capítulo 12: acessibilidade com responsabilidade ou a mobilidade em xeque

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Através da nossa página no Facebook vamos disponibilizar todos os ar-tigos do livro BRASIL NÃO MOTORIZADO. A cada semana um texto será editado. Desse modo, ao final de 16 semanas o livro estará completo e terá sido aberto mais um canal de leitura e discussão dos temas abordados.

A publicação dos artigos no formato eletrônico também se deve ao su-cesso da edição. Além das cotas dos patrocinadores, vendas em lançamentos e livrarias e doações a instituições de ensino, foram colocados mais de 1.000 exemplares. Isso demonstra o interesse pelo assunto “mobilidade urbana” e nos dá a certeza de continuarmos com a coleção. Está prevista ainda para 2015 a edição do nosso 2º volume – com alguns novos autores e novas abordagens.

Boa leitura

Vale lembrar que os interessados ainda podem adquirir o livro nas Li-vrarias Cultura; sob encomenda ou pela internet. www.livrariacultura.com.br

IMPORTANTE

Empresas e entidades que patrocinaram essa 1ª edição:

v Acessibilidade com responsabilidade ou a mobilidade em xeque.

Acessibilidade com responsabilidade ou a mobilidade em xeque

Ricardo Tempel MESQUITA 1

“Ama teu próximo comvvo a ti mesmo” (Jesus Cristo)

“Embora ninguém possa voltar atrás e fazer um novo come-ço, qualquer um pode começar agora e fazer um novo fim” (Chico Xavier)

1. Onde foi parar meu caminhar?

“Manhã de um sábado de fevereiro de 1982, em Curitiba, Setor de Emer-gência do Pronto Socorro do Hospital Cajuru. Dores lancinantes, hemorragia, suor, lágrimas. Sou mais uma vítima de uma estatística cruel e desumana, mais um jovem de vinte e poucos anos prestes a perder uma perna... ou a vida. Fra-turas múltiplas expostas na perna esquerda; perda de massa óssea no acidente; costelas quebradas; um torpor invade meu corpo, um pavor me invade. Não pode ser. Muito jovem para morrer, muito jovem para me tornar uma pessoa com de-ficiência. Por quê? De onde veio aquele carro, como aconteceu? Onde está a moto que estava embaixo de mim?

Centro cirúrgico lotado. Todo final de semana é a mesma cena, milhares de jovens tendo suas vidas ceifadas ou mudando radicalmente. Ontem estava jogan-do vôlei, correndo, brincando, namorando, estudando; hoje estou olhando o teto do hospital; e dezenas de pessoas vestidas de verde com seus rostos mascarados. Ao lado, dezenas de pessoas sobre macas, algumas agonizando, outras inertes, sem nada poder fazer. Horas de espera. Um desconforto enorme. Quero sair dali e não posso. Cada movimento é seguido por dores indescritíveis. É como se estives-sem arrancando pedaços de mim. Será que terei forças para suportar tudo isso? Socorro, meu Deus! Finalmente vão me anestesiar. Finalmente vou poder desligar deste pesadelo, e uma tontura incrível toma conta de mim, apago.

Acordo no meio da cirurgia com ruídos insólitos. Será uma furadeira? Seguem-se marteladas, meu corpo todo sacode. Muitas conversas, risos. Percebo

1 Arquiteto formado pela PUCPR, 1984. Trabalhou no IPPUC; na Secretaria Municipal de Urbanismo de Curitiba; e na Fundação Cultural de Curitiba; Perito judicial junto à Vara da Infância e da Juventude; Consultor de Acessibilidade junto ao Ministério Público Estadual, Assessoria Especial das Deficiências da Prefeitura Municipal de Curitiba e entidades representativas das Pessoas com Deficiência; Secretário de Relações Institucionais do Sindicato dos Arquitetos do Paraná.

E-mail: [email protected]

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que estou com mãos e cabeça amarradas. Não vou suportar. Peço socor-ro, não sou atendido, uma enfermeira se aproxima, apenas diz friamente que terei de aguentar o resto da cirurgia acordado, pois o anestesista não está mais ali. Penso em Deus, em Jesus, será que sua agonia foi parecida com a que estou passando neste momento, com os braços abertos em cruz, com agulhas e tubos transfixando meu corpo?

