carlos nelson coutinho e os caminhos da revolução brasileira - corrigido versão final

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  • 8/13/2019 Carlos Nelson Coutinho e os caminhos da revoluo brasileira - CORRIGIDO verso FINAL

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    Um marxista na batalha das ideias: Carlos Nelson Coutinho e os caminhos da revoluo

    brasileira

    Victor Neves de Souza1

    No impossvel que um autor seja umgrande homem; mas no ser fazendo

    livros, nem em versos nem em prosa, que

    ele se tornar tal.

    Jean-Jacques Rousseau [Meu retrato]

    memria de Carlos Nelson Coutinho, militante-intelectual comunista.

    ResumoO presente escrito traz a pblico os primeiros resultados e certas hipteses de trabalho de

    uma pesquisa em andamento

    2

    . Atravs dela, intitulada Um marxista na batalha das ideias: opensamento de Carlos Nelson Coutinho e os caminhos da revoluo brasileira, venho

    esquadrinhando dois campos intimamente interligados, esperando obter resultados em duas

    frentes: de um lado, na frente ainda pouco explorada do estudo aprofundado do conjunto da obra

    de Carlos Nelson, lanando luz sobre a contribuio terica de um dos principais pensadores

    brasileiros do ltimo quarto do sculo XX, cuja influncia permanece viva e forte no XXI; de

    outro lado, naquela constituda pelo esforo interpretativo do evolver da realidade brasileira

    ps-redemocratizao, ciclo no qual sua figura, como destacado intelectual orgnico vinculado

    classe trabalhadora, teve papel proeminente.

    O objetivo central desta perquirio , a partir da fundamentao e do teste da hiptese

    medular e das hipteses auxiliares a serem apresentadas adiante, proceder a um estudo crtico do

    pensamento de Carlos Nelson Coutinho, com nfase em seu pensamento poltico maduro. A

    investigao deve facultar lanar luz sobre sua trajetria individual e sobre sua importncia

    histrica enquanto intelectual revolucionrio, coadjuvando tambm para a compreenso dos

    caminhos percorridos pela esquerda brasileira nas ltimas trs dcadas.

    1 Victor Neves de Souza doutorando na Escola de Servio Social da UFRJ e militante comunista. Email paracontato: [email protected].

    2 O texto derivado de Projeto de Pesquisa de Tese de doutorado defendido na Escola de Servio Social da UFRJem maio de 2013. Agradeo aos membros da banca, os professores Elaine Behring, Marcelo Braz e RodrigoCastelo, pelas fecundas observaes, algumas das quais incorporadas aqui. Este o local tambm para agradeceraos professores Jos Paulo Netto que gentilmente se disps a comentar o projeto em conversa parte, devido impossibilidade de comparecimento na data da defesa e Mauro Lus Iasi que me vem orientando nesteesforo investigativo com muita seriedade, argcia e disponibilidade. Por ltimo, mas sem dvida alguma nomenos importante, sou profundamente grato ao professor Lus Carlos Scapi, sem o qual este projeto e os estudos

    aqui expressos simplesmente no existiriam. Se as indagaes e sugestes apresentadas apenas serviram paraenriquecer o presente trabalho, claro que as insuficincias na composio final so de minha inteiraresponsabilidade.

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    Palavras-chave:Carlos Nelson Coutinho; revoluo brasileira; papel do intelectual.

    Abstract

    This text brings to light the first results and some hypotheses of an ongoing research,

    entitled A Marxist in the battle of ideas: Carlos Nelson Coutinhos thought and the paths of the

    Brazilian revolution. Through it, Ive been scanning two fields closely related, aiming to get

    results on two different fronts: on the one hand, on the front still little explored of the thorough

    study of Carlos Nelsons whole work, illuminating the theoretical contribution of one major

    Brazilian intellectual of the last quarter of the 20 thcentury, whose influence remains alive and

    strong in the 21st; on the other hand, on that constituted by the effort to interpret Brazilian

    evolution on the period post-democratization, in which he has played a key part.

    This researchs main goal is, departing from the study and test of our hypotheses, proceed

    to a critical study of Carlos Nelson Coutinhos thought, with the emphasis put on his political

    mature thought. The investigation must lead to knowledge about him as an individual and about

    his historical weight as a revolutionary intellectual, also contributing to comprehend the paths

    taken by the revolutionary Brazilian left over the past three decades.

    Keywords: Carlos Nelson Coutinho; Brazilian revolution; role of the intellectuals.

    Introduo: problemas de fundo postos ao pensamento maduro de Carlos Nelson

    a) O problema da revoluo brasileira

    O debate sobre a revoluo dos mais ricos no campo da esquerda, tendo-se constitudo

    em controvrsia perene. O trabalho terico e a atuao prtica de Marx e Engels representam

    marco definitivo na superao de tendncias golpistas, isolacionistas ou iluministas marcantes

    na atuao anterior de setores revolucionrios, tendo alado a polmica central a outro patamar.

    A oscilao polar, desde ento, costuma se dar entre reforma social e revoluo como doiscorolrios possveis e no necessariamente incompatveis do pr-se em luta da classe

    trabalhadora, do movimento operrio.

    O tema remonta, em sua vertente comunista3, ao processo de constituio da classe

    3 Comunista aqui no indica vinculao necessria aos Partidos Comunistas. Expressa, apenas, a posio quetambm foi a de Marx e Engels no Manifesto Comunista e da o nome que escolheram para o panfleto. Osautores reconheceram que no processo de constituio da classe trabalhadora enquanto classe para si a fraomais resoluta da prpria classe se reivindicou comunista, em contraposio aos socialistas que ou no

    pertenciam ao movimento dos trabalhadores, ou representavam seitas agonizantes, ou preferiam apoiar-se nasclasses 'cultas' e, em decorrncia, acabavam por no se comprometer com uma transformao radical dasociedade que fosse obra dos trabalhadores eles mesmos. Quanto a isso, cf. o prefcio de Engels de 1890 ao

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    trabalhadora enquanto classe para si, ou seja: enquanto sujeito histrico portador da

    emancipao humana como possibilidade, com projeto societrio prprio e autnomo. Este

    processo encontra, no plano histrico-universal, trs balizas fundamentais: a revoluo europeia

    de 1848 (a Primavera dos Povos), quando a classe trabalhadora se antagoniza burguesia e

    rompe-se definitivamente o terceiro estado feudal; a Comuna de Paris de 1871, quando pela

    primeira vez a classe trabalhadora toma o poder em suas mos e inicia a implementao de um

    conjunto de medidas tendentes emancipao humana; a Revoluo de Outubro de 1917, a partir

    da qual a classe trabalhadora consegue efetivar, pela primeira vez na histria, um Estado de

    transio socialista.

    Neste ponto, necessrio lembrar que o processo de constituio da classe enquanto

    classe para si no nem linear nem muito menos se desenrola unidirecionalmente: encontra

    culminaes e depresses a depender do prprio evolver das condies econmicas, polticas e

    sociais em cada formao nacional, bem como da capacidade de resistncia e atuao da classe

    trabalhadora atravs de suas formas organizativas. Os marcos estabelecidos aqui assinalam,

    portanto, nveis de culminao ou pontos mximos de conscincia, o que no significa que a

    classe neles permanea ou a eles retorne necessariamente4.

    No Brasil, formao econmico-social de capitalismo retardatrio, este processo est

    muito estreitamente relacionado ao prprio surgimento da classe trabalhadora no contexto de

    transio de formao colonial a formao propriamente capitalista5. Ele tem como balizas

    fundantes a ecloso do movimento operrio organizado nas primeiras dcadas do sculo XX

    organizado num primeiro momento sob forte influncia do anarcossindicalismo e sua

    culminao na fundao do Partido Comunista Seo Brasileira da Internacional Comunista (PC-

    SBIC, posteriormente PCB) em 1922.

    Desde 1922, portanto, est posto o debate sobre a revoluo brasileira, que se expressou

    usualmente como sinnimo de revoluo democrtico-burguesa no Brasil em vertentes

    diferenciadas. Introduzido pelo PCB como projeto poltico a ser perseguido e referenciado nas

    Manifesto, bem como LWY, [1970] 2012, cap. 2. neste mesmo registro que muitos militantes se reivindicamcomunistas ainda que no militem nos PCs de seus pases (alguns diriam: justamente por no estarem nos PCs, esim sua esquerda), e que outros continuam se reivindicando comunistas aps sua ruptura com o PC comofoi o caso de Carlos Nelson a partir dos anos 80.

    4 Em relao aos temasformao da conscincia de classee constituio da classe trabalhadora enquanto classepara si, cf. GOLDMANN, 1955 e 1979; GRAMSCI, 2002, vol. 1; IASI, 2006 (especialmente cap. 1) e 2007;LUKCS, [1923] 2003 (especialmente caps. 3 e 4); LUXEMBURGO, 1999. Quanto aos marcos histricos destaconstituio, enumerados no pargrafo anterior, cf. NETTO, in MARX e ENGELS, 1998; MARX, [1871] s. d.;HOBSBAWM, 2002a, caps. 6 (item II) e 16, 2002b, caps. 6 (item II) e 9 (pp. 236-239) e 2003 (cap. 2).

    5 Quanto referida transio tenho recorrido mais diretamente a GORENDER, [1978] 2010; MELLO, 1982

    especialmente o captulo 1; PRADO JR., [1942] 2007 e [1966] 1987; SILVA, [1976] 1986. Quanto aosurgimento da classe trabalhadora brasileira neste contexto, as referncias a partir das quais o texto foi elaboradoso GIANNOTTI, [2007] 2009; KOVAL, [1968] 1982; MATTOS, 2009.

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    formulaes de Lenin e da Internacional Comunista de uma revoluo democrtico-burguesa,

    anti-imperialista e anti-latifundiria (SEGATTO, 2011), a questo ganhou vulto e abrangeu

    amplo e diversificado corpo de intelectuais nas dcadas seguintes, tendo constitudo eixo de

    grande relevo no debate intelectual brasileiro desbordando largamente o mbito restrito aos

    comunistas pelo menos at meados dos anos 19606.

    Tambm aqui esto presentes no plano programtico (ou seja, naquele momento da

    formulao terico-prtica mais imediatamente voltado interveno sobre a realidade),

    especialmente entre os comunistas, os polos reformas e revoluo. Por outro lado,

    incontornvel, no plano da anlise que subsidiar a interveno poltica, a prospeco da

    especificidade da formao social brasileira, que frequentemente arrola os temas da situao

    dependente ou perifrica do subsistema capitalista brasileiro (IANNI, [1971] 2009) frente

    ao sistema capitalista mundial e da peculiaridade de nosso processo de transio ao capitalismo

    ou de nossa revoluo burguesa , que, de peculiaridade histrica, se cristaliza em um conjunto

    de caractersticas estruturaisda formao social em questo, plasmando suas idiossincrasias em

    relao aos casos clssicos de desenvolvimento capitalista tanto histrica quanto estruturalmente.

