anuÁrio publicista da escola de direito da universidade do minho. tomo i, ano de 2012

227
ANUÁRIO PUBLICISTA DA ESCOLA DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DO MINHO Tomo I, Ano de 2012 RESPONSABILIDADE E CIDADANIA ESCOLA DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DO MINHO DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS PÚBLICAS BRAGA 2012

Upload: glandrive

Post on 02-Mar-2016

216 views

Category:

Documents


4 download

DESCRIPTION

publicação científica do Departamento de ciências jurídicas públicas da Escola de Direito da Universidade do Minho

TRANSCRIPT

ANUÁRIO PUBLICISTA DA ESCOLA DE DIREITO

DA UNIVERSIDADE DO MINHO

Tomo I, Ano de 2012 – RESPONSABILIDADE E CIDADANIA

ESCOLA DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DO MINHO

DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS PÚBLICAS

BRAGA 2012

2

ANUÁRIO PUBLICISTA DA ESCOLA DE DIREITO

DA UNIVERSIDADE DO MINHO

Tomo I, Ano de 2012 – RESPONSABILIDADE E CIDADANIA

3

Título:

Anuário Publicista da Escola de Direito da Universidade do Minho – Tomo I, Ano de 2012

– Responsabilidade e Cidadania

Coordenação:

Joaquim Freitas da Rocha

Edição:

Departamento de Ciências Jurídicas Públicas

Escola de Direito da Universidade do Minho

Campus de Gualtar

4710-057 Braga

Telefone: 253 601 800 / 253 601 801

Fax: 253 601 809

e-mail: [email protected]

URL: http://www.direito.uminho.pt

ISBN: 978-989-97970-0-0

Data: Novembro de 2012

(*) Esta publicação segue as regras do novo acordo ortográfico, salvo indicação contrária a expressa

dos autores

4

Índice

A. SOFIA PINTO OLIVEIRA – Responsabilidade e cidadania ……………………………………………….….8

ANTÓNIO CÂNDIDO DE OLIVEIRA – O Estado, a Administração Pública e a Crise:

alguns apontamentos …………………………………………………………………………………………………………18

BENEDITA MAC CRORIE –O paternalismo estadual e a legitimidade da defesa da

pessoa contra si própria ……………………………………………………………………………………………………..33

FERNANDO CONDE MONTEIRO – Reflexões epistemológicas sobre a liberdade

enquanto possível pressuposto do agir humano e sua (ir)relevância para

a construção do jurídico………………………………………………………………………………………………………46

FLÁVIA LOUREIRO – As revistas e as buscas dentro dos poderes de atuação

das autoridades policiais e de segurança: a responsabilidade e

a cidadania no processo penal ……………………………………………………………………………………………69

ISABEL CELESTE M. FONSECA – Incertezas em torno do poder sancionatório

da Administração Pública: certezas em torno da fragilidade

das garantias do sancionado ………………………………………………………………………………………………83

JOÃO SÉRGIO RIBEIRO – A Debilidade do Direito de Participação Política …………………………106

JOAQUIM FREITAS DA ROCHA – Breves reflexões sobre responsabilidade colectiva

e finanças públicas ……………………………………………………………………………………………………………128

M. ASSUNÇÃO DO VALE PEREIRA – Os deveres do comandante e a sua

responsabilização à luz do Direito Internacional Humanitário ………………………………………….147

5

MÁRIO FERREIRA MONTE / MARGARIDA SANTOS – Posição, funções e responsabilidade

democrática do Ministério Público no modelo processual penal português

– algumas considerações…………………………….…………………………………………………………………….170

PATRÍCIA JERÓNIMO – A cidadania como instrumento de inclusão(Significado e

alcance da promessa de uma cidadania cívica da União Europeia)…………………………………...184

WLADIMIR BRITO – A cooperação transfronteiriça no domínio do meio-ambiente

(sic utere tuo ut alienum non laedas)....................................................................................218

6

Colaboram nesta publicação

A. Sofia Pinto Oliveira

António Cândido de Oliveira

Benedita Mac Crorie

Fernando Conde Monteiro

Flávia Loureiro

Isabel Celeste M. Fonseca

João Sérgio Ribeiro

Joaquim Freitas da Rocha

M. Assunção do Vale Pereira

Margarida Santos

Mário Ferreira Monte

Patrícia Jerónimo

Wladimir Brito

7

Nota de Abertura

O Departamento de Ciências Jurídicas Públicas – subunidade integrada na Escola de Direi-

to da Universidade do Minho – deliberou publicar uma obra de natureza científica, com

caráter de regularidade anual, seguindo padrões de elevada qualidade académica, e procu-

rando contribuir, assim, para a prossecução da missão estaturariamente consagrada à Uni-

versidade, designadamente no que concerne à difusão e divulgação do conhecimento.

Do ponto de vista subjetivo, trata-se de uma publicação aberta à participação de todos os

Docentes do Departamento e, no que concerne à abrangência material, aposta-se na diversi-

ficação de subdomínios científicos, captando-se contributos das várias áreas disciplinares

(Ciências Jurídicas Políticas, Ciências Jurídicas Administrativo-Financeiras e Ciências Jurídicas

Criminais).

O objetivo é claro: divulgar e sujeitar a apreciação crítica o produto do labor científico

juspublicista, com a consciência de que, apenas com submissão a publicidade e a escrutínio

geral, os resultados poderão ser reconhecidos como cientificamente elevados e socialmente

satisfatórios.

Trabalha-se assim no sentido de convergir para uma cada vez maior afirmação da Escola

de Direito da Universidade do Minho no panorama doutrinário.

Braga, novembro de 2012

Joaquim Freitas da Rocha

8

Responsabilidade e cidadania

A. Sofia Pinto Oliveira

Introdução

Aceitando o desafio que o Departamento de Ciências Jurídicas Públicas nos colocou de

reflectir e discutir o tema Responsabilidade e Cidadania, no quadro do Colloquium Iuris de

2011, iniciativa que o Departamento promove há vários anos, vimos publicar o texto que

serviu de base à apresentação que nele fizemos.

Não foi, para nós, muito claro, desde o início, qual a intenção que estava por trás da

escolha deste tema. No direito público, habitualmente, o instituto da responsabilidade é

referido como um “meio eficiente de defesa dos cidadãos, crescentemente onerados pelas

copiosas intervenções ablatórias dos poderes públicos”1. Porém, tal como nós o interpreta-

mos, o par “responsabilidade e cidadania” remete-nos para a temática da responsabilidade

cívica, em que os cidadãos não podem ser vistos apenas como potenciais vítimas de poderes

públicos, ameaçadores dos seus direitos, mas também como seres que respondem perante

o todo. O estatuto de cidadania não trouxe apenas direitos para os indivíduos e deveres para

o Estado. Trouxe também deveres para os cidadãos.

Breve abordagem histórica

A centralidade atual dos direitos que marca o nosso tempo (que Norberto Bobbio desig-

nou lapidarmente como A Idade dos Direitos2) contrasta com a centralidade dos deveres em

épocas anteriores.

A obra de Samuel Pufendorf é marcante e representativa daquilo que podemos chamar

Idade dos Deveres. Sobre os deveres do homem e do cidadão segundo o direito natural3 é

uma obra toda estruturada em torno de deveres e em que os direitos estão ausentes. Par-

1 GOMES CANOTILHO, O problema da responsabilidade do Estado por actos lícitos, Coimbra, Almedina, 1974,

p. 14. 2 BOBBIO, Norberto, L’età dei diritti, Turim, Einaudi, 1990.

3 Consultada em espanhol, PUFENDORF, Samuel, De los deberes del hombre y del ciudadano según la ley na-

tural, en dos libros, Madrid, Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2002.

9

tindo de uma antropologia pessimista – que considera o homem como um ser corrupto,

débil e não apto para viver só –, entende que a convivência humana exige a imposição de

deveres e obrigações de cumprimento inexorável. É pela observância destes deveres básicos

e universais que o ser humano se torna um ser útil na sociedade em que está inserido. A

sociedade implica uma renúncia à liberdade. Entre os deveres encontramos obrigações

voluntárias e outras que são impostas e deveres para com Deus, deveres para consigo mes-

mo e deveres para com os outros. Em síntese, os principais deveres para com Deus são pen-

sar correctamente acerca de Deus; conformar a nossa acção com a Sua vontade; os deveres

para consigo mesmo implicam cuidar do corpo com alimentos adequados, não abusar da

comida e da bebida; os deveres para com os outros consistem em não prejudicar ninguém4.

Esta herança dos deveres não foi repudiada no período liberal, quando os direitos emer-

giram e conquistaram espaço nas Constituições, tendo-se dado, através deles, a passagem

de súbditos a cidadãos. Os deveres também estavam presentes nas Constituições liberais.

Embora a sua concretização estivesse remetida para a lei, nisso não se distinguiam os direi-

tos e os deveres. O entendimento liberal dos direitos fundamentais era no sentido de que a

liberdade consistia em fazer aquilo que a lei não proíbe. Simetricamente, o dever consistia

em fazer aquilo que a lei impõe5.

Os deveres tradicionalmente consagrados nas Constituições liberais eram três: dever de

obediência à lei, dever de defesa da Pátria e dever de pagar impostos.

Na história constitucional portuguesa, encontramos na Constituição vintista um exemplo

expressivo desta atenção aos deveres, particularmente, no seu art. 19.º:

“Todo o Português deve ser justo.

Os seus deveres são venerar a religião, amar a pátria, defendê-la com as

armas, quando for chamado pela lei; obedecer à Constituição e às leis;

respeitar as Autoridades públicas; e contribuir para as despesas do Esta-

do”6.

4 RUFINO, Salvador Rus, “Estudio preliminar”, em De los deberes des hombre y del ciudadano según la ley na-

tural, en dos libros, Madrid, Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2002, p. XLIII. Ver ainda sobre Pufen-

dorf, HESPANHA, António Manuel, O Caleidoscópio do Direito – o Direito e a Justiça no mundo de hoje, Coimbra,

Almedina, 2007, pp. 384-385. 5 “A liberdade consiste em não serem (os Portugueses) obrigados a fazerem o que a lei não manda, nem a

deixar de fazer o que ela não proíbe” (Constituição de 1822). Ver sobre os direitos no período liberal HESPANHA,

António Manuel, Guiando a mão invisível – Direitos, Estado e Lei no Liberalismo Monárquico Português, Coimbra,

Almedina, 2004. 6 Também a Carta Constitucional de 1826 previa, no seu art. 113.º e no art. 145.º, § 14, os deveres de defesa

da Pátria e de contribuição para as despesas do Estado, na proporção dos seus haveres e, ainda a este último,

encontramos referência no art. 24.º da Constituição de 1838.

10

Esta mesma tradição marcou as Constituições do início do século XX, entre elas avultan-

do, em particular, a Constituição de Weimar, que, na parte segunda, coloca os direitos e os

deveres fundamentais dos alemães em posição de paridade. A doutrina alemã acentua, no

entanto, que se tratava apenas de uma situação aparente, de um “equilíbrio formal” (for-

melles Gleichgewicht)7, pois aos deveres incluídos no catálogo não se atribuía eficácia jurídi-

ca nem se lhes dava tratamento doutrinário equivalente ao que era dispensado aos direi-

tos8.

No século XX, as experiências totalitárias de aniquilação dos direitos individuais contri-

buíram para a reafirmação vigorosa dos deveres, colocando os direitos subjetivos numa

posição subordinada àqueles – o chamado fenómeno de funcionalização dos direitos, que

teve expressão bem evidente nas Constituições dos Estados socialistas, em que havia uma

incindibilidade dos direitos e dos deveres, que enfraquecia os direitos, funcionalizando-os,

condicionando-os, dirigindo-os para um fim pré-determinado: o fortalecimento do socialis-

mo9.

Também entre nós, na Constituição de 1933, em particular nos enunciados relativos à

opinião pública e à imprensa (arts. 20.º e 21.º, respectivamente), se reflete essa ideia de

liberdades funcionalizadas ou, pelo menos, orientadas para um fim.

“A opinião pública é elemento fundamental da política e da administra-

ção do País, incumbindo ao Estado defendê-la de todos os factores que

a desorientem contra a verdade, a justiça, a boa administração e o bem

comum” (art. 20.º).

Os textos constitucionais que sucederam a estes regimes autoritários, em reacção ao

desprezo pelos direitos, ignoraram – ou, pelo menos, menorizaram – os deveres. Essa omis-

7 Ver, neste sentido, RANDELZHOFER, Albrecht, “Grundechte und Grundpflichten”, em Handbuch der

Grundrechte in Deutschland und Europa, Heidelberg, C.F.Műller, 2006, pp. 597-599. 8 Na obra organizada por ANSCHŰTZ, Gerhard e THOMA, Richard, Handbuch des deutschen Staatsrecht, Bd. II,

1932, em particular nos artigos de SCHMITT, Carl, “Die Grundrechte und Grundpflichten des deutschen Volkes” e

de THOMA, Richard, “Das System der subjektiven őffentlichen Rechte und Pflichten”, apesar de os deveres inte-

grarem os títulos destes contributos para aquela obra, as referências que lhes são feitas são apenas marginais. 9 O art. 59.º da Constituição da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas é bem ilustrativo desta ligação

entre direitos e deveres, “O exercício dos direitos e das liberdades dos cidadãos é inseparável do cumprimento

dos deveres e das obrigações”. Ver sobre a matéria, entre nós, em termos claros e sucintos, CABRITA, Isabel,

Direitos Humanos. Um Conceito em Movimento, Coimbra, Almedina, 2011, pp. 155-157.

11

são compreende-se pela necessidade de “exorcizar um passado dominado por deveres, ou

melhor, por deveres sem direitos”10.

A mesma tendência é visível nos instrumentos internacionais que definem o estatuto

jurídico-internacional do indivíduo. Assim, no art. 29.º, n.º 1, da Declaração Universal dos

Direitos do Homem, afirma-se que “O indivíduo tem deveres para com a comunidade, fora

da qual não é possível o livre e pleno desenvolvimento da sua personalidade”11. No cinquen-

tenário da Declaração Universal dos Direitos, em 1998, foi preparada uma proposta de

Declaração Universal dos Deveres Humanos, sob os auspícios da UNESCO, e esta foi solene-

mente proclamada em Valência, mas nunca chegou a alcançar um estatuto próximo dos

instrumentos dedicados à protecção dos direitos humanos.

No Direito da União Europeia, as referências aos deveres são também parcas12, sendo a

referência aos deveres na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, mais uma

vez, apenas preambular, muito embora traduzindo uma síntese contemporânea dos diver-

sos destinatários dos deveres no século XXI:

“O gozo destes direitos implica responsabilidades e deveres, tanto para

com as outras pessoas individualmente consideradas, como para com a

comunidade humana e as gerações futuras”.

No que diz respeito à Constituição Portuguesa de 1976, não pode da leitura do seu texto

concluir-se que os deveres fundamentais sejam invisíveis13.

A epígrafe da Parte I, Direitos e deveres fundamentais, à semelhança da Constituição de

Weimar, coloca numa posição de paridade ambos os elementos do estatuto de cidadania e

encontramos depois uma série de referências aos deveres, umas mais genéricas – arts. 12.º,

13.º, n.º 2, 14.º, 15.º, n.º 1 – outras mais concretas, a deveres específicos – arts. 36.º, n.º 5,

64.º, n.º 1, 66.º, n.º 1, 78.º, n.º 1, 88.º, n.º 2, 103.º, 113.º, n.os 2 e 4, e 276.º.

10

CASALTA NABAIS, José, “A Face Oculta dos Direitos Fundamentais”, em Por uma Liberdade com Responsa-

bilidade – Estudos sobre Direitos e Deveres Fundamentais, Coimbra, Coimbra Editora, 2007, p. 166. 11

O Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional dos Direitos Económicos Sociais

e Culturais, ambos adoptados e abertos à assinatura, ratificação e adesão pela resolução em 16 de Dezembro de

1966, têm o mesmo Preâmbulo, em cujo quinto e último considerando pode ler-se: “Tomando em consideração

o facto de que o indivíduo tem deveres em relação a outrem e em relação à colectividade a que pertence e tem a

responsabilidade de se esforçar a promover e respeitar os direitos reconhecidos no presente Pacto”. 12

Fausto de Quadros chama a atenção para o facto de os Tratados afirmarem que o estatuto da cidadania da

União se desdobra em direitos e deveres, mas as respectivas normas só enunciam direitos e expressa a necessi-

dade de no futuro se vir a proceder à “enunciação clara dos deveres incluídos no estatuto de cidadão da União”,

em Direito da União Europeia, Coimbra, Almedina, 2004, p. 122-123. 13

Ao contrário do que se afirma em relação à Lei Fundamental Alemã, ver, sobre esta, RANDELZHOFER,

Albrecht, “Grundechte und Grundpflichten”, em Handbuch der Grundrechte in Deutschland und Europa, Heidel-

berg, C.F.Műller, 2006, p. 604.

12

Os deveres fundamentais não estão, pois, implícitos na Constituição Portuguesa. Estão

explícitos e bem visíveis. Não são em número comparável com os direitos fundamentais,

mas são em número significativo.

Esta presença dos deveres fundamentais foi até considerada excessiva por alguns auto-

res. Foi o caso de Lucas Pires que, na sua tese de doutoramento, defendeu que os direitos

estavam colocados numa posição de reciprocidade em relação a deveres simétricos e que tal

facto constituía:

“uma anomalia, em relação à concepção liberal, pois, nessa reciprocidade, vai

logo indiciada – e à cabeça – uma ‘essência social’ do indivíduo, na esteira de

uma legenda típica da cosmovisão mais socializante”14.

Apesar destes sinais de alguma controvérsia inicial em torno da ideia de deveres, muito

marcada pelo “trauma” da funcionalização dos direitos, hoje o reconhecimento de deveres

fundamentais pela Constituição é um aspecto razoavelmente consensual. Havendo embora

autores que omitem qualquer referência à ideia de deveres – ou que se limitam a uma refe-

rência marginal –, entre aqueles que se referem especificamente ao problema dos deveres

fundamentais, há um consenso quanto à importância da figura e quanto à veemente recusa

de uma interpretação que use os deveres como meio de fragilização dos direitos ou de fun-

cionalização dos mesmos para uma finalidade socialmente definida15.

Face a esta constatação, surpreende a circunstância de a jurisprudência – sobretudo a do

Tribunal Constitucional – se referir tão raramente a deveres fundamentais, não nos tendo

sido possível encontrar nenhuma decisão em que um dever tenha sido usado como funda-

mento decisório determinante e sendo muito poucos os acórdãos em que os deveres são

invocados como elementos adicionais de ponderação.

Tanto quanto nos foi possível averiguar, as parcas referências aos deveres fundamentais

relacionam-se com o dever fundamental de pagar impostos (implícito no texto constitucio-

nal16) e com o dever de educar e manter os filhos17.

14 LUCAS PIRES, Francisco, Teoria da Constituição de 1976 – A Transição Dualista, Coimbra, 1988, p. 341.

15 Neste sentido, GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª ed., Coimbra,

Almedina, 2003, pp. 533 e segs., VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de

1976, 4.ª ed., Coimbra, Almedina, 2009, pp. 159 e segs., e MIRANDA, Jorge, Manual de Direito Constitucional, 4.ª

ed., Coimbra, Coimbra Editora, 2008, pp. 85-86. Casalta Nabais tem-se dedicado com particular empenho ao

estudo dos deveres fundamentais e defendido a importância da figura e de se voltar a olhar para essa “face

oculta” dos direitos, que inclui os deveres fundamentais e os custos dos direitos. 16

Ver, sobre este, CASALTA NABAIS, José, O Dever Fundamental de Pagar Impostos – Contributo para a com-

preensão constitucional do estado fiscal contemporâneo, Coimbra, Almedina, 1998. Este vem, por vezes, referido

em acórdãos do Tribunal Constitucional em que se discute o sigilo bancário, explicando-se que as excepções a

13

A importância dos deveres fundamentais

Que importância deve ser reconhecida aos deveres e à sua consagração constitucional?

Precisamos dos deveres enquanto categoria constitucional autónoma?

Não são suficientes os direitos e os deveres que estes geram na relação entre os cida-

dãos?

Em nosso entender, precisamos de deveres.

E precisamos também de um discurso claro que dê visibilidade aos deveres e de um novo

horizonte para os deveres.

A cidadania reforça-se por um estatuto activo do cidadão que cumpre deveres e exige

respeito pelos seus direitos. Uma cidadania da qual só resultam direitos individuais accioná-

veis, exigíveis perante o outro e perante o todo, o Estado, é uma cidadania incompleta. Uma

Constituição que contemple apenas direitos e retire dignidade constitucional aos deveres,

esta protecção da esfera pessoal visam salvaguardar “o bem constitucionalmente protegido da distribuição equi-

tativa da contribuição para os gastos públicos e do dever fundamental de pagar os impostos” – Acórdão

602/2005, de 2 de Novembro, relatado pelo Conselheiro Bravo Serra, e Acórdão 672/2006, relatado pelo Conse-

lheiro Paulo Mota Pinto. Nestes, o dever fundamental aparece como complemento, um reforço ao lado de um

bem jurídico objectivo, a necessidade de obter receitas de modo equitativo. 17

Nas referências ao dever fundamental de manutenção dos filhos, consagrado no art. 36.º, n.º 5, da Consti-

tuição, salientam-se os Acórdãos 306/2005, de 8 de Junho, e 407/2010, de 9 de Novembro, relatados pelo Conse-

lheiro Vítor Gomes e pela Conselheira Maria Lúcia Amaral, respectivamente. A referência ao dever fundamental

na fundamentação do primeiro Acórdão não parece ter sido, no entanto, determinante para a decisão que veio a

ser adoptada sobre a eventual inconstitucionalidade de uma norma do regime da Organização Tutelar de Meno-

res que, em relação aos progenitores cujo rendimento se limitava a uma pensão social de invalidez, não determi-

nava um montante mínimo de rendimento isento. No seu voto de vencido, a Conselheira Teresa Pizarro Beleza

chama a atenção precisamente para o facto de a referência ao dever fundamental não ter sido relevante na

ponderação feita pelo Tribunal entre o direito ao mínimo de subsistência do progenitor e o direito à pensão de

alimentos do(s) menor(es): “Votei contra a tese da inconstitucionalidade que fez vencimento, no essencial, por-

que entendo que, no conflito entre dois direitos de igual natureza, não pode fazer prevalecer-se o direito do

titular que, simultaneamente, está adstrito, como se escreveu no acórdão, ao “dever fundamental (...) de cujo

feixe de relações a prestação de alimentos é o elemento primordial”. Se bem entendemos o sentido desta decla-

ração, ela significa que, muito embora o Tribunal reconheça a existência do dever, na ponderação sobre o confli-

to de direitos, não atribui nenhum significado à circunstância de esse conflito ser não apenas entre dois direitos

fundamentais, mas nele intervir também um dever fundamental, o que, tendencialmente, faria pender a balança

para o direito dos filhos à pensão de alimentos que concretiza o dever dos pais à sua manutenção. Ainda sobre

os deveres dos pais relativamente aos filhos, mas na vertente de dever de educação dos filhos, no Acórdão

407/2010, vai-se um pouco mais longe, a nosso ver, na importância dada aos deveres fundamentais como crité-

rio adicional de ponderação da questão concreta de constitucionalidade em apreço, pois entende-se que a subs-

tituição do regime de regulação do exercício do poder paternal pelo regime do exercício conjunto das responsa-

bilidades parentais é a melhor forma, da perspectiva do legislador, de conformar “o dever fundamental de edu-

cação dos filhos, impendente sobre os pais e inscrito na norma constitucional”. Na fundamentação do acórdão, a

nosso ver, o direito de educação aparece subalternizado relativamente ao dever de educação, contrariando,

assim, a perspectiva de que, nos deveres “coligados” associados aos direitos fundamentais, há, necessariamente,

um primado do direito face ao dever.

14

relegando-os para o plano legal, é uma Constituição que transmite uma imagem desequili-

brada do que significa ser cidadão, do feixe de direitos e de deveres em que se analisa o

estatuto constitucional dos membros de uma dada comunidade política.

Entre os deveres dos cidadãos podemos distinguir deveres cumpridos através do Estado

– entre os quais sobressaem os deveres clássicos de defesa da Pátria e “dever de capacitar a

República – por meio do pagamento de impostos – para socorrer os mais carenciados” e

para realizar as demais tarefas estaduais – e os deveres fundamentais em relação a outros

cidadãos, entre os quais se destacam os deveres que existem entre familiares próximos (dos

pais para com filhos, nos termos do previsto no art. 36.º, n.º 5, da Constituição Portuguesa).

Estes não são, no entanto, os únicos.

Tem vindo a ser reconhecida a necessidade de ir além deste horizonte e reconhecer a

existência de deveres mesmo perante desconhecidos, deveres “pessoais de solicitude, de

cuidado pelo Outro”18.

