cia marginal na caros amigos

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caros amigos julho 2010 40 Marcelo Salles FOTO: Q NALDINHO LOUREN t udo escuro. Silêncio absoluto. Uma ponta de cigarro acesa dança, em movimentos ca- denciados. Aos poucos, a luz se abre. E ru- fam os tambores! No centro do palco, surge, va- garosamente, uma pomba-gira. Sentada com seu enorme vestido branco, caprichosamente deitado em círculo, ela balança a cabeça de lado a lado, enquanto fuma e bebe. Ela bate duas palmas e duas ajudantes entram em cena. Mais duas pal- mas e elas enchem seu copo. De repente, uma pastora evangélica, dessas bem escandalosas, en- tra no palco. Sua pregação coincide com a saída de cena, lenta e gradual, da pomba-gira. Com os olhos esbugalhados, a pastora grita: “Aceite Je- sus no seu coração!” e outras palavras de ordem. A transição se completa. A pomba-gira e suas ajudantes saem completamente de cena, e a pas- tora conquista, definitivamente, o palco. O trecho acima está em cartaz com o espetácu- lo Qual é a nossa cara?, da Cia Marginal de Tea- tro. Trata-se de uma das muitas histórias de Nova Holanda, uma das dezesseis favelas do Comple- xo da Maré, conjunto habitacional às margens da Avenida Brasil, no Rio de Janeiro, que reúne mais de 130 mil pessoas. A passagem conta, com beleza e rigor histórico, a substituição das religi- ões de matriz africana pelas neopentecostais no Rio de Janeiro – processo que muitas vezes ex- pulsou das favelas, com violência, os praticantes de umbanda e candomblé. A peça conta diversas histórias de Nova Ho- landa, entrecortadas por depoimentos pessoais dos atores, que são também moradores da Maré. O processo de criação que deu origem ao espe- táculo teve como ponto de partida uma pesqui- sa de campo realizada nesta favela. Durante dois ou três meses os atores entrevistaram alguns dos moradores mais antigos da comunidade até se chegar à formatação das histórias. “Depois, fize- mos um processo de seleção e reflexão em cima desse material”, explica a diretora do grupo, Isa- bel Penoni. “E juntamos histórias de 20, 30 anos atrás, mas que são atualizadas pelos depoimen- tos dos atores”. Um deles, o da brilhante atriz Priscilla Andra- de, de 24 anos, mostra que esse grupo de teatro não é mais um desses que se proliferam nas fa- velas pelas mãos de ONGs comprometidas ape- nas consigo mesmas. Priscilla fala de seu primei- ro Fórum Social Mundial, narra a evolução do engajado bloco carnavalesco Se Benze que Dá e lembra de quando moradores fecharam a Aveni- da Brasil após o assassinato do menino Renan, 3 anos, durante operação policial em 2006. “A gente também faz protesto!”, afirma. Uma segunda passagem do espetáculo conta A Cia Marginal de Teatro, grupo formado por atores-moradores da Maré, maior bairro popular do Rio de Janeiro, realiza ações para democratizar o seu método de trabalho. TEATRO DA MARÉ mostra a força da favela Grupo de teatro emociona o público com texto vigoroso e apresentação de alto nível profissional. -Salles_160.indd 40 02.07.10 17:15:24

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Page 1: Cia Marginal na Caros Amigos

caros amigos julho 2010 40

Marcelo Salles

FOTO

: Q N

ALDI

NHO

LOUR

EN

tudo escuro. Silêncio absoluto. Uma ponta de cigarro acesa dança, em movimentos ca-denciados. Aos poucos, a luz se abre. E ru-

fam os tambores! No centro do palco, surge, va-garosamente, uma pomba-gira. Sentada com seu enorme vestido branco, caprichosamente deitado em círculo, ela balança a cabeça de lado a lado, enquanto fuma e bebe. Ela bate duas palmas e duas ajudantes entram em cena. Mais duas pal-mas e elas enchem seu copo. De repente, uma pastora evangélica, dessas bem escandalosas, en-tra no palco. Sua pregação coincide com a saída de cena, lenta e gradual, da pomba-gira. Com os olhos esbugalhados, a pastora grita: “Aceite Je-sus no seu coração!” e outras palavras de ordem. A transição se completa. A pomba-gira e suas ajudantes saem completamente de cena, e a pas-tora conquista, definitivamente, o palco.

O trecho acima está em cartaz com o espetácu-lo Qual é a nossa cara?, da Cia Marginal de Tea-tro. Trata-se de uma das muitas histórias de Nova Holanda, uma das dezesseis favelas do Comple-xo da Maré, conjunto habitacional às margens da Avenida Brasil, no Rio de Janeiro, que reúne mais de 130 mil pessoas. A passagem conta, com beleza e rigor histórico, a substituição das religi-ões de matriz africana pelas neopentecostais no Rio de Janeiro – processo que muitas vezes ex-pulsou das favelas, com violência, os praticantes de umbanda e candomblé.