    Podemos, assim, afirmar que o conjunto de esforos terico-prticos comprometidos com

    a apreenso do movimento e/ou com a realizao da revoluo brasileira, que envolve a

    anlise concreta do objeto formao econmico-social do Brasil (em seu processo, e, portanto,

    em seu passado, em seu presente e em suas perspectivas de devir), engendrou a necessidade de

    localizar os elementos que constituiriam o que podemos chamar de peculiaridade histrico-

    estrutural brasileira, motivando um esforo, da parte de nossos tericos da revoluo, destinado

    a encontrar os elementos componentes de nossa trajetria particular de desenvolvimento. Isto,

    no caso dos comunistas, torna-se a busca pela apreenso do que h de caracterstico em nosso

    caminho (no clssico) para o capitalismo como forma de mapear os passos necessrios

    construo de um possvel caminho (no clssico) para o socialismo.

    Isto posto, notamos que em diferentes momentos histricos a serem tratados por mimcomo ciclos histricos, categoria a ser aclarada a seguir possvel encontrar certas

    composies ou configuraes estratgicasque pautam todas as demais posies sobre o assunto

    revoluo brasileira em uma poca dada em certa formao social. Quer sejam favorveis,

    quer sejam contrrias a estas configuraes-chave, todas as demais posies so foradas a se

    6 Alguns clssicos que se ocuparam do assunto so: HOLANDA, [1936] 2007; PRADO JR., [1966] 1987;SODR, [1958] 1978, [1962] 1979, [1990] 1997; e, um pouco mais tardiamente, MARINI [1969] 2012 eFERNANDES [1975] 2006, [1981] 2011, entre outras obras suas posteriores a 1975. SEGATTO (2011) lembra

    ainda trabalhos de Guerreiro Ramos, Celso Furtado, Raymundo Faoro e Alberto Passos Guimares, entre muitosoutros que se dedicaram com maior ou menor intensidade ao problema entre os anos 1930 e 1960. Deve-semencionar, tambm, a importncia do ISEB na disseminao desta controvrsia.

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    posicionar em relao a estas.

    Tais configuraes estratgicas se mostram como nicas e inescapveis em cada ciclo, e

    partimos da hiptese de que isso est relacionado ao fato de que elas, em torno do objetivo da

    revoluo (e no caso brasileiro, da revoluo brasileira), so erigidas sobre reflexos mais ou

    menos fidedignos da realidade objetiva vises sociais de mundo, concepes de mundo ou

    interpretaes unitrias e coerentes da realidade a partir das quais conquistam posio

    dirigente face classe trabalhadora, forando assim, histrico-concretamente, a remisso.

    Faz-se necessrio, neste ponto, explicitar melhor algumas das categorias com as quais

    tenho trabalhado at aqui.

    Quanto s vises sociais de mundo: para Lucien Goldmann, vises de mundo so a

    expresso psquica da relao entre certos grupos humanos e seu meio social e natural, sendo

    seu nmero necessariamente limitado em dado perodo histrico devido a sua pertinncia

    necessria a um grupo. Indo de encontro posio epistemolgica deste autor7, mas me

    apropriando do que considero ser uma intuio fecunda sobre o assunto, remeto a categoria, a

    partir do Lukcs daEsttica([1963] 1966, especialmente o cap. 1), ao reflexono pensamento das

    determinaes ontologicamente postas tais como se apresentam na realidade externa ao sujeito

    que busca apreend-la ou seja, ao processo de passagem da existncia das categorias de

    ontologicamente postas a reflexivamente reconstitudas. Quando o termo aparecer neste texto,

    a esta tentativa de sntese que far remisso.

    Nas sociedades divididas em classes sociais, a estes grupos que se vinculam mais

    diretamente as vises de mundo, representando o mximo de conscincia possvel de cada classe

    (GOLMANN, 1979). Nas sociedades capitalistas s h duas classes sociais puras ou

    fundamentais, no sentido de que sua existncia e evoluo baseiam-se exclusivamente no

    desenvolvimento do processo moderno de produo (LUKCS, [1923 [2006], p. 156):

    burguesia eproletariado. , portanto, necessariamente a elasque se vinculam as vises sociais

    de mundo em disputa pela direo desta sociedade tomada enquanto totalidade8. Michael Lwytrata do mesmo objeto (e a ele que devemos a preciso categorial no sentido de defin-las como

    visessociaisde mundo), enriquecendo-o com mais determinaes em LWY, 1987.

    7 A posio do autor quanto a este ponto mais diretamente legatria do conceito weberiano de conscinciapossvel assimilado em interlocuo com o Lukcs deHistria e Conscincia de Classe , posio que considerosuperada pela impostao ontolgica que vai a pouco e pouco se afirmando na reflexo lukacsiana posterior aosanos 30, at encontrar suas formulaes definitivas naEsttica(implicitamente) e na Ontologia (explicitamente),

    j nos anos 60.8 As outras classes no tm sua existncia fundada exclusivamente sobre sua situao no processo de produo

    capitalista. Por isso, seu interesse de classe e, consequentemente, sua viso de mundo se orienta somenteem funo de manifestaes parciais da sociedade, e no da construo [e da disputa dos rumos] da sociedadecomo um todo (LUKCS, [1923] 2006, p. 157).

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    Combinando esta sua contribuio quela de Antonio Gramsci9podemos afirmar que as

    vises sociais de mundo (o marxista italiano diria: concepes de mundo) constituem-se a partir

    de interpretaes unitrias e internamente coerentes da realidade objetivacapazes de apreender

    determinaes postas por ela e a partir da servir de base a programas eficazes de interveno o

    que significa que se podem, por um lado, apreender determinaes fundamentais do real, podem

    tambm distorcer, ocultar e mistificar alguns de seus aspectos fundamentais, desde que isto no

    inviabilize sua eficcia (o que conduz ao problema da ideologia, cuja abordagem constituir

    momento, ainda que acessrio, da pesquisa, j que est indubitavelmente posto pela prpria

    natureza do objeto da investigao).

    Quanto aos ciclos histricos: a categoria de anlise ciclo histrico representa uma

    preciso em relao mera periodizao, pois envolve a assimilao da possibilidade concreta

    de recuperao em patamar superior de certos nveis de conscincia anteriormente atingidos.

    Por exemplo: no Brasil, podemos encarar o surgimento do Partido dos Trabalhadores na virada

    dos anos 70 aos 80 como uma recuperao10em nvel superior (na medida em que est atrelada

    ao desenvolvimentodo prprioprocesso histricode consolidao do capitalismo brasileiro) de

    certo grau de conscincia da classe atingido em 1922 quando da fundao do PCB

    independentemente de que posio no espectro poltico cada um destes partidos ocupe hoje.

    Quanto s configuraes estratgicas: a partir da contribuio, no campo militar, do

    general prussiano Carl von Clausewitz ([1832-37] 2008), possvel defin-las como a articulao

    no plano da teoria das diversas formas e momentos da luta ou do confronto entre as foras em

    presena aos objetivos finais perseguidos por cada uma delas. A estratgia revolucionria dos

    comunistas , portanto, a articulao entre suas diversas frentes e modalidades de luta ao

    objetivo final da construo de uma sociedade sem classes, da sociedade humanamente

    emancipada. Neste sentido, devemos procurar esclarecer a diferena entre estratgia, programa e

    ttica, sendo esta ltima a resultante das decises referentes a cada momento do processo de luta,

    ou seja, a cada um dos confrontos tomados em sua singularidade11. Ainda: para conformar umaestratgia revolucionria no sentido da articulao referida a partir do ponto de vista da classe

    trabalhadora, necessrio partir da base material real em que se atua, refletida no plano do

    pensamento em uma teoria socialque organiza a viso social de mundo unitria e coerente desta

    9 Cf.Alguns pontos preliminares de referncia em Apontamentos para uma introduo e um encaminhamento aoestudo da filosofia e da histria da cultura, GRAMSCI, [1931-32 (Caderno 11)] 2002, vol. 1, pp. 93-96.

    10 Que fique claro: a categoria de recuperao nada tem a ver com um suposto retorno ao passado, que repetir-se-ia ciclicamente numa histria reiterativa. Quanto a isso, um exemplo basta: no pelo fato de as crises do capital

    serem cclicasque elas se repetem umas iguais s outras.11 Ser necessrio, para avanar nesta diferenciao, recorrer aos estudos de Gyrgy Lukcs sobre a categoria da

    particularidade, reunidos em LUKCS, [1957] 1978, especialmente caps. 1-3.

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    classe.

    No Brasil possvel marcar dois daqueles ciclos histricos, a cada um correspondendo

    uma destas articulaes estratgicas. Chamemo-los pelos nomes do principal partido autnomo12

    da classe trabalhadora ao qual as configuraes estratgicas em questo estiveram vinculadas: o

    ciclo do PCB ao qual corresponde a estratgia nacional-democrtica para a revoluo

    brasileira; o ciclo do PT ao qual corresponde a estratgia democrtico-popular, tentativa de

    superao daquela mas que resultou, ao fim e ao cabo, muito mais num retorno a ela em outros

    termos ou numa sua continuao em outro patamar, numa espcie desuperao interrompida13.

    b) Democracia como caminho ou como meta? Do nacional-democrtico ao democrtico-popular

    b.1) PCB e estratgia nacional-democrtica

    A fundao do PCB14, entre 25 e 27 de maro de 1922, expressava, para alm de um

    primeiro ponto culminante na conformao da conscincia da classe trabalhadora brasileira

    enquanto classe para si, alteraes profundas que ora ocorriam na formao econmico-social

    brasileira. No por acaso, o partido foi fundado no mesmo ano da primeira revolta dos tenentes

    no Rio de Janeiro e da realizao da marcante Semana de Arte Moderna em So Paulo, e no

    contexto da aprovao das primeiras leis trabalhistas no pas15.

    A industrializao, vinculada expanso e consolidao da economia cafeeira primrio-

    exportadora e encontrando impulso notvel entre o incio do sculo XX e a dcada de 1920,

    modernizava o pas (notadamente o eixo Rio-So Paulo) e deslocava o polo dinmico da

    economia brasileira do campo para as cidades (SILVA, [1976] 1986). Eclodiram, neste perodo,

    numerosas greves nos principais centros urbanos do pas, que se por um lado marcam o

    crescimento numrico e o avano na conscincia da classe trabalhadora enquanto classe em si,

    por outro lado deixam claro o esgotamento das formas organizativas at ento implementadas

    pelo proletariado sob direo do anarcossindicalismo (MATTOS, 2009, cap. 2). Torna-se

    necessria uma nova forma de organizao para a classe, capaz de expressar sua tomada deconscincia e faz-la avanar.

    12 Esto obviamente excludas formaes partidrias alheias classe, heternomas, constitudas no sentido de amanipular, como o caso do trabalhismo varguista materializado no PTB.

