campus impresso - ano 43 número 394

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Campus Número 394 Ano 43 Meio século de silêncio Em Ipatinga (MG), onde em 1963 a Polícia Militar metralhou operários da Usiminas, repórteres do Campus encontram rastros de violência, impunidade, mistério e do medo que até hoje cala testemunhas do massacre Brasília, 14 a 20 de fevereiro de 2013 Número 394 Ano 43 Edição especial Reprodução/Internet

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Jornal-laboratório da Faculdade de Comunicação (FAC) da Universidade de Brasília (UnB).

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Campus Número 394 Ano 43

Meio século de silêncio

Em Ipatinga (MG), onde em 1963 a Polícia Militar metralhou operários da Usiminas, repórteres do Campus encontram rastros de violência, impunidade,

mistério e do medo que até hoje cala testemunhas do massacre

Brasília, 14 a 20 de fevereiro de 2013 Número 394 Ano 43

Edição especial

Repr

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tern

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Iasminny Thábata

Diagramação: Irina Adão e Ezequiel Trancoso

Campus | Brasília, 14 a 20 de fevereiro de 2013 2

Carta do Editor

OmbudsmanTiago Amate

Tragédias unem pessoas e ho-menagens deixam jornais mais hu-manos. Sem condições estruturais de fechar uma matéria em cima da hora sobre Santa Maria, o símbolo e dedicatória de luto na edição 393 do Campus declara o apreço, preo-cupação e respeito da redação com o público universitário. Lado a lado do leitor, a solidariedade fortalece a identidade estudantil do jornal.

A bonita diagramação do Campus ainda tem sérios pro-

blemas de fotografia e dessa vez a capa não sai fora. Imagem é representação, cria sentidos no-vos. Apesar da objetividade da foto, fica muito estranho olhar aquelas carnes de boi ao lado de uma fita preta que enuncia luto. É impactante e desnecessário. Além disso, havia manchete mui-to melhor para chamar na capa.

Legendas em 3, 2, 1... é uma excelente reportagem, mas mencio-na algumas séries como se o leitor soubesse de que gênero se trata. Não custa lembrar que o jornal não

é uma revista especializada e pe-quenos cuidados podem facilitar a leitura de quem pouco entende do assunto. Senti falta de alguém que condenasse o trabalho de tradução às escondidas. Até agora Retratos de um Quixote foi a Página 8 mais bem aproveitada. Ricardo, o Pho-toman de Brasília, é uma pessoa interessantíssima. Fica apenas uma pergunta: a repórter seguiu o Pho-toman em ação na noite brasiliense?

Por incrível que pareça, a matéria mal resolvida do jornal é a manchete. Perigos da carne

clandestina é de interesse público e teve o trabalho de dimensionar os problemas da arrecadação tri-butária, mas foi feita às pressas, enche linguiça ao repetir infor-mações, ocupa espaço desneces-sário e apresenta erros grotescos. Cisticercose é uma doença que, no homem, acontece apenas no ciclo da carne suína. Falar im-precisamente da enfermidade numa discussão em que o debate principal é a carne bovina deixa o leitor achando que vai pegar a doença no primeiro bife contami-

nado e morrer. Não instaurem o medo gratuitamente no público de vocês, é eticamente absurdo.

A sacada de mestre fica mesmo para O mundo em azul e rosa. A re-pórter Marina merece ser mencio-nada aqui porque fez um trabalho excepcional, que coloca o jornalis-ta, como dizem alguns professores por aí, como um cientista social do imediato. A melhor matéria que o ombudsman leu até hoje no Cam-pus, sem sombra de dúvida. Só não gosto da palavra estereótipo, para mim ela também é um estereótipo.

MemóriaHá 20 anos, o Campus publi-

cou suplemento sobre a invasão da Universidade de Brasília (UnB) em 1968. No dia 29 de agosto daquele ano, estudantes foram postos em fila com as mãos na cabeça. Poli-ciais estavam munidos de fuzis, ba-zucas e cassetetes, sob o pretexto de cumprir mandato de prisão contra cinco líderes estudantis. Honestino Guimarães, na época presidente da Federação dos Estudantes da Uni-versidade de Brasília (FEUB), não conseguiu escapar da perseguição. Foi preso e espancado em público.

Expediente: Campus Jornal-laboratório da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília Editora chefe: Iasminny Thábata; Secretária de redação: Celina Guerra Editores: André Vaz, Fellipe Matheus Bernardino e Lucas Vidigal Repórteres: Camila Rodrigues, Elis Tanajura, Iasminny Thábata, Isabella Corrêa, Kelsiane Nunes, Laila Leite e Lorena Soares Diretor de imagem: Paulo Figueiredo Júnior Fotógrafas: Camila Rodrigues, Iasminny Thábata e Kelsiane Nunes Diagramadores: Ezequiel Trancoso, Irina Adão, Ivan Sasha, João Paulo Neves Cabral e Vanessa Arcoverde Projeto gráfico: Celina Guerra, Ivan Sasha, Lorena Soares, Rafaela Lima, Ramilla Rodrigues e Vanessa Arcoverde Professores: Sérgio de Sá e Solano Nascimento, Jornalista: José Luiz SilvaGráfica: Palavra Comunicação Tiragem: 4 mil exemplares

Campus Darcy Ribeiro, Faculdade de Comunicação, ICC Ala Norte. Contato: 61 3107-6498/6501 CEP: 70.910900 E-mail: [email protected]

Acesse www.fac.unb.br/campusonline e conheça o jornal laboratório virtual da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília.

