campus impresso - ano 43 número 393

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Campus Brasília, 5 a 13 de fevereiro de 2013 | Número 393 Ano 43 Sem o selo de qualidade Metade da carne bovina consumida no Distrito Federal tem origem clandestina. Armadilhas para o consumidor estão em feiras, açougues e supermercados Legenda express Câmera e cartola Menina aqui, menino ali Tradução da sua série favorita em uma semana, ou seu download de volta (pág. 3) Lojas de brinquedo em Brasília dividem produtos por gênero e reforçam estereótipos (pág. 6 e 7) Ao usar o próprio corpo como suporte, Ricardo Joffily se transforma no Photoman (pág. 8) Foto: Monique Rodrigues

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Jornal-laboratório da Faculdade de Comunicação (FAC) da Universidade de Brasília (UnB).

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Page 1: Campus impresso - ano 43 número 393

Campus Brasília, 5 a 13 de fevereiro de 2013 | Número 393 Ano 43

Sem o selo de qualidadeMetade da carne bovina consumida no Distrito Federal tem origem clandestina. Armadilhas para o consumidor estão em feiras, açougues e supermercados

Legenda express Câmera e cartolaMenina aqui, menino aliTradução da sua série favorita em uma semana, ou seu download de volta (pág. 3)

Lojas de brinquedo em Brasília dividem produtos por gênero e reforçam estereótipos (pág. 6 e 7)

Ao usar o próprio corpo como suporte, Ricardo Joffily se transforma no Photoman (pág. 8)

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João Bosco Lacerda

O processo de produção de um jornal muitas vezes passa por imprevistos. Repórteres, como qualquer pessoa, estão sujeitos a problemas pessoais. Cabe à re-dação resolver os imprevistos da melhor forma possível, o que, em geral, resulta em grande apren-dizado. Sendo assim, esta edição do Campus apresenta excepcio-

Diagramação: Ramilla Rodrigues

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Carta do Editornalmente duas matérias em pági-nas duplas. A primeira delas, O mundo em azul e rosa, da repórter Marina Baldoni Amaral, cumpriu com maestria dupla função. Desti-nada a apenas uma página, a ma-téria evoluiu para uma intrigante radiografia de uma estrutura ma-niqueísta na venda de brinquedos que divide meninos e meninas e dobrou de tamanho sem que a qua-lidade fosse prejudicada.

A outra matéria de duas páginas, Sem o selo de qualidade, das repórteres Isabela Bonfim e Ananda Borges, tem como tema a carne clandestina presente nos açougues e supermercados do Distrito Federal, e os potenciais problemas que podem ser causa-dos ao consumidor. Desmistifica também alguns dos temores que muitos têm em relação à carne vendida em feiras, e calcula o

prejuízo que o não pagamento de impostos sobre a carne traz ao Governo do Distrito Federal.

Coube a Pedro Menezes em Legendas em 3,2,1... encon-trar personagens quase invisíveis, que trabalham sob a proteção de codinomes e abdicam a noites de sono para traduzir em menos de 24 horas seriados cujo conteúdo é produzido em inglês. Assim, ali-mentam a paixão de aficionados

em séries, um enorme grupo entre os usuários de internet.

A Página 8 foi dedicada a um perfil de um curioso personagem brasiliense. Quem frequenta os bares da cidade já deve ter cruzado com um fotógrafo de cartola bri-lhante e tela no dorso. Muitos co-nhecem o Photoman. Pouca gente conhece, no entanto, Ricardo Jo-ffily, inventor, funcionário público e pai de três filhos.

Ombudskvinna*Paloma Suertegaray

A edição nº 392 do jornal-laboratório Campus melhorou em vários aspectos, como precisão das informações e estrutura dos textos. As chamadas de capa são concisas e mais eficientes do que as do número 390.

A reportagem Admirável mi-cromundo traz um tema inusitado, porém não aprofunda os pontos

mais curiosos. Os entrevistados di-zem dedicar horas às micronações. Fazendo o que exatamente?

Fundamentada num levan-tamento bem realizado, a matéria Brasília: quase uma cidade parque denota o cuidado das repórteres em descrever em detalhes a si-tuação de diferentes parques. A diagramação, no entanto, dá a impressão de que faltou texto para preencher as páginas.

Em O Brasil que treme, ob-serva-se uma ótima organização do texto. Mesmo que dificuldades para viajar até os lugares men-cionados sejam reconhecidas, a reportagem ficou devendo mais personagens. Os brasileiros que vivem os tremores num país co-nhecido pela suposta ausência de terremotos são a parte mais inte-ressante do assunto. A presença dessas fontes afastaria o tom de

livro didático que às vezes toma conta do texto.

A proposta do perfil da Pá-gina 8 está confusa. Não dá pra saber por que a Elenita foi esco-lhida como personagem. É por-que perdeu um filho? Ou porque imigrou para Estrutural? É por estar em depressão?

Um problema está presente, em maior ou menor medida, em todas as peças desta edição: o tom

burocrático. Os personagens são os números e as pessoas passam pelas matérias apenas para ilustrá-los, sem realmente dar destaque à dimensão humana das pautas (isso fica bastante evidente, por exem-plo, em Entre a falta e o excesso). O espaço de um jornal laboratório é a grande oportunidade para correr riscos, ir além do texto-relatório e fazer os primeiros experimentos no terreno da grande reportagem.

MemóriaPublicada no Campus em

maio de 2006, na edição de nú-mero 305, a reportagem intitulada É pirata ou não é? tratava de pirata-ria: a prática ilegal de cópia, venda ou distribuição de material sem o devido pagamento dos direitos autorais, de marca ou de proprie-dade intelectual e de indústria. “As ações do governo são muito importantes, mas sem o papel do consumidor a polícia não conse-guirá acabar com a pirataria”, es-creveu Ana Paula Feliciano.

