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BABEL POÉTICA Nº 2 | abril/maio 2011 LUGARES ONDE SE PASSA A VIDA R$ 0,00 - VENDA PROIBIDA

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O tema desta edição é Local, com o registro que os poetas brasileiros fazem dos lugares onde nasceram, moram, transitam.

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BAB

EL PO

ÉTIC

A N

º 2 | abril/maio 2011

LUGARES ONDE SE PASSA A VIDAR$ 0,00 - VENDA PROIBIDA

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BABEL PoéticaAno I, n.º 2 – abril/maio de 2011Copyright © dos editores e dos autores

BABEL Poética ISSN N.º 2179-3662 é uma edição especial de BABEL – Revista de Poesia, Tradução e Crítica, ISSN N.º 1518-4005, contemplada em 1.º lugar no Edital Cultura e Pensamento 2009/2010 do Ministério da Cultura para publicação de revistas culturais.

MINISTÉRIO DA CULTURASecretaria de Políticas Culturais

ASSOCIAÇÃO DOS AMIGOS DA CASA DE RUI BARBOSAJoão Maurício de Araújo Pinho | Presidente

REDE DE REVISTASPROGRAMA CULTURA E PENSAMENTOSergio Cohn e Elisa Ventura | CoordenadoresRita Ventura | ProdutoraLuana Villutis | Coordenadora de redeFilipe Gonçalves, Elisa Ramone e Lilian Diehl | Assistentes de Produção

REVISTA BABEL POÉTICA | babelpoetica.wordpress.comAdemir Demarchi | Editor | [email protected] | Santos/SPAmir Brito Cadôr | Projeto Gráfico e Edição Gráfica | [email protected] | Belo Horizonte/MGDaniela Maura | Assistente de Edição Gráfica | [email protected] | Belo Horizonte/MGPaulo de Toledo | Revisão | [email protected] | Santos/SP

CONSELHO EDITORIALAdemir Assunção (SP), Cláudio Portella (CE), Jorge Luiz Antonio (SP), José George Cândido Rolim (CE), Lúcia Rosa (SP), Makely Ka (MG), Marcelo Chagas (SP), Márcio-André (RJ), Marco Aurélio Cremasco (PR/SP), Mauro Faccioni Filho (PR/SC), Nilson Oliveira (PA), Paulo de Toledo (SP), Ricardo Corona (PR), Ronald Augusto (RS), Silvana Guimarães (MG) e Susana Scramim (PR/SC)

COLABORADORES DESTA EDIÇÃOAdalberto Muller (MS/RJ), Ademir Assunção (SP), Ademir Demarchi (PR/SP), Alexandre Brito (RS), Antonio Vicente Seraphim Pietroforte (SP), Berimba de Jesus (BA/SP), Carlito Azevedo (RJ), Carlos Felipe Moisés (SP), Cláudio Portella (CE/SP), Claudio Willer (SP), Dirceu Villa (SP/Londres), Edson Bueno de Camargo (SP), Eduardo Sterzi (RS/SP), Elisa Andrade Buzzo (SP), Enzo Potel (SC), Fabiano Calixto (PE/SP), Fabio Romeiro Gullo (SP), Fernando José Karl (SC/PR), Francisco Alvim (MG/DF), Fuzzil (SP), Joca Reiners Terron (MT/SP), João Filho (BA), Jorge Henrique Bastos (PA/SP), Juliano Garcia Pessanha (SP), Luana Vignon (SP), Lucia Bettencourt (RJ), Madô Martins (SP), Marcelo Ariel (SP), Marcelo Sahea (RJ), Marcelo Steil (SC), Márcio-André (RJ/Lisboa), Marco Aurélio Cremasco (PR/SP), Marcos Siscar (SP), Marco Vasques (RS/SC), Mardônio França (CE), Natanael Gomes de Alencar (SP), Nelson Capucho (PR), Paulo Franchetti (SP), Poeta de Meia-Tigela (CE), Régis Bonvicino (SP), Reynaldo Damazio (SP), Ricardo Pedrosa Alves (MG/PR), Sérgio Vaz (SP), Solivan Brugnara (PR), Valdemir Klamt (SC), Wilmar Silva (MG), Ylo Barroso Fraga (CE)

IMAGENSDaniel Escobar detalhe de As Cidades e o Desejo, 2009 p. 2 www.danielescobar.com.brrEliana Borges p. 7, 10 Fábio Morais do livro Fábio Catador(Dulcinéia Catadora, 2011) p. 14, 51 http://fabio-morais.blogspot.com/ Elisa Campos da série Observatório p. 20, qualquer lugar lugar nenhum p. 33, 35, 37, 39 http://www.elisacampos.net.br Tales Bedeschi xilogravuras da série Onde começa o céu p. 24. www.talesbedeschi.blogspot.com Michel Zózimo da série Filatelia de Lugares Imaginários p. 28, 47, 63 Tony de MarcoSão Paulo No Logo p. 43. http://www.flickr.com/photos/tonydemarco/

VINHETASAmir Brito Cadôr e Daniela Maura

CAPAFotografia de Eliana Borges – SP/PR - “carto+grafias[subjetivas]” 2005/2007 [Rua Tiro Naval, Santos-SP]

GESTÃO DO PROJETOCentro Camará de Pesquisa e Apoio à Infância e Adolescênciawww.projetocamara.org.brRua Caminho dos Barreiros n.º 491 – Beira MarCEP 11040-020 São Vicente –SP

AGRADECIMENTOSExpressamos nosso reconhecimento a todos os que têm colaborado para a concretização deste projeto, em especial aos autores que nos autorizaram a publicação de imagens e textos.

IMPRESSÃO E DISTRIBUIÇÃOPrograma Cultura e Pensamento/MinC

TIRAGEM10 mil exemplares - Distribuição Gratuita – Venda Proibida

CORRESPONDÊNCIAAdemir Demarchi / BABEL PoéticaRua Espírito Santo, 55, apto. 36CEP 11075-390 - Campo Grande - SANTOS – SP

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Esta publicação foi selecionada entre os projetos que se inscreveram no Programa Cultura e Pensamento – Seleção Pública e Distribuição de Revistas Culturais. Foram escolhidos quatro projetos, e desta forma contemplamos quatro revistas culturais bimestrais cujas tiragens, somadas, chegam a 240 mil exemplares.

O objetivo desta iniciativa é estimular a criação de publicações culturais permanentes, e de alcance nacional – não apenas em sua distribuição, mas também em seu conteúdo.

Ao patrocinar este projeto, a Petrobras reafirma, uma vez mais, seu profundo e sólido compromisso com as artes e a cultura em nosso país – confirmando, ao mesmo tempo, seu decisivo papel de maior patrocinadora cultural do Brasil.

Desde a sua criação, há pouco mais de meio século, a Petrobras mantém uma trajetória de crescente importância para o país. Foi decisiva no aprimoramento da nossa indústria pesada, no desenvolvimento de tecnologia de ponta para prospecção, exploração e produção de petróleo em águas ultra-profundas, no esforço para alcançar a auto-suficiência. Maior empresa brasileira e uma das líderes no setor em todo o mundo, a cada passo dado, a cada desafio superado, a Petrobras não fez mais do que reafirmar seu compromisso primordial, que é o de contribuir para o desenvolvimento do Brasil.

Patrocinar as artes e a cultura, através de um programa sólido e transparente, é parte desse compromisso.

CULTURA E PENSAMENTO é um programa nacional de estímulo à reflexão e à crítica cultural. Desde sua primeira edição em 2005, seleciona e apoia projetos de debates presenciais e publicações. O objetivo do programa é dar suporte institucional e financeiro a iniciativas que fortaleçam a esfera pública e proponham questões e alternativas para as dinâmicas culturais do país.

Em 2009, o Programa abriu a terceira edição dos editais para financiamento de debates e de periódicos impressos de alcance nacional. Os editais são abertos a propostas de intelectuais, pensadores da cultura, artistas, instituições e grupos culturais, pesquisadores, organizações da sociedade civil e outros agentes, visando à promoção do diálogo sobre temas da agenda contemporânea.

O projeto de revistas do Programa Cultura e Pensamento busca ofertar gratuitamente conteúdos de elevada qualidade a um público amplo e diversificado de leitores, através de uma rede de circulação formada por 200 pontos de distribuição em todo território nacional, entre eles instituições culturais, universidades e pontos de cultura. Ao longo dos 24 meses o projeto prevê o lançamento de 20 títulos, cada um com 6 edições bimestrais, totalizando a circulação gratuita de 1.200.000 exemplares de revistas com discussões sobre arte e cultura, oriundas de diversos estados do país. A rede abrangerá mais de 200 colaboradores editoriais de cinco regiões e 19 estados brasileiros.

A edição 2009-2010 do Edital de Revistas do PROGRAMA CULTURA E PENSAMENTO tem patrocínio da Petrobras e é realizada pela Associação dos Amigos da Casa de Rui Barbosa.

Este projeto foi contemplado pela seleção pública de revistas culturais do programa CULTURA E PENSAMENTO 2009/2010

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Lugares Onde se Passa a

Vida

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EDITORIAL

Lugares onde se passa a vida

Esta segunda edição de Babel Poética tem como tema o local. Em desdobramento ao tema da edição 1, “Poesia na Era Lula”, os poemas foram selecionados buscando-se o registro que os poetas

brasileiros fazem dos lugares onde nasceram, moram, transitam. Seguindo a proposta de mapeamento da poesia nacional, com presenças regionais, há poetas de todo lado, com os mais variados registros, que vão do urbano ao rural, da metrópole ao interior, da praia à fronteira seca, da cidade à floresta e até mesmo à pura fantasia, pois num dos poemas pode-se ir do Pátio do Colégio à Praça do Árabe de Ouro em Veneza através de uma parede lateral.

A vida urbana das grandes metrópoles brasileiras refletida nessa poesia transparece a tensão da miséria, da droga e do convívio de estranheza com o outro, às vezes tratado não a palavras, mas a pauladas – assim como o populismo getulista ecoa na Era Lula, um poeta também avisa: Portinari não morreu.

