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394 OUTUBRO 2013 ÓRGÃO OFICIAL DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE IMPRENSA FRANCISCO UCHA

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O FIM DE UMA ERA - Como escrever neste espaço, ocupado com maestria nos últimos anos pelo imenso talento de um dos textos mais elaborados da imprensa brasileira? Como descrever a solidão da perda de um companheiro de trabalho absolutamente apaixonado pelo ofício de reportar notícias? É verdade: fizemos uma boa dupla desde que comecei a produzir o Jornal da ABI, em abril de 2005, na edição de número 299. Foram mais de oito anos trabalhando incessantemente, muitas das vezes – nas semanas de fechamento – entrando pela madrugada. Era assim mesmo: Maurício não reclamava, simplesmente porque esta publicação era a sua paixão. É a minha também. Acho que, por isso, a química funcionou tão bem. E isso refletiu na qualidade do jornal, elogiada por grandes nomes de nossa imprensa.

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Page 1: Jornal da ABI 394

394OUTUBRO

2013

ÓRGÃO OFICIAL DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE IMPRENSA

FRANC

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2 JORNAL DA ABI 394 • OUTUBRO DE 2013

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

03 DEPOIMENTO - O calvário de Álvaro

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

08 PRÊMIO - A bandeira do bom jornalismo

09 HOMENAGEM - A Memória e o Silêncio

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

por Rodolfo Konder

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

10 RARIDADES - Um tesouro nem tão escondido assim

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

12 CAMPANHA - O petróleo como combustível nacional

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

17 OPINIÃO - Ley de Medios, um exemplo a seguir

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

18 HISTÓRIA - A Carta da Liberdade, 25 anos depois

20 DEPOIMENTO - “Meus filhos foram

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

criados por meus inimigos”

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

22 REFORMA - Impasse lusitano

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

24 INTERNET - Abril abre espaço para o digital

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

25 LANÇAMENTO - Revirando o velho baú de Pessoa

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

26 CENTENÁRIO - Os sabores de Moraes

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

28 PERFIL - Mário? Que Mário?

29 MANIFESTAÇÕES - Black Blocs: simples

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

modismo ou real ameaça?

SEÇÕES

140LIBERDADE DE IMPRENSA

Conferência aponta entraves

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

ao jornalismo investigativo

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

15 Jornalistas agredidos, coberturas ameaçadas

16 DIREITOS HUMANOS

Páginas de um luta comovente,

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

que novamente fazem história

VIDAS

30 Canini, O desenhista do

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

Brasil nos quadrinhos

31 Norma BengellA estrela salta das telas

○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

para as páginas

DESTAQUES

O FIM DE UMA ERAEDITORIAL

FRANCISCO UCHA

COMO ESCREVER NESTE espaço, ocupadocom maestria nos últimos anos pelo imen-so talento de um dos textos mais elabora-dos da imprensa brasileira? Como descre-ver a solidão da perda deum companheiro de traba-lho absolutamente apai-xonado pelo ofício de re-portar notícias? É verda-de: fizemos uma boa du-pla desde que comecei aproduzir o Jornal da ABI,em abril de 2005, na edi-ção de número 299. Forammais de oito anos traba-lhando incessantemente,muitas das vezes – nassemanas de fechamento –entrando pela madrugada.Era assim mesmo: Maurí-cio não reclamava, simplesmente porque estapublicação era a sua paixão. É a minha tam-bém. Acho que, por isso, a química funcio-nou tão bem. Não havia discussão, o traba-lho sempre fluía perfeitamente. Em todos essesanos, ele nunca fez qualquer tipo de imposi-ção de suas idéias, desmentindo todos aque-les que o classificavam como turrão. Não, eleera doce, de fino trato. Sempre houve umrespeito profissional mútuo. E isso refletiuna qualidade do jornal, elogiada por grandesnomes de nossa imprensa.

MAS MINHA AMIZADE com Maurício Azêdonão começou há tão pouco tempo. Foi em1976 que o conheci. Ele havia chegado aoJornal do Commercio, do Rio de Janeiro, jun-tamente com uma equipe de craques daimprensa, com a missão de renovar o diárioque se encontrava decadente. Junto com ele,chegaram Aziz Ahmed, Antônio Calegari,Carlos Jurandir, entre outros. E eu, que ti-nha sido contratado havia poucos meses,depois de um período de estágio, fui contem-plado com a maior das sortes: trabalhar (eaprender) com esses grandes nomes da im-prensa. Eu era um dos diagramadores. ComCalegari, aprendi o refinamento e a precisãodessa profissão. Com Maurício, aprendi aeditar e a ficar encantado na presença de umbom texto. Foi um privilégio ter mestres comoeles. E eu ainda nem havia terminado a facul-dade. Não importava: quem tinha companhei-ros desse naipe não precisava de tantos pro-fessores. Aprendia, sobretudo, na Redação.

MUITO TEMPO DEPOIS soube que no anoem que nos conhecemos, Maurício Azêdo ha-via sido preso no Doi-Codi e barbaramentetorturado pelos monstros que hoje se escon-

dem atrás de uma questi-onável Lei da Anistia.Afinal, torturadores po-dem ser anistiados? Hácoisas que só acontecemno Brasil! Mas, como elemesmo dizia, fora salvopelo então Presidente daABI, Prudente de Moraes,neto, que não mediu esfor-ços para livrá-lo das gar-ras de seus algozes. Certavez ouvi Maurício confi-denciar que devia sua vidaà ABI – fato que ajuda aentender sua opção por se

dedicar por inteiro à Casa dos Jornalistas.Mesmo com tantas decepções, continuou sualuta para renovar a instituição. Sempre foiavesso ao culto da personalidade. Não ad-mitia se promover usando a publicação queeditava. Por isso, tive que manter segredo totalquando a equipe do Jornal da ABI decidiupublicar matéria sobre ele na edição especi-al comemorativa do centenário da ABI.Afinal, seria injusto falar de todos os prin-cipais Presidentes e não falar daquele queorganizou a grandiosa festa dos 100 anos.Maurício só tomou conhecimento daquelareportagem, publicada no número 336, desetembro de 2009, depois de o jornal impresso.E a primeira coisa que fez ao ler o próprioperfil foi... fazer a revisão!

ESTE NÚMERO DO Jornal da ABI ainda tevea sua participação. Pautas como a da Bibli-oteca da ABI (publicada na página 10) e dacampanha O Petróleo é Nosso (página 12)foram, como de costume, entusiasticamen-te sugeridas por ele. No Caderno Especial emsua homenagem republicamos o desenho deRogério Soud na capa e um artigo de seu grandeamigo, Sérgio Cabral, na última página. Foium prazer trabalhar ao seu lado por todosesses anos – e profundamente triste fazer estaedição. Perdi um mestre, um amigo, um com-panheiro de ofício. A solidão, que se fez tãopresente neste fechamento, é claro, não esta-va na pauta. E ela determina não só o iníciode um novo e doloroso esquema de produ-ção. Marca, em definitivo, o fim de uma era.

D.QUIXOTE,UMA RARIDADE NABIBLIOTECA DA ABI,PÁGINA 10

CACTUS KID, SÁTIRACRIADA POR CANINI.

PÁGINA 30

PAU

LO SILVA

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3JORNAL DA ABI 394 • OUTUBRO DE 2013

DEPOIMENTO

pós alguma insistência, a entrevista foimarcada, confirmada. O endereço, pormais contraditório que pareça, fica numquarteirão tranquilo, próximo à Rua To-

nelero, em plena Copacabana. É começo da noite,quinta-feira e Álvaro Caldas me aguarda. O inícioda conversa já é quente. Prisão. Tortura. Assassi-natos. Arbitrariedades cometidas pelo regime mi-litar, enfim. Como era de esperar de quem passoupor tudo o que já viveu, ele parece um pouco des-confiado, reticente. Nos momentos mais tensos,fala baixo. Quase sussurra. Mas, a bem da verda-de, jamais desconversa. Nada esconde.

Foi assim que transcorreram as quase duas ho-ras de papo com o jornalista Álvaro Caldas, quededicou boa parte de sua vida a duas grandes pai-xões. A primeira delas, o Jornalismo – este mes-mo, com letra maiúscula – que exerceu em gran-des veículos e como colaborador em publicaçõesalternativas como Opinião, Movimento, Pasquim eEm Tempo. A segunda, a militância política nos pe-sados anos de chumbo, lhe custou duas passagensaterrorizantes pelo Doi-Codi, no Rio de Janeiro.O mesmo prédio que visitou em setembro desteano, agora em missão de reconhecimento, comomembro da Comissão da Verdade do estado. Estátudo aqui, nas próximas páginas. Uma entrevis-ta que reconstitui uma viagem para além de fan-tástica. Desconcertante, reveladora.

POR PAULO CHICO

Membro da Comissão da Verdade doEstado do Rio de Janeiro e autor do livro

Tirando o Capuz, o jornalista Álvaro Caldasremexe em suas memórias e fala da batalha

pública pelo esclarecimento dos crimescometidos na Ditadura Militar.

A

JOSÉ D

UA

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4 JORNAL DA ABI 394 • OUTUBRO DE 2013

Jornal da ABI – Gostaria de co-meçar pelo fato mais recente. Nodia 23 de setembro, você parti-cipou da visita da Comissão daVerdade à antiga sede do Doi-Codi, hoje Batalhão da Polícia doExército, na Rua Barão de Mes-quita, na Tijuca. Você estavaacompanhado de parlamentares.Imagino que esse reconhecimen-to deve ter te marcado bastante,já que você por duas vezes este-ve preso no local durante a dita-dura militar. Qual foi a sensaçãode voltar àquele lugar?

Álvaro Caldas – Eu passei por láa primeira vez quando eu fui presocomo militante pelo PCBR (PartidoComunista Brasileiro Revolucioná-rio). Muita gente acha que eu fuipreso como jornalista, mas na ver-dade eu fui preso como militante.Na época, eu já trabalhava no Jor-nal do Brasil, era repórter especial dapublicação, já tinha uma carreiraconsagrada, um certo nome apóster passado também pelo O Globo.Na época eu tinha essas duas pai-xões, a política revolucionária e o jor-nalismo em si.

Jornal da ABI – E essa primeiraprisão foi em que ano?

Álvaro Caldas – Isso foi em feve-reiro de 1970. Fui identificado porum companheiro que havia sidopreso, passei a ser procurado e, deuma hora para outra, precisei largartudo para viver na clandestinidade.Minha esposa, a Sueli Caldas, queé jornalista e era militante também,estava grávida na época da minhafilha Claudia. E, num dia, eu fuipego na rua e preso sob a acusaçãode ser militante do PCBR e levado aoDoi-Codi. Havia uma acusação deenvolvimento em um assalto a ban-co feito pelo PCBR...

Jornal da ABI – Você, de fato, haviaparticipado da ação?

Álvaro Caldas – Não, eu não par-ticipei, mas o meu carro particularfoi usado em uma parte da opera-ção de assalto ao banco. O carro uti-lizado na ação normalmente eraquase sempre roubado, tinha placafria e, após a ação, os militantes iamtrocando de carro para despistar ospoliciais. Um policial percebeu essatroca, houve uma troca de tiros,uma pessoa foi presa e o meu carroapreendido. Tanto tempo faz isso...E veja você, eu já morava aqui, nesteapartamento...

Jornal da ABI – Assim, você aca-bou preso pela primeira vez...

Álvaro Caldas – Nesta mesma noi-te eu acabei preso e, no Doi-Codi, pas-sei por torturas sistemáticas: choqueselétricos, pau-de-arara, nudez... A tor-tura sempre começa pela nudez...

Jornal da ABI – Que é para fragi-lizar ao máximo a vítima...

Álvaro Caldas – Fiquei ali maisde dois meses. Foi quando eu tive a

E eu descrevendo o que tinha acon-tecido naquelas salas.

Jornal da ABI – E qual a reaçãodeles?

Álvaro Caldas – Houve um silên-cio total.

Jornal da ABI – Mas um silêncioque denotava o quê? Constran-gimento?

Álvaro Caldas – Um misto de ver-gonha e respeito. Até por que estesoficiais, pela idade que aparenta-vam, cerca de 50 anos, não tiveramnada a ver com aqueles fatos. Paraeles foi uma revelação estupenda, deum ex-preso político. E o pessoal daComissão perguntando o que acon-tecia naquelas salas. E na época emque eu estive preso o Doi-Codi esta-va lotado. Eu fui preso junto com oRenê de Carvalho, que é filho do Apo-lônio de Carvalho, que já tinha pas-sado por lá. E, nesta sala de esperaonde eu fiquei com ele, nós ouvía-mos gritos, chutes. Levaram pri-meiro ele para a sala de tortura, jáque ele pertencia ao comitê centraldo partido, tinha uma patentemaior do que a minha na organiza-ção. Eu fui em seguida e o vi arras-tado, ferido, sendo colocado parafora e fiquei imaginando o que se-ria feito comigo. Tudo isso me veioà memória ali e eu narrei isso paraos parlamentares. Tive que pararalgumas vezes.

Jornal da ABI – Quase que um guiaturístico do terror. Você chorou?

Álvaro Caldas – Não cheguei achorar, mas a minha emoção foimuito forte. Um dos oficiais me ofe-receu água inclusive, por que perce-beu o quanto eu estava tocado poraquele momento. Desta primeiravez, fiquei ali 70 dias. O processo era

você entrar e ser torturado para for-necer informação imediata. Então,passada esta fase, você fica analisan-do todas as possibilidades que po-dem te ocorrer, sem ter muita noçãodo tempo em que está ali. Se pergun-tando, às vezes, o que pode ou nãopode dizer durante os interrogató-rios. Se bem que isso é, quase sem-pre, uma decisão muito subjetiva.

Jornal da ABI – Você chegou a de-latar alguém da sua organizaçãoneste período?

Álvaro Caldas – Genericamente.Aquilo ali era um jogo cujo preço éa dor, a humilhação, você tem quemediar a sua resistência. Na verda-de, ninguém quer sair dali comoherói. Quer, tão somente, preservaro mínimo de sua dignidade. Até porque você sabe que naquele processovai acabar falando alguma coisa,mas tenta não ultrapassar um limi-te oral, ético. Mas, não é um julga-mento político-ideológico, não. Ge-

oportunidade de identificar o pré-dio onde estava. Eles ainda não ti-nham iniciado a prática de encapu-zar os prisioneiros, então eu seionde fui torturado, a sala, o corre-dor. E nesta visita do dia 23 eu pudeidentificar perfeitamente ondetudo aconteceu. Era um prédio uti-lizado para o PIC, o Pelotão de in-vestigações Criminais, que era umórgão de repressão interna, que éuma das tarefas do Batalhão da Po-lícia do Exército (PE), onde está oDoi-Codi. O prédio continua lá. Elenão está exatamente a mesmacoisa, mas continua a ser umaconstrução de dois andares, que re-conheci imediatamente. Engraça-do é que eu fui guia do grupo que en-trou, da Comissão da Verdade.Comigo estavam nomes como oWadih Damous, Presidente daComissão, a Jandira Feghali, o Ran-dolfe Rodrigues e a Luiza Erundina.Como a única pessoa que tinhaestado ali, eu fui o guia. E eu tinhasempre muito medo de passar poraquela área.

Jornal da ABI – Como foi a sen-sação de guiar os parlamentarespelas dependências de um prédioonde você foi torturado?

Álvaro Caldas – Eu senti umaemoção muito forte, um tremor aovoltar ali, por que eu tinha umaidéia da entrada, das salas de co-mando do Doi-Codi, do corredor,onde tinham quatro celas, que eramsalas, por que não tinham grades.A última delas, que nós identifica-mos como sala roxa, era a sala datortura. Um grupo de oficiais doExército nos acompanhou duran-te a visita. O comandante do Ba-talhão da PE, dois oficiais do Esta-do Maior e três oficiais do Coman-do Militar do Leste, todos generais.

neralizar e dizer que não sei quem re-sistiu calado por ideologia é uma to-lice... Porra nenhuma! Cada um so-fre à sua maneira.

Jornal da ABI – E nestes setentadias em que você ficou preso, oque você viu de pior dentro do Doi-Codi?

Álvaro Caldas – Passada a fase ini-cial, eu fiquei em uma cela individu-al, num corredor longo, onde ficavamos presos ainda ‘disponíveis’ para atortura. E aí de repente vinha al-guém, falava de mim e eu era leva-do para um local onde, deitado, euvia o corredor, quem chegava e saía.Você fica ali duas noites, dois dias,perde a noção de tempo e o cara dizque vai te buscar em três horas paravocê ser novamente interrogado.Então, você imagina o terror psico-lógico desta situação. Depois queeles esgotavam estas possibilidades,nós subíamos onde tinha uma celamuito grande, onde ficavam as pes-soas que já haviam passado poraquilo. E lá era um local de alegria,de confraternização, onde você en-

contrava pessoas co-nhecidas, que te ofereci-am uma escova de den-tes. Você tinha uma sen-sação de alegria. Lá euencontrei companhei-ros como o Marcão, oAlcir, o próprio Fernan-do Gabeira passou porlá, muita gente da mi-nha organização. Nes-ta cela grande eu fiqueiquarenta dias. De vezem quando me chama-vam para perguntaralgo mas a tortura, porsi só, cessou ali. Haviaporrada, empurrões,ameaças, mas a tortu-ra em si como métodoinstitucionalizado ces-sou após a minha trans-ferência para esta cela

maior, cerca de um mês depois queeu cheguei ao prédio. O que vi depior foram o ambiente, a opressãoque você sente e a total falta de di-reitos e garantias, como se você es-tivesse em um Estado totalitário.Você não tinha direito a advogado,nem visitas, nem comunicação comos amigos. Era um Estado ditatori-al, arbitrário, com plenos poderessobre você e a sua família.

Jornal da ABI – E como é que de-cidiram te soltar?

Álvaro Caldas – Eu já tinha de-posto no inquérito e eles precisa-vam daquele espaço para renovar asentradas. Eu cheguei a pegar o iní-cio de uma reforma, eles melhora-ram as instalações. As celas come-çaram a ser mais adaptadas à situa-ção que o Doi-Codi exigia. Por queantes aquilo era para soldado. Entãoeles construíram celas fechadas,com cadeado. Então, eu e um gru-po, uns dez presos, fomos tirados da

TÂNIA RÊG

O/AB

R

Álvaro Caldas, cercado por parlamentares e jornalistas, durante a visita da Comissão da Verdade à antiga sede doDoi-Codi, na Rua Barão de Mesquita, no Rio de Janeiro. Abaixo, numa foto logo após sair da prisão, em 1973.

ACERVO

PESSOAL

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cela maior e transferidos para estasmenores. Naquele local eu fiqueipoucas horas. Assim que entrei mesenti muito mal, pois eu tenhoclaustrofobia. Eu comecei a entrarem desespero e, para minha sorte,logo que eu fui para esse local entrouo Cabo Gil, que era muito famosopor lá e mandou eu juntar o que te-nho para sair e ir para o Dops. Ali eufiquei pouco tempo, uma semana,dez dias. O Dops, que ficava na Ruada Relação, era o oposto do Doi-Codi, nesta época. Ali era um localde prisão, mas não havia tortura.Foi um momento de alegria por queencontrei outros presos conhecidose havia possibilidade de visita, do ad-vogado conversar contigo e nãohavia tortura. O delegado inclusiveera muito humano. Lá eu encontreiminha esposa e, inclusive, um dosmotivos de eu ter sido mais tortu-rado foi o fato de que, embora eutivesse combinado com ela um ho-rário para voltar para casa, quandoeu fui preso, em Irajá, eu tinha avi-sado a ela que se não retornasse atédeterminado horário, ela deveria sairdo local e ir para a casa da mãe. Eujá vivia clandestino, numa pensãona Lapa. Eu segurei a barra e não dis-se onde eu morava realmente paranão chegarem até ela. E eles vão in-vestigando e acabam descobrindo. E,por infelicidade ou não, eu acabei en-contrando ela no Dops. Ou seja, elanão cumpriu o combinado...

Jornal da ABI – Você não retor-nou pra casa no horário espera-do e ela permaneceu lá, te espe-rando...

Álvaro Caldas – Isso! Ela estavapresa no Dops, mas não passou peloDoi-Codi, já que os militares tiverama preocupação de preservá-la. Ela ti-nha acabado de dar à luz à nossa filhae sabiam que o envolvimento dela naorganização era muito pequeno.

Jornal da ABI – Voltando a falarda recente visita que teve vocêcomo guia, como viu o episódiodo Deputado Jair Bolsonaro, mi-litar reformado, empurrando oSenador Randolfe Rodrigues,membro da Comissão da Verdade?

Álvaro Caldas – Aquilo foi umaprovocação. Ele anda armado, né?E causou um impacto muito grandee deu à visita uma dimensão quetalvez não tivesse – não fosse aque-le fato. Por que a mídia tem cober-to a Comissão da Verdade com pou-co entusiasmo, inclusive.

Jornal da ABI – O que explica isso?Álvaro Caldas – Atualmente nós

estamos reduzidos a três grandesempresas de comunicação, famili-ares, todas elas envolvidas com a di-tadura – Globo, Folha e Estado. To-das elas de formas diferentes, massendo que O Globo foi quem mais seenvolveu com a ditadura. Já houveaté um processo de reconhecimen-to público de que eles apoiaram o

regime. Mas a presença do Bolsona-ro foi exatamente isso. Um soldadonos disse que, pelo fato de ele ser par-lamentar, não poderia impedi-lo deentrar ali. Mas nós dissemos que co-nosco ele não entraria, por que nadatinha a ver com a Comissão. Nos-sos nomes foram apresentados aoExército para aquela visita, de for-ma prévia.

Jornal da ABI – O Bolsonaro ain-da causa certa ressonância emsegmentos da sociedade?

Álvaro Caldas – Acho que sim,naquele segmento que apoiou ogolpe, que acha que só os militarespodem resolver a questão que en-frentamos atualmente.

Jornal da ABI – Além disso há aquestão das crenças históricasdistorcidas... Tem gente que achaque durante a ditadura no Brasilnunca houve tortura! Que nuncaexistiram os campos de concen-tração na Segunda Guerra...

Álvaro Caldas – É por isso que ésaudável o que estamos fazendo,identificar os locais de tortura, osagentes do Estado que torturavam,pedir o tombamento destes locaispara a construção de Centros deMemória. Durante muitos anos sefalava em tortura no Brasil e as pes-soas se lixavam. Agora eu acho queestamos conseguindo reverter isso.

Jornal da ABI – Existe uma co-missão sendo formada tambémpelo Sindicato dos Jornalistasdo Rio. A nossa classe foi real-

mente uma das mais atingidaspela repressão?

Álvaro Caldas – Não necessaria-mente. Mas os sindicatos nos esta-dos estão seguindo uma recomenda-ção da Federação Nacional dos Jorna-listas (Fenaj) e criando suas própri-as Comissões da Verdade. Eu não seicomo anda isso. Eles estão iniciandoeste processo, que visa apurar crimescontra jornalistas, censura, além docomportamento da mídia na época.Elas não têm apenas como objetivoverificar os torturados e locais de tor-tura, mas também as práticas de vi-olações de direitos humanos, de cas-sação de direitos políticos. Eu achoque os militantes em geral eramparte jornalistas, economistas, his-toriadores, sociólogos, profissionaise estudantes destas áreas. Gente dePsicologia. Os jornalistas, em suamaioria, não foram presos por cen-sura ou por escreverem artigos con-tra o regime, mas por envolvimentona luta bélica.

Jornal da ABI – Como era a suamilitância no PCBR? Era bem di-ferente do JB?

Álvaro Caldas – Não existia essasegmentação. No JB nós tínhamosuma equipe maravilhosa, com o Al-berto Dines no comando do jornalis-mo, Carlos Lemos na direção de Re-dação, José Silveira como redator che-fe – era a fase de ouro do JB. Era ojornal que todo jovem que se preten-dia jornalista desejava trabalhar. Erao mais respeitado, conhecido e omelhor jornal. A minha militânciaera planejar ações, panfletagem, dis-

cussão política e foi um momentoem que o partido estava assumindoum viés de luta armada mais defini-do. Havia uma disputa entre as or-ganizações muito grande para coop-tar os jovens e disputas ideológicas.Os grupos se dividiam e rachavam.Nós rompemos com o Partidão. Partedo meu grupo foi para o PCBR eparte para o PCdoB. Outros forampara a União das Organizações Ar-madas. Uma das discussões que nóstínhamos era se a etapa que se segui-ria à revolução que nós queríamos fa-zer seria socialista ou não. Estatizartudo ou não. E o PCBR defendia umaetapa transitória, com um governopopular revolucionário que abarcariasetores da burguesia progressista.Isso causou uma divisão incrível.

Jornal da ABI – Você chegou a co-nhecer a presidenta Dilma Rous-seff na militância?

Álvaro Caldas – Na militância,não. Dilma era casada com CarlosAraújo – e eu o conhecia de nome.Como eu estive na dissidência du-rante muitos anos, eu o conhecia denome, mas nunca havia estabeleci-do contato com eles. Nós tínhamosum código de segurança de nãomanter contato pessoal com mili-tantes de outras organizações, porque por vezes este contato levava arepressão até nós. Depois que eu saída prisão, fiz uma viagem com aminha esposa e com uma amiga.Nós fomos ao Uruguai de carro epassamos por Porto Alegre. Aí fize-mos contato com o Araújo e com aDilma, que eram militantes da VAR-Palmares e nos receberam em casa.

Jornal da ABI – E que tal este con-tato? Que impressão deixou?

Álvaro Caldas – Olha, não foi umcontato muito profundo, mas elesforam muito simpáticos. Existiauma solidariedade muito grandeentre ex-presos políticos. Nós está-vamos, todos nós, em um proces-so de auto-crítica de nossos erros.Eu comecei a refletir sobre isso ain-da na cadeia.

Jornal da ABI – Quais foram oserros da militância?

Álvaro Caldas – Nós não admití-amos questionamentos, como se arevolução fosse algo pautado paraacontecer. E, além disso, era um pro-cesso apaixonante. No mundo emque vivíamos, Cuba vivia uma revo-lução. Era uma coisa mística fazera revolução aqui no Brasil e nós achá-vamos que ela era inevitável. E ha-via esse clima de transformação, deluta. E tanto a Dilma quanto oAraújo compartilhavam da mesmasensação. De lá nós fomos paraMontevidéu, deixamos até o carrocom eles e na volta passamos maisrapidamente para pegá-lo.

Jornal da ABI – Também recen-temente, você apareceu no Jor-nal Nacional, da TV Globo, emuma matéria sobre a Comissão,em que aparecia o depoimento domilitar Dulene Aleixo Garcez,que se negou a falar. Como é re-encontrar aquela pessoa e chegara esse ponto de ele comparecerpara não falar nada? Isso não éfrustrante, não?

Álvaro Caldas – É frustrante. Porque, na época, ele tinha superpode-res, sobre-humanos, sobre a minhavida. Eu sobrevivi, mas muitos mi-litantes não sobreviveram. Inclusiveo Mário Alves, que morreu lá noDoi-Codi, nas mãos do Garcez, umpouco antes de eu chegar. Ele era se-cretário-geral do PCBR. A sessão delefoi presenciada pelos presos que es-tavam lá. Ele foi identificado comosecretário-geral do partido e acabou.Não precisou falar mais nada. Gar-cez foi muito presente na minhatortura. No Doi-Codi havia umapermanência de torturadores e de-

“Aquilo ali era umjogo cujo preço é ador, a humilhação,

você tem que mediara sua resistência.

Na verdade, ninguémquer sair dali como

herói. Quer, tãosomente, preservaro mínimo de sua

dignidade.”

JOSÉ D

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pois trocava. No meu livro – Tiran-do o Capuz – eu conto tudo isso, douos nomes desses caras. E olha que fizesse livro ainda numa época quen-te, no início dos anos 1980...

Jornal da ABI – E o Garcez tevepapel de destaque...

Álvaro Caldas – Ele foi o cara maisabjeto, mais asqueroso, mais provo-cador, mais destruidor em minhassessões de tortura. Sentia prazer na-quilo, era indisfarçável. Eles tinhamódio de comunistas, terroristas. Masnuma sessão dessas que passa natelevisão, mesmo em que ele nãofale nada, rende a identificaçãopública do torturador perante a so-ciedade. Vai ver que o filho dele nãosabe da história do próprio pai. Porque ele é um oficial do Exército. Voute contar uma história. Eu tive umcontato inusitado com ele por queo meu carro foi levado ao Doi-Codina época. Era um fusquinha, cha-mado de ‘Gigante da Colina’, em ho-menagem ao Vasco, que é o meutime. Eu ainda estava pagando porele. Então, eu fui levado ao pátio doquartel e o Garcez, que era coman-dante do Doi-Codi, se dirige a mime diz: “Além de subversivo é tram-biqueiro”. Eu perguntei o que hou-ve. Ele falou que eu não havia pagoo carro e eu respondi que não podiafazê-lo, pois estava preso. Destaforma, emitiram um mandado debusca e apreensão para levar o carrode volta. E quem assinou este docu-mento em nome do Departamentofoi o próprio tenente Garcez. E euperdi o carro!