A peça conta diversas histórias de Nova Ho-landa, entrecortadas por depoimentos pessoais dos atores, que são também moradores da Maré. O processo de criação que deu origem ao espe-táculo teve como ponto de partida uma pesqui-sa de campo realizada nesta favela. Durante dois ou três meses os atores entrevistaram alguns dos moradores mais antigos da comunidade até se

chegar à formatação das histórias. “Depois, fize-mos um processo de seleção e reflexão em cima desse material”, explica a diretora do grupo, Isa-bel Penoni. “E juntamos histórias de 20, 30 anos atrás, mas que são atualizadas pelos depoimen-tos dos atores”.

Um deles, o da brilhante atriz Priscilla Andra-de, de 24 anos, mostra que esse grupo de teatro não é mais um desses que se proliferam nas fa-

velas pelas mãos de ONGs comprometidas ape-nas consigo mesmas. Priscilla fala de seu primei-ro Fórum Social Mundial, narra a evolução do engajado bloco carnavalesco Se Benze que Dá e lembra de quando moradores fecharam a Aveni-da Brasil após o assassinato do menino Renan, 3 anos, durante operação policial em 2006. “A gente também faz protesto!”, afirma.

Uma segunda passagem do espetáculo conta

A Cia Marginal de Teatro, grupo formado por atores-moradores da Maré, maior bairro popular do Rio de Janeiro, realiza ações para democratizar o seu método de trabalho.

TEATRO DA MARÉmostra a força da favela

Grupo de teatro emociona o público com texto vigoroso e apresentação de alto nível profissional.

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41julho 2010 caros amigos Novo sítio: www.carosamigos.com.br

um pouco da história do traficante varejista Jor-ge Negão, que durante muito tempo reinou abso-luto na favela. O ator caminha lentamente. Três mulheres o acompanham, com gritinhos de Jor-ge, Jorge. Quando ele vira o boné pra trás, todas se calam e deitam, imóveis. Apavoradas, procu-ram esconder o rosto. O bandido desvira o boné e volta a caminhar. Gritinhos, boné pra trás, mu-lheres no chão. Tragicômico: os moradores mais antigos contam que quando Jorge Negão saía de sua casa com o boné virado pra trás era porque estava indo matar alguém.

Uma outra cena que retrata a violência diz res-peito a uma trégua do Jorge Negão e dos Irmãos Metralha, grupos rivais que durante anos domi-naram a região. Era dia de votação para a Asso-ciação de Moradores – este o motivo da bandei-ra branca. De repente estoura o funk Rio Chumbo Quente, dos MCs Júnior e Leonardo, adaptação da música “Chumbo Quente”, da dupla sertaneja Léo Canhoto e Robertinho, que surgiu em 1969, em Goiânia. Ao contínuo, os atores entram com máscaras de Bush, Saddam Hussein, Bin Laden, Minie e Carlitos. Seguram foices, armas de fogo, munições. E dançam, percorrem todo o palco.

CENA ANTOLÓGICAA diretora Isabel Penoni explica que tentou

conjugar as celebridades do terrorismo inter-nacional com a banalização da violência entre crianças (Minie), enquanto a figura do Carlitos, única a não portar nenhuma arma, pula de um lado para outro tentando escapar com vida. “O importante é que o uso das máscaras de Bush, Saddam e Bin Laden nessa cena amplia a refle-xão sobre a guerra que se vive hoje nas favelas cariocas, conectando ou associando-a aos gran-des conflitos internacionais”, diz Isabel.

O espetáculo aproveita as histórias dos mo-radores da Nova Holanda para problematizar questões tabus, como a homossexualidade, abu-so sexual e os diversos preconceitos ainda en-raizados no país. No total, são 13 cenas, entre as representações das histórias contadas pelos moradores mais antigos e os depoimentos pes-soais dos atores.

O momento em que a plateia mais riu foi dian-te da interpretação da história das palafitas du-plex. Muitas pegaram fogo, os donos perderam tudo, uma desgraça sem fim. Mas a pose estava mantida. “Mas era duplex”, repetia, orgulhoso, entre uma e outra tragada no cigarro.

Uma outra cena que diz muito pela atualida-de da reflexão proposta é a que mostra o papelão prestado por muitas ONGs que atuam em comu-nidades. Pegam os favelados mais fudidos e os inscrevem num projeto social qualquer. Depois, os que aprendem a batucar qualquer coisa são atirados à mídia e pressionados a defender mu-ros, caveirões e UPPs. É a nova rolagem da má-quina de moer gente, diria Darcy Ribeiro.