Numa metrópole como São Paulo, um morto pode passar horas na via pública. No interior, ele ainda fica dentro da casa, aberta como um templo. O interior pode ser o cachaprego, mas também pode estar ligado via satélite e ser ele mesmo uma metáfora do próprio eu poético. Se no interior o corpo se perde na imensidão dos espaços, a ponto de se sentir saudade do ronco de um motor e de um pneu opressor sobre o peito, na metrópole ele parece não encontrar sequer ar, sendo um parasita que habita uma barriga de um monstro orgânico.

A metrópole é, assim, para um, um monstro orgânico, para outro um zôo – os parasitas daquele são neste os pastores de ternos curtos, os políticos pederastas, os punks apáticos, vistos por um pipoqueiro que sabe das coisas. Nessas paisagens desses locais, em meio à desgraça de um alagamento um sofá de putas pode deslizar rio abaixo, personagens esquisitos como um Zé Pilintra

ou homens tetra-pak perambulam ou brigam, a sorte pode ser lida da mão ao tarô, bastando, para isso, a ilusão.

Mesmo a cidade planificada se transforma em mausoléu e museu. Mas brilha na face caipira. Um pequeno mugido de festa pode surgir numa história cosmológica do boi, em meio a Jão Travoltas, sempre dispostos a destrinchá-los em pedacinhos: outro poeta lembra que se está em Fodaleza. O mar de um nordestino dessa Fodaleza se encontra com o mar sulista de um catarinense. No meio, uma favela de Cubatão queima como o Inferno de Dante. Outra inesperada favela branca, de europeus pobres, se imiscui do Sul nas paisagens dos poemas, o Trianon se liga com o Capão, a canção do exílio ecoa a própria terra em que se está, que não é de ninguém.

O efêmero desses lugares é como uma sombra: até mesmo o local da foto da capa já não existe mais tal como foi registrado, pois após a visita da artista Eliana Borges a Santos, na intervenção que ela fez naquele lugar com uma espécie de agulha de acupuntura gigante, em que BABEL a acompanhou, houve uma reforma uniformizante até na cor e aquele local visto e registrado deixou de ser.

Efêmero se combina com ambíguo, enquanto se alterna de berçário para esquife: para a poesia, impregnada da negatividade que a potencializa como poesia, este país não existe e não presta ao mesmo tempo e não porque ela seja ambígua, mas porque o próprio país e sua história é que o são pois, como registra um poeta, trata-se de um país em que os portinaris não morrem, o populismo é persistente, assim como ele não decide, na passagem de 40 anos de um episódio histórico, se ele foi uma “revolução” (31 de março) ou uma “piada” (1º de abril), realizando banquetes sobre fantasmas de montes de ossos de desaparecidos.

Transitando na corda bamba entre o ambíguo e o transitório, são nesses lugares que se passa a vida.

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Nelson Capucho (PR)

[nasceu e vive em Londrina-PR; poema do livro HO.MI.NI.MA.LIS, Londrina, Atrito Art Editorial, 2002; mais em http://www.londrix.com.br/colunas.php?colunista=2]

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Juliano Garcia Pessanha (SP)

[nasceu e mora em São Paulo-SP; poema de Instabilidade perpétua, Ateliê Editorial, 2009]

CORPO-EM-GHEGADA (BORACEIA)

Para meu primo, Alberto Bonanomi

Eu morava numa catacumba branca que era um hotel de Nova Iorque. Pela janela via passarem esquifes velozes, prateados e blindados. A mulher comigo era um cubo-de-espelhos. Ao falar fabricava névoa e névoa e seu sexo era um videotape. Quando a quarta sinusite começou a martelar as minhas têmporas (acompanhada de uma secreção esverdeada), fugi até um litoral esquecido e rolei na areia de uma praia imensa. Arrastado por ondas e correntezas, boiei horas olhando as estrelas nascerem. Ao sair do mar, vigiado por um surfista pasmo, o ferrão de uma abelha inaugurou meu corpo – doravante ele tinha um lugar e uma casa.

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Berimba de Jesus (SP)

(...)

ter razão sem correr riscosentrecortando coresentrosando sonhos quentesentestando pessoasjustificando a fase da fototornando a cidadecom suas luzes e sombrasperfeita às urgências da rua

(...)

pelas ruas,olhares fundosriem à toa,me sinto contra todos.não é meu – masa grosso modo,quem tem razãose vivemos em guerras?

[nasceu e mora em São Paulo-SP; poema do livro Encarna, Annablume, 2008; mais em htttp://berimbadejesus.blogspot.com]

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Solivan Brugnara (PR)

VILA DIAS

Da inútil na insistência de florir sua flor feia e dissonante sua flor desperfumada. Sempre que vejo quintais abandonados sinto vontade de ser novamente o menino que via revoada de rainhas vestidas Com asas nupciais em dias de sol e chuva juntos que enluarava telhados engrutava porões paradificava guarda chuvas cachoeirizava torneiras e savanizava quintais abandonados. Do meu brincar sem nunca individualizar sem nomear, sem especificar todas as formigas eram formigas. Assim nada morre tudo continua, se um gafanhoto morre não importava os gafanhotos não morreram outro igual nascia e o pedaço era reposto. Meus soldados também eram renitentes morriam e renasciam como gaxumba. Só a perca era uma espécie de morrer e o achar ressurreição. Outros quintais abandonados Em outros lugares são só quintais abandonados Quintais oníricos São os quintais de Quedas Quintais com guaxuma e picão que reencarnam.

É uma favela paranaense favela branca, de europeus pobres com um pouco do marrom terra dos caboclos. Lá e em todo o oeste e sudoeste do Paraná a cultura gaúcha encontrou-se com a do caipira. E quando culturas se encontram espera-se choque, divisão ou amálgama. Nas não houve embate nem o gaúcho e o caboclo mesclaram-se culturalmente somente desenvolveram uma coexistência única O paranaense singularmente adotou como sua duas culturas que continuam distintas e puras dentro dele em uma dualidade tão natural que nem é percebida. Nos velórios da Vila Dias o caixão fica dentro das casas sala aberta como templo. Reverenciado pela curiosidade o morto como um santo no oratório decorado com coroas de alumínio cujas flores cheiram a tintas esmaltadas. Conversas, chimarrão, rezas e choro fermentam num bolo sonoro salgado com suor. Percebe-se em alguns um certo sentimento de triunfo festivo os vivos sentem-se vitoriosos perante a morte. No bar, música embriagada e a vizinha assiste à novela porque na Vila Dias a morte é cotidiana e a morte sem os dramas das mortes dos semideuses da classe media a morte é comum, doméstica é parte da vida não causa traumas. Gosto de artemistificar a morte Compará-la a quintais abandonados. Porque vejo na briga de galo entre a guaxuma e o picão renitência do sempre renascer.

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SOBRE QUEDAS [DO IGUAÇU] E DIGRESSÕES

Os Polacos ao chegar fatiaram araucárias construíram com este lenho puro imaculado suas casas. Católicos martelavam com vigor porque sabiam que neste lenho puro imaculado não tinha as mãos de Jesus. A araucária não tinha o pecado do cedro. Neste tempo as ruas de Quedas mudavam de plumagens ao ano no verão áspero pó vermelho no inverno uma nupcial neblina. Mas dos eslavos e capivaras e pinheirais da comunidade mítica desta primeira dentição de madeira restam apenas algumas casas apodrecidas. Hoje as ruas são práticas e cinzas e prédios matemáticos feitos de cimento e cálculos. porém em suas calçadas de hexágonos sem mel aparecem índios vendendo balaios sua solidão lembra que esta cidade quando vista de um alto ainda parece uma destas cidades perdidas na mata. Não gosto do sabor insosso das linhas retas. Artificialidades, não gosto de artificialidades. Gosto de Gaudí que fez o frio concreto cometer excessos cometer luxúrias. Já a voluptuosidade de Niemeyer é uma voluptuosidade seca, estilizada. voluptuosidade tem que ter exuberância. seus edifícios parecem esterilizados, sem germes.

Não confio em lugares que não tenham germes lugares santos são cheios de germes a beleza é sempre cheia de germes. Porém a artificialidade não é desumana a artificialidade é algo racional portanto mais humana que a exuberância. A exuberância esta sim é algo mais animal mais artística. Os bares de Quedas são os nascedouros das lendas a cachaça com ervas e lascas de sassafrás e um santo daime, um peiote. O Orixá Mário de Andrade desce como espírito santo a linguagem entra em transe peixes tornam-se monstruosos e em quantidade milagrosas os tiros são mágicos e matam uma onça mitológica e o caçador e o cavalo da anta morta no êxtase, na língua do sonhar. E alguém imita um polaco coro de risos. Das livrarias gosto da livraria de seu João heroicamente agarrada ao passado um carrapato agarrado ao ano de 196�. Mesmo o jornal do dia se comprado na livraria do seu João já sai um jornal cinquentenário e muito mais sábio que o mesmo jornal comprado na outra esquina. Já é um jornal para ser guardado uma relíquia uma peça de antiquário.

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POEMA AO RIO IGUAÇU

Rio represado domado pela inflexível posição marcial do concreto. Rio com hora marcada, espera contido, espera angustiado a hora de fluir feliz por entre estas vaginas metálicas. Meu rio de margens indefinidas, e às vezes litigiosas. Iguaçu de pouco peixe que lança lambaris aos pescadores como quem joga moedas ao mendigo da praça. Rio importunado por projetos, urbanizado pela pouca poesia das casas de veraneio. Enquanto pesco à sombra de um outdoor da Severo Materiais de Construção, penso que teu caule passa aqui, mas tua rosa flor branca abre-se em Foz do Iguaçu e lembro do dia que levou vilas e pontes inclusive a zona do Chopim-Dois. Foi-se o sofá das putas deslizando rio abaixo. Adeus sofá das putas sentirei saudades.