O sol mal havia nascido na capital mineira quando cinco estu-dantes de jornalismo da Universida-de de Brasília aterrissaram no aero-porto de Confins, 708km distante de Brasília. Semanas antes, ainda na redação do Campus, a percepção de que um conflito entre policiais e trabalhadores nos prelúdios da di-tadura militar, ocorrido há 50 anos, ganhava ares de esquecimento fez nascer em nosso grupo um espíri-

to aventureiro, curioso e inquieto. Como o jornalismo poderia ajudar a sociedade a conhecer parte de uma história que, inevitavelmente, se apaga com o tempo? Não seria fácil buscar a resposta, já que os envolvi-dos no episódio aprenderam a viver com o silêncio e a repressão.

Em Ipatinga, onde tudo acon-teceu, a primeira impressão foi de espanto. De bagagem na mão e hospedadas em um quarto sujo e improvisado ao lado da rodoviária da cidade, começamos uma saga.

As distâncias eram grandes, o calor era intenso, os interurbanos, caros, e os envolvidos, silenciosos. Era en-tão o primeiro dia dos quatro que construiriam uma edição especial do jornal. Nós ainda não sabíamos, mas chegaríamos à mesma conclusão da jornalista e escritora Eliane Brum: se um dia voltássemos as mesmas de-pois de uma pauta, estava na hora de desistir do jornalismo.

Entrevistamos sobreviventes do massacre, encontramos outros pe-las ruas, visitamos cidades vizinhas.

Soubemos que a notícia das mortes chegou como guerra, revolução. A rádio citava de hora em hora nomes de mortos. O dono de um caminhão da cidade vizinha Fabriciano, muito conhecido, foi chamado para ir até a Usiminas e carregar feridos. Crianças se esconderam embaixo da cama, a escola não funcionou no dia, nem no dia seguinte. As informações eram desencontradas, ninguém sabia o porquê daquilo e, como ninguém ex-plicou depois, ficou por isso mesmo.

Quem começou a atirar? Quan-

tas pessoas morreram? Por que, até o fechamento desta edição, não recebe-mos respostas nem da Polícia Militar, nem da Usiminas?

A Faculdade de Comunicação da UnB também teve papel impor-tante. Como instituição pública, foi sensível para perceber que o investi-mento na viagem era um modo efi-ciente de retornar à sociedade uma parcela do valor pago em impostos pelos brasileiros. No final, todos se envolveram e ganhou o país, com uma edição valiosa do Campus.

Ipatinga segue caladaChacina ocorrida na cidade completa 50 anos e ainda silencia ex-operários da Usiminas e moradores da região

Os pés descalços do jovem José Augusto de Moraes desfila-vam pelo campo de futebol no centro do município de Timóteo, interior de Minas Gerais, quando a rádio trans-mitida por um auto-falante anunciou um massacre em frente à siderúrgica Usimi-nas, na cidade vizinha, Ipa-tinga. Então com 11 anos de idade, em 1963, o garo-to caminhou os 14km que separam as duas cidades à procura de notícias do pai, empregado da usina. Encon-traram-se na estrada, quando um ônibus trazia trabalha-dores sobreviventes. Desde então, nunca mais tocaram no assunto.O conflito começou por

volta das 7h30 do dia 7 de outu-bro de 1963. Na noite anterior, metalúrgicos insatisfeitos com a violência dos seguranças da Usi-minas haviam anunciado uma greve para a manhã seguinte. Po-liciais militares foram chamados pela empresa para conter a massa trabalhadora durante a paralisa-ção. O embate virou tragédia.

As máquinas da siderúrgica silenciaram-se diante do abuso so-frido pelos trabalhadores. A maio-ria havia deixado seus lares espa-lhados pelo país em busca de uma vida melhor na cidade mineira. O silêncio do massacre alastrou-se como praga. “Depois, parece que colocaram uma pedra em cima, e a gente não ouvia falar muita coisa. Quase não havia comentá-rios sobre o assunto”, recorda o engenheiro José Maurício Coe-lho Vasconcelos, 67 anos, que na época da chacina trabalhava no al-moxarifado da Usina.

o Campus, mas mudou de ideia. Sua filha, a bibliotecária Rogéria, explica que o operário aposentado recusa-se a comentar o assunto. “Naquela época, eles não podiam nem abrir a boca para falar nada, acho que isso ficou na cabeça dele e por isso ainda sente medo de falar”, diz. Para não contrariar o pai, Rogéria pediu que o sobreno-me da família fosse preservado.