Amartya Sen sublinha, na sua obra A Ideia de Justiça, a importância dos deveres, destas

“obrigações imperfeitas”, salientando que:

“na especificação dos deveres sempre poderemos encontrar uma grande mar-

gem de variabilidade, senão mesmo uma ambiguidade. No entanto, a presença

numa ideia de uma certa dose de ambiguidade não é razão para se rejeitar a sua

vinculatividade”19.

Uma das manifestações da existência destes deveres é a punibilidade penal da omissão

de prestar ajuda razoável, socorro em situações de emergência, de necessidade, que tem,

entre nós, expressão bem evidente na tipificação entre nós do crime de omissão de auxílio20.

Um discurso claro sobre os deveres pode ainda ser uma ferramenta útil para combater a

“anemia cívica” hoje constatada e afirmada por todos e que tem como sintomas o absten-

18

HESPANHA, António Manuel, O Caleidoscópio do Direito – O Direito e a Justiça nos dias e no Mundo de

Hoje, cit., pp. 381 e segs. 19

SEN, Amartya, A Ideia de Justiça, Coimbra, Almedina, 2010, pp. 489-494. 20

Art. 200.º do Código Penal que pune a conduta de quem “em caso de grave necessidade, nomeadamente

provocada por desastre, acidente, calamidade pública ou situação de perigo comum, que ponha em perigo a

vida, a integridade física ou a liberdade de outra pessoa, deixar de lhe prestar o auxílio necessário ao afastamen-

to do perigo (...)”. Especificamente, sobre as exigências de prestar uma ajuda razoável a terceiros em situação de

necessidade, ver na mesma obra de Amartya Sen, p. 494. Ver, entre nós, HESPANHA, António Manuel, O Calei-

doscópio do Direito – O Direito e a Justiça nos dias e no Mundo de Hoje, Coimbra, Almedina, 2007, pp. 381 e segs.

15

cionismo elevado21, a fuga ao fisco, estratégias individuais de minimização de deveres e de

maximização dos direitos.

Para além desta necessidade de “revigoramento cívico”, cremos que a definição clara do

conteúdo da cidadania, em termos de direitos e deveres, pode ser um aspecto importante

na hora de integrar nas nossas sociedades – cada vez mais heterogéneas – pessoas de cultu-

ras diferentes. Um discurso claro quanto aos deveres e quanto à sua fundamentalidade faci-

lita um bom “pacto de integração” entre quem acolhe e quem pretende integrar-se22.

Um outro elemento que pensamos poder ser também um contributo importante para

um regresso aos deveres: a emergência de novos domínios, novas exigências éticas, que

podem, porventura, ser melhor traduzidas no plano jurídico através da figura dos deveres do

que da figura dos direitos fundamentais. Referimo-nos sobretudo aos “direitos das gerações

futuras”, com particular destaque, entre estes, para a matéria ambiental.

Uma das dificuldades que os direitos das gerações futuras suscitam tem a ver com a cir-

cunstância de tais direitos terem titulares ideais que não têm (ainda) existência real – as

gerações futuras.

O seu reconhecimento projecta as exigências e os deveres dos cidadãos de hoje para

além da contemporaneidade, como bem o salienta Hans Jonas, na sua obra O Princípio da

21 Sobre o direito e o dever de sufrágio, MIRANDA, Jorge, “Os direitos políticos dos cidadãos na Constituição

Portuguesa”, “O exercício de sufrágio é um dever cívico (art. 48.º, n.º 2). Dever cívico é expressão que também

aparece no art. 41.º, n.º 2 (sobre liberdade religiosa), a par ou contraposta a obrigação (como se entenda). E o

seu significado, no mínimo, pode aproximar-se da noção de dever fundamental que é a defesa da Pátria em face

do dever de serviço militar (art. 276.º, n.os

1 e 2)”. Sucede, porém que, no caso do dever de defesa da Pátria, há

uma sanção grave para o seu não cumprimento, prevista no art. 276.º, n.º 6, da Constituição: “Nenhum cidadão

poderá conservar nem obter emprego do Estado ou de outra entidade pública se deixar de cumprir os seus deve-

res militares ou de serviço cívico quando obrigatório”. O não cumprimento de dever cívico de sufrágio não tem

qualquer sanção associada. Privilegia-se aqui uma noção de democracia enquanto participação dos cidadãos

liberta de quaisquer constrangimentos. Jorge Miranda e Vieira de Andrade admitem a possibilidade de a lei

estabelecer sanções para o não cumprimento do dever, muito embora Jorge Miranda afirme o seu alcance será

sempre muito reduzido, porque tais sanções “não poderiam ofender o princípio da proporcionalidade (art. 18.º,

n.º 2), o que sucederia, por exemplo, se a abstenção fosse criminalizada”; “não poderiam desrespeitar o conteúdo

essencial do direito de voto, ligando, por exemplo, a abstenção a voto neste ou naquele sentido; nem poderiam

traduzir-se em inelegibilidade, pois não pode haver outras causas de inelegibilidade além das cominadas na Cons-

tituição (art. 50.º, n.º 3)” – MIRANDA, Jorge, “Os direitos políticos dos cidadãos na Constituição Portuguesa”, em

Prof. Inocêncio Galvão Telles: 90 Anos – Homenagem da Faculdade de Direito de Lisboa, Coimbra Almedina, 2007,

e VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, Coimbra, Almedina, 2004,

p. 164. 22

A referência a “pacto de integração” não significa aqui a nossa adesão a propostas de celebração solene de

contratos escritos entre o Estado e os candidatos a autorizações de residência, mas tão-só o reconhecimento

que, implicitamente, existe sempre um acordo de vontades entre quem permite a entrada e a fixação e quem

pretende residir numa determinada sociedade e que tal acordo tem melhores possibilidades de êxito quando os

imigrantes sabem, à partida, o que deles se espera.

16

Responsabilidade23. Obriga-nos a integrar no nosso universo moral seres que não são nossos

contemporâneos e que não se fazem representar nas nossas democracias.

A dificuldade que estes direitos sem sujeito titular, reconhecido como tal pela ordem

jurídica, suscitam pode ser superada se olharmos para estas novas realidades como exigindo

de nós novas formas de responsabilidade – não apenas intrageracional e entre membros da

comunidade24.

Idênticas dificuldades de ausência de sujeito titular reconhecido pela ordem jurídica são

enfrentadas pelos discursos sobre os direitos dos animais, entes que não reconhecemos

unanimemente como titulares possíveis de direitos. Mas se o reconhecimento de tais direi-

tos é controverso, o mesmo não se pode dizer da necessidade de reconhecimento de deve-

res de conformação da conduta humana, de uma certa concepção do que sejam maus-tratos

não admissíveis aos animais. Um imperativo civilizacional impele-nos nesse sentido25.

E a tradução desse imperativo pode passar também mais por uma ética de responsabili-

dade e de deveres do que pela linguagem dos direitos.

Conclusão

Encontramos, pois, muitas e variadas razões para recuperar, hoje, a dignidade constitu-

cional dos deveres fundamentais e para dar nova centralidade à noção de responsabilidade

cívica.

Não ignoramos que persiste ainda à volta da noção de deveres fundamentais uma suspei-

ta de que o seu reconhecimento não é mais do que uma via de enfraquecimento dos direi-

tos. O discurso sobre os deveres seria útil num plano pedagógico, mas impor-se-ia toda a

23

JONAS, Hans, Das Prinzip Verantwortung. Versuch einer Ethik fűr die technologische Zivilisation, Berlim,

Suhrkamp, 1988, consultado na versão espanhola, El Principio de Responsabilidad. Ensayo de una ética para la

civilización tecnológica, Barcelona, Herder, 1995. 24

Na doutrina juspublicística portuguesa, ver sobre a temática dos direitos das gerações futuras reflexões a

partir da obra de Hans Jonas, em GARCIA, Maria da Glória, O Lugar do Direito na Protecção do Ambiente, Coim-

bra, Almedina, 2007, pp. 75 e segs., e SILVA, Jorge Pereira da, “Ensaio sobre a Protecção Constitucional dos Direi-

tos das Gerações Futuras”, em Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Diogo Freitas do Amaral, Coimbra,

Almedina, 2010, pp. 464 e segs. 25

Ver sobre o tema dos direitos dos animais, ARAÚJO, Fernando de, A hora dos direitos dos animais, Coim-

bra, Almedina, 2003, e também DUARTE, Maria Luísa, “União Europeia e garantia e bem-estar dos animais” em

Estudos de Direito da União e das Comunidades Europeias, II, 2006, pp. 119 e segs. Sobre a evolução histórica da

protecção legal dos animais, ver RAMOS, Sílvia de Mira da Costa, “A Protecção dos Direitos dos Animais”, em

Estudos em Homenagem ao Conselheiro José Manuel Cardoso da Costa, Coimbra, Coimbra Editora, 2003, pp.

789-794.

17

prudência na sua utilização para resolver problemas concretos de imposição de deveres e

consequente restrição de direitos.

Cremos que estes temores, se bem que justificados por experiências históricas totalitá-

rias, não devem ser razão para afastar ou minimizar o reconhecimento dos deveres.

Os direitos e os deveres podem reforçar-se mutuamente, sendo o cumprimento dos

deveres razão adicional para uma participação cívica mais activa e exigente. É esta, pelo

menos, a nossa convicção.

(*) Por vontade expressa da autora, este artigo segue as regras anteriores ao novo acordo ortográfico.

O Estado, a Administração Pública e a Crise:

alguns apontamentos

António Cândido de Oliveira

1. Introdução

Será que nos teremos esquecido de que o Estado é um produto da acção humana que, ao

longo dos tempos, não só o criou como o desenvolveu? Teremos esquecido que o Estado

não se reproduz por si mesmo e que, em cada momento, precisa de pessoas (físicas) para

existir? E teremos ainda esquecido de que podemos também, em cada época histórica, dar-

-lhe contornos diferentes?

Écerto que o Estado1, depois de vários séculos de existência e de um enorme crescimen-

to, surge como algo que nos aparece estranho, que já não controlamos. Falamos dele como

quem fala de algo que nos domina. Para esta situação, contribuiu seguramente o facto de o

Estado ter surgido num tempo em que não havia democracia ou, dito doutro modo, o Esta-

do dos nossos dias começou por ser um produto da vontade do monarca e da sua corte,

sendo as pessoas (população) que o integravam súbditos e não cidadãos.

Quando, após o liberalismo, se começou a acreditar – ou pelo menos a afirmar – que o

dono do Estado eram os cidadãos e não o monarca ou quem nele exercia o poder, o Estado

já estava sedimentado e funcionava com regras que o afastavam dos cidadãos. A responsa-

bilidade perante estes e a publicidade do que fazia não estavam na sua tradição.

Nestes termos, não é de admirar que tivesse sido sempre difícil mudar a estrutura do

Estado e que ele, ao mesmo tempo que foi crescendo com muita opacidade, se tivesse

transformado naquilo a que já se tem denominado “o monstro”. Continuamos a ter, por via

disso, muitas dificuldade em modificá-lo, pois não é fácil mexer numa estrutura complexa

que tem largos milhares de organismos e algumas centenas de milhares de pessoas que nele

trabalham.

1 O Estado de que aqui temos em vista é aquele que é constituído por uma população assente num território

e com órgãos de poder (político, legislativo, judicial e executivo) dito soberano, sendo reconhecido como tal no

âmbito internacional. Focaremos aqui de um modo particular o Estado português e a sua dimensão executiva (o

denominado aparelho administrativo).

19

Sucede assim que, em vez de um Estado que deve estar ao serviço das pessoas, pois é

essa a sua tarefa em democracia, temos uma situação oposta, em que as pessoas sentem

que são dominadas pelo Estado. Um Estado que exige cada vez mais delas em impostos e

outros encargos, nomeadamente burocráticos e financeiros, e que presta serviços públicos

que não estão à altura daquilo que, julgamos, ser de exigir.

O Estado já não só é encarado como um estranho mas como um inimigo dos cidadãos e

grita-se mesmo “abaixo o Estado!”, subentendendo-se debaixo desse grito a correlativa

liberdade para as pessoas.

2. O crescimento do Estado-Administração

Façamos uma retrospectiva recente e rápida para tentar perceber o que se está a passar.

Durante décadas, nomeadamente nos últimos cinquenta anos, assistimos a um Estado (apa-

relho administrativo) que cresceu muitíssimo, que exigia, para se sustentar, cada vez mais

impostos mas que ao mesmo tempo dava emprego a centenas de milhares de pessoas, pres-

tava serviços e criava infra-estruturas da mais variada espécie.

Entrar para um serviço do Estado era o desejo de muitos, já não tanto pelo dinheiro que

se recebia, mas pela garantia de emprego para a vida que dava e pelo facto de o trabalho

exigido não ser, em regra, muito exigente. Criou-se uma cultura dos funcionários públicos,

nos termos da qual os seus direitos suplantavam os deveres. Por outro lado, gastar dinheiro

do Estado, ainda que mal, não incomodava. O dinheiro do Estado não nos dizia respeito. O

Estado que pague!

Para dar uma ideia mais concreta do crescimento do Estado-Administração em Portugal,

vamos servir-nos de um trabalho feito pelos alunos do Curso de Alta Direcção em Adminis-

tração Pública da Universidade do Minho (CADAP) durante o ano de 20112. Eles foram cha-

mados a ir mais além do que se faz normalmente nas aulas de Direito Administrativo. Nes-

tas, ensina-se que a Administração do Estado, de acordo com a Constituição, se divide em

directa, indirecta e autónoma (territorial e não territorial) e, ultimamente, começou a falar-

-se também numa administração independente.

Quando se fala da administração directa, costuma dizer-se que ela tem à cabeça o

Governo que a dirige, valendo nela o princípio da hierarquia administrativa, e depois damos 2 Espera-se que os dados deste trabalho possam ser introduzidos, em breve, no “Observatório da Democracia

Local”, integrado no NEDAL (Núcleo de Estudos do Direito das Autarquias Locais da Escola de Direito da Universi-

dade do Minho).

20

uma informação sobre a composição do Governo com os seus ministérios e respectiva orga-

nização em geral. Deixamos de lado, como veremos de seguida, muito do que a administra-

ção directa é realmente e assim oferecemos uma visão limitada da mesma.

Quando falamos da administração indirecta, dizemos que o Governo a superintende e

tutela e que é composta fundamentalmente pelos institutos públicos, sendo incapazes de

dizer o respectivo número, pois não há estudos fiáveis sobre eles ou, pelo menos, não estão

publicados. Referimos apenas que são largas centenas. Também aqui omitimos muito do

que eles representam, dando uma informação reduzida.

Ainda neste âmbito, acabámos por omitir que esta distinção entre administração directa

e indirecta do Estado não é tão cortante quanto parece e, quando descemos à realidade,

verificamos que uma e outra se aproximam muito mais do que aquilo que o Direito estabe-

lece.

Já quando falamos da administração autónoma territorial, dizemos que o governo apenas

exerce uma tutela de legalidade sobre ela e já nos permitimos estender mais um pouco,

dizendo que há actualmente 308 municípios e mais de 4000 freguesias (4259), dando

conhecimento sumário da respectiva organização. No entanto, passa por alto a complexida-

de da composição de alguns municípios (os maiores) com um conjunto de organismos

(empresas, fundações e outras) que gravitam à volta deles.

Também dedicamos breves linhas à administração das regiões autónomas que tem, cada

uma, a sua assembleia legislativa e o seu governo regional, desempenhando este, através

das secretarias regionais, tarefas que no Continente cabem aos ministérios.

Quanto à administração autónoma não territorial, onde se encontram, desde logo, as

ordens profissionais, também a informação é muito incompleta, por causa da dificuldade de

obter facilmente os dados necessários.

A leccionação sobre a administração independente vai dando os primeiros e tímidos pas-

sos, sendo um espaço ainda relativamente pequeno e a merecer um estudo cuidado.

Esta informação que os alunos recebem é escassa e pretendemos aqui, no âmbito deste

trabalho e ainda que sem possibilidade de ir ao detalhe desejável, dar uma ideia da grandeza

do mundo da Administração Pública, incidindo a atenção sobre a administração directa e

indirecta do Estado, que tem como órgão superior o Governo.

À data do estudo presente, o Governo era composto por 15 ministérios3 de dimensão

desigual, englobando milhares de estruturas.

3 É o XVIII Governo Constitucional (2009-2011) que temos em vista e incluímos entre os ministérios a Presi-

dência do Conselho de Ministros, por ter na sua dependência sectores da administração activa.

21

Comecemos pelos denominados mega-ministérios da Educação e da Saúde.

Ministério da Educação

É impressionante a quantidade de serviços e estabelecimentos integrados no Ministério

da Educação. De uma lista de mais de 1200 estruturas, abrangendo diversos serviços cen-

trais (tais como a Secretaria-Geral de Educação, a Direcção-Geral dos Recursos Humanos da

Educação, a Inspecção-Geral da Educação, o Gabinete de Gestão de Financeira), serviços

territorialmente desconcentrados (Direcção-Geral do Norte, Centro, Lisboa e Vale do Tejo,

Alentejo e Algarve) e órgãos consultivos (como, por exemplo) o Conselho Nacional de Edu-

cação, destacam-se mais de 1000 (mil) estabelecimentos de ensino agrupados sob a desig-

nação de “escolas secundárias” ou “agrupamento vertical de escolas” (estes são já o resul-

tado, como o próprio nome indica, de junção de estabelecimentos). É aqui, nestas escolas de

ensino básico e secundário, que se encontram mais de duas centenas de milhares de profes-

sores e trabalhadores administrativos.

Ministério da Ciência e Tecnologia e do Ensino Superior (MCTES)

Antes de avançar para outro mega-ministério (o da Saúde) importa referir, por se situar

ainda na área mais geral da educação e integrado, em regra, no Ministério da Educação, o

MCTES, o ministério do ensino superior. Neste ministério encontram-se 30 estabelecimentos

de ensino superior (15 universidades e igual número de institutos politécnicos públicos),

gozando todos de personalidade jurídica e autonomia administrativa e financeira, mas

vivendo, mesmo assim, de forte dependência deste ministério. Fazem ainda parte dele

diversos estabelecimentos de ensino superior não integrados e diversas estruturas ligadas à

ciência e tecnologia, incluindo museus. Trabalham nele algumas dezenas de milhares de

professores e funcionários.

Ministério da Saúde

O Ministério da Saúde – o outro mega-ministério – abala os ensinamentos que damos

sobre a distinção entre administração directa e indirecta do Estado, pois engloba, nesta

última, estruturas que mal se compreendem fora da direcção do ministro, dando a perceber

que pouco significado concreto tem em termos de autonomiao facto de serem administra-

ção indirecta. Estão integrados neste ministério largas centenas de estruturas, começando,

desde logo, por numerosos institutos públicos tais como o INFARMED, o Instituto Nacional

de Emergência Médica (INEM), o Instituto Português do Sangue, tendo este delegações

22

regionais, o mesmo sucedendo com o Instituto da Droga e da Dependência. De mencionar

também, pela sua importância, as Administrações Regionais de Saúde do Norte, do Centro,

de Lisboa e Vale do Tejo, do Alentejo e do Algarve, também elas institutos públicos com área

de acção territorialmente delimitada. Os estabelecimentos hospitalares que fazem parte

deste Ministério são mais de 50 e cerca de 400 os centros de saúde e seus agrupamentos

espalhados por todo o país. Compreende-se bem, assim, porque estamos a falar de um

mega-ministério, nele trabalhando muito mais de 100 000 trabalhadores, desde logo médi-

cos e enfermeiros.

Ministério da Administração Interna

O Ministério da Administração Interna não se esgota nas suas estruturas centrais e peri-

féricas, entre as quais se contam os 18 governos civis. Temos, dentro dele, a Guarda Nacio-

nal Republicana, com mais de 20 comandos territoriais (assentando quase todos na divisão

distrital), a Polícia de Segurança Pública, com comandos de polícia espalhados por todo o

território nacional e, ainda, outras estruturas como o Corpo de Intervenção e o Grupo de

Operações Especiais, sem esquecer a Escola Prática de Polícia. De mencionar ainda o Serviço

de Estrangeiros e Fronteiras, com delegações regionais no Continente e nas ilhas. Também

aqui estão a trabalhar dezenas de milhares de funcionários, garantindo principalmente a

segurança pública.

Ministério da Justiça

Embora o exercício do poder judicial esteja fora do âmbito da administração pública, bem

como o poder de nomear, transferir e sancionar magistrados, que está a cargo de estruturas

independentes (Conselhos Superiores da Magistratura), ficam, mesmo assim, no âmbito do

Ministério da Justiça largos poderes relacionados com a organização e funcionamento dos

tribunais desde a construção, manutenção e equipamento dos edifícios onde se administra

justiça, até à nomeação dos funcionários judiciais. Assim se compreende que estejam na

esfera deste Ministério a administração de mais de 350 tribunais, cobrindo todo o território

nacional (de notar que, principalmente nos centros com mais população, estão alojados no

mesmo edifício vários tribunais). Mas está longe de esgotar a actividade deste ministério, no

que diz respeito aos tribunais. Deve ter-se em conta que é nele que funciona a Polícia Judi-

ciária com mais de uma dezena de departamentos situados em vários pontos do país. Tam-

bém o integram os estabelecimentos prisionais em número superior a 40. A Direcção-Geral

de Reinserção Social conta, por sua vez, com várias delegações regionais. Ainda é de registar

23

que é neste Ministério que se integram mais de 300 cartórios notariais (em rápida fase de

privatização) e mais de 400 conservatórias dos registos civil, predial e outras. O Instituto de

Medicina Legal com gabinetes médico-legais, cobrindo o território nacional também dele faz

parte.

Ministério da Defesa Nacional

O Ministério da Defesa, que teve no tempo da guerra colonial um enorme desenvolvi-

mento em pessoal e instalações, reflecte ainda essa época, embora agora em fase de rápido

decrescimento. Ele inclui a Marinha, muito centrada em Lisboa, a Força Aérea, com diversas

bases distribuídas pelo país (Lumiar, Sintra, Beja, Monte Real, Montijo e Lajes (Açores), e o

Exército, com cerca de duas dezenas de quartéis (regimentos de infantaria, artilharia e cava-

laria) distribuídos pelo território nacional. Tudo sem esquecer a existência de vários hospi-

tais militares e de estabelecimentos de ensino neste domínio.

Ministério das Finanças e da Administração Pública

O Ministério das Finanças, ao qual cabe essencialmente arrecadar receitas de impostos e

pagar as despesas, tem uma estrutura central bastante forte e uma distribuição territorial

muito cuidada. A nível central, para além da Direcção-Geral do Orçamento, da Inspecção-

-Geral das Finanças e da Direcção-Geral dos Impostos, temos outras direcções que têm rami-

ficações por todo o país. Assim, a Direcção-Geral do Tesouro e das Finanças, com Direcções

de Finanças em todos os distritos do país e ainda nas ilhas. Por sua vez, estas Direcções de

Finanças têm repartições situadas nos concelhos do país. Também alberga a Direcção-Geral

das Alfândegas e dos Impostos Especiais sobre o Consumo com Alfândegas, com 30 delega-

ções aduaneiras distribuídas por todo o território do Continente e ilhas e, ainda, 11 postos

aduaneiros. Este Ministério incorpora ainda a Direcção-Geral da Administração e Emprego

Público e, na administração indirecta, o Instituto Nacional de Administração. Estão a ele

ligadas a Caixa Geral de Depósitos e outros estabelecimentos bancários, gozando, de entre

estes, o Banco de Portugal de um estatuto especial.

Ministério do Trabalho e da Solidariedade Social

Neste Ministério, é de realçar, pela sua distribuição por todo o país, o Instituto do

Emprego e Formação Profissional, com 5 delegações regionais e cerca de duas dezenas de

24

centros de formação profissional, e o Instituto da Segurança Social, com centros distritais

abrangendo também o território nacional.

Ministério da Cultura

O Ministério da Cultura que integra a Biblioteca Nacional e tem bibliotecas distribuídas

por todo o país (cerca de 200), dependendo da Direcção-Geral do Livro e das Bibliotecas. É

de notar que a grande maioria delas são municipais mas recebem um apoio desta Direcção-

-Geral que é decisivo para o seu bom funcionamento. Importa ainda referir os arquivos dis-

tritais integrados na Direcção-Geral de Arquivo. Também merecem atenção as 5 Direcções

Regionais de Cultura (Norte, Centro, Lisboa e Vale do Tejo, Alentejo e Algarve). Não pode

esquecer-se também o Instituto dos Museus e da Conservação que tutela 28 museus e 5

palácios nacionais.

Ministério da Agricultura, do Desenvolvimento Rural e das Pescas

Este Ministério tem a nível central as direcções gerais da “Agricultura e Desenvolvimento

Rural”, das “Pescas e Aquicultura”, dos “Recursos Florestais” e também a Direcção-Geral de

Veterinária. São de mencionar, a nível territorial desconcentrado, as 5 Direcções-Regionais

de Agricultura e Pescas, as 5 Direcções de Serviços Veterinários, as também 5 Direcções

Regionais de Florestas.