[nasceu e mora em Quedas do Iguaçu-PR; mais http://pergaminhosolivan.blogspot.com]

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Márcio-André (RJ/Lisboa)

o rio é o contorno de uma outra cidade que não é o rioe mesmo s. paulo poderia ter outro nomee ser outra cidadedisfarçada nas mesmas ruas

desde a métrica [vascular] dos viadutos

ou o aro retrátil nas luzes desta prisão que se chama espaço:

nenhuma outra vida ou cidade pode se cumprir além dessa

[não se pode ser jovem em outro lugar]sobra o caroço-adorno de um semáforo relíquia única de única memória

uma mulher nua para cada lugar onde se esteja –

duas cidades sonhando-se mutuamente

quando não estamos dentro todo edifício almeja leveza de paisagem

BALEIA aqui do estômago desta baleia a cidade é um cardume cintilante e a estátua de drummond tem as costas ao oceano – [as estátuas são para os homens não para o mar] cultivar um peixe por dentro para um dia comê-lo esperando uma mulher surgir da precisão da ossada um dia somos felizes em nosso jardim cetáceo e ela caminha suavemente ao meu lado sonhando o domingo mais triste do mundo no subúrbio do lado de lá um dia estamos na meia idade e bebemos porque não há opção e o guindaste no cais estará esmagado como um inseto morto diante das mil falhas na goela das águas o mar está na foto dos homens não no sonho das estátuas

por um animal todo-feito de tetra-pakque se devora enquanto se move

esse animal-caligramaque transpassa o alfabeto através do corpo

e a imundície da rua através do tempo

usina de merda contraas mil falhas tectônicas do céumesmo a morte faz mais sentido quando fodemosusina de força gerando forças contrárias

uma pedra sobre a mesa tem mais alma q um rinoceronte a lograr-se no ladrilho das placas

ou aindaesse ordinário que vive das coisas complexas:o dia a dia alternando suaveos terrenos baldios a ordem das casas os vagões de trem

[nasceu no Rio de Janeiro-RJ e mora em Lisboa, Portugal; mais em http://www.marcioandre.com]

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Marcelo Sahea (RJ)

CASA

carro corpo abrigocama igreja umbigonuvem casco estradaquem o que faz a sua morada?

barraco ponte mansãocova casaco papelãopalafita ventre celaquem casa quer asa ou janela?

cabana caverna tendaquartel pensão fazendahotel castelo praçavocê se sente em casa em casa?

concha iglu tocafavela kit ocasemente ovo apa casa se sente em casa com você?

CLEC PÔU FFFFFF

Desce a Praça do Perigodobra na Av. São Medonhoe chega na Rua da Tensão

Vai pela Rua Por um Trizdesce a Rua Bala Perdidae vai dar na Praia do Arrastão

Pega a Medroso da Silvadesce a Av. Calculistae dobra na Santa Aflição

Após o Parque Já Erapegue a saída da Rua Perdeudesce a Rua Paranoiasiga pela Rua Aiaiaidesça à direita na Rua Ai de Mime cai na Desconsolação

Desce na Estação Corre-Corresai no Viaduto Santa Manhae chega no Coração na Mão

Sobre a Delirantespega a Av. Presidente Imprudentee sai na Av. Vacilão

Do Viaduto do Presuntocorta a Rua Coronel Tô no Céuaté avistar o Minhocão

[nasceu no Rio de Janeiro-RJ; poemas do livro Nada a dizer, [e]/Annablume, 2010; mais em poesilha.blogspot.com]

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Francisco Alvim (MG/DF)

BRIGA

Nunca fui com tua caranunca escondieu sou francome dê tua mãoquando nos conhecemoste cumprimentei assima mão molehomem cumprimenta duroera um insultovocê devia ter percebidosou filho famílianão quer dizer que seja ricopra não passar fomejá domei burropassei dois anos sem rirchorando escondidoeu que sou alegrese teu pai está com câncero meu está com enfisemae se você quer saberpapai vai morrer

PIORA

Adotou um gatinhoque ia visitar toda a semanano asilode gatinhos velhinhosQuis procurar o dono do cavalocabisbaixofincado nas quatro patasque via todo o dia na beira do trilhoquando passava no tremUma vez quase desceu de sua salapara falar com o mendigo da praçadono de um cachorromais estropiado do que oadmissível cujo sofrimento era o delecachorro e o dela

[nasceu em Araxá-MG e mora em Brasília]

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Eduardo Sterzi (RS/SP)

PAÍS

Issoque chamamos “amigos”e às vezes perdemosporque o repuxo os carregasempre mais para o fundo:para antes das ondas,onde dormem os peixes; para depois da memória,onde morrem duas vezes

– isso desfaz-sesombra que a luzdo farol atravessa.

§

Issoque é tábuade solidãoa que nosagarramosquando falta ochão e, náufragos,sonhamos com terra

– isso é quase um país.

Mas esse paísnão existe. Esse paísnão presta.

31 de março – 1.º de abril 2004

ESTRANGEIRO

Nunca estrangeiro o bastanteSegunda-feira, janeiro, ninguémacorda [porque]Ninguém dorme

Todos estão mortosO dragão que os devoroué um dragão mudoMímica e ensaios de fuga no interrogatório

(nenhuma resposta, nunca, satisfatória)

O estrangeiro (nunca o bastante)traz na carne(a sóbagagem)a única lei inflexíveldesta cidade:

a lei de um rosto desfeito a marteladas

[nasceu em Porto Alegre-RS e mora em São Paulo-SP; poemas do livro Aleijão, �Letras, 2009]

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Adalberto Müller (MS/RJ)

[nasceu em Ponta Porã-MS e mora no Rio de Janeiro; mais em http://lisuff.wordpress.com/]

VERDADE, MATO GROSSO UNIVERSAL A Joel Pizzini

Um boi pastasob um céu de estanho.Não cresce a terra para o céu:O horizonte é interminávelNo deserto verde de pastoUm boi e um menino existe:O boi ruminando capimO menino ruminando palavras.

ÉPURA

Já não estou maisonde nasci nasci onde nunca estivee hoje vivo

na fronteira dos ventos

na linha imaginária

que sobrou entre os marcosInvisíveis de um mundo

que se move.

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Sérgio Vaz (SP)

[mora em Taboão da Serra-SP; poema de Colecionador de Pedras, Global Editora, 200�; mais em http://www.colecionadordepedras1.blogspot.com/]

MORRO DAS NUVENS (JD. LEME)

No coração das nuvensa pátria se esconde atrás da cortina de madeira.

Mas os homens, das casas simplese almas bravias,mantêm as portas abertase as vidraças limpaspara o deleite do amanhecer.

Ferida aberta, a vida – essa nuvem passageiracortada em fatias – deixa sempre a parte menorpra quem acorda perto do anoitecer.

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Mardônio França (CE)

O POETA DO MAR

para os argonautas de chico buarque para glauco leandro e ítalo

sou filho do mar é o mar que me rege o mar e seus cabelos que tem raízes na lua sou filho do mar é o mar que me impede suplico sair dessa ilha salgada, sagrada(?) cercada de criaturas ferozes fogueiras redes raios raios que parta que ferozmente - ele - a terra - nessa luta deixa meu sangue que corre e que não cai ou não-estaca nessa pedra que carrega a terra nessa pedreira nessa luta dessa terra assustadora terra terrível terra e de onde vem o terraço terra e o terreno quero o mar quero ver o mar na sua total-maresia sou filho dele sou filho das sereias dos argonautas quero o mar sou filho do mar quero a escola de sagres quero o barco dos fenícios quero iansã e iemanjã, as minhas mães quero o mar os botes as canoas sou filho do mar por esses olhos que seguem o meu sangue o meu mar as minhas armaduras do mar que sou que estou e desesperadamente jangadas caravelas barcos

o barco o bardo o todo torto dançante dançar - imitação das marés o mar o mar o vento o mar o mar quero o mar e não quero trafegar tenro está de estático quero o movimento do mar que é libertação me perco no mar nos açudes nas cachoeiras quero fugir para Titã - que lá encontraram o mar o mar de saturno o mar dos enamorados do amor amar amaré do mar de marte mar manso e revolto mar do mar que não somos donos que a lua cairá no pranto do mar nos fins do tempo no dia do amor entre Terra e Mundo e Mar e Lua enamorados sou filho do mar e quero me salgar, com seus cardumes seus peixes estrelas-do-mar gaivotas o peixe-do-mar. camurim - peixe - amar.

[mora em Fortaleza-CE; mais em http://www.corsario.art.br]

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Ademir Demarchi (PR/SP)

VENTO DO DIABO para gilberto mendes

o noroeste é mornocomo bafo de diabovento de sacisopra pra todo ladocrispa o mar de manchas brancasdesenhando gaivotasmas enquanto ventanão há sinal de ave nenhumaguará, pomba, garça, bem-te-vitodas somem não se sabe ondeas árvores sempre plácidas se contorcemcomo se quisessem se livrar de algo- um espírito ruim que delas se apossevindo de dentro embora é de fora que assopraa paisagem se crispa e se altera até na coro ar se enche de areia fina que voa e a tudo penetra recobrindo móveise o que esteja estáticocomo fuligem ou cinzas vindas da chaminé do crematório de corpos da vila belmiro ou de aço de cubatão

DE UMA CIDADE QUE CORROEU A FLORESTA

outonoas árvores expelem folhascomo caspa

nas passarelas urbanasde magérrima belezao silêncio urde esquifes nos troncos

às ruas falta ar como asma

a solidão suprema do inverno, maringá

todos tentando preencher o vazio que ficou da floresta

nas ruas nuas o grito terrificante de vidaprometido pelos ipês roxos e amarelos na primavera

os flamboyants agonizando corao lado da discrição contida das sibipirunas

o mato anunciando flores ignoradaspela rudeza dos olhares esquizosque passam alheios em seus sentimentos fendidosancorados em corpos que se arrastam como esquizeáceas plantadas

[nasceu em Maringá-PR e mora em Santos-SP]

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Edson Bueno de Camargo (SP)

[nasceu em Santo André-SP e mora em Mauá–SP; mais em http://umalagartadefogo.blogspot.com]

ORGÂNICA a paisagem urbanase amarra ao por do solem cabos elétricos e postesluminárias de fogos ardentesao tomar ares de nave espacial venusiana os fios costuram o céuem armações e nervurascomo capilares sanguíneosque se enredam por toda cidadeonde sangue de elétronstransportam movimento e números as construções buscam a luzcompetem em devorar horizontesdia a diajardins estéreis da babilôniarecobrem a terra ao infinito muralhas sem rebocobabel que nunca terminadevora cimento virado nas calçadasem manhãs de domingofome insaciável de pedra e cale lajotas vermelhasque nunca cobrem suas vergonhas a cidade é orgânicamonstro vivo e cada vez mais lentoe somos os parasitasque habitam a sua barriga