    13 O termo superao encaminha sua apropriao por certas vertentes da teoria social (legatria de Marx eEngels), tomado a partir da herana do pensamento hegeliano. Foge completamente aos propsitos destaexposio aprofundar o assunto, por isso remeto o leitor interessado a uma primeira aproximao sintica eeficaz do problema em KONDER, [1981] 2004, p. 26.

    14 As referncias ao PCB remetem a: BRAZ (org.), 2012; IANNI, [1968] 1971; KOVAL, [1968] 1982; MAZZEO,

    1999; ROEDEL et al., 2002; SEGATTO, [1981] 1989, salvo referncias diretamente no texto.15 A primeira lei trabalhista aprovada e implementada, que previa indenizao por acidentes ocorridos no trabalho,data de 1919. A Lei Eloy Chaves, que inaugura um sistema de previdncia social no Brasil, data de 1923.

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    Sob o impacto da Revoluo Russa, aproximam-se os grupos mais resolutos do

    proletariado, e de 1918 a 1922 h tentativas de organizar o primeiro partido comunista brasileiro.

    Deste modo, podemos dizer que o surgimento do PCB se d, por um lado, como produto do

    crescente movimento operrio no Brasil e das transformaes nesta formao econmico-social

    (que figuram no quadro mais geral da realizao da revoluo burguesa brasileira), e, por outro,

    como reflexo da prpria elevao no plano histrico-universal do nvel de conscincia da classe

    trabalhadora com o fechamento, neste plano, do ciclo constituinte da conscincia da classe

    trabalhadora enquanto classe para si com a Revoluo de Outubro de 1917.

    Assim sendo, o isolamento da revoluo russa a partir da dcada de 1920, com o bloqueio

    do ascenso revolucionrio na Alemanha e na Itlia e a derrota do movimento comunista na

    China, tambm ter impactos sobre a constituio e a formulao estratgica do PCB atravs da

    Internacional Comunista. nos marcos da preocupao com a defesa do nico Estado

    proletrio ento existente e da consequente subordinao dos rumos dos movimentos operrios

    nacionais s razes de Estado soviticas (MAZZEO, 1999) que se articula o movimento

    comunista internacional16, e isto tem consequncias importantes para as teorias da revoluo e

    das tarefas revolucionrias nos pases perifricos, bem como para as interpretaes sobre as

    respectivas realidades nacionais.

    fundado sobre estas vigas que se consolida no PCB aquilo a que nos referimos como

    uma estratgia nacional-democrtica para a revoluo brasileira, marcada pela teoria da

    revoluo por etapas17 cujas bases podem ser rastreadas at o II Congresso do partido, ainda

    em 1925 (KOVAL, [1968] 1982, pp. 184-196; PRESTES, 1980 e 2012, pp. 249-250). A esta

    estratgia est inextricavelmente ligada determinada interpretao do Brasil e de sua posio no

    sistema capitalista planetrio enquanto pas atrasado, semifeudal ou semicolonial, no qual

    subsistiriam relaes sociais de tipo feudal na economia e na superestrutura poltica,

    condicionando a luta do proletariado a dirigir-se para a erradicao dos restos feudais, contra as

    relaes pr-capitalistas de produo e no sentido de viabilizar o desenvolvimento capitalista dopas em uma palavra, de viabilizar a realizao de tarefas em atraso de transio ao

    capitalismo. O desdobramento programtico desta interpretao do Brasil supunha, para sua

    efetivao, a aliana com setores interessados na modernizao e na generalizao das relaes

    16 A referncia ao movimento comunista internacional restringe-se aqui ao conjunto de partidos mais diretamenteligados III Internacional excludas, portanto, as correntes trotskistas e outras cises que ocorrem desde adcada de 20 nas organizaes comunistas.

    17 Larga polmica se estende quanto fora explicativa deste termo. Admito-o por ora para os propsitos

    expositivos, chamando ateno do leitor o fato de que estas etapas so apenas a expresso formal de umfundamento que ser discutido adiante alicerce este que pode perfeitamente subsistir independente deste seudesenvolvimento particular, como veremos.

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    sociais capitalistas no pas, dentre os quais merece destaque suposta burguesia (industrial)

    nacional que teria interesses nacionalistas, anti-imperialistas e anti-latifundirios18.

    Esta estratgia e a interpretao do Brasil a ela relacionada so alvo, notadamente a partir

    da instaurao do processo de contrarrevoluo preventiva (IANNI, 1981) inaugurado pelo

    golpe empresarial-militar de 1964 e da dura derrota que ele representou para a esquerda

    brasileira que, em parte devido a iluses quanto a setores burgueses e militares progressistas

    e quanto a seu compromisso com a manuteno das regras do jogo da institucionalidade

    burguesa vigentes no perodo democrtico, se encontrava inerme e incapaz de reagir quando veio

    o golpe (MORAES, [1989] 2011; PRADO JR., [1966]; PRESTES, 2012, pp. 100-118) , de

    muitas crticas por parte de organizaes revolucionrias e de intelectuais comunistas, ligados ou

    no ao PCB, que passa ento por marcante processo de cises, expulses e defeces

    (PRESTES, 2012, pp. 130-139; RIDENTI, 2010; SALES, 2007). Dentre estes intelectuais

    destacam-se, por sua capacidade de formular outra interpretao da formao social brasileira

    enquanto totalidade e, com isso, lanar as bases daquilo que viria a se constituir histrico-

    concretamente enquanto alternativa configurao estratgica nacional-democrtica, as figuras

    de Caio Prado Jr., Florestan Fernandes, e, j na virada dos anos 70 para os 80, Carlos Nelson

    Coutinho. A incluso deste intelectual no seleto rol de autores cuja contribuio decisiva para a

    fundao da configurao estratgica democrtico-popular, alternativa nacional-democrtica e

    ao mesmo tempocontinuidade ou retorno a ela, uma hiptese norteadora desta pesquisa

    qual conferi o estatuto de hiptese fundamental devido ao fato de que explica, em parte, a grande

    ponderao social que adquiriram o pensamento e a obra de Carlos Nelson ao longo dos anos 80

    e posteriormente.

    b.2) PT e estratgia democrtico-popular

    No dia 10 de fevereiro de 1980, no Colgio Sion, em So Paulo, era fundado o Partido

    dos Trabalhadores (PT)19. Sua criao deve ser situada no contexto da nova e amplarepolitizao do povo brasileiro (IANNI, 1981, p. 219), compondo parte do fenmeno de

    emerso das lutas sociais que encontrou na retomada da luta sindical e operria um ponto de

    18 Para a crtica demolidora (o que no o mesmo que dizer ltima ou inquestionvel) desta estratgia e deseus desdobramentos polticos, cf. PRADO JR., [1966] 1987. evidente que uma configurao estratgica nosurge acabada ela s pode ser apreendida em seu desenvolvimento, em seu movimento, como um processo.

    No ser possvel rastrear aqui, em detalhes, a gnese e o evolver da configurao estratgica democrtico-nacional, mas cabe lembrar que em sua origem a estratgia do PCB implicava na aliana com setores burgueses

    brasileiros industrializantes associados ao imperialismo norte-americano contra as elites agrrias associadas ao

    imperialismo ingls, o que obviamente se foi modificando nos anos seguintes.19 Este item foi escrito a partir das seguintes referncias: IANNI, 1981; IASI, 2006 e 2012; MENEGUELLO, 1989;PEDROSA, 1980; PONT, 1985.

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    fuso de classe (IASI, 2006, p. 375). Tal processo tem, do ponto de vista poltico, sua gnese no

    processo de distenso iniciado no governo Geisel (1974-1979), que implicou no revigoramento

    da arena eleitoral-partidria, na liberalizao gradual da imprensa e na conteno dos rgos de

    represso20(MENEGUELLO, 1989, p. 23).

    Esta distenso, por sua vez, assinala o ocaso do regime marcado pelo exerccio abertodo

    padro de dominao autocrtico burgus, derrocada que parece ter marcado o fim de um ciclo

    mais largo e profundo: o encerramento da revoluo burguesa no Brasil. De acordo com IANNI

    (1981), o golpe e a ditadura provavelmente marcaram o que pode ser uma manifestao

    derradeira do tipo de predomnio que a burguesia nacional e imperialista tem conseguido manter

    sobre o povo, (...) e, principalmente, operrios e camponeses (p. 203). Nesse sentido, a ditadura

    marcaria o pice e, com ele, o ponto de virada, a concluso, da histria da contrarrevoluo

    burguesa no Brasil, no sentido da revoluo de cima para baixo, revoluo conservadora,

    modernizante e reacionria, sem compromissos com o povo, os trabalhadores (...), um

    paradoxo revoluo sem revoluo (...) (p. 204).

    Sendo assim, a ditadura empresarial-militar inaugurada pelo golpe de 1964 marca o fim

    da revoluo burguesa no Brasil com a completude da transio brasileira ao capitalismo

    monopolista (em seu estgio tardio, como explorado por MANDEL, 1982) e seu

    aggiornamento, marcados pela recuperao e pela consolidao em nvel superior de

    caractersticas que j se afirmavam havia algumas dcadas no processo de desenvolvimento

    capitalista brasileiro: florescimento/consolidao dos monoplios (estrangeiros e nacionais), cujo

    papel se torna decisivo na vida econmica, social, poltica e cultural brasileira; interveno

    sistemtica do Estado sobre a economia organizada a partir de planejamento econmico estatal

    e sobre as refraes da questo social; consolidao e generalizao de relaes sociais de

    capital, com sua expanso a todos os setores da vida social; universalizao da relao mercantil

    e da dependncia do mercado para garantia da produo e reproduo da vida, inclusive no

    campo21.

    20 Cabe lembrar aqui que esta conteno dos rgos de represso foi bastante seletiva e no se deu seno aps apriso e o assassinato de militantes e dirigentes histricos do PCdoB (lembro apenas o monstruoso episdio doMassacre da Lapa em 1976) e do PCB que ainda se encontravam a salvo do regime como foi o caso, nos anosde 1974 e 1975, de 11 (onze!) integrantes do Comit Central, bem como, nos anos de 1975 e 1976, dosassassinatos (suicidamentos) de Vladimir Herzog e de Manuel Fiel Filho, respectivamente (cf. ROEDEL et al.,2002, pp. 60-67).

    21 Todas as seis caractersticas fundamentais do capitalismo monopolista, tais como arroladas por LENINE([1917] 1974), esto internalizadas na formao econmico-social brasileira a partir de ento. Seno, vejamos: a)os fenmenos da concentrao acumulao de massas cada vez maiores de capital nas mos dos grandes

    capitalistas e da centralizao unio de capitais j existentes chegam a tal ponto que surgem os monoplios,e estes ganham importncia decisiva na vida econmica, social, poltica e cultural dos pases capitalistas,repondo a concorrncia entre os capitalistas em patamar superior; b) fuso ou interpenetrao, ou coalescncia

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    Nesse sentido poderamos esperar, seguindo a linha de raciocnio informativa da teoria da

    revoluo brasileira em etapas, que, com a transio ao capitalismo completada no plano

    interno e resolvidas as tarefas democrticas em atraso (mesmo que deixadas sem resolver, o que

    no deixa de ser uma resoluo), estariam maduras as condies objetivas para a revoluo

    socialista no Brasil, e que, portanto, a estratgia da esquerda brasileira tenderia a migrar da

    antiga estratgia democrtico-nacional superada, quando no a partir de seus prprios limites

    terico-polticos, pelo movimento da histria para uma estratgia que pusesse na ordem do dia

    a luta pelo socialismo22.