Ministério da Economia, da Inovação e do Desenvolvimento

O Ministério da Economia tem 5 Direcções Regionais de Economia e, na sua acção pelo

país, destacam-se ainda o Instituto de Apoio às Pequenas e Médias Empresas, com numero-

sas delegações periféricas, e o Instituto do Turismo, igualmente com diversas estruturas

espalhadas pelo país.

Ministério do Ambiente e do Ordenamento do Território

Neste Ministério destacam-se, desde logo, as 5Comissões de Coordenação e Desenvolvi-

mento Regional (Norte, Centro, Lisboa e Vale do Tejo, Alentejo e Algarve), com larga tradi-

ção e uma importância que transcende o âmbito do ministério. Também contém as delega-

ções regionais do Instituto Geográfico de Portugal e 5 Administrações de Regiões Hidrográfi-

cas. Com diversas ramificações regionais, temos o Instituto da Água e o Instituto da Conser-

vação da Natureza e da Biodiversidade. Ligadas a este Ministério, encontram-se numerosas

empresas públicas ligadas às águas, aos resíduos e ao saneamento.

25

Ministério das Obras Públicas, Transportes e Comunicações

Destacam-se neste ministério o que diz respeito aos portos (Instituto Portuário e dos

Transportes Marítimos), aos aeroportos e aviação (Instituto Nacional da Aviação Civil), aos

transportes terrestres (Instituto da Mobilidades e dos Transportes Terrestres, com 5 direc-

ções regionais e o Instituto de Infra-Estruturas Rodoviárias). Avultam nele empresas públicas

do maior alcance ligadas aos diversos meios de transporte e assim a EP-Estradas de Portugal,

a CP-Comboios de Portugal, a REFER-Rede Ferroviária Nacional, a RAVE-Rede Ferroviária de

Alta Velocidade, o Metropolitano de Lisboa, a Carris-Companhia Carris de Ferro de Lisboa, o

Metro do Porto, a STCP-Porto, a TAP-Transportes Aéreos Portugueses, a ANA-Aeroportos de

Portugal, e várias empresas de administração dos portos (Aveiro, Douro e Leixões, Lisboa,

Sines, Viana do Castelo). De notar, também, empresas ligadas à informação como a LUSA-

-Agência de Notícias, a RTP e a RDP, sem esquecer um dos mais antigos serviços públicos, o

dos correios (CTT-Correios de Portugal).

Ministério dos Negócios Estrangeiros

O Ministério dos Negócios Estrangeiros, para além dos serviços centrais e da Direcção-

Geral dos Assuntos Europeus, abrange as embaixadas de Portugal no estrangeiro (mais de

70) e cerca de 50 postos consulares, com os respectivos embaixadores, cônsules e outro

pessoal diplomático. Inclui também missões permanentes junto de vários organismos inter-

nacionais como o Conselho da Europa, a NATO, as Nações Unidas, a OCDE, a União Europeia

e a UNESCO.

Presidência do Conselho de Ministros

Ainda que sem nome de ministério, a Presidência de Conselho de Ministros integra um

conjunto significativo de organismos administrativos, desde a Inspecção-Geral para as

Autarquias Locais (IGAL) à Direcção-Geral das Autarquias Locais (DGAL). Dentro da adminis-

tração indirecta contam-se o Instituto Nacional de Estatística (INE), a Agência para a Moder-

nização Administrativa e, principalmente, o Instituto Português da Juventude com delega-

ções em todos os distritos do país

26

3. A situação em que nos encontramos

Vemos toda esta impressionante organização a que poderíamos juntar a das regiões

autónomas, a dos municípios e das freguesias, o que não fazemos apenas por brevidade e

por serem do nosso conhecimento mais próximo, e perguntamos se ela é necessária. Não

haverá aqui organização administrativa a mais? Sabemos que há uma longa discussão à volta

disto, mas não é este o lugar adequado para dar dela a devida conta.

Há, no entanto, que lembrar, duas coisas: uma relativa ao desenvolvimento da nossa

organização administrativa, outra relativa à situação de crise a que chegámos.

Se recuarmos mais de meio século (em meados do século XX), a Administração Pública,

em Portugal, era muito mais pequena em número de estruturas e em pessoal. Mas esse era

o tempo do analfabetismo da grande maioria dos portugueses e foi através de uma acção

determinada e constante do governo e do seu Ministério da Educação que foram criadas por

todo o país “escolas primárias” (quatro anos de escolaridade obrigatória) que em poucas

décadas acabaram praticamente com o analfabetismo especialmente das pessoas novas.

Nos anos setenta, o ensino secundário, então denominado liceal e técnico, começou a deixar

de estar limitado às principais cidades (especialmente capitais de distrito) e estendeu-se

praticamente a todos os municípios e, já depois do 25 de Abril (mas com início em 1973),

criou-se uma rede de universidades públicas que aumentou estas instituições das então três

(Coimbra, Lisboa e Porto) para as actuais quinze, sem esquecer também a rede de estabele-

cimentos de ensino superior politécnico. A alfabetização, o desenvolvimento do ensino

secundário e do superior foi o resultado de uma acção do Estado. É certo que, principalmen-

te a partir dos anos oitenta, se criaram diversas universidades privadas mas sabe-se como

estas gravitaram à volta das públicas com professores destas a ocupar os principais lugares

daquelas, surgindo então a triste figura dos “turbo-professores”. Pode dizer-se, pois, que

foram boas razões as que determinaram a transformação do Ministério da Educação num

mega-ministério.

Algo de semelhante ocorreu com a saúde. Quem se lembra (e há ainda muitas pessoas

que se lembram) da situação do nosso país em meados do século passado, sabe como era

difícil o acesso à saúde e muito mais a uma saúde de qualidade fora dos grandes centros. Foi

a partir, principalmente, de meados dos anos setenta que uma rede de hospitais e centros

de saúde públicos cobriu todo o país, por iniciativa estadual. Por virtude de uma bem

determinada política pública de saúde, foi possível fazer diminuir, por exemplo, a taxa de

mortalidade infantil de níveis inaceitáveis para os actuais níveis europeus de primeira linha.

27

É também, principalmente, a partir dos anos setenta que ocorreu o generalizado acesso

dos cidadãos a uma pensão de reforma por doença, invalidez ou por limite de idade, garan-

tida pelo erário público.

E é bom lembrar que, por iniciativa pública, numa acção concertada entre o Governo e os

municípios, foi possível, ao longo da segunda metade do século XIX, dotar de luz eléctrica

todo o país e proceder à distribuição domiciliária de água em larga escala, bem como ao

saneamento básico. Também por acção do Governo foi possível levar telefones públicos a

todos os recantos do território nacional e mais tarde a televisão (RTP), devendo recordar-se

que, através desta, foi possível estabelecer também uma larga rede de tele-escolas, espe-

cialmente no interior.

Não pode esquecer-se também o empenho do Governo na rede nacional de estradas e

mais tarde, já nos últimos vinte anos, na rede de auto-estradas, devendo ter-se presente, no

lado oposto, a diminuição do investimento ferroviário (houve uma clara opção política pelo

transporte rodoviário em detrimento do ferroviário).

O enorme desenvolvimento do nosso país nestes domínios, para o qual também contri-

buiu decisivamente a integração, nos anos oitenta, de Portugal na então Comunidade Eco-

nómica Europeia (CEE), hoje União Europeia, não pode fazer esquecer, contudo, os enormes

gastos a que conduziu e, pior ainda, a imprevidência que muitas vezes acompanhou a acção

do Governo e demais entidades públicas.

Deveria ter sido objecto de mais atenção o facto de não ser possível aumentar indefini-

damente o número de funcionários públicos e muito menos fazer o seu recrutamento sem a

devida avaliação das respectivas qualidades. Deveria ter havido mais cuidado na criação de

organismos e serviços, quer dentro de cada ministério, quer sob a forma de institutos públi-

cos e empresas públicas. Tais cuidados, muitas vezes, não ocorreram e isso não poderia

naturalmente dar bom resultado. Mesmo que não sucedesse uma grave crise financeira

europeia e mundial, como recentemente sucedeu, deixando à mostra, sem possibilidade de

esconder, as dívidas do Estado, a insustentabilidade desta situação viria ao de cima, até por-

que o crescimento económico, que permitiu arrecadar substanciais receitas de impostos ao

longo dos anos, tem limites e eles foram descurados.

28

4. O princípio da boa administração

Vamos deixar de lado exactamente a discussão sobre os problemas económicos e finan-

ceiros, os do envelhecimento da população e outros, para nos centrarmos em algo que não

pode ser desprezado, que é o princípio da boa administração.

Se há algo que não depende de factores externos à Administração Pública é a boa admi-

nistração. Este princípio pareceu andar esquecido. O Estado era visto como uma fonte ines-

gotável de dinheiro, havendo pouco cuidado em equilibrar as despesas com as receitas.

Hoje já não é assim. Começa a haver uma clara consciência dos deveres dos cidadãos

para com o Estado e começa, também, a exigir-se que ele actue bem, gastando com critério

e prestando contas do que faz, nomeadamente, da utilização dos dinheiros públicos.

A ideia de que o Estado deve prestar contas foi fazendo caminho e essa prestação deve

começar pela informação aos cidadãos.

A informação completa e correcta é fundamental para uma boa administração e é sobre

ela que vamos já na parte final deste texto incidir a nossa atenção.

A Lei n.º 3/2004, de 15 de Janeiro, que aprovou a lei-quadro dos institutos públicos,

estabeleceu no seu art. 44.º, com a epígrafe “página electrónica” que os institutos públicos

deverão “disponibilizar uma página electrónica, com todos os dados relevantes, nomeada-

mente, os diplomas legislativos que os regulam; os respectivos estatutos e regulamentos

internos; a composição dos respectivos corpos gerentes, incluindo elementos biográficos

(currículo académico e profissional); os planos de actividades e os relatórios de actividades

dos últimos três anos; os orçamentos e as contas dos últimos três anos, incluindo os respec-

tivos balanços; e o mapa de pessoal”.

Por sua vez, o art. 49.º do mesmo diploma determinava, em “disposições finais”, que,

junto da então Direcção-Geral da Administração Pública, seria organizada “uma base de

dados informatizada sobre os institutos públicos, a qual contém para cada um deles, entre

outros, os seguintes elementos: designação, diploma ou diplomas reguladores, data de cria-

ção e de eventual reestruturação e composição dos corpos gerentes”. Referia ainda o mes-

mo artigo que a base de dados referida no número anterior era disponibilizada em linha na

página electrónica da Direcção-Geral da Administração Pública, incluindo conexões para a

página electrónica de cada instituto.

Também a Lei n.º 4/2004, de 15 Janeiro, que regulava os princípios e normas a que deve

obedecer a organização da administração directa do Estado, determinava no seu art. 29.º,

n.º 1, que o “ministério que tenha a seu cargo a Administração Pública é responsável pela

29

criação e permanente actualização de uma base de dados dos serviços da Administração

Pública, da sua estruturação por ministérios e, bem assim, pela sua divulgação através dos

meios mais eficazes, designadamente o Portal do Cidadão”. Por sua vez, o n.º 2 do mesmo

artigo ordenava a divulgação dos “organogramas de cada ministério, bem como a referência

às disposições orgânicas em vigor”.

Foi com base nestas disposições que se criou um Sistema de Informação da Organização

do Estado (SIOE), na dependência da então Direcção Geral da Administração Pública do

Ministério das Finanças.O SIOE foi funcionando e recolhendo dados que foi dando a conhe-

cer no lugar próprio.

Em 2011, através da Lei n.º 57/2011, de 28 de Novembro, o Sistema de Informação da

Organização do Estado recebeu um novo impulso. Trata-se de uma lei de largo âmbito de

aplicação, pois aplica-se a “todos os serviços integrados, serviços e fundos autónomos,

regiões autónomas, autarquias locais e outras entidades que integrem o universo das admi-

nistrações públicas em contas nacionais” (art. 2.º).

Nos termos do art. 3.º, são objectivos do SIOE caracterizar as entidades públicas e os res-

pectivos recursos humanos, com vista a “habilitar os órgãos de governo próprios com a

informação indispensável para definição das políticas de organização do Estado e da gestão

dos respectivos recursos humanos”. Apesar de instituído agora por lei, o SIOE é uma estru-

tura muito leve e continua a ser gerido e detido, nos termos do art. 4.º, pela Direcção-Geral

da Administração e do Emprego Público (DGAEP).

A lei é minuciosa e exigente e assim põe a cargo da DGAEP a organização e tratamento da

informação para os fins previsto nesta lei; a disponibilização na sua página electrónica que

especifica [www.dgaep.gov.pt] os dados de caracterização das entidades públicas e o res-

pectivo número global de efectivos de pessoal; um diálogo com as entidades públicas para o

integral cumprimento do disposto na presente lei; a preparação e divulgação de “manuais

de operação e de consulta do SIOE”.

As entidades públicas devem ser devidamente “caracterizadas” no SIOE e isso implica,

nos termos do art. 5.º, a inclusão dos seguintes dados relativos a cada entidade: a designa-

ção; o diploma ou acto de criação e o diploma regulador; a data de criação e de eventual

reorganização ou alteração; a missão; os órgãos de direcção e identificação, estatuto e ele-

mentos curriculares dos seus titulares; a indicação da morada da entidade em causa, do seu

endereço electrónico, da página electrónica, do número de identificação de pessoa colectiva

(NIPC); da classificação da actividade económica (CAE); do código SIOE; do código de serviço

30

atribuído no âmbito do Orçamento do Estado e, finalmente mas não de menos importância,

a informação sobre os respectivos recursos humanos.

Quanto a estes, nos termos do art. 6.º, o SIOE, deve incluir, sem identificação de elemen-

tos de natureza pessoal, o número de trabalhadores em exercício efectivo de funções em

cada entidade pública. Esta inclusão não é só a mera indicação de tal número, mas deve

abranger o tipo de relação jurídica de emprego; o tipo de cargo, carreira ou grupo; o género;

o nível de escolaridade e área de formação académica, se for o caso; o escalão etário; dados

periódicos sobre fluxos de entradas e saídas; dados sobre remunerações, suplementos, sub-

sídios, benefícios, gratificações e outros abonos em numerário ou espécie no período de

referência; o número de trabalhadores com deficiência ou doença crónica; o número de

prestadores de serviço, distribuído por modalidade contratual e por género e respectivo

encargo.

Como é fácil de imaginar, tudo isto implica um trabalho bem organizado, feito periodi-

camente e num ambiente de cooperação entre as entidades públicas e o SIOE, referindo a

lei algumas das obrigações das entidades públicas e do SIOE (arts. 6.º, 9.º e 12.º).

A lei não esquece o dever das entidades públicas que integram a administração regional

autónoma de contribuírem para o “carregamento e actualização dos dados nos termos esti-

pulados pela presente lei e pelas regras técnicas de operacionalização definidas pela compe-

tente entidade pública regional, utilizando um sistema que garanta a sua integração no

SIOE” e para a comunicação à entidade gestora do SIOE dos dados existentes, devendo para

este fim celebrar-se um “protocolo entre o respectivo membro do Governo Regional e o

membro do Governo responsável pela área da Administração Pública (art. 7.º).

O mesmo se diga das entidades públicas que integram a administração autárquica que

devem proceder ao “carregamento e actualização dos dados no Sistema Integrado de Infor-

mação das Autarquias Locais (SIIAL), criado junto da Direcção-Geral das Autarquias Locais”.

Esta comunica e assegura à entidade gestora o acesso aos dados que possui nos “termos a

fixar por despachos dos membros do Governo responsáveis pelas áreas da Administração

Pública e das autarquias locais”.

Para que esta lei vá para além das boas intenções, ela prevê não só a sua entrada em

vigor no dia seguinte ao da sua publicação emDiário da República (art. 14.º), como a aplica-

ção de sanções e assim, nos termos do art. 10.º, o incumprimento do disposto na presente

lei determina não só a “retenção de 10 % na dotação orçamental, ou na transferência do

Orçamento do Estado para a entidade pública incumpridora, no mês ou meses seguintes ao

incumprimento”, como a “não tramitação de quaisquer processos relativos a recursos

31

humanos ou aquisição de bens e serviços que sejam dirigidos ao Ministério das Finanças

pela entidade pública incumpridora”. Há um incentivo ao cumprimento ainda que tardio das

obrigações das entidades públicas do Estado e, assim, os montantes que forem retidos serão

repostos com o duodécimo do mês seguinte, após a prestação integral da informação cujo

incumprimento determinou a respectiva retenção.

A lei não se esquece, ainda, de regular as situações de incumprimento por parte das

entidades que integram a administração regional autónoma (art. 10.º, n.º 3) e por parte das

entidades que integram a administração autárquica (n.º 4). A DGAEP tem a obrigação de

comunicar à Direcção-Geral do Orçamento, num prazo muito curto, a identificação da enti-

dade pública incumpridora.

A lei preocupa-se com a transparência e, assim, o art. 11.º determina que a “informação

referente à caracterização das entidades públicas e ao número global dos respectivos recur-

sos humanos é disponibilizada, de forma clara, relevante e actualizada, na página electrónica

da entidade gestora do SIOE e no Portal do Cidadão, relativamente a cada entidade pública e

incluindo, quando existam, conexões para as respectivas páginas electrónicas. O acesso a

esta informação “é livre e gratuito”.

De notar ainda que esta lei veio revogar, certamente por entender ser desnecessária, a

então muito recente Lei n.º 20/2011, de 20 de Maio, que tinha criado o “registo nacional

dos serviços do Estado de todo o sector público administrativo (RNSE), integrado na Direc-

ção-Geral do Orçamento” com a função de “organizar e gerir o registo central dos serviços

públicos do sector público administrativo, bem como divulgar publicamente todas as infor-

mações através de um sítio na Internet (sítio dos serviços do Estado), a criar pela Direcção-

Geral do Orçamento”. Este registo nacional visava a aplicação a “todos os serviços públicos

no âmbito do sector público administrativo, designadamente, aos serviços e fundos da

administração directa e indirecta do Estado, as regiões autónomas, os municípios e as

empresas públicas”.

O SIOE, que já conta com oito anos de existência, contém um conjunto enorme de “enti-

dades” que podem ser vistas e consultadas na respectiva página. Elas ultrapassam as 7000,

ainda que não possamos esquecer que 4259 são freguesias. Mas, mesmo descontadas estas,

ficam ainda cerca de 3000 entidades, o que constitui um número muito elevado.

32

5. Conclusão

Com este breve trabalho não se pretendeu mais do que chamar a atenção para a neces-

sidade de termos uma perspectiva crítica do que dizemos quando falamos do Estado, o que

implica o seu conhecimento bem detalhado. Esse conhecimento só é possível se existir uma

verdadeira política de transparência para a qual o SIOE muito pode contribuir. Por isso,

acompanhar o funcionamento do SIOE é tarefa que deve merecer a melhor atenção, para

ver os eventuais avanços ou recuos numa matéria tão sensível como é a das relações entre

os cidadãos e o Estado. A transparência exige muita determinação política.Todos queremos

um Estado que funcione bem ao serviço dos cidadãos. Não basta, porém, querer. É preciso

trabalhar muito para que tal suceda.

(*) Por vontade expressa do autor, este artigo segue as regras anteriores ao novo acordo ortográfico.

O paternalismo estadual e a legitimidade da defesa

da pessoa contra si própria

Benedita Mac Crorie

O vínculo da cidadania traduz-se na atribuição de direitos e na imposição de deveres aos

cidadãos. De facto, dele decorre não apenas a titularidade de um acervo de direitos, mas

também a responsabilidade dos cidadãos de zelarem pelo bem comum, o que poderá

determinar o estabelecimento, por parte dos poderes públicos, de restrições à liberdade

individual, quando o seu exercício contenda com interesses públicos ou de terceiros. É, por

isso, consensual que o Estado possa justificadamente limitar o exercício de direitos quando

estão em causa interesses públicos ou de terceiros. O mesmo já não se poderá, contudo,

dizer quando o fundamento da restrição é a defesa do indivíduo de si mesmo1.

Coloca-se, consequentemente, a questão de saber até que ponto é legítimo, em Estado

de Direito plural, que o Estado limite a liberdade dos cidadãos, protegendo os seus direitos

fundamentais contra a sua vontade, quando não se lesam quaisquer bens de terceiros ou da

comunidade. Trata-se de ajuizar se o sistema jurídico tem legitimidade para proteger o indi-

víduo “contra o risco de um mau uso que este possa fazer da sua liberdade”2.

1 NINO, Carlos S., The Ethics of Human Rights, Clarendon Press, Oxford, 1991, pp. 131 e 132. A destrinça entre

as situações em que há interesses públicos e de terceiros juridicamente tuteláveis e aquelas em que apenas

estão em causa interesses do indivíduo não é simples, na medida em que facilmente se encontram razões de

interesse público ou interesses de terceiros para justificar restrições. Parece, no entanto, ser de seguir a perspe-

tiva de Mill, que considera que só se afetam direitos de terceiros quando se verifica um dano. Sobre esta questão

ver, mais desenvolvidamente, NETO, Luísa, O Direito Fundamental à Disposição sobre o Próprio Corpo, Coimbra

Editora, Coimbra, 2004, p. 246. Parece-nos ser também esse o sentido do voto de vencido do Conselheiro Vítor

Gomes, no Acórdão n.º 423/08, em http://www.tribunal constitucional.pt/tc/acordaos/20080423.html, no qual

defende que o dever de proteção da saúde pública pelo Estado não depende apenas de um “juízo probabilístico

geral” sobre a causalidade adequada da conduta de fumar para lesar abstratamente a saúde, mas sim da com-

provação de que essa conduta é diretamente responsável pela lesão da integridade física dos fumadores passi-

vos. 2 SCHUTTER, Olivier de e RINGELHEIM, Julie, “La renonciation aux droits fondamentaux. La libre disposition

du soi et le règne de l’échange”, in Hugues Dumont – François Ost – Sébastien Van Drooghenbroeck (eds.), La

Responsabilité, Face Cachée des Droits de l’Homme, Bruylant, Bruxelles, 2005, p. 446.

34

A ideia de defesa da pessoa contra si própria está intimamente ligada com o paternalis-

mo estadual3, na medida em que com o termo paternalismo se pretende designar a “priva-

ção ou redução da liberdade de escolha do indivíduo operada pelo ordenamento a fim de

assegurar uma particular protecção da pessoa ou de uma categoria de pessoas de actos

contrários ao seu próprio interesse”4. O paternalismo estadual goza de uma característica

que o distingue das restantes medidas restritivas do Estado: a “finalidade específica da res-

trição da liberdade”. Neste caso, o fundamento invocado é a proteção da pessoa contra

possíveis “más escolhas” que esta possa fazer e não a defesa de interesses públicos ou de

terceiros5.

O paternalismo jurídico parte da ideia de que o Estado pode proibir determinados com-

portamentos, quando tal proibição seja essencial para afastar um dano (físico, psíquico ou

económico)6. No entanto, nem sempre as medidas paternalistas instituídas visam apenas

evitar que a própria pessoa sofra um dano. Poderá ser também um propósito deste tipo de

medidas proibir determinadas ações por estas se considerarem “intrinsecamente imorais”7.

O paternalismo é, desde logo, suspeito na perspetiva dos direitos fundamentais porque

põe em causa o conteúdo de autonomia neles presente, ao permitir que essa autonomia

apenas se exerça se se dirigir à promoção do próprio bem8. Coloca-se, consequentemente, a

3 Quando o Estado age de modo paternalista em relação aos seus cidadãos podemos falar de paternalismo

estadual, ou, seguindo a expressão inglesa legal paternalism, de paternalismo jurídico. MÖLLER, Kai,

Paternalismus und Persönlichkeitsrecht, Duncker & Humblot, Berlin, 2005, p. 11. 4 COSENTINO, Fabrizio, “Il paternalismo del legislatore nelle norme di limitazione dell’autonomia dei privati”,

in Quadrimestre, n.º 1, 1993, p. 120. 5 MÖLLER, Kai, Paternalismus und Persönlichkeitsrecht, cit., pp. 11 e 12.

6 VALDÉS, Ernesto Garzón, “Kann Rechtspaternalismus ethisch gerechtfertigt werden?”, in Rechtstheorie, n.º

18, 1987, pp. 273 e 274. Segundo o Autor, é esse o caso da proibição de venda de droga e da inabilitação ou

interdição de pessoas portadoras de uma deficiência, alcoólicos ou toxicodependentes, das disposições relativas

à obrigatoriedade do uso de capacete ou cinto de segurança, ou que proíbem nadar em praias não vigiadas, da

proibição de compra livre de certos medicamentos e das leis que proíbem determinados jogos de sorte. 7 Exemplos disso são a proibição da homossexualidade entre adultos, de sex-shows ou atividades sexuais

sadomasoquistas. Ver VALDÉS, Ernesto Garzón, “Kann Rechtspaternalismus ethisch gerechtfertigt werden?”, cit.,

pp. 274 e 275. Sobre a proibição de relações homossexuais, ver o caso Lawrence v. Texas do Supremo Tribunal

Federal americano, que revogou a decisão do caso Bowers v. Hardwick, no qual o Tribunal havia considerado não

serem inconstitucionais as disposições legislativas de alguns Estados que proibiam a sodomia, por se tratar de

uma prática imoral. Sobre a proibição de práticas sadomasoquistas, ver os casos Laskey, Jaggard e Brown v.