Hoje, quase sete anos depois, a pirataria de produtos audiovi-suais está em decadência. Com o aumento do número de brasileiros com acesso à internet, filmes, mú-sicas e seriados de TV são “baixa-dos” rapidamente e a compra de CDs e DVDs piratas vem caindo gradualmente.

É bastante comum os afi-cionados fazerem o download de seriados assim que são disponibi-lizados na rede, em inglês e sem legenda, que é baixada depois, em

Expediente: Campus Jornal-laboratório da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília Editor chefe: João Bosco Lacerda Secretária de redação: Vanessa Arcoverde Editores: Dayana Hashim, Jorge Macedo e Rafaela Lima Repórteres: Ananda Borges, Isabela Bonfim, Marina Baldoni Amaral, Monique Rodrigues, Pedro Menezes e Talita Amorim Diretora de arte e foto: Ramilla Rodrigues Fotógrafos: Guilherme Alves, Monique Rodrigues e Rogerio Verçoza Diagramadores: Gabriela Alcuri, Luana Luizy e Rafaella Felix Projeto gráfico: Celina Guerra, Ivan Sasha Stemler, Lorena Soares, Rafaela Lima, Ramilla Rodrigues e Vanessa Arcoverde Professores: Solano Nascimento e Sérgio de SáJornalista: José Luiz SilvaGráfica: Palavra Comunicação Tiragem: 4 mil exemplares

Campus Darcy Ribeiro, Faculdade de Comunicação, ICC Ala Norte. Contato: 61 3107-6498/6501 CEP: 70.910.900 E-mail: [email protected]

sites brasileiros especializados no assunto. A matéria Legenda em 3, 2, 1... traz os bastidores desse fe-nômeno e coloca em foco a figura dos legenders.

O aspecto legal da prática de legenda informal de seriados e filmes ainda não está claro. Se-gundo a Associação Antipirataria de Cinema e Música (APCM), a tradução de uma obra só pode ser feita após dada a autorização do autor. Porém, segundo o artigo 184 do Código Penal Brasileiro, a

*Feminino do termo sueco ombudsman, que significa “provedor de justiça”, discute a produção do jornal a partir da perspectiva do leitor.

atividade só é considerada ilegal se visar lucro.

É crime ou não é? Por via das dúvidas, a maioria dos legenders prefere usar um codinome para manter o anonimato.

Durante a produção desta edição do Campus, fomos surpreendidos pela tragédia que emocionou todo o país no dia 27 de janeiro. Em ho-menagem aos colegas mortos em Santa Maria, Rio Grande do Sul, esta edição conta com uma tarja preta em todas as suas páginas. A redação do jornal envia seus sentimentos a todos aqueles afetados pela tragédia.

Homenagem

Campus | Brasília, 5 a 13 de fevereiro de 2013

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Pedro Menezes

Às 23h de quarta-feira, horário de Brasília, no canal norte-ame-ricano The CW, mais um epi-sódio de Arrow vai ao ar. Du-rante uma hora, cerca de 3,5 milhões de espectadores acom-panham o Arqueiro Verde, personagem de história em quadrinho da DC Comics que, desde outubro de 2012, é tam-bém de série televisiva. Passa-das em média duas horas do término do episódio, ele já está disponível para download nos principais sites de comparti-lhamento; pouco depois, está também, em inglês, a legenda CC (closed-caption, para defi-cientes auditivos), em sites es-pecializados como o Addic7ed. É aí que começa o trabalho dos legenders.

Edição: Rafaela Lima Diagramação: Luana Luizy

Legendas em 3, 2, 1...Aficionados por séries televisivas trocam o sono por tradução em equipe e satisfazem legião de fãs na internet

35 tradutores. Eles são responsá-veis por legendar, além de Arrow, 25 outras séries, como Two and a half men, Grey’s anatomy e How I met your mother. A In-SUBs, por sua vez, é uma den-tre 32 equipes coordenadas pelo Legendas.tv, que legen-dam, sem fins lucrativos, um

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Legendary

dias após exibição do episódio

é o prazo máximo para a postagem da legenda

no Legendas.tv

Organizados em equipes, cada legender fica responsável por tra-duzir e legendar um trecho espe-cífico do episódio. “É necessário, antes do inglês, saber bem portu-guês, para então poder encontrar boas soluções”, diz PenélopeC., 27 anos, mestranda em Administra-ção, tradutora e revisora da equipe InSUBs. Em séries de 40 minutos, por exemplo, há geralmente cinco tradutores; e, dependendo da popu-laridade do seriado, variam os pra-zos de entrega dos trechos ao revi-sor, que irá juntar todas essas partes.

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geralmente faz ação, assim como a CreepySubs costuma fazer terror”. Ele é um dos fundadores e admi-nistradores da equipe ComicSubs, que legenda séries como Pretty lit-tle liars e The Carrie diaries. “Um amigo soube de uma série [Jane by

tudante de Tradução na Universida-de Federal de Uberlândia (UFU), que começou enquanto estava na oi-tava série. “Depois decidi fazer Tra-dução principalmente porque gos-tava muito de legendar. E por saber fazer legendas já dei inclusive mini-cursos na UFU”, conta.