A historiadora Marilene Tuler, autora do livro O Massa-cre de Ipatinga – Mitos e verdades, acredita que a razão para tanta discrição é o fato de a Usiminas querer manter sigilo em relação ao

assunto. “O massacre foi escondi-do da nossa cidade a vida toda”, afirma. Segundo ela, após o in-cidente, a empresa deu casas aos operários, criou times de futebol e deixou o tempo fazer a sua parte para apagar a história.

Atualmente, a maioria dos lugares onde os eventos acontece-ram já se esconde atrás de edifícios modernos. “O massacre começou onde hoje é o shopping da cidade, por exemplo. Você esconde um episódio horroroso construindo um prédio e as pessoas nem ima-ginam o que aconteceu ali”, acres-centa Marilene.

Isabella Corrêa

Meio século após a tragédia que causou oficialmente oito mor-tes – extraoficialmente, até deze-nas – e deixou mais de cem feri-dos, restam apenas versões de uma história mal contada e o silêncio de quem viu a morte de perto na-quele dia. “Você tenta conver-sar com os aposentados da Usi-minas sobre o massacre, mas eles não falam”, confirma José Augus-to de Moraes, que escreveu nove livros sobre Ipatinga e dedicou-os ao pai. “É uma cultura que foi co-locada na cabeça do pessoal.”

Um dos sobreviventes che-gou a agendar uma entrevista para

Massacre

Campus | Brasília, 14 a 20 de fevereiro de 2013 3

Edição: Fellipe Bernardino Diagramação: Ezequiel Trancoso e Paulo Figueiredo Júnior

Atendente em uma loja do shopping, Ângela Linda, 25, descobriu por acaso que embai-xo de seus pés havia uma história guardada. “Meu pai trabalhou muitos anos na Usina e nunca comentou comigo, só fiquei sab-vvendo esta semana, conversan-do com as meninas aqui do sho-pping.” Ela ainda arrisca uma explicação: “Dizem que foi a Usiminas que fez esse negócio, né? Mas não sei quantas pesso-as morreram. Até pensei em pes-quisar na internet.”

Cidade Usiminas

O silêncio do massacre de 1963 parece passar despercebi-do diante da megaestrutura da cidade. A Usiminas se asseme-lha a um conjunto de órgãos e sistemas, onde Ipatinga é o corpo humano. Um não vive sem o outro. “Ipatinga exis-te em função da Usiminas, os bairros são construídos de tal forma que a Usiminas está no meio: separa a cidade em duas”, destaca Marilene.

Pelas ruas das cidades vizi-nhas é possível perceber como a siderúrgica possibilitou de-senvolvimento em Ipatinga, en-quanto as outras ainda apresen-tam ar interiorano. Região de interior, porém grande e forte como uma metrópole. Pouco pa-rece faltar ali. “Não temos uma rua sem asfalto e todas as casas têm luz, água e coleta de esgo-to”, afirma o escritor José Au-gusto de Moraes. A usina che-gou a Ipatinga quando a região era apenas um bairro, em 1956. Com ela, vieram os investimen-tos em escolas, hospitais e cen-tros de lazer. “A Usiminas é uma mãe”, reforça a historiadora.

Caminhão que transportava policiais no dia do confronto e de onde saíram os tiros de metralhadora

Reprodução/Internet

“ O massacre foi escondido da nossa cidade a vida toda”

Marilene TulerHistoriadora

Outubrode 1963

um pouco mais tarde ...Após dispersarem os trabalhadores, policiais militares realizam patrulhamento no bairro dos alojamentos dos operários. Atos de violência são praticados no bairro de Santa Mônica e pelo menos cem trabalhadores são detidos.

Dia 6 Dia 76h Dois mil operários fazem paralisação na portaria da Usiminas e exigem a libertação de colegas detidos na noite anterior. Surgem novos con�itos com vigilantes. A direção da Usiminas chama a Polícia Militar.

9h50 A aglomeração já reúne mais de 4 mil pessoas, e grande número de operários está fora dos portões da fábrica. Do outro lado da rodovia, está um caminhão com policiais fortemente armados, inclusive com metralhadora. O confronto tem início, os policiais atiram e operários são mortos.

à tarde...O comando geral da Polícia Militar determina a abertura de um inquérito e a prisão dos policiais envolvidos no episódio da manhã.

Dia 8

Em protesto aos atos violentos ocorridos no dia anterior, operários ateiam fogo à cadeia pública da cidade e destroem um caminhão da Polícia Militar. O fato �ca conhecido como Operação Vingança.

22h Como ocorre diariamente, seguranças revistam operários na saída da Usiminas. O con�ito nesta noite é maior que o usual, a situação se agrava na portaria 1 (Barreira 57), e o Regimento da Cavalaria Militar de Governador Valadaresé chamado.