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Ylo Barroso Fraga (CE)

ÉTER, HETEROGÊNESES

“Cidade flor ou z,” Carlos Emílio C. Lima Para Cecília Bedê

heterogêneses ainda tijolos ainda matériadessedentando o éterseus cavalos suas tropasas volúpia encarcerada já quase derramano furor entrópico dos gestos é minha cidadede açúcar e alumínio e do veloz outroacorrentado como a dama da notíciaà solidão de um nomeesquecido na entranhasolidão de parágraforeptiliana múltiplacomo um pomarum poema é minha cidadenossa cidade nossa andorinhaaquece teu passo e me achaoutra vez que ande com a cidadeacompanha o andor ele crescee caminha é a cidade a fórceps

uma cidade e suas têmporas exangues um hiatoe depois uma brecha bêbadainsinua-se para um longe de cães vadiosquasee passaa se vingarsão vinte que aquecem o passoaquece teu passo eu aqueçoo passo na cidade é minha cidade silênciomoído com brio doía no peito uma lágrimaalgazarra dos anjos em debandada furorentrópico dos gestos corpos que não chegam a seformarna minha cidade e suas cidades de corposde pelourinhos que ainda transpirame patíbulos que ainda sangrame pedaços de cidade ajuntadosnos vestígios de selva invisívele uma beleza que é como o tempoe esvai-se em tintae é minha cidade e não sabese sonha ou acordadarefaz o mito de si

[mora em Fortaleza-CE; poema de tris, Editora Corsário, 2008; mais em http://www.corsario.art.br/]

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Cláudio Portella (CE/SP)

TODOS CANTAM SUA TERRA TAMBÉM VOU CANTAR A MINHA

Sou um homem desesperadoandando à margem do rio Ceará.Sou um homem com Glauber Rocha na cabeçae uma câmera na mão.Andando fico à margem de minha terra:Fodaleza.Terra nos olhos da lente.Só filmo planos gerais.Planos.O hospital de saúde mental Mira y Lopes.Ando pelas ruas e tudo de repente é novo para mim:a Aldeota, a grama, o meu caso de amor,a estação da estrada de ferro Fodaleza-Caucaiaum dia de manhã.

Minha terra tem coqueirosonde canta o Vento Aracati.E uma água com gosto de infância.E um poço.E eu menino.Como posso agora cantar minha terraestando tão longe-perto dela.Como posso eu e essa miséria loucadescobrir destruir as ruínas de lar.Citação: não teremos destruído nadase não destruirmos as ruínas.

UNIVERSAL

ChoveChove, o cheiro da terra molhadaSó o cheiro da terra molhada é universalO cheiro de terra que sinto agora no Nordesteeu o sentiria em PequimNem a chuva é universalSó o cheiro da terra é universalA terra que carrego nas unhasA terra em que se plantando tudo dáNem a terra é universalSó o cheiro é universalO poema que carrego nas costasNem ele é universalEscrevo para os meus paresO agricultor ruralque masca fumo e bebe pinga no mercadoSó o cheiro da terra molhada é universalNem as lágrimas são universaisSó o cheiro da terra molhadaChove

[nasceu em Fortaleza-CE, mora em São Paulo-SP; poemas de Fodaleza, 2009 e As vísceras, 2010, Expressão Gráfica, Fortaleza; contato: [email protected]]

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João Filho (BA)

NOTURNO DO VALE DO CANELA O corpo agitado da cidade em seu individualismo heterogêneo sob o crepúsculo chuvoso; o fluxo metálico do trânsito; a idêntica miséria dos passantes e dos pedintes; a hora escura dentro e fora que imperativa pendula seu peso vivo; o ângelus ao longe, e algum demônio em sua gravidade patética, no topo do prédio, vigia; na luz confusa deste tempo semi-líquido, a certeza cruel nada diz, mas muito expressa: a vida empobrece e crispa-se de frio, que agora sopra mais agudo e no seu vir traz a noite completa. Sabe quem a atravessa que a casa, a mão meiga, a ceia, o imperceptível Arcanjo, que por entre a multidão passeia, têm pouca serventia de consolo ou escudo. Tão seco e terrestre nesta solidão sem Deus, bale e bale contra o próprio muro. Ouve a lógica desesperante do eco pelos vazios corredores do corpo, que insiste no provisório e no acidental.

Neste viaduto sobre o vale, quando a chuva mais se adensa, aproxima-se do parapeito, quando a treva é mais intensa, e o vôo sem asas é quase aceito. O coração com os seus caminhos aéreos nunca repousa em satisfações, quantas vezes queda em negativas indagações. Com o trânsito a multidão escoa, um cão se encolhe num canto ou é uma pessoa? Aceitar o conflito contínuo que a vida respira, mesmo quando a luz dos postes bate nula contra a noite, a chuva, a desesperança.

[nasceu em Bom Jesus da Lapa-BA; mais em http://www.voosempouso.blogspot.com/]

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Fuzzil (SP)

[mora no Capão Redondo-SP; mais em http://fuzzil.blogspot.com/]

TRIANON

Longe das ruas de terrasDo Capão conhecidoDos becos e vielasLugar onde vivo

Longe do Parque FernandaLonge do gueto queridoLonge do Parque Santo DiasEis me aqui... Na Paulista

Longe de casa... SóLonge da amada... ÓNo Parque Trianon.

Cercado de árvores brisa na faceEnquanto escrevo meus versosOs pedestres passam.

TIRANDO ONDA

O Capão é RedondoO Jardim é das RosasIreneMagdalenaFica bem próximo.

O Valo é VelhoSanto é EduardoCampo é LimpoSalve,São Marcos.

A Vila é das BelezasTrês Estrelas...

Fernanda,ÂngelaeRosana.

No MorroCanta GaloHorizonte é AzulEmbu das ArtesEmbu Guaçu.

Pira... JussaraSanta é Tereza.

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Paulo Franchetti (SP)

[nasceu em Matão-SP e mora em Campina-SP; poema de Memória Futura, Ateliê Editorial, 2010; mais em: http://www.unicamp.br/~franchet/]

TRÊS

1. Na estrada cheia, Em breve, cada um acenderá as luzes – Centenas de estrelas em fila, Retas constelações moventes, Cercando a nebulosa da cidade Sob um céu de chuva. 2. Sobre a neblina, o sol Espalha seu calor inútil. Uma lata de leite, virada com o pé, Mostra a parte de dentro. Ela quase brilha, Atingida pela luz difusa. 3. Pela janela, As colinas cobertas de casas. Na do avô, A noite descia como uma tampa, Apagando as frutas e os cães que vagavam No meio do pomar.A luz aqui vem do chão, quando anoitece, E lança a sombra dos prédios Para dentro do céu cinza.

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Lucia Bettencourt (RJ)

CANÇãO DO ExÍLIO De quem é a terra?Minha não é,mas tem palmeiras,tem coqueiros,tem roça de cana. De quem é a terra?Dele também não é,mas tem pé de café,tem madeira de lei,tem soja, feijão e trigo. E, como se não bastasse,nessa terra que não é minhae dele também não é,tem passarinho cantando,tem sabiá na palmeira,tem curió e araponga. E como se não bastasse,nessa terra que não é delee minha também não é,tem poeta poetandoo tamanduá bandeira,e as onças pantaneiras. Quando eu morrer,essa terra há de ser minha,ou eu é que vou ser terra:roxa, prá cafezal,massapê, pra canavial,ou mesmo um barro vermelhosem qualidade nenhuma,servindo, talvez, de abrigo,na parede de um mocambo. Quando ele morrer,sete palmos dessa terrahão de ser dele,e o exíliose repetirá: exumação.

[nasceu e vive no Rio de Janeiro-RJ; mais em http://www.nadanonada.blogspot.com/]

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Marcelo Ariel (SP)

VILA SOCÓ LIBERTADA

(depois do fogo)no outro dia(sem poesia)as crianças (sub-hordas)procuram no meio do desterrorbotijões de gás para venderum menino indianizadoencontra uma geladeirapintada por Pollockdentro o cadáver de uma grávidaincineradocom a barriga estouradaa mão do fetodevorato(por Saturno)atravessa as tripassai para o fora do foraali ao ladoonde o silêncio do meninoé calmo(a quietude neutra avalia o inconsolável)um jornalista – a cem metros do projetocaminha(a câmera-sombra focando um canto)atrás deleum rapazque julgaver nos escombrosum Lázaroele corre e ao agarrar um braçoo braço vem junto e ao ser largado no atopor um instante entre o chãoe o espaço é fotografadopelo pai de umdos meninos do gásna foto revelada:uma realidade desfocada(sem mortos, vivos ou paisagem)tudo é uma névoa-nada.

[nasceu em Santos-SP e mora em Cubatão-SP, mais em www.teatrofantasma.blogspot.com; www.ouopensamentocontinuo.blogspot.com]

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Carlos Felipe Moisés (SP)

CONVERSA DE BOTEQUIM

Vá pedir ao seu gerente que pendure essa despesa no cabide ali em frente.Noel Rosa

Encostar a barriga no balcão do boteco antigo : rabo- de-galo, torresmo, pernil, prosa fiada, sem perigo.

O pernil tá bom demais, tá coisa fina, ô gente boa! Embrulha aí o que sobrou, que eu vou levar pra patroa.

Filar um cigarro, bater a ponta na unha encardida.Vai mais uma? Agradecer, obrigado, eu já tô de saída.

Não saber se o cara ao lado é bandido, irmão, algoz : a humanidade que sobrou em cada um de nós.

[nasceu e mora em São Paulo-SP]

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Marcos Siscar (SP)

INTERIOR VIA SATÉLITE Começar de dentro, do interior, de onde as coisas começam. Onde terminam sua elipse vertiginosa. O interior é o fim da partida, é o começo da volta. Sair como quem volta, voltar como quem sai. A ficção viagem. Estar perto da própria coisa não está longe do extravio. Veja as mãos do adolescente, suando frio, sem saber virar as páginas de um livro. O interior é o lugar do extravio, lugar não se fica. Que lugar é um lugar onde não se fica? É o limite, o limite é interior. Do interior, se vai. Como de pequenas cidades, you know you have to leave. Não se fica, no interior se chega, do interior se vai, aonde se chega, no interior não se fica. Areia, cabra, pedra, e grito, mas não se fica. O interior se trai. Só realiza, quando se trai. O exterior das coisas é quando o interior se trai. Por isso, não há exterior puro, poesia pura, aquilo que não se trai. Não há silêncio que não se traia. No interior, as coisas ressoam ocas. Nada para se ver. Aqui só se ouve a coisa oca soar. Um barco enferrujado soa, devolvido pelo rio, debaixo da amoreira.