Após horas de agonia, finalmente estou no quarto, mas por que não sinto minhas pernas? Passam horas e o desespero começa a tomar conta de mim. Cha-mo o médico, ele não sabe explicar ao certo, mas desconfia que possa ter havido algum problema gerado pela anestesia raquidiana. Pede que eu tenha calma. Calma? Como desejo que ele esteja em meu lugar, com apenas metade de um corpo! Como fazer minhas necessidades fisiológicas sem sentir meus órgãos, meu sexo, será que voltarei a ser um homem viril novamente? Se não, quero que esta vida se acabe aqui e agora!

Graças a Deus, após muitos dias de desespero, volto a sentir minhas pernas e o restante de mim. Recebo alta e vou para casa completar meses de espera, sem saber em que condições voltarei à minha vida que não sabia era tão preciosa. Como é humilhante depender de todos para tudo. As coisas mais íntimas e tri-viais passam a requerer planejamento, equipamentos especiais. Conheci o papa-gaio e a comadre – que nomes engraçados; metodologias complicadas. Esforços nunca antes imaginados. Como é importante a lei da gravidade! Que saudades daquele velho chuveiro. Nunca pensei que sentiria saudades de algo tão corri-queiro quanto tomar um simples banho. Dia sim, dia não, minha irmã vem com uma bacia de água morna para me dar o “banho de gato”. Com um pano úmido “lambo” meu corpo nas partes íntimas até onde alcanço, no restante dependo de ajuda.

Volta às aulas. E agora, como faço para dar continuidade ao curso de Ar-quitetura? Não me lembro se existe elevador na PUC, nunca havia precisado re-parar nisto, afinal levava uma vida “normal”. Logo veio a resposta. Não tenho como cursar mais este ano, pois após inúmeras operações de enxerto, o médico sentenciou: pelo menos seis meses de espera para que o calo ósseo lhe permita sair da cama para uma cadeira de rodas.

Cada dia é uma eternidade. Como o tempo demora a passar em uma cama. Quantos finais de tarde imaginando como será mais uma noite naquela mesma posição. Quem será que vem me visitar amanhã? Nunca poderia imaginar como seria a vida de uma pessoa presa em um leito, afinal nasci perfeito! Como somos frágeis. De uma hora para outra mudamos de lado, aqui estou eu, totalmente dependente, uma Pessoa com Deficiência!

Muitos meses depois recebo permissão para começar a “andar” de cadeira de rodas.

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Quando imaginei que um dia desejaria andar de cadeira de rodas? Como é maravilhoso poder sair do quarto e voltar a ver o jardim de casa, o calor do sol aquecendo meu rosto. Caramba, jamais pensei que algo tão simples pudesse trazer tanto prazer. Estou voltando à vida, infelizmente ainda não consigo entrar no banheiro com aquela maldita porta de sessenta centímetros. Como nunca ha-via reparado que ela era menor que as outras? Quem foi o infeliz que com tanto espaço colocou uma porta tão estreita?

Até que enfim chegou o dia de começar a andar de muletas, meu Deus. Nunca pensei que isso poderia me dar tanta alegria. Finalmente posso voltar a sentar em um vaso sanitário, que saudades da lei da gravidade. Quanta saudade daquela banheira e daquele chuveiro. Quero passar horas debaixo da água mor-na aquecendo meu corpo. Passo muito tempo curtindo este prazer tão simples, mas tão importante após meses sem senti-lo. Como aprendemos a valorizar as mínimas coisas após perdê-las.

Hoje é o dia de voltar à Arquitetura, minha paixão. Quanto ela é impor-tante e não sabia. Comprei um Galaxie hidramático, verdadeira lancha sobre rodas, neste momento o único veículo que consigo dirigir sem a perna da embre-agem. Chego à PUC. Agora, onde achar um lugar para estacionar esta monstru-osidade? Paro sobre duas vagas, caso contrário não posso abrir totalmente essa imensa porta para tirar minha perna engessada desde a virilha até a ponta do pé. Voltando das aulas encontro um bilhete do bedel. Ele ameaça esvaziar meus pneus se voltar a parar irregularmente. Discuto com ele e somos chamados à pre-sença da professora Lili Mochon, que determina seja demarcada uma vaga espe-cial para mim. Como nem eu nem a administração do campus nunca havíamos reparado na necessidade de haver vagas especiais para cadeirantes?