Campus | Brasília, 14 a 20 de fevereiro de 2013

Laila Leite

Massacre

Os mistérios por trás da fumaça da metalúrgicaA falta de documentos e as versões controversas sobre a chacina na cidade mineira mantêm o caso em aberto até hoje

A nuvem de fumaça que sai da Usi-minas e que acinzenta os céus de Ipatinga há mais de 50 anos encobre o sol e também deixa na escuridão respostas que esclareceriam o massacre de 1963. As dúvidas vão desde a origem do conflito até o nú-mero de mortos.Na noite de 6 de outubro,

houve um desentendimento entre operários e vigilantes que contro-lavam a entrada e saída dos traba-lhadores. A gênese do conflito é controversa. O ex-soldado e atual advogado José Francisco de Oli-veira (leia mais na página 6), 78 anos, conta que a segurança teria pedido a um operário para abrir a marmita. “O operador se negou a abrir e a pegaram à força, notando que realmente havia objetos furta-dos”, diz o ex-policial.

Porém, o ex-operário Ismael Pereira Lima, 80, contesta a ver-são. Segundo Lima, era comum na época trabalhadores levarem leite que sobrava do lanche para casa. “A encrenca começou na guarita de vigilantes porque os trabalhado-res queriam levar o leite”, explica. No dia seguinte ao massacre, operários indignados com os acontecimentos ateiam fogo em caminhão

Segundo ele, a segurança implicou com a quantidade levada. “Não era roubo. Eu sei que o massacre teve início por conta do leite.”

De oito a 33

O número de mortos tam-bém é controverso. Segundo o vereador Agnaldo Bicalho, 41, integrante de uma comissão que investiga o ocorrido, o número oficial, com base em certidões de óbitos, é de oito mortos. Porém, a memória de testemunhas re-gistrou mais corpos do que os números oficiais. Em meio às lembranças que não gosta de res-gatar, o ex-mensageiro José Mau-rício Coelho Vasconcelos recorda ter visto pelo menos 10 corpos, mas ouviu falar em 33. “Falam que foram 11 mortos, mas nin-guém sabe ao certo”, conta o ex-operário Hélio Mateus, 77. A única coisa que o vereador e os sobreviventes do massacre con-cordam é que a quantidade de vítimas fatais é bem maior do que a oficial.

O fundamento da descon-fiança, disseminada entre sobrevi-ventes e investigadores, tem base em dois episódios distintos. Geral-

Colaboração: Camila Rodrigues e Kelsiane Nunes

Arte: Elis Tanajura e Lorena Soares

Acervo jornal Estado de Minas/Hilton Rocha

Outubrode 1963

um pouco mais tarde ...Após dispersarem os trabalhadores, policiais militares realizam patrulhamento no bairro dos alojamentos dos operários. Atos de violência são praticados no bairro de Santa Mônica e pelo menos cem trabalhadores são detidos.

Dia 6 Dia 76h Dois mil operários fazem paralisação na portaria da Usiminas e exigem a libertação de colegas detidos na noite anterior. Surgem novos con�itos com vigilantes. A direção da Usiminas chama a Polícia Militar.

9h50 A aglomeração já reúne mais de 4 mil pessoas, e grande número de operários está fora dos portões da fábrica. Do outro lado da rodovia, está um caminhão com policiais fortemente armados, inclusive com metralhadora. O confronto tem início, os policiais atiram e operários são mortos.

à tarde...O comando geral da Polícia Militar determina a abertura de um inquérito e a prisão dos policiais envolvidos no episódio da manhã.

Dia 8

Em protesto aos atos violentos ocorridos no dia anterior, operários ateiam fogo à cadeia pública da cidade e destroem um caminhão da Polícia Militar. O fato �ca conhecido como Operação Vingança.

22h Como ocorre diariamente, seguranças revistam operários na saída da Usiminas. O con�ito nesta noite é maior que o usual, a situação se agrava na portaria 1 (Barreira 57), e o Regimento da Cavalaria Militar de Governador Valadaresé chamado.

4 e 5

Edição: André Vaz Diagramação: Ezequiel Trancoso Ivan Sasha e Vanessa Arcoverde

Os mistérios por trás da fumaça da siderúrgicaA falta de documentos e as versões controversas sobre a chacina na cidade mineira mantêm o caso em aberto até hoje

do Rocha, na época com 28 anos, era alfaiate e, dominado pela curio-sidade, foi para a área do conflito. Levou um tiro, foi sepultado na roça, mas o atestado de óbito re-gistrou como causa da morte uma anemia. Outro fato encontrado pelo jornalista Marcelo Freitas na Santa Casa da Misericórdia de Belo Horizonte é um documento que mostra que foram adquiridos pela Usiminas, na data do massacre, 32 caixões.

Contudo, na contramão, o ex-operário e escritor José Augusto de Moraes explica que a compra era frequente. A metalúrgica man-tinha um depósito porque Ipatinga não tinha funerária. “O almoxari-fado já tinha caixão estocado, pois quando a Usiminas chegou isto aqui não era cidade.”

Balas militares ou civis

O que matou as vítimas do massacre foram balas, essa é uma certeza que prevalece. Mas há dú-vidas sobre a autoria dos disparos, afirma Oliveira. Segundo o ex-po-licial, o bebê que está entre as víti-mas foi alvejado por uma bala de um projétil calibre 23. “Esse cali-bre a polícia não tinha. Calibre 23

é de revólver”, declara. Vasconcelos observava o conflito, não acredita-va que iriam atirar, prestou atenção a cada detalhe e, por isso, com a certeza de quem presenciou o ato, nega: “Só havia uma metralhadora no caminhão da polícia. Isso eu pude notar muito bem. O policial estava com capacete, era um cara moreno pardo, tinha a face magra, aparecendo o osso.”