Jornal da ABI – Essa história nãofoi resgatada no dia do depoimen-to à Comissão?

Álvaro Caldas – No dia da sessão,o Wadih perguntou se ele reconhe-cia a assinatura e a resposta foi amesma dada a todas as outras per-guntas: “nada a declarar”. Mas foiuma grande vitória ter feito ele sairde casa e se expor, até por que naprimeira convocação ele não foi. Jáhavia faltado um convocado, o ma-jor Jacarandá, do Corpo de Bombei-ros, que era um agente com menorinfluência na ditadura. Mas estemajor esteve na tortura e eu o reco-nheci. Aí nós utilizamos a PolíciaFederal para intimá-los sob pena deserem presos. E eles tentaram evi-tar que a imprensa tivesse acesso àsessão, mas não conseguiram, ape-sar da imprensa ter feito poucas ima-gens. A sessão é pública! E eu o con-frontei, assim como já havia feitocom o major Jacarandá.

Jornal da ABI – Perante a Lei estesagentes são, de fato, inimputáveis?

Álvaro Caldas – Eles estão anis-tiados. O Brasil criou esta lei, queanistiou tanto os militantes quan-to os torturadores. E o Supremo Tri-bunal Federal ratificou esta anistia re-centemente. Para mudar teria quehaver uma pressão da sociedade, con-

trária a esta lei. Então, o que pode-mos fazer de concreto é revelar estaverdade – e depois poderão ocorrerações individuais. Um procuradorfederal já abriu um processo, parafugir da anistia, acusando os tortu-radores de ocultação do cadáver, queé um crime que não prescreve na le-gislação brasileira. Esse foi o caso doMário Alves, cujo corpo desapareceu.

Jornal da ABI – Há quanto tem-po você está na Comissão da Ver-dade do estado do Rio de Janeiroe que balanço faz dos trabalhosaté agora?

Álvaro Caldas – Eu estou desde oinício da Comissão, em março des-te ano, e faço um balanço muitopositivo. Nós temos um grupomuito homogêneo, traçando umparalelo com a Comissão Nacional,onde dois membros já saíram. Aquinós temos o Wadih Damous, Presi-dente da Comissão, o advogadoMarcelo Cerqueira, Nadine Borges,advogada, Geraldo Cândido, que éum ex-líder sindical e foi senador nolugar da Benedita da Silva, o JoãoDornelles, pesquisador da PUC-Rioe a Eny Moreira, advogada e Presi-dente e fundadora do Comitê Bra-sileiro pela Anistia, que está afasta-da por questões de saúde. Nós dis-tribuímos tarefas de acordo com operfil de cada um. Temos uma reu-nião semanal, mas eu estou lá to-dos os dias, pois recebemos muitassolicitações desde que a criação daComissão foi divulgada. Estas pes-soas se sentiam intimidadas, ti-nham medo de aparecer e agora sesentiram dispostas a isso. Foramencorajadas a falar. Estão falando,relatam desaparecimentos de con-jugues, filhos, sobrinhos, em núme-ro surpreendente. Isso tomou omeu universo, estes fantasmastodos voltaram a me ocorrer.

Jornal da ABI – E como você lidacom isso? Por exemplo, com ofato de eu estar aqui, agora,dentro de sua casa, fazendo per-

guntas tão íntimas sobre aque-le período?

Álvaro Caldas – Isso é muito pes-soal. Muitas das pessoas que pas-saram por tortura procuram esque-cer. Muita gente ficou abalada men-tal e fisicamente. Alguns saem doprumo, têm problemas no trabalhoe acabam marginalizados. Um de-les eu chamei para depor por que ha-via depoimentos de torturadores etestemunhas. E essa pessoa disseque ficou destruída pela tortura e seachou discriminada por nós, porque teria sido acusada de ter faladomais do que devia. Uma pessoa des-sas expiar isso tudo é muito saudá-vel. Eu sofri isso quando escrevi meulivro, em 1984. Fiz minha análise alie as coisas estavam muito frescas naminha cabeça. Eu aluguei uma casaem Arraial do Cabo nas férias dojornal, nesta época eu estava naFolha de S.Paulo, e mandei brasa.Passei minhas férias nisso. Botei ogrosso para fora neste tempo. Nãofoi difícil de escrever por que estavatudo muito fresco – e eu sei escrever.A dificuldade maior foi em relação aocapítulo que abre o livro. Relativo àminha segunda prisão quando eufui sequestrado, em 1973, tal a bru-talidade que isso aconteceu. E eu nãoconsegui narrar em primeira pessoa.Fiz várias tentativas e não saiu. De-pois eu descobri que deveria narrar emterceira pessoa. Por que tem um tomsurrealista que dá início ao que euchamo de ‘uma fantástica viagem’.

Jornal da ABI – Como foi essa se-gunda prisão?

Álvaro Caldas – Eu fui sequestra-do em casa, aqui mesmo nesteapartamento que, para eles, na ver-dade, era um ‘aparelho’. Depoisque saí da prisão – após minha pri-meira incursão pelo Doi-Codi e darápida passagem pelo Dops, fuitransferido e fiquei dois anos e meiodetido na Vila Militar, transforma-da em carceragem. Aquele era umlocal de aguardar o julgamento naJustiça Militar. Fui preso em mar-

ço de 1970 e saí no final de 1972.Bom, de lá eu saí completamentequeimado para as Redações e os jor-nais tinham um certo temor de mecontratar. Eu trabalhava no Jornaldos Sports na época, já que quandoeu saí da prisão pela primeira vez,fui muito bem recebido no JB, ondeera um repórter consagrado, masnão me ofereceram emprego lá. Aío José Trajano, da ESPN, que tinhatrabalhado comigo no JB e editavao JS, me abrigou. Eu gosto de espor-tes e não tinha problema com isso.Um dia ligam em casa e quando euvou atender desligam. Meu filhoLeonardo tinha sete anos, abre aporta e dá de cara com um grupoarmado, é empurrado para dentro equando eu vejo sou sequestrado porum grupo ditatorial. Tudo monta-do. Minha esposa reage, perguntaem nome de quem eles estão meprendendo! Eles respondem que nãoestão prendendo em nome de nin-

guém e que iriam me levar. E melevaram de bermudas e chinelo, exa-tamente como estava vestido nomomento da invasão. E aí eu douinício a essa viagem fantástica. Levomuita porrada no caminho para lá,agachado que estava sob o piso dobanco traseiro do carro, sendo pisa-do, sufocado. Com os olhos venda-dos. E eles perguntando para ondeeu tinha viajado. Aí paramos emuma praia, próximo a São Conrado,e eles iniciam uma sessão de panca-daria – com chutes, pontapés, cas-setetes. Tanto que eu saí destruído– existe até uma imagem que umfotógrafo do JS conseguiu fazer domeu rosto machucado. Uma coisaé você ser preso como militante, ouseja, você sabe o que está fazendo,que poderia ser preso. Naquela situ-ação eu não sabia por qual razão es-tava sendo preso. Foi claramenteum artifício utilizado pelo Estadopara combater quem estava contraeles, mesmo eu não estando maisna militância. Depois desta sessãode tapas eu fui levado para o Doi-Codi – três anos depois de ter pas-sado por lá. Era abril de 1973. Soucolocado em uma sala que eu ima-gino ter sido a mesma das primei-ras torturas, só que modernizada,com novos equipamentos. Eles que-riam que eu revelasse alguma coisasobre a organização, mas eu nãosabia de mais nada, estava traba-lhando, quieto. Queriam saber deuma suposta viagem que eu teriafeito, da qual eu não tinha a menoridéia.

Jornal da ABI – E você descobriuque viagem, afinal, teria sido essa?

Álvaro Caldas – No livro que euescrevi há detalhes disto. Eles meacusaram de ter participado de umaação fora do Rio. Eu argumentei quena época eu cobria o Botafogo parao JS e solicitei que eles confirmas-sem dentro do clube. Eles foram atéo Botafogo, e você acredita que elesprenderam o Leônidas da Silva paraaveriguar a história, e o liberaramlogo em seguida? Eu fiquei umasemana lá na cela podendo somenteir ao banheiro e, mesmo assim, deforma limitada. Meu carcereiro umavez me disse, quando eu pedi parair ao banheiro: faça tudo o que o se-nhor tiver que fazer por que issoaqui não é um hotel. Como estavadesaparecido, todos os meus fami-liares ficaram muito preocupados.O pessoal do jornal também. Aí eufaço outra viagem, de táxi, adapta-do por eles, que me deixa no 3º Co-mar, ao lado do Aeroporto SantosDumont. E eu já tinha tido conta-to com o oficial que estava encarre-gado do meu caso. Ele estava lá edisse que íamos fazer uma viagempara o Sul. Eu perguntei o que iriaacontecer e ele me disse que eu seriaidentificado. Entramos em um ja-tinho da FAB e descemos no aero-porto, um carro esperando, entroem uma cela, um local sujo. Come-

“Meu filho Leonardotinha sete anos, abrea porta e dá de cara

com um grupoarmado, é empurradopara dentro e quando

eu vejo sousequestrado por umgrupo ditatorial.Tudo montado.

Minha esposa reage,pergunta em nomede quem eles estãome prendendo! Elesrespondem que nãoestão prendendo emnome de ninguém eque iriam me levar.”

ALCYR C

AVALCAN

TI

Álvaro Caldas depõe naComissão Estadual da

Verdade, na Alerj, sobreo caso Mário Alves.

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çaram a me bater e me deixaramnum sala escura. Eu estava me pre-parando para a tortura, mas ela nãoveio. Daqui a pouco me resgatam eme levam para uma sala com umajanela na frente. É quando a minhaficha cai. Eu estava ali para ser re-conhecido... E aí eu perguntei qualseria o resultado daquilo, caso aminha irreal participação no episó-dio investigado por eles se confir-masse. Não obtive resposta.

Jornal da ABI – E para qual ci-dade você foi? Conseguiu iden-tificar?

Álvaro Caldas – Recife. O ‘Sul’ erano Recife (risos). Eles suspeitavamde que eu havia participado de umaação, fora do Rio. E eu tentava melembrar de tudo o que tinha feito noperíodo da tal ação, que nem sabiaqual era... Chegaram a raspar o meucavanhaque, e a pessoa que aponta-va a minha participação dizia: “é elesim, que deixou crescer o cavanha-que para tentar se disfarçar!”. E temoutra história. Quando eu fui aRecife trinta e seis anos depois dis-so, também para identificar o locale colocar estas impressões no meupróximo livro. Eu tinha certeza quea cidade era Recife, quando chegueilá vi onde eu fui preso. Esta históriaestará mais detalhada no livro que euvou lançar em breve.

Jornal da ABI – O livro deve sairquando?

Álvaro Caldas – Ele já está pron-to praticamente. Foi feito primei-ro para participar de uma seleçãopara o Programa Nacional de Bibli-oteca Escolar. Eu tenho um amigoque é editor que vende livros dentrodeste programa. O programa sele-ciona o livro e imprime cinquentamil exemplares...

Jornal da ABI – E como terminaa história de Recife?

Álvaro Caldas – Bom, eu aindadurmo lá à noite e este oficial metraz de volta, me deixa na BaseAérea, me coloca no avião, no carrodeles, dá um giro e me manda parao Rio. Digo que estou ‘duro’ e ele medá um dinheiro para eu ir para casa.Cheguei em casa e causei umaimensa surpresa, já que todos acha-vam que eu estava morto, corpo de-saparecido, o que provavelmenteaconteceria se eu tivesse sido reco-nhecido em Recife – o que felizmen-te não ocorreu, comprovando a ver-dade. No livro eu descrevo como erae como é hoje a sede do Doi-Codi emRecife, onde eu fiquei preso. Hoje elestransformaram parte do quartel emum hospital militar, o que mudoumuito as instalações. Quando eufui lá recentemente nós entramos nacara de pau e vimos a sala da tortura.Um dos integrantes da turma quefoi lá comigo conhecia um coronel,que era diretor do hospital, e assimnós conseguimos passe livre. E eleabriu o jogo, disse que nós tínhamos

sido presos ali e queríamos visitar olocal. O coronel veio com aquelediscurso de que tudo era passado,não adiantava relembrar o que tinhaacontecido, mas também afirmouque não poderia proibir a visita. Eassim nós entramos sem nenhumtipo de guia até chegar a esse pontoda sala, que foi um momento degrande emoção. Foi uma investiga-ção própria, muito linda. Eu fiz a mi-nha própria Comissão da Verdade.

Jornal da ABI – Mas, afinal, qualação foi essa da qual desconfia-ram da sua participação?

Álvaro Caldas – Já tinha indíciosde que a ação que gerou a minha pri-são tinha sido realizada lá, mas poroutro grupo político, o Partido Co-munista Revolucionário (PCR). Foiuma ação de roubo de armas em umquartel da Aeronáutica. E não tive-ram nenhum preso. Neste momen-to acharam que o PCBR, o meu gru-po, era o autor. E, por incrível coin-cidência, havia um cara no grupo daação que tinha o meu tipo físico.Nós fechamos este quebra-cabeçaquando nos reunimos à noite, apósa visita ao quartel. Em 1973, o Doi-Codi já não estava mais matandoe torturando a torto e a direito, jáque alguns segmentos da socieda-de estavam marcando em cima. Ea partir daí, foram criadas as tais

Casas da Morte, como a de Petró-polis, na Região Serrana do Rio. Ouseja, o que se fazia anteriormenteno Doi-Codi, em dependências ofi-ciais, militares, passou a ser feitonessas Casas da Morte, e em apa-relhos clandestinos.

Jornal da ABI – Me fale um poucoda sua atividade profissional atual.

Álvaro Caldas – Hoje eu sou pro-fessor da PUC-Rio, escrevo parajornais de vez em quando – e meseparei da Suely Caldas, que é arti-culista no Estado de S.Paulo. Minhaúltima passagem por jornal foi pelaTribuna da Imprensa. Eu fiz um giroao contrário, comecei pelo O Globoe lá eu tive problemas devido aosmeus conceitos ideológicos. O Glo-bo era um jornal muito fechado e in-clusive eu fui mandado embora. Fuipara o JB, e estive em grandes jor-nais – Estado de S.Paulo, Folha deS.Paulo, Última Hora e TV Globo,onde eu era editor de pauta mastambém eu tive uma falta de com-patibilidade e fui para a Tribuna.

Jornal da ABI – Como professor,qual a principal dificuldade naformação de novos jornalistas?

Álvaro Caldas – Eu nunca meimaginei dando aulas, mas acabei se-guindo este caminho. Hoje a meni-nada não dispõe de um grande mer-

cado e não tem o atrativo do jornalimpresso, que é a grande plataformapara quem escreve. Eu sempre ado-rei a rua, apesar de editar. E a meni-nada hoje não quer saber disso. A re-volução tecnológica mudou todo oprocesso e a própria linha dos jornaisque estão aí tem um viés mascara-do politicamente, com posturasmuito parecidas. Eu me irrito mui-to com os jornais hoje em dia porconta disso. Mas eu não quero pas-sar essa irritação para os meus alu-nos. (risos) Então, propus um cursosobre Literatura em Jornalismo paraos meus alunos, por exemplo. Masagora eu estou de licença, até por queentrou a Comissão da Verdade e eutenho outras coisas para fazer. E euquero escrever. Por isso eu acho quenão retorno desta licença, não.

Jornal da ABI – Você acha que oato de escrever e a plataforma di-gital são incompatíveis?

Álvaro Caldas – Não. Eu poderiaescrever em outras plataformas,mas não corro atrás de escrever emblogs, internet. Não é o meu estilo.

Jornal a ABI – Nós falamos so-bre tortura e eu acho que toda estamobilização que tem sido feitaserve para que fatos como aque-les da época do regime militarnão voltem a acontecer. Mas, in-

felizmente, eles seguem na pautado dia, como é o caso do Ama-rildo, morador da Rocinha, tor-turado, morto e desaparecidoapós uma abordagem da PM. Hádezenas, centenas de casos comoesse, em comunidades de todoo País. O que é preciso fazer paraconter os homens de farda des-te País para que o Estado brasi-leiro pare de assassinar?

Álvaro Caldas – É uma coisa com-plicada. Eu até acho que, neste sen-tido, a mídia tem colaborado, poistem dado destaque a essa violência,além da própria movimentação dasociedade. Isso foi um espetáculopor parte da população – essas ma-nifestações de rua e coisa e tal. Masnós precisamos construir uma gran-de reforma política e aí entra a nossaparte, de denunciar essa tortura,não só de preso político, mas prin-cipalmente da população maispobre. Eu acho que nós vivemosum momento positivo nesta ver-tente, da denúncia, da insatisfaçãosocial. Mas é necessário ter maismobilização. Que estes movimen-tos cresçam, e que haja uma pres-são política grande em cima desteCongresso, que foi eleito de umaforma atrasada. Precisamos quehaja uma pressão também em cimada polícia. Uma das lutas da Comis-são da Verdade é aumentar os níveisda formação militar. Se você visitaruma escola militar, verá que elesomitem o que aconteceu e aindatransformam o ‘golpe militar ’ de1964 em uma ‘revolução democrá-tica’. E nós temos que lutar paraque estes novos militares saibam averdade. Durante a visita ao Doi-Codi, aqui no Rio, o comandante daPolícia do Exército fez uma disserta-ção sobre o Batalhão – e simples-mente pulou a época do golpe. Acre-dita que ele fez isso? Ignorou as dé-cadas de 1960 e 1970? Aí a Deputadafederal Luiza Erundina, que estavapresente, o questionou. Ele disse quenão queria ‘politizar’ a nossa visita,sendo que nós estávamos ali sim-plesmente por causa disso. Pararesgatar a história.

Jornal da ABI – Fazer jornalismoé, sobretudo, fazer política?

Álvaro Caldas – Também. Mas oprincipal é trazer a verdade à tona.Nós trabalhamos com isso. A mi-nha primeira fase no JB foi excelen-te por que o jornal era combativo aobuscar a verdade, o que era diferenteem relação ao O Globo. Isso eramuito estimulante. Tive fases boastambém no Estadão e na Folha. Éclaro que a empresa tem os seus in-teresses e estabelece limites. Masdá para trabalhar com decência... Eeu acho que valeu muito passar porestes grandes jornais, valeu muitoa pena. Eu acho que você tem queter a emoção de escrever a matéria.Essa paixão eu sempre tive en-quanto jornalista. E também namilitância política.

JOSÉ D

UA

YER

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Jornal da ABI

O JORNAL DA ABI NÃO ADOTA AS REGRAS DO ACORDO ORTOGRÁFICO DOS PAÍSES DE LÍNGUA PORTUGUESA, COMO ADMITE O DECRETO Nº 6.586, DE 29 DE SETEMBRO DE 2008.

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COMISSÃO DE SINDICÂNCIACarlos Alberto Marques Rodrigues, José Pereira da Silva, Maria Ignez Duque EstradaBastos, Marcus Antônio Mendes de Miranda e Zilmar Borges Basílio.

COMISSÃO DE ÉTICA DOS MEIOS DE COMUNICAÇÃOAlberto Dines, Arthur José Poerner, Cícero Sandroni, Ivan Alves Filho e Paulo Totti.

COMISSÃO DE DEFESA DA LIBERDADE DE IMPRENSA E DIREITOS HUMANOSPresidente, Mário Augusto Jakobskind; Secretário, Daniel Mazola; Alcyr Cavalcanti,Antônio Carlos Rumba Gabriel, Carlos de Sá Bezerra, Carlos João Di Paola, ErnestoVianna,Geraldo Pereira dos Santos, Germando de Oliveira Gonçalves, GilbertoMagalhães, Lênin Novaes de Araújo, Lucy Mary Carneiro, Luiz Carlos Azêdo, MariaCecília Ribas Carneiro, Milton Temer, Miro Lopes, Modesto da Silveira, Vilson Romero,Vitor Iório e Yacy Nunes.

COMISSÃO DIRETORA DA DIRETORIA DE ASSISTÊNCIA SOCIALIlma Martins da Silva, Presidente; Manoel Pacheco dos Santos, Maria do PerpétuoSocorro Vitarelli, Mirson Murad e Moacyr Lacerda.

REPRESENTAÇÃO DE SÃO PAULOConselho Consultivo: Rodolfo Konder (Diretor), Fausto Camunha, George BenignoJatahy Duque Estrada, James Akel, Luthero Maynard e Reginaldo Dutra.Assistente: Rosani Abou Adal

REPRESENTAÇÃO DE MINAS GERAISJosé Mendonça (Presidente de Honra), José Eustáquio de Oliveira (Diretor), Carla Kreefft,Dídimo Paiva, Durval Guimarães, Eduardo Kattah, Gustavo Abreu, José Bento Teixeira deSalles, Lauro Diniz, Leida Reis, Luiz Carlos Bernardes, Márcia Cruz e Rogério Faria Tavares.

Em meio ao acirrado debate sobre a produ-ção de biografias no País e à falta de espaço einvestimento para matérias de fôlego emrevistas e jornais modernos, o bom jornalis-mo encontrou abrigo e se tornou o grandevencedor do Jabuti, o mais importante e tra-dicional prêmio do mercado editorial do Bra-sil. Em sua 55ª edição, a premiação prestouuma oportuna – e muito justa – homenagema obras que tratam da análise da notícia e damídia, história da imprensa, grandes reporta-gens regionais, nacionais e até do exterior, ereveladoras biografias de algumas das maispolêmicas personagens da trajetória brasileira.

Afirmar que se trata de uma resposta à criseou de uma manifestação clara e inequívocacontra a censura ou coisa parecida seria levian-dade. Primeiro, por causa da lisura do prêmio.Depois porque os debates sobre a questão, queganharam mais notoriedade nos últimos dias,são antigos. Porém, algumas das escolhas fei-tas entre os mais de dois mil trabalhos inscri-tos fizeram barulho. Isso não dá para negar.

A Câmara Brasileira do Livro-CBL anun-ciou os vencedores do Jabuti em outubro. Emnovembro, o prêmio foi entregue aos trêsprimeiros colocados das 27 categorias emdisputa. Em Comunicação, o primeiro lugarficou com o professor José Marques de Melo,por História do Jornalismo – Itinerário Crítico,Mosaico e Contextual (Paulus). Depois vieramOscar Pilagallo, com seu História da Impren-sa Paulista: Jornalismo e Poder de D. Pedro I aDilma (Três Estrelas), e Renato Modernell,autor de A Notícia como Fábula: Realidade eFicção se Confundem na Mídia (Mackenzie eSummus Editorial).

Já na categoria Biografia, a jornalistaMary Del Priore ficou com o segundo lugarcom A Carne e o Sangue (Editora Rocco), obraque retrata o triângulo amoroso vivido por D.

nagens marcantes, fossem aliados, fossemoponentes”, explica Magalhães.

O inferno da Síria e o do BrasilTão emblemática quanto a escolha de

uma biografia não autorizada como a melhordo ano foi a de três livros de grandes reporta-gens, gênero que no dia a dia da imprensa perdemais e mais espaço. Na categoria Reporta-gem, Mãos que fazem História (Editora VerdesMares) ficou com o terceirolugar. O livro foi escrito a par-tir de uma série de matérias dasrepórteres Cristina Pioner eGermana Cabral para o Diáriodo Nordeste e mostra a vida eobra das artesãs no Ceará. Emsegundo lugar ficou Dias deInferno na Síria (Benvirá), dojornalista Klester Cavalcanti.

Em maio de 2012, Caval-canti viajou pela revista Isto Épara a cidade de Homs, entãoepicentro do conflito entre as forças do dita-dor Bashar al-Assad e os rebeldes do ExércitoLivre, para cobrir a guerra que devastava aSíria. Chegando lá, porém, nada saiu como oesperado. Preso injustamente, o brasileiro foitorturado e encarcerado em uma pequena cela,que dividia com mais de 20 detentos. As in-certezas daqueles tempos se transformaramem um relato vibrante e humano da guerracivil, não somente por conta do que o brasi-leiro viveu, mas pela experiência daqueles queele entrevistou por lá.

“Foi algo novo para mim. Eles me chama-vam de sahafi, que significa ‘jornalista’ e mecontaram histórias fascinantes. Já tinha escri-to outros livros que tratavam de temas liga-dos aos direitos humanos, como Viúvas da Terrae O Nome da Morte, que inclusive receberam oJabuti. Mas o Dias de Inferno na Síria foi umaexperiência muito pessoal. Não imaginava que

fosse ganhar, pois é um tema distante do Brasil.Só que sua discussão é fundamental. Hámuito interesse no assunto por aqui, já que acomunidade sírio-libanesa é grande em nossoPaís. Infelizmente, a cobertura da grande im-prensa do Brasil é medíocre, restringindo-se anúmeros e a informações de agências interna-cionais”, aponta Cavalcanti.

O relato de outros dias de inferno, masdesta vez no Brasil, mereceu o primeiro lugarna categoria Reportagem. As Duas Guerras deVlado Herzog (Civilização Brasileira), de AudálioDantas, usa como fio condutor a vida do jor-nalista Vladimir Herzog, desde sua persegui-ção pelos nazistas na Europa até sua morte portortura nos porões da ditadura militar no Brasil,para reconstituir a história recente do País, na

qual, após a denúncia do assas-sinato pelo Sindicato dos Jorna-listas de São Paulo, a sociedadevolta a se mobilizar contra oregime. A obra preenche umalacuna histórica, mostrando demaneira clara e definitiva amobilização popular na segun-da metade da década de 1970 etrazendo novas informaçõessobre acontecimentos do perí-odo, ainda que fazer revelaçõesnão fosse a intenção de Audálio

Dantas, também agraciado com o Troféu JucaPato e escolhido o Intelectual do Ano pelaUnião Brasileira de Escritores (UBE):

“O caso Herzog é emblemático daquelemomento. Temos muitos materiais sobre aépoca, mas muita coisa superficial ou comimprecisão, o que do ponto de vista jornalís-tico é imperdoável. O livro foi escrito paramostrar o que houve naqueles dias, estabelecero papel dos jornalistas em todos os aconteci-mentos. Por outro lado, a premiação mostraque ainda existe espaço para a grande repor-tagem no jornalismo moderno. Nesse novocenário, o livro é a sua plataforma por excelên-cia, já que a imprensa periódica parece prefe-rir apenas reproduzir informações e analisar.Talvez a qualidade dessas reportagens premi-adas sirva para novamente levantar a bandeirado bom jornalismo que os leitores querem etanto é necessário à sociedade.”

PRÊMIO

A bandeira do bom jornalismoBiografia não autorizada e livro de reportagem foram alguns dos destaques.

POR MARCOS STEFANO Pedro I, a Imperatriz Leopoldina e Domitila deCastro, a Marquesa de Santos. O terceirolugar foi de Lira Neto com o primeiro volumeda trilogia biográfica sobre Getúlio Vargas –Getúlio: Dos Anos de Formação à Conquista doPoder (1882-1930), publicado pela Companhiadas Letras. Ambos ficaram atrás de Marighe-lla: O Guerrilheiro que Incendiou o Mundo (tam-bém da Companhia das Letras), de MárioMagalhães, o grande vencedor.

Para reconstituir a vida do líder comunista,político, poeta e guerrilheiro que se tornou o“inimigo número um do regime militar”, Ma-galhães trabalhou por nove anos, dos quais quaseseis em dedicação exclusiva. Tempo em queentrevistou 256 pessoas em mais de mil horas,pesquisou cerca de 70 mil páginas de documen-tos em 32 arquivos públicos e privados naRússia, República Tcheca, Estados Unidos,Paraguai e Brasil. Além da bibliografia que reú-ne 500 títulos. O resultado é uma obra cheia deritmo e ação, tal qual foi a vida do próprioMarighella, e um herói bem real, com todos osseus vícios e fraquezas. Retrato que, segundo oautor, pode ser traçado justamente porque setratou de uma biografia não autorizada.

“Para escrevê-la, não pedi autorização aosherdeiros de Carlos Marighella nem lhes sub-meti os originais. A legislação obscurantista,contudo, lhes permite proibir a circulação daobra. Isso não ocorreu devido ao espírito públicoque pauta o advogado Carlos Augusto Mari-ghella, filho do meu biografado, e dona ClaraCharf, viúva. Sou grato a eles, que comparti-lharam comigo suas memórias mais caras edocumentos esquecidos. Confiaram em mime foram entusiastas do meu trabalho. Sem pedirpara ler uma linha do que eu havia escrito. Elessabem que a história de Marighella não é pro-priedade privada, mas patrimônio público damemória. Tanto que sua trajetória me permi-tiu reconstruir quatro décadas trepidantes doséculo 20, entre 1930 e 1960, e revisitar perso-

DIRETORIA – MANDATO 2013-2016Presidente: Maurício Azêdo (in memoriam)

Presidente interino: Fichel Davit ChargelVice-Presidente: Tarcísio HolandaDiretor Administrativo: Fichel Davit ChargelDiretor Econômico-Financeiro: Sérgio CaldieriDiretora de Assistência Social: Ilma Martins da SilvaDiretor de Arte e Cultura: Henrique Miranda Sá NetoDiretor de Jornalismo: Alcyr Cavalcanti

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HOMENAGEM

POR RODOLFO KONDER

RODOLFO KONDER, jornalista e escritor, é Diretor da Representação da ABI em São Pauloe membro do Conselho Municipal de Educação da Cidade de São Paulo.