    Entretanto, no foi o que ocorreu: ditadura sucedeu-se uma manh cinzenta, clara-

    escura, onde seres se transformam em seus contrrios e inaugura-se um novo padro de

    dominao burguesa no Brasil, com o apoio ativo de setores da classe trabalhadora e, no mnimo,

    o consentimento passivo de outros. Isto que tem sido chamado por alguns analistas de lulismo

    (SINGER, 2009) e por outros considerado um caso at ento indito na histria brasileira de

    transformismo em contexto de contrarreformas, determinado pelo abandono do programa

    socialista que [o PT] defendera por tantos anos23(COUTINHO, 2006, p. 151) parece mais, para

    o autor desta pesquisa, a realizaohistoricamente necessria de possibilidades j contidasem

    determinada configurao estratgica que foi se delineando ao longo da histria do PT, e que,

    partindo de definio dada pelo prprio partido, chamo aqui de estratgia democrtico-popular.

    do capital industrial ao capital bancrio, gerando o capital financeiro; a partir da, surgimento de umaoligarquia financeira estreitamente ligada ao Estado; c) a exportao de capital, para alm da exportao demercadorias, adquire enorme importncia, constituindo trao tpicodo capitalismo monopolista; d) partilha domercado mundial entre associaes internacionais de capitalistas monopolistas; e) diviso territorial do mundointeiroentre as potncias (Estados) capitalistas completada, o que constitui a dimenso poltica do fenmenocuja dimenso econmica foi apresentada no item anterior; f) lucros de monoplio, que por sua vez tendem aengendrar: f.1) combinados separao entre propriedade e gesto do capital (cf. MARX, [1867-1894], 1988,livro III, sees V a VII), a consolidao da burguesia como classe meramente parasitria (parasitismo),apagando de vez a ligao entre o burgus (proprietrio) e o processo produtivo; f.2) combinados snecessidades de apaziguamento da classe trabalhadora, a formao de uma aristocracia operria, cujas condiessuperiores de vida a afastam objetivamente do restante da classe, resultando na cooptao de estratos dirigentes.

    22 Anita Prestes sustenta de modo bastante convincente e largamente amparada em material documental e slidaargumentao que o ento secretrio-geral do PCB, Luiz Carlos Prestes, caminhou exatamente nesta direo. Apartir de seu exlio em Moscou no incio de 1971 e de estudos sistemticos da obra de clssicos do marxismo,bem como de importantes estudiosos da realidade brasileira como Florestan Fernandes, Octavio Ianni e FernandoHenrique Cardoso, Prestes teria chegado concluso de que o capitalismo brasileiro estava maduro e j atingiraa fase monopolista, passando individualmente crtica da estratgia da revoluo nacional e democrtica e aadvogar a atualidade da revoluo socialista no Brasil e a necessidade de uma estratgia socialista para o PCB

    posio que no teria tornado pblica por ser o secretrio-geral de um partido centralizado em cujo ComitCentral esta linha interpretativa da realidade brasileira (com suas consequncias polticas) era amplamenteminoritria. Esta sua posio teria sido o piv de divergncias crescentes entre ele e a maioria deste organismo.Cf. PRESTES, 2012 e 2012a.

    23 Esta ideia do abandono do programa socialista e democrtico do PT como origem da derrocada deste partidocomo alternativa para a construo do socialismo defendida hoje por muitos analistas talvez a maioria dos

    que se ocupam do assunto e foi defendida tambm por Carlos Nelson, estando presente em diversas passagensde sua obra. No livro citado neste pargrafo o ltimo em que falou sobre o assunto , ela enunciadacristalinamente em pelo menos mais duas passagens nas pp. 54 e 160.

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    Assim como a configurao estratgica democrtico-nacional no podia ser deduzida de

    nenhuma fotografia de uma resoluo poltica ou de ummomento da atuao do PCB, e sim da

    sntese entre o conjunto de objetivaes tericas e prticaspostas por este partido ao longo de

    boa parte de sua histria, tambm a configurao estratgica democrtico-popular no pode ser

    apanhada a partir de um instantneo, de uma fotografia de um momento seu, como se a partir de

    uma resoluo de um Encontro ou Congresso partidrio fosse possvel definir toda uma

    estratgia acabada antes mesmo das tentativas de implementao, correes, aprofundamento

    dos debates, testes a partir da interveno sobre o real, respostas e adequaes a partir da etc.

    Aqui tambm a anatomia do homem uma chave para a anatomia do macaco (MARX,

    [1857-58] 2011, p. 58), o que no implica em nenhum tipo de teleologismo: significa apenas

    sustentar que necessrio identificar e circunscrever os pontos mais altos de desenvolvimento

    destas estratgias e analisar, a partir da, as diferentes possibilidades contidas em suas expresses

    tais como se puseram historicamente e as relaes objetivamente derivadas destas virtualidades

    com os rumos que tais configuraes efetivamente tomaram.

    Explicitando, a posio que advoga que a vitria de Lula e os governos do PT a partir de

    2003 representam a realizao historicamente necessria de possibilidades contidas na estratgia

    democrtico-popular ela mesma parte da compreenso de que ela a expresso mais aparente da

    combinao entre as duas determinaes fundamentais essenciais seguintes: a)a sociedade

    brasileira estaria imatura para a transio socialista, seja por fatores objetivos (transio

    incompleta ao capitalismo, incompletude da nao, capacidade de as classes dominantes

    manterem seu domnio atravs de mecanismos autocrticos herdados de nossa peculiaridade

    histrico-estrutural), seja por fatores subjetivos (inorganicidade ou imaturidade da classe

    revolucionria etc.), seja por combinaes de ambos24; b)isto levaria imposio da adeso a

    uma estratgia baseada no acmulo de foras nos marcos da sociedade capitalista sem o

    compromisso imediato com sua superao a no ser atravs de um longo, linear, progressivo

    movimento, o que conduziria a uma relao tensa entre continuidade da ordem e ruptura e tendncia a sua constrio pelos marcos da ordem burguesa. Chamo a ateno para o seguinte

    problema: estes so os mesmssimos fundamentos da estratgia nacional-democrtica e da

    interposio de etapas luta pelo socialismo, a que o PT se ops publicamente desde cedo e

    cujos limites a estratgia democrtico-popular teria pretendido superar.

    Ser parte necessria desta pesquisa, ainda a realizar, proceder explicitao crtica dos

    fundamentos do caminho democrtico-popular para a revoluo brasileira e da interpretao do

    24 Quanto a condies objetivas x subjetivas para o desencadeamento de processos revolucionrios, cf. LENINE,[1915] 1979, cap. II, pargrafos 4-5 (pp. 27-28).

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    Brasil subjacente a ele, j que sem tal apreciao fica vedado perscrutar os alicerces objetivos

    que o pensamento poltico de Carlos Nelson Coutinho refletia, aos quais buscava dar resposta e

    contra os quais se enfrentava e se formava25. Isto posto, necessrio apresentar os pontos de

    referncia a partir dos quais percorrer o caminho do exame da configurao estratgica

    democrtico-popular a partir de certos marcos importantes em seu desenvolvimento dos quais

    o mais evidente hoje a chegada de Lus Incio da Silva presidncia da repblica e os 10 anos

    do PT no governo central do Brasil.

    Isto ser feito a partir do acmulo j alcanado em relao ao assunto por IASI (2006 e

    2012) rumo confeco de um inventrio das estratgias da esquerda brasileira, buscando

    apontar para a superao de impasses recorrentes ao longo do sculo passado26. Os pontos

    centrais para a referida avaliao seriam: a)a estratgia democrtico-popular petista, que surge a

    partir da negao aparentemente implacvel de elementos centrais da estratgia nacional-

    democrtica do PCB (como a necessidade de uma etapa democrtico-burguesa na revoluo

    brasileira e de aliana com a malfadada burguesia nacional, como a chamou Caio Prado Jr.),

    guarda com aquela outra importantes elementos de continuidade, principalmente a partir da

    manuteno de seus principais fundamentos, a imaturidade da formao social brasileira para a

    revoluo socialista e a deduo, a partir da, da necessidade de acumulao de foras dentro da

    ordem para que se amaduream as condies objetivas e subjetivas para a mesma; b) a lgica

    interna da configurao estratgica democrtico-popular (e isto tambm vlido para a nacional-

    democrtica), sua tenso permanente entre acmulo de foras e ruptura, tende aconstrang-la

    nos marcos da ordem burguesa (isto no um a priori, mas uma tendncia com forte ponderao

    e que se demonstrou historicamente prevalecente); c)a estratgia do ciclo do PT est, portanto,

    plenamente desenvolvida no Brasil com a chegada de Lula presidncia no que no pudesse

    ter sido diferente, que foi tal como foi, e isto precisamente porque se fezalgo, e no porque se

    deixou de fazer; d) a estratgia democrtico-popular, portanto, no foi abandonada, nem trada,

    nem rebaixada elafoirealizadaa partir de possibilidades contidas nela prpria e desenvolvidasem certa direo a partir de exigncias do processo histrico-concreto com o qual se defrontou;

    e) esta sua realizao e no seu abandono ou sua incompletude passou pelo

    transformismo do PT e de boa parte das antigas direes dos movimentos sociais da classe

    25 Cf. a seo especificamente dedicada aos apontamentos biobibliogrficos sobre Carlos Nelson, mais frente.26 Cabe mencionar a pertinncia do autor a grupo de estudos composto por cerca de 30 jovens militantes e

    intelectuais que tm buscado avanar em direo concretizao deste inventrio no Rio de Janeiro, sem oqual o alcance deste trabalho certamente seria bastante mais restrito. Fica aqui o agradecimento a todos os

    componentes deste grupo nas figuras dos colegas mais prximos: Caio Martins, Fernando Prado, Isabel Mansur,Maria Malta, Stefano Motta. Parece que iniciativas semelhantes tm aparecido em outros estados, o que aponta

    para a relevncia do tema.

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    trabalhadora; f) sua realizao passou pela constituio do que Florestan Fernandes ([1975]

    2006) chamou de uma democracia de cooptao no Brasil; g) neste contexto, uma pequena

    burguesia poltica (ou representao poltica da pequena burguesia, tal como definida em

    MARX, [1852] s.d., pp. 226-227) passou a ser o operador poltico desta estratgia no Brasil,

    com seu velho carter de exigir instituies democrtico-republicanas como meio no de acabar

    com dois extremos, capital e trabalho assalariado, mas de enfraquecer seu antagonismo e

    transform-lo em harmonia, materializado no contedo da transformao da sociedade por um

    processo democrtico, porm uma transformao no mbito de seus prprios limites, dos

    limites que ela no ultrapassa na vida; h)por tudo isso, podemos dizer quevivemos hoje o

    movimento de encerramento (ou concluso) de um ciclo histrico, o ciclo do PT.