Uma das vítimas era Eliane Martins (veja na página 8). A crian-ça estava no colo da mãe, que a le-vava para uma consulta no pronto-socorro. “Depois que o caminhão saiu da portaria, os soldados conti-nuaram a atirar durante o percurso, e foi aí que a mataram”, assegura o historiador José Moraes.

Um tal Fidel

Ocorrido às vésperas da di-tadura, o massacre não escapa de questionamentos que o relacione ao golpe de 1964. Segundo o ex-solda-do Oliveira, existiam entre os operá-rios da Usiminas ativistas infiltrados que agitavam a massa. “Eles anda-vam uniformizados, camisa verme-lha, com o símbolo no braço.” A historiadora Marilene Tuler afirma que a declaração de Oliveira é con-

firmada pelos dez depoimentos do inquérito que julgou os policiais. “Todos eles falam a mesma coisa: que havia um líder operário, que tinha roupa vermelha, barba gran-de e apelido de Fidel Castro. E aí se constroi a versão.”

Marilene acredita que essa foi apenas uma maneira de tentar ate-nuar o ocorrido. “Os militares disse-ram que não atiraram em operários, atiraram em perigosos comunistas”, ironiza. Moraes também crê que essa versão não passa de uma estra-tégia. “Foi um episódio à parte. É, inclusive, muito perigoso relacionar os dois eventos porque você exime a culpa da Usiminas.”

Comissão

Para tentar entender o que se passou em 7 de outubro de 1963, foi instaurada, em maio de 2012, uma Comissão da Verdade na Câ-mara Municipal de Ipatinga. Gran-de parte dos documentos que po-diam trazer à luz um esclarecimento total está na Usiminas. Membro da comissão, o vereador Agnaldo Bica-lho explica que, quando foi priva-tizada, a empresa ficou com tudo e não repassou os arquivos que eram públicos. Afirma, ainda, que vá-

rias audiências foram realizadas e, mesmo sendo convidada, a Usimi-nas nunca compareceu nem man-dou representante. O Campus en-trou em contato com a metalúrgica, mas, até o fechamento desta edição, não obteve nenhuma resposta.

A iniciativa dos vereadores de Ipatinga, que tem ligações com a Comissão da Verdade na-cional, poderá trazer novos fatos à tona. Com a conjuntura po-lítica da época, a seis meses do golpe militar de 1964, muitos outros documentos foram cen-tralizados no governo federal. A comissão pode ter acesso a infor-mações privilegiadas e esclarecer detalhes do massacre. Bicalho acredita ser esta a última chance de conseguir as peças que faltam nesse complexo quebra-cabeça. “Ou nós levantamos mais in-formações do massacre agora ou não vamos levantar jamais.”

A intenção não é responsabili-zar culpados, mas a comissão pode preencher uma lacuna. Sem apontar culpados, o inquérito aberto para investigar o episódio foi arquivado já durante o regime militar que se seguiu ao golpe de 1964. Assim, a impunidade pelo massacre também está fazendo aniversário.

Falam que foram 11 mortos, mas ninguém sabe ao certo”

Hélio Mateus,ex-operário

Kelsiane Nunes

Arte: Paulo Figueiredo sobre Telegram

a do Arquivo

Nacional

Edição: Fellipe Bernardino Diagramação: João Paulo Neves Cabral e Paulo Figueiredo Júnior

Por detrás do gatilho

Campus | Brasília, 14 a 20 de Fevereiro de 2013 6

Massacre

Entre silêncio, dúvidas e falta de vestígios do massacre de Ipa-tinga, restam apenas retalhos espalhados pelos depoimen-tos das testemunhas. Em en-trevista ao Campus, o ex-po-licial militar José Francisco de Oliveira (foto), 78 anos, tenta remontar o conflito. Atual-mente, ele trabalha como pro-fessor de direito penal e advo-ga em um escritório no centro da cidade. É o único dos po-liciais que atuavam em Ipatin-ga quando houve o massacre e que ainda vive na cidade. Na época, era 1º sargento da PM e escrivão da delegacia local.

O que provocou o início do massacre?

Em 1962 houve um grande furto de 32 ventaneiras (válvulas feitas com cobre) dentro da Usimi-nas. Em geral, havia também furto de cobre e níquel. Na noite de 6 de outubro, a vigilância teria pedido a um operador que abrisse a marmi-ta porque cismou que havia objeto furtado nela. O operador se negou a abrir e a pegaram à força, notando que realmente havia objetos furta-dos. Isso acendeu uma revolta con-tra a vigilância, que gerou uma reu-

nião do sindicato dos operários. No episódio, além dos operários da Usi-minas, havia ativistas que andavam uniformizados de camisa vermelha e símbolo no braço.