Gizele Martins, moradora da Maré, assistiu à peça pela quarta vez e se emocionou mesmo as-sim. “Eu me vejo representada em cada situação representada. A peça é essencial para o resgate da nossa história”, disse.

A atriz Priscilla Andrade conta que a Cia Mar-ginal é um projeto de vida. “Foi por ela que eu parei de resistir em tentar ser atriz. No Brasil há uma ideia de não-valorização da cultura, mas o teatro foi mais forte, foi me puxando e não teve jeito”, diz ela, para quem a arte tem um impor-tante papel político. “Eu acredito na arte. E pri-meiro de tudo tem que ter um papel político. A arte questiona, problematiza as questões envol-vidas na história. Ela toca na ferida. Se não toca na ferida, não é arte, é só entretenimento”.

Wallace Lino, ator que interpreta a pomba-gi-ra da cena inicial, se encontrou no teatro, mais especificamente nesse grupo. “A Cia Marginal é minha vida”, diz. “Foi o único espaço em que consegui construir um vínculo que não consigo e nem quero me desligar”. Em sua opinião, en-cenar uma peça sobre a Maré é um privilégio, pois “as pessoas que construíram esse lugar são exemplos de resistência. Não só na Maré, mas na maioria das favelas”, diz. Wallace critica a for-ma como o poder público age nesses espaços, e pergunta: “Por que aqui ele atua totalmente di-ferente da Zona Sul?”.

HISTÓRICOA Cia Marginal é um grupo formado por ato-

res-moradores da Maré, maior bairro popular do Rio de Janeiro. Nesse espaço, o grupo desenvol-ve, desde 2005, atividades em parceria com a or-

ganização Redes de Desenvolvimento da Maré. Seu nome reflete a prática a que se propõe, que aponta para a liberdade que se encontra às mar-gens dos sistemas e padrões dominantes. A Cia realiza ações voltadas para a democratização do seu método de trabalho, como oficinas teatrais oferecidas para jovens da favela. Em 2006, o grupo foi contemplado com o Prêmio de Tea-tro Myriam Muniz, da Funarte, que permitiu a montagem do espetáculo Qual é a nossa cara?. Em 2009 foi agraciada com patrocínio da Se-cretaria de Cultura do Estado do Rio de Janeiro para a manutenção de suas atividades.

Para a temporada 2010/2011, a Cia Marginal pretende trabalhar o projeto Do outro lado, que vai tratar do universo dos presos em regime fe-chado. “Me interessa saber como eles passam o tempo, como constroem a privacidade num lu-gar onde a premissa é a subtração da privaci-dade, como dão sentido à passagem do tempo”, explica a diretora Isabel Penoni. O objetivo é mostrar ao público um pouco da subjetividade de quem está preso, sobre quem é a pessoa que está ali, geralmente tida como um número, uma massa homogênea de criminosos. “Também me interessa ver como vai se dar a interação com os atores durante o processo de pesquisa, pois na favela também há uma série de limitações, como muros, fronteiras impostas pelo tráfico, entre outras”, diz Isabel, que trabalha há dez anos na Maré.

A missão da Cia Marginal é realizar projetos de pesquisa, criação, produção e democratiza-ção da prática teatral, através de uma gestão co-letiva. O grupo atua em diferentes espaços e está voltado para um público diversificado, contri-buindo para a descentralização da difusão artís-tica da cidade do rio de Janeiro, através de um teatro autoral, contemporâneo e feito com qua-lidade, comprometido com a formação de um pensamento crítico e reflexivo.

A direção da Cia está a cargo de Isabel Peno-ni. Em seu elenco estão Priscilla Andrade, Ge-andra Nobre, Jaqueline Andrade, Wallace Lino, Diogo Vitor e Rodrigo Souza. A ficha técnica do espetáculo Qual é a nossa cara? é a seguin-te: Concepção e Direção: Isabel Penoni; Pesqui-sa e Criação: Cia Marginal; Supervisão de Dra-maturgia: Rosyane Trotta; Direção de Arte: Rui Cortez; Direção Musical: Isadora Medella; Ilu-minação: Daniela Sanchez e Rogério Emerson Magalhães; Programação Visual: João Penoni; Foto e Vídeo: Davi Marcos; Produção Executi-va: Cia Marginal e Bianca Fero.

O público que esteve presente na noite de 19 de junho, um sábado, no Centro de Artes da Maré, assistiu a tudo com uma atenção exem-plar. E riu e chorou. E quando a apresentação terminou, todos aplaudiram de pé por intermi-náveis minutos. Não à toa. Os atores estiveram impecáveis, a iluminação precisa, o figurino es-tupendo. Esse espetáculo, esse grupo, poderia estar em qualquer teatro do mundo.

Marcelo Salles é jornalista.Colaborou Eduardo Sá, estudante de Jornalismo.

Atores contam histórias e fazem depoimentos pessoais.

JOÃO

PEN

ONI

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