A ficção origem. A ficção precisa ser cultivada, memória aparada, mentira amparada, piedosamente. Velha história, morno ludíbrio da literatura. Interior é a ficção, a terra. O interior é bem real, é a terra, um chão onde cair. Ter onde cair, morto, é motivo de partir. Interior. Se for pra partir, quero que seja para não deixá-lo. Interior é onde tudo começa, como forma de não se deixar cair. Quem nunca caiu de uma árvore, precisa de segurança? Quem já se jogou de uma árvore, conhece a dor da queda? Meu silêncio me trai. Apago os parênteses. O interior é síncope. Você não reclama, não pede, não aceita, não fica, não arreda o pé. O interior se fecha, se oferece. Carrapicho, áspera misericórdia.

[nasceu em Borborema-SP e vive em Campinas-SP; poema publicado na revista Modo de Usar & Co. 1, 200�]

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Madô Martins (SP)

RAÍZES

Moro numa cidadecom nove canaisque garças sobrevoam.Nessas veias abertascorre o mar.

Moro numa ilha,que é também um porto,boiando no Atlântico.

Moro no Sule jamais migro.

Procuro mensagens em garrafas,na areia da praia,mas só encontro conchas e maresia.

[mora em Santos-SP; contato: [email protected]]

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Jorge Henrique Bastos (PA/SP)

TRAZES UMA FLORESTA DENTRO DE TI

Aguardas o encontro colérico das águase inauguras a viagem,a vaga do verbo eleitotrama a sua rota,ecoa na explosão que arrasta o olhar.

O barco transportando terror atravessa o delta esquecido da língua, ventos póstumos escavam o fóssil da voz longínqua a murmurar ainda.

Crescem urzes na linguagemque abandonaste,sorves a clorofila da palavra tempoe inoculas em ti mesmoo veneno.

Escoaa maré que ajudaste a gerarmas nenhum porto aceita a tua âncora.Inflamao pus que recebeste como dádivana voragem da manhã coagulada.

Trazes uma floresta dentro de tia tremer alucinada,plantando estátuas de pânicosobre o charco onde procuras teus ossose o silêncio cumpre o seu exílio.

Abres uma clareira no poema:o abismo.

[nasceu em Belém do Pará-PA e mora em São Paulo-SP; mais em http://amargemdaletra.blogspot.com/ ]

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Natanael Gomes de Alencar (SP)

A PEDRA

Uma criança joga uma pedra,a pedra, lenta, vai encontrando pássaros,fagulhas de relâmpago,sons de aviões a jato,gritos fragmentados com escuros traços,gritos de alegria com claros entornos,e a pedra vai fazendo uma parábola,parando um instante a que um matemático/físico tire fotos,posando para um poeta antes de ser mais uma em meio ao caminho,imaginando que possa atingir o espaço infinito antes da curva final,a pedra curva o ar com destino ao rio da minha aldeia cubatense,e quando atinge a flor da água vai em câmera lenta pelas pétalas dos peixes,peixes bronzeados, com barrigas de tanquinho de óleo e águas servidas,antes de atingir o leito do rio, a pedra sente o fluir das moléculas estrangeiras,o frescor dos restos que negaceiam a boca dos predadores,chegando ao fundo num cansaço extremo de quem já viveu tudo.

[nasceu e vive em Cubatão-SP]

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Elisa Andrade Buzzo (SP)

ONDULAÇÕES No entortado da letra forjo a cidade em palavras mata-borrões. Mancha gráfica é a cidade que imprimo fora de cores na noite. No limite negro-azul entre ela e a madrugada, os autos não respeitam os sinais no horizonte. Cada buraco, cada reentrância oscilante – fratura no asfalto – na qual indiretamente me deito e logo depois sou alçada. Um observador externo certamente veria as gorduras das bochechas e dos peitos tremendo. Sobressai minha caligrafia tremida sobre a noite amortecida; ressaltam-se sinais, rugas, sulcos gelatinosos. Na velocidade da luz noturna, o ônibus bóia no espaço, sou parte dessa estrutura que levita. Ele sobe tão rápido que minha escrita se descompassa, as fachadas de metal das lojas tornam-se um risco cinza de grafite definitivo. Escrevo as cenas que desabrocham na noite, como as camélias brancas desprendem um aroma doce e enérgico. A tentativa de reter essa fragrância é inexpressiva. Na noite quente de primavera, grilos esperneiam – e a cidade omite os insetos nas verduras. A escuridão fresca absorve a tinta da caneta: papel-chupão. Existe um momento na madrugada paulistana em que o atrito se desfaz das ruas. E as letras escorrem tranqüilas e macias.

[nasceu e mora em São Paulo; poema do livro Notícias do lugar algum - Noticias de ninguna parte, publicado no México pela Limón Partido, em 2009; mais em http://caliope.zip.net]

ÔNIBUS ENTALADO

acidente feio no cruzamentona mudança de trajetóriamotorista e cobrador decidem o sexo dos anjos

o ônibus não passapor debaixo da ponteos passageirosgatos pingadoscorrem sério risco de vida

eu não me importo(nem se chego ou não)

a mão de niemeyer com o mapa da américa latina lembra meu coração sangrento

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Fabio Romeiro Gullo (SP)

[nasceu e mora em Santos-SP; mais em http://fabioromeirogullo.blogspot.com/]

O(M)NIBUS

no ponto (de ônibus) um pneu círculo galvanizado pára úmido ferramenta de levar gente de ponto a outro no espaço (ligue os pontos e terá a cidade) eventualmente a ferramenta esmaga um corpo no asfalto

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Carlito Azevedo (RJ)

PARAÍSO

Foi quando a luzvoltou e vimoso rosto da jovemque se picava juntoà mureta do Aterro,a camiseta salpicada,a seringa suja.“Nenhum poema é mais difícildo que sua época”,você disseem meu ouvidosem que eu soubessese era a ela que se referia ou se ao livroque passava das mãos para o bolsoda jaqueta.Distinguimoslá longea Ilha Rasa,calçamosos tênise seguimossem atropelosentido enseada.

INFERNO

povres fameletespovres hospitaulxpovres gensV. Villon

Você a reconheceu como sendo a meninacoreana da Centralde Fotocópias do Cateteaquela comcamiseta salpicadapresilhas fluomuretae hipodérmica pendentedo braçoe me abraçou eme olhou com um olharque me atravessavae ia atingir atrás de mimbem lá na frenteno bazar futuro dos diasno meio das bugigangasespelhadas, espalhadasum outro crepúsculo cinzauma outra noite chuvosae sem luzem que veríamoso inferno refletidonos olhos de umvira-lata que cruzavaas pistas do aterrovirado pelosfeixes dos faróis(relâmpagos denenhum céu)dos 4x4a toda velocidade.

[nasceu e mora no Rio de Janeiro-RJ; poema do livro Monodrama, �Letras, 2009; mais em http://www.�letras.com.br/inimigo-rumor.html]

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Luana Vignon (SP)

EU ME APAIxONEI PELA GAROTA DO �01

a garota e seus pezinhos saltitando degrauso cabelo chanele uma enorme bolsa de oncinha a tiracoloela lê Garcia Márquez de pé no ônibuse nunca olha pros outros passageirosnem pros transeuntes do lado de foramas hoje ela olhou pra mimnão se sei foi pra mimou pro final daquele corredor apertadoeu sei que vi seus olhos também apertadosse espremendo debaixo das axilas fedorentasfoi bonito quando o olhar dela esbarrou no meuela e suas putas tristeseu e meus poemas vagabundoso cobrador podia entregar um deles pra ela mas nãosão todos uns sacanas esses cobradoresnada discretosela desce num ponto antes do meue eu só fico olhandoacho que eu me apaixonei pela garota do �01.

[nasceu em Araçatuba-SP e mora em São Paulo-SP; poema de Seu herói foi embora, Assunción: YiYi Jambo, 2010; mais em Fake Souvenir http://luanavignon.wordpress.com/ e http://panelinhabooks.blogspot.com/]

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Alexandre Brito (RS)

ZÉ PILINTRA DO CATIMBÓ

o mal-ajambrado pretende fazer boa figurapresunçoso nos modos e no vestirnão sente constrangimento algum de seus atos censuráveisdá um trato no visU e sai por aí esbanjando malandrageidade não desmerecepreto quase preto retinto terno branco de briccamisa de cetim vermelho, chapéubranco também, usadinho em bom estadoe já vai ele de bengala corrente dourada, anéis nos dedoselegância manemolentelhe cairia bem um dente de ouro no sorrisomas não tem pro gastovai baixar lá no Catimbó da Mãe Serenaantiga na religião renega Umbanda, Candomblé, BatuqueCatimbó é tradiçãoMãe Preta gosta de beber batidinha de cocopinga com butiá ou purinha mesmoMãe Serena é Zé Pilintratem festa no Congá.