Eles não faziam parte do sindi-cato, eram apenas infiltrados. Após a reunião, esses agitadores foram os primeiros a sair, chegaram ao bair-ro do Horto, bateram na cavalaria e agrediram um soldado. Isso chegou aos ouvidos do 2º sargento Carlos Alberto. Ele e outros policiais da ca-valaria foram para o bairro de Santa Mônica (onde morava a maioria dos trabalhadores), agrediram e prende-ram cerca de cem operários. O capi-tão Robson Zamprogno ficou saben-do e imediatamente se dirigiu para o local questionando o sargento: “Oh, Carlos Alberto, você tá ficando doido?”, e soltou os operários. Isso fervilhou Santa Mônica e os operá-rios resolveram fazer greve no dia se-guinte. No dia 7, o capitão Jurandir estava com a tropa na entrada da ga-ragem da Usiminas pra preservar o patrimônio, mas não conseguiu en-trar porque os operários impediam.

Quando o senhor percebeu que o massacre estava acontecendo?

Havia uma reunião para reti-rar a PM e os operários da entrada da Usiminas. Saímos para retirar as tropas, o pessoal do sindicato e os operários. Quando saímos do pátio

A versão dos telegramas

Cinco décadas depois do episódio, é possível encontrar no Arquivo Público Mineiro apenas telegramas oficiais que mostram o monitoramento da cidade. Do dia 10 ao dia 16 de outubro de 1963, policiais da região mantiveram o secretário de Segurança informa-do sobre os ânimos em Ipatinga.

Em 10 de outubro, dois des-ses comunicados especiais trata-ram do incêndio ocorrido na Pen-são de Mulheres da cidade e da morte de um comerciante local. De acordo com o capitão J. Ama-ral, o criminoso seria Francisco Ribeiro dos Santos e estaria fora-gido. Em matéria publicada pelo jornal Correio de Minas no mesmo dia, no entanto, a versão apresen-

tada foi de que o corpo teria sido encontrado após choque entre po-lícia e operários, com marca de um tiro de fuzil no peito. De acor-do com a reportagem, o fato não havia sido esclarecido.

Na manhã do dia 11, tam-bém houve um comunicado do delegado Campos ao secretário, reafirmando que reivindicações seguiam sendo feitas pelos meta-lúrgicos e que ainda era iminen-te o risco de movimento grevis-ta na região. A possibilidade só foi afastada em 13 de outubro, quando a situação já estava mais calma. Na tarde do dia 16, o últi-mo telegrama foi enviado, consi-derando “boatos sobre intranqui-lidade” sem procedência.

Isabella Corrêa

Ex-policial militar presente no confronto de 7 de outubro de 1963 dá sua versão para o que ocorreu naquele dia

“ Os policiais estavam completamente doidos”

José Francisco de Oliveira, ex-policial militar

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odrig

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Lorena SoaresColaboração: Elis Tanajura

Informes trocados entre oficiais e autoridades mostram monitoramento de operários nos dias seguintes à chacina

do escritório central, viramos para a direita, então ouvimos o pipocar da metralhadora. Foi uma coisa hor-rível. O capitão Zamprogno ficou apavorado. A metralhadora dispa-rou e morreram sete pessoas. Quan-do ouvi esses tiros, o capitão gri-tou “volta, volta, para, para, para!”. Os policiais estavam completamen-te doidos, a gente não tinha nem tempo de falar um com o outro.

Qual foi a reação da PM quando percebeu que havia causado morte de civis?

O tenente Jurandir estava pá-lido e chorava igual uma criança, repetindo para o capitão: “Eu não autorizei isso, capitão!.” O capi-tão começou a chorar e eu mantive a calma. Quando vi que meus che-fes choravam, peguei os soldados, fiz eles descerem, os coloquei em forma, recolhi os fuzis e guardei pra depois poder fazer exame balístico.

Por que o massacre aconteceu?

A Polícia Militar não era arma-da para vencer tumulto, hoje ela é. Nós não tínhamos armamento poli-cial, tínhamos armamento do exér-cito. Tínhamos fuzil sete milíme-tros, pistola militar, metralhadora, bazuca, morteiro, mas não tínhamos bomba de gás lacrimogêneo ou balas de borracha. No dia do massacre, havia um soldado com uma metra-lhadora de mão em cima de um ca-minhão, ela é uma arma de combate que dá 320 tiros por minuto. A polí-cia andava armada até os dentes.

No dia 7, os policiais não receberam ordem para atirar. Então, por que atiraram?

Talvez o estado emocional deles. A questão foi psicológica: quando a PM viu a multidão avançando, pen-sou em atirar por cima para assustar.