Reino Unido e KA e AD v. Bélgica, do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem. Apesar de no primeiro caso o

Tribunal ter considerado que cabe na margem de apreciação dos Estados proibirem este tipo de conduta para a

proteção da saúde, nos termos do n.º 2 do art. 8.º da Convenção (admitindo uma proteção da saúde contra a

vontade do próprio, sem atender ao facto de não estarem em causa lesões graves e irreversíveis), no segundo

reconheceu que o direito de ter relações sexuais, mesmo com violência, está compreendido no direito a dispor

sobre o próprio corpo, parte integrante da noção de autonomia individual. 8 FEINBERG, Joel, Harm to Self. The Moral Limits of the Criminal Law, Oxford University Press, New York, Ox-

ford, 1986, p. 58.

35

questão de determinar se existem tipos de paternalismo jurídico que se podem “eticamente

justificáveis”9.

Convém, antes do mais, distinguir os casos de verdadeiro paternalismo dos casos de “fal-

so paternalismo”. As situações de “falso paternalismo” dizem respeito a medidas restritivas

impostas à prática de determinados atos que não afetam, diretamente, interesses de tercei-

ros, mas que, ainda assim, poderão implicar custos para a coletividade. Em virtude disso, o

“falso paternalismo”, ao contrário do verdadeiro paternalismo, que origina o estabelecimen-

to de uma proibição ou de uma imposição legal contra a vontade do destinatário para o seu

próprio bem, não visa proteger a pessoa de si própria, antes se baseando “na análise dos

custos sociais que decorrem da realização de certos riscos”10. Ainda que a liberdade geral de

ação compreenda o exercício de atividades perigosas, não pode, no entanto, tendo em con-

ta os possíveis encargos que daí possam advir para a comunidade, afastar-se a intervenção

do Estado, mesmo quando não se lesem diretamente direitos de terceiros11.

Assim, em Estado social democrático de Direito, “a repercussão dos custos sociais na

coletividade por condutas ‘temerárias’ pode justificar a imposição de restrições – limitações,

não proibições – desde que assentes em parâmetros de proporcionalidade”12.

De todo o modo, convém ressalvar que a determinação das situações em que a repercus-

são dos custos sociais na coletividade pode justificar a imposição de restrições não é isenta

de dificuldades. Para que possam legitimar uma restrição da liberdade, esses custos devem

efetivamente decorrer da atuação em causa, ser certos e ter suficiente expressão. É, para

além disso, fundamental, na análise da proporcionalidade da medida, considerar o direito

que vai ser restringido e a afetação da liberdade que aí vai envolvida. A proteção contra o

paternalismo “deverá ser tanto mais intensa quanto mais relevante para a personalidade

seja o comportamento em causa”13. Finalmente, a medida restritiva deverá sempre ser a

9 Esta é precisamente a pergunta colocada no título do artigo de VALDÉS, Ernesto Garzón, “Kann Rechtspa-

ternalismus ethisch gerechtfertigt werden?”, cit., pp. 273 e segs. 10

GOMES, Carla Amado, “Risque sanitaire et protection de l’individu contre soi-même. Quelques topiques

pour un débat“, in Revista do Ministério Público, n.º 116, 2008, p. 143. 11

PINTO, Paulo Mota, “O direito ao livre desenvolvimento da personalidade”, in Portugal-Brasil Ano 2000 –

Tema Direito, Universidade de Coimbra – Coimbra Editora, Coimbra, 1999, p. 202, nota 144. 12

GOMES, Carla Amado, “Estado Social e concretização de direitos fundamentais na era tecnológica: algumas

verdades inconvenientes”, in Scientia Iuridica, Tomo LXLL, n.º 315, 2008, pp. 421 e 422. 13

MÖLLER, Kai, Paternalismus und Persönlichkeitsrecht, cit., pp. 186 e 187. Este Autor exemplifica a sua posi-

ção afirmando que “é mais relevante o direito de decidir autonomamente em questões que dizem respeito à vida

sexual do indivíduo do que o direito de não usar cinto de segurança”. Também DE MARNEFFE, Peter, “Avoiding

Paternalism”, in Philosophy & Public Affairs, 34, n.º 1, 2006, pp. 69 e 88, defende que “a interferência paternalis-

ta em algumas liberdades pode ser justificável”, sendo de distinguir entre liberdades fundamentais e liberdades

não fundamentais. Para o Autor, “pode distinguir-se, por exemplo, entre uma lei paternalista que proíbe nadar

em praias com correntes perigosas de uma lei paternalista que proíbe o uso terapêutico de marijuana, argumen-

36

última ratio, tendo de “ser precedida (e acompanhada) de tentativas de sensibilização da

população para a necessidade de mudar os seus comportamentos de risco”14.

Já no que se refere às situações de verdadeiro paternalismo, Kai Möller, seguindo a pers-

petiva de John Kleinig15, defende que há medidas paternalistas que se podem justificar

quando se vise salvaguardar a integridade do indivíduo. Para o Autor, “a solução de integri-

dade” que defende não se confunde com as diferentes variantes da teoria dos valores. Na

“solução da integridade” são “as conceções do indivíduo que regem a atuação estadual”,

uma vez que “a liberdade de escolha é restringida não para a proteção de valores objetivos,

mas antes tendo em consideração prioridades subjetivas do próprio indivíduo”16. Segundo

ele, quando o propósito do legislador é o de assegurar a integridade do sujeito, já não esta-

mos perante uma restrição ilegítima da liberdade jusfundamentalmente protegida. O pater-

nalismo deverá ser “tanto mais admissível quanto mais o indivíduo em causa, através das

suas decisões, esteja em contradição com a sua própria integridade”17.

No entanto, sustenta ainda que o Estado não deverá ter o direito de proteger os cidadãos

contra si próprios, argumentando que o faz para preservar a sua integridade, quando lhe

bastava adverti-los acerca do caráter perigoso do seu comportamento. Deverá dar-se prefe-

rência ao esclarecimento e informação dos indivíduos antes de admitir o recurso à coação

estadual. Nesse sentido, não devem ser de aceitar medidas paternalistas quando o esclare-

cimento seja suficiente para a proteção da integridade individual18.

tando que o interesse do indivíduo em ter a liberdade de nadar em correntes perigosas é menos importante do

que o interesse em utilizar marijuana por razões terapêuticas”. 14

GOMES, Carla Amado, “Risque sanitaire et protection de l’individu contre soi-même. Quelques topiques

pour un débat“, cit., p. 144. 15

KLEINIG, John, Paternalism, Manchester University Press, Manchester, 1983, pp. 67 e segs. 16

MÖLLER, Kai, Paternalismus und Persönlichkeitsrecht, cit., pp. 179-183 e 197-199. Este Autor coloca a ques-

tão de saber se, no caso de um indivíduo que gosta de viver e por pura negligência não utiliza o cinto de seguran-

ça, pondo em perigo o que lhe é caro contra as suas próprias prioridades, será realmente uma lesão “do direito

de conformar o seu destino” obrigá-lo a utilizar um cinto de segurança. Em termos algo semelhantes, SINGER,

Reinhard, “Vertragsfreiheit, Grundrechte und Schutz des Menschen vor sich selbst”, in Juristen Zeitung, n.º 23,

1995, p. 1140, sustenta que é muito duvidosa a invocação da liberdade para a autodeterminação nos casos da

obrigatoriedade do uso de cinto de segurança e de capacete. Para o Autor, o que está aqui em causa “é a incapa-

cidade psicológica de muitos automobilistas ou motociclistas para, de uma forma abstrata, preverem correta-

mente os perigos da sua atuação, o que legitima a restrição”. VALDÉS, Ernesto Garzón, “Kann Rechtspaternalis-

mus ethisch gerechtfertigt werden?”, cit., p. 284, entende que a pessoa não possui as suas “capacidades básicas”

quando considera um determinado bem importante, mas se recusa a tomar as medidas necessárias para a sua

concretização (este é o caso da obrigatoriedade de uso de cinto de segurança ou de capacete).

17

MÖLLER, Kai, Paternalismus und Persönlichkeitsrecht, cit., pp. 185 e 187. NINO, Carlos S., The Ethics of

Human Rights, cit., p. 148, defende que o princípio da autonomia deixa alguma margem para um paternalismo

legítimo. O princípio geral que está na base destas considerações pode ser formulado como uma proibição de

impor sacrifícios aos indivíduos sem o seu consentimento que não se traduzam em benefícios para eles. Este

princípio pode designar-se como “princípio da inviolabilidade da pessoa”. 18

MÖLLER, Kai, Paternalismus und Persönlichkeitsrecht, cit., pp. 190 e 191.

37

O Autor considera ainda que é de afastar o “paternalismo moral”. Consubstanciam-se em

“paternalismo moral aquelas situações em que o Estado intervém impondo modos de com-

portamento morais no interesse da pessoa em causa, que esta, por possuir diferentes qua-

dros morais, considera ser de afastar.” Neste tipo de questões deve deixar-se ao indivíduo a

possibilidade de decidir autonomamente19.

Para Kai Möller esta perspetiva conduz a soluções que na prática são insuspeitas, uma

vez que não contende com os “projetos centrais” dos cidadãos e, para além disso, não lhes

impõe um sistema de valores com o qual não concordam. A contrapartida é, para o Autor,

“uma maior proteção das pessoas, a um preço relativamente baixo, ou seja, a utilização de

coação nos casos em que o indivíduo, por negligência, age em sentido contrário aos seus

próprios valores”20.

Por seu lado, Cass R. Sunstein eRichard H. Thaler defendem aquilo que designam por

“paternalismo libertário” (libertarian paternalism)21. Os Autores consideram que o paterna-

lismo não tem de implicar necessariamente limitação da liberdade, tendo desenvolvido mais

aprofundadamente esta sua perspetiva numa obra recente, intitulada Nudge22, na qual con-

sideram legítimo os poderes públicos encorajarem os cidadãos para que façam uma deter-

minada escolha, pela forma como essa escolha lhes é apresentada, desde que não seja proi-

bida nenhuma opção. O debate em torno desta perspetiva tem sido aceso, até porque os

Autores conseguiram obter apoio político para implementar este tipo de medidas, tanto nos

Estados Unidos da América como no Reino Unido.

Segundo eles, o “paternalismo libertário” é “relativamente fraco e não intrusivo” porque,

em bom rigor, não afasta a possibilidade de escolha. No entanto, trata-se de uma forma de

19 MÖLLER, Kai, Paternalismus und Persönlichkeitsrecht, cit., pp. 189 e 203. Para o Autor, tendo em conside-

ração “o valor elevado do direito de autodeterminação em questões morais, a proibição do paternalismo esta-

dual nestes casos impõe-se”. Sobre a distinção entre “paternalismo moral” e “paternalismo de bem-estar”, ver

também DWORKIN, Gerald, “Paternalism”, in Stanford Encyclopedia of Philosophy, 2005,

http://plato.stanford.edu/ entries/paternalism (última visita a 22.03.2012). Nesta ordem de ideias, DWORKIN,

Gerald, “Moral Paternalism”, in Law and Philosophy, n.º 24, 2005, p. 311, entende que os homossexuais não

consideram que a sua orientação sexual seja imoral; “os ateus não julgam que vivem uma vida de pecado” e

“quem vê pornografia não considera que esteja a ser corrompido”. ALEMANY, Macario, “El concepto e la justifi-

cación del paternalismo”, in DOXA – Cuadernos de Filosofia del Derecho, n.º 28, 2005, p. 272, propõe-se restringir

o termo paternalismo de modo a que este signifique evitar danos físicos, psíquicos e/ou económicos. 20

MÖLLER, Kai, Paternalismus und Persönlichkeitsrecht, cit., p. 212. 21

SUNSTEIN, Cass R. e THALER, Richard H., “Libertarian Paternalism”, in American Economic Review, Vol. 93,

n.º 3, 2003, pp. 175 e segs., e também “Libertarian Paternalism is not an oxymoron”,

http://ssrn.com/abstract_id=405940 (última visita a 22.03.2012). 22

SUNSTEIN, Cass R. e THALER, Richard H., Nudge. Improving Decisions About Health, Wealth and Happiness,

Penguin Books, New York, 2009.

38

paternalismo, na medida em que os “planificadores públicos e privados” tentam delibera-

damente conduzir a ação dos indivíduos de modo a promover o seu bem-estar.

Para esta posição, o respeito pelas escolhas individuais funda-se muitas vezes na ideia de

que a opção feita pelo próprio é sempre melhor do que a que seria tomada por terceiros, o

que não corresponde necessariamente à verdade23. Uma vez que os “planificadores”, ou

“arquitetos da escolha” têm muitas vezes de se decidir por determinados “pontos de parti-

da” ou criar “normas subsidiárias”, é legítimo indagar se podem ir “para além do inevitável”

quando procedem a essa escolha, com o objetivo de maximizar o bem-estar24. Partindo da

constatação de que em muitas situações as preferências individuais não têm uma base de

sustentação sólida, assumindo as normas subsidiárias ou pontos de partida um papel de

relevo, poderá ser de admitir a possibilidade de os poderes públicos procurarem influenciar

essas preferências, com o objetivo de promover o bem-estar das pessoas25.

Finalmente, defendem que “o paternalismo não pressupõe necessariamente o uso de

coação”26.

Este novo tipo de paternalismo foi, no entanto, alvo de diversas críticas. Claire A. Hill

considera que “o facto de as pessoas cometerem erros e de, por vezes, lhes faltar autocon-

trolo” não deve servir de justificação para o “anti-anti-paternalismo” (nome que atribui ao

paternalismo libertário). Para a Autora, esta posição parece assumir que é possível saber o

que os indivíduos realmente desejam, independentemente do que escolhem, o que é um

pressuposto indefensável. Ainda que as pessoas, por vezes, cometam erros ou façam coisas

23

Os Autores admitem, no entanto, que nem sempre é essa a razão, sendo que algumas críticas tecidas ao

paternalismo assentam na autonomia em si mesma, sustentando-se que as pessoas devem ter liberdade de

escolha, ainda que façam opções erradas. Defendem, contudo, que “seria fanatismo tratar a autonomia, enquan-

to liberdade de escolha, como algo que não pode ser ultrapassado por razões consequencialistas”. Por outro

lado, este “argumento da autonomia perde validade pelo facto de muitas vezes as preferências e as escolhas

serem feitas em função das soluções pré-dadas”. Para além disso, entendem que o respeito pela autonomia é

suficientemente acautelado pelo paternalismo libertário uma vez que há sempre a possibilidade de optar em

sentido contrário. Ver SUNSTEIN, Cass R. e THALER, Richard H., “Libertarian Paternalism is not an oxymoron”, cit.,

pp. 4 e 5, 9, também nota 19, 26 e 27. 24

SUNSTEIN, Cass R. e THALER, Richard H., “Libertarian Paternalism is not an oxymoron”, cit., pp. 24 e 25. Os

Autores dão como exemplo uma cafetaria, na qual a opção por colocar a fruta à frente dos doces poderia condi-

cionar a escolha das pessoas, induzindo-as a uma alimentação mais saudável. Segundo eles esta é uma interven-

ção bastante suave, até porque não impõe nada a ninguém. Ver também SUNSTEIN, Cass R. e THALER, Richard

H., Nudge. Improving Decisions About Health, Wealth and Happiness, cit., pp. 1 e segs. 25

SUNSTEIN, Cass R. e THALER, Richard H., “Libertarian Paternalism is not an oxymoron”, cit., p. 42. 26

SUNSTEIN, Cass R. e THALER, Richard H., “Libertarian Paternalism is not an oxymoron”, cit., p. 7. De facto,

esta perspetiva implica um alargamento do conceito de paternalismo, uma vez que se considera que o paterna-

lismo assenta em dois pressupostos: o primeiro é que este “exclui uma opção ou impõe uma escolha”; o segundo

é que “essa escolha se exclui ou se impõe para o bem da própria pessoa”. Nesse sentido, CLARKE, Simon, “De-

bate: State Paternalism, Neutrality and Perfectionism”, in The Journal of Political Philosophy, Vol. 14, n.º 1, 2006,

p. 117. Ora o paternalismo libertário não preenche o primeiro destes pressupostos.

39

num determinado momento de que posteriormente se arrependam, não é possível saber

quais as suas reais pretensões, faltando-nos uma base para a legislação paternalista, ainda

que libertária. Por mais “conveniente e tentador que seja extrapolar da nossa própria

introspeção que os outros querem ou deveriam querer o mesmo que nós, pura e simples-

mente não temos acesso aos seus desejos e convicções”27.

Também Mario J. Rizzo e Douglas Glen Whitman se opuseram a esta perspetiva, questio-

nando se faz sentido sustentar que quem decide as políticas públicas conhece melhor as

“verdadeiras preferências” dos indivíduos do que os próprios28.

Os Autores entendem que é de acolher, por princípio, a ideia de aumentar o bem-estar

dos cidadãos atendendo às “suas próprias verdadeiras preferências”. No entanto, esse obje-

tivo não se poderá realizar sem que quem decide consiga aceder a informação que não

detém e que, a maior parte das vezes, não tem meios de obter. As políticas públicas têm de

se escorar nalguma coisa, e quem toma decisões irá recorrer “às suas próprias preferências,

às preferências de peritos, ou às (supostas) preferências do público em geral”. Consequen-

temente, não é possível “implementar as ‘verdadeiras’ preferências das pessoas”, mas sim

as que se consideram ser as “’corretas’” e “o novo paradigma paternalista vai fornecer a

cobertura intelectual para que tal aconteça”29.

Esta perspetiva tem ainda suscitado críticas no sentido de se considerar que este “moldar”

das escolhas dos indivíduos por parte dos poderes públicos pode conduzir a abusos, uma vez

que é mais difícil de controlar do que políticas assumidamente coercivas.Entende-se que há

aqui uma certa manipulação e um aproveitamento das fraquezas dos indivíduos quando

tomam decisões. Ainda que o paternalismo libertário não ponha em causa a possibilidade de

escolha, a exploração das fragilidades individuais acaba por interferir com a autonomia, no

seu sentido mais profundo. Os meios de persuasão racional devem ser, por isso, os instru-

mentos preferenciais a utilizar pelos poderes públicos30.

Partindo de tudo o que vimos e procurando responder à questão que inicialmente colo-

cámos, que é a de determinar se existem tipos de paternalismo jurídico que se podem eti-

camente justificar, estamos, antes do mais, de acordo com Kai Möller, Cass R. Sunstein e

27

HILL, Claire A., “Anti-anti-paternalism”, in NYU Journal of Law & Liberty, Vol. 2, 2007,

http://ssrn.com/abstract=956153 (última visita a 22.03. 2012), pp. 445 e 448. 28

RIZZO, Mario J. e WHITMAN, Douglas Glen, “The knowledge problem of new paternalism”, in Law & Eco-

nomics Research Paper Series, Working Paper n.º 08-60, http://ssrn.com/abstract= 1310732 (última visita a

22.03. 2012), p. 22. 29

RIZZO, Mario J. e WHITMAN, Douglas Glen, “The knowledge problem of new paternalism”, cit., p. 78. 30

HAUSMAN, Daniel M. e WELCH Brynn, “Debate: to Nudge or Not to Nudge”, in The Journal of Political Phi-

losophy, Vol. 18, n.º 1, 2010, pp. 128 e 135.

40

Richard H. Thaler, na parte em que defendem que as políticas paternalistas devem ser inevi-

tavelmente compatíveis com o respeito pela autonomia, não se devendo admitir o “paterna-

lismo moral”, ou seja, a imposição, por parte dos poderes públicos, de determinados

padrões morais alegadamente no interesse da pessoa, independentemente de esta estar ou

não de acordo com eles.

Por outro lado, as perspetivas destes Autores concretizam-se em propostas de um pater-

nalismo que não tem como objetivo impor valores aos indivíduos com os quais estes não

estão de acordo, mas que visa antes a proteção da sua “integridade”, tendo em considera-

ção as escolhas que fariam se pudessem antecipar as consequências dos seus atos.

No entanto, Cass R. Sunstein e Richard H. Thaler sustentam que o “paternalismo libertá-

rio” só se pode justificar se as pessoas puderem, como regra geral, evitar facilmente a opção

sugerida. Uma vez que esta perspetiva não pressupõe coação e permite que as pessoas pos-

sam optar por outras vias, parece “estar a salvo da objeção paternalista”31.

São, apesar disso, pertinentes as críticas que lhe foram feitas no sentido de ela padecer

de um “problema cognitivo”32: a impossibilidade de saber o que efetivamente a pessoa con-

sideraria melhor para si se conseguisse prever todas as implicações da sua decisão. Por

outro lado, também colhe a crítica de esta perspetiva poder envolver a manipulação das

fraquezas dos indivíduos quando fazem escolhas, o que tem como consequência alguma

perda de autonomia.

Assim, ainda que este tipo de paternalismo não seja totalmente de afastar, é importante

acautelar o risco da sua utilização abusiva, o que se poderá fazer, por exemplo, através do

recurso à publicidade. Se os poderes públicos informarem os seus cidadãos de que estão a

tentar influenciar as suas escolhas, ainda que haja o risco de perda de efetividade, garante-

-se o respeito da sua autonomia33.

Kai Möller vai mais longe, já que entende que para a salvaguarda da integridade do indi-

víduo se poderão justificar restrições à liberdade. Como tivemos oportunidade de constatar,

quando o indivíduo age em sentido contrário ao que são os seus próprios valores, para o

Autor poderá ou até deverá haver uma imposição coativa. Esta posição parece-nos excessi-

vamente restritiva, na medida em que sofre do mesmo problema cognitivo da perspetiva

anterior e implica efetivamente restrições da liberdade.

31 MERRILL, Roberto e BOURDEAU, Vincent, “Republicanismo”, in João Cardoso Rosas (org.), Manual de Filo-

sofia Política, Almedina, Coimbra, 2009, p. 120. 32

Este é precisamente o título do artigo de RIZZO, Mario J. e WHITMAN, Douglas Glen, “The knowledge pro-

blem of new paternalism”, cit. 33

HAUSMAN, Daniel M. e WELCH Brynn, “Debate: to Nudge or Not to Nudge”, in The Journal of Political Phi-

losophy, cit., p. 135.

41

Julgamos, contudo, que serão legítimas medidas estaduais paternalistas quanto estejam

em causa as possibilidades de “autodeterminação futura” da pessoa34. Sendo a autonomia

um valor central na nossa ordem jurídica e cabendo ao Estado criar condições de autono-

mia, será legítimo exigir “que os indivíduos abandonem a liberdade ou o direito a renunciar

permanentemente à autonomia em si mesma”35. Assim sendo, o titular do direito não deve

poder consentir numa intervenção que lhe retire a possibilidade de se autodeterminar

livremente no futuro”36.

Por outro lado ainda, “na literatura anglo-saxónica tem-se feito a distinção entre pater-

nalismo forte (hard paternalism) e paternalismo fraco (soft paternalism)”. Os defensores do

“paternalismo forte” sustentam que se pode impor proteção a pessoas capazes que decidi-

ram voluntariamente autocolocar-se em perigo ou lesar-se. Para o “paternalismo fraco”

apenas será de admitir uma interferência para a proteção do próprio quando a sua decisão

não seja voluntária37.