    Primeira aproximao ao objeto: apontamentos sobre o marxista convicto e confesso

    a) Primeira fase: crtico da cultura fanaticamente lukacsiano

    O dia 20 de setembro de 2012 amanheceu cinzento no Rio de Janeiro. Falecera naquela

    madrugada, aps mais de meio sculo de comprometimento com o marxismo e a luta pelo

    socialismo, Carlos Nelson Coutinho velado sob a bandeira vermelha com a foice e o martelo

    cruzados, que havia feito questo de ter consigo na despedida.

    Carlos Nelson nasceu em Itabuna, no sul da Bahia, no dia 28 de junho de 1943 o

    glorioso ano da batalha de Stalingrado27. Seu pai era advogado e foi deputado estadual, pela

    UDN, por trs legislaturas. Antes de o menino chegar idade escolar, a famlia se mudou para

    Salvador, onde Carlos Nelson realizou seus estudos at a obteno do grau de Bacharel em

    Filosofia pela Universidade Federal da Bahia em 1965. Formalmente, foi este o nico ttulo

    obtido por ele junto Universidade at a livre-docncia em 1986, quando de sua aprovao em

    concurso pblico para professor titular da Escola de Servio Social da UFRJ posio a que

    pde se candidatar graas justificada atribuio de notrio saber junto instituio. No

    completou, portanto, nenhum curso de ps-graduao, tendo tido formao essencialmenteautodidata.

    Na segunda metade dos anos 50, com cerca de 15 anos (uns 13 ou 14, recordaria anos

    mais tarde), leu seu primeiro livro marxista, O Manifesto Comunistade Marx e Engels. A leitura,

    indicada a ele por sua irm Snia Coutinho, mais velha, em exemplar obtido na biblioteca do pai

    27 As informaes pessoais acerca de Carlos Nelson e algumas inferncias sobre sua trajetria intelectual foram,salvo referncia em contrrio, obtidas em entrevistas concedidas por ele a diferentes veculos de informao

    (COUTINHO, 2006, pp. 165-191, e 2009) e no captulo escrito por Jos Paulo Netto para o livro sobre CarlosNelson organizado por Marcelo Braz, Carlos Nelson Coutinho e a renovao do marxismo no Brasil (NETTO,2012).

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    (que publicamente [...] no era de esquerda, mas dentro de casa [...] tinha uma posio mais

    aberta), foi logo seguida pela da brochura de Engels, Do socialismo utpico ao socialismo

    cientfico(obtido tambm na subversiva biblioteca paterna), e pela deciso de fazer poltica

    pela esquerda, junto aos comunistas.

    Sua opo por ser intelectual, portanto, esteve desde o incio articulada a sua deciso de

    fazer poltica e a sua posio enquanto comunista. Anos depois, ao comentar este incio de

    formao e estas primeiras decises polticas e profissionais que o marcariam para o resto da

    vida , declararia que nunca conseguiu distinguir entre ser comunista e ser intelectual.

    Em torno de 1959-1960 (no terceiro ano do que atualmente se chama ensino mdio,

    poca colegial), ouviu falar em Gramsci pela primeira vez atravs de seu professor de Histria,

    Paulo Farias, marxista e militante do PCB. Adquiriu seu primeiro exemplar do marxista sardo

    uma edio argentina deEl materialismo histrico y la filosofa de Benedetto Croce no Rio de

    Janeiro no ano de 1961, junto com seu primeiro exemplar de Lukcs edio francesa, Histoire

    et conscience de classe28. Carlos Nelson teve, portanto, acesso a alguns dos escritos carcerrios

    de Gramsci cerca de 5 anos antesque a editora Civilizao Brasileira, em iniciativa capitaneada

    pelo prprio nio Silveira, iniciasse as primeiras publicaes de Gramsci no Brasil entre 1966 e

    196829 treze anos aps o incio da publicao da edio temtica italiana dos Cadernos por

    Togliatti.

    Foi tambm em 1961 que ingressou na Faculdade de Direito da UFBA, no porque se

    interessasse pelo estudo do Direito, mas porque poca esta Faculdade era um local privilegiado

    para se fazer poltica30. Neste momento, seu interesse terico principal j se localizava no campo

    da filosofia, o que o levou a mudar de curso no ano seguinte a seu ingresso na universidade. Foi,

    ainda, neste mesmo ano que publicou seu primeiro artigo31. Foi atravs deste artigo que travou

    conhecimento com Leandro Konder (tambm comunista, ento com 25 anos sete anos mais

    velho, portanto), iniciando uma amizade e uma parceria poltica que cultivaria e s faria

    aprofundar pelo resto da vida.

    28 Estes exemplares foram adquiridos na livraria Leonardo da Vinci, que importava livros num momento em que omercado editorial brasileiro era imensamente menos desenvolvido do que hoje e deixava muito a desejar emrelao aos de outros pases latino-americanos como a Argentina e o Mxico.

    29 O jovem intelectual comunista participou deste importante esforo editorial como tradutor de trs dos cincovolumes publicados: Concepo dialtica da histria, publicado em 1966 para o qual tambm redigiu notaintrodutria em parceria com Leandro Konder , Os intelectuais e a organizao da cultura eLiteratura e vidanacional, ambos publicados em 1968 para os quais tambm redigiu as orelhas. Cf. COUTINHO, [1989]2007, pp. 279-305; 2011, pp. 97-102, assim como a bibliografia de Gramsci disponvel no site Gramsci e oBrasil, cujo endereo eletrnico www.acessa.com/gramsci.

    30 (...) dos 450 alunos que a Faculdade tinha ento, a base do PCB tinha cerca de 50 pessoas, ou seja, mais de

    10%. Isso para no falar na JUC (Juventude Universitria Catlica), que devia ter os seus outros cinquenta, e nosgrupos de direita, que tambm estavam mais ou menos organizados (COUTINHO, 2006, p. 167).

    31Problemtica atual da dialtica, na revista ngulos n 17, Salvador, 1961.

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    A importncia do ano de 1961 e, mais largamente, da primeira metade da dcada de 60,

    no pode ser tomada apenas do ponto de vista biogrfico-individual. No plano da base material

    da produo e reproduo sociais da vida (grosso modo, da economia), o capitalismo vivia um

    apogeu que prenunciava a perorao da transio, atravs de crise que logo se mostraria em todo

    o vigor atingindo todasas dimenses da vida social em todas as formaes econmico-sociais

    capitalistas centrais (pensemos em 67-68 no terreno deo-poltico-cultural, e em 73-74 no campo

    da economia), do perodo do imperialismo clssico para seu perodo tardio ou maduro32

    (MANDEL, 1982). Este momento de apogeu/crise se refletenas conscincias de modos diversos,

    tendo se expressado naquilo que Carlos Nelson caracterizou, parafraseando Hobsbawm, como

    os longos anos 6033(COUTINHO, 2006, pp. 67-69).

    Como nos lembra o prprio Carlos Nelson, com o aumento das lutas populares [no

    Brasil] no perodo que antecede o golpe de 1964, expande-se significativamente a influncia da

    esquerda, em particular do Partido Comunista Brasileiro (PCB), na vida poltica e cultural do

    pas (COUTINHO, [1989] 2007, p. 282). Neste contexto, em que o vento pr-revolucionrio

    descompartimentava a conscincia nacional e enchia os jornais de reforma agrria, agitao

    camponesa, movimento operrio, nacionalizao de empresas americanas, a hegemonia

    conquistada pelos comunistas no campo da cultura produzia um pas irreconhecivelmente

    inteligente (SCHWARZ, [1969] 2005, p. 21).

    Esta hegemonia, diretamente relacionada grande efervescncia poltica do perodo,

    combinava-se ao impacto da revelao, poucos anos antes (em 1956, no XX Congresso do

    PCUS), dos chamados crimes de Stalin, que teve profundas repercusses sobre os Partidos

    Comunistas de todo o mundo, e, claro, tambm sobre o PCB (SEGATTO, [1981] 1989, pp. 87-

    88, SALES, 2007, p. 17). A partir da interao destas linhas de fora principais, o marxismo

    brasileiro iniciou um processo, embora ainda tmido, de abertura pluralista, tendo sido obrigado

    a se diversificar, a se abrir para o debate com outras correntes ideolgicas, como condio

    32 Mandel localiza a concluso desta transio anteriormente, no ps-II Grande Guerra. Me parece, entretanto, queeste ponto est mais prximo do incio que dofim, e que esta passagem s se conclui (quando a nova forma seconsolida e estabiliza) com a crise estrutural de fins dos anos 60 / incio dos 70.

    33 importante notar que estas mudanas de fase do capitalismo enquanto modo de produo e reproduo globalda vida no infirmam suas leis gerais pelo contrrio, as reafirmam (quanto a estas leis gerais, cf. O Capital,livro I, cap. XXIII MARX, [1867] 1988, vol. 2, cap. XXIII). Elas continuam vigendo, repostas em patamarsuperior, e suas expresses podem ser aparentemente contrariadas por outras que so tambm manifestaessuas. Quanto a esse fenmeno, tem validade geral o postulado lenineano formulado para uma situao particular:O imperialismo surgiu como desenvolvimento e sequncia direta das propriedades essenciais do capitalismo emgeral. Simplesmente, o capitalismo s se transformou no imperialismo capitalista num dado momento, muitoelevado, do seu desenvolvimento, quando certas das caractersticas fundamentais do capitalismo comearam a

    transformar-se nos seus contrrios, quando se formaram e se revelaram plenamente os traos de uma poca detransio do capitalismo para um regime econmico e social superior (LENINE, [1917] 1974 cap. VII pargrafo1, p. 117).

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    necessria para que o PCB continuasse a exercer influncia sobre uma esquerda que se expandia,

    sobretudo entre os intelectuais e os estudantes universitrios (COUTINHO, [1989] 2007, p.

    282).

    Tal abertura vigeu pelo menos at o recrudescimento da ditadura empresarial-militar com

    a deflagrao do Ato Institucional n 5, em dezembro de 1968. As mesmas condies objetivas

    que levaram a burguesia brasileira a se antecipar a qualquer possibilidade revolucionria atravs

    do golpe de 1964 estiveram na base de uma importante florao cultural que no esteve restrita

    ao eixo Rio-So Paulo (mas que foi progressivamente absorvida por ele), atingindo em cheio os

    principais centros do Nordeste como Salvador e Recife. A expresso maior deste desabrochar no

    campo da arte foi o movimento que ficou conhecido como tropicalismo e que, no por acaso, se

    articulou grandemente em torno da UFBA. O movimento, que tinha por princpio misturar

    caoticamente o moderno e o arcaico brasileiros34, foi integrado por gente do peso de Jos Carlos

    Capinam, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Glauber Rocha que, por sinal, se transferiram todos

    para o eixo Rio-So Paulo na mesma poca em que Carlos Nelson, e alguns dos quais ele

    conhecia, como Caetano de quem chegou a ficar amigo durante o curso de filosofia na UFBA.