Colaboração: Camila Rodrigues

Camila Rodrigues

Edição: Lucas Vidigal Diagramação: Irina Adão, Paulo Figueiredo Júnior

Sobreviventes recordam histórias de pânico, horror e superação ocorridas durante o episódio que marcou a cidade mineira

Campus | Brasília, 14 a 20 de Fevereiro de 2013 7

Massacre

Iasminny Thábata “Deus me salvou”

Hoje com 81 anos, Joaquim Be-nedito da Cruz não gosta de recordar o dia 7 de outubro de 1963. “Conta, pai, como o senhor pulou a cerca de arame farpado”, estimula a filha Inês Mendes de Sousa , 50, tentan-do ajudá-lo a contar a história. O pai se convence. Na manhã do massacre, ele saiu no se-gundo ônibus do dia de Co-ronel Fabriciano rumo a Ipa-tinga para chegar à Usiminas. Notou a bagunça que se for-mava. Depois só ouviu os tiros e correu. “Não dava pra ver se conhecia ninguém, só corria. Na época, era moleque, sau-dável, conseguia correr”, re-lembra. Agora, Cruz convive com uma trombose que ataca as duas pernas e dificulta até a ida do quarto à sala.Os olhos de Cruz se enchem

de lágrimas ao falar. “Foi Deus que me salvou. Tive que correr pra casa, avisar que não tinha aconteci-do nada comigo.” Inês conta a his-tória da outra irmã, Luiza Mendes da Cruz, que, ao ouvir pelo rádio o que estava acontecendo, foi atrás

Lembranças da beira da morte

do pai. O encontrou já voltando para casa, machucado da fuga. “A notícia que chegava era que tava tendo guerra em Ipatinga”, diz a filha. Cruz se emociona. “Eu vou falar pra você, o negócio não foi brincadeira, não. Eu achei que da-quela eu não iria escapar.”

“Tomei tiro”

Enias Silvino de Souza, 74, conta que quando chegou para trabalhar naquele dia ficou do lado de fora. “Fecharam a portaria da Usiminas, não deixavam ninguém entrar.” No tumulto causado pelos tiros, Souza não conseguiu fugir a tempo. Sobreviveu, mas saiu feri-do. “Começaram a atirar. O que aconteceu? Tomei tiro. Bateu aqui, no meu peito. Tive sorte”, recorda. Sorte porque foi de raspão.

A irmã, Maria Madalena dos Reis, estava grávida de nove meses quando soube da tragédia pelo rádio. “De algum jeito, par-ticipei dos acontecimentos da-quele dia. Quando recebemos a notícia de que estava tendo tiro, fiquei preocupada e passei mal. Acabei indo pro hospital”, conta a aposentada de 81 anos. Ela per-gunta se o irmão participou do massacre ao escutar relatos sobre aquele dia. “Não participei, fui vítima”, corrige Souza.

“Foi gente correndo”

Ismael Pereira, 81, lembra-se de ter perguntado o que estava acontecendo quando chegou para o trabalho. “A gente queria ver e foi chegando mais perto. Na hora, foi gente correndo, gente caindo no chão”, recorda. As lembranças vêm com sofrimento. “Naquele tiroteio muita gente foi baleada, até colega meu”, conta.

Com medo, a esposa de Pe-reira quis ir embora da cidade. “Os familiares eram quem mais sofriam com a situação. Tinham medo de tudo. Minha esposa falava: nós te-mos que ir embora daqui, tá muito perigoso.” Mas ele quis ficar em Ipatinga. “Eu preferia ficar na Usi-minas porque sabia que tinha futu-ro”, explica.

“Foi igual a um coice”

Hélio Mateus Ferreira, de 77 anos, precisou se entrincheirar em uma vala. Trabalhava no escritório central e resolvera ver o que estava acontecendo naquele dia. “Eu vou ver como está a barra”, lembra-se de ter dito a um colega. Quando chegou lá, encontrou o tumulto. “Era tanta gente que a porta estava bloqueada. Eu passei numa cerca de mais de dois metros, alguém ser-viu de escada para mim”, relembra.

Foi quando pensou em se es-conder para fugir dos tiros. Não teve tanta sorte. “Na hora que eu fui deitar para me proteger, eu recebi aquele balaço no traseiro igual a um coice de mula, para você ver que força”, descreve. Na adrenalina do momento, quase não sentiu dor. Até hoje, guarda não só lembranças daquele dia. “Na época o doutor falou comigo que não iria extrair a bala porque talvez, por infelicidade, minha ci-rurgia poderia cortar o nervo e eu ficaria aleijado.” Pereira (D) e Souza (E), atingido de raspão por uma bala: “Tive sorte”

Ferreira ainda tem no corpo a bala que o atingiu, a marca ficou na carteira

Cruz precisou correr para fugir dos tiros que vinham de todos os lados

Para não esquecer, Ferreira guarda mensagem: lembrança da tragédia

Kelsiane Nunes

Camila Rodrigues

Iasminny Thábata

Colaboração: Iasminny Thábata

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Campus | Brasília, 14 a 20 de janeiro de 2013

Página 8 n memoriamIasminny Thábata

Os olhos ainda estariam vivos. Vivos como deveriam ter con-tinuado a ser desde o nasci-mento, e enxergariam o pas-sar dos dias intrigados. Teriam acompanhado o desenvolvi-mento da região em que ela nasceu: antes vila, Ipatinga é hoje referência em turismo de negócios, uma das dez cida-des mais populosas de Minas Gerais. Ela até poderia ter tra-balhado na Usiminas, maior empregadora de mão de obra da região, e poderia ir acom-panhada de um primo, um irmão que tivesse moto. No início não existiam muitas mulheres trabalhando lá, mas as coisas realmente mudaram naquela vila. E ela não viu.Nascida em 1963, a menina,

que poderia ter crescido bonita e namorado radialistas, policiais e far-macêuticos da região, aos 15 anos poderia ter perdido um amigo tra-gicamente - como muitos perderam à época. E sentido a falta dele com tamanha dor, que só alguém que perdeu quem ama sente. Ela nem viu, inclusive, a tal da enchente. Qual delas? A que, entre 1º e 4 de fevereiro de 1979 matou dezenas de pessoas e desabrigou milhares, fruto da falta de estrutura da cidade que crescia de forma acelerada.