Aleudi aprendeu a língua assis-tindo e legendando filmes e seriados, e, hoje, não é mais legender. “Quando co-mecei, queria melhorar meu inglês, mas eu mesmo parei de usar legendas há al-guns anos”, conta ele, que acompanha, no momento, 56 séries. Organiza-se em meio a tantas pelo site Orangotag, que avisa o usuário quando há episó-dios novos. O portal também condeco-ra com medalhas e denominações aque-les que assistem a muitos seriados – no caso de Aleudi, ele, além de premiadís-simo, ganha a inscrição “provavelmen-te não dorme”. Nesse aspecto ainda não deixou de ser legender.

total de 215 séries. Há, ainda, mais 38 seriados traduzidos por 14 pessoas que não integram ne-nhum grupo. A divisão de novas séries entre as equipes é feita pelos administradores do Legendas.tv, que, depois de receberem pedi-dos de revisores interessados em assumi-las, analisam a qualidade das legendas feitas até então pelas equipes, assim como a velocidade com que foram postadas.

Segundo Junio_Tk2, 17 anos, estudante, tradutor em seis equipes, além dos critérios de qua-lidade e rapidez, a tradição do grupo também conta: “A inSanos

Motivações

Algumas pessoas começam a le-gendar – voluntariando-se por meio dos sites das equipes e realizando um teste de tradução – para que fãs como Lore-na possam acompanhar suas séries favo-ritas; outros, como Junio_TK2, “apenas por hobby”; o objetivo mais comum ao se tornar um legender, porém, é a possibilidade de praticar o in-glês. É o caso de Aleudi, 20 anos, es-

Segundo a Associação Anti-pirataria de Cinema e Música (APCM), baseada no artigo 29 da Lei de Direitos Autorais, a tradução de uma obra depen-de primeiramente da autoriza-ção do autor. Porém, segundo o artigo 184 do Código Penal Brasileiro, só cabe punição se a atividade visa lucro. Sites de le-genda já foram fechados e em seguida reabertos, sem defini-ção sobre a legalidade da práti-ca dos legenders.

“No caso de Arrow, uma das nossas maiores séries no momento, o limite de envio ao revisor é 7h da manhã”, conta. Por conta do alto nú-mero de downloads – a legenda de um episódio é baixada, em média, 40 mil vezes no site Legendas.tv, o prin-cipal portal brasileiro de legendas de filmes e seriados – a série recebe a de-signação ASAP, “as soon as possible”, algo que soaria em português como “o mais rápido possível”.

Quando recebe as partes da legenda, Billy, 30 anos, engenhei-ro elétrico e revisor da série, tem como tarefa “assistir ao episódio, olhar a tradução linha a linha e fazer as correções necessárias; de-pois, se der tempo, assisto mais uma vez”. Até o fim da tarde, ele deve postar a legenda nos sites da equipe e do Legendas.tv para que fique disponível de forma gratui-ta – menos de 24 horas depois da exibição do episódio na emissora norte-americana.

Bastidores

Billy e PenélopeC., assim como outros legenders, preferem ser identificados pelos seus nicknames, apelidos utilizados na internet com os quais assinam os créditos das le-gendas. Nos sites das equipes, por receio de ações antipirataria, não há nem mesmo os contatos in-dividuais de cada membro. Para alguém de fora falar com algum deles, é necessário enviar mensa-gem ao email compartilhado por toda a equipe, também o princi-pal meio de comunicação inter-na: “O revisor, antes de o episó-dio sair, faz a chamada por email e os tradutores se manifestam para traduzi-lo ou não. Depois disso, a conversa se passa só entre eles”, ressalta Billy.

Ele é um dos 16 revisores da InSUBs, que conta também com

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design] meses antes de estrear, e, como não havia certeza se algum grupo a pegaria, decidimos arriscar e fazer nós mesmos.”

Para ele, a maior qualida-de que uma legenda feita por fãs pode ter é a “fidelidade à série”. “Se há várias temporadas e os personagens utilizam uma expressão recorrente, é preciso ter atenção para traduzi-la sempre de um mesmo jeito”, exemplifica. Ao legendar Game of thrones para a equipe Dark-Side – as legendas do seriado têm a segunda maior média de downloads do Legendas.tv: 90 mil por episódio, atrás de The walking dead, com 100 mil –, Junio_Tk2 e os demais tradu-tores recorrem aos livros que a origi-naram para conferir nomes de cida-des e personagens.

Para Lorena Dantas Macedo, 27 anos, estudante de Direito e “super vi-ciada” em séries, o diferencial do tra-balho feito pelos legenders é o respeito para com aqueles que acompanham os seriados: “Eles se esforçam muito só pra saciar a vontade dos fãs. Têm uma vida à parte, trabalham, estu-dam, e mesmo assim correm pra dis-ponibilizar as legendas”. Ela assiste a mais de dez seriados, e sabe o dia da exibição de cada um deles. “Já passei madrugada esperando legenda de The Vampire diaries e Hart of dixie”, conta, “às vezes sai com um ou outro erri-nho, mas não tenho do que reclamar. O que eu faria sem eles?”.

Pedro Menezes

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Ananda PimentelIsabela Bonfim

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Saúde

Quem acha que viver na capital é sinônimo de segurança ali-mentar, com produtos fisca-lizados, bem conservados e próprios para consumo, pode se surpreender ao saber que o comércio de carne clandesti-na no Distrito Federal é uma preocupação para os órgãos de fiscalização. As apreensões de carne clandestina dobraram entre 2010 e 2011, quando os fiscais retiraram de circulação mais de 67 toneladas de carne bovina, suína e caprina. Em 2012, o Serviço de Inspeção Federal (SIF), sistema de con-trole do Ministério da Agricul-tura, Pecuária e Abastecimen-to, estimou que o comércio clandestino de carne no DF alcança a casa dos 50%.