    O jovem Carlos Nelson, que j vinha construindo pontes com intelectuais e camaradas de

    partido no Rio de Janeiro desde 1960-61, acabou se vendo instado a transferir-se para a cidade

    aps o golpe de 1964, depois de responder a Inqurito Policial-Militar em Salvador35. Transferiu-

    se definitivamente em 1965, iniciando a seu trabalho sistemtico como tradutor, trabalho no

    qual sua produo foi bastante significativa tendo atingido a marca de cerca de 70 livros

    traduzidos ao longo da vida36. Quanto a isso, vale assinalar que em diversas destas tradues

    Carlos Nelson exerceu tambm outras funes, como a redao de prefcios e apresentaes e a

    seleo de textos, cuja leitura tambm ajuda o pesquisador, hoje, a esquadrinhar sua evoluo

    intelectual e que demonstram que, alm de mero meio de vida, o ofcio de tradutor era para

    Carlos Nelson tambm uma ponte para se formar, estudar mais profundamente muitas das obras

    que traduzia.

    34 Esta mistura correspondia, no plano do reflexo artstico, ao que efetivamente ocorria no real, na base materialda vida social brasileira. Entretanto, era processada artisticamente de modo fortemente acrtico e encerravaatitude marcadamente laudatria da modernizao, ou seja, da generalizao das relaes sociais capitalistasno Brasil ainda que seus expoentes no identificassem, como ademais no identificam at hoje,modernizao e generalizao de relaes sociais capitalistas. No ser possvel desenvolver este aspectodas transformaes no plano da cultura no presente projeto, mas considero desejvel que ele seja abordado maisdetidamente durante a pesquisa, a partir de artigos de Carlos Nelson sobre temas correlatos.

    35 Carlos Nelson contava uma anedota segundo a qual foi acusado de ser um marxista convicto e confesso pelocoronel que dirigia o IPM em Salvador. Acabou adotando o ttulo com gosto, e o repetiu como boa definio

    de si mesmo em diversas ocasies ao longo de toda a vida (COUTINHO, 2006, p. 169).36 Carlos Nelson havia traduzido um primeiro livro ainda na Bahia, logo antes da vinda para o Rio, de AntonioGramsci, cujo ttulo brasileiro foi Concepo dialtica da histria. O volume foi publicado em 1966.

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    De 1965 at seu exlio na Europa em 1976 (dos 22 aos 33 anos, portanto), em um

    momento em que a ao da censura, embora presente em toda parte, era mais intensa no campo

    da reflexo especificamente poltica do que naquele da filosofia ou da sociologia da cultura

    (COUTINHO, [1989] 2007, p. 285), amadureceu intelectual e politicamente participando

    ativamente da batalha das ideias, se pondo em interlocuo com o que havia de mais vivo e

    pulsante no pensamento sobre a cultura no Brasil. Isto foi evidentemente favorecido ou, at

    certo ponto, possibilitado pelo fato de encontrar-se agora vivendo no Rio de Janeiro, em um

    dos dois principais centros urbanos do eixo mais dinmico das transformaes econmico-

    sociais e culturais ocorridas no Brasil ao longo do sculo XX, o j mencionado eixo Rio-So

    Paulo.

    Foi neste nterim, tambm, que se engajou nas polmicas ento em curso na esquerda

    brasileira, mais especificamente em seu partido, o PCB. Durante o perodo, munido de seus

    conhecimentos crescentes de um Gramsci ainda assimilado a partir de impostao

    eminentemente filosfica e cultural, do Lukcs de Histria e Conscincia de Classe mas que

    ser progressivamente suplantado por aquele de ADestruio da Razo e do Realismo Crtico

    Hoje37 e do Sartre da Crtica da razo dialtica, o intelectual militante se lanou em uma

    batalha cultural certamente antidogmtica, mas ainda centrada substancialmente nos terrenos da

    filosofia, da esttica e da sociologia da cultura (COUTINHO, [1989] 2007, p. 284). Criou-se

    neste momento aquilo a que Carlos Nelson se referiu diversas vezes como uma diviso do

    trabalho no interior do PCB, em cujos marcos

    (...) os intelectuais comunistas podiam agir mais ou menos livremente nodomnio da cultura, propondo uma renovao filosfica e esttica do marxismo

    brasileiro, mas continuava a ser atribuio da direo do Partido a tarefa de dar altima palavra nas questes especificamente polticas. Disso resultava uma ambgua e, a longo prazo, insustentvel coexistncia entre marxismo ocidental na cultura emarxismo-leninismo na poltica (COUTINHO, [1989] 2007, p. 284).

    Este perodo (1965-1976), durante o qual Carlos Nelson escreveu seus dois primeiroslivros (Literatura e humanismo, publicado em 1967, e O estruturalismo e a misria da razo,

    publicado em 1972), deve ser considerado o primeiro perodo de sua atividade intelectual

    sistemtica. Neste lapso temporal seu pensamento profundamente vincado pela referida

    impostao filosfica e cultural, situando-se no campo da crtica cultural, e, em grande medida

    por isso mesmo, nitidamente marcado pela referncia a Lukcs a ponto de este momento de sua

    trajetria ter sido definido posteriormente pelo prprio Carlos Nelson como seu perodo

    fanaticamente lukacsiano(COUTINHO, 2006, p. 179). A remisso a Lukcs est longe de ser

    37 Ttulo no Brasil da brochura lukacsiana cuja traduo mais exata O significado presente do realismo crtico.

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    gratuita: a apropriao de Lukcs por Carlos Nelson marca, no campo da filosofia, sua

    interpretao do pensamento marxiano enquanto ontologia do ser social, que ele no renega em

    nenhum momento e mantm at o fim da vida, buscando conjug-la contribuio de Gramsci

    enquantoprincipal terico marxista da polticatomada como esfera relativamente autnoma da

    vida social.

    Mas a referncia apenas a Lukcs, se fundamental para compreender o intelectual neste

    momento de sua produo, insuficiente: neste entretempo l marxistas diversos, muitos dos

    quais considerados heterodoxos pela linha oficial (aquela que Marcuse chamou de o

    marxismo sovitico), como Walter Benjamin, Adam Schaff, Herbert Marcuse e Lucien

    Goldmann, desenvolvendo uma caracterstica marcante de seu pensamento ao longo de toda a

    vida qual seja, um marxismo aberto ao diferente e ao contraditrio, comprometido com a

    pluralidade de posies e extremamente bem informado sobre as diferentes interpretaes

    relacionadas aos problemas com os quais se enfrentava.

    b) Segunda fase: intelectual orgnico e terico da poltica

    J me referi ao primeiro contato de Carlos Nelson com Gramsci, a partir da indicao de

    seu professor no curso secundrio. Pois bem: a segunda fasedo intelectual comunista, que se

    caracteriza pela mudana no foco de interessedos campos da filosofia e da crtica da cultura para

    o campo da teoria polticae que se estende,grosso modo, da segunda metade dos 197038ao fim

    de sua vida (por mais de 30 anos, portanto, e que por isso mesmo chamo de sua fasemadura39),

    foi fortemente marcada pela remisso ao marxista italiano. Isto se deve a um conjunto de razes

    e no apenas a uma escolha , que buscarei evidenciar, ainda por alto, neste item.

    Antes, porm, necessrio reiterar a advertncia: esta virada do interesse central da

    filosofia e da crtica da cultura para a teoria poltica, bem como a adeso ao eurocomunismo40

    e democracia como valor universal que exporei adiante, no podem ser encaradas apenas do

    ponto de vista biogrfico-individual. Elas guardam relaes mais profundas, que ainda carecem

    da devida explicitao, com fenmenos sociais e polticos abrangentes com os quais Carlos

    38 NETTO (2012) localiza os germes deste deslizamento do foco do interesse de Carlos Nelson para o campo dapoltica ainda em 1969, como decorrncia das implicaes do AI-5. Cf. no referido texto as pp. 63-64. Consideroque isto no infirma a localizao temporal que proponho aqui, e que esta vai no mesmo esprito e devedora

    daquela proposta no texto citado. 39 No que tambm sigo indicao de Jos Paulo Netto no texto citado. Vale ressaltar que o adjetivo maduro, aqui,

    nada tem a ver com idade madura, e se relaciona apenas de maneira mediada com maturidade intelectual.Ele se refere, antes, ao Carlos Nelson que tem no mago de sua ateno a reflexo sobre a poltica: aqui, Carlos

    Nelson maduro permutvel por Carlos Nelson terico da poltica.40 Quanto ao chamado eurocomunismo, cf.: BERLINGUER, 2009, CARRILLO, 1977, MANDEL, 1978,TOGLIATTI, 1980.

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    Nelson se encontrava bastante envolvido no perodo em que se d esta passagem a sua fase

    madura.

    Dentre estes enumerarei sumariamente os mais importantes, aos quais se deve estar atento

    ao longo da exposio a seguir: a) as polmicas no movimento comunista internacional, j

    prenunciando a grande crise seguida pelo colapso das experincias socialistas; b) a disputa de

    rumos no PCB, que se aprofundou e encarniou cada vez mais aps a derrota de 1964 e que

    atingiu seu ponto culminante na virada dos anos 70 aos 80 cujos desdobramentos levaram, por

    um lado, defeco do secretrio-geral Luiz Carlos Prestes, e por outro lado derrota, no incio

    dos anos 80, do grupo renovador do qual Carlos Nelson fazia parte seguida por sua sada do

    partido41; c) o processo de redemocratizao da sociedade brasileira em curso a partir de fins

    dos anos 1970 e durante o qual entraram em cena os germes que levaram ao surgimento do PT,

    partido ao qual Carlos Nelson viria a aderir no fim dos anos 1980. Isto posto, retomemos o fio da

    exposio biobibliogrfica, tal como no item anterior.

    Aqui, importante lembrar que possvel localizar o inciodo giro de que estou tratando

    alguns anos antes do exlio: data de 1972 artigo, assinado sob o pseudnimo Guilherme

    Marques, intitulado Cultura e poltica no Brasil contemporneo, seguramente redigido com

    vistas a influir na reelaborao da poltica cultural que resultaria do planejado, mas no

    efetivado, VII Congresso do PCB (NETTO, 2012, p. 64); data de 197242, tambm, a elaborao

    do antolgico artigo sobre o significado de Lima Barreto na literatura brasileira, em que Carlos

    Nelson avana em seu tratamento da poltica no Brasil (ainda mais que isso: avana no que se

    constituir futuramente emsua interpretao da peculiaridade histrico-estrutural brasileira43)

    afirmando, pela primeira vez, a tese segundo a qual a formao social brasileira se caracteriza

    pela sua constituio moderna enquanto resultante da via prussiana44(id, p. 64).