Outro obstáculo é o trajeto até o prédio, feito em placas de concreto entre-meadas de grama, difícil de andar de muletas, mas ao mesmo tempo agradeço por não estar mais em uma cadeira de rodas, pois seria impossível percorrê-lo. E o piso de granitina do prédio, então, que em dias chuvosos se torna uma verdadei-ra pista de patinação. Andar de muletas naquele local é uma aventura temerosa. Finalmente o pior de todos os obstáculos, subir as escadas de granitina com duas muletas sob um dos braços enquanto com a outra mão tento segurar no guarda--corpo, desprovido de corrimãos que possibilitem uma boa empunhadura. Difícil na subida e um tormento na descida! Como é que aprovaram uma construção daquela sem elevadores? Será que sou o primeiro usuário de muletas a cursar uma universidade?

Enfim começo a andar de bengala. Passo pelos mesmos perigos. Lembro--me dos meus avôs, que precisaram deste tipo de apoio e eu nunca havia per-cebido o perigo que eles corriam diariamente. Somente reparei em todas estas necessidades após precisar delas.”

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Desde então, minha prioridade na elaboração de projetos é facilitar aces-so a todas as pessoas com mobilidade reduzida. Nunca mais especificarei pisos escorregadios e portas com menos de oitenta centímetros. As calçadas devem ser antiderrapantes e contínuas. Os estacionamentos devem reservar vagas mais largas para cadeirantes; sanitários devem oferecer apoios às pessoas com restrição de movimentos. Enfim, muito antes de haver normas de acessibilidade eu já pratiquei o necessário por ter vivenciado os problemas acarretados pela falta dessas adequações.

1. Segundo suplício familiar

Arquiteto formado, adotei a acessibilidade universal em todos os meus projetos. No entanto, não interferia no restante das edificações e no meio urba-no, achando não ser minha responsabilidade consertar o que os outros fazem de errado.

Muitos anos depois, em 1999, meu filho Rafael, então com nove anos de idade, chegou em casa com um dos olhos inchado, reclamando de muita coceira e irritação. Era uma sexta-feira e seu pediatra havia saído de viagem. Em prin-cípio não me pareceu nada de muito grave, mas levei-o a um posto de saúde. Após rápida observação, sem qualquer exame clínico, o “doutor” de plantão diagnosticou uma conjuntivite e prescreveu um colírio qualquer. Ali mesmo o Rafa já começou a reclamar de uma dor na região dos quadris e, novamente sem encostar um dedo nele, o “doutor” diagnosticou ser apenas um “mau jeito”.

Amanheceu o sábado – sempre aos sábados –, acordo com meu filho cho-rando com muita dor nas costas, na altura da cintura. Sem saber o que fazer, tentei novamente encontrar seu pediatra, sem sucesso. Até hoje não sei a razão de não ter conseguido comunicação. Será que ele desligou seu telefone móvel ou foi porque na época o serviço era mais precário do que hoje? Pedi paciência ao Rafa, explicando que nada poderia ser feito antes da segunda-feira. Foi um final de semana agonizante. No domingo ele amanheceu mijado na cama, pois não havia conseguido se levantar.

Na segunda-feira vivi um verdadeiro calvário. Para retirá-lo da cama tivemos de vesti-lo com todo o cuidado, pois gritava a cada movimento, não havendo posição que lhe desse conforto. Eu já sabia quantificar dores pelas mi-nhas experiências de fraturas, mas nada podia fazer para amenizar a dele. Deu--me vontade de estar em seu lugar. A viagem ao consultório do pediatra foi um suplício.

Quando finalmente chegamos corri para pegar uma cadeira de rodas. Não conseguimos empurrá-la, pois as calçadas em pedras irregulares e mal as-sentadas, característica dominante das nossas cidades, faziam a cadeira trepi-dar, causando-lhe muitas dores. Tive de largar a cadeira no meio da calçada e pegá-lo no colo. Ao entrar no consultório qual não foi minha surpresa ao nunca

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ter reparado nos degraus do jardim. Também não havia percebido a enorme escada para subir ao consultório, situado no andar superior de uma casa antiga. Como é que o próprio médico e seus colegas nunca haviam repara-do no absurdo daquela situação? Nenhum diagnóstico foi feito, quem atendeu fez inúmeros encaminhamentos para exames.