O que torna a carne clandes-tina é a ausência de selo SIF, que garante certificação de origem, o que significa dizer que os proce-dimentos de vacinação, abate e transporte seguiram as normas do ministério. Em âmbito local, o selo da Diretoria de Inspeção de Origem Vegetal e Animal (Dipo-va), subordinada à Secretaria de Agricultura e Desenvolvimento Rural, normaliza a produção in-terna de carne do DF. É impor-tante entender que esses selos tra-tam das condições de tratamento da carne anteriores à comercia-lização e não têm ligação com a conservação em supermercados, açougues e feiras, regulamentada pela Agência Nacional de Vigi-lância Sanitária (Anvisa).

Isso pode ser um risco ainda maior para quem consome o pro-duto clandestino. De acordo com

pesquisa feita pela Embrapa em 2006 sobre o perfil do consumidor de carne bovina no DF, o brasilien-se não costuma verificar os selos de fiscalização na hora da compra e se preocupa mais com outros aspec-tos, como cheiro e cor. Se a car-ne não está aparentemente estragada e fora do prazo de validade, ela é ideal para con-sumo. Aí mora o perigo, por-que carne clandestina não é sinônimo de carne estragada. A carne pode estar aparente-mente sadia, mas não ter re-cebido as devidas vacinas que evitam doenças como raiva, tuberculose e cisticercose.

O caso se torna ainda mais grave quando se trata da carne de ovinos e caprinos. Em 2012, a Secretaria de Agricultura calculou que, das 50 toneladas produzidas no DF, 33 eram clandestinas, cer-

ca de 66%. José Mota de Oliveira, comerciante de carne caprina na Feira da Ceilândia, assume que a carne que vende não tem selo. De acordo com Oliveira, dificilmente essa carne é encontrada em frigorí-ficos registrados. “Não há para ven-der no frigorífico porque a procura é pequena”, comenta. Ele não está enganado: das 380 toneladas de carne caprina consumidas no DF por ano, apenas 13% são produzi-das e abatidas aqui. A maior parte vem do Uruguai ou do Rio Grande do Sul com selo de fiscalização na-cional, o que dificulta a inserção do produtor local no mercado.

Um dos motivos do comércio clandestino é o preço. Os quatro frigoríficos autorizados do DF pa-gam R$ 12 por quilo de carne aba-tida, segundo a Secretaria de Agri-cultura. Frigoríficos clandestinos pagam cerca de R$ 16. De acordo

Mesmo com o selo de fiscalização, a carne pode causar riscos à saúde se for manipulada sem higiene e conservada em ambiente impróprio, como em algumas bancas da Feira da Ceilândia

Ministério da Agricultura estima que metade da carne bovina consumida no Distrito Federal tem procedência ilegal. Selo de fiscalização diminui riscos à saúde

Monique Rodrigues

com pesquisa da Universidade Fe-deral do Mato Grosso (UFMT), a carne clandestina chega ao con-sumidor entre 13% e 15% mais barata que a carne fiscalizada. Esse atrativo financeiro pode levar o consumidor aos açougues, feiras e mercados não registrados, onde a maior parte da carne clandestina é comercializada.

Perigo mora ao lado

A pesquisa da Embrapa mos-tra também que o consumidor no DF prefere comprar carne em gran-des redes de açougues e supermer-cados. O comportamento é uma forma de se proteger da falta de hi-giene e a má conservação que o pro-duto pode enfrentar em pequenos estabelecimentos e feiras. “Compro na feira para fazer um agrado à mi-nha sogra, mas lá em casa essa car-

Perigos da carne clandestina

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ne não entra, tenho receio”, explica a dona de casa Maria do Socorro. Outro engano, já que o risco da car-ne clandestina não está na conserva-ção, mas na origem.

Dênis Lima, comerciante na Feira da Ceilândia, trabalha com carne que respeita as normas de fiscalização. “A carne vendida na feira vem do mesmo frigorífico que a do supermercado, o que a Vigilância reclama é que a carne não deveria ficar exposta”, conta. Aleandro Monteiro, 61, é cliente assíduo da feira: “Sempre compro aqui porque o preço é melhor e a carne não está congelada como no supermercado”. Na banca de Dênis, a carne abatida é guardada em câmara fria; durante o dia, ele expõe os pedaços já cortados, que costumam ser vendidos em me-nos de uma hora.

A maioria da carne clan-destina comercializada em Brasília já vem abatida do Mato Grosso e de Goiás. Em geral, a carne é transporta-da em carros pequenos de passeio, para burlar a fisca-lização nas estradas. Embora os estabelecimentos não re-gistrados sejam os maiores receptores do produto clan-destino, a melhor forma de se resguardar ainda é confe-rindo o selo de fiscalização. De acordo com Allex Moraes, gerente de fiscalização da Anvi-sa, se a atuação em feiras fosse mais efetiva, a maioria das ban-cas não ficariam abertas, porque existem muitos problemas de conservação, mas alerta: “Para cada atuação em feira, fazemos dez em supermercados, e sempre encontramos alguma coisa, espe-cialmente problemas com carne clandestina”.

Questão de saúde

No Brasil, todo ano são regis-trados diversos surtos de doenças transmitidas por alimentos. De acor-do com o Ministério da Saúde, em 2011 foram registrados mais de 300 casos, nos quais as carnes bovina, su-ína e de frango estão entre os quatro alimentos mais envolvidos, perden-do apenas para água, leite e deriva-dos e sobremesas. Só no DF, segun-do dados da Secretaria de Saúde, entre 2011 e 2012, mais de 650 pes-soas deram entrada em hospitais da região apresentando alguma doença transmitida por alimentos (DTA).