    A localizao temporal destes dois textos pode indicar que Carlos Nelson, no incio dos

    anos 1970, tem como uma de suas preocupaes a superao daquela tcita diviso do

    trabalho entre os pensadores da cultura e os operadores da poltica no partido. Esta

    41 Talvez seja possvel encontrar relaes precisas entre os resultados desta disputa, que se encerra no incio dosanos 80, e a liquidao do partido pela maioria de sua direo cerca de 10 anos depois, dando ensejo fundaodo PPS. Obviamente, no ser possvel desenvolver o tema nos marcos desta pesquisa, cabendo apenas lembraraqui que uma minoria de dirigentes aguerridos e com expressivo histrico de militncia na organizao vemtrabalhando desde ento para resgatar o PCB, engajados j h mais de 20 anos em sua reconstruorevolucionria.

    42 NETTO, 2012, p. 61, afirma que a elaborao deste artigo teria ocorrido em 1973. Entretanto, o copyrightqueconsta no livro em que ele foi publicado em 1974 (e que tem como um de seus detentores o prprio Netto) traz adata de 1972.

    43 Ou, conforme, NETTO (2012, p. 76), sua interpretao do Brasil contemporneo (itlico no original).44 NETTO nos lembra, ainda, que foi Carlos Nelson o primeiro estudioso a recorrer, com o devido rigor, a estachave heurstica para interpretar o a formao scio-histrica do Brasil.

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    interpretao, que no pode ainda ser confirmada seno atravs do aprofundamento dos estudos,

    coerente com o momento por que passava a esquerda brasileira em geral, e o PCB em

    particular, bem como com a contaminao da poltica pela cultura a partir dos eventos

    ocorridos em 1968/69 ao redor do mundo.

    No incio de 1976 ficou claro para o comunista baiano que sua permanncia no Brasil

    havia se tornado bastante perigosa. Como referido em nota na seo b.2 da Introduo ao

    presente projeto, aquela distenso lenta, gradual e segura iniciada no governo Geisel e

    arquitetada por Golbery do Couto e Silva para redemocratizar o ordenamento poltico

    brasileiro foi bastante seletiva, j que tinha como pr-requisito a liquidao das principais

    organizaes revolucionrias ento atuantes no Brasil. Aps a busca e aniquilao sistemticas

    dos principais dirigentes dos movimentos sociais ligados aos comunistas e dos militantes das

    organizaes que haviam optado pela luta armada com seu consequente desmantelamento,

    iniciou-se, j decorridos alguns anos da dcada de 1970, aquela que ficou conhecida como

    Operao Radar45. Neste contexto, Carlos Nelson foi procurado pelo Exrcito, sua esposa

    comeou a ser assediada e ele tomou a deciso, aps a priso seguida do assassinato

    (suicidamento) de Vladimir Herzog, de sair do pas.

    O destino escolhido foi a Itlia, e seu perodo italiano de cerca de dois anos pode ser

    considerado um dividor de guas em sua trajetria intelectual e poltica. A escolha pelo pas

    peninsular se deveu, imediatamente, a razes de trs ordens, todas intimamente relacionadas

    (COUTINHO, 2006, p. 173): em primeiro lugar, sua admirao pelo Partido Comunista Italiano;

    em segundo lugar, seu domnio do italiano, superior ao domnio de outros idiomas estrangeiros;

    em terceiro lugar, sua admirao pela obra de Antonio Gramsci. Quanto primeira razo, que de

    certo modo foi a praticamente determinante, passemos a palavra a Carlos Nelson:

    Em dado momento, ficou impossvel minha situao no Brasil. (...) Escolhi irpara a Itlia exatamente porque meu grande modelo era o Partido Comunista Italiano.Para muitos comunistas, o grande modelo era o PCUS (...). Para mim, era o Partido

    Comunista Italiano. Minha grande dor no foi a queda do muro de Berlim ou o fim daURSS, mas o fim do Partido Comunista Italiano.(...) Minha ida para a Itlia foi certamente um dos momentos mais importantes

    45 Infelizmente, no Brasil sob o democrtico e participativo governo dos trabalhadores as informaes sobre estetipo de operao continuam extremamente nebulosas, obscuras, truncadas, desencontradas. O que se sabe comcerteza que foram desencadeadas operaes repressivas dirigidas tanto contra as organizaes da esquerdaarmada quanto contra os partidos comunistas de ento PCdoB, PCBR e PCB (do qual se originaram os outrosdois), sendo que este ltimo havia optado pela resistncia pacfica combinada participao em movimentos quederrotassem a ditadura atravs da presso organizada de massas , que estas operaes tinham por objetivoaniquilar a capacidade de organizao e mobilizao da classe trabalhadora da parte tanto dos primeiros quantodos ltimos, e que se utilizaram largamente de meios como a tortura, os assassinatos, os desaparecimentos e a

    corrupo. Segundo Milton Pinheiro, foram 39 militantes do PCB, partido em que Carlos Nelson ento militava,assassinados ao longo da ditadura, alm de centenas de torturados cf. Que luta essa, que partido este, quedesperta tanto dio de classe da burguesia?,disponvel em http://www.pcb.org.br

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    na minha formao poltica e intelectual. (...) Terminei, (...), a partir de minhaexperincia com o PCI, tornando-me eurocomunista. Tinha ainda alguns

    preconceitos marxistas-leninistas quando fui para a Itlia. (...) Nunca fui pr-UnioSovitica, sempre tive uma forte dvida em relao ao socialismo que l eraconstrudo, mas ainda tinha meus preconceitos. (...) aprendi muito nessa minha estadana Itlia. Meu ensaioA democracia como valor universalno teria sido escrito se nofosse esse meu perodo italiano.

    (...) Eu diria que o perodo que passei na Itlia foi meu doutorado. Aprendimuito, foi muito importante para minha formao poltica e intelectual. (COUTINHO,

    pp. 173-175)

    O trecho citado no apenas fundamenta a primeira razo de sua escolha pela Itlia, como

    tambm permite antecipar tema que ser explorado mais adequadamente ao longo da pesquisa,

    qual seja: a ligao de mo dupla entre, de uma parte, a admirao pelo PCI combinada adeso

    ao eurocomunismo como portador da via revolucionria adequada s sociedades ocidentais

    a via democrtica para o socialismo e, de outra parte, a apropriao cada vez mais profunda e

    segura do legado terico gramsciano46. Ambas as dimenses tiveram bvias e nem to bvias

    repercusses no pensamento e na ao poltico-prticade Carlos Nelson ao longo do restante de

    sua vida.

    Durante o exlio, portanto, Carlos Nelson esteve na Itlia durante 1976 e 77, seguindo

    para estada de poucos meses em Lisboa e posteriormente para Paris onde passou o ano de

    197847, de onde rumou de volta para a Bahia, onde chegou no dia 23 de dezembro deste ano

    (COUTINHO, 2006, p. 174): esteve, assim, entre um e dois anos na Itlia, alguns meses em

    Portugal e cerca de um ano na Frana. Neste perodo, alm de ter feito seu doutorado na

    Itlia48, Carlos Nelson esteve bastante envolvido em atividades polticas a partir de sua chegada a

    Paris.

    Em decorrncia das insuficientes condies de segurana para os dirigentes do PCB no

    Brasil e do espocar de ditaduras pelo restante da Amrica Latina, muitos deles se viram forados

    ao exlio em diferentes pases europeus. Em 1975, quinze j se encontravam a, e, considerando o

    46 Que viria a culminar na edio da quase totalidade da obra do revolucionrio italiano no Brasil sob suaresponsabilidade, bem como no unnime reconhecimento internacional de Carlos Nelson como um dos

    principais conhecedores/pesquisadores da obra gramsciana, materializado por exemplo na posio de membro doComit Coordenador da International Gramsci Society(do qual fizeram parte figuras como Eric Hobsbawm eValentino Gerratana o responsvel pela importantssima edio crtica dos Cadernos do Crcere), bem comonos verbetes escritos para o Dizionario Gramsciano organizado por Guido Liguori e Pasquale Voza (oito nototal, quatro dos quais esto publicados em portugus em COUTINHO, 2011, pp. 121-138).

    47 Ser necessrio confirmar / precisar algumas informaes sobre este perodo. O recurso s entrevistas pareceparticularmente importante para aclarar aspectos referentes ao exlio.

    48 Carlos Nelson chegou a pensar em fazer um doutorado de verdade (academicamente reconhecido), masdescobriu que o ttulo ainda no existia na Itlia. Pensou, ento, em fazer um doutorado em Paris sobre Lukcs,

    orientado pelo prof. Michael Lwy projeto que no levou a frente devido aos rumores de que a Anistia poderiasair em janeiro de 79, que o levou a retornar ao Brasil. A Anistia s viria meses depois, nos ltimos dias deagosto de 1979.

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    nmero de prises e assassinatos que haviam vitimado os outros, o centro dirigente do partido se

    encontrava, na prtica, espalhado pela Europa (tanto do Leste como do Oeste). Com a anuncia

    dos (poucos) membros que haviam permanecido em liberdade no Brasil, o Comit Central (CC)

    foi formalmente transferido para o exterior, e comeou a funcionar efetivamente j em janeiro de

    1976 a partir de sua primeira reunio em Moscou49 onde o secretrio-geral do partido j se

    encontrava desde 1971 (PRESTES, 2012, p. 197).

    Segundo Anita PRESTES (2012, pp. 197-234 e 2012a, p. 42), desde a primeira reunio

    do CC se estabeleceu polarizao entre, de um lado, o secretrio-geral Prestes, e, de outro,

    Armnio Guedes, membro muito ativo da direo, ento residente em Paris e que viria a ser

    designado responsvel pelo setor de agitao e propaganda do CC, e, portanto, pela confeco e

    distribuio do jornal do partido, Voz Operria(concebido em Paris e rodado, ao que parece, na

    Itlia em grfica do PCI, e enviado clandestinamente ao Brasil). Enquanto Prestes vinha se

    distanciando teoricamente da linha aprovada no VI Congresso do Partido a partir de avaliao da

    insuficincia da estratgia democrtico-nacional para a construo do projeto socialista (cf. nota

    na seo b.2 deste Projeto), Guedes havia aderido s chamadas teses eurocomunistas e

    apostava na centralidade da questo democrtica. No ser possvel desenvolver os detalhes

    tericos da polmica neste espao, bastando aqui assinalar que ambos os lados no tinham

    consigo muitos partidrios no CC. Prestes contava com o apoio decidido de Anita e Gregrio (e

    Marly?), Guedes contava com o apoio de Zuleika, e o restante do CC conciliava as posies e

    buscava se pautar pela linha aprovada no VI Congresso, constituindo aquilo a que Anita Prestes

    se refere, resgatando Lenin, como o pntano50 presente na direo de toda organizao

    revolucionria.