[nasceu e mora em Porto Alegre; mais em http://alexandre-brito.blogspot.com/]

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Ricardo Pedrosa Alves (MG/PR)

a cidade sou eu sem parar

para dalton trevisan

as putas do centro las niñas do capão raso trabalhos com os guias para recuperação amorosa (mulheres de banheiro, mas tb homens, mulheres de papel, mas tb cães, mas tb aves, tb árvores em formato de vaginas, mas tb meninas em púrpuras espaçonaves) as turbinadas da ecoville trazer a pessoa amada de volta (mas tb gás, e o fogo, e o gozo na piscina, mulheres de celofane, de celuloide, monica vitti, mulheres do céu, de celulite, com os cus para o céu) as gatas do campina do siqueira trabalhos para acender a chama do amor (e sem véu, mulheres novas e velhas, e professoras, lombas, e lobas e lontras, escorregadias, lisas, em feitio de oração, em formato de coração, mulheres de mão, à mão, moças sem senão, de atenas, no quarto, sobre o colchão, no chuveiro, pela janela, moças esvoaçantes, feiticeiras, ciganas, escravas) as putanas puritanas do batel amor com ponto de união (devaneios, mulheres ao meio, anãs, febris, neuróticas, irmã, mãe, pajens e mulheres no mel, mal no bem, sim no não, mulheres então, rotas, ratas, fundas, rasas, anjos sem asas, em casa, mulheres-diário, diabas) as piranhas da água verde marque uma consulta com os guias (rodando a cabeça, rodando as palavras na placenta, dançando, mulheres em bando, empilhadas como livros, mulheres de armário, várias, em todos os planos, mulheres de fuga, de fumo, madalenas, madeleines, mulheres-memória, muitas santas, todas, mulheres voando) as gostosas do são brás veja o que a sorte e o futuro lhe reservam (voando peixinhas, sereias na veia, a mancheia, mulheres de areia, aquelas, mulheres a beça, bestas, vespas, num cesto, num berço, do avesso) as ordinárias do caiuá você que está só venha ver o que o futuro lhe reserva no amor (toda terça, toda sexta, a semana toda) as moreninhas do sítio cercado jogos de tarô com as cartas originais da cigana (mulheres eternas, de terno, teóricas, de quatro) as brancas do juvevê consultas com e sem hora marcada (na cama, de bruços) as filhas do boqueirão problemas de impotência? (mulheres no susto, narcisas, precisas e imprecisas) as galinhas dadeiras do rebouças o legítimo baralho cigano (únicas, várias, necessárias) as descoladas do jardim social as irmãs tias e primas do seminário

[nasceu em Governador Valadares-MG e mora em Curitiba-PR]

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Fernando José Karl (SC/PR)

O MAR QUE CHOVE

Uma cambada de peixes se inclina: salgam, as carpas, a fundura:o mar chove-se:nenhuma palavra nas molhadas

cerâmicasdomarquechove

músicas para cima

[nasceu em Joinville-SC, às margens da Baía da Babitonga, e mora em Curitiba-PR; mais em http://nautikkon.blogspot.com/]

PALMEIRAS REAIS

Um sábado sopra com o vento:curvas do sapatoespelham esquinas.

Minhas palavras em tua mente.

Senti um despenhar de abismos dentro de mim:palmeiras reais ao vento.

Elas crescem com o vento.

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Marcelo Steil (SC)

DUAS HISTÓRIAS MARINHAS EM TRISSÍLABOS

ouço as ondas espraiarem sua luz na paisagem ouço as ondas que nos contam no seu ritmo seu quebrar tanta história desses barcos e sua luta contra o mar teve aquele marinheiro que no dia de resguardo

pôs-se ao mar com sua redes não guardando o feriado a senhora mãe de deus que nas águas se arvora quedou-lhe tempestades quis mostrar-lhe as verdades teve o caso do pesqueiro cujo nome era santo agostinho protetor dos meninos dos quebrantos

quando o barco pôs-se a pique no pontal do arrecife nome santo não deixou marinheiro sem sua vida hora a nado se reuniram lá na praia todos vivos e rezaram de joelhos a seu santo padroeiro

[nasceu e vive em Blumenau-SC, no vale do rio Itajaí-Açu; mais em http://www.poetasnosingular.com.br]

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Valdemir Klamt (SC)

ARQUITETO DOS DIAS

“Gosto da palavra crer. Em geral, quando alguém diz ‘sei’, não sabe, mas crê” – Marcel DuchampNa minha cidade todas as pessoas caminham do lado esquerdo da rua. Todos os sapatos são do mesmo tamanho. As mil faces arquitetadas, construídas em sonho, são o uivo da dor incessante. Na minha cidade não há respostas. Os gatos foram banidos dos telhados. A oração que minha avó repetia a toda hora Não conteve os pilares de pedra, De casas com gosto de ontem. Hoje habito um ritual de maquinaria e danço na névoa que há entre os homens. Umedeço os lábios na água que os dias trazem nas flores. Sei que sou feliz. No dia de Nossa Senhora Aparecida a prefeitura inaugurou uma ponte sobre um campo de trigo.

[nasceu em Iporã do Oeste-SC, no extremo Oeste, e vive em Florianópolis; mais em http://www.poetasnosingular.com.br]

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Ademir Assunção (SP)

[nasceu em Araraquara-SP e mora em São Paulo-SP; poema de A musa chapada, São Paulo, Demônio Negro, 2008; mais em http://zonabranca.blog.uol.com.br/]

AS RUAS ESTãO ESTRANHAS ESTA NOITE

Pétalas destroçadas tingem a noite de vermelho. Mister Morfina se arrasta pelas ruas, os bolsos cheios de câmaras-de-ar furadas, tranqueiras, e cacos de vidro. Peixes coloridos saltam sob a luz dos semáforos. Uma Rosa cospe um blues na poça das sarjetas. Um Opala caindo aos pedaços bate de frente no Monumento aos Desesperados Anônimos.

O vidro do aquário se estilhaça. Os peixes fogem montados em motocicletas envenenadas. Orelhões suicidas gritam palavras obscenas para velhinhas traficantes. Mister Morfina acende um cigarro e observa a palidez de 50 topmodels que desfilam descalças na passarela cheia de cacos de vidro.

Deus está solto. E dizem que Ele está armado.

PAISAGEM CRIVADA DE BALAS

As rajadas podem ser ouvidas de Pirituba ao Pontal. Escopetas, uzis israelenses e fuzis russos sangram as bordas da Noite Drogada. “Estamos tornando a paisagem inabitável, não levem a mal, é apenas nosso fluxo de consciência poética” — pensa Black Ice, o indicador rodopiando os cubos de gelo no copo de uísque.

Punks com sangue de barata e dentes de borracha sentam-se nas muretas da orla marítima para vaiar o Pôr-do-Sol. Antes da última bala perdida.

Do alto do morro do Pavãozinho um franco-atirador mira e dispara, enquanto é enrabado por um guri pantagruélico. Tiro certeiro. O sol tomba na boca banguela da Guanabara, tingindo de vermelho o Atlântico.

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Antonio Vicente Seraphim Pietroforte (SP)

SãO PAULO EM QUATRO CANTOS GROGUES

I

atravessa o inferno a procurar por elapronto pra virar poeta

será que vale a pena?

vale se o teor da erva é boase o travesseiro delatem recheio de macelado campocomo flor aberta

atravessa o oceanono navio imundotrancado no porãofera

estranho na cidade grandenão deixa pedra sobre pedramacacofeito King Kongqueda

II

está parado em frente ao Elevadona Amaral Gurgel

toma cuidadoo emplasto que segura o sacoo talco no lugar da flor

puro Mistraldesceu pelo nariz nervoso

havia um sex shop ali ano passado

belezahá um pôster de mulher peladaimensoem cada prédio

durezafingir indiferença à mendiga sujao pé descalçoa coxa duraa curva da cinturano vestido dado

vazio?

por que duas lésbicas precisariamde um pinto de borrachapara completar o trio?

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III

asfalto ao meio dia cinzaagresteo centro de São Paulo sob o trópico de Capricórnioa catedral da Séo largo de São Bento e a Liberdade

garganta secao homem na multidão faz o desertoimenso

o olho secoespinho

cigarro de maconha acesono prédio do arquiteto comunista

a alça da mira está em toda parteos fuzis e as metralhadoras em ação no Brasil

cover do Zappa no café Piu-Piu

a namorada sado

IV

Mafu visita a Liberdade

o iokai das drogas tem poderes

fumaça!surge uma neblina imensa pela madrugada

farinha!neva cocaína na cidade de São Paulo

um oriki para Mafu na página do livro!

uma pala o poeta gagoanuncia

[nasceu e mora em São Paulo-SP; poema do livro A musa chapada, em co-autoria com Ademir Assunção, Editora Demônio Negro, 2008]

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Marco Aurélio Cremasco (PR/SP)

URBANA

1.uma hora para nunca maisé daqui a pouco ou jamais?

2.a cidade brilhana face caipira

cintila ilhasde fantasia

sorri sereiaao náufrago

encantado

em cimentocal areia

3.a pedra na estradaespera o ventopara se ver talhada

o dia assima noite inteira

a rua do silênciocontinua iluminada

4.a noite tecelabirintosno vão de estrelasa cidadeem vãoanoitece

5.compêndio noturno:o guarda-roubasorriso da ladra

o idílio soturnoda luz pastelofusca o sol

madrugadaconta pagarestaurante chinês

hora de irrecomeçar pela camao dia por ter

6.o sol anunciacomeço fimde mais um dia

a luz (se) revelaintervalo das trevas

�.meninos meninasratos ratazanas

gárgulasanjos grotescos

povoam esgotosda cidade barroca

8.meninos apanhamdetritos no lixo

chaminés elevamglórias a Deus

9.praça guardada

pastorlivro sagradopalavras profanas

cristo mendiga saláriona greve dos bancários

10.os pombos colhemnos bicos cálidosas chagas dos inválidos

os seres exatosequacionam o trajeto inesperadodos vôos rasantes

sobre logradouros e logrados

11.são cidades homensalternadosnos esquifes berçários

a noite guardaresquíciosda manhã

seria tudo issonosso delírio?