O caso mais emblemático no DF ocorreu em outubro de 2011, quando pelo menos 25 pessoas fo-ram internadas com náusea, vômito, diarreia, dores no corpo e febre. To-das sentiram esses sintomas depois de comer no Churrasquinho do Barbosinha, estabelecimento locali-zado no Gama. A perícia foi aciona-da, mas, segundo o proprietário do estabelecimento, nenhuma análise foi conclusiva no que diz respeito à qualidade da carne. “O que acon-teceu foi uma fatalidade, por isso não fui multado, mas tive que fazer algumas reformas”, afirma Barbosi-nha. Ele conta que compra carne há 10 anos no Açougue Santana, que é credenciado. Os sintomas são ca-racterísticos de uma intoxicação ali-mentar causada por bactéria, como a salmonela, que contamina alimentos manipulados sem higiene.

A qualidade da carne de-pende de vários fatores, que envolvem práticas profissionais desde o nascimento do animal até a hora do abate. Quando a carne é produzida em locais onde não há fiscalização, não há garantia de que regras de segu-rança e higiene são obedecidas.

Edição: Jorge Macedo Diagramação: Gabriela Alcuri

De acordo com o assessor especial da Subsecreta-ria da Receita, Hormindo Almeida Jr., em 2012 o Distri-to Federal perdeu quase R$ 5 milhões (R$ 4.973.550,88) em arrecadação de impostos devido ao comércio de carne clandestina, porque não há tributação sobre a carne que não é fiscalizada. Esse tipo de imposto pode ser aplicado em qualquer área base do governo, como educação, saúde ou transporte. Com esse valor, seria possível comprar 23 novos leitos de hospital, construir 209 moradias populares, levar saneamento básico a 1.686 domicílios ou manter 1.720 alunos por um ano na educação básica. Os números são estimados pela Federação das Indústrias de São Paulo (Fiesp) para gas-tos do governo federal em todo o país.

Saiba mais !

entre elas tuberculose, botulismo e toxoplasmose, que podem ser transmitidas aos humanos por meio da carne. Os animais tam-bém devem tomar remédio con-tra vermes para que não desen-volvam para*sitas como a tênia, cujos ovos, ao serem ingeridos, entram na corrente sanguínea e se alojam no cérebro, olhos, co-luna ou músculo, desenvolvendo grave doença chamada cisticerco-se, que pode levar à morte.

O transporte tem de ser fei-to com atenção para que o ani-mal não se machuque nem se es-tresse. Feridas na pele do animal podem causar infecções e con-taminar a carne com bactérias como a salmonela, que provoca diarreia, dor abdominal, febre

e perda de líquido, que podem evoluir para desidratação grave. Quando o animal se irrita, as re-servas de hormônios diminuem, deixando a carne escura, dura e ressecada. Há também aumento da acidez, que reduz a vida útil do alimento. Na hora do abate, quando o animal sente medo, li-bera hormônios que tornam sua carne pálida e mole.

Para Godoy, um dos maiores riscos da clandestiniwdade é a for-ma de abate. O animal pode estar em perfeito estado de saúde, mas se for abatido em lugar impró-prio, sem higiene e com técnicas de sangramento erradas, as chan-ces de a carne ficar contaminada e transmitir doenças para o consu-midor são grandes.

“Na clandestinidade, você não controla nada: vacinação, tratamento, doenças parasitárias, vermes. O animal está sem garantia de saúde.”

André Godoy, gerente de Alimentos da Vigilância Sanitária

Em geral define-se surto de doença transmitida por ali-mentos, incluída a água, como um incidente no qual duas ou mais pessoas apresentam uma doença similar resultante da ingestão de um mesmo alimento contaminado.

Estabelecimentos produtores de car-nes devidamente registrados preci-sam seguir o Regulamento da Inspeção Industrial e Sanitária de Produtos de Origem Animal – RIISPOA, que dis-põe sobre o funcionamento dos esta-belecimentos, as condições sanitárias, o abate, as formas de embalagem, o transporte, entre outros.

“Na clandestinidade, você não controla nada: vacinação, tratamento, doenças parasitárias, vermes. O animal está sem ga-rantia de saúde. E animal doente com certeza tem um risco muito maior de levar uma contamina-ção para o consumidor”, afirma o gerente de alimentos da Vigilân-cia Sanitária, André Godoy. Se-gundo ele, as possibilidades vão se restringindo quando se tem um tratamento adequado tanto para o animal quanto para a ma-téria prima, que é a carne.

Para que não haja problemas no alimento que chegará ao con-sumidor, os animais de abate ne-cessitam ser frequentemente va-cinados contra diversas doenças,

Arte: Vanessa A

rcoverde

Fonte: Ministério da Saúde

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O mundo em azul e rosaInfância

Bruno Pinheiro, 10 anos, não costuma explorar todas as prateleiras da loja de brin-quedos na hora de escolher o preferido. “Eu já fui do outro lado uma vez”, diz, se referindo à metade da loja reservada para bonecas e cas-telos. Explica que frequenta o lado dos produtos azuis porque “tem mais brinque-dos com criatividade e esper-teza”. Seus escolhidos são os blocos de montar.Usando batom e roupas cor-

de-rosa, Maria Eduarda, 3 anos, visitava a segunda loja do dia em busca de um guarda-chuva com temática feminina. Não aceitou se proteger da água sob cores “de menino”. A mãe, Ana Leão, diz que a filha “já sabe quais são os brinquedos de meninos e me-ninas”. Vaidosa, a garota é fã da Cinderela.

Em Brasília e no resto do país é assim. As lojas de brinque-do delimitam espaços, refletindo estereótipos do que seria espera-do agradar cada gênero. O rosa e o azul demarcam a fronteira a ser explorada. No lado “dos me-ninos”, azul, laranja, amarelo e pitadas de verde e preto mostram que naquele território objetos de consumo giram em torno de ve-locidade, explosões, lutas e agili-dade.