Pensamos que se justifica uma abordagem paternalista quando se trate “de direitos ou

interesses de menores, de pessoas incapazes de se autodeterminarem ou que se encontrem

numa posição conjuntural de debilidade ou desfavor”38. O “paternalismo fraco” (também

34

É também essa a posição de NOVAIS, Jorge Reis, “Renúncia a direitos fundamentais”, in Jorge Miranda

(org.), Perspectivas Constitucionais – Nos 20 Anos da Constituição, Coimbra Editora, 1996, p. 318. Considerando

que o ordenamento pretendeu consagrar a liberdade como uma “situação duradoura”, ver BLECKMANN, Albert,

“Probleme des Grundrechtsverzichts”, in Juristen Zeitung, n.º 2, 1988, p. 59. DE MARNEFFE, Peter, “Avoiding

Paternalism”, cit., p. 81, entende que a autonomia pessoal “implica ter o controlo sobre a própria vida como um

todo”. Este será o caso típico de contratos de escravidão. ARCHARD, David, “Freedom not to be free: the case of

the slavery contract in J. S. Mill’s On Liberty”, in The Philosophical Quarterly, Vol. 40, n.º 160, 1990, pp. 461 e 462,

considera que algumas críticas foram feitas a Mill pelo facto de este, ao recusar que a pessoa possa livremente

converter-se em escrava, de alguma forma estar a abrir uma brecha no princípio da liberdade e essa alteração

representar uma concessão séria ao paternalismo. No entanto, o Autor sustenta que a proibição de contratos de

escravidão não é paternalista, na medida em que a sociedade não interfere se tiver sido celebrado um contrato

deste tipo. Apenas o fará no momento em que se pretenda fazer valer esse contrato. Assim, “só intervirá quando

os termos do contrato sejam violados”, o que só acontecerá se o escravo se recusar a obedecer, pelo que não se

tratará já de uma defesa contra si mesmo, mas antes de uma defesa desejada pelo próprio. Considerando tam-

bém que esta proibição não impede ninguém de viver uma situação de “escravidão de facto”, ver FEINBERG, Joel,

Harm to Self. The Moral Limits of the Criminal Law, cit., p. 71. BOU-HABIB, Paul, “Compulsory Insurance without

Paternalism”, in Utilitas, Vol. 18, n.º 3, 2006, p. 261, considera que a condenação da escravização pelo próprio

parte de um entendimento da “autonomia enquanto valor intrínseco que temos o dever de preservar”. 35

BERG, Jessica Wilen, “Understanding waiver”, in Houston Law Review, Vol. 40, n.º 281, 2003,

http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?Abstract_id=614522 (última visita a 22.03.2012), pp. 290 e 291. 36

EPPELT, Martina Dorothee, Grundrechtsverzicht und Humangenetik, GCA-Verlag, Herdecke, 1999, p. 124;

ZIPPELIUS, Reinhold e WÜRTENBERGER, Thomas, Deutsches Staatsrecht, 31.ª ed. (da obra fundada por MAUNZ,

Theodor), Verlag C. H. Beck, München, 2005, p. 195. 37

MÖLLER, Kai, Paternalismus und Persönlichkeitsrecht, cit., pp. 16 e 17. Ver também FEINBERG, Joel, Harm

to Self. The Moral Limits of the Criminal Law, cit., pp. 12 e segs., que considera que o paternalismo fraco é com-

patível com o liberalismo. Sobre esta distinção, ver ainda DWORKIN, Gerald, “Paternalism”, cit. 38

NOVAIS, Jorge Reis, As Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente Autorizadas pela Consti-

tuição, Coimbra Editora, Coimbra, 2003, p. 450, nota 785.

42

designado “paternalismo social”) “deve ter uma base constitucional precisa que identifique

as fraquezas das pessoas visadas”39. Nestes casos, o Estado está legitimado a tomar deter-

minadas medidas paternalistas que em quaisquer outras circunstâncias lhe estariam veda-

das40. No entanto, ao estabelecer essas medidas tem, necessariamente, de respeitar as exi-

gências do princípio da proporcionalidade41.

Assim, o que determina, para o “paternalismo fraco”, a legitimidade de medidas paterna-

listas é a existência ou a ausência de verdadeira autodeterminação. Parece-nos, por isso,

que será de aceitar também este tipo de paternalismo, que apenas se justifica quando as

pessoas em causa não estejam de facto em posição de cuidar de si mesmas.

Não é, no entanto, de excluir que quando seja difícil avaliar a existência ou ausência de

autodeterminação e haja uma forte presunção de não-voluntariedade se equacione a possi-

39 GOMES, Carla Amado, “Risque sanitaire et protection de l’individu contre soi-même. Quelques topiques

pour un débat“, cit., p. 143. VALDÉS, Ernesto Garzón, “Kann Rechtspaternalismus ethisch gerechtfertigt wer-

den?”, cit., pp. 283-289, estabelece que na vida social se pressupõe que os cidadãos, no que se refere às ques-

tões do seu dia-a-dia, dispõem de uma “competência de base”. A ausência dessa competência é uma “condição

justificativa de medidas paternalistas”, que visam a supressão de desigualdades que têm como fundamento essa

mesma ausência. Assim, segundo ele, se se estiver de acordo com isto, então deve considerar-se que não se

justifica uma interferência do Estado “quando alguém que detém competência de base atenta contra a sua inte-

gridade física ou a sua própria vida”; “quando alguém que detém competência de base tem consciência do risco

de uma lesão certa ou muito provável” que poderá decorrer do gozo de uma determinada atividade; e “quando

alguém, que detém competência de base, põe a vida em risco em favor dos outros”. Apenas “quando se defenda

uma conceção metafísica-religiosa do valor da vida é que é possível justificar a proibição do suicídio ou de ativi-

dades que coloquem a vida em perigo”. 40

SCHLINK, Bernhard, “Die überforderte Menschenwürde. Welche Gewissheit kann Artikel 1 des

Grundgesetzes geben?”, in Der Spiegel, n.º 51, 2003, p. 53. No que se refere, por exemplo à posição dos traba-

lhadores, o TC, no Acórdão n.º 155/04, http://w3.tribunalconstitucional.pt/acordaos/acordaos04/101-

200/15504.htm, sobre o regime jurídico do contrato individual de trabalho na Administração Pública, estabelece

que “as normas sobre direitos fundamentais detêm, no plano das relações de trabalho, uma eficácia de proteção

da autonomia dos menos autónomos. Aqui é evidente o desiderato constitucional de ligação da liberdade fática e

da liberdade jurídica. A Constituição faz depender a validade dos contratos não apenas do consentimento das

partes no caso particular, mas também do facto de que esse consentimento «se haja dado dentro de um marco

jurídico-normativo que assegure que a autonomia de um dos indivíduos não está subordinada à do outro» (…)”. 41

HILLGRUBER, Christian, Der Schutz des Menschen vor sich selbst, Verlag Franz Vahlen, München, 1992, pp.

121 e 122. De facto, em relação a menores e pessoas portadoras de uma deficiência não se deve afastar comple-

tamente a sua opinião. No que se refere a tratamentos médicos, por exemplo, o n.º 2 do art. 38.º Código Deon-

tológico da Ordem dos Médicos, relativo ao dever de esclarecimento e recusa de tratamento, estabelece que

“*n+o caso de crianças ou incapazes, o Médico procurará respeitar, na medida do possível, as opções do doente,

de acordo com a capacidade de discernimento que lhes reconheça, atuando sempre em consciência na defesa

dos interesses do doente”. É esse também o sentido do art. 6.º da Convenção sobre os Direitos do Homem e da

Biomedicina (Convenção de Oviedo) do Conselho da Europa, onde se consagra que “a opinião do menor é toma-

da em consideração como um fator cada vez mais determinante, em função da sua idade e do seu grau de matu-

ridade” e que, no caso de maiores que careçam de capacidade para consentir “a pessoa em causa deve, na

medida do possível, participar no processo de autorização”.

43

bilidade de pressupor essa ausência42. Poderá, pois, haver restrições “graças ao custo asso-

ciado com a determinação de autonomia caso a caso”43.

Para além destas situações, o paternalismo estadual, tal como o definimos, deve ser,

então, de afastar, não cabendo ao Estado, em princípio, um dever de proteção contra a von-

tade do indivíduo (desde que capaz). Tal dever existe apenas em situações extremas ou

quando este não esteja em posição de cuidar de si. Excetuando estes casos não é de admitir

uma proteção imposta, que restrinja as possibilidades de atuação do visado44, já que tal

proteção implica uma violação grave “da presunção de liberdade que deriva do princípio da

dignidade da pessoa humana”45.

Nesse sentido, entende-se que a opção por correr determinados riscos se insere no “pro-

jeto de vida” do próprio indivíduo, projeto que deve ser escolhido livremente, de acordo

com as suas convicções pessoais, porquanto em “sociedades plurais” não é “desejável uma

absoluta uniformização dos comportamentos individuais”46. Assim, quando o sujeito se colo-

ca em perigo ou mesmo quando provoca uma lesão no seu direito, sendo ele capaz e estan-

42

RADIN, Margaret Jane, “Market Inalienability”, in Harvard Law Review, Vol. 100, n.º 8, 1986/1987, pp. 1909

e 1910, entende que algumas restrições impostas à possibilidade de venda de certos bens no mercado decorrem

das grandes dificuldades que implica avaliar todas as transações de modo a aferir se o consentimento é verdadei-

ramente livre. Também FEINBERG, Joel, Harm to Self. The Moral Limits of the Criminal Law, cit., pp. 79 e 174 e

segs., entende que em certas situações, como será o caso de contratos de escravidão, tendo em consideração “a

qualidade incerta da prova e a forte presunção de não voluntariedade, poderá justificar-se que o Estado entenda

que a medida menos arriscada seja presumir a não voluntariedade em todos os casos”. Quando “o consentimen-

to para uma dada conduta perigosa é tão raro (…) que dificilmente seria dado a não ser em casos de ignorância,

coacção, ou de ausência de algumas faculdades, o legislador poderá simplesmente excluí-lo com base no princí-

pio do dano a terceiros” e não por razões paternalistas. 43

BERG, Jessica Wilen, “Understanding waiver”, cit., p. 325. 44

FROTSCHER, Werner, “’Big Brother’ und das deutsche Rundfunkrecht”, in Schriftenreihe der LPR Hessen, n.º

12, 2000, p. 43. Considerando que a defesa da pessoa contra a autolesão não está incluída no dever de proteção

estadual, ver ISENSEE, Josef, “Das Grundrecht als Abwehrrecht und als staatliche Schutzpflicht”, in Josef Isensee –

Paul Kirchhof (orgs.), Handbuch des Staatrechts der Bundesrepublik Deutschland, Vol. V, 2.ª ed., C. F. Müller

Verlag, Heidelberg, 2000, p. 190. 45

GOMES, Carla Amado, “Estado Social e concretização de direitos fundamentais na era tecnológica: algumas

verdades inconvenientes”, cit., p. 423; FELDMAN, Jean-Philippe, “Faut-il protéger l’homme contre lui-même? La

dignité, l’individu et la personne humaine”, in Droits, n.º 48, 2009, p. 99. DÖRR, Dieter, Big Brother und die Mens-

chenwürde, Peter Lang, Frankfurt am Main, 2000, p. 66, considera que o dever de proteção do Estado nunca

poderá ir ao ponto de “afetar a liberdade de conformação de vida garantida pela dignidade”. Defendendo, no

entanto, que o dever de proteção imposto ao Estado “inclui até mesmo a proteção da pessoa contra si própria”,

de tal modo “que o Estado se encontra autorizado e obrigado a intervir em face de atos da pessoa que, mesmo

voluntariamente, atentem contra a sua própria dignidade, o que decorre do (…) cunho irrenunciável da dignidade

pessoal, ver SARLET, Ingo Wolfgang, Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição

Federal de 1988, 4.ª ed., Livraria do Advogado Editora, Porto Alegre, 2006, pp. 113 e 114. Para o Autor, a digni-

dade implica “um dever geral de respeito por parte de todos (…) os integrantes da comunidade para com os

demais e, para além disso (…), até mesmo um dever das pessoas para consigo mesmas”. 46

DE MELO, Helena Pereira, “A Igualdade de Oportunidades para Quem Opta pela “Estrada do Tabaco”, in

Rui Nunes – Miguel Ricou – Cristina Nunes (orgs.), Dependências Individuais e Valores Sociais, Gráfica de Coim-

bra, Coimbra, 2004, p. 163.

44

do em causa um comportamento autodeterminado, trata-se ainda do gozo de liberdade

jusfundamentalmente protegida47. Numa sociedade democrática e pluralista deve haver

“um direito a errar, a tomar más decisões e a correr riscos”, sem o qual “toda a ideia de

autodeterminação perderia sentido”48.

Não se coaduna, por isso, com a imagem de Homem pressuposta na Constituição uma

conceção que, partindo de uma ideia de deveres de proteção do Estado, considera que este

tem legitimidade para proteger o indivíduo de si próprio49. Não decorre das normas de direi-

tos fundamentais, em princípio, um dever de proteger bens jurídicos contra a vontade do

titular do direito, ou seja, contra aquele a quem o direito fundamental atribui o poder de

disposição sobre tais bens jurídicos50. Assim, deve evitar-se ceder “à tentação de um pater-

nalismo jurídico em que se transfere para a sociedade o encargo de defender os titulares

dos direitos contra as suas próprias condutas”51.

Na base da proteção da pessoa contra si mesma encontra-se uma conceção de dignidade

enquanto princípio que “se exprime pelo reconhecimento da liberdade individual mas que

transcende esta última e, consequentemente, pode justificar restrições ao exercício das

47

HILLGRUBER, Christian, Der Schutz des Menschen vor sich selbst, cit., p. 116. Na intervenção do Deputado

DE MAGALHÃES, José, DAR, 1.ª série, n.º 94, cit., p. 3397, este diz expressamente que a consagração do direito

ao desenvolvimento da personalidade “implica que ao legislador não cabe proteger os cidadãos contra si pró-

prios e impor-lhes paradigmas unidimensionais de comportamento digno, em nome daquilo a que poderia cha-

mar-se a boa personalidade, o retrato do bom cidadão e da personalidade modelo que caberia ao Estado impor a

cada um de nós, subordinando-nos a uma espécie de standard humano, cívico ou político”. 48

FEINBERG, Joel, Harm to Self. The Moral Limits of the Criminal Law, cit., p. 62. 49

Nesse sentido, referindo-se à Constituição alemã, EPPELT, Martina Dorothee, Grundrechtsverzicht und Hu-

mangenetik, cit., pp. 203 e 204; também HILLGRUBER, Christian, Der Schutz des Menschen vor sich selbst, cit., p.

147; ISENSEE, Josef, “Das Grundrecht als Abwehrrecht und als staatliche Schutzpflicht”, cit., p. 203. MÖLLER, Kai,

Paternalismus und Persönlichkeitsrecht, cit., p. 115, considera que a Constituição não visa “a unidade através da

conformidade, mas antes a unidade através do respeito recíproco em pluralidade”. Nessa medida, “não é possí-

vel uma proteção da pessoa contra si própria em virtude da dimensão objectiva dos direitos fundamentais”. Em

sentido contrário, PATTO, Pedro Vaz, No Cruzamento do Direito e da Ética, Almedina, Coimbra, 2008, pp. 200 e

201. Este Autor sustenta que é justificada a defesa da pessoa contra si mesma em casos de “violações objectivas

(ainda que consentidas) da sua dignidade”. 50

SCHWABE, Jürgen, “Der Schutz des Menschen vor sich selbst”, in Juristen Zeitung, n.º 2, 1998, p. 70. Em

sentido contrário, ver FLAUSS, Jean-François, “L’interdiction de spectacles dégradants et la Convention euro-

péenne des droits de l’homme”, in Revue Française de Droit Administratif, n.º 8, 1992, p. 1931. 51

MEDEIROS, Rui e DA SILVA, Jorge Pereira, “Artigo 24.º”, in Jorge Miranda – Rui Medeiros, Constituição Por-

tuguesa Anotada, Tomo I, Coimbra Editora, Coimbra, 2005, p. 263. VIEIRA DE ANDRADE, José Carlos, “Algumas

reflexões sobre os direitos fundamentais, três décadas depois”, in Anuário Português de Direito Constitucional,

Vol. V, 2006, p. 135, refere precisamente que “nas sociedades de risco (...) sobressai a preocupação intensa (...)

com a saúde pública, a segurança alimentar e o ambiente, que tem conduzido a restrições igualmente intensas

das liberdades pessoais e económicas da generalidade das pessoas – a luta contra o tabaco, o álcool e a obesida-

de, a vigilância sanitária aos medicamentos, géneros alimentícios, (...) [etc.] – que, (...) por se revelarem por

vezes excessivas ou indiferenciadas, suscitam resistências, sendo entendidas como novas feições ditatoriais do

Estado”. Para o Autor, na nota 12, está aqui em causa a restrição da liberdade “não apenas para defesa da socie-

dade, mas para proteção do próprio titular dos direitos”.

45

liberdades individuais”52. Uma das razões invocadas pelo Estado para obrigar o titular da

dignidade a um comportamento conforme à dignidade é o facto de este considerar que

sabe, melhor do que o próprio titular, avaliar os seus interesses53.

Não estamos, no entanto, de acordo com esta interpretação do princípio da dignidade da

pessoa humana. Deve ser o próprio sujeito a determinar o que é para si mais ou menos dig-

no. Uma “valoração paternalista”, que transfere para o Estado “a decisão última sobre aqui-

lo que as pessoas devem ou não valorar na sua vida”, independentemente da sua vontade,

converte os direitos em deveres54. Ora não há, nem deve haver, como regra, “direitos obri-

gatórios” em Estado de Direito55.

Num Estado não-paternalista, que se funda na dignidade da pessoa humana e no livre

desenvolvimento da personalidade individual, a defesa da pessoa contra si mesma não deve,

consequentemente, ser considerada fundamento legítimo para a restrição de direitos fun-

damentais56.

52

FELDMAN, Jean-Philippe, “Faut-il protéger l’homme contre lui-même? La dignité, l’individu et la personne

humaine”, cit., pp. 88 e 89. Será o caso, por exemplo, de ISENSEE, Josef, “Menschenwürde: die sekuläre Gesell-

schaft auf der Suche nach dem Absoluten”, in Archiv des öffentlichen Rechts, Vol. 131, 2006, p. 217, que conside-

ra que “a dignidade obriga o Homem à proteção de si mesmo”. Sendo para o Autor a dignidade “inalienável e

irrenunciável, esta veda ao Homem que este se degrade. Nessa medida, estabelece fronteiras à autonomia pri-

vada, em particular no que diz respeito à autodeterminação nos limites da vida”. LEITE DE CAMPOS, Diogo, “A

relação da pessoa consigo mesma”, in Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 anos da Reforma de

1977, Vol. II, Coimbra Editora, Coimbra, 2006, p. 143, entende que “o que cada um faz em relação a si interessa

radicalmente aos outros”, sendo que “não se deve fazer a si mesmo o que não se deve fazer aos outros”. 53

FISCHER, Kai, Die Zulässigkeit aufgedrängten staatlichen Schutzes vor Selbstschädigung, Peter Lang,

Frankfurt am Main, 1997, p. 192. 54

NETO, Luísa, “O Direito Fundamental à Disposição sobre o Próprio Corpo”, in Revista da Faculdade de Direi-

to da Universidade do Porto, Ano I, 2004, p. 226. 55

NOVAIS, Jorge Reis, “Renúncia a direitos fundamentais”, cit., pp. 286 e 287. Embora sejam de admitir exce-

ções, como é o caso dos direitos-deveres. 56

OLIVEIRA, Nuno Manuel Pinto, “Inconstitucionalidade do Artigo 6.º da Lei sobre a Colheita e Transplante de

Órgãos e Tecidos de Origem Humana”, in Scientia Iuridica, n.os

286/288, 2000, pp. 260 e 261. VIEIRA DE ANDRA-

DE, José Carlos, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 4.ª ed., Almedina, Coimbra, 2009,

pp. 299 e 300, considera que “neste domínio é de exigir ao legislador uma especial fundamentação social do

desvalor atribuído às atividades restringidas” uma vez que estas restrições contendem com o livre desenvolvi-

mento da personalidade. MAGALHÃES, Sandra Marques, “O valor do corpo humano. Considerações sobre os atos

de disposição do próprio corpo e os transplantes de órgãos intervivos”, in Diogo Leite Campos (coord.), Estudos

sobre o Direito das Pessoas, Almedina, Coimbra, 2007, p. 208, reconhece também que não é fácil justificar a

proibição de atos individuais que não afetem terceiros se tivermos em conta “o pluralismo, a tolerância e a não-

discriminação hoje preconizados”. FELDMAN, Jean-Philippe, “Faut-il protéger l’homme contre lui-même? La

dignité, l’individu et la personne humaine”, in Droits, n.º 48, 2009, p. 104, considera que não pode haver prote-

ção da pessoa contra si própria “porque o homem é livre e, consequentemente, responsável”. Entendendo ainda

que a proteção da pessoa contra si própria em si mesma considerada não pode legitimar uma restrição da liber-

dade, ver HILLGRUBER, Christian, Der Schutz des Menschen vor sich selbst, cit., pp. 120 e 121.

Reflexões epistemológicas sobre a liberdade enquanto

possível pressuposto do agir humano e sua

(ir)relevância para a construção do jurídico

Fernando Conde Monteiro

Introdução

Tendo-nos sido endereçado o convite para a realização de um artigo relativo à temática

“Responsabilidade e Cidadania”, tema escolhido no âmbito dos encontros anuais do Depar-

tamento de Ciências Jurídicas Públicas, resolvemos deixar aqui alguns tópicos sobre o magno

tema da liberdade. Fá-lo-emos visando estabelecer uma ligação entre a ideia de liberdade e

os seus pressupostos epistemológicos. As estreitas limitações, que nos foram impostas em

termos de dimensão do nosso estudo, obrigaram-nos naturalmente a um esforço de conten-

ção no sentido de limitarmos a nossa actividade analítica, crendo que de qualquer maneira

poderemos deixar ao leitor uma visão do essencial da questão em causa.

A ideia de liberdade sempre andou ligada à de responsabilidade, independentemente do

contexto em que esta última se tenha afirmado. Se alguém é considerado como não livre,

diz-se, pelo menos usualmente, que esse ente não pode ser objecto de responsabilidade.

Efectivamente, ser-se responsável é ser-se centro de imputação num plano subjectivo. Tra-

dicionalmente, esta imputação tem sido sinónimo de ser-se culpável quando se age num

certo sentido dentro de um leque de opções. Noutros termos, opta-se por um comporta-

mento proibido ou não se realiza um comportamento exigido, caindo-se assim no plano da

ilicitude e ficando em aberto outras possibilidades de condutas. Nesta possibilidade de

alternatividade tem-se, de facto e no âmbito jurídico também, fundamentado a liberdade.

Neste contexto, perguntar-se-á de forma frontal: é o agir humano, enquanto substrato

do juízo de valor, um agir livre e nesta medida podendo constituir objecto de concretos juí-

zos de censura, também especificamente jurídicos?

Obviamente que esta abordagem pode ser realizada de diversos modos e sob diferentes

perspectivas. Iremos antes de mais tratar este tema num plano de abertura, ou seja, toman-

47

do em consideração o ser humano no plano global da sua existência1, o que significará que

as conclusões a tirar também poderão ser legítimas no contexto jurídico, algo portanto a

tomar em conta na própria historicidade e culturalidade deste2, a par da sua natureza epis-

temologicamente significativa, que também inevitavelmente detém3. Noutros termos, dir-

-se-á, assim, que o direito constitui, antes de mais, um Dasein, a saber, apresenta-se como

uma realidade, provida de intenções e, neste plano, abrindo-se a perspectivas que as sirvam.

Surge, deste modo e num primeiro momento, como expressão de algo a fazer, de um dado a

dar-se, como se tratasse de desenhar uma casa, segundo determinadas coordenadas, que

no entanto possibilitassem um sem número de modelos, mas também rejeitassem outros4.

O problema da liberdade: considerações epistemológicas

Dentro deste plano e com o citado propósito iremos debruçar-nos sobre o que, na nossa

perspectiva, em essencial, se coloca de relevante epistemologicamente com a problemática

da liberdade.

Sendo, como se sabe, esta última questão uma realidade de enorme complexidade, é

reconhecido que se tem apresentado, antes de mais e como já deixámos dito, como uma

1 Sobre isto, a nossa tese de doutoramento Omissão Impura em Direito Penal (Reflexões acerca do funda-

mento e do ilícito material-objectivo do crime de omissão impura), 2006, pp. 28 e segs. 2 Neste sentido, CASTANHEIRA NEVES, Metodologia Jurídica, Problemas Fundamentais, Coimbra Editora,

1993, p. 49, ao escrever: “Os pensamentos revelam-se deste modo entidades culturalmente históricas. São fun-

ção da concepção do direito e dos objectivos práticos específicos por que ele se orienta em cada época e nos

diversos sistemas jurídicos. Mais do que isso, são função inclusivamente do sentido fundamental da cultura

englobante, do sistema cultural global, porquanto aí se oferecem já os últimos referentes intencionais (o próprio

sistema de valores que o direito assimilará), já as estruturas noéticas que nessas épocas condicionam as possibi-

lidades de pensar abertas a qualquer pensamento integrado nesse mesmo universo cultural”. De notar contudo,

que falta saber se a cultura – com tudo aquilo que envolve – é efectivamente uma realidade dominada por um

relativismo omnipresente – como considera este autor – ou se, para além desse relativismo, também há lugar

àquilo que, à míngua de melhor expressão, poderíamos designar por uma realidade transcendental, expressiva

de pensamentos e valores nomeadamente, que se encontram para além da contingência histórica e cultural,

ainda que tal não coloque em causa o carácter contextual da realidade tout court. 3 Sobre esta, relativamente ao direito penal mas extensível em larga medida a todo o direito, cf. nosso artigo

“Algumas Reflexões Epistemológicas Sobre o Direito Penal”, in Estudos de Homenagem ao Prof. Doutor Jorge de

Figueiredo Dias, Vol. II, Coimbra Editora, 2009, pp. 756 e segs. 4 Como significação paradigmática de uma intencionalidade própria, ainda que não expressada de um modo

unilateral, mas abrindo-se à “transcendência do imanente”, como algo que necessariamente reclamasse um

sentido e significado próprios. Neste sentido, CASTANHEIRA NEVES, Metodologia Jurídica, Problemas Fundamen-

tais, cit., p. 14, “Ora se reconhecermos – antecipando uma conclusão que havemos de justificar – que à realiza-

ção do direito corresponde actualmente um sentido problemático-concreto e uma intenção normativa material,

só lhe podendo ser assim adequada uma perspectiva metódica que assimile aquele sentido e seja susceptível de

cumprir esta intenção, então o problema que de imediato se põe à metodologia jurídica é a de definir a índole

metodicamente intencional dessa adequação metódica – ou o tipo adequado dessa intencionalidade metódica”.