12.não escravizem o soldeixem-no vadiar em nossos rostosenquanto passeamos despretensiosospelas avenidas desta cidade poluída

prendam-me se quiseremmas deixem liberto o solpara que no mínimo acaricieas mentes vadias desta cidade sem sal

[nasceu em Guaraci-PR e mora em Campinas-SP]

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Claudio Willer (SP)

Na cidade

1

SEMPRE

Cruzo todas as vias paralelas deste bairro e passo por esquinas atentas. Prossigo em direção ao Sul: é sempre para o Sul, seja para qual direção for. Um simples Santo Amaro, este é o último destino da vez, mas, ainda assim, sensação de perda, de que nunca chegarei a lugar algum ao passar por tantos lugares (todos) onde já estive (sempre), no automóvel que segue vagaroso, quase reverente: o automóvel é o navio fantasma, sou o personagem lendário, e sigo ladeado pelos tripulantes perdidos no tempo. São meus, estes fantasmas que me acompanham. Mas o itinerante é belo.E o poema de hoje à tarde, de há pouco, de agora será perfeito,pois navego. Singro. Sempre em direção ao Sul. (este poema é hermético)

2

HÁ POUCO

O centro velho de São Paulo me aparecia belo. O Largo São Bento, as copas das árvores convertendo-se em silhuetas de sombra que avançam sobre a fachada europeia do mosteiro à luz de fim de tarde. A Rua Florêncio de Abreu e seus casarões banhados em claridade crepuscular, um trecho familiar, agora diferente, como se repentinamente revelado.Admirava a sossegada beleza de amplas salas de escritórios em prédios velhos, como se as visse pela primeira vez.Há uma doce luminosidade nos lugares de onde se vai partir.A terna beleza das despedidas.O que fica para trás, o que nunca mais será visto, tinge-se de claridade.Ganha a solenidade das derrotas, um ritmo mais pausado que pulsa no que ainda não é morte, ainda não passado, apenas iminência suspensa em seu instante. O quase fantasma, por pouco não sombra, que agora enxergamos melhor, este a um passo do passado, ainda vivo em seu último relance.Retorno ao largo. A cidade acabou de anoitecer, etapa em sua rota para deixar de existir.

[nasceu e vive em São Paulo-SP; poema de Estranhas experiências e outros poemas, Lamparina, RJ, 2004; mais em http://claudiowiller.wordpress.com/]

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Enzo Potel (SC)

ITAJAÍ-AÇU

Parece que foi ontemque a grande enchentecobriu a cidade de Ilhotaquase que totalmente.

E como se nadativesse acontecidoinúmeras casinhasvoltaram a floresceràs margens do rioItajaí-Açu.

O Ser-Humanonão se represa.

A CAMINHO DE CABEÇUDAS

O velho pescador espera de boca abertaque alguém compreas secas mandíbulas de tubarãopenduradas na varanda de sua casa.

FLORIANÓPOLIS

Florianópolis dariaum filme de faroeste!

Daria.

Por enquantoFlorianópolisé só um desertocom uns terminais de ônibus.

SÁBADO EM SãO PAULO

Praça da Liberdade:

comida boae baratas.

SALVADOR

Acho que alguns baianosnão sorriram com a minha presençaafim de evitar que o localficasse demasiado branco.

A arrogância é uma massa frita em azeite de dendêentregue pelas mãos de abafadas senhorascomo serpentes dentro de um cestonas ruas e nas praias.

Também meus péslavados gratuitamente por meninos descalços.Eu não pedi. Eu não vim aqui para passearnesse Mercado Modelo de confusão entre o masoquismo da subserviênciae a alforria da vingança.

Meu Deus... a vingança.O que me resta?Levar para casa o cartão postalde um elevador.

[nasceu e mora em Itajaí-SC; poemas do livro Cura, editora Nova Letra, Blumenau, 200�; mais em http://www.pagina3.com.br/coluna/emergencia]

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Wilmar Silva (MG)

cachaprego

opunahlpontalm de parapanema que avança lá para omeiodocerrado oscamposmais íbridio apaz aredos rumanm pelso mil invaernos nas árovaresa e naslajes mais nvesve elargaas e vastas as hélicess ezauridas de tantoscavlagar visiavsis a átimos eos pendões que aepnas preás que arrãsfecem o perfumepreto de micosfugidos que dançam nos cipós de anéis invi zíveis pêsegos que despendcam a um jaú uns juás e a um jacu na enchãorrada uns loboz e suaszebras de ânagulos agateados noquadrantes negros um balaiaofurado de pêsegos para dardos afendas para cães asóse famintos a esmnos nas latassujas pelasquinas de opalas que uns corcéis escurecem os rumos pardacentos e mesmoa gora com as unhas gsrandes e os pés em nódoas de folhas de bananas que severm também para v estir o meu sono do frio e abraza o cicio da chuva e meu cio sem lontra debaixo de pausfrontais que me protejem das corolas de rosas e coroas de véuntos que vem de longe para os confisn contidos a contíguas frechas de mãos que apazcentam meus cabeloscaídos pela testa e pelos ombros sem escoras

[nasceu em Rio Paranaíba-MG e mora em Belo Horizonte-MG; mais em http://www.cachaprego.blogspot.com/]

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Régis Bonvicino (SP)

MORADORES

Na ponta do túnel,numa de suas saídaspara a avenida de edifícios altos,onde há um canto,pintado na paredeum detalhe de Retirantes de CandidoPortinari, óleo sobre concretosem lâmpada no teto,os carros transitam sem parara mãe e seu bebê sentadosnuma caixa de madeiraao ladoum pescoço demanequim feminino decepado –um volume cinzacinza talvez da tinta da caveira do bebêno colo da mãe decoraa sala de visitas ao meio-diaum sofá, real, verdadeiroum par de caixas feito de cadeirae mesa ao mesmo tempoonde se compartilha monóxidode carbono, aqui, um homem vadiose dedica ao óciopassageiros dos carros atirampontas de cigarrona calça jeans e na blusa rosapenduradosnas tábuas soltas de um armáriovaraisa lua cheia no quadro,outra caveira, no colo do pai?

RASCUNHO

Pauladas não há palavrasmorto a pauladas não há palavraspara dizer mortoa pauladas

matar a pauladasum mendigo e seus utensíliossacola, cobertor e calçadamorto a pauladas

a lua em quarto minguanteverganuvens ásperas encarneiradasenquanto isso aqueles que

se locupletam com o casosem pistasnão há palavrasmorto a pauladas

a corda no pescoço?de manhã – poça de sangue – feridas na cabeça

e no rostonão há palavrasmorto a pauladasnão tem conversa não

[nasceu e mora em São Paulo-SP; poemas de Página órfã, Martins, 200�; mais em: www.sibila.com.br]

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Marco Vasques (RS/SC)

ELEGIA URBANA 3

dos homens que abrem valetas na rua onde serão enterradas suas próprias carnes no esgoto jamais estancadoaberto pelos braços agora amputados

tudo isso e muito mais a imagem daquela cadeira de rodas vazia sob a árvore da praça

onde crianças riam nas gangorras de ferroque mais parecia um pátio de hospitalou mesmo o inferno

e eu que saí de casa de olhos vendadosvi tudo isso e muito mais

[nasceu em Estância Velha-RS e mora em Florianópolis-SC; poema de Elegias urbanas, Bem-Te-Vi, 2005; mais em http://www.poetasnosingular.com.br]

Descontente com todos e descontente comigo, bem gostaria de me resgatar e me orgulhar um pouco no silêncio e na solidão da noite. (Charles Baudelaire)

caminhei mais duas horas de meudia com o pensamento e olhar naquela cadeira de rodas que atravessa a rua autômata e sem sangue e sem riso no espaldar de ferro um botão substitui o caminhar de quem um dia sentou no seu estofado

e eu que saí de casa de olhos vendadosvi homens tristes nas esquinase mulheres baratas à minha esperae seios tatuados com cifras de todos os dinheiros dependurados em fios elétricos prontos para o choque dos corpos suados

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5�

Reynaldo Damazio (SP)

URBANIDADE

Estas ruas não me dizemnada, sua afetada urbanidade,ou mesmo a sofrida deserção;não há caminhos que me cruzem ou que conformemuma sintaxe para discursosde boa ação, do compromisso com a miséria das intenções,ou com o oco dos atos políticos;

sinto uma triste indiferença aolabirinto estético, pretensamenteestético, das ruas, porque nãoreflete outra coisa senão odesprezo por qualquer sinal devida, de festa, do trânsito gratuitode interesses, do exercício deuma improvisada cidadania;

ruas mortas para toda estripulia,inúteis para sensações, sujas demetais pesados, de consciênciadoente e arredias ao mistério de transeuntes sem meta, do comérciosem público-alvo, da prostitutaque cantarola um tango argentino;

o corpo que se dissolve na esquina,a pele que se ressente do asfalto, avoz que se cala diante do alto-falante: detalhes que as ruasengolem e não metabolizam,porque estão planas e bemalinhadas com as lixeiras coloridasde reciclagem – sua maior ambiçãoé reciclar, voilà, o espírito do andarilho que se entrega a pauladase queimaduras, em purificadoraimolação: – Por nós!, alguém dirá.

PROJETO PILOTO

de olhos no concretotão vasto e certoparece a cidadeprenhe do desacerto

vias perfeitas dediálogo duroentre o corpo e seu impuro logos

sábio plano quepetrifica espaçosdesplanifica acasosmistifica casas

frio concretoincomunicável e retomolda-se na ânsiade panteão eterno

mausoléu do poderou museu do ser?nada sobra sobas linhas do saber

cidade-casulo cravadaem informe históriagesta do traço eseus deuses obscenos

morada de gêniosingênuos, estesmóbiles-embrião nasmalhas do desenho

[nasceu e mora em São Paulo-SP; poemas dos livros Nu entre nuvens, Ciência do Acidente, 2001, e Horas perplexas, Editora 34, 2008]

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Dirceu Villa (SP/Londres)

BAIRRO DORMITÓRIO

Viemos dormir algumas horasChegamos com malas de plástico repletas de tranqueirasE a cabeça repleta de cervejaZonzos, rimos e trombamosNão se assuste: os perigosos vão de carroPor quatro horas rolaremos nos beliches empilhadosQuartos quentes como fornos, nem há como tomar banhoUns disfarçam na torneira e um pouco d’água nos sovacosEnquanto fumam seus cigarrosMas isso não é regraNos ônibus nós dormimos de manhãE cheiramos mesmo a álcool e suor: os nossos sonhosAcertam os cidadãos nos ombros ou as janelas ensebadasOnde a luz baça e preguiçosa da manhã nos fere os olhos de amareloMas temos braços fortes e boas pernasPra juntar a bugiganga que o meganha quer garfarE sebo nas canelas.