A Memória e o Silêncio

Ameaçado pela ditadura militar, aceitei oconvite do jornalista Milton Coelho daGraça e me mudei do Rio para São Paulo,

onde passei a trabalhar na revista Realidade, comoredator, ao lado de Jorge Andrade, Luis Lobo, José Ha-milton Ribeiro, Roberto Muller – e o incansável Mau-rício Azêdo.

Ali, conheci Maurício e logo nos tornamos ami-gos. Pouca gente escrevia tão bem como ele. E suamilitância transcendia os limites do jornalismo, por-que sua formação ética o tornara um homem soli-dário e generoso.

Em pouco tempo, abriu para mim as portas de suacasa. Lá eu comia, conversávamos muito, trocávamosinclusive nossas memórias como ex-prisioneiros po-líticos que haviam sobrevivido à devastadora chagada tortura.

Suas experiências de vida, sempre marcantes, otransformaram num exemplo de honestidade, de

ética, de liderança e generosidade. Colaborou comdiversos jornais e revistas de resistência à ditadu-ra. Foi vereador e conselheiro do Tribunal de Con-tas do Município do Rio de Janeiro até 2004, quan-do se aposentou por limite de idade. Naquele mes-mo ano, elegeram-no Presidente da Associação Bra-sileira de Imprensa.

Casado com Marilka Lannes, Maurício se foi, diasatrás, mas deixou conosco um exemplo raro de dig-nidade e grandeza, que estará sempre em nossa me-mória, no dolorido lado esquerdo da nossa memória.

Neste momento de crise, empurrados pelas águasbarrentas de um rio que nos leva para o abismo, nos-sos sonhos bateram em retirada, junto com a ética.A ausência de homens como Maurício Azêdo acen-tua a sensação de que “o presente está em declínio”,como dizia Jorge Luis Borges. “O presente está só”.

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Uma vasta, importante e hoje poucolembrada parte da história da imprensabrasileira está acessível a qualquer pessoana Biblioteca Bastos Tigre, mais conheci-da como Biblioteca da ABI, alojada no 12ºandar da sede da instituição, no centro doRio. Trata-se de um verdadeiro tesouropara jornalistas, historiadores e qualquerpessoa que deseje aprender mais sobre oBrasil das décadas finais do século 19 e dasprimeiras do século 20. São periódicos dosmais diversos tipos, entre jornais e revis-

bem-humorado, davam o tom. Havia tam-bém seções de provérbios e poemas.

Mais ou menos da mesma época é ojornal Cidade do Rio, fundado em 1887 porJosé do Patrocínio. Com apenas quatropáginas, a publicação tinha um inflamadoviés abolicionista. Na edição de 21 de no-vembro daquele ano, por exemplo, sob otítulo “A Regência Ensanguentada”, emletras garrafais, o jornal publicava um tele-grama enviado da cidade fluminense deCampos: “Conferencia abolicionista frus-trada. Força embalada espaldeirou o povoe este apedrejou a força. Três cidadãos fe-

RARIDADES

Um tesouro nemtão escondido assim

Acervo de periódicos raros da Biblioteca da ABI, que ajuda a entender o Brasil dofinal do século 19 e das primeiras décadas do 20, pode ser consultado livremente.

POR MÁRIO MOREIRA tas, que traçam um amplo panorama dosprimórdios do jornalismo no País.

O acervo inclui raridades como a Re-vista Illustrada, semanário abolicionistae republicano publicado a partir de 1876pelo cartunista italiano, radicado no Bra-sil, Angelo Agostini – o exemplar maisantigo disponível na biblioteca é do anoseguinte. A veia satírica era a marca da pu-blicação. A capa trazia sempre uma chargeabordando fatos da época, com o traço re-finado de Agostini. Nas páginas internas,notas, comentários, críticas (especialmenteaos políticos), sempre em tom irônico e

ridos à arma de fogo e outros levemente.(…) Ha receios de novos conflictos”. Issohá 126 anos...

A última edição do jornal, de 31 dedezembro de 1900, trazia um longo edito-rial de despedida com pesadas críticas aoentão Presidente Campos Salles e aos con-gressistas brasileiros: “Que esperar de umseculo que vae começar para um povo, en-contrando o Congresso humilhado na suasoberania e no respeito da sua equipolen-cia constitucional ao poder executivo?”.

Humor em altaImportantes periódicos da virada do

século 19 para o 20 podem ser encontra-dos na Biblioteca da ABI. Um deles é ABruxa, revista semanal fundada em 1896,com direção editorial do poeta Olavo Bi-lac e do ilustrador português Julião Macha-do. A publicação durou apenas até o anoseguinte, mas marcou época com suas crô-nicas bem-humoradas, charges, poemas,piadas e críticas aos governantes. Outro éO Malho, revista humorística criada em1902 e que teve, entre seus ilustradores,Calixto, J. Carlos e Angelo Agostini. Da

A Biblioteca Bastos Tigre,da ABI, mantém umprecioso acervo depublicações quemarcaram a história daimprensa brasileira,como os jornais Cidadedo Rio, de 1887, fundadopor José do Patrocínio,O Paiz (acima, a ediçãode 1º de outubro de1937) e A Noite Illustrada,do jornal A Noite; alémde revistas como a RevistaIllustrada, com edições apartir de 1877, A Bruxa,de 1896, D.Quixote, docomeço do século 20,Revista da Semana eO Malho (na páginaseguinte, edições denovembro de 1903 ede maio de 1929,respectivamente).

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Hoje com cerca de 30 mil volumes,a Biblioteca da ABI começou a ser or-ganizada em 1911, três anos após a fun-dação da entidade, por seu primeirodiretor, o bibliotecário Victor da VeigaCabral. Só em 1958 a unidade recebe-ria o nome do jornalista e publicitárioBastos Tigre, criador do famoso slogan“Se é Bayer, é bom”, que morrera no anoanterior. Durante muito tempo a bibli-oteca ocupou o 8º andar do edifícioHerbert Moses, sede da ABI, constru-ído no final dos anos 1930 na rua Ara-újo Porto Alegre, 71. Na década de 1960,em dificuldades financeiras, a ABI atransferiu desse pavimento para alugá-lo, passando o acervo para o 9º andar.

Em 1974, parte dos livros, a maioriasobre imprensa, foi perdida ou danifi-cada num incêndio. No ano seguinte,a biblioteca foi transferida novamen-te, agora para o 12º pavimento, queabrigava um restaurante. Já neste sécu-lo, foi totalmente reformada, incluin-

mesma época, e também presentes na bi-blioteca, são as fundamentais revistas Fon-Fon e Careta, ambas recheadas de charges,crônicas e notas de humor. A coleção da pri-meira abrange o período de 1908 a 1911;a da segunda inclui os anos de 1910 e 1911.

Já de 1918 é a revista D. Quixote, “se-manário de graça... por 200 réis”. Funda-da e dirigida pelo jornalista e publicitárioManuel Bastos Tigre, que dá nome à bibli-oteca da ABI, também tinha o humor comomarca registrada. A capa da edição de 30 dejaneiro trazia uma charge com o título“Carnaval? Porque não?” (sic), ironizan-do a idéia de suspender os festejos carna-valescos daquele ano em razão das mortesocorridas na Primeira Guerra Mundial.Outra publicação disponível na bibliote-ca é a Revista da Semana, semanário de va-riedades que durou de 1900 a 1962 e co-bria de política a moda feminina.

Pioneira no gênero, a revista Eu SeiTudo pode ser considerada ancestral dire-ta de títulos como Galileu e Superinteres-sante. Circulou de 1917 a 1958 e traziareportagens sobre curiosidades em geral,com forte viés científico. A edição inau-gural, por exemplo, abordava temas tãodíspares como o sono dos peixes, a cate-dral de Milão, minas submarinas e hipó-teses sobre o fim do mundo.

Reportagens sobre o incêndio do na-vio L´Atlantique, ocorrido no porto doHavre (França), em 4 de janeiro de 1933,estão presentes em duas edições seguidasda revista semanal A Noite Ilustrada, dojornal A Noite. A primeira, número 145,do dia 11, traz a matéria “O Impressio-nante Sinistro do l‘Atlantique”, chamadode “o maior e mais luxuoso transatlanti-co até hoje construido, maravilha produ-zida pelo espirito emprehendedor dopovo francez”, com fotos (externas einternas) do navio e do comandante

Schoofs, o último a abandoná-lo. A segun-da, do dia 18, dá capa para o incêndio,com mais fotos e detalhes do naufrágio.

Fundada em 1936, a revista Carioca tam-bém está presente no acervo da biblioteca.A edição número 49, de 19 de setembro de1936, traz ampla reportagem sobre a inau-guração da Rádio Nacional, com fotos deartistas que se apresentaram no evento,como a cantora lírica Bidu Sayão e os popu-lares Orlando Silva e Aracy de Almeida.

A edição 51, de 10 de outubro daque-le mesmo ano, reproduz um reveladordepoimento do compositor Noel Rosa,que morreria dali a menos de sete meses,para a matéria “Vale a Pena Ser Popular?”:“Um dia, talvez eu pretenda ser advoga-do. Isso é novidade, mas é o meu grandedesejo. Ahi a minha grande popularidadevae-me atrapalhar seriamente: eu sei quecompor e cantar sambas não recomendaninguém. O meu verdadeiro nome é Noelde Almeida Rosa e eu devia tel-o trocadologo ao iniciar a minha carreira artísticapor um outro: João de Almeida Rodri-gues, por exemplo. Agora talvez eu tenhade fazer o contrario, o que me dará sem-

Da criação à grande reforma

do a troca do teto e do piso de tacos, queestavam infestados de cupim. A reaber-tura se deu em 2007. Atualmente, a bi-blioteca fica aberta ao público de se-gunda a sexta-feira, das 9 às 17 horas.Apenas sócios da ABI, porém, podemretirar livros.

A chefe da seção, Vilma Santos deOliveira, de 64 anos, trabalha no setordesde 1975, quando entrou como auxi-liar, e divide o serviço com duas outrasfuncionárias. De acordo com ela, em ra-zão da internet, a procura caiu muitonos últimos anos. “Antigamente vi-nham grupos inteiros para estudar e ti-rar cópias”, lembra Vilma, que certa vezimpediu um furto de edições de revistasantigas como Fon-Fon e A Bruxa por partede dois rapazes. “Desconfiei e pedi queabrissem a mochila. Estava tudo lá”,conta ela, que preferiu nem chamar apolícia. “Fiquei aliviada de ter consegui-do salvar aqueles números. Afinal, cui-dar deles é o meu trabalho.”

pre a impressão de estar vivendo as avés-sas...”. Curiosamente, o autor de “ÚltimoDesejo” se chamava na verdade Noel deMedeiros Rosa, e não “de Almeida Rosa”.Provavelmente o autor da reportagem seconfundiu ao transcrever o depoimento.

Outra interessante peça do acervo é acoleção do jornal O Paiz, dos anos de 1937 e1938. O diário, que circulara de 1884 a 1934,voltou às bancas em 8 de setembro de 1937.A edição de 3 de outubro traz o decreto doPresidente Getúlio Vargas, promulgando oestado de guerra, que preparou o terreno paraa instituição do Estado Novo, no mês seguin-te. A última edição da coleção, de 1º de maiode 1938, noticia a repercussão do acordomilitar franco-britânico, uma visita de AdolfHitler a Benito Mussolini e a viagem daseleção brasileira, de navio, para disputar aCopa do Mundo na França.

Lacerda na capaMais recente, mas não menos impor-

tante, é a coleção de O Mundo Ilustrado,semanário de atualidades que marcouépoca no País na década de 1950. A ediçãode 11 de agosto de 1953 destaca o jorna-lista e político Carlos Lacerda, um dosprincipais oposicionistas do governoGetúlio Vargas, e apresentado na capacomo “O Homem da Raça”. Em editori-al assinado na página 3, o Presidente daO Mundo Gráfica e Editora, GeraldoRocha, exalta as qualidades do dono daTribuna da Imprensa, “grande justiceiro” e“o homem designado pela providênciapara nos salvar da hecatombe que represen-

ta a obra nefasta do apátrida Samuel Wai-ner”, este também jornalista e proprietá-rio da Última Hora, que apoiava Getúlio.

Entre as raridades da biblioteca háainda os três números zero da revistaPlacar, lançada pela Editora Abril emmarço de 1970. O primeiro deles trazcomo furo de reportagem uma entrevis-ta em que o então jogador e atual comen-tarista Tostão garantia que jogaria a Copado Mundo daquele ano, apesar da cirur-gia a que fora submetido poucos mesesantes para corrigir um descolamento deretina. Evidentemente, além de todasessas preciosidades, a biblioteca da ABIpossui vastíssimo material com as cole-ções (nem todas completas) de publica-ções fundamentais da história da impren-sa brasileira na segunda metade do sécu-lo 20, como O Cruzeiro, Manchete, Pas-quim, Veja e IstoÉ, entre muitas outras.

Livros rarosÀ parte os periódicos, a Bastos Tigre

oferece um vasto acervo de livros, comcerca de 22 mil títulos, entre obras sobrejornalismo e comunicação, política, di-reito, sociologia, antropologia, religião eoutros temas, além de romances. A seçãode obras raras, instalada no fundo da bi-blioteca, oferece títulos das primeirasdécadas do século 20, do século 19 e atémesmo do 18, como o Traité des Prescrip-tions, de l´Aliénation de Biens de l´Église etdes Dixmes (Tratado das Prescrições, daAlienação de Bens da Igreja e dos Dízi-mos). O livro foi editado na França em1786, “avec approbation et privilège duRoi” (com aprovação e privilégio do rei –no caso, Luís 16, que viria a ser guilhoti-nado pela Revolução Francesa).

Também franceses são o Dictionnaire deBiographie et d´Histoire (Dicionário de Bi-ografia e História), de 1883, em dois grossosvolumes; e o Dictionnaire Universel des Con-temporaines (Dicionário Universal dos Con-temporâneos), com inacreditáveis 1.888páginas, publicado pela editora Hachette,em 1870. Há ainda Histoire de l´Internatio-nale, de 1872, de Edmond Villetard, sobre aInternacional Socialista (a primeira).

Em espanhol, a Biblioteca da ABI pos-sui uma edição mexicana de 1852 de Via-je Pintoresco al Rededor del Mundo (ViagemPitoresca ao Redor do Mundo), do botâni-co e explorador francês Jules Dumontd´Urville, e Las Actas de Independencia deAmerica, editada em 1955 nos EstadosUnidos, com reproduções dos documentosde independência de 21 países do conti-nente americano, incluindo o Brasil.

Quem se interessa pela realeza britâni-ca pode consultar os cinco volumes de TheLife of His Royal Highness – The Prince Con-sort (A Vida de Sua Alteza Real – O Prínci-pe Consorte), de 1879, biografia do prínci-pe Alberto, marido da rainha Vitória. Final-mente, as obras em português incluemHistoria da Litteratura Brazileira, de SylvioRomero, livro editado em 1888 em doisvolumes, e Historia Financeira e Orçamenta-ria do Império do Brazil Desde a Sua Funda-ção, de Liberato de Castro Carreira, de 1889.

Prato cheio para pesquisadores dosmais diversos assuntos.

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12 JORNAL DA ABI 394 • OUTUBRO DE 2013

Publicado entre 1948 e 1953, o folhe-to ‘O que todos devem saber sobre o Pe-tróleo’ foi editado pelo Centro de Estudose Defesa do Petróleo com o intuito de fa-zer esclarecimentos sobre o Estatuto doPetróleo – visto pelo grupo como graveameaça à soberania nacional. Em tom demobilização, posicionava-se contraria-mente às propostas de entrega da explo-ração do chamado ‘ouro negro’ a grandesgrupos internacionais. Passados 65 anosdo lançamento da campanha O Petróleoé Nosso, o noticiário sobre o recursonatural segue firme nas primeiras páginasdos jornais brasileiros. Com enfoqueeconômico, é claro, mas sem deixar detangenciar o contexto político.

“A liga antifascista da Tijuca fez umato na ABI no dia 4 de abril de 1948 ondelançou a idéia do Centro de Petróleo. Nodia 21 de abril, em um grande ato no Au-tomóvel Clube tivemos a alegria de verlançado o Centro Nacional de Estudo eDefesa do Petróleo, que um anos depois,por proposta do General Raimundo Sam-paio, passaria a se chamar Centro de Es-

tudos e Defesa do Petróleo e da EconomiaNacional (Cedpen) – para ser mais abran-gente, tratando de Amazônia, minériose outras riquezas nacionais. Parecia queesse movimento tinha fermento. Se mul-tiplicava, com a criação de centros espa-lhados pelos estados”, recorda Maria Au-gusta Tibiriçá, ela própria uma das funda-doras do Cedpen, que teve como presi-dentes honoríficos o ex-Presidente Artur

Bernardes e os generais Horta Barbosa eJosé Pessoa.

Lançado no auditório Oscar Guanaba-rino da ABI pelo professor Henrique Mi-randa, o Centro Nacional de Estudos eDefesa do Petróleo assumiu a coordena-ção nacional da campanha a favor da es-tatização do ouro negro, visando destro-nar o Estatuto do Petróleo, proposta regu-latória de exploração enviada ao Congres-

O petróleo comocombustível nacional

Depois de 65 anos, é importante lembrar a intensa participação da ABI na campanhaO Petróleo é Nosso, que culminou com a criação da Petrobras cinco anos depois.

POR PAULO CHICO

CAMPANHA

so pelo Presidente Eurico Gaspar Dutraque, defendida pelo General Juarez Tá-vora, certamente faria a alegria dos gran-des trustes internacionais. O projeto dogoverno considerava a estatização invi-ável, devido a fatores como a escassez deverbas e a falta de técnicos especializados.Evidentemente, causou a ira dos naciona-listas.

Em artigo histórico, o professor Hen-rique Miranda falou sobre o papel da ABIna constituição do movimento em defesado petróleo. “A Associação era presididapor Herbert Moses, que se manteve àfrente da Casa, proficuamente, durante33 anos (de 1931 a 1964). Consenso in-contestável, ele era convicto democrata,ativo, sempre em defesa da Liberdade deImprensa, e de jornalistas vítimas dosatropelos do Poder, o que se verificou, es-pecialmente, no período do Estado Novo(1937-1945). Em relação, porém, ao pro-blema do petróleo, lamentavelmente,não era ele adepto da Tese Horta Barbo-sa, a Tese do Monopólio Estatal. Comoexplicar, assim, a presença e o apoio daABI, valiosos, sempre, no movimento OPetróleo é Nosso?”, perguntou o profes-sor, que respondia à questão logo no pa-rágrafo seguinte.

“Basta recordar: Moses era assessora-do e recebia a decisiva influência de emi-nentes jornalistas da ABI de então. Comsaudade, recordemos alguns deles: HeitorBeltrão (1º Vice-Presidente), Pedro MotaLima, João Etcheverry, Aristeu Aquiles,Jocelyn Santos, João Antônio Mesplé. Eainda Gentil Noronha e Fernando Segis-mundo. Coincidência providencial – to-dos eles partidários entusiastas da TeseHorta Barbosa e, em graus diversos, mem-bros do Centro do Petróleo”, escreveu.

Henrique Miranda foi professor e jor-nalista, oficial da Marinha punido comexpulsão por sua participação muito jo-vem nos movimentos sociais dos anos1930. Dedicou sua vida à defesa do Bra-sil. Membro do Partido Comunista Bra-sileiro (PCB), foi vereador na antiga Câ-mara de Vereadores do Distrito Federal,na Legislatura 1951-1955, diretor doperiódico Emancipação, órgão de divul-gação e combate dessas campanhas naci-onalistas, e diretor da ABI nas gestões deBarbosa Lima Sobrinho e Fernando Segis-mundo. Faleceu em 6 de abril de 2005.

Pelas ruas, o Cedpen e sua campanhamobilizaram entusiasmados participan-tes de Norte a Sul do País, que começama se articular regionalmente a fim de pro-mover manifestações e eventos. Comapoio do Partido Comunista do Brasil, osdiretórios do Rio de Janeiro, São Paulo eRio Grande do Sul são os primeiros napromoção de atos públicos, que mobili-zam de intelectuais e estudantes, além deprofissionais liberais. Figuras de destaquena vida política e cultural brasileira,como o artista Emiliano Di Cavalcanti eo arquiteto Oscar Niemeyer, manifestamseu apoio ao movimento em defesa da es-tatização do setor.

Em 1º de agosto de 1948, centenas de pessoas lotaram o auditório da ABI numa manifestação em defesa do monopólio estatal do petróleo. O ato foipresidido por Barbosa Lima Sobrinho. Abaixo, um dos inúmeros comícios que se espalharam pelo País. Este aconteceu em Belo Horizonte em 4 de julho.

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As raízes históricas da PetrobrasComo era de se esperar, o Estatuto do Pe-

tróleo proposto por Dutra teve uma trami-tação truncada na Câmara, e acabou sen-do arquivado. Na prática, o Presidente de-sistira dele ainda em 1948, ao pedir aoCongresso recursos para a construção dasrefinarias estatais de Mataripe (BA) e deCubatão (SP), do oleoduto Santos-São Pau-lo e para a aquisição de uma frota nacionalde petroleiros. Foi esse o quadro encontra-do por Getúlio Vargas em janeiro de 1951.Para superar o impasse, em dezembro,enviou ao Congresso projeto de lei pro-pondo a criação da “Petróleo BrasileiroS.A.” (Petrobras), empresa de economiamista com controle majoritário da União.Curiosamente, não estabelecia o monopó-lio estatal, uma das principais teses naci-onalistas, permitindo, teoricamente, queaté 1/10 das ações da empresa holding fi-cassem em mãos de estrangeiros.

Mas a essa altura já se encontrava emdiscussão outro projeto, apresentado pelodeputado Eusébio Rocha, que mantinhaa fórmula de empresa mista, mas estabe-lecia o rígido monopólio estatal, vedan-do a participação estrangeira. Em maio, aUnião Democrática Nacional (UDN)assumiu a defesa do monopólio estatal,combatendo politicamente o projeto daPetrobras. No mês seguinte, o deputadoBilac Pinto, Presidente do partido, apre-sentou novo substitutivo propondo acriação da Empresa Nacional do Petróleo(Enape). Enquanto isso, nas ruas, a UniãoNacional dos Estudantes (Une) e o Cedpenrelançavam com toda a força a palavra deordem “O Petróleo é Nosso”.

Diante da situação, Vargas optou final-mente pelo monopólio estatal, autori-zando a abertura das negociações no Con-gresso. Aprovado na Câmara em setembrode 1952, o projeto da Petrobras foi reme-tido ao Senado, onde alguns senadores seidentificavam abertamente com os inte-resses privados, nacionais e estrangeiros.Em junho de 1953, a proposta retornou àCâmara com 32 emendas – inclusive per-mitindo o completo controle pelo capi-tal privado –, mas foram quase todas der-rubadas na Câmara. Apenas duas conces-sões foram feitas: a que confirmava asautorizações de funcionamento das refi-narias privadas já existentes; e a que per-mitia a participação de empresas particu-lares, inclusive estrangeiras, na distribui-ção dos derivados de petróleo.

Em 3 de outubro de 1953, depois de in-tensa mobilização popular, Vargas sanci-onou a Lei nº 2.004, criando a PetróleoBrasileiro S. A. – Petrobras, empresa depropriedade e controle totalmente naci-onais, com participação majoritária daUnião, encarregada de explorar, em cará-ter monopolista, diretamente ou por sub-sidiárias, todas as etapas da indústria pe-trolífera, menos a distribuição. Em men-sagem ao povo brasileiro, Getúlio desta-cou a importância da medida: “Constitu-ída com capital, técnica e trabalho exclu-sivamente brasileiros, a Petrobras (...)

Nos termos do artigo 19, letra b, do Estatuto da As-sociação Brasileira de Imprensa-ABI, são convocados osassociados quites com suas obrigações estatutárias a sereunirem em Assembléia-Geral Extraordinária, na suasede na Rua Araújo Porto Alegre, 71, Centro, Rio deJaneiro, no dia 03 de dezembro do corrente ano, às 10horas, para deliberar, nos termos dos artigos 21, III e41, I, ambos do Estatuto da Associação Brasileira deImprensa-ABI, acerca do preenchimento do cargo deDiretor-Presidente, em razão de sua vacância, pelo fa-lecimento do Diretor-Presidente Maurício Azêdo.

Rio de Janeiro, 31 de outubro de 2013

PERY DE ARAÚJO COTTAPresidente do Conselho Deliberativo

Ata da reunião extraordinária do Conselho Delibera-tivo da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), realiza-da dia 29 de outubro de 2013, para discussão e delibe-ração acerca do preenchimento do cargo de diretor-presidente, vago com o falecimento do presidenteMaurício Azêdo.

Edital de ConvocaçãoAssembléia-Geral Extraordinária

Associação Brasileira de Imprensa

constitui novo marco da nossa indepen-dência econômica”.

Passadas mais de seis décadas da fundaçãodo Cedpen e dos primeiros passos da campa-nha O Petróleo é Nosso, a soberania brasileirano setor de exploração do recurso mineralainda é alvo de ataques. Tanto que, em 22 demaio deste ano, foi lançada a Frente Parla-mentar em Defesa da Petrobras e do Pré-Sal,composta por 235 deputados e senadores,sendo apoiada por diversas entidades, taiscomo CUT e Une, além de sindicatos filia-dos. A articulação é presidida pelo Deputa-do Federal Luiz Alberto (PT-BA) e trabalharáem parceria com a Frente Parlamentar emDefesa do Fundo Social do Pré-Sal, coorde-nada pela Deputada Federal Benedita daSilva (PT/RJ), com a proposta de garantir adestinação dos royalties do petróleo para in-vestimentos na área social.

“Queremos demonstrar à parcela daoposição ao nosso governo e a setores damídia, que tentam criar um clima fictíciode crise na Petrobras, que ao contrário doque alguns veículos de comunicação fa-lam, a estatal não está em crise. Ela cres-ceu muito, numa perspectiva de até 2017dobrar de tamanho”, afirmou Luiz Alber-to. Para o parlamentar petista, o grandeataque à empresa nacional se refere aofato de ela ser a única operadora do pré-sal, devido ao Marco Regulatório aprova-do no governo Lula, o qual confere à es-tatal a prerrogativa de ter no mínimo 30%de participação em todos os contratos.

O líder do PT na Câmara, DeputadoJosé Guimarães (CE), ressaltou a impor-tância da Criação da Frente Parlamentarem Defesa da Petrobras. Para ele, a inici-ativa é estratégica, num momento em quesetores entreguistas, ligados ao capitalestrangeiro e avessos aos interesses nacio-nais, promovem campanha contra a em-presa, distorcendo números e informa-ções. “Na falta de projeto e de propostaspara o País, os mesmos que queriam mu-dar o nome de Petrobras para Petrobraxdurante o governo FHC (1995-2002)agora patrocinam uma campanha contra

a estatal, que foi erguida à custa de sanguee suor do povo brasileiro e hoje é um ins-trumento importante de desenvolvimen-to econômico e social. A política de con-teúdo local da Petrobras valorizou nos-sa indústria e gera empregos no Brasil enão no exterior. Os avanços tecnológi-cos garantem produção na camada dopré-sal em tempo recorde. O fortaleci-mento da Petrobras desfaz os dogmasneoliberais dos que tentaram entregar100% da empresa a estrangeiros. A Petro-bras de hoje é motivo de orgulho nacional”,disse Guimarães.

Cerimônia dainstalação detorre simbólicade petróleo naCinelândia, noRio de Janeiro.O ato foi umainiciativa doMovimentoNacionalistaBrasileiroe da Une.

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A mesa dos trabalhos foi presidida pelo presidente doConselho, Pery Cotta, tendo ao lado o primeiro e segun-do secretários, respectivamente, José Pereira da Silva (Pe-reirinha) e Moacyr Lacerda.

Após leitura do Estatuto da ABI e do parecer jurídicoda advogada Maria Arueira Chaves, do Escritório Siquei-ra Castro Advogados, o presidente declarou a vacânciado cargo de diretor-presidente e, de acordo com o ar-tigo 29, inciso VII, do Estatuto da ABI, propôs ao Conse-lho a indicação do nome do Conselheiro do diretor-administrativo, Fichel Davit Chargel para responder inte-rinamente pela presidência até a realização da Assem-bléia Geral Extraordinária.

Diante da aceitação do cargo por Fichel Davit Chargel,o mesmo passa, a partir desta data, a exercer, de formainterina, o cargo de Diretor-Presidente.

Em seguida, o presidente do Conselho, nos termosdo artigo 20 do Estatuto da ABI, convocou a AssembléiaGeral Extraordinária para o dia 03 de dezembro, às 10h,no Auditório da ABI.