Cruzando a fronteira “neu-tra” dos brinquedos para bebês, com predominância de amarelos, verdes e vermelhos, um novo uni-

verso vem à tona. Rosa e lilás, de preferência acompanhados por altas doses de purpurina (ou glitter, como chamam as meninas), dão o tom de fanta-sia e glamour que envolve bo-necas, castelos, princesas e, por que não, panelinhas, fogões e pequenos aspiradores de pó.

O corredor da “primeira infância”, para crianças de zero a 3 anos, ainda não foi dividido por gêneros. Lá são permitidos amarelo, verde, vermelho, roxo e laranja. De forma geral, os brinquedos são unissex e isso incomoda alguns pais e mães. “Uma mãe deixou de levar um carrinho colorido para o filho porque as rodas eram cor-de-rosa. Sempre querem alguma coisa com ‘menos rosa’”, diz o vendedor Diego Domingos.

Segundo a mestre em Edu-cação Márcia Acioli, assessora política do Instituto de Estu-dos Socieconômicos (Inesc), a disposição dos brinquedos na loja revela um mundo dicotômico, dividido entre masculino e feminino. “Esta divisão é arbitrária e cruel. Nada tem a ver com a natu-reza humana do feminino ou masculino e nem com habilidades ou competên-cias”, diz a arte-educadora.

Este padrão vem sendo questionado no Brasil e no mundo. Mães e pais, como a servidora pública Fabiana Reis, acreditam que as crianças po-dem experimentar um leque mais amplo de opções para brincadeiras do que o estabele-cido pela indústria. “Tento criar meu filho para não separar tan-to as coisas. O brinquedo não vai influenciar a sexualidade no futuro.” Pedro Vaz, 8 anos, concorda com a mãe. Apesar de preferir brinquedos de montar, acha que menino também pode brincar de boneca.

No Reino Unido, desde 2011 lojas tentam embaralhar os limites entre brinquedos. A pri-meira delas foi a Hamleys, rede que tem filial em Londres consi-derada a maior do ramo no mun-do. A loja eliminou as placas que indicavam corredores de meni-nos e meninas. Em julho do ano passado foi a vez de a tradicional Harrods seguir o exemplo e sepa-rar objetos por tipos, em vez de cores. Mas segundo o jornal The Guardian, apesar das iniciativas, as divisões de gênero continuam presentes, já que a indústria ain-da produz de acordo com estes parâmetros.

No Brasil, a Associação Brasileira de Fabricantes de Brinquedos (Abrinq) não possui dados sobre vendas por gênero e não discute o assunto. Alguns fa-

bricantes estrangeiros começam a dar pequenos passos em dire-ção à diversificação da oferta. No Natal passado, chegou ao merca-do norte-americano uma linha de blocos de montar da boneca Barbie. Segundo a fabricante, uma tentativa de aproximar pais das brincadeiras das filhas.

O Lego, mais famoso blo-co de encaixe, oferece a coleção Friends, que em rosa e lilás busca conquistar as consumidoras. Mas uma rápida busca na internet por antigas propagandas da marca revela que o Lego nem sempre foi dividido entre azul e rosa. Anúncios da década de 1980 mostram meninos e meninas, em roupas confortáveis e coloridas, exibindo suas criações com as peças: casas, aviões, carrinhos, moinhos. As embalagens traziam

Marina Baldoni Amaral

“Rosa claro com glitter” é a cor preferida de Alice Silva, mas a menina também brinca com carrinho e bola

Rogerio Verçoza

Cada um no seu devido lugar: cores delimitam os espaços nas prateleiras das lojas de brinquedo. Divisão reforça padrões tradicionais de gênero da sociedade

crianças sem distinguir o público alvo do produto. A brincadeira era para todos.

O que dizem as bonecas

“Eu odeio matemática” era uma das frases repetidas pela pri-meira Barbie falante, lançada em 1968. Na época, protestos de fe-ministas tiraram das prateleiras esta versão “loira burra” da boneca que, desde 1959, é modelo para gerações de meninas. Hoje, Barbie ainda está no topo das vendas e na primeira fileira das lojas. Segundo a Abrinq, quatro em cada dez brinquedos vendidos no Brasil são bonecas, o que revela a pouca variedade ofere-cida no setor.

Com a linha Eu posso ser..., a Barbie agora permite que crian-ças escolham a profissão dos

4,5mil diferentes tipos de

brinquedos foram oferecidos no mercado brasileiro em

2012

Campus | Brasília, 5 a 13 de fevereiro de 2013

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são muito caretas. Em São Pau-lo e no Rio aceitam melhor.” Os bonecos ficaram encalhados e não são mais produzidos.

ServiçoAbracabrinque CLS 106, bloco B, loja 1B Asa Sul3242-4824

Carlota Ophir CLS 116, bloco B, loja 21 Asa Sul3245-8300

Didática Brinquedos Pedagógicos CNC 5, lote 2, loja 1Taguatinga Norte3354-5759

6 e 7

sonhos: bailarina, professora, pediatra, pop star, atriz de ci-nema, veterinária, entre outras. Um leque de opções que, se-gundo a coordenadora de Edu-cação e Cultura da Secretaria de Políticas para Mulheres, Hilde-te Pereira de Melo, reflete pa-péis tradicionalmente ocupados pelas mulheres na sociedade. “Os brinquedos femininos são aqueles que consolidam nas me-ninas o papel do cuidado. Uma boneca é uma pessoa. Meninos ganham bola, avião, arma. São brinquedos que podem des-truir, desmontar e quebrar.”

Para ela, os brinquedos são “o último reduto do padrão de uma sociedade misógina, e têm uma marca pesada de consolidar os papéis: o que é ser mulher e o que é ser homem na sociedade”.