Saí dali sem imaginar o que estava reservado para nossos próximos dias. A primeira parada foi no Hospital de Clínicas. Como puderam construir um hospital daquele porte e importância em uma região tão acidentada? Quem fo-ram os arquitetos e engenheiros responsáveis por todos aqueles degraus, até mesmo na calçada de acesso? E ainda por cima elas foram executadas em petit--pavè, pedras extremamente escorregadias, principalmente em declives. A si-tuação, infelizmente, está preservada até os dias atuais, submetendo muitos a riscos de quedas, impossibilitando o acesso de pessoas, notadamente aquelas com deficiência ou mobilidade reduzida.

Nos demais locais, clínicas, laboratórios de exames, consultórios, hos-pitais, tenho encontrado todos eles com degraus, calçadas irregulares, portas estreitas, e atendentes sem capacitação para interagir com pessoas deficientes. Só agora comecei a reparar em todos esses obstáculos.

Finalmente, por indicação de um amigo que conhecia uma médica do corpo clínico, chegamos ao Hospital Pequeno Príncipe. Sendo outro estabele

Figura 1: No Hospital de Clínicas permanecem degraus e pedras irregulares na calçada de acesso a este estabelecimento de saúde, 2012

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cimento de saúde sem espaço para embarque e desembarque de pessoas com mobilidade reduzida, tive de estacionar na rua.

Novamente a mesma situação, só que pior. Além das lousas de pedras irregulares nas calçadas da rua, internamente havia um pátio revestido de pa-ralelepípedos, aquelas pedras sem rejunte que normalmente são utilizadas em postos de gasolina de estrada para aguentar tráfego pesado, mas ali, voltadas a conceder acesso às pessoas debilitadas. Novamente tive de largar a cadeira de rodas no meio do caminho e carregar meu filho no colo, chorando por conta da dor causada pela trepidação. Chegando à porta do hospital, mais obstáculos, degraus de mármore liso e uma daquelas portas antigas de duas folhas que, estando apenas uma delas aberta, não comporta a passagem de uma pessoa carregando outra. Tive de gritar para que alguém viesse abrir a outra folha para eu entrar. A essa altura meus braços estavam totalmente exaustos.

Após horas de espera, conseguimos agendar atendimento. Até aquele momento ainda não sabíamos qual era o problema, pois nenhum dos exames apresentava um diagnóstico da origem das dores. E este já era o quarto exame clínico. A médica que iria nos atender era muito bem conceituada e havia sido indicada por um amigo que soubera de um caso semelhante com o filho de outro amigo. Por isto, sempre que estou com um problema sério, falo dele aos quatro cantos, pois de algum lugar virá um socorro, principalmente de cima!

Após a anamnese e uma série de exames clínicos e biométricos, ela diag-nosticou em uma palavra o que afligia o Rafael, tratava-se de uma sacroileíte! Mas afinal o que era aquilo? Segundo ela explicou, ainda não se podia saber se um vírus ou bactéria haviam causado aquela infecção no olho e depois se alo-jado na junta do sacro com o ilíaco, causando uma infecção, e ele teria de ser internado para observação e tratamento.

Fomos indicados a ir até a ala ambulatorial, que funcionava no prédio histórico, para o internamento em uma nova ala do hospital, de frente para ou-tra rua, mas havia um caminho interno ligando as duas alas. Mais uma vez nos deparamos com uma série de obstáculos, rampas inclinadíssimas, passagens es-treitas e um pátio interno revestido com as mesmas pedras da entrada; ou seja, irregulares e escorregadias, causando trepidação e me forçando novamente a pegar meu filho no colo. Quais foram os cretinos irresponsáveis técnicos que haviam feito o projeto e especificação daquele revestimento? Como desejei que um dia eles tivessem que atravessar aqueles locais sentados em uma cadeira de rodas. Ou pior, assim como eu, tivessem que ver um ente amado sofrendo em consequência de seus atos.