PERY COTTAPresidente

JOSÉ PEREIRA DA SILVAPrimeiro Secretário

MOACYR LACERDASegundo Secretário

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14 JORNAL DA ABI 394 • OUTUBRO DE 2013

A falta de esclarecimento de crimescontra jornalistas é hoje uma das maioresameaças aos Direitos Humanos. É o queaponta o relator especial para Liberdadede Opinião e Expressão da Organizaçãodas Nações Unidas – ONU, Frank La Rue.Durante a abertura da 8ª ConferênciaGlobal de Jornalismo Investigativo, nodia 12 de outubro, no Rio de Janeiro, oguatemalteco afirmou que os repetidoscasos de violência contra jornalistas –além de processos judiciais, censura pré-via e espionagem de agências governa-mentais – são alguns dos principais obs-táculos ao exercício da profissão.

“Não há razão para que informações re-lacionadas à violação de direitos humanossejam escondidas da opinião pública. Cadaato de violência contra a imprensa que nãoé investigado pelo Estado é um convite paraque aconteçam muitos outros. As autorida-des especulam, e ainda insistem que os atosde violência não estão relacionados ao tra-balho de jornalista”, criticou La Rue.

A Comissão da ABI de Defesa da Li-berdade de Imprensa e Direitos Huma-nos solidariza-se com o jornalista per-nambucano Ricardo Antunes, que estásendo vítima de cerceamento à liberda-de de expressão. Ele foi censurado emseu blog, preso e acusado de chantage-ar quem ele denunciou, ou seja, o em-presário e marqueteiro José AntônioGuimarães Lavareda Filho.

A acusação foi bancada pelo Tribu-nal de Justiça de Pernambuco, que oproibiu de escrever qualquer coisa so-bre o empresário e quatro empresas desua propriedade, inclusive impedindo-o de se defender das acusações. E nocaso de que não cumpra a determinaçãopagará uma multa de cinco mil reaispor cada inserção jornalística, seja emseu blog Leitura Crítica ou em outrosítio de informação, ou seja, página deinternet, e ainda na mídia escrita.

Esse é mais um caso de ‘judicializa-ção’ contra jornalistas que deve mere-cer o nosso maior repúdio. Se o jorna-lista eventualmente cometeu algumilícito deve sofrer as penalidades pre-vistas no código civil. Cercear o seu di-reito de expressão de pensamento elivre manifestação só mostra o quan-to tornou-se perigoso exercer a profis-são de jornalista em nosso País. E de-monstra cabalmente o quanto os ‘po-derosos’ temem uma imprensa livre eindependente.

É um fato grave que merece toda nos-sa indignação e um retrocesso institu-cional que temos certeza será reparadojunto aos tribunais de Brasília. Nãoexiste censura prévia no Brasil. A Co-missão de Defesa da Liberdade de Im-prensa e dos Direitos Humanos exor-ta a Justiça pernambucana a suspenderimediatamente qualquer tipo de restri-ção ao jornalista que, na prática, estáimpedido de exercer a profissão.

Rio de Janeiro, 30 de outubro de 2013

LIBERDADE DE IMPRENSA

Conferência aponta entravesao jornalismo investigativo

informações com práticas que afetam aliberdade de expressão. Outros utilizamagências de investigação para espionaremjornalistas, solapar suas atividades, saberquais são suas fontes, rastrear contas deforma clandestina”, disse.

A relatora estimulou jornalistas a pro-curarem os organismos de direito interna-cional para denunciarem abusos e perse-guições. “Estamos voltando a ver pessoasprocessadas por fazerem seu trabalho dejornalismo investigativo e submetidas amultas de até US$ 7 milhões”, disse. Tam-bém participou da plenária a diretora daDivisão de Comunicação Estratégica doDepartamento de Informações Públicas daONU, Deborah Seward. “A profissão emque trabalhamos hoje é mais perigosa emais difícil do que minha geração poderiaimaginar. Conhecer o Estado de Direito éessencial, mas a responsabilidade de for-necer informações precisas e verdadeirasé a melhor forma de se defender. Liberda-de de expressão é nossa obrigação.”

Jornalista évítima de censuraem PernambucoPOR MÁRIO AUGUSTO JAKOBSKIND

Mário Augusto Jakobskind é Presidente daComissão de Defesa da Liberdade de Imprensa eDireitos Humanos da ABI.

Representantes de emissoras de rádioe televisão das três Américas estiveramreunidos para a 43ª Assembléia Geral daAssociação Internacional de Radiodifu-são (AIR), que teve início no dia 13 deoutubro, e foi realizado até o dia 17, noWindsor Barra Hotel, no Rio de Janeiro.A AIR reúne 17 mil canais de TV e rádiodas três Américas e da Europa. O Presiden-te da Associação Brasileira de Empresasde Rádio e Televisão (Abert), Daniel Sla-viero, apresentou o “Relatório de Liber-dade de Imprensa”, com casos de violaçãoverificados nos últimos 12 meses no Bra-sil. O documento dedica um capítuloespecial às ocorrências registradas duran-te as recentes manifestações no País.

O estudo mostra que entre outubro de2012 a setembro de 2013, foram registra-dos 136 casos de ameaças, atentados,agressões, censura judicial e assassinatoscontra jornalistas no exercício da profis-são. Este número representa aumento de172% em relação aos 50 casos verificadosentre outubro de 2011 a setembro de2012. O relatório de 2013 contabilizacinco mortes no exercício da profissãodesde o início do anos, contra os seis re-gistros de assassinato ocorridos ao longode 2012. De acordo com a Abert, os casosde hostilidade, agressões e intimidaçõesregistrados contra a imprensa a partir dejunho de 2013, durante os protestos nas

AIR debate ameaças e elege novo presidentePOR CLÁUDIA SOUZA ruas em diversas cidades brasileiras, con-

tribuíram para elevar as estatísticas.O estudo afirma que das 136 ocorrên-

cias registradas em 2013, cerca de 90 es-tão atreladas às manifestações. Duranteos protestos do Dia da Independência doBrasil, comemorado em 7 de Setembro,foram contabilizados 20 ataques a jorna-listas de 14 veículos. Dos 20 casos de vi-olência, 18 foram praticados pela polícia.O relatório mostra ainda que Brasília foia cidade mais violenta para repórteres efotógrafos no feriado da Independência,totalizando 12 profissionais feridos, to-dos por policiais militares.

“Infelizmente, o ano de 2013 ficarámarcado como um ponto negro em razãodo aumento explosivo das ocorrências.Quando um profissional de imprensa éimpedido de fazer seu trabalho, a socie-dade é a maior prejudicada”, afirma oPresidente da Abert, Daniel Slaviero,vice-Presidente do Comitê Permanentede Liberdade de Expressão da AIR. Paraele, o aumento de episódios contra a li-berdade de imprensa no Brasil represen-ta “um importante alerta global”:

“A situação demonstra que é precisohaver vigilância permanente, pois oscasos podem ocorrer mesmo nas democra-cias. Apesar de ser um valor enraizado nasociedade, a liberdade de expressão e deimprensa é um processo carente de con-solidação e de vigilância para impedirretrocessos”.

Slaviero chamou a atenção tambémpara os quatro casos de censura préviaassegurados por decisões judiciais. “É umafonte grave de preocupação, uma censu-ra proveniente da Justiça, um dos pode-res que mais deveriam zelar pelo exercí-cio da profissão. É a fonte de decisões queproíbe os veículos de tratar de determina-dos assuntos”. Além da divulgação dorelatório, durante o encontro foram de-batidos temas relacionados à liberdade deexpressão e à convergência tecnológica.

PosseA programação do evento incluiu ain-

da a escolha dos novos dirigentes da AIRpara o período 2013/2015. Advogado evice-Presidente do Grupo RBS, Alexan-dre Jobim, é o primeiro brasileiro a assu-mir a presidência da AIR em 22 anos. Acerimônia de posse do novo presidenteaconteceu no dia 16 de outubro, duran-te a 43ª Assembléia. Para Alexandre, queé filho do ex-Ministro Nelson Jobim, osetor de radiodifusão concentrará esfor-ços na proteção da liberdade de expressãonos próximos anos. “O grande desafio seráa defesa da liberdade de expressão fren-te aos novos movimentos, mais sofistica-dos, que tentam cercear essa liberdade.Precisamos também nos modernizar paraacompanhar o movimento de conver-gência digital”, afirmou o substituto dochileno Luis Pardo Sainz. Também forameleitos os novos diretores da organização.

O relator disse ainda que as ações penaiscontra jornalistas por difamação, calúniae injúria são mecanismos ainda muitoutilizados por agentes públicos para impe-dir a apuração e publicação de denúncias.“Na América Latina, eliminamos o desaca-to. Agora é muito importante a revisão doconceito e da penalização da difamação,calúnia e injúria”, disse. Ele citou ainda aconcentração dos meios de comunicaçãonas mãos de poucos e conglomerados. “Seo Estado quer censurar uma notícia, temde assumir a responsabilidade.”

A plenária “Liberdade de expressão emcrise” contou ainda com a presença darelatora para Liberdade de Expressão daOrganização dos Estados Americanos –OEA, Catalina Botero. Segundo ela, mes-mo em países democráticos, há obstácu-los para o acesso a informações públicas,como processos com multas milionáriase agências de inteligência colocadas porgovernos a serviço da espionagem de re-pórteres. “Alguns países têm agências de

REPROD

UÇÃO

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Pelo menos 96 jornalistas brasileirosforam agredidos desde junho, quando teveinício a onda de protestos no País, segun-do levantamento da Associação Brasilei-ra de Jornalismo Investigativo – Abraji.Desses casos, 71 (74%) foram resultadosdiretos da ação de policiais militares. Umdos casos mais recentes aconteceu na tardede 21 de outubro, quando quatro jornalis-tas foram agredidos no Rio de Janeirodurante a cobertura de protesto contra oleilão do campo petrolífero de Libra.Houve confronto entre manifestantes eagentes da Força Nacional na Barra daTijuca, Zona Oeste do Rio, próximo aohotel onde o pregão foi realizado.

Em nota, a Abraji condenou todos osatos de violência contra jornalistas, sejameles praticados por manifestantes ou porpoliciais. “A Abraji cobra mais preparodas autoridades para agir de maneira agarantir o direito de a imprensa trabalhar– e não o contrário, como parecem virfazendo. É inaceitável que o Brasil tenhaquase 100 episódios de agressão, hostili-dade ou prisão de jornalistas em poucomais de quatro meses. Esse índice não écompatível com a democracia e fere odireito de toda a sociedade à informação”,disse o comunicado.

Para organizações de direitos humanose entidades de classe, apesar de as mani-festações terem elevado os números par-ciais deste 2013, a violência contra pro-fissionais de comunicação tem crescidonos últimos anos. Os assassinatos, porexemplo, passaram de dois, em 2005, paraseis, em 2011, de acordo com a FederaçãoNacional dos Jornalistas – Fenaj.

O Presidente da Fenaj, Celso Schröder,cita alguns fatores que explicam essa curvaascendente de violência contra jornalis-tas, entre eles a impunidade. “As agressõesocorrem principalmente na cobertura depolítica, há um senso comum de que épermitido fazer. É na imprensa que se dáo confronto direto entre os interessesprivados, que sejam ilegais, com o interes-se público, e isso produz reações”, decla-rou em seminário internacional sobreviolência contra jornalistas e o cercea-mento do direito da sociedade à informa-ção. O encontro é promovido pela comis-são organizadora do Prêmio VladimirHerzog, na capital paulista.

As entidades sindicais defendem a ado-ção de políticas públicas para combater esseaumento das agressões, como a formação deum observatório nacional que monitore asdenúncias. “É uma questão que tem nospreocupado. Desde o ano passado, um gru-po de trabalho da Secretaria Nacional de

Direitos Humanos, com organizações dasociedade civil, discute medidas como afederalização desses crimes”, disse BrunoRenato Teixeira, ouvidor nacional de Direi-tos Humanos da Secretaria. Ele informouque a criação do observatório deve ser anun-ciada ainda este ano.

Schröder propõe a adoção de um proto-colo pelas empresas de comunicação quegaranta aos profissionais, entre outras ques-tões, seguro de vida, equipamentos, autono-mia do repórter para a escolha da pauta e acriação de uma comissão que avalie os en-foques dados às reportagens. “Boa parte dasempresas não dá aos seus jornalistas ferra-mentas para a proteção”, disse. Ele rejeita aidéia de que o risco é inerente ao jornalis-mo. “Não é verdade isso. Uma cobertura jor-nalística precisa ser avaliada desse ponto devista para que possamos minimizar os ris-cos quando eles ocorrem”, defendeu.

O Presidente do Sindicato dos Jorna-listas Profissionais do Estado de São Paulo– SJSP, José Augusto Camargo, avalia queesse tipo de violência não se resolve ape-nas com ações individuais. “É um proble-ma pessoal, porque envolve o direito aoexercício da profissão, mas também é umaquestão coletiva, porque cala a voz dasociedade”. Para ele, a escalada de violên-cia percebida no último mês de junho temparalelo com o período da ditadura mili-tar. “Não se via isso desde então”.

Os casosNo dia 21 de outubro, a repórter Ali-

ne Pacheco, da TV Record, foi agredidapor manifestantes com um soco nas cos-tas enquanto cobria o Leilão de Libra. O

Jornalistas agredidos,coberturas ameaçadas

POR IGOR WALTZ

fotógrafo Gustavo Oliveira, da agênciabritânica Demotix, foi atingido por umapedrada. O também fotógrafo Pablo Ja-cob, de O Globo, e o cinegrafista MarcoMota, da TV Brasil, foram atingidos porbalas de borracha disparadas por agentesda Força Nacional. Um veículo da TVRecord foi virado por manifestantes.

Nas manifestações do Dia do Profes-sor, festejado em 15 de outubro, o repór-ter fotográfico Pablo Jacob foi agredidopor policiais com golpes de cassetetes. Nasexta-feira, 18 de outubro, Pablo voltoua ser agredido – desta vez por manifes-tantes – quando cobria a soltura de pes-soas detidas nas manifestações do dia 15.Além dele, os também fotógrafos CarlosWrede, do jornal O Dia, e Luiz RobertoLima, do Jornal do Brasil, também foramagredidos por manifestantes. O climahostil persistiu no sábado, quando novosalvarás de soltura foram expedidos.

Em São Paulo, o fim de semana tam-bém foi violento para a imprensa. A repór-ter do jornal O Globo Tatiana Farah foialvo de dois disparos de bala de borracha

Um homem armado invadiu arádio Meridional FM, da cidade deJaru, a 290 km de Porto Velho,Rondônia, e assassinou o diretor daemissora, Cláudio Moulero deSouza, na tarde de 12 de outubro. Olocutor Alberto Dutra Durantambém foi baleado, mas foisocorrido pelo Corpo de Bombeirosao Hospital Municipal de Jaru – enão corre risco de morte. Segundoinformações, o radialista Duranestava no interior do estúdio da rádioMeridional apresentando oprograma “Toca aí”, quando porvolta das 15h Moulero entrou

Em Rondônia, execução dentro do estúdioPOR IGOR WALTZ

durante protestos no sábado. Tatiana co-bria, em São Roque, interior de São Paulo,a manifestação contra o uso de animais(especialmente cães da raça beagle) emtestes farmacológicos.

Segundo a repórter, embora ela gritas-se ser da imprensa e estivesse com asmãos para o alto, um policial do choquemirou seu rosto e disparou uma bala deborracha, que passou de raspão por seucouro cabeludo. Outro disparo feriu-a naregião das costelas. Nesse mesmo protes-to, manifestantes atearam fogo a doisveículos da TV Tem, afiliada da rede Glo-bo que cobre a região.

Ainda em São Paulo, nas manifestaçõesdo Dia do Professor, 15 de outubro, orepórter fotográfico Yan Boechat foi es-pancado por um grupo de policiais mili-tares que tentava impedir que ele regis-trasse imagens da agressão a um manifes-tante, segundo o Sindicato dos Jornalis-tas de São Paulo (SJSP). Levantamento daentidade contabilizou 23 casos de agres-são e cinco detenções de profissionais decomunicação durante o mês de junho.

correndo pedindo por socorro, pois jádetectara a presença do criminoso.

Duran ainda tentou fechar aporta, mas foi ferido no ombro comum tiro. O agressor entrou noestúdio e fez novos disparos contra avítima que, atingida no peito, veio aóbito no local. “Escutei barulhos dolado de fora do estúdio e o Cláudio jáempurrou a porta pedindo ajuda.Um homem armado tinha invadidoa emissora e disparou contra nós. Fuiatingido no braço direito. Quando vique o sujeito tinha tirado a vida delepedi, pelo amor de Deus, para não sermorto também”, contou o locutor.

Ainda não se sabe o que motivouo crime. Nenhum objeto das

vítimas foi levado. Por isso a PolíciaCivil acredita que o caso se trata deum atentado contra o diretor darádio. O delegado responsável pelocaso, Renato Batistela Cavalheiro,afirma que não tem informaçõessobre a autoria e as motivações docrime. “As impressões digitais dasmaçanetas da porta foramrecolhidas e vamos continuar comas investigações”. Para Duran, odiretor estava dando sinais de quealguma coisa estava errada. “Elemorava em um anexo, no próprioprédio da emissora. De uns tempospara cá, estava sempre com a portatrancada, deixou de sair, só ficavana igreja”.

FERNAN

DO

FRAZÃO/AG

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IA BRASIL

Jornalistas são agredidos por policiais e manifestantes durante os protestos que acontecem desde junho.

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Brasília, começo do ano de 1980. Emuma modesta sala comercial, localizadabem próxima ao Superior Tribunal Mili-tar, as três máquinas de ‘xerox’ não para-vam. Os funcionários estavam sempreocupados produzindo cópias de processosque os advogados traziam do Tribunal e os‘negócios’ iam muito bem. Seria mais umentre tantos pequenos empreendimentosiniciados na promissora Capital Federalnão fosse por um detalhe: a copiadora nãofora aberta para ganhar dinheiro e, sim, parasalvar a memória e resgatar a justiça emtoda uma nação. Esse detalhe passou desa-percebido pelas autoridades que, há quaseduas décadas, mantinham o País debaixode uma rígida ditadura. Afinal, ninguémpoderia imaginar que, justamente ali,ousadia das ousadias, estivesse surgindoum dos mais audaciosos projetos de de-núncia contra os crimes e violações dedireitos humanos praticados pelo regime,iniciativa que se tornaria conhecida nosanos seguintes como Brasil: Nunca Mais.Ao reproduzir milhares de páginas de cen-tenas de processos, esse projeto escanca-rou um lado até então pouco conhecido darecente trajetória nacional, formado porprisões arbitrárias, violência, tortura e as-sassinatos de opositores do regime. Agora,passadas três décadas, todo o material fi-nalmente chega à internet, com a promes-sa de liberdade para a consulta integral dosdocumentos. E a confiança de que mais umgrande passo foi dado para que esta histó-ria nunca mais se repita.

Chamada de Brasil: Nunca Mais Digi-t@l, a iniciativa disponibiliza mais de 900mil páginas digitalizadas de 710 processos.Todo esse material deixa o papel e os rolosde microfilme para entrar no mundo vir-tual, com a garantia de fácil e irrestritoacesso. Entre os documentos é possívelencontrar a certidão de óbito do guerrilhei-ro e ex-Deputado Carlos Marighella, mor-to em uma emboscada armada por agentesda Delegacia de Ordem Política e Social(Dops), em 1969, em São Paulo; páginas doprocesso movido contra a Presidente Dil-ma Rousseff, por sua militância em orga-nizações de combate ao regime militar nosanos 1970; e textos, matérias de jornais erevistas, além de fotos que mostram o fun-cionamento das principais entidades deesquerda, chamadas tantas vezes nos pro-cessos de “subversivas” ou “terroristas”.

Tudo com a possibilidade de realizarpesquisas com o uso de programas sofis-ticados de busca indexada que permitemao internauta procurar pelo objeto de suabusca, por estado da Federação ou pororganização política. Essa tecnologia,conhecida como DOCPRO, cria bibliote-cas inteligentes e é a mesma usada pela

Biblioteca Nacional, por exemplo, em suahemeroteca digital, formada por mais de10 milhões de páginas de jornais. Antesde sair o resultado, no entanto, uma janelase abre na tela do computador e apareceuma advertência que deixa evidente anatureza do material que a pessoa estáprestes a ler: “Parcela expressiva dos depo-imentos de presos políticos e das demaisinformações inseridas nos processos judi-ciais foi obtida com uso de tortura e outrosmeios ilícitos, e não pode ser consideradacomo absoluta expressão da verdade”.

O processo de reunião de todo esseacervo, digitalização, verificação de danose correção dos arquivos, tratamento digi-tal e criação do site, envolveu mais de 100profissionais e estudantes, muitos delesvoluntários, durante pouco mais de doisanos. A empreitada foi concebida pelo Ar-mazém Memória e pelo Ministério Públi-co Federal em parceria com o Arquivo Pú-blico do Estado de São Paulo. Desde o iní-cio, somaram-se a essas entidades o Insti-tuto de Políticas Relacionais, o ConselhoMundial de Igrejas (CMI), a Ordem dos Ad-vogados do Brasil – Seccional Rio de Janei-ro, o Arquivo Nacional e o Center for Rese-arch Libraries / Latin American MicroformProject, de Chicago, nos Estados Unidos. Aolongo do tempo, outras entraram no grupo,como a Pontifícia Universidade Católica deSão Paulo (PUC-SP), o Arquivo Edgard Leu-enroth da Universidade de Campinas(Unicamp), o escritório de advocacia de Ru-bens Navaes, Santos Junior e Hesketh, aComissão Nacional da Verdade e a Univer-sidade Metodista de São Paulo.

“A presença de todas essas instituiçõesmostra a importância do Brasil: NuncaMais Digit@l. A digitalização e disponi-bilização na internet assegura que essematerial seja preservado e mais facilmen-te acessado. Há relatos terríveis, marcan-tes. Como o caso de crianças de um ou doisanos torturadas na frente dos pais, presos

políticos, para obter confissões”, disse oProcurador da República Marlon Alber-to Weichert, representante do Ministé-rio Público Federal, e um dos idealizado-res do projeto, no lançamento do site, queocorreu em agosto, em São Paulo.

Aposta arriscadaUm dos livros nacionais de maior su-

cesso em todos os tempos é o Brasil: Nun-ca Mais (Editora Vozes). Lançada em 15 dejulho de 1985, quatro meses após a retoma-da do regime civil, a obra ganhou enormedestaque dentro e fora do País, passando afreqüentar por quase dois anos a lista dosmais vendidos e se tornando, em poucotempo, o título de não-ficção brasileiromais comprado de todos os tempos. Atéhoje é uma referência quando o assunto éa época da ditadura militar e já se encon-tra em sua 40ª edição. Apesar de tamanhodestaque e importância, o livro-denúncia,escrito pelos jornalistas Ricardo Kotschoe Carlos Alberto Libânio Christo, o FreiBetto, coordenados por Paulo de TarsoVannuchi, e com prefácio de Dom PauloEvaristo Arns, é apenas um resumo doresumo de tudo o que houve.

Para entender a trajetória que culminouem sua publicação é necessário voltar a 1979.Na época, o País ainda vivia debaixo doscoturnos militares, mas já sob o impacto daanistia e na expectativa da redemocratiza-ção. Esse clima levou um grupo de religiosose advogados a uma aposta arriscada: obterjunto ao Superior Tribunal Militar informa-ções de violações dos direitos humanos pra-ticadas por agentes da repressão e compilaresse material na forma de um livro. Apesardas dificuldades, a ação era vista como a únicaalternativa para evitar que os processos nãofossem destruídos com o fim da ditadura, talcomo já havia acontecido com o término doEstado Novo, de Getúlio Vargas.

Ao consultar alguns processos que en-volviam a defesa de presos políticos, os

DIREITOS HUMANOS

Páginas de uma luta comovente,que novamente fazem história

POR MARCOS STEFANO advogados, liderados por Eny RaimundoMoreira, perceberam que vários deles ha-viam denunciado e detalhado as práticasde violência física e moral que tinham so-frido ou presenciado. Também descobri-ram que os processos poderiam ser repro-duzidos, aproveitando o prazo de 24 ho-ras facultado pelo Tribunal para a custódiaprovisória dos autos.

A idéia foi levada ao pastor presbite-riano Jaime Wright e ao cardeal católicoDom Paulo Evaristo Arns, que passarama comandar a empreitada a partir de SãoPaulo. Com o auxílio do também pastorCharles Roy Harper, foram conseguidosrecursos junto ao Conselho Mundial deIgrejas e, em 1980, alugada uma sala co-mercial em Brasília, onde passou a funci-onar a pequena copiadora. O passo se-guinte foi agregar à operação os advoga-dos que se dirigiriam ao Tribunal pararetirar os autos. À medida que eram fei-tas, as cópias eram remetidas para a capitalpaulista. Primeiro em ônibus noturnos,depois, em aviões de carreira, como car-ga desacompanhada, ou por carro.

A preocupação quase onipresente erade uma possível apreensão. De fato, du-rante os trabalhos, em três ocasiões, asforças policiais e militares estiverampróximas de encontrar e invadir os luga-res de análise e guarda dos documentos,o que obrigava a constantes trocas deesconderijo. Diante do temor e dos recur-sos tecnológicos de então, todas as pági-nas foram microfilmadas e remetidas àsede do CMI, em Genebra, na Suíça.

Foram seis anos de muito trabalho etensão. Mas, enfim, foi possível reunir acópia de 710 processos em mais de 900 milpáginas e 543 rolos de microfilme. Alémdisso, também foram copiados diversosmateriais anexos aos processos, comopanfletos, periódicos e textos de discussãoteórica, que renderam outras 10 mil pági-nas. Com base nessa documentação foiproduzido o chamado Projeto A, com aná-lise e documentação das informações queconstavam nos processos judiciais, iden-tificando quantos presos passaram pelostribunais militares, quantos foram formal-mente acusados, presos, quantos declara-ram ter sido torturados, quantos despare-ceram, quais eram as torturas mais prati-cadas, quais eram os centros de detençãoe quem eram os médicos plantonistas dos“porões” e alguns funcionários identifica-dos pelos presos políticos. Material querendeu 6.891 páginas divididas em 12volumes. Foi a dificuldade em manusearesses volumes que levou à produção de ummaterial 95% menor, o Projeto B, que setransformou no livro Brasil: Nunca Mais.

Enquanto o livro-denúncia era publi-cado, foram feitas 25 cópias do Projeto A.Estas foram encadernadas e enviadas para

Paulo Abrão, Luiza Erundina, Rosa Maria Cardoso da Cunha, AurélioVeiga Rios, Aloysio Nunes Ferreira durante o lançamento da BNM Digit@l.

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universidades, bibliotecas e centros dedocumentação de entidades dedicadas àdefesa dos direitos humanos no Brasil eno exterior. Já as cópias originais ficaramsob a guarda da Unicamp que, após recu-sa da PUC-SP e da USP, comprometeu-sea guardar e disponibilizar o acervo paraconsulta. Inclusive, reprodução.

ProtestosNos meses de junho e julho deste ano,

milhões de brasileiros saíram às ruas dasprincipais cidades brasileiras para protes-tar. A causa primeira era o aumento dastarifas dos transportes públicos. Mas a elase somaram as mais diversas reivindica-ções: saúde, educação, fim da corrupçãoe melhores condições de vida. Tão vari-ados quanto as bandeiras eram seus par-ticipantes, a imensa maioria constituídade jovens, que comemoram a tomada dasvias como uma vitória da cidadania. Ummovimento surpreendente, mesmo paraa polícia que, sem preparo, reagiu às ma-nifestações pacíficas com atos de violên-cia. São justamente esses momentos, combombas lançadas e tiros disparados con-tra os populares, que não saem da mentedo jornalista Marcelo Richard Zelic.

Vice-Presidente do Grupo Tortura Nun-ca Mais em São Paulo e coordenador doProjeto Armazém da Memória, portal for-mado por uma rede de colaboração paradisponibilização de conteúdos históricos deresistência popular na internet, Zelic cos-tuma debater a importância do resgate damemória no País. Nessas oportunidades, éinevitável a constatação de que o “nuncamais” ainda está distante dos brasileiros:

“Quando ouvimos alguém perguntar‘onde está Amarildo?’, não dá para deixarde lembrar que o mesmo questionamen-to foi feito há quatro décadas pelos fami-liares de desaparecidos a Dom Paulo.Quando um policial militar deixa decumprir suas funções, determinadas pelaConstituição de 1988, que são garantir odireito de manifestação e expressão, pelocontrário, entra disfarçado na manifes-tação e joga coquetel molotov em seuspróprios colegas de trabalho para criarpretexto para a repressão, em que suaprática se difere daquela dos manuais parainfiltrados nos tempos da ditadura?Quando surgem denúncias do uso de ta-ser, a arma do eletrochoque, e gás de pi-menta em delegacias, para torturar pesso-as, vemos que o Estado muda a tecnolo-gia, mas perpetua a conduta. Em vez damanivela, entra em cena o taser.”