Nos dias úmidos e ensolara-dos de Ipatinga, ela

poderia ter ido ao Kart Clube ou

Kar tódromo

Emerson Fittipaldi, sensações da juventude do Vale do Aço. Isso, se tivesse aprendido a dirigir, ou sou-besse que as obras seriam inaugu-radas, para espanto e prazer da re-gião, que também viu nascer o primeiro shopping e o estádio de futebol, em 1998.

O show do Frejat veio e se foi, também o da Maria Gadú e o do Paralamas do Sucesso. Luana Pio-vanni também passou por Ipatinga com o espetáculo O Pequeno Prín-cipe, mas acabou a temporada de apresentações e a menina, que po-deria ter assistido à peça, não foi. Na verdade, não se sabe se ela gos-taria de ver interpretadas cenas do principezinho no teatro, ela nunca teve a possibilidade de escolher do que gostaria e o que a desagradaria.

Ela talvez tivesse um metro e meio e gostasse de receber flores no aniversário, ou, quem sabe, apren-deria a preparar o pão de queijo mi-neiro, especialidade da região, com ajuda da mãe. Cresceria rápido, es-tudaria na fazenda que servia de es-cola e que, depois, virou o Colégio Assedipa, ou na escola Estadual Pro-fessor Pedro Calmon, a mais anti-ga escola pública da região. Brin-caria de pique-esconde ou balanço na varanda que rodeava a casa e não se preocuparia com a hora do fim da brincadeira, já que a professora, Dona Tildinha, avisaria aos pais que ela estaria “por aí”.

Cresceria rápido? Andaria a pé e de papa-fila (transporte que busca-va e levava os empregados da Usi-minas)? Detestaria a chuva? Aprenderia a dançar com

os olhos, mais que com os quadris? Viajaria para o Rio de Janei-ro? Casaria virgem com algum farma-cêutico chamado Luis Alberto de Souza, vizinho da família, filho do compadre de seus pais?

Das pou-cas certezas, ela era filha de José Martins e Anto-nieta Francisca e se chama-va Eliana M a r t i n s . Cre sce r i a envolta ao s i l ê n c i o de uma ci-dade que se desenvolveu rapi-damente, fruto de um trabalho acelerado – parte advindo dos serviços do próprio pai, que era operador de máquinas na Usiminas lá pelas horas da déca-da de 1960. Ipatinga não era mais que uma vila quando Eliana nasceu e só as horas dançantes dos bailinhos e o avolumar da fumaça usineira

quebrariam o silên-cio das pessoas

que tei-m a r i a m

em viver os dias de

forma des-c o n f i a -

da, mas calada.

O s f i l h o s nunca vie-ram, a v i u v e z também

não, ou a gra-duação em Pe-

dagogia, já que para as mulheres da época

dela o destino era o magistério ou o comércio. Tam-pouco trabalhou como vendedora.

Apegada ao passa-do e a tudo que a faria

se tornar o que seria hoje, Eliana Martins já teria rugas a fazer li-gação com o passado (que nãoviu pas-sar). Provavelmente o pai, como tan-tos outros silenciosos, nunca falaria dos acontecimentos tristes da vida. Talvez assim ela aprendesse a falar apenas do que fosse bom. Cinquenta anos e nenhuma palavra sobre aquele dia. Que dia? Ela não entenderia, mas

quem sabe virasse devota de

Edição: Fellipe Bernardino Diagramação: Irina Adão, Ivan Sasha e Vanessa Arcoverde Arte: Isabella Corrêa

Nossa Senhora, como muitas das ami-gas da cidade, de maioria católica.

O andar vagaroso seria marca de que o tempo havia passado, con-tra todos os indícios e contra todas as estatísticas de um Brasil que não sobreviveria aos sumiços e aos mas-sacres da época em que ela crescia e viraria mulher.

Eliana Martins foi uma das vítimas do massacre de Ipatinga. O mesmo tiro que atingiu a mãe, Antonieta, matou a recém-nascida de três meses que estava no colo da mulher. Ela a levava para uma con-sulta no ambulatório da Usiminas. As últimas notícias da família in-dicam um final trágico, como o início da história. Após a morte da única filha, o pai foi visto vagando pelas ruas da cidade, e a mãe foi internada em um manicômio. Ne-nhum deles foi ao enterro da me-nina. Só compareceu o enfermei-ro do hospital que atendeu às víti-mas do massacre. E o coveiro.

Crônica