Naquela época eu havia recém pedido exoneração da prefeitura e estava totalmente descoberto de um plano de saúde. Felizmente a providência divina sempre esteve ao meu lado e conseguimos com certa facilidade a internação em uma enfermaria. Quis Deus que fosse daquela forma. Assim, pudemos conviver

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com outras crianças, com os mais variados problemas, com seus pais di-vidindo suas aflições e angústias. Muitos dias se passaram vendo mães exaus-tas desfalecerem; outras se entregando ao sono, sentadas ao lado de um leito; a maioria vinda de cidades distantes, sem ter a quem recorrer. Quanto apoio falta para essa gente. O Estado deveria providenciar casas de apoio onde elas pudes-sem se alimentar, tomar um banho e repousar.

A situação se agravava dia após dia. Ainda não se sabia o que causara a infecção. Medicamentos fortíssimos causavam a debilitação do organismo, e começavam a aparecer as escaras de decúbito, causadas pela posição imóvel em que meu filho se encontrava. Eu sabia o quanto aquilo era incômodo, pois havia sentido na pele em meus dias de internação. O Rafinha estava ficando irreco-nhecível, emagrecendo e tendo a fisionomia deformada pelo sofrimento.

Muitos dias depois, após tentar diversos tratamentos medicamentosos, a médica pediu que a acompanhasse para fora do quarto e me disse que a infecção não estava cedendo. Ao contrário, começava a aparecer nas radiografias uma mancha escura, indicando existir uma degeneração óssea que acabaria se alas-trando pelo organismo ao romper a cápsula onde se encontrava.

Ela estava decidida por uma intervenção invasiva, para poder realizar uma biópsia, mas dependia da nossa autorização, pois após isso teríamos horas para encaminhar o material para exames, com o objetivo de identificar qual era a bactéria ou vírus que estavam causando aquela infecção. Isto teria de ser feito, porque após a abertura o que estivesse alojado naquele local se espalharia pela corrente sanguínea, podendo provocar uma septicemia, ou uma infecção gene-ralizada agravada pelo estado debilitado em que ele se encontrava.

O mundo pareceu ruir sob meus pés. Voltei entorpecido pelo medo para o lado do leito e caí de joelhos aos prantos, implorando a Deus que não tomasse meu filho. Ele, junto com minha filha, eram a razão da minha vida. Eu não poderia suportar sua perda. Naquele momento propus entregar minha vida em seu lugar. Lembrei-me de todos os ensinamentos e da fé inabalável que minha querida mãe plantou em meu coração. Naquele mesmo dia a médica informou a disponibilidade da cirurgia para a manhã seguinte. Autorizamos e entregamos nas mãos de Deus.

Instantes depois recebi a ligação da irmã diretora da escola onde meu filho estudava, preocupada, querendo saber notícias. Informei-a dos aconteci-mentos e do meu desespero. Ela procurava me tranquilizar dizendo que iria rezar por ele. Algumas horas mais tarde, para minha surpresa, ela apareceu no hospital junto com outra irmãzinha idosa e nos convidou a rezar. Ajoelhei ao lado do meu filho e, com sua mãozinha entre as minhas, entreguei meu espírito naquela oração. Um calor inexplicável tomou conta do meu corpo e, com os olhos brotando lágrimas, acompanhei as palavras das irmãs. Após o amém fi-nal, levantei com uma sensação de conforto no coração e olhei para o semblante

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do Rafinha, que estava mais sereno. Despedimo-nos e algum tempo de-pois caí no sono na poltrona ao lado do leito dele.

Acordei pela manhã com o barulho da maca vindo para levá-lo à cirur-gia e qual não foi nossa surpresa ao vê-lo sentado na cama, reclamando que as nádegas estavam doendo por causa das escaras. Ao invés do centro cirúrgico, a médica resolveu levá-lo para a radiografia. Momentos depois ela voltou com o resultado do exame: uma mancha branca no lugar da infecção, confirmando a formação de um calo ósseo. Ela não sabia explicar como aquilo havia aconteci-do. Suspendeu a cirurgia, retornou-o ao leito para novas observações. Três dias depois saímos do hospital com meu filho caminhando ao meu lado, graças ao Todo Poderoso Deus!

Minha vida mudou completamente e minha primeira atitude antes de ir embora foi entregar à direção do hospital uma carta relatando todos os obstá-culos encontrados e sugerindo como resolvê-los. Por exemplo, o problema do acesso em pedras irregulares, que poderia ser resolvido sem retirá-las, simples-mente revestindo com blocos de concreto intertravados, sobre um colchão de pó de pedra. Também, eliminando os degraus da porta, igualando o piso inter-no ao externo.