Sem informação e educação não é pos-sível mudar esse quadro, por isso, desde2001, o Armazém Memória colocou comoseu grande objetivo digitalizar a íntegra doBrasil: Nunca Mais. O primeiro passo foia digitalização e disponibilização do Pro-jeto A. Com ele, desenvolvido em parceriacom o Ministério Público e outras institui-ções, o objetivo foi se tornando cada vezmais real. Ou melhor, virtual.

Mas ainda havia problemas. Após che-car o acervo que está na Unicamp, ospesquisadores constataram a ausência demuitas páginas dos processos, provavel-mente, extraviadas ao longo dos anos.

Foi aí que começou a procura pelos mi-crofilmes de segurança, que continham acópia mais fiel e íntegra do material. Apósdois anos, eles tiveram acesso ao materi-al do CMI e a mais uma cópia, depositadapela entidade no Latin American Micro-form Project (LAMP), do Center Resear-ch Libraries, um consórcio internacionalde universidades, faculdades e bibliotecasindependentes, sediado em Chicago, nosEstados Unidos, e que preserva coleções demicrofilmes latino-americanos raros e derelevância histórica. Trazidas para o Bra-sil em 2011, todas as cópias foram soma-das e, junto com o Projeto A e materiais daComissão Justiça e Paz da Arquidiocese deSão Paulo, passaram a formar o acervo doBrasil: Nunca Mais Digit@l.

No ar desde o dia 9 de agosto, somentena primeira semana, quase 300 mil páginasdo site foram acessadas e 36 mil pesquisasforam feitas. Números que tendem a au-mentar, já que o Ministério Público estáfazendo um sumário dos processos queajudará os interessados a localizar infor-mações a partir do conteúdo dos proces-sos, acessando também mais de 13 milfotografias. Não somente isso. Mesmoapós rigoroso tratamento digital, estima-se que cerca de 108 mil páginas ainda es-tejam em condições precárias de leitura eoutras 35 mil – contando apenas as bas-tante relevantes – faltando. Elas deverãoser substituídas pelas originais, que estãono Superior Tribunal Militar. A digitaliza-ção será feita pelo Arquivo Nacional ecomeçará após a descontaminação e lim-peza do material.

“O Brasil: Nunca Mais é consideradoa maior iniciativa da sociedade civil emnossa nação em prol dos direitos à memó-ria, verdade e justiça. Graças a ele, pude-mos jogar, nesses últimos anos, luzes naturbulenta e conturbada história nacio-nal. A digitalização desse acervo facilitao acesso a essa história. Serve como pon-te para o cumprimento de sua finalidadeinicial, que é a educação. Com sua chega-da à internet, abrimos as portas para al-cançar as novas gerações, aquelas queestão aprendendo a usar as redes sociaiscomo instrumento de mobilização e ci-dadania”, afirma Marcelo Zelic, um dosdiretores executivos do BNM Digit@l.

Há quem aposte nisso para que essaspáginas sejam finalmente viradas na his-tória do País. Pelo menos por enquantoisso parece improvável. Ainda mais quan-do se sabe que o Brasil ainda não cumpriua sentença da Corte Interamericana deDireitos Humanos, que condenou o Esta-do pelos crimes cometidos na Guerrilhado Araguaia, e ainda não desobstruiu naJustiça os caminhos para que ocorram asdevidas responsabilizações e reparações.Seja no caso do militante GuilhermeGomes Lund, do PCdoB, fuzilado pelasForças Armadas em 1975, ou em quais-quer outros. Ou mesmo diante dos traba-lhos da Comissão Nacional da Verdade,que ainda patinam. Espera-se, enfim, queo BNM Digit@l seja mais um impulsopara o sucesso das tantas investigações eações que aguardam sua vez na JustiçaTransicional.

O primeiro grande argumento de defesa da Ley de Medios, cujaconstitucionalidade foi garantida pelo Supremo Tribunal de Justi-ça da Argentina, está na indicação de quem contra ela se mobilizaem uma guerra total – a Sociedad Interamericana de Prensa e os gran-des grupos mediáticos que a controlam, principalmente o grupoClarin.

Porque é esse grupo o principal beneficiado por acordos e conces-sões firmadas durante o período trágico da ditadura militar que con-seguiu se destacar, em crueldade e vileza, em meio às suas demaisparceiras do continente. Acordos e concessões que, em grande par-te, perdem validade com esse avanço substancial do processo dedemocratização dos meios de comunicação na Argentina, e que cer-tamente vai ter desdobramentos internacionais, como exemplo aseguir. Mas, vamos ao grão. Do que trata a Ley de Medios?

Promulgada na Argentina, em 2009, ainda não foi implementa-da por rasteiras manobras judiciárias de quem possui poderososinstrumentos econômicos e políticos para a defesa de seus privilé-gios históricos. E por razões óbvias. Pois o que tal lei representa éexatamente o banimento da legislação anterior, promulgada peladitadura militar assassina em 1980, e dentro da qual se locupleta-ram e se locupletam os que hoje se colocam contra qualquer regula-mentação. Legislação diante da qual, por sinal, a SIP nunca mobi-lizou nenhuma campanha.

O que pretende a legislação renovadora? Produto de amplo de-bate, não só parlamentar, mas também social, visto que contandocom a participação de mais de 300 organizações da Sociedade Ci-vil, não só do campo do trabalho como também do empresarial.Pretende por acaso ofender a propriedade privada ou estabelecer acensura, como alardeiam os arautos da manutenção do status quoreacionário ora em vigor?

Certamente que não. De pronto, porque a Ley de Medios não seestende a jornais, revistas ou a qualquer outro segmento do setor pri-vado. Como está definido em seu próprio título original – Ley de Ser-vicios de Comunicacion Audiovisual –, destina-se especificamente aregulamentar o setor que opera por concessão de direito público. Eatendendo, antes de tudo, para além do previsto na Constituição ar-gentina, ao que se estabelece na Declaração de Princípios da Comis-são Interamericana de Direitos Humanos. Seu item 12 é explícito:

“Os monopólios ou oligopólios na propriedade e controle dos meiosde comunicação devem estar sujeitos a leis anti-monopólio, umavez que conspiram contra a democracia ao restringirem a plurali-dade e a diversidade que asseguram o pleno exercício do direito doscidadãos à informação. Em nenhum caso essas leis devem ser ex-clusivas para os meios de comunicação. As concessões de rádio etelevisão devem considerar critérios democráticos que garantam umaigualdade de oportunidades de acesso a todos os indivíduos”.

Seguindo tal preceito, os canais de rádio e TV argentinos pas-sam a ser distribuídos em partes equânimes, entre sociedade civilorganizada, poder público e o setor privado, com o número de ca-nais limitado, de molde a impedir o vetado pela CIDH. Simples as-sim. O resto é o velho cantochão da direita antidemocrática.

POR MILTON TEMER

A íntegra da lei, em espanhol, está em infoleg.gov.ar/infolegInternet/anexos/155000-159999/158649/norma.htm

Ley de Medios,um exemplo a seguir

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Poucas são as pessoas que efetivamen-te resistem bem ao passar do tempo. Omesmo vale para documentos. Pois Ber-nardo Cabral dá prova de vitalidade, aos81 anos, como consultor da Presidênciada Confederação Nacional do Comérciode Bens, Serviços e Turismo (CNC), en-tidade localizada na Avenida General Jus-to, no Centro do Rio de Janeiro. É com lu-cidez estimulante que o político – cujatrajetória inclui os cargos de DeputadoFederal, Senador e Ministro da Justiça –analisa, a pedido do Jornal da ABI, uma desuas principais realizações no campo Le-gislativo. Cabral ajudou a redescobrir oBrasil, ao atuar como relator da Assem-bléia Constituinte de 1987 – aquela queresultou na Constituição de 1988, que re-colocou em definitivo o País na rota da de-mocracia. Carta Magna e fundamentalque, neste 2013, completa 25 anos.

Desde sua elaboração e promulgação,em 5 de outubro de 1988, a Constituiçãobrasileira vigente é apontada como umadas mais modernas do mundo. Mas, pas-sado um quarto de século, será que elacontinua a merecer essa classificação?“Sem dúvida. Basta uma simples leiturados artigos e incisos do art. 5º, do Capítu-lo dos Direitos e Deveres Individuais e Co-

transição do sombrio regime militar paraa primeira eleição direta para Presidenteda República em pouco mais de duas dé-cadas – e que se realizou logo no ano se-guinte à sua promulgação, isto é, em 1989.

“A Constituição não só garantiu o res-tabelecimento e a manutenção da demo-cracia como teve o grande mérito de so-terrar a época do obscurantismo, além defirmar a expressa consagração do respei-to aos Direitos Humanos como princípiofundamental; o alargamento das garan-tias fundamentais, com ênfase para o “ha-beas data”; o mandato de injunção; a ga-rantia do devido processo legal; os pode-res de investigação próprios das autorida-des judiciais, conferidos às Comissões Par-lamentares de Inquérito; o capítulo ino-vador e exemplar da ciência e tecnologia;o combate sem trégua à corrupção, atra-vés do fortalecimento do Ministério Pú-blico; a liberdade de expressão e de comu-nicação; o acesso à informação; o sigiloda fonte; e o fim da censura”.

Cabral recorda-se do contexto políticodaquela época. “Não havia nenhum esbo-ço previamente preparado do texto, apesarde existir a Comissão Provisória de EstudosConstitucionais, composta por notáveis,sob a presidência de Afonso Arinos, no Riode Janeiro. Ali, já se apostava num modeloparlamentarista de governo. A proposta foienviada ao José Sarney, Presidente da épo-ca, que sempre foi presidencialista e não amandou para a Assembléia Constituintecomo um ante-projeto. Ou seja, não valeude nada”. Coube ao grupo encabeçado porBernardo transformar mais de 40 milemendas no texto final, que seria promul-gado em 5 de outubro de 1988. “ComoUlysses Guimarães definiu, tínhamos en-fim a Constituição Cidadã. Historica-mente, as constituições do Brasil come-çavam pelo Estado, nasciam a partir desuas demandas – e ao cidadão era reserva-da a parte final dos artigos. Nesta, de1988, o texto abre com os direitos indi-

A Carta da Liberdade,25 anos depois

PAULO CHICO

Relator da Assembléia que resultou na Constituição de 1988, Bernardo Cabral fazuma análise do documento que ajudou a formatar. Festeja acertos da Lei, lamentaalguns erros ao longo do processo político. E fala do País que o Brasil poderia ser.

letivos. E fora dele, o Capítulo que trata doMeio Ambiente, pioneiro em consagrarmundialmente o tema a nível constitucio-nal, e que hoje serve de exemplo para oresto do mundo”, aponta o ex-Senador.

Fundador do extinto MDB, Bernardoteve seu mandato de Deputado cassado

pelo AI-5, editado em 13 de dezembro de1968. Em 10 de fevereiro de 1969 teve sus-pensos seus direitos políticos por dezanos e interrompida a sua carreira de pro-fessor universitário. Por isso mesmo, oparlamentar destaca o papel vital desem-penhado pela Constituição na fase de

HISTÓRIA

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FRANCISCO UCHA

Bernardo Cabral:A Constituiçãogarantiu orestabelecimentoda democracia,além de firmara expressaconsagraçãodo respeito aosDireitos Humanoscomo princípiofundamental.

Bernardo Cabral, Fernando Henrique Cardoso e Ulysses Guimarães durante a promulgação da Constituição cidadã. Ao lado, Ulysses e a Constituição de 1988.

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viduais. O homem é a própria substânciado texto constitucional”.

Apesar dos acertos, o relator lamentaa retirada do texto de alguns tópicos quefaziam parte do esboço inicial, como aimplantação do Instituto de Desapropri-ação para o Fim de Reforma Agrária. Aodetalhar o processo de elaboração da novaCarta, que substituiria a que vigorava des-de 1967, Cabral destaca a preocupação ea responsabilidade do grupo envolvidonos trabalhos. “Tratava-se de reordenardemocraticamente o País após a rupturada ordem constitucional. E a importân-cia, para a sociedade brasileira, de umaConstituição democraticamente votadaera evidente para todos. Sem ela os valo-res fundamentais em que se deve baseara sociedade estão permanentemente ame-açados. Uma Constituição deve espelharo estado atual das relações sociais, mas, aomesmo tempo, servir de instrumentopara o progresso social”, disse.

Se ainda apresenta-se em boa forma, aConstituição de 1988 não deve qualqueragradecimento às dezenas de emendaseditadas seguidamente pelos Presidentesdesde sua promulgação. “Esse processoaviltou e muito a sua essência. Aliás, a der-rota do parlamentarismo foi o grande errocometido na votação do plenário que der-rubou esse sistema de governo, erro esseque ocorreu pela ambição e vaidade deuns, falta de perspectiva de outros e in-compreensão de muitos. E que se tornouirreparável porque, apesar de ter desagua-do na Revisão Constitucional de 1993 edas minhas advertências, os presidenci-alistas mantiveram o instituto da Medi-da Provisória que, a meu ver, só pode co-existir com o parlamentarismo. E o resul-tado funesto foi a transformação do Pre-sidente da República no papel de usurpa-dor das funções do Congresso Nacional.”

Para Bernardo Cabral, as MPs fazem dafigura do Presidente da República o maiorditador de todos os tempos – tornando-o

um “autêntico assassino do poder legislati-vo”. Todos os presidentes que sucederam1988 utilizaram as MPs, uns de maneiravergonhosa, na avaliação do relator. Amesma proliferação desenfreada ocorreucom as emendas. Nestes 25 anos, a Consti-tuição de 1988 sofreu 80 delas – númeroconsiderado elevado, e que resultou, em mé-dia, numa pequena mexida a cada quatromeses. Apenas como comparação, em seus224 anos de existência, a Lei Máxima nor-te-americana sofreu apenas 27 emendas.

“Medidas provisórias não podem serusadas no sistema presidencialista. Noparlamentarismo, o primeiro ministroapresenta ao congresso o seu plano degoverno. Ele precisa cumpri-lo, para man-ter-se no poder. O presidente, por suavez, tem mandato conhecido. Toma possee esquece de suas promessas de campa-nha. A maior falha é dar a uma só pessoaa chefia do Governo e a chefia do Estado.No parlamentarismo, o chefe do Estadoé um, o chefe do Governo é outro. Vejabem se o presidencialismo de coalizãofunciona no Brasil? Muito melhor esta-ria este País se fosse parlamentarista. Secriou o termo ‘mensalão’ – que nada maisfoi do que a prática da Presidência da Re-pública de comprar votos para que fos-sem aprovados determinados projetos.No sistema parlamentarista isso nãoacontece, pois tudo se dá por meio de ne-gociação entre partidos. Acontece que,hoje, temos legendas de aluguel, que fazemtrocas de favores, não bem conceitua-dos... Nós nunca teremos partidos fortesno Brasil enquanto estivermos no siste-ma presidencialista”, lamenta.

Isso ajuda a entender porque aindaexiste tanta distância entre o que preve-em os termos da Constituição e o quadroreal da sociedade brasileira. Entre o ‘orde-na-se’ e o ‘cumpra-se’. “Essa distância sedeve ao que eu defino de ‘como realizara Constituição’, tarefa superior pela qualsão responsáveis os agentes políticos dos

três Poderes da República; os congressis-tas, porque lhes cabe o dever, até aqui in-diferente, de complementar e integrar otexto da Constituição; os magistradosnacionais, especialmente alguns Minis-tros do Supremo Tribunal Federal, porquehá dispositivos constitucionais que o Ju-diciário não lhes explorou as virtualida-des; e, finalmente, o titular da Presidên-cia da República que, lamentavelmente,vem mantendo o vezo eventual da hege-monia do Executivo, dando-lhe ares depresidencialismo imperial, quando maissalutar seria realizar integralmente o pro-grama normativo da Constituição”.

Formado pela Faculdade de Direito daUniversidade Federal do Amazonas, seuestado natal, Bernardo Cabral é defensorradical da reforma política. “Ela é a maisimportante, pois dela todas as demais sãoconsequências... As pessoas procuram seusfinanciadores de campanha e amanhã fi-cam vinculadas a retribuírem o favor re-cebido – é uma desmoralização por ante-cipação! A maioria dos escândalos de cor-rupção, na esfera dos governos, ocorre porconta das nomeações feitas com base nasnegociações políticas, para ter apoio noCongresso. As relações políticas, no Bra-sil, quase sempre padecem de um vício deorigem. Qualquer Presidente da Repúbli-ca, em seu primeiro ano de governo, gozade simpatia e apoio – e esta é a hora certade fazer a reforma política. Pena que a Dil-ma Rousseff, assim como seus antecesso-res, tenha perdido esta oportunidade”.

O que desagrada em cheio ao ex-Sena-dor, cuja história em detalhes pode ser co-nhecida no livro Bernardo Cabral – Um es-tadista da República, escrito pelo advoga-do Júlio Antonio Lopes, são as frequen-tes iniciativas de convocação de umaConstituinte, a fim de promover refor-mas profundas na Carta Magna. Propos-ta deste tipo foi feita recentemente pelaPresidente da República, ainda sob o efei-to do calor das manifestações de rua.

“A Constituição de um país é uma Leifundamental que mostra as diretrizes quea nação quer seguir... Não dá pra mudaresse texto em função de interesses secun-dários ou momentâneos. Fazer agora aconvocação de uma assembléia paramudar a constituição? Isso é uma burri-ce! Só se convoca uma constituinte quan-do há ruptura do poder... Em 1889, com D.Pedro II, foi proclamada a República, ascasas de poder até então existentes foramfechadas – e logo foi convocada a assem-bléia e feita a primeira Constituição re-publicana, pondo fim à monarquia. AConstituição de 1934 também foi frutode uma ruptura política, sendo filha dire-ta da Revolução Constitucionalista de1932. No momento, não temos essa rup-tura política. Os poderes Legislativo e Ju-diciário funcionam, a Presidência tam-bém...”, pondera o relator.

Mas, o que representam as manifesta-ções populares que tomaram conta dasruas do País desde o primeiro semestredeste ano, quando interpretadas à luz daConstituição de 1988? “Elas devem seranalisadas no contexto em que elas, aprincípio, tinham bem definido: a rei-vindicação de medidas inadiáveis que vi-nham sendo relegadas ao absoluto descasopelo poder público, para dizer o mínimo.Essas manifestações tiveram o condão derevelar que o povo estava equidistante,mas não indiferente. Daí terem recebidoos aplausos iniciais, os quais acabaram setransformando em reprovação à badernae ao quebra-quebra generalizado. Dequalquer sorte, é preciso dizer que a nossaLei garante o direito de ir e vir, mas nãoincentiva e nem garante a destruição debens públicos ou particulares.”

O relator da Constituinte de 1987 con-fessa que esperava maior destaque às co-memorações dos 25 anos da atual Cons-tituição brasileira. E, mais do que isso,algum debate efetivo sobre sua relevân-cia. “Na minha avaliação, o destaque nosjornais e na mídia em geral foi apenas re-lativo... Eis que não se promoveu umamplo debate nacional sobre a CartaMagna. E, com isso, a esperança que ha-via entre alguns interessados para que issoocorresse – pelo menos, para mim – nãopassou de uma frágil aspiração em trân-sito para o desencanto”, resume.

É com a experiência de quem teve seusdireitos políticos cassados, e enfrentouinclusive episódios extremos de violên-cia, como o caso da Bomba do Riocentro,em 1983, quando ocupava a Presidênciada Ordem dos Advogados do Brasil(OAB), que Bernardo Cabral festeja opapel histórico do documento que ajudoua elaborar. “Parlamento emasculado, víti-ma de descrédito junto à população, ce-nário em que vivemos, é uma coisa terrí-vel. Mas é infinitamente melhor do queum parlamento fechado, símbolo máxi-mo da ditadura. Precisamos ter em men-te que se não fosse esta nova Constitui-ção – e, na época, os críticos diziam queela não duraria seis meses – nós não terí-amos trilhado em segurança os caminhosque nos levaram novamente a um Estadodemocrático e de direito”.

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Parlamentares comemoram e cantam o Hino Nacional depois de promulgada a Constituição.

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Jornal da ABI – O senhor demorou mui-to tempo para se decidir a escrever umlivro de memórias sobre sua experi-ência como militante político na dita-dura militar? Quanto tempo levou atécomeçar a fazê-lo de fato?

Carlos Knapp – Ao voltar do exílio, em1980, comecei a redigir um relatório base-ado no meu bloco de notas e numa boa me-mória. Na verdade, foram muitos blocos denotas em que eu ia anotando observações,

indiscriminadamen-te, no decorrer dosmeus dez anos obriga-do a viver fora do meuPaís. A intenção nãoera a de publicar umlivro, e sim de contaro que aconteceu, mos-trar que eu não era obandido que pinta-vam os militares e asforças de repressão.Por isso, chamei esserelatório de Confis-são Sem Tortura e essaepígrafe ficou como

subtítulo do primeiro capítulo de MinhaVida de Terrorista.

Jornal da ABI – O bloco de notas foiiniciado quando o senhor estava no exí-lio já pensando em escrever depois umabiografia?

Carlos Knapp – Não, era apenas um ain-de memoire, digamos assim, já descartado,inclusive. Mas muitas cartas guardo ain-da por seu valor afetivo, principalmente.

Jornal da ABI – Algum fato em especialo motivou a escrever a autobiografia?

Carlos Knapp – Aos amigos e parenteseu costumava contar passagens do meu exí-lio, uma levando à seguinte, nesse encade-amento vertiginoso dos fatos, como depoisnarrei no livro. As pessoas ouviam entre per-plexas e fascinadas, muitas vezes duvidan-

do que tudo aquilo pudesse ter acontecidona vida de uma única pessoa. Tais demons-trações de interesse me levaram a acreditarque esse meu livro teria público leitor. En-tretanto, minha motivação para escrevê-lofoi a vontade de denunciar o esbulho legalque me impediu de criar meus filhos peque-nos na Europa, após a morte de sua mãe, emSão Paulo. Essa foi a mais pesada das puni-ções das que me foram impostas; meus fi-lhos foram criados por meus inimigos.

Jornal da ABI – Conte melhor essa his-tória dos seus filhos. O senhor tinhaquantos anos de exílio? Nesse perío-do, tinha conseguido vê-los?

Carlos Knapp – Quando me instaleiem Londres, no ano de 1972, com workpermit e nome na lista telefônica, a co-municação com meus filhos e com Arlet-te, sua mãe, foi restabelecida por uma cor-respondência intensa, por meio de tele-fonemas e remessa de pacotes pelos Cor-reios. Fizemos eu e minha ex-exposa umpacto que pretendíamos cumprir de qual-quer jeito, claro: se um dos pais vier a fal-tar, o outro assume as crianças. E ela par-tiu quando eu estava exilado.

Jornal da ABI – Como sua esposa mor-reu? Quanto tempo depois chegou anotícia?

Carlos Knapp – Em fevereiro de 1974,quando assistia aos desfiles de carnaval noRio de Janeiro, Arlette teve uma forte cri-se de asma. No pronto-socorro a que foilevada não havia oxigênio e ela morreusufocada. Recebi a notícia somente umasemana depois.

Jornal da ABI – O senhor tentou levarseus filhos para a Europa?

Carlos Knapp – Assim que soube damorte de Arlette, pedi que a família delame enviasse as crianças. Juntei a autoriza-ção paterna para a viagem, documento pas-sado no consulado brasileiro em Londres.

POR GONÇALO JUNIOR

Em autobiografia reveladora, o ex-publicitárioCarlos H. Knapp narra como trocou a carreira promissora

pela luta armada e os dramas que viveu no exílio.

“Meus filhosforam criados pormeus inimigos”

DEPOIMENTO

Talvez o leitor interessado em históriapolítica do Brasil nos últimos 50 anos nãotenha lido tudo que deveria sobre a luta ar-mada na ditadura militar brasileira e o exí-lio a que muitos combatentes do regimeforam obrigados a se submeter entre 1964e 1979, ano em que entrou em vigor a Leida Anistia. Essa é a impressão que dá ao co-nhecer a autobiografia Minha Vida de Ter-rorista, do ex-publicitário paulista Carlos H.Knapp, que acaba de ser lançado pela Edi-tora Prumo. De olhar sensível e dramáticopara a própria trajetória e tudo que o cerca-va na ditadura, o autor não se limita a con-tar histórias surpreendentes como, também,a interpretá-las. Assim, ressalta toda a dra-maticidade dos dez anos em que foi obriga-do a ficar longe dos filhos e de seu País. Oprotagonista vai da decisão arriscada de re-sistir ao governo militar à solidão que o iso-la, deprime e até destrói a vida do exilado.

Considerado um dos melhores redato-res de São Paulo na segunda metade dadécada de 1960, Carlos Henrique Knappera um exemplo de self-made man. Jovem ebem sucedido, ele tinha seu próprio negó-cio, a agência Oficina de Propaganda. Nomeio publicitário, chamava atenção pelacriatividade em um período importante deprofissionalização da propaganda brasilei-ra, mais antenada e influenciada no que sefazia de mais contemporâneo no primeiromundo, como Estados Unidos e Inglaterra.Assim, a publicidade nacional – feita emgrande parte por agências multinacionaisque mantinham filiais nas principais capi-tais do País – assumia novos riscos para seadaptar às mudanças de comportamentodos consumidores, em plena revolução se-xual e popularização da TV. Para Knapp, ocontexto não podia ser mais cômodo e es-timulante. Mas, enquanto isso, o Brasil mer-gulhava numa repressão sem precedentesem sua história, com prisões, tortura emorte de suspeitos que faziam parte de or-ganizações armadas clandestinas.

Quem poderia imaginar, portanto, queo publicitário, no decorrer de dois anos, fezparte da rede de apoio à Ação LibertadoraNacional (ALN), o grupo revolucionário li-derado por Carlos Marighella (1911-1969),que atuava como principal opositor ao re-gime militar? Knapp levava uma vida du-

pla quase imperceptível até mesmo dos pa-rentes mais próximos. Durante o dia, aten-dia clientes, criava anúncios na agência e re-laxava em partidas de tênis com amigos noclube Sociedade Harmonia, então conside-rado o mais exclusivo de São Paulo. À noi-te, porém, fazia contatos revolucionáriose mantinha conversas com Marighella. Du-rante algumas semanas, o inimigo públiconúmero 1 dos órgãos de repressão ficou es-condido na sua residência, no Jardim Euro-pa, bairro da alta classe média paulistana, a300 metros da casa do general que coman-dava o II Exército, José Canavarro Pereira,o quartel-general da tortura em São Paulo.A família só descobriu o segredo quando ofilho Eduardo, então com cinco anos, efu-siva e inocentemente identificou o pai emum cartaz com fotos de terroristas procu-rados pela polícia. Ele olhou edisse: “Mamãe, olha o papai!”A resposta foi curta e grossa:“Cale a boca!”

Knapp “caiu” em 1969,depois de prestar socorro aum guerrilheiro baleado. Paraescapar da prisão e dos cen-tros de tortura, fugiu do Bra-sil. Deixou a agência, a carrei-ra bem-sucedida e os filhospequenos, que moravam coma ex-mulher. São essas histó-rias que ele conta em sua au-tobiografia, que traz princi-palmente a tortuosa vidapelo exílio, como ele explica nesta entre-vista exclusiva ao Jornal da ABI. Graças àscadernetas com anotações que fez ao lon-go de dez anos, ele relembra com riquezade detalhes encontros com famosos comoMiguel Arraes, Oscar Niemeyer, Tom Jo-bim e Chico Buarque, entre outras perso-nalidades. Uma vida marcada pela neces-sidade constante de disfarces, novas iden-tidades, documentos e variações de empre-gos. Um dos momentos mais fortes da obraé o drama de ter sido obrigado a se afastardos filhos, um trauma até hoje não supe-rado por toda a família. Para ele, este foi umgolpe mais duro do que ter perdido seusbens para o delegado Sérgio Paranhos Fleu-ry, um dos mais temidos torturadores e ma-tadores das forças de repressão da ditadu-ra. A seguir, ele fala da experiência de voltarno tempo e rever histórias tão dolorosas.

Carlos Knapp emfoto da década de1970 e alguns dos

documentos que eleutilizou como

Henrique Rossmann.

DIVULGAÇÃO

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Fiz tudo como exigia a lei. Mas já então acomunicação entre mim e meus filhostinha sido terminantemente cortada.Logo depois do enterro, entraram em ju-ízo para cassar o meu pátrio poder. Meusfilhos passaram a ser criados por meus ini-migos. Só pude revê-los na tentativa de se-qüestro que fiz, dois anos mais tarde.

Jornal da ABI – É um costume seu ler oslivros de memória que são publicadossobre a luta armada e a repressão na di-tadura? O que o senhor acha deles?