Apesar de carregar valores tradicionais, os brinquedos pre-cisam, mesmo que lentamente, acompanhar as mudanças que

direitos da infância, diz que es-tes brinquedos ficaram datados na visão de mães contemporâ-neas, mas “são importantes pois reproduzem o mundo adulto”. Ela ressalta que utensílios do-mésticos e bonecas devem ser oferecidos também aos meni-nos, porque quando crescerem poderão dividir cuidados com a casa e os filhos.

Menino também pode

O desejo dos filhos por brinquedos que não condizem com estereótipos de gênero é um medo que acompanha pais, principalmente em relação aos meninos. Meninas conseguem transitar com mais facilidade entre os dois universos. Ven-dedores dizem que é comum garotas comprarem brinque-dos de encaixar peças e jogos de aventura, que ficam no cor-redor masculino. Já meninos

Edição: Dayana Hashim Diagramação: Rafaella Felix

Blocos de montar oferecem linhas diferentes para garotos e garotas

Rogerio Verçoza

Misoginia, do grego misos (ódio) e gyné (mulher), é o ódio, desprezo ou aversão ao sexo feminino. É diferente do machismo, a crença na inferio-ridade da mulher.

ocorrem na sociedade. Exemplo disso é a Barbie presidente. Ves-tida com tailleur rosa e branco, é uma das opções da coleção Eu posso ser.... Mas, segundo ven-dedores, ficou longe de ser a mais pedida no Natal de 2012. As meninas preferiram a veteri-nária e a atriz de cinema.

No lado da loja “para me-ninas”, panelinhas, máquinas de lavar louça e fogões ficam ao lado dos castelos, sugerin-do que o mundo do fantásti-co engloba as tarefas do lar. A psicóloga Laís Fontenelle, do Instituto Alana, referência em

comprando brinquedos “de me-nina” é mais raro, mas a curio-sidade por parte deles existe.

Os irmãos Alice, de 4 anos, e Heitor Silva, de um ano e meio, conseguem transitar pela barreira dos gêneros. A ga-rota se identifica com o mundo das bonecas e princesas, mas também brinca com carrinhos e bola. O irmão já sabe dizer que adora Barbies, revela a mãe Maria Silva, que não vê proble-ma nas brincadeiras escolhidas pelas crianças.

Para os vendedores Diego Domingos e Roseane de Sousa, o comportamento da família é exceção. Nenhum deles se lem-bra de um pai ou mãe comprar uma boneca para o filho, apesar de atenderem meninos que pe-dem princesas e Barbies. O mais perto que esses garotos chegam de ter seus desejos atendidos é quando a mãe compra um bo-neco masculino de uma linha

feita para meninas. Os prínci-pes costumam ser escolhidos. “Normalmente as mães fazem isso escondido do pai da crian-ça. Dizem que pelo menos as-sim o filho não vai brincar com uma boneca”, revela Domingos.

Para Márcia Acioli, educa-dora e assessora do Inesc, esse medo de que a criança trans-grida a fronteira do gênero acontece porque os pais fazem uma relação entre o brincar e a sexualidade da criança. “Quan-do os adultos se dão conta de que a brincadeira é um importante instrumento de socialização e que os brin-quedos estão separados por gênero, temem que o desenvolvimento da sexu-alidade siga a mesma trilha dos interesses que têm so-bre o mundo do outro. Isso é uma tremenda bobagem porque sexo e gênero não são a mesma coisa.”

Ainda existe um lugar onde a brincadeira não é dividida por gê-nero: na seção de brinquedos pe-dagógicos das papelarias. O item está nas listas de material escolar de muitas crianças. Normalmente feitos de madeira, estimulam cria-tividade, raciocínio e coordenação motora. Nas prateleiras, são sepa-rados por idade, não por cores.

Em Brasília, além das pape-larias, poucas lojas se especializam no setor, uma delas é a Abraca-brinque. Com maior oferta de produtos, boa parte dos brinque-dos segue a lógica da indústria: boneca para ela, carrinho para ele. Apesar disso, oferece opções que fogem dos estereótipos, como fantoches, jogos de raciocínio e brinquedos clássicos como o tele-fone de latinhas.

Outra loja é a Carlota Ophir, que leva o nome da proprietária. Preocupada com as necessidades de mães e crianças, Carlota estu-dou design de produtos em Israel. Ela produz e vende brinquedos “práticos e pedagógicos, com fun-cionalidade”. Tem dois filhos e 35 sobrinhos. A experiência se reflete nas criações: mochilas para trans-portar material de desenho, estojo para guardar carrinhos, bonecas de pano para colorir. A loja vende brinquedos nacionais e importa-dos, sendo 40% produção própria.

A questão de gênero é uma das preocupações de Carlota. “No exterior, essa distinção é menor”, diz. A designer fazia coleções com bonecos e objetos em cores neu-tras. Mas o público não aceitou a inovação. “Em Brasília as pessoas

!Um pouco além da fronteira

Rogerio Verçoza

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de um Quixotes

PerfilPágina 8

Monique Rodrigues

Campus | Brasília, 5 a 13 de fevereiro de 2013

Edição: Rafaela Lima Diagramação: Luana Luizy

Com câmera na mão, tela pendurada no peito, cartola e vários cartões de visita no bolso, o Photoman vai às ruas

– E aí, como funciona isso?– É assim ó: plaft (o clique é

dado inesperadamente). Está vendo a cara de assustado que você fez?! É assim. Agora, se você quiser fazer uma cara mais séria, dar um sorrisinho ou posar pra foto, fica melhor.