Naquele momento percebi por que eu havia passado por aquelas provas e que poderia ajudar a mudar o mundo para melhor. Senti necessidade de procu-rar mais informações sobre meus direitos e deveres. Como na época ainda não havia a facilidade da internet, comecei a frequentar associações de pessoas com deficiência, bibliotecas, conversar com amigos advogados, políticos, não parei mais.

1. Projetando a acessibilidade, exemplos de bons projetos

Foi numa dessas visitas à Associação dos Deficientes Físicos do Paraná (ADFP), na esquina da Rua XV de Novembro com a Rua Camões, que me depa-rei com um senhor aos prantos reclamando que até cachorro entrava pela porta da frente de seu prédio, e sua filha, cadeirante, tinha de entrar pela rampa da ga-ragem. Ofereci-me para acompanhá-lo, pois estava a algumas quadras do local. Chegando ao Edifício Virgínia Augusta, na Rua Atilio Bório, vi uma escadaria de granito polido e um grande gramado à frente do prédio.

Questionei-o sobre por que não poderíamos fazer um caminho novo que chegasse até a porta. Ele me alertou que não poderíamos nem tocar no jardim, que era motivo de orgulho da síndica e do condomínio. A mulher da portaria que acompanhava nossa conversa acrescentou que seria ótimo ter aquele ca-minho para as pessoas idosas que moravam no prédio. Elas, todo dia de feira, tinham que pedir ajuda para subir as escadas com seus carrinhos de compras.

Também seria bom para alguns casais que sofriam para subir e descer com seus carrinhos de bebê. Era tudo o que precisava saber. A Letícia não era

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mais a única a sofrer com aquele obstáculo. Perguntei quando seria a próxima reunião do condomínio, prometendo levar uma solução.

Eu já sabia que os recursos do condomínio eram poucos e precisava levar uma ideia acessível em todos os aspectos. Sabia que uma plataforma mecânica tinha um custo proibitivo e que corrimãos inoxidáveis também eram caros. En-tão optei por criar um caminho, aproveitando um acesso de serviço existente como começo, depois retirando parte do gramado para continuar a passarela até a porta principal do edifício. Na metade do caminho, propus um alarga-mento que funcionaria como uma pracinha, onde a Letícia poderia vir tomar um solzinho, pois até então, segundo a porteira, ela ficava na calçada em frente ao prédio, uma vez que em seu apartamento batia pouco sol.

Figuras 2 e 3Edifício Virgínia Augusta, em Curitiba, antes de ser adequado à acessibilidade universal

Figuras 4 e 5:Edifício Virgínia Augusta, planta e perspectiva elaboradas para a melhoria da acessibilidade de PcD

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No dia da reunião apresentei a proposta. Para a surpresa de todos, além de melhorar a aparência do jardim, o serviço custaria menos de R$ 10,00 por morador. Não tiveram como não aprovar. Menos de uma semana depois, nossa amiguinha estava resgatando sua dignidade e autoestima, podendo exercer seu direito fundamental de ir e vir de forma autônoma, como mostram as fotos e reportagens a seguir.

Figura 6Edifício Virgínia Augusta, vista do jardim frontal após a melhoria da acessibilidade de PcD

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Aquilo definitivamente despertou em meu íntimo um sentimento de amor incondicional ao próximo. Também tive certeza de que existia uma mis-são a ser levada adiante. Eu poderia, através do meu trabalho e da minha paixão pela Arquitetura, melhorar a vida de muitas pessoas. Isto, não apenas daquela menina, dos idosos, das gestantes, de pessoas carregando volumes pesados so-bre veículos com rodas, mas também de ciclistas, de obesos, enfim de todos que em algum momento da vida precisariam de acessibilidade.

Sempre buscando divulgar essas ações através da mídia, conquistei gran-des amigos jornalistas. Tínhamos de mostrar que acessibilidade, além de um direito fundamental, pode ser muito viável, técnica e econômica. Na reporta-gem, a síndica destacou que “apesar da resistência inicial de alguns moradores, o resultado superou o esperado e hoje é motivo de orgulho, pois é o único pré-dio daquela região totalmente acessível”.