Carlos Knapp – Alguns desses livros sãode leitura penosa, fazem celebrações deuma guerra sem vitórias. Consultei bastan-te o volume Dossiê Ditadura: Mortos e Desa-parecidos Políticos 1964-1985 como fonte com-plementar do meu. Quero mencionar duasobras que eu amo. Uma é Crônicas Subver-sivas de Um Cientista, em que Luiz Hilde-brando mostra que é escritor quase tão bomquanto cientista – e ele é um dos poucos pes-quisadores de ponta deste País. As crônicasde Luiz Hildebrando relatam a sua mili-tância de comunista desde os tempos deestudante, o seu duplo exílio na França esua gestão de diretor do Departamento deBiologia Molecular do Instituto Pasteur,ao lado de Jacques Monod, Prêmio Nobelde Medicina – na ocasião, Hildebrando foiprocessado pela ditadura por trabalharpara um governo estrangeiro sem pedirlicença ao general presidente do Brasil. Aoutra é K, a obra-prima de Bernardo Ku-cinski, que já tem traduções publicadas naInglaterra, Espanha e Alemanha. De um diapara o outro, Ana Rosa, irmã de Bernardo,professora de Química da USP, desapare-ce junto com o marido; seu pai passa a pro-curar a filha nas delegacias, DOPS, Minis-tério da Justiça, hospitais, necrotérios ebusca apoio do cardeal, do rabino, de orga-nizações de solidariedade internacional.O livro descreve essa via crucis pungenteem que o velho K é iludido e desencami-nhado pelas pistas falsas que lhe são con-fidenciadas pelas autoridades.

Jornal da ABI – Quais erros mais co-muns são cometidos nesses livros so-bre a resistência armada à ditadura?

Carlos Knapp – Não os estudei para po-der fazer esse tipo de análise.

Jornal da ABI – Num dos volumes es-critos por Elio Gaspari, sobre o governoGeisel, tem-se a impressão de que abase do texto foi o diário de um mili-tar, Heitor Ferreira, que trabalhava nogabinete do Presidente. Mesmo assim,o livro foi ovacionado. Não incomo-da essa memória fragmentada e, às ve-zes, distorcida, porém vendida comoverdades absolutas sobre a ditadura?

Carlos Knapp – Não podemos afirmarque, com a distância, a história estabeleçaas verdades verdadeiras. Ela se baseia nosregistros e crônicas da época, nas celebra-ções, nas vozes dominantes do tempo, nosenso comum vigente. O que aprendemosna escola sobre a Guerra do Paraguai nadatem a ver com a verdade. E sem olhar tãolonge: sabemos que Fernando HenriqueCardoso é estadista de muito maior signi-

ficado que Lula, mas podemos imaginarque, dentro de cem ou duzentos anos, oslivros de história possam dedicar muitomais espaço a Lula por causa de sua carreiramítica e única: de migrante nordestino alíder partidário e Presidente da República.

Jornal da ABI – Existe alguma ironia,alguma provocação no título de MinhaVida de Terrorista ou foi só um termode efeito de um publicitário?

Carlos Knapp – O cartaz com minhafoto, “Terroristas procurados – Assaltaram– Roubaram – Mataram pais de família”, vaireproduzido na contracapa do livro e jus-tifica a ironia do título. Há muito tempodeixei de ser, felizmente, um publicitário.

Jornal da ABI – Ao voltar do exílio,como o senhor retomou sua vida? Porque ‘felizmente’ deixou de ser publi-citário, se este era um futuro tão pro-missor antes do exílio?

Carlos Knapp – Quando voltei, as por-tas das agências estavam fechadas paragente estigmatizada como eu. Fui diretordo Instituto Universal Brasileiro, quevendia anacrônicos cursos por corres-pondência. A empresa ainda era grandeanunciante, mas estava quebrada. Conse-gui passá-la ao concorrente e formei umaeditora de cursos de extensão cultural,também por concorrência. Semana sim,semana não, anúncios de cursos de músi-ca, desenho e redação publicados em Vejaproduziram um número de alunos satis-fatório durante alguns anos, até que as gre-ves dos Correios e a reforma monetária deZélia Cardoso de Mello – ministra daEconomia do governo de Fernando Co-llor – quebrassem a espinha do negócio.

Jornal da ABI – O que o senhor desta-ca de contribuição para a memória da-quele período que seu livro traz? Al-gum episódio desconhecido ou mal ex-plicado foi esclarecido?

Carlos Knapp – O livro faz algumas re-velações, a mais desconhecida delas deveser a venda de petróleo da Argélia para oBrasil, nos anos de 1970, que rendeu umacomissão de mais de três milhões de dóla-res (então uma fortuna) à empresa criadanaquele país por Miguel Arraes para ope-rar em comércio exterior e gerar recursospara as atividades do MPL, organização deoposição à ditadura integrada por ilustresjornalistas, intelectuais, políticos e religi-osos. Meu livro cita os nomes. O MPL re-jeitava a luta armada e seu líder, Arraes,achando que estava na canoa errada, quisdesviar o dinheiro para a ALN de Marighe-lla. A organização não concordou e hou-ve uma cisão com a conseqüente brigapelo talão de cheques. O governo argelinointerveio e promoveu a partilha, um mi-lhão e meio de dólares para cada lado.

Jornal da ABI – Mais de quatro déca-das depois, que avaliação o senhor fazde seu envolvimento com a luta arma-da? O que o levou a correr o risco deinterromper sua carreira?

Carlos Knapp – O sucesso profissionalnessa área sobrevalorizada me dava uma

Jornal da ABI – Como foi o seu conta-to com Miguel Arraes e Oscar Nie-meyer no exílio?

Carlos Knapp – Eu trabalhei com ambose os pormenores dessa colaboração estãorelatados em Minha Vida de Terrorista.

Jornal da ABI – O senhor conviveu comChico Buarque?

Carlos Knapp – Eu tinha certa convi-vência com Chico Buarque no Brasil e fuireencontrá-lo em Roma, na casa de Ara-ujo Neto. Chico tinha sido vítima de umgrande desfalque praticado por uma pes-soa, que também trabalhava para mim.Essa pessoa, sabendo que eu estava sendoperseguido pela poliícia, resolveu contarao Chico que teria emprestado o dinhei-ro a mim. Imaginou que provavelmenteeu seria abatido e assim seu roubo ficariaencoberto para sempre. Mas, nesse en-contro com Chico, eu o desmascarei.

Jornal da ABI – O senhor diria que oexilado é, acima de tudo, um solitário?Ou é algo mais complexo que isso?

Carlos Knapp – Não, eu diria que o exi-lado é, acima de tudo, um imigrante sem pa-péis e sem um ofício próprio de imigrantes.

Jornal da ABI – Em algum momento osenhor pensou em voltar ao Brasil ese entregar?

Carlos Knapp – Pensei e despensei. Issoaconteceu quando estava obcecado pelaidéia de recuperar meus filhos a qualquerpreço. Mas também fui convidado a meentregar com a garantia de que não toca-riam em mim, desde que fosse à televisãodeclarar que estava arrependido.

Jornal da ABI – Que lembrança o se-nhor guarda de mais marcante ao vol-tar do exílio?

Carlos Knapp – O forte cheiro de gaso-lina no ar que se respirava em São Paulo.Era o mesmo ar que eu cheirava antes departir para o exílio, mas voltei mal acos-tumado. Tive a mesma sensação do “dife-rente”, como quando cheguei pela primei-ra vez em Paris. E devo ter pensado quetalvez eu já não pertencesse ao meu lugar.

Jornal da ABI – Do que você se arre-pende de ter feito ou não ter feito na-quela época?

Carlos Knapp – Sequestrar meus própri-os filhos na Disney World, quando eu jáestava de posse deles e com seus passapor-tes no bolso, foi uma violência que eu nãoquis consumar. Não deveria ter desistido.

Jornal da ABI – E do que mais se orgu-lha de ter feito?

Carlos Knapp – Creio que a melhor pa-lavra não é orgulho, mas acho que foi umgrande feito ter convencido os cubanosque liberassem minha segunda mulherEliane (Toscano Zamikhoski) de seu trei-namento de guerrilha na ilha e a devolves-sem para viver comigo, seu filho e seuspais na Argélia. Sem isso, ela provavel-mente teria o destino de tantos outrosmilitantes, abatidos assim que colocavamos pés no Brasil.

falsa sensação de poder. Eu era uma pes-soa presunçosa e confiante na sorte, nadade ruim poderia ocorrer comigo. Zelo pelacarreira eu não tinha porque crescia emmim a noção do papel da publicidade co-mercial na construção da civilização doconsumo, que então já se esboçava.

Jornal da ABI – Essa presunção e con-fiança na sorte fez o senhor não me-dir os riscos que corria de ser preso,torturado, morto ou parar no exílio?

Carlos Knapp – No dia fatídico tiveapenas o bom senso de me afastar de SãoPaulo, fui para o Rio de Janeiro, imagi-nando que as coisas se acomodariam e eupoderia voltar. Não me ocorreu ir até àagência e apanhar o passaporte na gave-ta da minha escrivaninha...

Jornal da ABI – O senhor tinha, de fato,consciência dos riscos que corria ou foilevado pelos acontecimentos da época?

Carlos Knapp – Eu menosprezava osriscos e nem quando os acontecimentosprecipitaram a minha sorte e me vi redu-zido a um pacote, como digo no livro,nem assim “caiu a ficha”. Talvez isso ex-plique aquilo que alguns chamam deminha “tenacidade”.

Jornal da ABI – Em algum momento,arrependeu-se de ter participado daresistência armada?

Carlos Knapp – Tenho hoje plenaconsciência do equívoco, mas não me ar-rependo de quase nada. A convivênciacom pessoas de outras origens, a perda deprivilégios, a vida de imigrante, a neces-sidade de lutar pela vida, enfim, tudo oque sucedeu a partir de 4 de junho de 1969me transformou em outro homem. Tiveessa sorte, a chance de me tornar um ci-dadão melhor. Eu poderia estar grato aosdeuses se estes, enquanto isso, não tives-sem me segregado dos meus filhos.

Jornal da ABI – No exílio, passou gran-des dificuldades a ponto de entrar emdesespero?

Carlos Knapp – Sim. Houve um mo-mento em que, sozinho no terraço da casade Miguel Arraes, em Alger, de frente parao horizonte vazio do Mar Mediterrâneo,eu concluí que minha vida chegara ao fim,não havia saída, não havia o que fazer. E nãofiz. Em seguida entrei e almocei com todaa família Arraes à mesa. A certeza de que“amanhã não é outro dia” é insuportável.Mesmo assim, nunca pensei em suicídio.

Jornal da ABI – Explique essa históriade ter perdido bens para o delegadoSérgio Paranhos Fleury, um dos maistemidos algozes dos opositores do re-gime militar... Como foi?

Carlos Knapp – Não perdi todos osbens para o delegado. Ele só se apossou domeu carro, um Mercedes, e nele conduziunumerosos companheiros para a tortura.Um deles, Geová, me contou isso emAlger. Ele foi um dos 40 prisioneiros quea ditadura despachou para Alger em tro-ca da libertação, no Rio, de um embaixa-dor alemão seqüestrado.

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Quando os estudiosos elaboraram aatual versão do Acordo Ortográfico em1990 (AO90), na certa não pensavam queo documento continuaria sendo motivode discórdia 23 anos depois. Em Portugal,mesmo que as novas regras já tenham en-trado em vigor desde 2012, mais de seismil pessoas assinaram uma petição pedin-do o desligamento do país do AO90. O do-cumento foi entregue à Assembléia da Re-pública de Portugal e em junho deste anoa Comissão de Educação, Ciência e Cul-tura da Casa deu o seu aval. A medida temagora que ser discutida em plenário.

Um dos responsáveis pela petição, opesquisador em Direito da Faculdade deLisboa, Ivo Miguel Barroso, destaca queo início da adoção do AO90 deixou cla-ras as contradições da nova norma. “Hávários factos novos e há outros problemasque se evidenciam, após a implementaçãodo Acordo Ortográfico. Ficou inequivo-camente demonstrado que há grandes di-ficuldades de ‘aplicação’ das normas dotratado, em virtude das graves lacunas deque o AO padece e dos princípios pseudo-científicos, absolutamente arbitrários edesactualizados no plano da linguagemfalada, em relação à qual se pretendemaproximar”, afirmou em entrevista por e-mail, na qual também solicitou que agrafia de suas palavras não fosse alterada.

De acordo com Barroso, o início daadoção (ainda em fase de transição) dasnovas normas gerou um cenário linguís-tico caótico, já que, ao mesmo tempo emque os órgãos oficiais são obrigados aadotar o AO90, 80% da imprensa, segun-do ele, ainda segue o padrão antigo. Paraos signatários, a desvinculação do país aoacordo é “a única solução honrosa e con-digna para os interesses de Portugal”.

Não é a primeira vez que a nova modi-ficação da ortografia da língua portuguesaencontra oposição ferrenha em territóriolusitano. Em 2008, o “Manifesto em Defe-sa da Língua Portuguesa Contra o AcordoOrtográfico” reuniu 15 mil assinaturas on-line. Cerca de duas semanas antes da rati-ficação definitiva do AO90 em Portugal, asassinaturas foram entregues ao Parlamen-to português. Mas o pedido só foi analisa-do um ano depois. Em 2009, quando já haviase iniciado o período de transição em Por-tugal, o manifesto continuava ativo, e che-gou a contar com 109 mil signatários.

Um século de tentativasA petição pela desvinculação de Portu-

gal veio na esteira de outra derrota para ospartidários do AO90. No fim de 2012, pou-

co antes da data marcada para a entrada de-finitiva em vigor do Acordo no Brasil, oprazo foi adiado para 1º de janeiro de 2016.O governo brasileiro argumentou que amudança tinha o objetivo de alinhar asdatas finais do Brasil e de Portugal, mas essafoi mais uma pedra na centenária fila de per-calços que as tentativas oficiais de modifi-cação da língua portuguesa encontram.

A primeira vez que um governo inseriumudanças na ortografia do português foiem 1911. Depois da instauração da Repú-blica, Portugal decidiu fazer uma profun-da reforma na língua, que modificou ter-mos como “architectura”, “estylo”, “gram-matica” e “orthographia”, aproximando-osde como são escritos hoje. O Brasil, porém,sequer foi informado das modificações econtinuou seguindo a ortografia antiga, oque deixou os dois países com modos dife-rentes de escrita. Desde então, a Academiade Ciências de Lisboa e a Academia Brasi-leira de Letras tentam reaproximar orto-graficamente os dois países.

Em 1931 foi feita uma primeira tenta-tiva de unificação, mas as versões aprova-das em Portugal em 1940 e no Brasil em1943 ainda eram discordantes entre si.Alguns anos depois, chegou-se a um con-senso, e o Acordo Ortográfico de 1945tornou-se lei em Portugal. Mas, no Brasil,a norma não caminhou como o esperado.

Apesar de aprovada por decreto presiden-cial, a medida não foi ratificada pelo Con-gresso Nacional e acabou revogada. En-quanto Portugal modificava sua ortografiapara o acordo de 1945, os brasileiros conti-nuaram seguindo as regras acatadas pelopaís em 1943, que já eram diferentes das quePortugal pretendia aprovar.

No início dos anos 1970, nova tenta-tiva de aproximação foi feita. Parte dos acen-tos gráficos que existiam apenas no portu-guês escrito em Portugal foram excluídos,reduzindo um bom nú-mero de diferenças. Em1975 e 1986 novos acor-dos foram tentados, mas apossibilidade do fim dosacentos nas palavras pro-paroxítonas causou furorna classe acadêmica e aidéia de unificação foi no-vamente adiada.

Estes primeiros episó-dios da epopéia da unifi-cação lingüística pare-cem caóticos? Basta lem-brar que, à época, a discus-são incluía apenas Brasile Portugal: dois países emcontinentes diferentes,mas com culturas relati-vamente similares. Isso porque Guiné-Bissau, Moçambique, Angola, Cabo Verde,Timor-Leste e São Tomé e Príncipe eram

REFORMA

Impasse lusitanoPetição com mais de seis mil assinaturas pedindo a saída de Portugaldo Acordo Ortográfico reacende debate sobre a reforma da língua.

POR LARISSA VELOSO colônias portuguesas até 1975. Um dos de-safios das reformas posteriores a esse pe-ríodo é justamente o de unificar a escritade oito nações inscritas em quatro conti-nentes diferentes. Mas nem todos acredi-tam ser possível essa façanha.

As normas atuais são fruto de uma re-escrita do acordo que não chegou a ser fir-mado em 1986. Finalizado em 1990, o do-cumento previa que as novas regras come-çassem a vigorar em 1994, depois de seremratificadas por todas as nações. Mas ape-nas Portugal, Brasil e Cabo-Verde haviamassinado o AO90 ao fim do prazo. Procu-rando uma saída para o impasse, os chefesde Estado da Comunidade dos Países deLíngua Portuguesa (CPLP) se reuniram em2004 e aprovaram o “2º Protocolo Modi-ficativo ao Acordo Ortográfico”, manobraque permitia a entrada em vigor da novanorma com apenas três países signatários.

Em 2006, Brasil, Cabo-Verde e São Tomée Príncipe haviam ratificado tanto o tex-to geral quanto o protocolo modificativo,e a nova ortografia já podia, teoricamen-te, entrar em vigor. Mas foi só depois doaval de Portugal às modificações do acor-do, em 2008, que a CPLP se sentiu confor-tável para implementar as mudanças.Desde então, apenas Moçambique e An-gola não aprovaram o texto por inteiro.O Ministro da Educação angolano, PindaSimão, chegou inclusive a declarar que oacordo precisava de revisão em 20 de suas21 bases. Dos oito países da comunidadelusófona, apenas Portugal e Brasil coloca-ram as normas em vigor.

DesunificaçãoA principal justificativa para o acordo

ortográfico de 1990 é a unificação do modode escrita do Brasil e oadotado por Portugal,Angola, Moçambique,Cabo Verde, Guiné-Bis-sau, São Tomé e Prínci-pe e Timor-Leste. Mas,como sabe qualquer umque já viajou entre o sule o nordeste do Brasil,nem em um mesmo paísa forma de se falar portu-guês é a mesma. Se a or-tografia é a expressão dapronúncia, como quererque oito países, que jácontêm divergências in-ternas, escrevam da mes-ma maneira?

Para os peticionáriosde Portugal, um dos principais problemasdo acordo acontece justamente nos me-canismos usados para tentar representar

“Ficou inequivocamentedemonstrado que há

grandes dificuldades de‘aplicação’ das normas

do tratado, em virtude dasgraves lacunas de que o

AO padece e dos princípiospseudo-científicos,

absolutamente arbitráriose desactualizados no plano

da linguagem falada,em relação à qual se

pretendem aproximar”

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as diferentes pronúnci-as. No caso das consoan-tes mudas (como o “c” em“aspecto”), a nova normapermite tanto a existên-cia como a supressão daconsoante se a palavrativer pronúncias diferen-tes em diferentes países.Por exemplo, os portu-gueses pronunciam “fac-to”, e não “fato”, como osbrasileiros. Nesse caso, asduas grafias são permiti-das. Mas existiam ocasi-ões nas quais havia ape-nas uma grafia, mas com diferentes pro-núncias, como no caso de “recepção”, queem terras lusitanas se pronuncia “rece-ção”, mas se escrevia com o “p” mudo. Se-gundo a regra do AO90, as duas modali-dades passam a ser aceitas, criando umanova diferença linguística.

Se os portugueses não se sentem à von-tade com as normas do Acordo Ortográfi-co, os moçambicanos não se sentem nemde perto contemplados. “Esse acordo nemsequer tem em conta a realidade específi-ca de Moçambique, é um texto meramen-te de cariz económico-financeiro, que nãorespeita as especificidades culturais dos di-versos países da CPLP (africanos e Timor-Leste). Alguém teve em conta que em al-guns destes países a padronização destas lín-guas estava ainda em curso ou, em alguns ca-sos, não se tinha ainda iniciado?”, indagaDelmar Gonçalves, Presidente do Círculode Escritores Moçambicanos. A ortografiadas respostas enviadas pelo escritor tam-bém não foi alterada pelo Jornal da ABI.

A mudança nas regras pode complicarainda mais o ensino num país que possuimais de 10 dialetos e no qual, segundo aUnesco, apenas metade dos adultos é al-fabetizada. “Muita gente já sentia dificul-dades na norma anterior da escrita e dafala e estava ainda num processo de con-solidação. Com o novo AO, todo o traba-lho feito, que foi muito e significativo,vai por água abaixo. Quem domina a lín-gua portuguesa, actualmente, precisa deformação. Quanto tempo levará até queo domínio da nova forma seja efectivo?”,se preocupa Gonçalves.

Em Angola também há forte oposiçãoao AO90. O próprio ministro da Educa-ção, Pinda Simão, tem reiterado que o paísprecisa estudar e refletir sobre a entrada noacordo, uma vez que ainda não há consensoentre os angolanos sobre o assunto. Umadas críticas que representantes do portu-guês angolano têm feito é que as modifi-cações da língua não podem ser definidassomente por aqueles que possuem maiorpoder. “Uma velha tipografia manual emGoa pode ser tão preciosa para a Língua Por-tuguesa como a mais importante empresaeditorial do Brasil, de Portugal ou de Ango-la”, citou o Jornal de Angola em um de seuseditoriais, numa crítica aberta a portugue-ses e brasileiros.

Muitos dos que estão envolvidos como movimento anti-AO90 afirmam quenão é possível e nem desejável unificar aortografia dos países lusófonos. “Cada

País desenvolve a suacultura. Cada língua ecada variante representauma forma de ver o mun-do. A diversidade cultu-ral, dentro da mesma Lín-gua, é totalmente legíti-ma, natural e saudável. AHistória demonstra quea tendência natural daslínguas que têm origemnum tronco comum épara se afastarem, e nãopara se voltarem a unir.Veja-se o Latim, que deuorigem às línguas româ-

nicas”, destaca Ivo Miguel Barroso, reite-rando a posição dos peticionários.

O “acordês”Mas não é só a dificuldade de unifica-

ção que incomoda sobre o AO90. Desde oinício, o Acordo foi fortemente criticadopor especialistas da língua, justamente pornão fazer sentido ortograficamente. “Nãoexistem argumentos técnicos para justifi-car a maior parte do que está escrito noacordo. A maioria das normas mostra umainsuficiência de conhecimento de quem asredigiu. Foi uma coisa feita muito às pres-sas, em uma semana só, numa reunião de20 pessoas, na Academia de Ciências dePortugal. O próprio texto do acordo estácheio de erros de pontuação e de redação”,se indigna o lingüista e professor ErnaniPimentel, autor de livros na área e criadorda campanha brasileira “Acordar Melhor”,na qual pede a anulação do AO90 e a dis-cussão de um modelo mais lógico de refor-ma ortográfica.

Desde 2009, Pimentel viaja pelo Bra-sil dando palestras, participando de audi-ências e publicando artigos nos jornaispara escancarar os erros lógicos do AO90.O próprio Jornal da ABI já publicou, emfevereiro de 2010, um texto do pesquisa-dor, intitulado “Convite à reflexão e à so-lução”. Nele, o professor cita nada menosque 25 pontos nos quais as normas doacordo carecem de lógica. Para citar ape-nas um exemplo, ele questiona porque oparadoxo de se escrever “água-de-colônia”com hífen e “água de cheiro” sem o sinal.

Mas se as modificações adotadas noBrasil geram confusão, em Portugal o ce-nário é de caos linguístico. A tentativa dese aplicar normas que em alguns pontosdiferem da própria pronúncia, tem cria-do uma terceira via, que não coincide to-talmente com a ortografia anterior, e tam-pouco segue o novo padrão. O fenômenojá tem até nome. É o “acordês”. “Aquiloque se tem assistido em Portugal infeliz-mente é à completa desarmonização or-tográfica: há pessoas que continuam a es-crever como escreviam, em Portuguêscostumeiro; há outras que tentam ‘apli-car ’ o AO; outras ainda ora ‘aplicam’ o‘acordês’, ora seguem o Português costu-meiro. Como facilmente se compreende,há um profundo caos ortográfico instala-do em Portugal”, lamenta Barroso.

A própria petição proposta em Portu-gal afirma, inclusive, que até os dicioná-rios oficiais discordam entre si. “Uma das

Foi publicada, no Diário Oficialda União do dia 1º de outubro, aResolução CNE/CES Nº 1, de 27 desetembro, do Conselho Nacional deEducação – CNE, que institui asDiretrizes Curriculares Nacionaispara o curso de graduação emJornalismo, bacharelado. Agora asuniversidades têm dois anos para seadequar às novas normas. A cargahorária dos cursos de Jornalismoaumenta de 2.700 horas para 3 milhoras. As novas diretrizes têmcomo base o Programa deQualidade do Ensino de Jornalismo,elaborado pela Federação Nacionaldos Jornalistas – Fenaj; FederaçãoNacional dos Professores deJornalismo – FNPJ; AssociaçãoBrasileira de Pesquisadores emJornalismo – SBPJor; e SociedadeBrasileira de EstudosInterdisciplinares da Comunicação– Intercom.

Elaborado em 2009, o projetotramitava no CNE desde o ano de2010. A proposta foi formulada poruma comissão de especialistasindicada pelo Ministério daEducação, a partir de consultapública pela internet e trêsaudiências públicas que contaramcom a participação da comunidadeacadêmica, profissionais, empresasdo setor e representantes deentidades da sociedade civil. ValciZuculoto, 1ª secretária da Fenaj,considera que agora, com apublicação da resolução, os cursos eas entidades do campo doJornalismo terão mais condições dedialogar mais objetivamente ebuscar sanar possíveis dúvidasatravés de consultas junto ao MEC.

“As novas diretrizes avançam noequilíbrio entre teoria e técnica,valorizam a especificidade doscursos de Jornalismo, agoraautônomos, e propiciam maiorqualificação da formaçãoacadêmica adequada à função socialdo Jornalismo de produção deinformação voltada ao interessepúblico”, avalia. Além de nãoinstituir mais a versão impressacomo parâmetro ou referência deconcepção, apuração, edição,administração de repercussão eestabelecimento de canais deinteração com o público, as novasdiretrizes estabelecem a maiorinterdisciplinaridade e integraçãoentre teoria e prática, além deregulamentar o estágiosupervisionado.

Publicadas asnovas diretrizespara cursos de

Jornalismo

EDUCAÇÃO

condições do tratado internacional queconfigura o AO90 era a da elaboração deum Vocabulário Ortográfico Comum.Este, até à data, não existe. Em vez disso,foram produzidos vários vocabulários edicionários: VOLP (da Academia Brasi-leira de Letras e coordenado por Evanil-do Bechara), VOLP publicado pela PortoEditora e coordenado por Malaca Caste-leiro, VOP (do Instituto de LinguísticaTeórica e Computacional), e ainda o di-cionário do grupo LeYa. Estes vocabulá-rios apresentam discrepâncias na grafiados mesmos vocábulos, em questões emque o AO90 era incongruente”, dizem ospeticionários no texto. Em anexo aodocumento há um quadro com 68 exem-plos de discordâncias entre os vocabulá-rios. Um dos exemplos é do VOP, o Voca-bulário Ortográfico do Português, citadoacima, que apresenta como brasileiras asgrafias de “adoptar” e “adopção”.

Uma outra reforma?Apesar de todos os argumentos contrá-

rios, o Acordo Ortográfico de 1990 já estáem vigor nos principais países lusófonos ecaminha para ser aplicado em boa parte dacomunidade africana que fala o português.É possível, neste ponto, voltar atrás? “Arigor, todo erro deve ser consertado. Sim,começou a vigorar, mas não chegou o pra-zo final ainda”, diz o professor Pimentel.

À frente do movimento “Acordar Me-lhor”, ele é também um dos grandes defen-sores de uma reforma científica na ortogra-fia da língua portuguesa. “Teríamos o privi-légio de ser a primeira nação a adotar umalíngua ocidental linguisticamente cientí-fica em termos de ortografia”, explica. Parasimplificar a forma como escrevemos, gra-fias que representam o mesmo fonema,como “ch” e o “x”, poderiam ser excluídas.Dessa maneira, o “ch” seria eliminado da or-tografia, e ficaríamos apenas com uma úni-ca forma de representar o som de “xis”. En-quanto a possibilidade de ter que escrever“xuva”, “xaleira”, “xegar” e “crexe” causa ar-repios em alguns profissionais, Pimentel eoutros lingüistas afirmam que os ganhos parao sistema de ensino seriam enormes. “Nin-guém quer aprender português porque é mui-to difícil. Mas com a ciência linguística po-deríamos torná-la a língua mais fácil de es-crever do mundo”, sonha o professor.

Enquanto a reforma ortográfica que osescritores, professores, jornalistas, lingüis-tas e tradutores desejam não vem, os peti-cionários de Portugal continuam tentandoretirar Portugal do AO90. Ainda não há datapara a discussão em plenário, mas muitosprofissionais da escrita empregam uma si-lenciosa resistência ao não adotar as novasnormas. Sobre essa tática, Ivo Barroso éenfático: “Não cumprir o AO é um acto depatriotismo e uma manifestação de amor ànossa Língua Portuguesa”, diz.

*Nota da Redação: em respeito às di-ferenças existentes entre o português es-crito no Brasil, em Portugal e em Moçam-bique, o Jornal da ABI optou por deixarinalteradas as ortografias das respostas deIvo Miguel Barroso e Delmar Gonçalves.É bom lembrar também que o Jornal daABI não segue o AO90.