PRECISA-SE DE COZINHEIRO COM PRÁTICA

Que ele, de qualquer forma, faça aqueles ovos estalados,sunny-side up, como os dois olhos de Hélios boiando no óleo,nas ruas do centro velho fedendo a urina.Não são portas de castelo aquelas paredescom rochas enormes, espessas, onde num cubículoestão os caras trabalhando em algo gorduroso;ou um grupo de senhoras magras e suadascom o cabelo preso e óculos, cigarro na boca,costurando sentadas em filas nas máquinas Singer.É duro fazer aquilo, quer dizer, elas parecem absortas num contorno preciso.E a nuvem cinzenta que pairacomo em mesas ensebadas de baralho, é claro, não ajuda.Que o cozinheiro saiba torturar lingüiças na chapacomo os diabinhos fazem com as almas perdidasem qualquer Juízo Final de painéis medievais.Sabe sim. Com olhos sorrindo no rosto pespegadode gotículas de suor, ele vira e diz:Tá um inferno aqui, chefia.

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FESTIVAL DAS ESTRELAS, BAIRRO DA LIBERDADE

Os postes de luz, caules vermelhos e esguios,terminam em lâmpadas com o sinuoso desenhoque lembra um brinco-de-princesa;

carrego um casaco e olhamos para o altoquando o vento dá vida a inúmeras fitas coloridasem que ouvimos o brilho das estrelas.

CãES JARDIM EUROPA

passear a extensão do punhoum cão a extensão da forcaum adorno animal à cobiçasenhoras a virilidade sob laço

ávido verde e calçadas lavadaslojas de carro ternos feios escurosóculos escuros e cães resfolegando

um desfile de dentes de ferrosorrindo nos portões de famíliasque vendem tudo (mesmo?)

a extensão do punho tem dentese baba de sede sob o sol doente.

[nasceu em São Paulo-SP e mora em Londres, Inglaterra; mais em http://odemonioamarelo.blogspot.com/]

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Poeta de Meia-Tigela (CE)

HISTÓRIA COSMOLÓGICA DO BOI Para Rosemberg Cariry

O Boi – quem não viu, Não sabe o que é bom. Melhor que bombril, Melhor que bombom.

1. O BOI ORIGINAL

No princípio dos tempos, ArimãNão dominava tudo com Seu Mal.Mas logo procurou difundir CaosMatando o Homem Perfeito e à Terra sã.

Esse malvado amigo de Satã Deu fim mesmo no Boi Original.Nem grão de açúgar nem pedra de sal,Ninguém restou, adeus linda manhã.

Opa, aguardem que o Bem já se revoltaPrometendo estar em breve de voltaDo Boi salvando os restos, o cadáver.

Donde nascerão belas Terras outrasE homens bonitos como Jão Travolta,Mulheres maravilhas, Avas Gardners.

2. O BOI DE MITRAS

Coisa que se mistura e expande é Mito.Deu que na Roma Antiga existiu Mitras,Deus da luz e do sol que sacrificaO Boi para que deste surja muita

Coisa que se misture e expanda, mirtos,Flores, brotos, Vida em todo milímetro.Eis que Hades sobe ao mundo com MinistrosE instaura a Dor em dose tripla, aos litros.

Mitras e Hades farão guerra entre sisE há de ser catastrófico o conflito,Antecipadamente apocalíptico.

Um Touro virá como jamais viPara dar fim ao Reino do Sinistro,Assegurando a Paz: com Chifre e Cetro.

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3. O BOI-BUMBÁ

Todo o Universo cabe no Nordeste.Se não fosse heresia, diria euSer o Nordeste até maior que Deus(Calo, pois temo qu’Este me moleste).

Também aqui o Boi, aquele AncestreAvivou e depois desfaleceu.Catirina pediu e o bom MateoO matou e trinchou. Ora, acontece

Que o dono protestou, fez escarcéu(Com razão já que o Vítimo era seu).A poder de orações, cantos e preces,

Bumba!: a carne do Bicho revivesceVirando o que era susto em grande festa.Agora O relembramos sempre em êxtase.

4. O BOI MANSINHO

Estava me esquecendo de contar-lhesO caso do Boi-Santo, o Boi MansinhoMandado de presente ao meu PadinhoCiço e cuja presença era de talhe

Tal, que José Lourenço pôs-se a dar-lheAtenção devotada e aos bocadinhosFoi-lhe enfeitando os chifres, o focinho,O lombo, os bagos, sem deixar detalhe

Do Zebu descoberto de bentinhos,Mais parecendo um nobre de Versalhes:Tanto que antes que o culto mais se espalhe

Floro Bartolomeu manda cortar-lheO corpo em pedacinhos, finos talhes —Mas Ele encarna em cada bezerrinho...

[nasceu e mora em Fortaleza-CE; mais em http://opoetademeiatigela.blogspot.com/]

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Fabiano Calixto (PE/SP)

A CANÇãO DO VENDEDOR DE PIPOCAS Para Angélica Freitas

em frente aoBanco de La Nación Argentinao vendedor de pipocasda avenida Paulistadesvenda os mistérios do Honda prataque passa lentamente, soberbo(“coisa mais sem gente!”)pensa na noite crônica no organismoda tiazinha de vestido florido (ondepredomina o ruivo)agora assobia e coloca milho na panelaos estouros acordam a minha fome(no El PaísEl presidente apuesta por las políticasa favor de los “más olvidados”y “los que pueden menos” –risco outro fósforo, acendo outro cigarro,outra melodiafrustrated incorporated)quando chega o outro, de bicicletanoticiando o acidente na Rebouças(“foi feio pra caralho, mano!”)logo envelopa a fala, se calaa chuva recomeça sua cantilenapreciso das horas, mas não encontro meu celularuma moça linda (ensopada) páraem frente a mim,balbuciacan you help me remember how to smile?silencio e miro a placa brilhanteque traz o nome do meu amor– imagino que as canções de Bob Dylanexistam para nos fazer suportar diascomo este – acidade se altera, oxida dealteridade e acídia(La Contenta Barestá muito muito longe ea noite passadavocê não veio me ver

UMA OUTRA MANHã EM SANTO ANDRÉ Para Marcos Moraes

sem índice, eu dissea mim mesmo,que esclareçaa delicadeza azedaque elide umasílaba deixandouma ciladasemântica

se porventuraaquele homem-sanduíchenão caísse desmaiado de fomesobre a geometria vivado calçadão de Sacilottoque outro assédio escrotonos visitarianesta manhã de sol libidinoso,enquanto tramam no planalto centraloutro (e outro) assalto?

na abrupta seqüênciade trevasOffrant à la gloire de DieuLe triomphe de ma tristesse...– e à esta cidade (provínciacheia de ridículos dedos),um remorsovagabundo – estas mãos inclassificáveis (queandam freqüentandopoemas e acácias)

(muitos metros acimados imponentes sacos de lixoentre gigantescas janelas azuislimpíssimas e adolescentes consumindococaína e coca-cola, a vertigem:gárgulas, pestes e plumas)

[nasceu em Garanhuns-PE e mora em São Paulo-SP; poemas do livro Sangüínea, Editora 34, 200�; mais em http://revistamododeusar.blogspot.com/]

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Joca Reiners Terron (MT/SP)

O grande estômago rangecomo caminhõesna planície, gado mugindoao matadouro

O sol se afogana mistura de água e plantasdo Pantanal: deliro?

O sol se afogou.Ouro torrando emas sucuris sshhhhhh

E então,quando ouvirei

de novo

o ronco do motor duma cidade,

um pneu opressorsobre meu

peito?

ESTRELAS MORTAS SOB BOTAS DE COWBOY

Sei das malditasalturas acachapadaspor céus imensos

acobertadas pelasestrelas invisíveissempre rugindoseu eterno murmurarnoturno e audível

Ainda assim, me perguntocomo pude teros sapatos atoladosna lama vermelha dos solosdo sul, que engolem tudoe devolvem na forma de camposde soja, polígonos vistos das rodovias?

Medos ulcerososme morderãoa fronte: (Hugomastiga – a oeste, Mato Grosso)

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CINE PIVA

O correr dos olhos velozes se escondeem vestidos negros, bocas rubroluzentescom cigarros nos cantos.

À meia-noite são abertasas portas do zôo da cidade.

Largos são invadidos por pastores com ternospequenos demais acompanhados por missionáriosex-gays prestes a morrer de gestosexagerados e políticos pederastasencaçapando apáticos punks para suasempapadas e desesperadas noitesde suor áspero.

Numa parede lateral do Pátio do Colégiohá uma passagem para a Praça do Árabede Ouro em Veneza. Nas madrugadas chuvosas,São Marcos estica o pescoço para fora econfirma se despistou os estranguladoresenviados por Abraxas.

[nasceu em Cuiabá-MT e mora em São Paulo-SP; mais em http://jocareinersterron.wordpress.com/]

Eles o mataram em Alexandria, no Egito.O evangelista retorna entãoà sua novela na tevê.

Marylin permanece sorrindo na coluna doElevado, enquanto placas de neon e gotas iluminama noite. Um mendigo a ama.Agora ela está feliz.

A cidade: Vida que Vegeta.O nome da cidade: Boca de Lobo.

A lateral do ônibus mastodôntico projetaanúncios de pesticidas. Vultos velozesnos alambrados suturam os dorsos dos edifícios.Faróis de carros cruzam sinais. Vozesrápidas. O brilho elétrico e mágico da luz.

Não sai de cartaz esse filme sem público.

Uma rua inteira de cinemas fechados.

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BABEL PoéticaAno I, n.º 2 – abril/maio de 2011Copyright © dos editores e dos autores

BABEL Poética ISSN N.º 2179-3662 é uma edição especial de BABEL – Revista de Poesia, Tradução e Crítica, ISSN N.º 1518-4005, contemplada em 1.º lugar no Edital Cultura e Pensamento 2009/2010 do Ministério da Cultura para publicação de revistas culturais.

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IMAGENSDaniel Escobar detalhe de As Cidades e o Desejo, 2009 p. 2 www.danielescobar.com.brrEliana Borges p. 7, 10 Fábio Morais do livro Fábio Catador(Dulcinéia Catadora, 2011) p. 14, 51 http://fabio-morais.blogspot.com/ Elisa Campos da série Observatório p. 20, qualquer lugar lugar nenhum p. 33, 35, 37, 39 http://www.elisacampos.net.br Tales Bedeschi xilogravuras da série Onde começa o céu p. 24. www.talesbedeschi.blogspot.com Michel Zózimo da série Filatelia de Lugares Imaginários p. 28, 47, 63 Tony de MarcoSão Paulo No Logo p. 43. http://www.flickr.com/photos/tonydemarco/

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