48

crença generalizada, orientadora das nossas condutas, enquanto meros cidadãos, que afir-

marmos a existência de uma liberdade psicológica, sempre que fazemos opções e desde que

tenhamos (ou julgámos ter tido) a possibilidade de, no momento da sua tomada, podermos

ter decidido diferentemente – portanto podendo ou julgando poder agir de forma diferen-

te5.

Na linha deste pensamento do senso comum, ainda que num plano metafísico, encon-

tramos a ideia de liberdade baseada igualmente na vontade, como realidade que apenas

depende de si mesma, facto este que, de resto, perpassou toda a história da filosofia ociden-

tal até aos nossos dias. Efectivamente a perspectiva de que somos livres assenta, neste

âmbito, no facto de as nossas decisões obedecerem à lógica da nossa vontade, em si consi-

derada, porque dependendo de si própria, da sua íntima natureza e não de factores a ela

alheios6.

Próxima ainda desta noção, encontramos a correspondência entre a ideia de liberdade e

de necessidade, encarada esta última como realidade ontológica e metafísica. A liberdade

individual cede aqui em favor de uma liberdade mais ampla, porque inerente ao ser total e

nesta medida transcendendo as meras realidades contingentes7, ainda que eventualmente

perspectivado num plano existencial8.

Para além destas duas últimas concepções, que poderemos designar de cariz absoluto,

encontramos uma imensa variedade de noções relativistas da liberdade – nas quais a pri-

meira das concepções referidas se pode enquadrar. Neste sentido, o acto livre consubstan-

ciar-se-á numa opção, que, embora condicionada, se considerará dotada de liberdade, por-

5 Encontramo-nos aqui perante um conceito de liberdade, que poderíamos designar psicológico, querendo

deste modo significar com isto, que traduzimos o sentir e o pensar da maioria (senão mesmo da generalidade)

dos cidadãos comuns, sobre a tomada de decisões. Neste contexto, expressões, como: “ele podia ter agido de

outra maneira”, “mereceu o castigo”, “ninguém o mandou fazer isso”, etc., podem expressar uma idêntica reali-

dade de fundo, ou seja, a íntima convicção de que as nossas acções são livres, porque assentes em opções, que

embora podendo ser condicionadas por factores vários, tornando nomeadamente a escolha relativizada em

função dos objectos possíveis, não deixam por isso de ser livres, na medida em que o respectivo agente poderá

(ou entender-se-á como tal) optar pelo menos por duas alternativas. Sobre isto FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal I,

2.ª ed., Coimbra Editora, 2007, pp. 515-516. 6 Esta perspectiva remonta já a ARISTÓTELES, Ethica a nicomachea, 1957, III, 5, 1113b. Cf., semelhantemente,

o primeiro sentido, emergente do Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de

Lisboa, Verbo, 2001, p. 2260. 7 Neste sentido, entre outros, DIÓGENES L., vitae et placita philosophorum, 1878, VII, 121; ESPINOSA, Ética, I,

def. 7; HEGEL, Grundlinien der Philosophie des Rechts, 1981, § 33, Zusatz; KANT, Kritik der Reinen Vernunft, 1787,

I, livro I, cap. III, 2.ª ed. Igualmente, DE BRITO, António José, Introdução à Filosofia do Direito, Rés, p. 192. De

notar, com particular atenção, a posição de Hartmann, que colocando a liberdade na esfera da supra-

determinação, face ao determinismo dos estados do ser inferiores (Éthik, 1935, p. 649,), coloca-a no plano das

finalidades humanas referidas a valores (lembremos aqui desde logo Welzel e o seu finalismo, que tanta influên-

cia produziu no âmbito do Direito Penal). 8 Assim, JASPERS, Ich muss, Philosophie, II, 1956, pp. 186 e 195.

49

que não proveniente ou determinada por certa espécie de factores ou mesmo de determi-

nados factos – plano negativo. Por outro lado, a definição, neste âmbito, dos pressupostos

ou condições inerentes ao agir livre, num plano positivo, suscita naturalmente múltiplos

posicionamentos, que poderão ir desde a afirmação da simples liberdade (relativa) de moti-

vos e das possibilidades9 até à ainda afirmação do seu carácter transcendental, ainda que

limitada pelo mundo onde se insere10, passando por concepções de cariz voluntarista11.

Se olharmos para estes posicionamentos que poderemos dizer? Debrucemo-nos, antes

de mais, sobre o plano metafísico. Por exemplo, tomemos em consideração a concepção da

liberdade como uma realidade absoluta, como expressão de uma vontade em si mesma

considerada e, portanto, não sujeita a qualquer causalidade que esteja fora de si. O que

significará tal posicionamento no plano empírico? Algo é desde logo evidente: uma afirma-

ção deste teor ficará efectivamente por demonstrar. Se alguém praticou determinado facto,

em que medida é que este se poderá considerar livre? Será, porque não houve influências

de terceiro, de outras pessoas, de outras realidades exteriores e que, portanto, a decisão só

teve por base uma motivação (exclusivamente) pessoal? Obviamente que uma conclusão

deste teor nunca poderá ser demonstrada no plano dos factos, ou seja, no mundo fenome-

nal onde nos movemos. De acordo com o esquema básico de conceber o comportamento

humano, este surge da combinação de factores intrínsecos ao sujeito (o ser biológico antes

de mais) e de factores provenientes do meio (exterior)12, daqui resultando um indivíduo,

único13, mas igualmente compartilhando de características comuns aos outros indivíduos da

9 Cf. neste sentido, PLATÃO, Respublica, X, 1939, 617 e, 620 a, 1932.

10 HEIDEGGER, Vom Wesen des Grundes, III, 1949.

11 Entre outros, HOBBES, De hom II, §2; HUME, An enquiry concerning human understanding, 1979, p. 95. Cf.

igualmente LOCKE, An Essay concerning human understanding, vol. I, 1959, p. 316, onde afirma a liberdade como

expressão do poder de determinação ou do pensamento do espírito. 12

De notar que as influências entre o interior do indivíduo e o seu meio se iniciam a partir da concepção e

apenas cessam com a morte daquele – em rigor e num plano “pré-histórico”, isto é, antecedente à junção do

espermatozóide com o óvulo, as influências relativas ao indivíduo a ser formado começam muito antes do acasa-

lamento dos progenitores e vão-se perdendo nos tempos... Nesta perspectiva, afirmar que determinada acção é

apenas produto do indivíduo, em si, representa, na sua singeleza, não tomar em consideração os mais elementa-

res processos de conhecimento, nem sequer diríamos científico, mas simplesmente empírico, comuns à espécie

humana. Que a afirmação possa valer somente num plano religioso ou metafísico constitui naturalmente outra

questão. 13

De referir que esta unicidade é, desde logo e para a grande maioria, de natureza biológica – a excepção

aqui é a referente aos gémeos univitelinos, mas mesmo neste âmbito existem diferenças: pois, como refere

DAMÁSIO, António, O Erro de Descartes, trad., 11.ª ed., 1995, p. 264 “ O genoma humano especifica com grande

minúcia a construção dos nossos corpos, o que inclui o design geral do cérebro. Mas nem todos os circuitos se

desenvolvem activamente e funcionam como se encontra estabelecido nos genes. Uma grande parte das redes

dos circuitos do cérebro, em qualquer momento da vida adulta, é individual e única, reflectindo a história e as

circunstâncias daquele organismo em particular. Naturalmente que isso não facilita a revelação dos mistérios

neurais”.

50

mesma espécie14, que o faz integrar em modelos ou padrões da mesma natureza – antes de

mais, no género humano15. Negar isto, significa abstrair da ciência, do conhecimento feno-

menal e colocarmo-nos num plano transcendental, independente, relativamente ao qual

podem valer considerações lógicas, filosóficas, teológicas ou de tipo semelhante, mas em

que a lógica dos factos ou o recurso a critérios empíricos se encontra desde logo afastado. E

se é certo que a ciência, enquanto sistema de conhecimentos, quer sobre a natureza, quer

sobre o ser humano16, não nos pode dar resposta para tudo17, também não é menos verda-

de que a erecção de juízos valorativos, necessariamente diferentes da mera realidade empí-

rica, porque desde logo provenientes de uma esfera autónoma (que não independente),

nunca deverá abstrair (pelo menos de todo) deste óbvio substrato, pois o dever-ser é, antes

de mais, um dever para seres de carne e osso (lembremos Unamuno), ou seja, o seu objecto

incide sobre uma realidade existencial, participando necessariamente do tempo, do espaço

e demais características envolventes18. Aspecto este, de resto, omnipresente no âmbito do

14 Características estas, quer de natureza biológica, quer de natureza cultural (de notar que empregamos,

neste contexto, a expressão em causa, cultura, em sentido lato, enquanto algo que acresce à natureza genética

do sujeito). 15

Efectivamente sem regularidade, sem leis (independentemente do seu carácter determinista ou não) a

ciência, qualquer que ela seja, é sem sentido. Historicamente, como se sabe, o nascimento da ciência (do ponto

de vista empírico) obedeceu à ideia de decompor a realidade nos seus elementos mais básicos e de estabelecer

relações lógicas de carácter determinista (atomismo lógico). Sobre isto, RUSSEL, Bertrand, “The Philosophy of

Logical Atomism” (1924), in Logic and Knowledge, RC Marsh London: Allen and Unwin, 1956, pp. 323-43; WITT-

GENSTEIN, Ludwig, Tractatus Logico-Philosophicus, Kegan Paul, London, 1922. 16

Lembremo-nos da usual classificação entre ciências empíricas e ciências sociais ou humanas. Para uma ab-

ordagem epistemológica conjunta, cf. WOLIN, Sheldon, “Paradigms and Political Theories”, in Paradigms and

Revolutions, Gary Gutting, University of Notre Dame Press, Indiana, 1980. 17

São actualmente por demais evidentes as limitações epistemológicas, que aquilo, a que modernamente se

designou por ciência, apresenta. Entre outras, recordemos, mais uma vez, a incapacidade derivada dos nossos

aparelhos sensitivos de poderem apreender o real em toda a sua riqueza (basta pensar desde logo no contributo

importantíssimo dado neste plano por Kant ou nas informações sobre esta questão fornecidos pela Gestalt) até

ao relativismo da linguagem (Wittgenstein) e não deixando de tomar em consideração as dificuldades metodoló-

gicas e mesmo ônticas (perpassando estas, desde a microfísica – pense-se aqui, antes de mais, no princípio da

incerteza – até às ciências humanas) e ainda as suas incapacidades de abrangência no âmbito do seu conteúdo,

derivadas também do seu método (lembremos mais uma vez o falsificacionismo popperiano) e do estágio da sua

evolução. No entanto, não se deverá obliterar o facto de ainda não se terem desenhado alternativas à ciência,

enquanto processo de conhecer a realidade – é que se as há, permanecem “no segredo dos deuses”, o mesmo é

dizer, que nos surgem por demonstrar. Efectivamente não foram os conhecimentos de carácter religioso, místico

ou metafísico, que nos possibilitaram expressar visões coerentes e adequadas (porque confirmadas de facto) do

mundo que nos rodeia (aspecto teórico) e de que também fazemos parte; como também este tipo de conheci-

mentos se revelaram totalmente incapazes de dominar um sem número de doenças, construir pontes e edifícios

assombrosos, comunicar quase sem quaisquer limites, rodearmo-nos de um sem número de artefactos destina-

dos ao nosso bem-estar, etc. (aspecto pragmático). A ciência está aí (constitui assim um novo Dasein), acompa-

nhando-nos desde o nascimento até à morte – ignorá-la, equivale a ignorar a própria vida, a nossa vida; endeusá-

la, significa traí-la, nos seus propósitos e modos de ser. Sobre tudo isto, em termos muito sintéticos, cf. o nosso

artigo, “Algumas Reflexões Epistemológicas…", cit., pp. 757-760. 18

Ainda que os possa (e deva) transcender – fundamental é que os tenha em consideração, como já deixá-

mos referido. Neste sentido, a nossa tese Sobre a Omissão Impura em Direito Penal…, cit., p. 229, n. 437.

51

direito, tal qual é considerado nos nossos dias, a saber, como realidade secular e necessa-

riamente dotada de utilidades próprias, a serem colocadas ao dispor da sociedade19, de

acordo com critérios de valor, expressivos necessariamente de opções de cariz axiológico – o

mesmo é dizer, envolvendo decisões no plano do inter-relacionamento social20.

Daqui que, neste contexto, a liberdade se torne um problema de todos e de cada um de

nós, enquanto seres viventes de sociedades politicamente organizadas e cunhadas histórica

e culturalmente. Ora, apresentando-se como crença generalizada, orientadora das nossas

condutas, enquanto meros cidadãos comuns, ora, surgindo como valor fundamental no pla-

no político, das relações do indivíduo com o Estado21, ora, colocada em causa, enquanto

mera ilusão, em contraposição com o conhecimento científico22, sempre a liberdade surge

como questão, relativamente à qual naturalmente ninguém poderá ficar indiferente, tor-

nando-se mesmo no eixo sobre o qual a maior parte dos pensamentos de cariz ético (e tam-

bém jurídico) giram23.

Problema central, neste plano, é, antes de mais e como já deixámos referido, o de com-

patibilizar o conhecimento que possuímos de nós próprios (e do próprio mundo em que nos

movemos) com algo, que parece, desde logo e em essência, ser-lhe o oposto24. Efectivamen-

te e do ponto de vista empírico, os avanços verificados pelas ciências, que se debruçam

sobre o homem, demonstram, cada vez com maior solidez, que existe uma multiplicidade de

factores a influenciar as condutas humanas, sendo aqui particularmente significativo o con-

tributo da genética25 e da neurologia26, mas sem que tal oblitere a presença de outros domí-

19

Naturalmente que o este posicionamento é já cunhado, em certa medida, em termos culturais e históricos,

como já referimos. O direito penal medieval não era completamente autónomo relativamente ao fenómeno

religioso, como também o direito (penal) em múltiplos países muçulmanos surge como pura expressão da reli-

gião oficial – o que, por outro lado, não significa cairmos num absoluto relativismo. Neste sentido o nosso artigo,

“Algumas Reflexões Epistemológicas…", cit., p. 762, referido ao direito penal mas extensível a todo o direito. 20

Assim, o nosso artigo, “Algumas Reflexões Epistemológicas…", cit., p. 763. 21

Encontramo-nos aqui perante o sentido político da liberdade (um dos mais importantes de resto), que

modernamente deu expressão à construção do Estado de direito, na sua vertente liberal e democrática. Para

uma reflexão actual sobre este problema, entre outros, TULLY, James, Public Philosophy in a New Key, I, II, Cam-

bridge University Press, New York, 2008. 22

Deste modo, poderemos encontrar-nos perante uma concepção positivista, negadora da liberdade em fun-

ção de uma ideia determinista e mecanicista do universo ou de algo parecido. Sobre esta, para quem sinta espe-

cialmente interesse sobre este tema, leia-se o clássico de LAPLACE, Traité de mécanique céleste, Editions Jacques

Gabay, 1990. 23

Neste sentido, DE BRITO, António José, Introdução à Filosofia do Direito, cit., pp. 167 e segs. Também no

mesmo sentido, FIGUEIREDO DIAS, Liberdade, Culpa, Direito Penal, 2.ª ed., 1983, pp. 117 e segs. 24

Cf., neste sentido, ROXIN, Strafrecht, AT, I, 4.ª ed. Verlag C.H. Beck München, 2006, §19, D. De notar, que

para nós esta questão reveste-se de especial significado, dado que a dimensão empírica nunca poderá ser nega-

da, porque ser uma constituinte determinante do agir humano. 25

Notemos de qualquer maneira o carácter fortemente probabilístico desta ciência. Como exemplo disso,

GOLDBERG, David, Genetic Algorithms in Search, Optimization, and Machine Learning, Addison-Wesley, 1989.

52

nios do saber, igualmente no plano individual, como é o caso da psicologia27 ou da psiquia-

tria28 ou no plano colectivo, como sucede com a antropologia, a sociologia ou a história29.

Em verdade, sendo certo que a ciência (stricto sensu), enquanto tal, não formula juízos de

valor, procurando fundamentalmente estabelecer conexões entre os vários fenómenos,

tendo em vista formular leis ou teorias explicativas dos mesmos, de carácter determinista ou

somente de natureza estatística30ou mesmo simplesmente evitar, impedir ou produzir

26 De particular importância, revestem os estudos desenvolvidos por Libet e posteriormente continuados

pelos seus seguidores, que apontam para o facto de as nossas decisões conscientes – pelo menos as mais simples

– serem previamente tomadas no plano do subconsciente, ao nível dos nervos sensoriais, havendo lugar a um

espaço de cerca (menos) de meio segundo entre a prévia resposta neuro-sensorial e a aparente e subsequente

tomada de decisão. A ser assim e por extensão, as decisões humanas teriam lugar de acordo com o modelo

cibernético, num plano de interacção (de inputs e outputs) entre o sistema interno do indivíduo e o meio envol-

vente (robots e inteligência artificial poderiam assim sem mais substituir os seres humanos!). De resto, é de há

muito reconhecido, na psicanálise, que o inconsciente domina as nossas vidas e a própria parapsicologia recorre

preferencialmente a este mesmo inconsciente para explicar frequentemente todos aqueles fenómenos que não

cabem no estereótipo da psicologia e por isso fazem parte do seu objecto de estudo (precognição, telepatia,

levitação, assombrações, etc.). O que tudo parecia, nesta perspectiva, convergir para aquela ideia shakespearia-

na de que constituímos as sombras de alguém… De qualquer maneira, Libet expressa bastantes reservas a este

seu inicial modelo, afirmando no fundo não haver lugar a qualquer prova de um controlo inconsciente das nossas

acções. Sobre isto, LIBET, B., in Handbook of Sensors Physiology, v. II, 1973, pp. 743-790; LIBET, B., ALBERTS,

W.W., WRIGHT, E. W., LEWIS, M. & FEINSTEIN, B. (l975); In: The Somatosensary System (Kornhuber, H. H. ed.) pp.

291-308. Stuttgart: Georg Thieme; ROSENTHAL, The Time of Conscious States in Consciousness and Cognition II,

2002, pp. 215-220. Num plano crítico, KLEIN, S.A., Libets`sTemporal Anomalies: A Reassessment of the Da-

ta.Consciousness and Cognition. 11, 2002, pp. 198-214; 326-333, e o próprio LIBET, Do We Have Free

Will?,Oxford handbook of Free Will, ed. Robert Kane, 2002, pp. 151 e segs. 27

Tenha-se desde logo em conta o carácter aberto desta disciplina, onde a proliferação de múltiplas teorias

(comportamentalismo, geneticismo, cognitivismo, humanismo, psicanálise, etc.), com diferentes e mesmo opos-

tos pontos de vista, lhe dão um carácter, em certa medida, situado entre a doxa e o estatuto das ciências empíri-

cas (como a física ou a química) – fruto em larga medida do seu carácter complexo em muitos casos adverso à

utilização de meios positivistas, podendo assim falar-se numa “causalidade plural”, ou seja, um mesmo fenóme-

no poderá ser explicado por diferentes pontos de vista, todos “verídicos” – algo, de resto, não exclusivo desta

área de conhecimento, mas podendo também encontrar-se desde logo no plano das ciências mais básicas, a

começar com a física, onde qualquer físico, minimamente consciente do seu trabalho, sabe que um mesmo

fenómeno pode ser, frequentemente, explicado por diferentes teorias. Neste sentido, FEYNMAN, Richard, O que

é uma lei física?, trad. de Carlos Fiolhais, do original The Character of Physical Law (1967), Gradiva, 2.ª ed., 2000,

p. 216. 28

Para uma interessante análise interdisciplinar da questão da liberdade humana no plano da consciência,

The Volitional Brain, vários, ed. Benjamin Libet, Anthony Freeman e Keith Sutherland, 2000. 29

De notar, de qualquer maneira, que do ponto de vista epistemológico nos encontramos perante disciplinas

ainda longe de alcançar o estatuto das ciências da física ou mesmo da biologia, neste sentido, o nosso artigo

“Algumas Reflexões Epistemológicas…”, cit., p. 759. 30

Caso paradigmático, desde logo, é-nos dado pela física quântica, onde a ideia de explicação causal e

determinística dos fenómenos não pode ter lugar em consequência desde logo do princípio da incerteza de

Heisenberg, sendo substituída por verificações de carácter estatístico, que funcionam como os fiéis da balança

relativamente aos modelos elaborados. Neste sentido, D`ESPAGNAT, B., The Conceptual Foundations of Quantum

Mechanics, 1971; FEYNMAN, Richard, O que é uma lei física?, cit., pp.163-189. Afirmando a persistência do

determinismo, ainda que reduzido a “metade”, por virtude da incorporação do princípio da incerteza, HAWKING,

Stepehen, O Universo Numa Casca de Noz, trad., 2002, pp. 105 e segs. De resto, se nos ocuparmos de determi-

nadas realidades no âmbito da macrofísica, como os fenómenos atmosféricos ou a determinação da posição das

moléculas dos gases, imediatamente nos damos conta da impossibilidade de podermos determinar de forma

53

determinados efeitos31, parece assim que a existência de uma liberdade de autodetermina-

ção surge deste modo como um corpo (pelo menos aparentemente) estranho, em face des-

ta declarada intenção de estabelecer quadros ou padrões do agir humano. Ou seja, a enun-

ciação de quaisquer leis ou teorias, no âmbito do comportamento humano, estaria deste

modo sujeita a um princípio de incerteza32, derivado de um elemento imprevisível, não

sujeito a quaisquer leis, a liberdade humana, que funcionaria assim como uma espécie de

“patinho feio” no interior de um desenho apolíneo, pronto a tudo colocar em causa33. Por

outro lado, mesmo prescindindo do factor liberdade, como parece óbvio, nunca qualquer

ciência que vise compreender o ser humano poderá alguma vez concretizar este desidrato

na sua totalidade34. A imensidão de factores inerentes ao agir dos seres humanos é de tal

certa essa posição ou de realizar previsões deterministas no âmbito do clima – aqui também ficamos dependen-

tes da utilização de métodos estatísticos. Encontramo-nos assim no plano dos fenómenos caóticos, onde a sim-

ples introdução de pequenas alterações nas condições iniciais do sistema determina, com o tempo, grandes

alterações no funcionamento do mesmo, de modo que a nossa capacidade de previsão sofre significativamente

com isso – é conhecida neste contexto a afirmação de que o bater das asas de uma borboleta, por exemplo, no

Japão, pode provocar um furacão na Florida. Naturalmente que à medida que avançamos nos vários patamares

do conhecimento (biologia, medicina, psicologia, sociologia, etc.), menos possibilidades temos de alcançar rela-

ções de carácter determinista, ficando-nos assim perante relações de âmbito probabilista – obviamente que

neste domínio tudo dependerá da margem de probabilidade alcançada, digamos que a obtenção de uma mar-

gem de pelo menos 95% de probabilidades de previsão de determinados factos poderá ser considerada episte-

mologicamente significativa, no sentido de ser considerada ainda ao lado do conhecimento científico stricto

sensu. Neste sentido, BENSON, NIGEL C., Introducing Psychology, (1998), reimp., Icon Books, 2007, p. 24. 31

Cf., neste sentido e no plano da psicologia, especificamente no âmbito das teorias comportamentalistas, B.