“Não existem argumentostécnicos para justificar amaior parte do que está

escrito no acordo. Amaioria das normas

mostra uma insuficiênciade conhecimento dequem as redigiu. O

próprio texto do acordoestá cheio de erros de

pontuação e de redação”

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Não só do fechamento de publicaçõesvive a Abril. Principal editora de revistasdo País, a corporação, além de promoverajustes e cortes, abre novas frentes de in-vestimento. O mais recente deles, já pres-tes a estrear, mira, como era de esperar, noambiente digital. O site de notícias Huffing-ton Post lançará sua versão para o merca-do brasileiro em dezembro, justamentecomo fruto de parceria fechada com oGrupo Abril de Roberto Civita, morto em26 de maio deste ano. Com o nome deBrasil Post, o novo veículo deve entrar noar em 3 de dezembro. Ou, caso o proces-so sofra algum atraso, em janeiro de 2014,como conta Ricardo Anderáos, que dei-xou a direção de mídias sociais e transmí-dia da Abril para assumir a Diretoria deRedação do novo produto.

“Estamos na fase final de preparação,com a contratação dos últimos profissio-nais e a tradução de plataformas. Toda essahistória começou quando Arianna Huffing-ton , fundadora do The Huffington Post, es-teve no Brasil, há cerca de dois anos, paraparticipar do seminário Info@Trends,promovido pela revista Info. O Civita semostrou de imediato entusiasmado coma idéia de parceria. Ele era mesmo uma pes-soa bastante inquieta, interessada emnovas tecnologias. E via neste projetouma forma excelente de a Abril absorverconhecimento e avançar sobre novosmodelos de plataforma de jornalismo di-gital”, contou Ricardo, em entrevista aoJornal da ABI.

Agregador de conteúdoInicialmente, a Redação será composta

por dez pessoas, bastante enxuta, portan-to, com mais um profissional na área co-mercial, apoiado por outros dois – tota-lizando 13 colaboradores. Além de traba-lhar em noticiário próprio, a meta é serum grande agregador de conteúdo, inclu-sive remetendo o leitor para o site de ori-gem, mesmo que do concorrente, quan-do for relevante. A rotina ainda exige,entre os principais trabalhos, a conduçãode um amplo debate em redes sociais e naprópria seção de comentários do BrasilPost. Ricardo Anderáos, de 51 anos, expli-ca em detalhes todas essas estratégias.

“Não teremos concorrente no merca-do nacional, pois o Huff Post se definecomo um jornal eletrônico, mas é, na ver-dade, uma espécie particular de publica-ção. É um agregador de notícias. É claroque também vamos produzir reportagens

e textos próprios, mas trabalharemos so-bretudo com material de agências, pode-remos traduzir qualquer conteúdo de ou-tras edições internacionais do Huff. E atémesmo dar destaque a conteúdo de outrosveículos nacionais, com especial atençãoàs redes sociais. Nos Estados Unidos, porexemplo, é comum o Huff dar como man-chete uma notícia do site do New York Ti-mes, colocando uma chamada com link,em que o leitor clica ali e cai direto lá.Não temos como principal missão man-ter os internautas dentro do nosso site, esim ser uma janela, reunindo no mesmolugar tudo o que há de importante naque-le dia. Nosso objetivo é ser um recorte,uma edição apurada, no sentido maispuro da palavra”, define Ricardo.

O Huffington Post está presente em ou-tros oito países, entre os quais estão Japão,Itália e França – regiões em que o veícu-lo também foi lançado em parceria comgrupos de mídia locais. O site americanocontabiliza 47 milhões de visitantes úni-cos mensais nos Estados Unidos e 77milhões em todo o mundo. Além de edi-torias tradicionais – como Política, Eco-nomia, Educação e Esporte – tem seçõesde entretenimento, com destaque para ascelebridades, e de comunidades específi-cas. Ricardo adianta como será o mode-lo brasileiro. “Vamos tentar tratar detudo, é claro, mas definimos quatro pila-

Abril abre espaço para o digitalParceria com o site Huffington Post é a próxima aposta do grupo dos Civita,

com estréia marcada para dezembro ou, no máximo, janeiro de 2014.

PAULO CHICO

res, a partir do agrupamento de editorias.Dentro delas é que a gente terá que dis-tribuir os assuntos. São eles Hard News eNegócios; Entretenimento; Estilos de Vida;Inovação e Tecnologia. E, exatamente comoacontece nas versões estrangeiras, o BrasilPost terá acesso livre, apostando, comounidade de negócio, na publicidade. Va-mos, inclusive, investir na inovação dapublicidade, com formatos nativos, deconteúdo à disposição dos patrocinado-res, obviamente identificados”.

Novo modelo de jornalistasO engajamento dos leitores do Huff é

uma de suas marcas registradas. E, por issomesmo, demanda a atenção de um novomodelo de jornalistas e produtores deconteúdos. “Já trabalhei em operações di-gitais em vários grupos, mas sinto quepela primeira vez vou ter todos os instru-mentos para realizar coisas que venhoaprendendo e intuindo já há bastante tem-po. Uma delas é o conceito de que conteúdoem plataforma digital não se resume atexto, foto e vídeo. A própria tecnologiaé conteúdo! Realmente, precisamos e va-mos ter a tecnologia como visão de conteú-do e definidor da maneira de trabalhar. En-genheiros e jornalistas precisam trabalharjuntos, e não apenas com uns dando su-porte aos outros. No nosso caso, tudo oque é produzido é feito dentro de uma pla-

taforma tecnológica que permite que ojornalista, ainda quando estiver escreven-do, saiba quais termos têm mais relevân-cia em buscas de Google, tornando suapublicação com maior alcance em termosde audiência”, explica ele, que faz um aler-ta sobre o perfil de atuação que deve nortearos profissionais de mídia nos dias de hoje.

“Os jornalistas, de fato, em sua maio-ria, ainda não incorporaram essecomportamento de monitorar aprópria produção... Jogam a ma-téria no ar e tchau! Não acompa-nham o desempenho, o interes-se da audiência. Em plena era dasmídias digitais, boa parte dos jor-nalistas continua atuando comoprofissionais do século 20, semincorporar à sua produção dadosdo Analytics, por exemplo. Poisbem, na plataforma do Huff eleserá responsável por escrever ahistória, incorporar o que existade mais relevante, e mandá-lapara o twitter e o face... Saber

como as publicações estão se comportan-do... É preciso somar ao cotidiano a inte-ligência e as informações adicionais queo ambiente digital nos traz. Outro aspec-to dessa história são os comentários, sis-tema que no Huff é bastante importantee sofisticado. É naquele espaço que os de-bates acontecem, as pautas são desdobra-das. Por isso, ele é muito valorizado. E nãodá mais para o jornalista apenas publicara reportagem e ir embora! Ele precisa par-ticipar de toda essa conversa!”.

Para o Presidente-Executivo do TheHuffington Post, Jimmy Maymann, a par-ceria com o Grupo Abril proporcionaráque o jornal já entre fortalecido no mer-cado brasileiro. “Esta edição não só vaicolocar o Huff Post em seu nono país equinto continente, mas também nos dei-xar no centro de uma das regiões de mai-or crescimento atualmente”, disse. Umdos pontos positivos destacados porMaymann, e que ajudou na decisão daparceria, foi o grande acesso à internet nopaís, já que o Brasil possui mais de 100 mi-lhões de usuários e é a 5ª maior audiênciado mundo, com estimativa de 7,6% decrescimento ao ano até 2016. “Não estouautorizado a falar em números, em inves-timentos, mas não há dúvidas de que essaé uma aposta importante, não é uma ope-ração barata. É, sobretudo, estratégica emtermos de mercado, uma vez que estare-mos operando em parceria com um dosprincipais players de notícias do plane-ta”, conclui Ricardo.

INTERNET

O site The Huffington Postganhará uma versão no Brasil,cuja Redação será dirigida porRicardo Anderáos: “É precisosomar ao cotidiano a inteligênciae as informações adicionais que oambiente digital nos traz”.

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25JORNAL DA ABI 394 • OUTUBRO DE 2013

Como descrever uma colcha de reta-lhos? Ler Fernando Pessoa é sempre umaexperiência que flerta com a aleatorieda-de e com a fragmentação. Enquanto osestudiosos continuam pesquisando pos-síveis cronologias e revisitam o que foipublicado sob tantos heterônimos, comoleitores, todos nós continuaremos a revi-rar suas páginas como quem xereta aquelevelho baú. Diga-se de passagem que nãohá nada de errado nisso ecada um pode e deve de-gustar esses escritos comobem entender.

No texto de apresenta-ção, José Paulo Cavalcan-ti Filho teve a modéstia delembrar-nos que essa nãoé a primeira vez que al-guém organiza excertosde Fernando Pessoa emum livro de citações. Noentanto, cabe também re-gistrar que isso não dimi-nui em nada o seu cuidado-so trabalho como organizador. FernandoPessoa: o Livro das Citações (Record, 2013),além de ser um objeto graficamente equi-librado entre beleza e conforto, tanto nacapa quanto no miolo, conta com precio-sas notas e comentários desse biógrafo queao longo de quase dez anos escrevendo opremiado Fernando Pessoa, uma Quase Au-tobiografia, sentiu-se vivendo na carne asalegrias, dúvidas e desalentos do poeta.

Cavalcanti Filho recebeu de Millôr Fer-nandes a sugestão de declarar suas escolhascomo feitas a partir de preferências estri-tamente “pessoais”. Essa ambiguidade bemhumorada é perfeita, pois o leitor de algu-ma maneira percebe as várias vozes dopoeta com elegantes intervenções. Massão comentários bem dosados, como umamigo que parece estar sentado na poltro-na ao lado, rememorando detalhes curio-sos que mexem com nossas emoções e coma nossa percepção acerca dos poemas.

Suas preferências, bebidas, cigarros,insônia, costumes mais cotidianos e atéeventos bem particulares são novidadesbem vindas e na medida perfeita comonota de rodapé. Há linhas que despertama dor existencial da qual muitos tentamfugir, mas há aquelas que também trazemsua carga de ternura. É o caso da revelaçãoacerca do “Senhor Trindade” (Júlio Trin-dade, que era um empregado da confeita-ria onde Manuela Nogueira, menina,comprava seus chocolates). É a partir davoz dele que surgiram os famosos versosapontados no verbete metafísica:

“Come chocolates, pequena, / Comechocolates! / Olha que não há metafísica

Revirando o velhobaú de Pessoa

POR RITA BRAGA

Palavras pessoaisA quem gosta de literatura, publici-

dade e outros assuntos, a polifonia ‘pes-soana’ também pode despertar idéias,dúvidas, perguntas. O verbete automó-vel, por exemplo, nos revela em nota umdos pequenos luxos do poeta (gostavade andar de carro) e nos informa sobresuas incursões no mundo da propagan-da, tanto na Empresa Nacional de Pu-blicidade – uma agência controlada pela

General Motors e fabricante dos auto-móveis Chevrolet (p.35) quanto em ou-tros trabalhos como no slogan da Coca-Cola. A nós brasileiros os versos da ci-tação abaixo fazem ainda ouvir ecos dojovem Drummond, com seu STOP. Osversos inscritos no verbete aniversáriorevelam em nota a intensidade e triste-za da perda de tantos familiares e ami-gos em um curto espaço de tempo.

AUTOMÓVEL“Deixarei sonhos atrás de mim, ou é oautomóvel que os deixa?”(Álvaro de Campos, p. 35)

COCA-COLA“Primeiro estranha-se, depois entranha-se.”(Fernando Pessoa, p.50)

ANIVERSÁRIO“No tempo em que festejavam o dia dosmeus anos, / Eu era feliz e ninguém estavamorto.” (Álvaro de Campos, p.31)

ARTE“A arte consiste em fazer os outros sentir oque nós sentimos, sem os libertar delesmesmos, propondo-lhes a nossapersonalidade.” (Bernardo Soares, p. 32)

“Toda arte superior é profundamente triste.”(Fernando Pessoa, p. 33)

“A arte é essencialmente Erro.”(Antonio Mora, 32)

“O valor essencial da arte está em ela ser oindício da passagem do homem no mundo,o resumo de sua experiência emotiva dele.”(Fernando Pessoa, p.34)

ARTISTA“O artista não exprime as suas emoções.Exprime, das suas emoções, aquelas que sãocomuns aos outros homens. Falando

paradoxalmente, exprime apenas aquelassuas emoções que são dos outros.”(Antonio Mora, p.34)

DEMOCRACIA“A democracia é o mais estúpido de todos osmitos.” (Álvaro de Campos, p.63)

“A democracia é a vizinha do andar de cima(que deixa o lixo para o meu quintal).”(Fernando Pessoa, p.63)

DEUS“Basta uma dor de dentes para fazerdescrer na bondade do Criador.” (BernardoSoares, p.68)

ELEITOR“O eleitor não escolhe o que quer; escolheentre isto e aquilo o que lhe dão, o que édiferente.” (Álvaro de Campos, p.77)

LIVROS“Na leitura de todos os livros, devemosseguir o autor e não querer que ele nos siga.”(Antonio Mora, p.128)

“Livros são papéis pintados com tinta.”(Fernando Pessoa, p.128)

“O que de sonho jaz nas encadernaçõesvetustas. Nas assinaturas complicadas (outão simples e esguias) dos velhos livros. Tintaremota e desbotada aqui presente para alémda morte.” (Álvaro de Campos, p. 128)

no mundo senão chocolates.”(Álvaro deCampos, p.140).

Como em qualquer livro de citações oleitor corre o risco de ficar à deriva, de seperder nas lacunas da falta de repertório.Por isso também nesse tipo de livro o lei-tor fica ainda mais exposto ao perigo dadescontextualização. Mesmo assim, “tudovale a pena”. Como diz Cavalcanti Filho,“há homens que morrem quando morrem,há homens que morrem aos poucos nalembrança dos amigos, e há os escolhidos

pelos deuses. Eternos.”Aliás, fica ao fundo a per-gunta: quem é FernandoPessoa em nosso tempo deinternet, perfis múltiplosem redes sociais – em mui-tos casos, repletos de cita-ções duvidosas. Mais queisso: o que nos revela esseato de, nesse contexto daEra Digital, tomar nasmãos um livro impresso depequenas citações? Trata-se de mais do que um estí-mulo a conhecer mais.

Ao rever representações que tínhamossobre determinados versos que, por se-rem exatamente os mesmos, sempremudam com o tempo, vemos um poucodo quanto nós mudamos ou não em rela-ção a alguns conceitos. Lemos citações jus-tamente por isso: nos reconhecemos noque há de permanente e sobretudo nabusca de identificar as sutilezas de cadamudança. Uma das vantagens desse tipode organização é que, especialmente nocaso desse poeta múltiplo, concepçõespoéticas, éticas e filosóficas de heterôni-mos tão diferentes (ou não) entre si sãojustapostas, como verificamos nos verbe-tes arte, artista, deus, eleitor, democracia.Esse tipo de aproximação sensibiliza oleitor acerca da pluralidade ‘pessoana’,sem a necessidade de vastas explicaçõesteóricas, estéticas ou mesmo biográficas.

Enfim, o que se percebe nessa nova obrado premiado autor é que o velho baú con-tinuará rendendo infinitas citações, con-versas, digressões. Como diz carinhosamen-te o próprio José Paulo Cavalcanti Filho,“este é sobretudo um livro de devoção” e oleitor percebe isso no tom das notas.

Para terminar, é irresistível comentarum detalhe mínimo, mas curioso: a convi-vência com os heterônimos fez com que oorganizador também nos pregasse suaspeças, mesmo que não propositalmente. Seos biógrafos em geral enfrentam os desafi-os das datas fictícias de Pessoa, este autorteve a cuidadosa homenagem (ou “diverti-do descuido”) de datar sua apresentação dolivro como em “13 de junho de 2014”. Umpresente ao poeta no dia de seus anos.

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UÇÃO

LANÇAMENTO

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O universo dos versos esconde bemmais do que sabe nossa vã poesia. Não háreceita prévia para a formação de umgrande poeta, é bem verdade. Mas saibamvocês, prezados leitores, que existem,sim, receitas próprias, muito próprias, dogrande ‘poetinha’. Acaba de chegar aomercado o livro Pois Sou um Bom Cozinheiro.Editada pela Cia das Letras, a obra trazdetalhes dos sabores da vida de Vinicius deMoraes, e faz parte dos eventos especiaispelos 100 anos de nascimento do tambémjornalista, compositor e diplomata, come-morados no dia 18 de outubro. Uma novaface do mestre acaba, enfim, por ser des-velada para o grande público.

“Acho mesmo que Vinicius estaria bemcontente com toda essa movimentaçãoacerca de seu centenário. A obra delesobreviveu muito bem mesmo mais de 30anos depois de sua morte. Tenho ido adiversas homenagens e me comove vercrianças de sete, oito anos trabalhando apartir de sua criação e criando coisasnovas bebendo dessa fonte. Isso, por fim,é a glória total para um artista. Agora,surge o livro sobre o Vinicius cozinheiro.Essa era uma atividade rara... Mas que,como tudo o que ele fazia, desenvolviacom muito capricho”, recorda a viúva dopoeta, a produtora cultural e assessora deimprensa Gilda Mattoso, em entrevistaao Jornal da ABI.

O título do livro de receitas, com quasetrezentas páginas e fartamente ilustradopor fotografias – capazes de encher deencanto os olhos e de água as mais come-didas das bocas – está longe de ser umainvencionice das autoras. Na verdade,‘Pois sou um bom cozinheiro’ é um dosversos com que Vinicius de Moraes sedefine no poema Auto-retrato. A obra apre-senta receitas agrupadas por eixos prin-cipais: ‘Receitas da Casa’, ‘As saudades doBrasil, quando a gente está longe’, ‘Natalem família’, ‘Vinicius na cozinha’, ‘Re-ceitas de rua’ e ‘Receitas de obra’. Cada umdos pratos foi recriado por um time dechefs especialmente convidados, queinclui nomes como Alex Atala, FláviaQuaresma e Claude Troigros. Junto aosquitutes por eles preparados, são servidashistórias sobre a vida do artista.

A obra relembra desde os pratos prefe-ridos de Vinicius quando garoto até asiguarias mais refinadas que ele própriocozinhava durante suas viagens como di-plomata. Foi organizada pela chef Dani-ela Narciso e pela psicóloga Edith Gonçal-ves. A idéia de contar a história gastronô-mica de Vinicius partiu de Luciana deMoraes, filha dele, que buscou reprodu-zir as lendárias ceias de Natal na casa dosavós paternos. Depois da morte de Luci-ana, em 2011, Edith, sua companheira por23 anos, assumiu o projeto ao lado de

Daniela. Assim nasceu o livro, que fazparte das comemorações do centenário,como produção da VM Cultural.

“Uma boa receita é, também, uma for-ma de poesia! Em ambas as atividades épreciso ter criatividade, harmonia, ritmo,tempo... Além do mais, boa comida e boaliteratura são formas de manifestaçãoartística. Afinal, cozinhar e escrever sãocoisas que qualquer pessoa pode fazer.Mas poucos as fazem como fazia nossosaudoso poeta”, explica Daniela Narciso,que segue em seu depoimento para o Jor-

nal da ABI. “Como diria a família do po-eta: ‘Vinicius é plural, nunca singular!’Por isso é tão difícil traçar um único per-fil para ele, que amava tantas coisas. Omesmo serve para a comida, pois ele tinhaprazer em comer tanto um simplório ‘fei-jão preto com gordura’ quanto uma ‘ave-ludada e opulenta rabada’, assim como‘corda di chitarra’, com as caras e rarastrufas brancas, ou um belo GigotD´Agneau do Hotel Plaza Athènée deParis. Com esse livro, acredito ser possí-vel não só conhecê-lo melhor, mas traçar

sua história. E foi mais ou menos isso queconseguimos fazer ao reunir receitas quecontam momentos e fases diferentes davida do poeta”.

Dentre todas as receitas que constamdo livro, Daniela aponta aquela pela qualtem apreço especial. “Acho que o pudimde passas e a pasta de castanhas portugue-sas usada para preparar o peru de natal.Ambas permanecem na mesa de Natal dafamília Moraes até os dias de hoje”. Edi-th, parceira de Luciana de Moraes e orga-nizadora da obra, também falou rapida-

PAULO CHICO

Livro resgata as receitas da família do poeta, ao mesmo tempo em querecria alguns de seus pratos favoritos, por vezes executados pelo próprio.

E não deixa dúvidas: até mesmo na cozinha, Vinicius era um poeta

CENTENÁRIO

Os sabores deOs sabores deMORAESMORAES

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mente com o Jornal da ABI. “Ao abrir olivro a pessoa é capturada não só pelodesejo de reproduzir as receitas, mas tam-bém pela beleza das fotos, pelas cores epelo texto. Acredito que a Luciana esta-ria muito orgulhosa com o resultado doprojeto. Ele comprova que, no universodo poeta, a poesia se faz presente emtodos os momentos”. Em tempo: a recei-ta que fecha a obra é das mais simples. E,ao mesmo tempo, uma das preferidas dopoeta: “uísque com pouca água e muitogelo” dispensa maiores comentários. Epresta sutil homenagem à bebida rebatiza-da por Vinicius de ‘cachorro engarrafado’.

Outras homenagense lançamentos

No ano do centenário, os amantes e es-tudiosos da literatura, da bossa nova e damúsica popular brasileira ganharam de pre-sente um novo site com toda produção in-telectual do artista em vida. Desde a meia-noite do último dia 19 de outubro – no en-dereço www.viniciusdemoraes.com.br –o público pode acessar fotos, muitas de-las inéditas, discografia, prosa, críticas,textos teatrais e canções, tudo organiza-do numa catalogação minuciosa. O pro-jeto é da VM Cultural, responsável pelosdireitos do poeta. Criado pela empresa 6De coordenado pelo pesquisador Fred Co-elho, o site é oficial e melhor referênciaaos admiradores do artista que, pela pri-meira vez, terão acesso a detalhes da vidado compositor reunidos em um só lugar.Entre as curiosidades estão, por exemplo,uma fotografia feita em 1915 de Viniciuscriança, zangado, sentado numa cadeirade palha, uma carta escrita para seu ami-go Manuel Bandeira, a quem ele chama-va carinhosamente de ‘Manezinho’, alémdo manuscrito original da letra de Garo-ta de Ipanema, parceria com Tom Jobim esegunda canção mais executada na histó-ria em todo o mundo.

“O site, que tem o objetivo de ser umespaço de referência para estudiosos, é opresente da família para o centenário.Para nós é importante manter as obrasdisponíveis a todos, com o conteúdo in-teiramente revisado e uma curadoria fa-miliar permanente. Buscamos os melho-res profissionais para cuidar da obra depapai, mantendo sempre o alto nível egarantindo o alcance a quem se interes-sa pelo legado de Vinicius e não tem con-dições de ter acesso direto aos livros e aosdiscos. Queremos que, por exemplo, aprofessora de uma cidadezinha pequenasaiba que pode contar com o site parapesquisar e ministrar uma aula em cimade um conteúdo correto”, afirma Mariade Moraes, filha caçula e uma das sóciasda VM Cultural. Ela acrescenta que odesejo de toda a família é que o ano docentenário de Vinicius seja de exaltaçãoao amor, à generosidade e à verdade comque o poeta viveu e o site certamente irácolaborar com isso.

“A boa poesia e a boa letra de músicanunca são demais. Vinicius faz muitafalta ao mundo como cidadão generoso,terno, bom amigo, companheiro e ético– palavra praticamente fora do vocabu-

lário do brasileiro”, conta Gilda Matto-so que, enquanto nona esposa do poeta,avalia o peso da arte em suas conquistas.“Obviamente, havia sempre o encanta-mento pelos versos dele, mas não acho queescrevesse para conquistar as mulheres...Isso foi um facilitador, é claro... Na ver-dade, o homem era a faceta mais interes-sante do Vinicius, mais que o poeta, ocompositor, o diplomata, o jornalista ouqualquer outra coisa”.

A maioria dos textos em prosa de Vi-nicius tem origem na imprensa cariocados anos 1940 e 1950. Vinicius manteveestreita relação com as Redações, escre-

vendo não só crônicas, como também crí-ticas de cinema e textos sobre música po-pular. Passou por jornais e revistas comoA Manhã, O Jornal, Diário Carioca, Diretri-zes, Vanguarda, Última Hora e Fatos e Fotos.Além desses, escreveu para semanáriosque marcaram época como o Flan, Senhore Pasquim. Muitos destes textos foramreunidos em dois livros de crônicas: ParaViver um Grande Amor (1962) e Para umaMenina com uma Flor (1966), publicaçõesem que a prosa e a poesia conviviam nasmesmas páginas.

O Instituto Moreira Salles, com sedeno Rio de Janeiro, realizou uma série de

encontros sobre o poeta, além de shows.A própria Gilda Mattoso participou damesa que levou o título de ‘Vinicius ho-mem do mundo’, ao lado de convidadoscomo o cineasta Miguel Faria Jr.. Jorna-lista e amiga de Vinicius, Maria Lucia Ran-gel mediou o debate sobre a atuação doartista na esfera musical, que reuniuCarlos Lyra, Miúcha e João Máximo. NoBlog do IMS – www.blogdoims.com.br –é possível acessar um texto da jornalistasobre sua amizade com Vinicius e tam-bém com Fernando Sabino, escritor quecompletaria 90 anos em 12 de outubro.Maria Lúcia lembra histórias como a deuma festa em Ouro Preto, Minas Gerais,na qual o poeta, que não era 100% mate-rialista, disse estar certo de que DoloresDuran, morta muitos anos antes, estavano ambiente. A tampa de uma garrafa deuísque pulou e caiu na mão de Vinicius.Foi servida, então, uma dose para a ‘visi-tante’ e tudo ficou bem.

O caso ilustra a imagem esotérica deVinicius, construída sobretudo a partir dasérie de afrosambas – composições feitasem parceria com Baden Powell. “Viniciusnem era tão esotérico assim. Mas ele amavae acreditava na Mãe Menininha do Gan-tois, casa que frequentava e onde levavaamigos, inclusive outros artistas. Eu esperoque, de alguma forma, ele esteja por aí,vendo tantas homenagens bonitas quetêm sido feitas a ele”, conclui Gilda.

“Não lembro exatamente quando co-meçaram minhas conversas esotéricascom Vinicius. Aconteciam sempre depoisdas entrevistas para o Caderno B, do Jor-nal do Brasil, onde eu trabalhei nos anos1970. Ele na banheira cheia de espuma e,dependendo da hora, com um copo deuísque numa mão e um cigarro na outra.Eu, sentada num banco baixinho ao lado.Ele dava uma meia pausa e introduzia oassunto: ‘Sabe que o fulano me apare-ceu?’. Fulano podia ser Antonio Maria ouSérgio Porto, ambos mortos havia poucotempo. E por ‘aparecer ’, que fique bemclaro, Vinicius sentia uma percepçãodaquela pessoa através de um copo quecaía sozinho, uma luz que se apagava oualgo assim”, escreveu Maria Lucia Rangel,que também falou para esta reportagemdo Jornal da ABI.

“Eu estou achando ótimas essas lem-branças pelo centenário. Mas, gostaria dever um evento em especial. Foi na casa doarquiteto e artista plástico Carlos Leão, nomorro do Cavalão, em Niterói, que Vini-cius escreveu o primeiro ato de sua peçaOrfeu da Conceição, ainda em 1942, inspi-rado pela batucada proveniente da vizi-nhança. Nossa idéia, então, neste ano, eralevar a peça para lá, representá-la. Aindanão conseguimos o patrocínio, tentamosna Lei Rouanet, mas o projeto não é ba-rato. O Jayme Alem faria a direção musi-cal... Agora, só me queixo, mesmo, do fatode a cidade do Rio não estar fazendo nada,em matéria de espetáculo, para homena-gear o poeta que tanto a exaltou”.

Em 2013 já tivemos sete dias de fes-tival de rock. Mas, cadê o dia de Vini-cius? Onde foi parar? Com a palavra, aPrefeitura.

FOTOS VM CULTURAL

Vinicius de paletó, gravata e avental, numa pose na cozinha e, anos mais tarde, com GildaMattoso, sua nona esposa: “A boa poesia e a boa letra de música nunca são demais.”

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Quantos Mários de Andrade o Brasilconhece? Tem o Mário de Andrade escri-tor, poeta e romancista. Existe o musicó-logo, historiador e folclorista. O Mário deAndrade agitador cultural, crítico de artee até fotógrafo. E ainda o que virou Colé-gio, Biblioteca, e depois nota de 500 milcruzeiros. Mas, a verdade é que Mário deAndrade não cabe numa matéria. Nemmesmo em várias. Até porque todos oscitados aí em cima são um só: o MárioRaul de Morais Andrade, primeiro e úni-co, filho de Carlos Augusto de Moraes An-drade e Maria Luísa Leite Moraes Andra-de, nascido há 120 anos em pleno centroda capital paulista, mais precisamente nonúmero 320 da Rua Aurora, em 9 de ou-tubro de 1893, época em que a Rua Auroraainda não era o que é hoje.