    Pois bem: com este cenrio como pano de fundo, Guedes props e aprovou no CC (em

    1977?) a criao de uma Assessoria do Comit Central a ser organizada por ele e sediada em

    Paris. Esta Assessoria viria a ser composta por intelectuais militantes do PCB residentes em

    pases europeus (parte dos quais tambm engajados na redao do jornal), com a tarefa de ajudarna discusso dos problemas brasileiros, de assessorar o trabalho do CC, contribuindo para a

    formulao da poltica do PCB e, em particular, para a elaborao das resolues a serem

    49 O CC foi composto no exterior pelos seguintes quadros: Luiz Carlos Prestes, Giocondo Dias (secretrio-geral noBrasil na ausncia de Prestes, salvo do fogo em condies extremamente difceis pelo partido e levado para aEuropa em maio de 1976, no tendo participado da primeira reunio), Armnio Guedes, Zuleika Alambert, JosSalles, Severino Teodoro Mello, Dinarco Reis, Salomo Malina, Orestes Timbava, Lus Tenrio de Lima,Agliberto Azevedo, Armando Ziller, Roberto Morena, Hrcules Correa, Givaldo Siqueira, Almir Neves. Na

    primeira reunio do CC foram cooptados Anita Prestes, Gregrio Bezerra e Marly Vianna. Posteriormente foram

    cooptados Lindolfo Silva e Regis Fratti (PRESTES, 2012, p. 198). 50 Praticamente no h partido poltico com luta interna que prescinda desse termo, que serve sempre paradesignar os elementos inconstantes que vacilam entre os que lutam. LENIN, apudPRESTES, 2012, p. 213.

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    discutidas e aprovadas pela direo (PRESTES, 2012, p. 204).

    A partir da, se formou em torno de Armnio Guedes um ncleo de intelectuais com certa

    homogeneidade de posicionamento constituda a partir da identidade de seus participantes com

    as teses eurocomunistas ou renovadoras , que participou ativamente da polmica que se

    travava na direo do partido no exlio e teve em Guedes uma espcie de porta-voz no Comit

    Central do Partido (NETTO, 2012, pp. 64-68; PRESTES, 2012, pp. 203-234 e 2012a, pp. 43-49).

    Carlos Nelson Coutinho comps a Assessoria e escreveu regularmente para o Voz Operria,

    tendo papel destacado neste grupo cujos integrantes ficaram conhecidos como os

    renovadores51.

    H aqui algo que interessa diretamente a uma pesquisa que tem por objeto a evoluo

    intelectual de Carlos Nelson, presente na lembrana de NETTO (2012, p. 67) de que seu amigo

    desempenha um protagonismo expressivo na vertente que se reivindicava como renovadora do

    PCB e na afirmao de que, salvo engano seu, foi neste processo de luta interna, em Paris, que

    Carlos Nelson em estreita relao com os estudos que desenvolve poca assume a

    dimenso especfica da poltica e a situa no centro da sua reflexo.

    Este o ponto de retomarmos a enumerao feita nos primeiros pargrafos deste item: foi

    em decorrncia (e, pode-se dizer, como culminao) deste envolvimento com o debate interno

    do PCB, que refletia a tenso entre posies que estavam em rota de coliso no s em seu

    interior, como no plano do prprio movimento comunista internacional(pensemos a, apenas a

    ttulo de exemplo, na relao PCI-PCUS), e com os olhos voltados para o Brasil em processo de

    abertura ou redemocratizao preocupado, portanto, em se posicionar e contribuir para

    que os comunistas tivessem uma linha poltica correta para a interveno naquele momento em

    que foras sociais at ento amordaadas comeavam a se movimentar e sacudir a sociedade

    brasileira que Carlos Nelson escreveu o ensaio que se tornou verdadeiro divisor de guas na

    esquerda brasileira:A democracia como valor universal, publicado em maro de 1979 na revista

    Encontros com a Civilizao Brasileira.Breve citao d uma ideia do impacto que teve o artigo:

    Ningum, ao que eu saiba, contesta que foi Carlos Nelson aquele que colocoua discusso da relao democracia/socialismo no corao da agenda da esquerda

    brasileira, com o ensaio A democracia como valor universal (). Publicado j naagonia do regime ditatorial (agonia que se prolongaria at 1985), quando as forasdemocrticas brasileiras experimentavam um movimento ascendente, e se

    51 A Assessoria do Comit Central foi composta por: Armnio Guedes (responsvel), Zuleika Alambert, CarlosNelson Coutinho, Leandro Konder, Milton Temer, Alosio Nunes Ferreira, Antnio Carlos Peixoto, Mauro

    Malin (ento residentes em Paris) e Ivan Ribeiro Filho (residente na Itlia). A redao de Voz Operria eraconstituda por Armnio Guedes (diretor), Milton Temer e Mauro Malin (redatores). Cf. PRESTES, 2012a, pp.43-44.

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    estruturavam novos instrumentos de interveno social e poltico-partidria, esteensaio tornou o nome de Carlos Nelson conhecido para muito alm dos crculos domundo da cultura. Imensa foi a sua repercusso poltica e o autor ganhou anotoriedade que toda a sua interveno cultural anterior no lhe havia granjeado. ()na esquerda (), desde ento, a questo democrtica ficou cravada de formadefinitiva e no mais pde ser eludida e talvez resida a o mrito substantivo que sedeve atribuir ao texto tornado famoso. (NETTO, 2012, p. 71)

    Outro aspecto que no pode ser subestimado o da relao entre este ensaio e a trajetria

    intelectual individual de Carlos Nelson. Nesse sentido, comentador recente do assunto nos

    lembra que o ensaio de 1979 exprime um ponto de chegada e de sntese de um autor que j era

    maduro terica e politicamente, resultado do longo perodo basilar e estruturador de sua

    formao (BRAZ, 2012, p. 239). Em outras palavras: se, por um lado, o momento histrico por

    que passava a esquerda no Brasil demandava a explicitao deste debate, o pondo comonecessidade histrica, por outro lado Carlos Nelson o pde explicitar apenas porque era Carlos

    Nelson, um intelectual militante comunista munido dos recursos por ele reunidos ao longo de

    dcadas de estudos e de seu envolvimento particular com a militncia poltica no qual no tem

    peso menor a experincia na Itlia e o contato ntimo com o PCI e as teses eurocomunistas, a

    partir do qual retoma toda uma larga trajetria de debates sobre a importncia (ou

    desimportncia) da democracia que j constitua parte do patrimnio histrico do PCB, repondo-

    os em outro patamar.

    A seguinte avaliao geral do ensaio nos conduz ao ponto de apresentao das hipteses

    que embasam a presente pesquisa:

    Pretendendo superar, de uma s vez, o esgotamento da estratgia do PCB e oslimites do imediatismo voluntarista de uma nova esquerda que surgia, [Carlos

    Nelson] indicava que a sociedade brasileira apresentava elementos de modernidadecapitalista (monopolista) que exigiriam uma nova estratgia, a qual para alm domomento imediato da transio democrtica, deveria apontar para o socialismo. Ocaminho indicado por Carlos Nelson colocaria o acento na democracia, cujasmediaes e elementos constituintes deveriam compor tanto o momento de construodo bloco histrico hegemonizado pelos trabalhadores, como forma de torn-losclasse dirigente, quanto o prprio momento posterior de transio socialista, atconstituir-se um dos fundamentos da futura sociedade comunista. (BRAZ, 2012, p.246)

    Neste ponto se interrompe o manuscrito. a partir daqui que aprofundarei os estudos

    sobre o pensamento de Carlos Nelson Coutinho, desenvolvendo os apontamentos esboados

    anteriormente e fundamentando e testando as hipteses a seguir52.

    52 Para apresent-las, ser necessrio recorrer a diversas das categorias de anlise desenvolvidas ou apreendidas porCoutinho e por ele utilizadas em seu pensamento maduro, o que decidi no fazer na seo que se encerra pois suasistematizao e localizao em cada um dos escritos maduros de Carlos Nelson j , ela prpria, um resultado a

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    Hipteses para teste

    Analisando detalhadamente a evoluo intelectual de Carlos Nelson Coutinho, com

    nfase especial em sua constituio enquanto intelectual revolucionrio, que, enquanto tal,

    formulou interpretao prpria e original do Brasil contemporneo quese consolida53a partir da

    publicao do ensaio A democracia como valor universal em 1979 (ou seja, com nfase

    especial em seu segundo momento, ou no Carlos Nelson maduro terico da poltica), a

    pesquisa busca fundamentar e testar certas hipteses provenientes de primeiras aproximaes ao

    objeto o pensamento de Carlos Nelson Coutinho.

    Estas hipteses se organizam em torno de um eixo central(hiptese geralou fundamental

    da pesquisa): sua obra no campo da teoria poltica representaria, dando sequncia quelas de

    Caio Prado Jr. e Florestan Fernandes, o principal ponto de contato e articulao terica entre o

    encerramento de um ciclo e a abertura de outro no debate estratgico da esquerda brasileira.

    Articuladas a partir desta hiptese geral, enumerei e organizei as seguintes hipteses

    auxiliares, a serem fundamentadas e testadas ao longo da pesquisa: a) possvel estabelecer, na

    obra do Carlos Nelson maduro, uma relao entre conquista de hegemonia e construo de

    um novo contrato consensual em direo superao da ordem existente; b) a plena

    realizao da democracia aparece como patamar necessrio e incontornvel no caminho para a

    construo do socialismo; c)no caso brasileiro, isto se relaciona necessidade de resoluo de

    tarefas democrticas em atraso ou no realizadas pela revoluo burguesa devido a seu carter

    prussiano ou pelo alto, ao carter elitista e autoritrio que assinalou toda a evoluo

    poltica, econmica e cultural do Brasil, que deve ser superado pela alternativa da renovao

    democrtica e pela constituio de uma democracia de massas ou do modelo europeu

    (contraposto ao norte-americano liberal-corporativo bem entendido, ele se refere Europa do

    Welfare State); d) ou seja, Carlos Nelson, mesmo considerando o Brasil um pas capitalista

    desenvolvido, uma sociedade ocidental,permanece preso ideia das tarefas em atraso devidoa sua interpretao da peculiaridade histrico-estrutural da formao econmico-social brasileira;

    e) h em Carlos Nelson uma tenso entre ruptura e progressividade, que ele no resolve

    adequadamente nos marcos de seu prprio pensamento e que, de certo modo, se expressa na

    auto-definio do autor como um reformista revolucionrio; f)esta tenso refletea disjuntiva

    ser exposto posteriormente e transcenderia largamente os limites deste artigo. Estas categorias seroapresentadas, portanto, no decorrer da apresentao das hipteses e imbricadas com elas.

    53 A referida interpretao do Brasil estava em construo desde pelo menos 1969-72, como apontado no item

    anterior. Marco decisivo , sem sombra de dvida, o ensaio sobre Lima Barreto, escrito na abertura da dcada de70, em que a categoria lenineana de via prussiana aduzida como chave para compreender o caminho do povo

    brasileiro para o progresso social logo no item 1 (cf. COUTINHO, 1974, p. 3).

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    que atra