É muitas vezes com clique es-pontâneo que o Photoman aparece, quer dizer, que o “homem-foto” surge. O personagem caminha pelas noites de Brasília em busca de inte-ração com o público. Carrega uma câmera digital e um monitor de LCD para que, ao fazer as fotos, as pessoas possam interagir de imediato. Ao se despedir, entrega um cartão com o endereço do blog vinculado ao Flickr, onde já postou mais de 15 mil fotos que podem ser baixadas gratuitamen-te. “O Photoman surgiu na minha ca-beça como personagem, um homem usando cartola, magro, até mais alto que eu, e tomou vida”, conta Ricardo Joffily, o criador.

Ricardo é carioca, mas escolheu Brasília para viver. Aos 52 anos, cons-trói um universo próprio. Mora em sítio próximo a Sobradinho, onde sus-tenta uma oficina cheia de bugigangas e objetos que fazem nascer as mais di-versas criações: desde o aparato que dá vida ao Photoman a lentes infláveis e assentos de bicicleta dinâmicos.

O homem-foto surgiu há cerca de oito anos a partir do desejo de Ri-cardo de ajudar o amigo Seu Marinho, figura conhecido nas noites brasilien-ses. O senhor de 77 anos de idade ganha a vida há 23 com impressões instantâneas das fotos que tira em

bares e restaurantes. No começo, usa-va câmera polaroide, mas há pouco tempo trabalha com uma impressora portátil. Para solucionar o problema do amigo, em relação ao alto preço dos materiais, que “roubam o lucro do fotógrafo”, Ricardo desenvolveu o protótipo do display ligado à câme-ra. Seu Marinho lembra do receio de usar a invenção. “Sabia que não ia dar certo porque meu cliente quer a foto na hora. Eu não quis e Ricardo falou: Vou fazer!”.

Teve início então a trajetória do inventor e artista para colocar a cria-ção em prática, aprimorá-la, e des-cobrir “aonde isso iria dar” – ques-tionamento que diz não ter resposta até hoje. Ricardo começou com uma câmera alimentada por memória em

mini CD, o que possibilitava a venda do material e a obtenção de algum lu-cro. “Fazia uma série de cinco fotos, tostava o CD, vendia para a pessoa e recebia entre R$ 15 e R$ 20.” Fez o teste pela primeira vez quando estava de férias no Rio de Janeiro, em uma caminhada pela Avenida Atlântica. Fo-ram sete CDs vendidos, número que o incentivou a continuar com o trabalho.

Apesar do sucesso, o equipa-mento tinha vários problemas. Às ve-zes, os CDs não gravavam os arquivos de imagem, que eram perdidos para sempre e o cliente ficava desapontado. Foi quando percebeu que a criação es-tava para além do lucro obtido e que precisava investir no equipamento e na performance, mesmo sem receber dinheiro em troca. Ricardo, possibilita-

do por um emprego que o sustenta-va – era servidor público na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (An-visa) –, viu no Photoman uma pai-xão a que se dedicar. O artista, com formação superior em Direito, mer-gulhou em estudos e pesquisas sobre fotografia, especialmente de retratos, que o fizeram aprimorar a técnica. E isso lhe rendeu grande mudança na carreira profissional.

Surgiu uma vaga para fotógra-fo na Defensoria Pública da União (DPU) e ele se candidatou. Logo, por ter experiência e também equipamen-tos necessários, foi requisitado para o órgão. “Além de ser uma coisa que ainda pode me abrir muitas portas, o Photoman me deu uma profissão”, relata. Com isso, conquistou a carteiri-nha profissional da Federação Nacio-nal de Jornalistas (Fenaj) que lhe dá o título de repórter fotográfico.

O verdadeiro objetivo profissio-nal de Ricardo é se consolidar como inventor. Na oficina que tem em casa, passa horas e horas trabalhando nas criações. A esposa, Rosiene, com quem tem três filhos, conta que ali é um refúgio, aonde ele vai para descan-sar. O descreve como reservado, mas diz que tem um lado artista pulsante. “É muito criativo e tem uma qualida-de que eu acho admirável: a de tornar sonhos em realidade, de materializar todas as ideias.”

Para Rosiene, Ricardo sempre foi mais artista que inventor. Em casa, conta a esposa, é muito brincalhão e assume também outros personagens, como o Tio Juan. “É um cara que só fala espanhol. Às vezes, acorda perso-

nagem, brinca com os meninos, me paquera e passa horas assim.” Ao se referir ao Photoman, o criador sempre usa terceira pessoa, como se fosse al-guém de carne e osso, que “tem vida própria, e é, inclusive, muito mais sim-pático que eu”.

Apesar de se encantar pelas outras criações, o Photoman é a ver-dadeira paixão de Ricardo, que afir-ma ser o projeto mais bonito que já criou profissionalmente. “É um acontecimento dentro da vida de in-ventor, e, como tem um lado huma-no muito forte, acabou puxando uma porção de coisas.”

Em 2010, o cineasta José Pedro Gollo fez o minidocumentário No meu peito há um monitor em cujas veias corre cris-tal líquido sobre o Photoman. Não se conheciam, mas Gollo chegou ao per-sonagem por meio de indicação feita por funcionários do bar Beirute. Na verdade, procurava por Seu Marinho, mas passaram a informação errada e foi “daquele tipo de erro que acaba virando acerto”.

O cineasta se encantou pelo Photoman, ficou admirado com a reação das pessoas, que respondem, entram na brincadeira, posam para as fotos e acham aquilo incrível. “O Ri-cardo é um Dom Quixote. Saiu e fez. Inventou o personagem e descobriu como fazer. É um herói por isso.”

Agora, imerso na oficina que tem em casa, Ricardo faz testes para usar iPad como tela. Dessa maneira, as pessoas terão mais liberdade para inte-ragir com o Photoman, excluir fotos e ver detalhes que lhes interessem. Isso, exalta o inventor, “é demais!”.

Ricardo Joffily incorpora Photoman, personagem das noites de Brasília

Rogerio Verçoza