SKINNER, Science and Human Beahvior, Macmillan, 1953, onde a afirmação da rejeição dos chamados modelos

médicos ou etiológicos é vista em favor da teoria de que as nossas condutas são fundamentalmente derivadas de

modelos de aprendizagem Num plano próximo, colocando a ênfase na linguagem do cérebro humano, como

forma de produção de acções psicologicamente significativas, BANDLER, Richard, Usando sua mente, trad.,

Summus Editorial, 1987, pp. 13 e segs. 32

De notar que este “princípio da incerteza” pouco teria que ver com o verdadeiro princípio da incerteza de

Heisenberg, não apenas porque o seu âmbito seria diferente, mas igualmente pela sua absoluta falta de previsibi-

lidade, ao contrário daquele. Com interesse neste âmbito, cf. SIMON, Herbert, Administrative Behavior: A Study

of Decision-Making Processes in Administrative Organizations, 4.ª ed., Free Press, 1997. 33

Encontrar-nos-íamos assim perante uma “vontade livre,” cuja natureza se caracterizaria pela transcendên-

cia relativamente a tudo o resto. 34

Lembremos a propósito a conhecida passagem de LAPLACE, Éssai philosophique sur les probabilités (5.ª

ed., 1825), 1986, pp. 32-33, onde este autor afirma o seguinte: “Uma inteligência que num dado momento

conhecesse todas as forças da natureza e a respectiva situação dos elementos que a compõem e fosse ainda tão

vasta que pudesse submeter esses dados à análise englobaria numa mesma fórmula os movimentos dos corpos

maiores do universo e os do mais diminuto átomo: nada seria incerto para tal inteligência e o futuro tal como o

passado, encontrar-se-ia perante os seus olhos”. De notar, que esta forma de perspectivar a realidade – natural-

mente compreensível no momento histórico do seu surgimento – não poderá actualmente ser mais sufragada,

por virtude, desde logo, do surgimento da física quântica; no entanto, não poderemos deixar de fazer justiça ao

seu autor, pela coerência do seu discurso e pela consciência dos limites epistemológicos do acto de conhecimen-

to – aspecto, este último, que ao se inserir num trabalho sobre as probabilidades, se torna mais claro e que

poderia posteriormente ser reforçado pela designada teoria do caos. Diga-se finalmente que, de qualquer manei-

ra, não se devendo confundir causalidade com capacidade de previsão – pode-se, num dado momento, desco-

nhecer determinados dados de um facto e não se poder, por isso, prever a sua evolução –, o certo é que estas

54

modo complexa, e em muitos casos presta-se tão pouco a análises laboratoriais, que a for-

mulação de previsões (rigorosas) neste âmbito se afigura frequentemente como uma mira-

gem35. Por outro lado, mesmo que pudéssemos conhecer todo o conjunto de factores expli-

cativos dos acontecimentos humanos e assim formular previsões sobre estes, ficaríamos

ainda com um problema adicional: o próprio conhecimento da previsão por parte dos seus

destinatários, incluindo os próprios observadores. Em que medida é que este dado poderia

influenciar a previsão anteriormente realizada? Estaríamos assim perante um novo dado,

imprevisível. O que daí surgisse constituiria uma nova realidade, a carecer de novos conhe-

cimentos, que por sua vez gerariam novos dados e assim sucessivamente…, constituindo tal

naturalmente mais um elemento perturbador numa concepção determinista tout court36. Se

a isto juntarmos os problemas epistemológicos inerentes à actividade de conhecer os fenó-

menos humanos nas suas múltiplas expressões, que vão desde o domínio psicológico37 até

duas realidades andam, deverão andar, intimamente ligadas, sob pena de podermos legitimamente colocar em

causa o próprio determinismo: se a causa A produz sempre – dadas determinadas condições – o efeito B, então é

sempre possível prever que A, naquelas condições, gera o efeito B – ainda aqui, poderemos sempre ficar na

incerteza, pois nada nos garante que um dia poderemos encontrar algo de inesperado (infra n. 36). Que, de

qualquer modo, o conhecimento absoluto não possa ter lugar, dada a complexidade dos factos em causa e por

via disso, tal implique a nossa presumível ou provável ignorância, é algo que, num primeiro momento, tanto

pode permitir a crença no determinismo, como no seu contrário. 35

Cf., neste sentido, o nosso artigo “As Finalidades das Penas no Âmbito do Artigo 40.º do Código Penal”, in

Estudos em Homenagem de Joaquim M. da Silva Cunha, Fundação Universidade Portucalense Infante D. Henri-

que, 1999, pp. 325-338. 36

Neste sentido, o nosso artigo “Algumas Reflexões Epistemológicas…”, cit., p. 759. De notar, para além dis-

to, que a própria metodologia, seguida pela ciência de repetir inúmeras vezes a mesma experiência (quando

possível) até um ponto em que finalmente se desiste (sob pena de os cientistas se encontrarem permanente-

mente a realizar as mesmas experiências ad infinitum), não deixa de desde logo colocar um problema importan-

te, já formulado por Hume, que é o de saber se afinal de contas a causalidade não passa de uma ideia do ser

humano, que ao habituar-se a ver as coisas da mesma maneira cria a ilusão de que tal é uma característica do

seu objecto, quando não constitui fundamentalmente mais do que uma qualidade do sujeito observador, con-

cluindo-se deste modo no sentido de a ciência apresentar um carácter probabilístico. Cf. nesta mesma linha

POPPER, Logik der Forschung, 1934, e a sua célebre teoria da falsificabilidade, (versão simplificada) de que uma

teoria científica nunca poderá ser provada, apenas falsificada. Por outro lado, a ideia de Berkeley de que o ser é

ser percebido ignora as nossas mais básicas experiências, quer de um ponto de vista individual, quer colectivo. Se

nos encontramos inconscientes de algo, com características próprias, físicas, energéticas, etc., nem por isso esse

algo deixa de ter a sua existência autónoma para os outros – embora neste último caso não de forma necessária.

Há assim uma óbvia (ou possível) distinção entre o domínio do objectivo e do hipotético – a ciência disso dá a

prova ao exigir a confrontação de quaisquer hipóteses com a observação ou a experimentação objectivas – o que

não significa, por outro lado, que a percepção e o entendimento desses objectos se identifiquem com um real,

que em definitivo ignoramos se existe mesmo. Efectivamente, como já referimos, o nosso conhecimento do que

nos cerca é parcial, se calhar mesmo ilusório (lembremos mais uma vez o perturbador legado da física quântica

em que o observador cria a “realidade”). Fica-nos assim, eventualmente, aberto o caminho ao mesmo ser, atra-

vés de outros modos: a religião, a metafísica, a arte, uso de estupefacientes, etc. Algo que de resto coloca sem-

pre a questão da objectividade deste tipo de experiências e da sua efectiva natureza… 37

Basta pensar na impossibilidade de, em última análise, se poder penetrar na esfera da intimidade do outro,

do seu mundo interior, só nos podendo mover de fora, através de manifestações desse mundo, exteriorizáveis

por comportamentos de vária índole (falar, gesticular, agir, etc.) ou de manifestações psíquicas desse mesmo

55

aos problemas culturais38 e onde aspectos como a objectividade e a imparcialidade do cien-

tista (ou melhor a falta destas)39, o fenómeno da história40, as crenças (mesmo subconscien-

tes) do observador, os aspectos institucionais41, a linguagem utilizada42, mesmo o facto de se

conseguirem obter resultados satisfatórios43 podem cunhar indelevelmente o saber neste

mundo, captadas por modernas técnicas de registo da actividade cerebral, como é o caso, por exemplo, da

tomografia axial computorizada, da tomografia por positrões ou do electro-encefalograma. Encontramo-nos

assim perante dificuldades epistemológicas, derivadas do nosso aparelho sensorial – possuímos sentidos limita-

dos e a utilização de aparelhos, que nos alarguem a nossa percepção nunca se afigura ilimitada, nem poderá

traduzir a transcrição tout court do fenómeno em si, se ele existir efectivamente – embora naturalmente se

possa afigurar de extrema importância para a sua compreensão e mesmo modificação, se for caso disso. Com

interesse neste plano, cf. GAZZANIGA, The Law and Neuroscience, Neuron, vol. 60, Issue 3 , 6 November, 2008,

pp. 412-415. 38

Efectivamente o estudo de um “mesmo objecto” em diferentes contextos culturais pode, em primeiro

lugar, variar por virtude da diferença de linguagem ou em todo ocaso pelo diferente sentido dos termos usados;

depois, poderá variar também em função de características dominantes inerentes ao contexto cultural em que se

insere ou é estudado, influenciando decisivamente as suas características (pense-se, por exemplo, em todo o

atraso sofrido pela biologia na ex-U.R.S.S., derivado das condições ideológicas aí existentes); finalmente, há que

contar com a própria formação dos investigadores, as suas limitações científicas, as idiossincrasias e naturalmen-

te os seus modelos de investigação e respectivo contexto (aspectos financeiros, condicionantes culturais, institu-

cionais, etc.). Sobre a noção de cultura, A noção de cultura nas ciências sociais, CUCHE, Denys, trad., Verbum,

1999; importante no plano da reflexão da cultura e o ser humano, Human Autonomy in Cross-Cultural Context

(Perspectives on the Psychology of Agency, Freedom, and Well-Being), Chirkov, Valery I., Ryan, Richard M., Shel-

don, Kennon M. (Eds.), 2011. 39

Pense-se, por exemplo, em modelos de explicação dos fenómenos sociais, mais ou menos influenciados

por correntes ideológicas, ou na grande dificuldade de, antropologicamente, podermos compreender culturas

muito diferentes da nossa, possuidoras de códigos, linguagens, visões do mundo e modos de estar muito pró-

prios ou ainda nas múltiplas correntes vigentes no âmbito da psicologia, com linguagens, objectos e terapias por

vezes muito diferenciadas ou ainda da falta de objectividade, proveniente do facto de partilharmos igualmente

de experiências semelhantes, conjunto de crenças e lugares comuns com os seres objecto de observação. Para,

por exemplo, uma perspectiva muito sintética do que deste ponto de vista se passa na psicologia, BENSON,

NIGEL C., Introducing Psychology…, cit., 2007. 40

Lembremo-nos, só a título de mera curiosidade, o facto de, nas ciências humanas, o conhecimento ter

estado em grande parte (e ainda hoje isso acontece) dependente de aspectos como a possibilidade do saber das

várias línguas donde derivavam as publicações científicas; de, por outro lado, se assumirem “modas” no trata-

mento de questões, por vezes, sem grande interesse científico, etc. 41

Tenhamos aqui em consideração os sistemas institucionais de produção de conhecimentos, como o caso

das universidades, onde desde os modos de selecção de candidatos até á configuração da carreira, nunca estes

poderão ser de todo considerados inocentes na própria produção científica, pois naturalmente, uma coisa será a

produção do conhecimento numa atmosfera de autonomia plena, outra a sua produção num contexto de rela-

ções de subordinação funcional, como igualmente se passarão as coisas diferentemente se se puder dispor de

meios financeiros suficientes ou não, se se puder investigar livre de constrangimentos temporais, políticos, de

avaliações quantitativas perfeitamente imbecis, etc. 42

Basta pensar, desde logo e a mero título exemplificativo, na ambiguidade da linguagem de noções como a

de inconsciente no âmbito da psicologia (BIRMAN, Joel, Estilo e Modernidade em Psicanálise, Editora 34, 1997, p.

159) ou da noção de classe social no plano da sociologia (PALKULSKI, J., WATERS, M., “The reshaping and dissolu-

tion of social class in advanced society”, in Theory and Society, 25, Kluwer Academic Publishers, 1996, pp. 667-

91), para não referir mais… 43

Efectivamente, se, por exemplo, se poder tratar eficazmente uma fobia, tal não significa que se tenha

compreendido o seu surgimento ou que não possa haver outros métodos ainda mais eficazes para o fazer –,

sendo, de resto, muito frequente que no âmbito, por exemplo, da psicologia surjam múltiplas técnicas acompa-

nhadas do seu arcaboiço teórico, revelando várias explicações para um mesmo tipo de fenómenos. E mesmo no

56

âmbito, então, poderemos concluir, que, independentemente de quaisquer outras conside-

rações, a questão do conhecimento de cariz determinista é algo de utópico44, pelo que tam-

bém se constituirá como uma questão em aberto, não podendo ser plenamente demonstra-

do ou negado45.

Por outro lado, e de um ponto de vista lógico, encarada a liberdade, enquanto conceito

negativo46, como algo inerente a um agir sem nada que o determine, fica-se, neste plano,

sem saber o que possa explicar o acto livre assim delineado47.

É que, se colocarmos no vácuo (agora criado) da liberdade a razão, identificando as duas,

então poderemos estar a substituir um vácuo por outro. Efectivamente e num plano exis-

tencial, parece óbvio que tal solução se apresentará sedutora só na aparência. Em verdade,

sendo a razão algo, em si mesmo, formal48 – possibilitando o estabelecimento de conexões

lógicas entre os diferentes dados da experiência, produzindo conceitos e abstracções, com-

binando-os entre si –, parece óbvio que a escolha dos conteúdos (matéria) a ser objecto de

uma decisão racional, pode, para além de obedecer a critérios objectivos, obedecer igual-

domínio da física, aquilo que se considere assente, através da observação e da experiência, pode posteriormente

ser posto em causa, por meio da revelação de incongruências e contradições – o exemplo, célebre, da teoria de

gravitação universal de Newton em comparação com a teoria da relatividade geral é disso prova bastante (EINS-

TEIN, Albert, Teoria da Relatividade, Grande Dicionário Enciclopédico Ediclube, Ediclube, XV, “Relatividade”). De

resto, a possibilidade de mesmo na física se poder explicar por diferentes teorias um mesmo fenómeno, como já

referimos, é disto prova, assim, FEYNMAN, Richard, O que é uma lei física?, p. 216. 44

Utópico não apenas pela própria “natureza das coisas” (pensemos desde logo na física quântica), mas

igualmente por virtude das próprias limitações gnosiológicas, lógicas, senão mesmo históricas e culturais, que

neste âmbito se colocam, como já deixámos referido. 45

Cf. neste sentido, o nosso artigo “As Finalidades das Penas no Âmbito do Artigo 40.º do Código Penal...”,

cit., pp. 325-338. 46

O que, de certa maneira, corresponde a um frequente uso desta noção. Quando alguém se diz livre, tal

implica sempre, explícita ou implicitamente, uma relação de negatividade. É-se livre relativamente a algo, a

alguém ou num plano mais geral (absoluto) a tudo (?!). Cf. neste sentido, Dicionário da Língua Portuguesa Con-

temporânea…, “liberdade”. 47

Encontrar-nos-emos deste modo perante um “buraco epistemológico”, que a permanecer, enquanto tal,

nada nos poderá dizer sobre o conteúdo (positivo) dessa liberdade. Mais, a afirmação da liberdade total, num

plano negativo, constitui simplesmente um paradoxo lógico. Se digo: “sou livre totalmente (de tudo)”, ao negar

qualquer elemento influenciador da minha vontade, o que fica? Simplesmente nada, neste plano, nem eu pró-

prio serei influência de mim, do meu agir, nem sequer de resto se poderá falar em agir, pois se o agir pressupõe

algo que o ponha em movimento, sem esse algo, como explicar as actividades do ser que age totalmente livre? O

ser livre constitui assim a pura negação de si próprio, enquanto ser que age. Sendo alterado este estado de coi-

sas, no sentido do preenchimento de tal vazio, interessará naturalmente que não se crie outro buraco, o mesmo

é dizer, que esse preenchimento há-de não ser meramente formal, mas deverá apresentar-se, do ponto de vista

substantivo, dotado de suficiente precisão e rigor, de modo a constituir um efectivo princípio vectorial das aludi-

das acções livres do ser humano. 48

Cf., neste plano, PLATÃO, Menon, 98 a; WITTGENSTEIN, Tratactus logico-philosophicus…, cit., 6.11. De

notar contudo que o carácter formal da razão não a impede de ser criadora, exactamente pelo facto de estabele-

cer laços de múltipla índole entre os objectos, pense-se, a título de exemplo, nas noções elaboradas pela razão

de sereia ou de centauro – em si mesmos, estes entes não possuem existência empírica, no entanto, a sua cria-

ção não derivou do nada, mas da prévia observação sensorial, que constituiu a base sobre a qual operou a razão.

57

mente a critérios puramente subjectivos, de carácter biológico, emocional, de natureza cul-

tural, de âmbito idiossincrático, exprimindo sentimentos de vária índole, crenças, ideias

preconcebidas, lugares comuns, etc.49. Deste modo, poderemos obter uma imensa mole de

decisões incompatíveis entre si e todas elas alicerçadas racionalmente50. Isto constitui o

nosso dia-a-dia, trespassa a história da humanidade e invade mesmo o conhecimento dito

científico, mormente, enquanto – ao invés do que, por exemplo, sucede no âmbito das ciên-

cias empíricas –, não haja lugar à verificação objectiva das proposições proferidas (ou pelo

menos dos seus efeitos), através, nomeadamente, da observação e experimentação51. De

49

Lembremos a este propósito os contributos no pensamento filosófico ocidental sobre esta problemática de

Schopenauer ou de Nietzche, de Kierkkegard ou de Freud. Fundamental neste âmbito foi o surgimento do desig-

nado Círculo de Viena na sua intenção, em todo o caso frustrada, de instituir critérios de validade que fundamen-

tassem em definitivo o conhecimento científico. No plano da filosofia oriental, atentemos, por exemplo, ao ramo

budista do Zen, particularmente na modalidade Zazen, onde a utilização dos famosos Koan visa tão-só quebrar a

lógica do raciocínio no sentido de desenvolver uma outra “lógica”, do transcendente, contrária às regras do

pensamento discursivo. De resto, como também já dissemos, em toda a riqueza milenar do pensamento hindu,

sempre se fez largamente apelo a uma razão intuitiva e transcendental, que habitando em tudo e também no ser

humano, constitui a expressão na natureza do divino, neste sentido... Não muito longe disto, ainda que, como

sugestão, não falta quem, a partir da física quântica e perante questões como a possibilidade de conceitos como

a “não localidade” ou a partir do princípio da incerteza de Heisenberg, fale num psiquismo inerente à matéria, cf.

neste sentido PINHO DE ALMEIDA, Da Essência da Matéria e o Sentido da Vida, 1967, pp. 85-97, no plano neuro-

lógico, estabelecendo a ligação entre emoção e razão, DAMÁSIO, António, O Erro de Descartes…, cit., pp.13-4. 50

Pensemos desde logo na matemática e na infinidade de pressupostos de que podemos partir para logica-

mente construirmos diferentes sistemas mais ou menos incompatíveis entre si. Um exemplo muito conhecido

disto foi-nos dado pela erupção, após dois mil anos de reino incontestado da geometria de Euclides, das geome-

trias não euclidianas. E se isto é verdade no plano das ciências, por maioria de razão será atestado no plano das

decisões do dia-a-dia, ainda que a existência de critérios objectivos (percepções, crenças comuns, etc.) actue

como elemento de contenção de um subjectivismo, que, sem eles, iria perturbar em definitivo a comunicação em

qualquer colectividade. Com interesse e no âmbito das ciências matemáticas, cf. COEHEN, Paul J., Set theory and

the continuum hypothesis, W. A. Benjamin, New York, 1996. 51

De notar, neste âmbito, o contributo fundamental de KUHN, Thomas (A Estrutura das Revoluções Científi-

cas, trad., 3.ª ed., Perspectiva, 2000, pp. 107-123), ao demonstrar, contrariamente ao entendimento de Karl

Popper, que, regra geral, os cientistas, quando se dão conta que as suas teorias começam a ser contraditadas

pelos factos, em vez de as abandonarem, tomam exactamente a posição contrária, defendendo-as até às últimas

consequências, só delas se desprendendo quando surgem novas teorias mais abrangentes do que as anteriores.

Neste sentido, também não deixa de ser significativo o facto de, mesmo no plano das ciências empíricas e

nomeadamente na física, se afirmar frequentemente a necessidade da presença de novas gerações de cientistas

para que estes possam entender melhor os desenvolvimentos operados. De resto, a própria verificação de que os

maiores contributos no plano científico dos cientistas (pense-se, por exemplo, nos galardoados com o prémio

Nobel) tiveram lugar a grande maioria das vezes em idades jovens (não acima dos quarenta e cinco anos), inde-

pendentemente do que tal possa significar num plano biológico, não poderá de pelo menos sugerir a existência

de componentes idiossincráticas fortemente enraizadas no sujeito. Algo que também não poderá ser, pelo

menos de todo, desligado da presença do ego do sujeito, enquanto elemento perturbador do exercício da inteli-

gência. Facto, este, por seu turno, que, particularmente no domínio das designadas ciências humanas, pode

tornar-se obsessivo, ofuscando, desta maneira, a objectividade desejada e tornando difícil a possibilidade de

dialogar. Algo, finalmente, não estranho ao mundo académico e às suas formas iniciáticas, em que, por vezes, as

provas de ascensão dos seus membros são subordinadas a um princípio do contraditório (de resto vigente no

domínio do direito processual penal) e onde naturalmente o ego dos participantes (particularmente dos candida-

tos à subida de degrau) se faz sobressair com maior ou menor estrondo, em detrimento da análise do conteúdo

58

resto, se se concebesse o ser humano como uma espécie de máquina a operar segundo

regras estritamente lógicas, à laia do funcionamento de um qualquer computador, natural-

mente que tal significaria, como já deixámos referido, cairmos no mais férreo determinismo,

onde tudo seria previamente determinado52. Nem por último, as coisas se alterariam signifi-

cativamente na hipótese, tantas vezes utilizada, de se contrapor a razão, encarada como

sinónimo da liberdade, face ao instinto e às emoções, vistas como expressão do lado negati-

vo do ser humano, construindo-se deste modo um conceito de liberdade que poderíamos

designar de cariz psicológico53. O que aqui se designaria por razão constituiria aquilo que se

torna normal, habitual no comportamento do ser humano, porque de acordo com as suas

características próprias54. Já o deixar-se levar pelo instinto, pela pura emoção, não pensando

antes de agir, caracterizaria o actuar primário, característico dos animais55. Em todo o caso,

a afirmação da liberdade, aqui, significaria tão-só a superlativação de uma causalidade dife-

rente. Ou seja, constituiria a mera substituição de determinados processos causais, por

outros de diferente natureza, porque coincidentes com determinado sentido da vida, dese-

jado como tal; o que não deixaria, por outro lado, de se afirmar, num plano existencial (psi-

cológico, neurológico) como uma pura utopia, pois o agir humano, incluindo o seu pensar

não podem de todo ser divorciados de emoções e de sentimentos56.

objectivo do trabalho apresentado, como se tivéssemos num debate político televisivo decisivo para os candida-

tos envolvidos. 52

De notar neste âmbito a questão muito debatida da utilização da inteligência artificial como possível forma

de substituição da inteligência humana. Em todo o caso, dever-se-á afirmar, que, face aos dados conhecidos,

nomeadamente provenientes da neurologia, tal tarefa é simplesmente irrealizável. E isto, porque ao contrário

das máquinas, o pensamento humano encontra-se rodeado de emoções. Ora, tanto quanto se sabe, estas são

pertença de seres vivos e não de máquinas, pelo que a reprodução de cérebros humanos em máquinas (compu-

tadores, robots) revela-se simplesmente uma utopia, pelo menos nos estritos termos em que as emoções são

processadas no cérebro humano. Cf. sobre isto http://affect.media.mit.edu/index.php, acesso 26/02/2012. 53

Deve-se dizer em boa verdade que o conflito entre a razão, assim encarada, e a emoção é algo que faz par-

te de cada um de nós e influencia em maior ou menor medida o universo de vida no qual nos movemos, não

admirando, por isso, que povoe largamente a arte, desde a literatura até à música. De particular importância,

mesmo para o direito penal (pense-se, por exemplo, no art. 20.º do CP ou na lei sobre estupefacientes), reves-

tem as dependências de que todos nós somos em maior ou menor medida portadores e que, como estados

psicológicos mórbidos, caracterizados como encerrando em si um conflito entre uma razão que não deseja o acto

e uma emoção que o determina, podem influenciar negativamente as condutas dos respectivos seres humanos,

com efeitos mais ou menos devastadores para os respectivos titulares, bastando pensar em situações como as

dependências do álcool, drogas, comida, jogo, etc. 54

Esta concepção supõe uma ideia de normalidade do comportamento humano, no plano cognitivo-

-emocional, nem sempre de fácil apreensão. De outros pontos de vista, religiosos, metafísicos, se parte para

negar, controlar os sentimentos e pulsões humanas, considerados como obstáculos ao desenvolvimento humano

em direcção à transcendência, ao absoluto – pense-se, por exemplo, no budismo, no yoga, cristianismo, etc. 55

Lembremos desde logo a posição aristotélica de afirmação do ser humano como racional face a estes. 56

Cf. neste sentido, mais uma vez, DAMÁSIO, António, O Erro de Descartes…, cit., pp. 142 e segs.

59

Se, por outro lado, colocarmos a vontade (psicológica e arbitrária), no lugar da liberda-

de, identificando-as, então estaremos perante a ruína da própria ética (e também natural-

mente da ética jurídica). Efectivamente, que sentido terá a emanação de normas de condu-

ta em face de um ser “livre”, que pura e simplesmente age de forma arbitrária, sem sequer

ser possível prever o seu comportamento? Pareceria assim que a liberdade dos ditos inim-

putáveis (por exemplo, no âmbito do direito penal) seria a mais real de todas as liberdades,

porque dependente em absoluto (ou em larga medida) de nada ou de tudo57. De resto, a

simples afirmação de um puro arbítrio poderia efectivamente encobrir a existência de pro-

cessos causais subjacentes; de qualquer forma, ainda que estivéssemos perante o puro aca-

so, deveremos fazer notar que este também se encontra subordinado a leis (as leis do aca-

so), que qualquer pessoa poderá provar, através do simples acesso ao “Excel” do seu com-

putador – de resto, todo um conjunto maior ou menor de actividades, como é o caso dos

seguros, jogos de azar, etc., encontram-se subordinadas a cálculos probabilísticos, sendo

mesmo esta uma área em plena expansão, não faltando mesmo experiências, do estilo de

se procurar saber qual a probabilidade de encontro de dois gémeos, separados à nascença,

segundo determinados pressupostos58. Por outro lado, ainda, se afirmarmos que a vontade

é livre, se se verificar que é livre de condicionalismos exteriores e portanto apenas se

encontrando condicionada em si mesma, então, perguntar-se-á que condicionalismo é esse

que habita a vontade, que leis é que o regem e se assim não é, perguntar-se-á de novo se

afinal de contas não havendo qualquer condicionamento e portanto a vontade, sendo

então livre de tudo e de nada, não constituirá simplesmente puro arbítrio, mera abstracção,

algo do domínio do transcendente de carácter metafísico ou divino...