Em número de anos, não viveu muito:morreu caprichosamente no dia do ani-versário da cidade onde nasceu e que tantocantou em verso e prosa, alguns meses an-tes de completar 52 anos. É pouco. Mascomo Mário agitou nestes anos!

Talvez já alertado por algum anjo tor-to de que deveria começar cedo, Márioescreveu seu primeiro poema ainda nafase que se chamava antigamente de “cur-so primário”: aos 10 anos, antes mesmode entrar no ginásio Nossa Senhora doCarmo, dos Irmãos Maristas, o garotoescreveu o que considerou “um estalo”criativo provocado por um acidente detrem que presenciara durante um pique-nique. “Na verdade ninguém se faz escri-tor. Tenho a certeza de que fui escritordesde que concebido. Ou antes... Meu avômaterno foi escritor de ficção. Meu paitambém. Tenho uma desconfiança vagade que refinei a raça”, disse Mário, comsua habitual falsa modéstia, em depoi-mento para o livro República das Letras,da Editora Civilização Brasileira.

Seria lugar-comum afirmar que a par-tir daí Mário não parou mais. E como é ver-dade, publique-se o clichê: a partir daíMário não parou mais. Só os livros publi-cados somam mais de 30. Desde a estréialiterária em Há uma Gota de Sangue emCada Poema (1917), passando por clássi-cos como Paulicéia Desvairada (1922), AEscrava que Não É Isaura (1925), AmarVerbo Intransitivo (1927) e, claro, o ímparMacunaíma (1928) que cunha para o Bra-

sil o herói sem nenhum caráter. Isso falan-do apenas do Mário escritor.

Já o Músico era um Mário que não to-cava. E por um motivo trágico. Conside-rado exímio pianista ainda na infância,era aluno do Conservatório Dramático eMusical de São Paulo desde a adolescên-cia. Porém, em 1913, seu irmão Renato, de14 anos de idade, morreu ao tomar umforte golpe na cabeça durante uma sim-ples partida de futebol. O episódio cho-cou Mário que, abalado, abandonou oConservatório e foi passar uma tempora-da com a família numa fazenda em Ara-raquara, interior paulista. Voltando à ca-pital, Mário até retoma as aulas e forma-se no Conservatório, mas o trauma lherendeu um incurável tremor nas mãosque o levou a abandonar o piano.

Dedicou-se, porém, aos estudos de teo-ria musical, tornando-se grande teórico, en-saísta e professor. Entre seus livros estão En-saios Sobre a Música Brasileira (1928), Com-pêndio da História da Música (de 1929 erelançado em 1942 como Pequena Histó-ria da Música Brasileira), Modinhas Impe-riais (1930) e Música do Brasil (1941), en-tre outros.

“Grupo dos Cinco”Mas quando se fala em Mário de An-

drade certamente a primeira imagem quevem à mente do imaginário popular émesmo a de líder do movimento moder-nista. E não é para menos. Inquieto, efu-

PERFIL

Mário?Que Mário?

Muitos foram os talentos de Mário de Andrade.Tantos que, até hoje, há quem lance novasluzes e dúvidas sobre sua personalidade.

POR CELSO SABADIN

sivo e com uma capacidade produtiva ecriativa que parecia inesgotável, se envol-via pessoalmente, de corpo e alma, comtoda e qualquer atividade que tivesse al-guma relação com as novas idéias européi-as que repudiavam as antigas escolas clás-sicas. Rapidamente fez amizade com ou-tros jovens artistas e escritores simpati-zantes do Modernismo e, ao lado deOswald de Andrade, Menotti del Picchia,Tarsila do Amaral e Anita Malfatti, com-pôs o que informalmente se chamou de“Grupo dos Cinco” – o embrião que de-sencadeou a histórica Semana de ArteModerna de 1922.

Em tempo: a despeito do sobrenome,Mário e Oswald nunca foram parentes.

Mário escreveu na Revista de Antropo-fagia, fundada por Oswald, e publicouvários artigos, críticas e ensaios sobre his-tória, literatura e música brasileiras naimprensa da época. Seus textos eram pre-sença constante nos veículos Revista doBrasil, Terra Roxa e Outras Terras, Verde,Diário Nacional de São Paulo e Folha deS.Paulo. Empreendeu várias viagens aonordeste brasileiro e à Amazônia, sem-pre colhendo e catalogando as mais di-versas manifestações folclóricas e musi-cais de cada povo.

Vale lembrar que os anos 1920 nem ha-viam terminado ainda quando Macuna-íma foi lançado. Ou seja, se ele tivesse na-quele momento decidido “se aposentar”e não fazer mais nada, mesmo assim já te-

ria seu nome garantido nahistória da intelectuali-dade paulista em parti-cular e brasileira em ge-ral. Mas sua inquieta-ção artística e culturaljamais lhe permitiratamanha comodidade.

Em 1935, ao lado doescritor e arqueólogoPaulo Duarte, organi-zou o Departamentode Cultura da Cidadede São Paulo, uma es-pécie de embrião doque atualmente co-nhecemos como Se-cretaria Municipal deCultura. Formou tam-bém a Discoteca Mu-nicipal, reunindo umvasto acervo de mú-

sica e folclore não apenas paulista comotambém brasileiro. Foi um dos fundado-res do Serviço do Patrimônio Histórico eArtístico Nacional, além de criador e pri-meiro presidente da Sociedade de Etnolo-gia e Folclore de São Paulo.

Mário continuou empreendendo via-gens de pesquisas etnográficas, folclóri-cas e culturais pelo País até 1938, quandopassou a sofrer perseguição política deGetúlio Vargas, a quem havia duramentecriticado no ano anterior, em função dainstalação do Estado Novo. Muda-se parao Rio de Janeiro, onde dirige o Institutode Artes da então Universidade do Distri-to Federal. Ali organiza o I Congresso daLíngua Nacional Cantada, e retorna a SãoPaulo em 1941, reassumindo o Departa-mento de Cultura.

Sua morte, em 1945, ainda sob a dita-dura Vargas, foi solenemente ignorada pelopoder central. Mais de 40 anos depois, em1989, quando se pensava que tudo sobreMário de Andrade já havia sido falado,publicado e estudado, o jornalista e escri-tor carioca Werneck de Castro publica olivro Mário de Andrade – Exílio no Rio, ondeaborda questões sobre uma suposta homos-sexualidade do famoso intelectual paulis-ta. Em 1993, na matéria “Vida do escritor foium vulcão de complicações”, publicada naFolha de S.Paulo, o professor e intelectual An-tônio Cândido apoia a teoria.

Era só o que faltava. Depois de tanto tem-po, agora querem tirar o Mário do armário.

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Os Black Blocs são apresentados na mídiamundial como um fenômeno que poderia serrotulado como neo-anarquista. Neo talvez,mas ainda afeito aos tradicionais coquetéismolotov. E, como manda o figurino históri-co, manifestando-se com estardalhaço e reno-vada simbologia anticapitalista. Daí a prefe-rência por ataques a auto-serviços bancáriose a vitrines e fachadas de fast foods e marcase grifes transnacionais de luxo. Curiosamente,na semana final de setembro, a fotografia deum homem segurando um Big-Mac e umaCoca-Cola sob o vão do Masp, na Avenida Pau-lista, foi publicada pela Folha de S.Paulo com in-trigante legenda que o identificava como “co-ordenador de manifestantes mascarados”. Tam-bém multinacionais, pelo menos na nomencla-tura, os Black Blocs são uma novidade no Bra-sil. Mas são estudados há pelo menos três dé-cadas por atuação semelhante na Alemanha,Canadá, Estados Unidos, Turquia, Egito, Gré-cia, Chile e México. Não nessa ordem, porémsempre se apresentando como “estudantes, tra-balhadores, desempregados e revoltados”, se-gundo o “Manifeste du Carré Noir” divulgadono Québec, Canadá, em 2012. E que parece de-finir a “ideologia” Black Blocs: “Nous sommescolère” – ou “Estamos com raiva”.

Para os mais críticos, a ação sem frontei-ras dos Black Blocs não passaria de mera imi-tação de jovens rebeldes em busca de um“modismo extra-rock”. Moda esta desconcer-tantemente colada a protestos quase sempreautênticos. O que poderia conferir um deses-perado idealismo à atuação deles. Ações queperderiam a aura romântica ao serem desco-bertas como premeditadas. O imbróglio é, as-sim, sinistro. Mas, há quem veja no surgi-mento dos Black Blocs, país após país, o pa-trocínio de organizações apátridas, agênciasde inteligência e insuspeitadas “reinsurgênciasde direita”. Seriam “embriões” direcionados aimplantar o caos em nações-chave da econo-mia e da política mundial. Se a suspeita forsuscetível de comprovação – embora peremp-toriamente negada na internet pelos interes-sados – então os Black Blocs poderiam servistos (e tratados) como uma potencial ame-aça à democracia.

Explicar esses grupos – com anárquicos uni-formes de peças negras e máscaras ninja – temmobilizado articulistas de todos os matizes ede todas as mídias. Com essa característica quelhes agrega um indefinido mistério de impro-visada guerrilha urbana, os Black Blocs conti-nuam assim a desafiar editorialistas locais e es-trangeiros. A tendência é considerar o vanda-lismo irrefreável pelas “forças da ordem”, comoum “defeito ou acidente de governabilidade”.Ou ainda uma inabilidade inerente à exacerba-da democracia. Ou mesmo ingênua redundân-cia que atribui exigências de “mais democracia”como “leitmotiv espiritual” das manifestações.Exigências só possíveis exatamente porque ademocracia é plena na garantia dos protestos.Foram importantes jornais americanos e eu-ropeus – como New York Times e El País – os pri-

meiros a tratarem em editoriais estes “ansei-os de mais Democracia” no Brasil, dando-lhessimilitude à contracultura em Berlim na déca-da de 1980.

Os editoriais e artigos consultados desdejulho último na mídia impressa e em sites doRio e São Paulo questionam em contraparti-da também o alcance e a autenticidade da so-berania popular em manifestações que nãoconseguem se desgarrar da violência. Cientis-tas políticos que se abstraem do vandalismo,considerando o ato criminoso como casos emseparado de polícia, vêem nas manifestaçõesum sadio exemplo de “liberdadedemocrática em ação com ga-rantias constitucionais”. Nãoimporta se os manifestantes re-presentam ou não uma vonta-de majoritária. É a liberdade am-pla e irrestrita rolando nas pas-seatas, mesmo que elas expres-sem apenas desejos de cabeçascomunitárias, pontas de lançaclassistas e amostragem de gru-pos menores. Em comum, todosparecem movidos pelo impulsoda mídia (TV principalmente) e pela mobili-zação político-partidária nos dois extremos do“espectro ideológico”. O que parece um contra-senso. Embora, energeticamente, os extremosse atraiam. E se completem. É exatamente nes-te exercício tão democrático que as passeatasacabam por oferecer inapeláveis oportunida-des para grupos estranhos se infiltrarem. E po-derem confrontar e destruir. Danificando pri-meiro as próprias causas e razões de que se va-lem e movem multidões. Uma delas, possivel-mente a causa mais agredida, é a defesa da mo-bilidade urbana.

Nas ruas “por dever constitucional de ga-rantir e orientar as manifestações”, a políciaacaba incluindo-se no rol dos vândalos. Con-quistam mesmo mais antipatias ao se sub-meterem ao arbítrio do despreparo e da tru-

culência inerente ao mister policial. No casodas PMs há notório resquício da bem recenteditadura militar quando a repressão sem limi-tes era ordem e rotina. O paradoxo democra-cia/repressão teria como pretexto a proteçãode áreas públicas com seus aparatos de servi-ços e monumentos. Todo esse conjunto de di-ficuldades e obstáculos ativa ainda mais asminorias violentas. Neste momento estraté-gico é que o embate manifestação-polícia podeser visto como uma radical competição espor-tiva proibida. E por isso mesmo mais atrati-va para “entusiastas militâncias secretas”. Afi-

nal, não é este o espírito empol-gante dos videogames? E não éaí que mora o potencial maior domodismo juvenil?

As últimas manifestaçõesrelatadas na mídia esclarecemque as depredações e o vandalis-mo não são mesmo conseqüên-cia do embate fortuito. Tomadaspredominantemente por mili-tantes de outro fenômeno re-cente – conhecido por MídiaNinja (Ninja de “Narrativas In-

dependentes, Jornalismo e Ação”) – são ima-gens e testemunhos que só se fazem possíveisporque colhidos heroicamente bem de perto,mostrando toda uma evidência de premedi-tação nos quebra-quebras. Evidência que nãomais se discute. O que se questiona é “a im-punidade do frenesi predatório”, que dá lugare vez ao medo ante a simples necessidade detrabalhar, voltar para casa, estudar, divertir-se, transitar. Nessas horas – sempre as maiscríticas da mobilidade e em áreas vitais dacidade – o cidadão comum queda-se desam-parado. Sua revolta assume então o lugar daincompreensão. E a confusão dá oportunida-de a que o intuito declarado ou oculto dos pre-dadores mascarados seja alcançado no desper-tar de sentimentos de necessária proteção porvezes fascistas. Como diz Francis Depuis-

MANIFESTAÇÕES

POR PINHEIRO JUNIOR

Black Blocs: simplesmodismo ou real ameaça?

Déri, professor de Ciência Política da Univer-sidade Quebec à Montreal (UQAM) autor dolivro (sem tradução para o português) LesBlack Blocs (UQAM), ouvido em 7 de setem-bro de 2013 por Carolina Mendonça, da BBCBrasil: “a internet e a crescente insatisfaçãocom os governos e a economia impulsionamo movimento”. Depois conta que pesquisa ogrupo há dez anos. E explica que “a internet setornou seu [deles] principal canal de comuni-cação, porque permite que os grupos interajamrapidamente e organizem protestos”. Nada quejá não tenha sido mostrado, inclusive pela Mí-dia Ninja em exclusivos vídeos nervosos colhi-dos no meio da tormenta predatória. O que in-duz à conclusão que de certa forma tambémos repórteres da Mídia Ninja participam, comseus rústicos equipamentos de captura de ima-gem, dos propalados “videogames de rua”.Porque também os Mídia Ninja, no exercício daliberdade de informar, são hostilizados pela po-lícia. E não poucas vezes pelos vândalos “pro-fissionais ou de ocasião”.

Materializando em livro um pensamen-to-chave de Jean-Paul Sartre, Nelson Padrellapublicou em plena ditadura militar o seu OFascismo é um Estado de Espírito (Edição doAutor – 1969). Hoje temos o direito sem cen-sura a um bom exercício antifascista: pinçarnos jornais daqui e de fora as análises mais im-portantes que se publicam a propósito ou pa-ralelamente a esta propalada ânsia brasilei-ra de mais democracia e não de volta à dita-dura. Ânsia que foi posta na mesa/ruas prin-cipalmente pela imprensa internacional su-bitamente surpreendida por uma pretensa etardia primavera brasileira, a exemplo dos cli-mas liberais de flores políticas que cresceramno Leste Europeu, na Turquia e até no cursodas malfadadas experiências afogadas emsangue no Norte Africano. Dedo e metralha-doras de agências de inteligência tipo CIA eMossad estão, é claro, presentes e mais ati-vos do que nunca notadamente no Oriente

“A internete a crescente

insatisfação comos governosimpulsionamo movimento[Black Blocs]”

Francis Depuis-Déri, cientistapolítico da Universidade

Quebec à Montreal

FERNAN

DO

FRAZÃO/AB

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VIDAS

Médio. A missão sediciosa digital denuncia-se para demonstrar, por exemplo, que tal equal governo – populista, islâmico, socia-lista? – são incompatíveis com a democra-cia. Portanto, concluem análises espiãs: me-lhor seria derrubá-los...

Óbvio que a imprensa estrangeira vêtambém nas manifestações que varrem asprincipais cidades brasileiras, São Paulo eRio à frente, uma tendência resultante dainexpugnável globalização político-econô-mica. Talvez mesmo um efeito manada so-ciopolítica, já que o fenômeno da carneira-da dirigida não se restringe mais às finan-ças especulativas.

A “ameaça Black Blocs” insere-se perfei-tamente na análise do cientista políticoDani Rodrik, professor de Ciências Sociaisdo Instituto de Estudos Avançados da Uni-versidade Princeton, Nova Jersey. Em tra-dução de Rachel Warszawski, foi publica-da pelo Valor Econômico na página A13, edi-ção de 14 de agosto de 2013. É um textoantológico, não fosse Rodrik autor do bada-lado The Globalization Paradox: Democracyand the Future of de World Economy (Paper-back – 2013). Sobre as armadilhas democrá-ticas que podem levar ao autoritarismo, dizRodrik: “A democracia repousa num jogoimplícito de concessões mútuas entre gru-pos adversários, segundo o qual cada umconcorda em defender os direitos do outroem troca de reconhecimento de seu direitode governar, caso vença uma eleição”. E con-tinua: “As cláusulas constitucionais por sisó não podem garantir esse resultado, poisos ocupantes do poder podem facilmenteanulá-las. Em vez disso, normas de com-portamento político correto precisam serincorporadas pelas instituições permanen-tes do Estado – seus partidos políticos, par-lamentos e tribunais – a fim de evitar oabuso de poder. O que sustenta essas nor-mas é a consciência de que miná-las teráconseqüências prejudiciais para todos. Se eunão defender os seus direitos quando esti-ver no poder hoje, você terá poucos moti-vos para respeitar os meus quando subir aopoder amanhã. Quando uma força exter-na, como as Forças Armadas, interrompeesse jogo, diretamente ou porque uma daspartes pode contar com sua intervenção, adinâmica do comportamento políticomuda de forma irreversível. A quebra de con-tinuidade dos partidos políticos, dos traba-lhos parlamentares e dos processos judici-ais estimula o surgimento de cálculos decurto prazo e alimenta práticas antiliberais.Essa é exatamente a doença das democra-cias jovens.” (project-syndicate.org).

Doenças que estão sendo expostas nasruas, para o bem – dado às reivindicaçõesautênticas – ou para mal, com o surgimen-to local dos grupos de ataque à democracia– os Black Blocs.

José Alves Pinheiro Junior é jornalista econselheiro da ABI, autor de A Última Hora (comoela era), entre outros livros.

Um dos mais queridos cartunistas brasi-leiros, Renato Vinícius Canini faleceu noúltimo dia 30 de outubro, aos 77 anos, víti-ma de mal súbito decorrente de um proble-ma cardíaco. Criador de inúmeros persona-gens de sucesso, como Cactus Kid, Dr. Fraude o indiozinho Tibica, e lembrado como odesenhista que “abrasileirou” o Zé Carioca,personagem de Walt Disney, Canini nas-ceu em 22 de fevereiro de 1935, na cidadede Paraí, no Rio Grande do Sul. Desde jo-vem, interessou-se pela arte do traço e, aos21 anos, já trabalhava como ilustrador narevista infantil Cacique, publicada pela Se-cretaria de Educação e Cultura do Estado.

Ainda nos anos 1960, participou ativa-mente da lendária Cetpa – CooperativaEditora de Trabalho de Porto Alegre, inici-ativa que tinha como meta a nacionaliza-ção do quadrinho brasileiro e contou como apoio do então Governador Leonel Bri-zola. Com roteiros de José Geraldo Barre-to, Canini desenhava Zé Candango, umcangaceiro que lutava contra os super-he-róis estrangeiros.

Canini mudou-se para São Paulo em1967, para trabalhar na revista infantil Bem-Te-Vi, publicada pela Igreja Metodista. Doisanos depois foi contratado pelo estúdio dequadrinhos da Editora Abril, para ilustrar arevista Recreio. Logo passou a trabalhar comZé Carioca, personagem popular criado em1942 por Walt Disney. Aproveitando-se docontrole frouxo que a Disney então man-tinha sobre os quadrinhos de sua franquiafeitos no País, Canini incorporou diversosaspectos da Cidade Maravilhosa às históri-as, bem como trejeitos brasileiros ao perso-nagem. Foram cerca de 135 histórias, pro-duzidas entre 1971 e 1977, amplamenteapreciadas pelos leitores brasileiros. Masesse grande sucesso acabou atraindo a aten-ção da matriz americana, que desaprovouo trabalho, considerando-o demasiado dis-tante do seu padrão original.

Por muito tempo, o trabalho de Caniniem Zé Carioca ficou proibido de ser repu-

blicado, situação que só mudou em 2005,quando a própria Editora Abril homena-geou o artista com um volume da coleçãoMestres Disney, equiparando-o assim aosilustradores Don Rosa, Cavazzano, Got-tfredson e Romano Scarpa,vistos nos outros volumesdessa coleção.

Em 1974, Canini crioupara a revista Crás a sátira defaroeste “Koka Kid”, rebati-zada depois pelo editor comoKactus Kid. Inspirado na fi-sionomia de Kirk Douglas,Kactus Kid era um agentefunerário que, quando ne-cessário, transforma-se numpistoleiro elegante e boa-pinta, não sem alguma difi-culdade, uma vez que tinha que passar pelapicada dolorosa de uma agulha para fazer oindefectível furinho no queixo.

Outra criação importante de Canini éo psicólogo Dr. Fraud que, nos anos 1970,chegou a aparecer em várias edições da

“O que sustenta essasnormas [democráticas] é a

consciência de que miná-lasterá consequências

prejudiciais para todos”Dani Rodrik, cientista político da

Universidade Princeton

O desenhista do Brasilnos quadrinhos

POR CESAR SILVA

Canini mostrou a toda uma geração de leitores aimportância de valorizar a cultura brasileira nas hqs.

Numa foto histórica, três jovens desenhistas da Cooperativa Editora de Trabalho de Porto Alegre,criada por Brizola, apresentam suas revistas: Shimamoto, Renato Canini e Flávio Teixeira.

revista Patota, da Editora Artenova, e pu-blicado em álbum em 1991 pela editoraSagra-DC Luzatto, sempre envolvido comproblemas psicológicos dos mais famosospersonagens dos quadrinhos. Em 1978,criou o indiozinho Tibica para participarde projeto de tiras da Editora Abril, quenão foi adiante. O personagem seria enfimpublicado em 2010 no álbum Tibica: ODefensor da Ecologia, pela Editora Formato.Canini também teve trabalhos publicadosnos jornais Correio do Povo, Diário de Notí-cias, Pasquim e nas revistas Mad e Pancada,entre outras publicações.

Também são seus os livros infantisCadê A Graça Que Tava Aqui? (1983,Mercado Aberto), Um Redondo Pode SerQuadrado? (2007, Formato) e O Cigarroe o Formigo (2010, Formato). Em 2012,publicou seu último trabalho, o álbum PagoPra Ver (Iel/Corag), reunindo 250 ilustra-

ções sobre o Rio Grande do Sul e os pam-pas, realizadas ao longo dos últimos trin-ta anos. Casado com a também desenhis-ta Maria de Lourdes, Canini foi sepultadono Cemitério Ecumênico São Francisco dePaula, em Pelotas/RS, onde morava.

MANIFESTAÇÕES BLACK BLOCSREPRO

DU

ÇÃO

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Grandes artistas costumam reservarsurpresas para o público. Normal, portan-to, que mesmo após a sua morte, NormaBengell esteja prestes a estrear num pro-duto inédito. A atriz, cantora e cineasta,morta no dia 9 de outubro, aos 78 anos,poderá ser vista em breve – não nos pal-cos ou nas telas, mas sim nas livrarias. Amusa do cinema deixou pronto um livrode memórias. Atualmente em fase de re-visão, ele será lançado pela nVersos Edi-tora em março de 2014. Em tempos depolêmicos debates acerca da natureza dasbiografias, a atriz optou por contar a pró-pria trajetória e versão dos fatos. Na ver-dade, uma decisão tomada ainda na déca-da de 1980.

Na publicação, ela costura seus diáriosde anotações feitas ao longo da vida e com-plementa tais dados com informações mar-cantes de que recordava. Durante as reu-niões com a equipe da editora, frisava que,no livro, estariam todas as verdades sobresua história e os seus momentos de glóriano cinema mundial. “Norma contava quequeria revelar a sua versão dos fatos quemarcaram sua vida e deixou claro para nósque o nome real de cada personagem deve-ria estar no livro”, conta o assistente edi-torial da nVersos, Guilherme Udo, queconversou com o Jornal da ABI.

Norma sempre registrou os momentosde sua vida em manuscritos e acalentavao sonho de reuni-los há muitos anos. As-sim, a obra revela-se o diário de uma musa,agora ao alcance de todos. “O acervo daNorma sempre foi muito bem conservado.A atriz conseguiu reunir facilmente o ma-terial e entregou o livro já organizado paranós. Hoje, o texto só passa pela edição fi-nal e, em março, o público poderá se deli-

ciar com a sua linguagem desbocada e aomesmo tempo amável”, conta ele.

Lançada ao estrelato a partir de um po-lêmico nu frontal, o primeiro do cinemanacional, em Os Cafajestes (filme de1962, de Ruy Guerra, em que era protago-nista ao lado de Jece Valadão), a cariocaNorma Aparecida Almeida Pinto Guima-rães D´Áurea Bengell conseguiu ir alémde sua beleza – e das arrojadas experiên-cias estéticas do Cinema Novo. Durantetoda a década de 1960, e mesmo diante doestrelato de concorrentes de peso, comoOdete Lara, manteve-se como o rostomais bonito e enigmático do cinema bra-sileiro. Ao longo de cinco décadas decarreira, brilhou em filmes tão diversosquanto a chanchada O Homem do Sputinik(1959), o premiado O Pagador de Promes-sas (de 1962, e pelo qual receberia convi-tes para filmar no exterior), Assim era aAtlântida (1975), e Rio Babilônia (1983).Por Noite Vazia (1964), de Walter HugoKhouri, foi perseguida pela censura, se-questrada e encorajada a buscar o exílio.

Como diretora, assinou EternamentePagu (1988) e O Guarani (1996), cujaprestação de contas causou polêmica, comsuspeita de mau uso de verbas públicas.No mais popular produto da dramaturgiabrasileira, as telenovelas, emprestou seutalento a sucessos como Os Imigrantes(1981), de Benedito Ruy Barbosa, na Ban-

A estrelasalta dastelas paraas páginas

PAULO CHICO

Musa do cinema nacional,Norma Bengell saiu de cena,vítima de câncer. Mas deixou

pronto um livro de memórias,em que revisita, com olharrevelador, sua vida e obra

deirantes, e em Partido Alto, da dupla Glo-ria Perez e Aguinaldo Silva, exibida pelaTV Globo em 1984. Entre 2008 e 2009,surpreendeu e, numa prova irrefutável deversatilidade, fez o público rir na série dehumor Toma Lá, Dá Cá, da Globo, comoDeise Coturno. Dona de um olhar doce eimpactante, e de voz aveludada, gravoudiscos como Ooooooh! Norma (1959) eNorma Canta Mulheres (1977) sem, con-tanto, estourar nas rádios.

Os últimos anos foram de dificulda-des. Já não andava, devido a duas quedassofridas em casa. Por vezes, a artista quei-xava-se de certo esquecimento por partedos diretores e da mídia. “Ela sempre di-zia que não existe porque guardar mágo-as de ninguém. Era uma mulher de tem-peramento forte, mas muito doce. Passoupor dificuldades, mas sempre foi ampara-da pelos amigos, que colecionou pelavida. Norma foi uma pessoa de amores, eramovida pela paixão. Todos os seus relaci-onamentos e detalhes estarão na obra quechegará às livrarias no ano que vem. Valelembrar que ela foi casada com o atorGabriele Tinti”, conta Guilherme Udo,para quem nem sempre a atriz teve seutalento devidamente valorizado.

“Acho que Norma foi reconhecida emalguns momentos de sua carreira e, talvez,tenha sido mais exaltada no exterior. OBrasil dá muito valor aos seus artistas, mas

ela não chegou a gozar de um reconheci-mento imenso do público. É uma pena, poisera uma diva, assim como são Bibi Ferrei-ra e Fernanda Montenegro”, pontua. Udoconta que Norma analisou e deu palpite emtodas as fotos que iriam compor a obra.“Apesar de ser vaidosa, queria se mostrarcomo era e sempre deu preferência parafotos sem maquiagem pesada e nas quaisnão estivesse como personagem”, revela.Pouco antes de ser internada no HospitalRio-Laranjeiras, em Botafogo, Zona Sul doRio, ainda escolheu a foto que ilustra a capado livro, que Guilherme classifica como‘uma revelação’. “Ela foi surpreendente du-rante toda sua vida. O livro inteiro é nestetom. É só conter a ansiedade por algum tem-po que, em breve, todos conhecerão a nu-dez mais íntima, a da alma da artista, quenunca foi vista antes”, promete.

Norma faleceu na companhia de estre-las, na madrugada de uma quarta-feiracomo outra qualquer, vítima de proble-mas respiratórios, devido a um câncer nopulmão direito, diagnosticado seis mesesantes. Seu corpo foi velado no CemitérioSão João Batista, em Botafogo, tendo sidocremado no Cemitério do Caju. Deixou fil-mes, discos, vídeos, amigos. Personagensmarcantes. E, por fim, um livro de memó-rias que certamente contribuirá para aconcretização de seu maior desejo: jamaisser esquecida.

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