leitor.

Tomando como ponto de par-tida o último capítulo, «De Algar-ve e sol, pão seco e pão mole», que ocupa 18 páginas na edição da Viagem a Portugal, do Círculo de Leitores, e fazendo dele o seu guia de viagem, um novo viajante percorre esta terra, de uma ponta a outra, de carro e de comboio, revisitando os lugares ali men-cionados. Naturalmente que, passados mais de 30 anos desde a 1ª edição daquela obra, muitas coisas se alteraram e é bom saber que, na sua maioria, para melhor. Os passos citados de José Sarama-go aparecem em itálico no texto de Diego Mesa, que muito bem os enquadra.

Não se pense, porém, que este novo viajante apenas repete o

que o outro visitou. É verdade que o usa como guia, mas tam-bém faz dele a sua inspiração para novos percursos, como a visita mais demorada a Porti-mão ou a viagem de comboio entre Vila Real de Santo António e Lagos. Além disso, a Viagem ao Algarve tem algumas breves (e úteis) notas de rodapé e, no final, uma boa bibliografia que pode-rá ajudar o leitor interessado em aprofundar mais o assunto. Para que fique perfeito, só fal-

ta que a próxima edição tenha uma boa revisão de texto.

Precisando de selecionar al-guns excertos para aqui consta-rem, deixou-se esta cronista levar pelo seu interesse especial por ruínas e museus, apresentando dois apontamentos sobre estes tipos de espaços.

As ruínas romanas de Milreu

Sobre Estoi, diz Saramago (que ali terá estado, provavel-

mente, entre 1979 e 1981, datas em que viajou para escrever o livro): «As ruínas da vila romana de Milreu […] estão sujas e aban-donadas. Contudo, pelo que ain-da conserva, é das mais comple-tas que se encontram no País. O viajante percorreu-as sob um sol de justiça, viu conforme soube, mas sente a falta de alguém que identifique os lugares, as de-pendências, alguém que ensine a olhar. Mas aquilo que teve mais dificuldade em entender foi uma casa arruinada que está no pla-no mais alto: lá dentro há man-

jedouras baixas, e estas cortes de gado dão diretamente para habitações que seriam de gente. Por onde entrava o gado? […]».

Já Diego Mesa viu, felizmente, uma outra realidade: «hoje em dia o recinto está devidamente cercado e na entrada foi cons-truído um edifício que serve de receção ao visitante, simples e funcional, com painéis que ex-plicam a história das ruínas. Tem a sorte de vir acompanhado por dois amigos arqueólogos que lhe identificam os lugares, as depen-dências, que o ensinam a olhar o que a vista alcança, ao contrário do outro viajante […]. Da casa arruinada de que faz menção o outro viajante também não há rasto […], a não ser que se trate do edifício novo que se situa no nível mais alto mas que está fechado, pelo que este viajante não pode ver o que o outro viajante viu e muito menos responder às suas

dúvidas. Pelo menos hoje. Porque amanhã saberá que em meados do século XV ou inícios do XVI, sobre as velhas e abandonadas ruínas romanas, foi construída uma casa, hoje restaurada por ser um ‘único e precioso exemplo algarvio de arquitectura civil com contrafortes cilíndricos’».

De facto, Milreu está uma obra condigna: quem agora visitar o sítio tem à sua disposição painéis explicativos sobre os diversos es-paços que se podem ver ao ar li-vre e no interior da Casa Rural. E, para poder também acrescentar alguma coisa, esta cronista pediu ao arqueólogo João Bernardes, docente da Universidade do Al-garve, que lhe esclarecesse algu-mas dúvidas, ao que ele gentil-mente acedeu, explicando que a casa esteve habitada até meados do século XX. O Estado, entretan-to, comprou o espaço e, quando Saramago terá visitado o local, as

obras ainda não teriam começa-do. E, sim, havia, nessa época, um espaço para o gado, o qual ainda hoje pode ser percebido, numa zona deixada empedrada. A inauguração oficial deste restau-ro aconteceu apenas em 2003.

Uma visita a Portimão

José Saramago pouco diz so-bre Portimão, tendo-lhe dedica-do apenas um parágrafo com 19 linhas. Como o «viajante foi à igreja matriz e achou-a fechada», fica-se pelo «melhor dela [que] está à vista de toda a gente, e é o pórtico» e parte para Lagos. O viajante espanhol tem mais sor-te e encontra a igreja aberta, mas como está a ser celebrada missa e «está cheia a igreja, a abarrotar», vê, igualmente, apenas o exterior. No entanto, não se vai logo em-bora e nessa noite fica alojado na cidade. Mais uma vez se conside-ra com sorte, porque, da cafetaria do hotel, abrigado do temporal que entretanto se fazia sentir, pôde apreciar o «espetáculo da chuva golpeando com força os vi-dros» e os «raios que iluminavam o céu de Portimão com a sua luz muito intensa». No dia seguinte foi visitar «o museu que está im-plantado numa antiga fábrica de conservas, no porto […]. Aplaude, este viajante, o sentimento, a sen-sibilidade demonstrada na recu-peração do material que confor-mava a vida dentro da fábrica, e menos o cheiro característico da mesma, quase não lhe falta ne-nhum detalhe».

Este livrinho tem o tamanho ideal para servir de guia de bolso e um conteúdo que nos deleita: ficamos com vontade de sair de casa e de visitar estes lugares que nos são apresentados com muito carinho por Diego Mesa, cujo modo como relata a sim-patia das pessoas que com ele se cruzam, a simplicidade com que pequenas contrariedades são resolvidas, os pormenores artísticos que aprecia, diz muito do seu amor por estas terras e estas gentes.

E esta cronista termina, fa-zendo coro com Saramago: «É preciso recomeçar a viagem. Sempre».

Diego Mesa, escritor natural de Ayamonte

d.r.

AGENDAR

“LACUNAS”Até 12 JUN | Museu Municipal de LouléAs peças de Ricardo Lopes nascem da vontade de ex-plorar a relação entre as formas, os seus significados e os espaços que ocupam em todas as dimensões físicas e metafísicas da nossa existência

“ALGARVE EM PRETO E BRANCO”Até 30 MAI | Posto Municipal de Exposiçõesde LagosExposição de Alexandre Manuel. A sua paixão é fotografar paisagens da região costeira algarvia, onde grava as maravilhas naturais em constante movimento.

Uma Viagem ao Algarve a duas vozes

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