Esta missão tomou conta da minha vida e grandes conquistas vieram depois. Uma delas foi a inclusão de pavimentos antiderrapantes, guias rebaixa-das sinalizadas e piso tátil (direcional e de alerta) na reforma da Av. Marechal Deodoro – apesar de sermos forçados a concordar com algumas áreas rema-nescentes de petit-pavè, que insistiram em refazer e que pouco tempo depois já apresentavam buracos. Este tipo de pavimento, quando soltas as pedras, se transforma na pior arma urbana, segundo depoimento do Cel. Roberson Bon-daruk. Grande amigo e companheiro de luta pela eliminação deste tipo de cal-çamento, ele afirma que até para as operações da cavalaria este pavimento se

Figuras 7 e 8Reportagens sobre o Edifício Virgínia Augusta e foto de Letícia subindo sozinha, com seu pai emocionado olhando ao fundo

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transforma em sério obstáculo, pois um cavalo não consegue caminhar sem cair, devido ao baixo coeficiente de atrito.

Outra grande ação realizada em favor da acessibilidade ocorreu quando meu amigo Borges dos Reis me convidou para fazer palestras, pelo Conselho Re-gional de Engenharia e Arquitetura (CREA), no primeiro Fórum de Acessibili-dade que aquele órgão estaria promovendo. Vendo a situação das instalações da entidade, onde até mesmo o local de atendimento ao profissional tinha degraus, convencemos o então presidente, Álvaro Cabrini, de que antes de falarmos so-bre o assunto, deveríamos fazer a lição de casa. Apresentei a solução com uma rampa na porta e a substituição parcial do calçamento de pedras irregulares por blocos de concreto intertravados. O serviço foi executado rapidamente e, em uma semana, pudemos começar o evento com a sensação do dever cumprido.

Depois disso desenvolvi um curso de capacitação para os fiscais do CREA. Através da teoria, e principalmente da prática, vivenciando os proble-mas enfrentados pelos cadeirantes e cegos, a entidade passou a ser referência em fiscalização do cumprimento das normas de acessibilidade.

Figura 9Av. Marechal Deodoro, em Curitiba, piso de petit pavè,com pedras soltando-se após a recente reforma, 2013

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Posteriormente, abrimos este curso à sociedade, capacitando profissio-nais de arquitetura, engenharia e direito; além de técnicos de órgãos públicos, entre eles os Ministérios Públicos, nossos maiores aliados na cobrança do cum-primento das leis.

Desde então pude levar acessibilidade a diversos pontos do país, até mes-mo ao exterior, como em 2012, em Medellín, na Colômbia, onde pude fazer palestra de forma inédita comparada aos moldes convencionais. Ou seja, como percebi que havia um grupo grande de surdos na primeira fileira e também que o meu “portunhol” poderia não ser entendido completamente pela intérprete de sinais, solicitei ao tradutor que estava na cabine que ficasse ao meu lado no palco. Desta forma, quando necessário, ele me ajudava e os surdos podiam fa-zer a leitura labial. Resolvi adotar para sempre esta metodologia, colocando os intérpretes ao lado e próximos, de forma a gerar uma interação completa a toda a plateia.

Figuras 10, 11, 12 e 13: CREA-PR, em sua antiga sede, na Rua General Carneiro, em Curitiba.Antes e depois da intervenção voltada a gerar acessibilidade universal à edificação

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Figuras 14 e 15Exemplos de acessibilidade humana nas calçadas, em Blumenau e Marechal Cândido Rondon

Figura 16Exemplo 1 - Projeto com acessibilidade universal para todos os modais

Figura 17Exemplo 2 - Projeto com acessibilidade universal para todos os modais

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1. Considerações finais

Nossas cidades têm sido planejadas para o carro individual, mas temos alguns bons exemplos, como Marechal Cândido Rondon, no noroeste para-naense, ou Blumenau, em Santa Catarina, em fotos mostradas anteriormente, onde pedestres e ciclistas vivem em harmonia, aliviando por consequência o trânsito da via de tráfego geral.

Em Curitiba temos calçadões, ciclovias, transporte coletivo modelo, equipamentos e serviços que, com alguns ajustes, podem se tornar exemplos de planejamento acessível. Temos o dever de mudar os paradigmas e incutir nas gerações atuais e futuras o pensamento de Sófocles: “As cidades são as pessoas”. Uma cidade pode e deve ser para todos. Escolha o futuro que você quer para si mesmo e para as próximas gerações.