Noutro plano, a consideração de uma liberdade de carácter relativo, no sentido de que a

não consideração de determinados factores permita o afirmar da liberdade tout court do

respectivo indivíduo, deixa também e desde logo, um óbvio vazio por explicar, configurando-

-se como uma afirmação, que, apesar de vulgar no discurso humano, resulta fundamental-

mente de uma crença não demonstrada. Efectivamente, em que medida é que (mais uma

vez) se poderá conciliar adequadamente um universo causal, determinativo do agir humano,

57

O que seria naturalmente um contra-senso, sem necessidade de mais explicações. 58

Problema, neste âmbito, de extremo impacto cultural, social e religioso constitui a divulgação da teoria das

espécies de Darwin no séc. XIX. O escândalo provocado, apesar do óbvio efeito mediático, não se colocou (pelo

menos para as autoridades religiosas mais cultas) na questão do ser humano provir de um animal – afinal de

contas tudo era criação de um mesmo Ente –, mas principalmente do facto de o aparecimento do homem surgir

do acaso, portanto fora de qualquer plano providencial (tese da criação). Sobre isto, ver, por exemplo, AYALA,

Francisco J., Darwin´s greatest discovery: Design without designer, National Academy of Sciences of the USA, 104

Suppl. 1, 2007, pp. 8567-73; em sentido oposto, cf. BEHE, Michael J., Darwin´s Black Box: The Biochemical Chal-

lenge to Evolution, 1.ª ed., Free Press, 1996, e JOHNSON, Philip E., Darwin on Trial , Inter Varsity Press, 1991.

60

de que a ciência e mesmo a experiência empírica nos dão, ainda que parcialmente, conta,

com um outro universo, diametralmente oposto, o da liberdade (conceito negativo, positi-

vo), face a um mesmo sujeito e num plano de relatividade? De modo concreto, como se

poderá avaliar, com critérios viáveis, seguros, que A ao matar B agiu livremente só porque

certos factores não estiveram presentes? Certamente que será, apesar de tudo, mais fácil

provar a não liberdade de alguém, pela demonstração (positiva) da existência de determi-

nados factores, que de forma causal ou presumivelmente causal, possam ter originado

determinado comportamento. Afirmar a liberdade (relativa) só porque eventualmente

determinados factores não devam ser considerados no caso, pois a sua consideração impli-

caria uma relação de causalidade, é esquecer a multiplicidade de outros factores e a sua

eventual relevância ao caso, ficando esta por demonstrar. É esquecer assim que a exclusão

de determinados factores só poderá ser afirmada se tal for demonstrado (inexistência de

qualquer relação de causalidade entre factor x e factor y), mas daqui não se podendo inferir

que todos os demais factores ou alguns deles não poderão ser considerados como causais.

Podendo a consideração destes ser praticamente infinita, nunca, desta forma, se poderá

inferir a existência de um conceito pela simples não prova de determinado tipo de factos

(posição dogmática, mera crença sem qualquer substrato substancial). Melhor seria conside-

rar a exclusão de determinados factores (“liberdade relativa”) em função de outros, objecto

de demonstrações positivas, como deixámos referido. Bom, mas isto é a forma como as

ciências operam. Desde a física (clássica) até à psicologia, procura-se isolar (se possível)

determinados fenómenos e seguidamente vai-se procurar estabelecer relações entre si. Se

em face do factor x, o objecto y produz o resultado z, na ordem de 100% ou próximo disso,

temos ciência na sua mais conseguida expressão59. Ora, afirmar-se (e tratando-se de com-

portamentos humanos) que A não é livre relativamente à conduta c, por virtude da relação

de causa e efeito detetada (correlação entre os factores x e y), mas que, relativamente ao

59

O que não invalida totalmente o posicionamento de POPPER, Karl, Conjectures and Refutations, Londres,

Routledge and Keagan Paul, 1963, pp. 33-39, no sentido de exigir a falsificabilidade de qualquer teoria científica,

como condição de validação da mesma, como já anteriormente referimos. Efectivamente, se um enunciado pela

sua natureza ou pelo seu âmbito nunca poderá ser refutado, porque se apoia em simples descrições de factos

concretos, as suas sentenças são muito vagas, têm por objecto realidades metafísicas, etc., naturalmente que as

ciências (empíricas) não poderão nestes alicerçar-se. No entanto, tal não invalidará o facto de se poder induzir a

partir de determinados factos outros semelhantes, de se exigir determinado grau de fiabilidade (de 100%,

90%...), como condições de confirmação de uma teoria ou lei científica. De resto, exemplos de leis determinísti-

cas, no âmbito da física clássica, são abundantes. Por outro lado, a colocação em causa de uma teoria por deter-

minados dados da experiência não significa necessariamente o seu fim, mas poderá exprimir tão só o seu menor

âmbito de aplicação, determinadas anomalias a corrigirem-na, etc. Sobre isto, cf. BLACKBURN, Simon, Dicionário

de Filosofia, The Oxford Dicionary of Philosophy, Oxford University Press, (1994), trad., Gradiva, 1997, pp. 159-

-160.

61

mais, é livre de agir, porque os factores relativos à conduta em causa não operam relativa-

mente às condutas c1, c2, c3…, significa, repetimos, encontrarmo-nos perante uma indução

arbitrária, uma pura crença. Por outro lado, a consideração, nesta linha, por exemplo, da

liberdade, enquanto agir livre de factores externos, como já anteriormente referimos, tam-

bém em nada consegue dar qualquer tipo de solução neste problema. Efectivamente, a

exclusão de determinados factores (externos) deixa a influência de factores internos intocá-

veis, sendo de perguntar o porquê desta discriminação. É que, como é óbvio, o facto de

alguém realizar determinado comportamento, produzir determinado efeito, fazer algo, não

significa que tenhamos de buscar a todo o tipo de factores a explicação para tal – o que, de

resto, seria virtualmente impossível, com já deixámos dito60 – mas que, ao invés, devemos

buscar o estabelecimento de relações (deterministas, probabilistas) entre determinado tipo

de factores. Assim, do mesmo modo que a observação da dilatação dos metais em função

do calor nos permite concluir pelo estabelecimento de uma relação determinista (ou alta-

mente probabilística) entre a acção da energia e a dilatação de determinados sólidos; tam-

bém a consideração de determinados factores (consumo de certos estupefacientes, meio

social, familiar, determinada constituição psicológica, etc.) poderia (se tal fosse possível de

determinar laboratorialmente) implicar o estabelecimento de leis semelhantes às da física

clássica. Logicamente que a consideração de determinados factores a influenciar o compor-

tamento x não exclui outros factores, da mesma maneira, que a consideração do calor não

exclui à partida, no nosso exemplo, considerações de outros aspectos (influência da água, da

pressão atmosférica, etc.)61. A formulação de teorias e leis na física clássica seguiu este

caminho. Idealmente poderíamos conceber idêntico modelo no plano do agir humano. Só

que tal nunca poderá ter lugar, pelo menos de forma plena. Para se determinar os factores

que levaram A a matar B, não se vai decompor o facto em causa nos seus vários elementos,

procurando assim estabelecer relações de natureza causal. A tal se opõe a natureza das coi-

sas (o morto não poderá ser ressuscitado), mesmo razões éticas62, de resto, a adopção deste

tipo de metodologia suporia o apagamento da memória dos respectivos intervenientes

60 Neste sentido, o nosso artigo “As Finalidades das Penas...”, cit., pp. 325-328.

61 Obviamente que o que dizemos deve ser compreendido num contexto envolvente. Quer dizer, a verifica-

ção da dilatação dos metais, no nosso exemplo, pressupõe um meio, com determinadas características padrão,

em que as sucessivas experiências têm lugar. Só que, como é claro, o meio nada produz de per se, apenas fun-

ciona como uma espécie de palco (passivo) onde as personagens representam os seus papéis; do mesmo modo

que o facto de alguém matar outrem pressupor igualmente um cenário, sem que tal signifique o obliterar dos

eventuais factores efectivos do agir em causa, utopicamente provados num hipotético laboratório, onde fosse

possível decompor os vários elementos inerentes a determinado comportamento humano. 62

Suponha-se, por exemplo, que se ensaiariam várias situações e em função dessas mesmas situações, se iria

verificar da ocorrência ou não do dano em causa, por exemplo, a prática de ofensas corporais graves… Neste

sentido, o nosso artigo “As Finalidades das Penas...”, cit., pp. 326-327.

62

humanos, o que efectivamente não acontece. Assim sendo, a crença no determinismo do

comportamento humano passa naturalmente pela selecção de factores, que, com maior ou

menor rigor (ou mesmo deles abstraindo), se julga serem responsáveis por esse mesmo

comportamento e deste modo devendo sujeitá-los a critérios de validação. Tal, de resto,

trespassa o nosso dia-a-dia (constitui algo mesmo que não podemos de todo abstrair)63 e

encontra-se na base da ciência64.

Logo, parece claro que, das duas uma, ou podemos partir da ideia de uma liberdade

absoluta, metafisicamente alicerçada65 ou teologicamente ancorada, como sucede, por

exemplo, no catolicismo66, ou ainda, na impossibilidade de provarmos o carácter determinis-

ta da realidade, poderemos afirmar a liberdade como um simples dado da existência, uma

evidência, desde logo aos olhos do cidadão comum, ou mais modestamente como uma sim-

ples crença. No primeiro caso, encontrar-nos-emos perante uma dedução a contrario sensu.

Porque não é possível demonstrar algo, então o seu oposto, encarado, não num plano

puramente negativo, mas num âmbito positivo, é considerado como verdadeiro. Esta pers-

pectiva esquece que o facto de se não demonstrar algo não significa que esse algo não exis-

ta. Pode mesmo acontecer que tenham lugar fortes indícios da sua existência – como se os

factos indiciassem a prática de um crime por alguém, não obstante faltarem provas inequí-

vocas nesse sentido. No entanto, a falta de demonstração só pode implicar a afirmação

negativa: não é, não foi possível demonstrar. Afirmações positivas: algo existe, com estas e

aquelas características, necessitam naturalmente de confirmação, de demonstração. A única

63

Efectivamente, se é certo que nunca podemos abstrair da formulação de juízos éticos (positivos ou negati-

vos) nas nossas vidas, também não é menos verdade que igualmente, se não mesmo por maioria de razão, não

podemos nunca abstrair de juízos de facto, enunciados sob a forma de estabelecimento de relações causais,

quase sempre só existentes na nossa cabeça, porque nunca objecto de prova e tendo como fim não apenas os

outros, mas toda a realidade que se nos depara; sendo de resto algo de imprescindível para podermos sobreviver

nas nossas sociedades, como outrora o foi para os nossos antepassados habitantes das selvas e das montanhas.

Algo ainda presente no próprio direito. Sobre isto especificamente no âmbito jurídico-penal, cf. o nosso artigo

“Algumas Reflexões Epistemológicas…”, cit., pp. 763 e segs. 64

Referirmo-nos antes de mais ao processo de selecção dos factores, relativamente aos quais se estabele-

cem, senão laços causais, pelo menos estatísticos. Com certeza que no início da ciência a crença no determinis-

mo era, foi total (cf. LAPLACE, Traité de mécanique céleste, Editions Jacques Gabay, 1990). Com o evoluir da

mesma (melhor das mesmas, pois que existem múltiplas ciências e não apenas uma, ainda que a designação

desta expressão seja das mais imprecisas, dado que por tal se designa desde a teologia, ciência paradigmática da

Idade Média no mundo ocidental e ainda hoje predominante em muitos Estados de orientação muçulmana, até à

física) naturalmente que esta ideia (onde primeiramente foi afirmada, pense-se, exemplarmente na física) foi,

quer pela evolução posterior (a maior parte das vezes), quer desde logo pela natureza do seu objecto, em parte

abandonada. Obviamente que a nossa concepção de ciência, aqui presumida, se insere no processo histórico

iniciado no séc. XVI, na Europa ocidental, que culminou com a erecção de todo o conjunto de ciências (empíricas

e sociais), tais quais, estas surgem actualmente, quer nas universidades, quer em centros de investigações, quer

na linguagem corrente... 65

Pense-se, por exemplo, entre nós, em DE BRITO, António José, Introdução à Filosofia do Direito, cit., p. 192. 66

Neste sentido, DE AQUINO, Tomás, Summa Theologica, I, 82, 1 e 2, BAC, 1951.

63

conclusão legítima a tirar neste âmbito é simplesmente afirmar que a maior parte da reali-

dade se nos apresenta de forma mais ou menos regular e assim mais ou menos previsível,

de outro modo, de resto, a vida tornar-se-ia simplesmente impossível67. Digamos aqui, que à

medida que a complexidade aumenta, aumenta proporcionalmente a dificuldade de estabe-

lecer relações deterministas entre os vários fenómenos68 e onde a figura do investigador

(ainda que encarada num plano de objectividade, real, pretensa, possível) não poderá nunca

deixar de tomar o seu lugar. Como também se tem aceitado a existência do determinismo

como algo compatível com a liberdade69. Outras possibilidades contemplam conceitos de

liberdade relativos, sendo o acto livre aquele que escapa (ou parece escapar) a determinado

tipo de fenómenos (não interessando que esteja subordinado a outros) ou afirmando-se,

pura e simplesmente, que escapa a qualquer tipo de outro determinismo70. Por outro lado,

poderemos ainda construir conceitos de liberdade, que pouco ou nada tenham a ver com

esta, como, por exemplo, identificando-a com a responsabilidade, sua consequência71, etc.

Estaremos assim perante múltiplas possibilidades desde a negação da liberdade até à sua

identificação com o determinismo. O que naturalmente reflecte, por um lado, toda a impor-

tância e o significado deste conceito e, por outro lado, toda a polémica em seu torno gerada,

de modo a tornar-se quase impossível delimitar ao menos o seu espaço semântico72.

67 Lembremos neste âmbito, por exemplo, Luis Buñuel, na fase surrealista (“Un Chien Andalou”) e a sequên-

cia alucinante do suceder de acontecimentos, como de um sonho se tratasse, sem qualquer tipo de racionalidade

e servidos soberbamente pelos cenários pintados por Salvador Dali – esta visão pode servir propósitos estéticos,

mesmo filosóficos (lembremos que para os autênticos surrealistas, esta perspectiva constitui um modo de vida),

no entanto, encontra-se (enquanto perspectiva existencial) frustrada pelo modo de ser humano, que não dei-

xando de apresentar surpreendentes e mesmo dramáticos traços de irracionalidade (particularmente visíveis no

âmbito do inter-relacionamento humano), não deixa (não pode deixar) de também carregar importantes caracte-

rísticas de racionalidade, que o colocam a meio termo entre a condição de animal (donde proveio e que o condi-

ciona fortemente no plano emocional e assim no seu comportamento) e a condição de homem (encarado este

conceito, enquanto expressão de um ideal de humanidade, pertença do sujeito pensante, produto do universo

cultural e deste modo aspirando à subtracção do ciclo da pura necessidade). Sobre tudo isto, cf. SCHELER, “Dife-

rença Essencial entre o Homem e o Animal”, in A Situação do Homem no Cosmos, trad. Artur Mourão, Texto &

Grafia, 2008. 68

De notar, de resto, que a indeterminação em causa resulta, quer da natureza da maior complexidade do

objecto em causa (factos meteorológicos, biológicos, psíquicos, etc.), quer também e surpreendentemente do

facto de nos direccionarmos para as realidades mais simples (elementos constituintes dos átomos), como já

referimos. Relativamente a este último ponto, D`ESPAGNAT, B., The Conceptual Foundations of Quantum

Mechanics, 1971. 69

Cf. sobre isto DE BRITO, António José, Introdução à Filosofia do Direito, cit., pp. 171 e segs., onde se poderá

encontrar diversos posicionamentos desta natureza. 70

Neste sentido, entre outros, HOBBES, Leviathan, ed. C.D. Macpherson, reim. 1978, Pelican Classics, Har-

mondsworth, Middlessex, p. 263. 71

Cf. sobre isto a ética levinasiana, Totalidade e Infinito, Edições 70, 1979, pp. 92-3. 72

Encontramo-nos, aqui, perante um conceito, que mais do que polissémico, se apresenta completamente

“desfigurado”, nas suas características. Isto significa naturalmente um amplo espectro (quase incomensurável)

de sentidos. Sobre a característica polissémica dos signos linguísticos, entre outros, JASTRZEMBSKI, J.E., Multiple

64

Chegados aqui, interessar-nos-á tomar posição, num plano positivo (afirmativo), sobre

toda esta problemática.

Assim, em função de tudo isto, naturalmente que a decisão a tomar há-de ser antes de

mais epistemologicamente fundada. Efectivamente, entre a possibilidade de optarmos por

uma perspectiva que tenha em conta a dimensão explicativa ou em todo o caso padronizada

do comportamento humano, a que poderíamos situar no “mundo causal ou do conhecimen-

to”73 – sem que isto signifique a adesão tout court a qualquer sistema determinista, inde-

monstrável e mesmo perigoso74 – e a possibilidade de nos decidirmos perante uma ideia de

liberdade, indemonstrável e não deixando de conter os seus perigos75, naturalmente que a

nossa escolha, pelo que deixámos referido, se irá fazer tendo em conta a ideia de que todo o

comportamento humano constitui antes de mais expressão de um agir em contexto76 e logo

Meanings, Number of Related Meanings, Frequency of Occurrence, and the Lexicom, Cognitive Psychology, Vol.

13, 1981, pp. 278-305. 73

A utilização da expressão “mundo”, acompanhada do respectivo qualificativo, tem aqui o significado de

exprimir uma área ou sector do ser humano, onde se isola, idealmente, determinado objecto, enquanto realida-

de epistemologicamente significativa. 74

Uma realidade que ainda permanece actual e que se ancora no fundo em distorções dos próprios postula-

dos da ciência, que não aspira a mais do que consegue, em função do tipo de metodologias que utiliza; mas que

igualmente se presta a tantos usos indevidos em nome desses postulados e de que a história nos dá exemplos

bastantes. 75

Se é verdade que a ideia de liberdade surge no recente quadro cultural e histórico da nossa civilização, com

um forte sentido jurídico-político, em contraposição ao absolutismo e como expressão de um ideário demoliberal

– disso em larga medida sendo expressão as actuais Constituições vigentes em grande número de Estados, a par

de numerosos textos internacionais –; também não é menos verdade que, neste plano, ideias de liberdade de

carácter absoluto não deixaram de se fazer sentir de modo particularmente penetrante. O anarquismo nas suas

múltiplas vertentes ou mesmo o marxismo, no plano da sua utópica ideia de acabar com o Estado, são óbvias

expressões deste último sentido. Por outro lado e, por exemplo, numa perspectiva jurídico-penal, a construção

de um direito criminal, unicamente baseada numa ideia de retribuição, alicerçada na culpa e, por conseguinte, na

liberdade, não deixou de – pese embora o contributo histórico que, por exemplo, a lei de talião trouxe ao desen-

volvimento histórico do direito penal (cf. CORREIA, Eduardo, Direito Criminal I, Almedina, 1971, p. 46) – apresen-

tar graves problemas, mormente no plano social – pense-se, por exemplo, em todo o séc. XIX –, de modo que a

evolução posterior se realizou de forma a compatibilizar o modelo ético-retributivo com outras perspectivas,

senão mesmo em alguns casos, a substituí-las. De resto, ainda nos nossos dias, a ideia ético-retributiva, aliada à

liberdade, (estas duas realidades sempre andaram muito ligadas, de resto) não deixa de se fazer sentir precisa-

mente para justificar o abandono de medidas socializadoras e o endurecimento das penas clássicas, nomeada-

mente a pena de morte e de prisão. Sobre este último ponto, cf. RODRIGUES, Anabela, Novo Olhar Sobre Ques-

tão Penitenciária, Estatuto jurídico do recluso e socialização. Jurisdicionalização. Consensualismo e prisão, Coim-

bra Editora, 2000, pp. 38 e segs. 76

Utilizamos aqui a expressão contexto no seu sentido usual, como sinónimo de conjunto de factos e de cir-

cunstâncias em que se insere um acontecimento ou uma situação (Dicionário da Língua Portuguesa Contempo-

rânea, cit., pp.947-948), para desta forma frisar a inevitabilidade que nós, seres humanos, temos de perspectivar

o comportamento humano e mesmo praticamente todo o tipo de fenómenos, num plano explicativo (ainda que

tal muitas vezes não passe de uma intenção, intenção esta, de resto, tantas vezes, quase sempre, presente no

acto de conhecer). Relativamente isto, Sobre a Omissão Impura em Direito Penal…, cit., pp. 30 e segs., cf. ainda

SAUSSURE, Ferdinand, Curso de linguística geral, trad. A Chelini, Joseph P. Paes and I. Blikstein, Culturix, New

York, USP, 1969; WITTGENSTEIN, Ludwig, Philophische Untersuchen, ed. crit. de Joachim Schulte,

Wissenschaftliche, Buchgesellschaft, Frankfurt, 2001.

65

exprimindo uma multiplicidade de significados. Multiplicidade de significados, de resto,

onde avulta, desde logo, a ideia de que a realidade se nos apresenta sob a forma de factos,

factores, elementos, aspectos, que se relacionam entre si, segundo determinadas leis ou

princípios de carácter determinista ou probabilista77. Depois, que esta realidade, por outro

lado, se nos oferece como algo, que não podemos, em definitivo, abstrair – sob pena de

colocarmos em risco a nossa própria sobrevivência78. Finalmente, dir-se-á que as provas da

sua existência são inúmeras e constituem não somente o património do conhecimento, dito

científico, mas igualmente fazem parte do chamado saber empírico, também designado por

senso comum e até do próprio conhecimento individual79. Sob este ponto de vista, dir-se-á

que o existir é inseparável do conhecer. Porque conheço, existo80. Daqui que a liberdade, em

termos epistemológicos, ontologicamente alicerçada, ou seja, como realidade metafísica

subsistente em si mesma, constitua um corpo estranho a tudo isto. Queremos assim dizer

que, em face do conjunto de aporias referidas, o nosso posicionamento, em coerência, só

poderá ter lugar, colocando de lado pura e simplesmente a ideia de liberdade, enquanto

realidade subsistente em si mesma81. Em vez disso e com o apoio, antes de mais, de todo o

conhecimento das ciências, que se debruçam ou não sobre o ser humano82 – já sem a afir-

77

Esta perspectiva enquadra-se, no nosso posicionamento, no plano epistemológico já referido. Por outro

lado, exprime a intrínseca e universal necessidade de inteligibilidade do ser humano, que, enquanto tal não deixa

de se afirmar de modo pleno, lembremos desde logo a definição do homem enquanto ser racional (Aristóteles) e

sem que tal oblitere outro tipo de dimensões. Sobre estas, cf. DELEUZE, Gille, Mille Plateaux, Minuit, 1980. 78

De resto, não é esta uma característica exclusivamente humana. Também os animais a compartilham,

embora naturalmente à sua escala, isto é, com um nível de inteligência bem menor que o nosso. Sobre isto, entre

outros, NARBY, Jeremy, Intelligence in Nature, Penguin, New York, 2005. 79

Obviamente, como já deixamos dito, é virtualmente impossível estabelecer relações (particularmente de

âmbito causal) entre todo o tipo de acções existentes e que a cada passo têm lugar (algo, de resto, cedo com-

preendido no domínio da própria física clássica, como já deixámos referido). De qualquer maneira, tal não impe-

dirá, nem impede de continuamente sermos obrigados a fazer juízos analíticos, de prognose, etc., em face do

concreto acontecer da vida, baseados na nossa própria experiência e na experiência dos outros, que comparti-

lhamos, fazendo-a de certa maneira também nossa. Efectivamente, a ideia de uma realidade estruturada, segun-

do leis mais ou menos rígidas, povoa necessariamente o nosso dia-a-dia, toda a nossa actividade e dela simples-

mente não podemos abstrair, desde o despertador que esperamos que toque até ao funcionamento do automó-

vel, que nos levará ao emprego e continuando por aí adiante até à nossa morte. De resto, não constitui este

procedimento algo de pessoal e necessário a cada um de nós, mas estende-se igualmente a um sem número de

actividades (desde as actividades económicas, embora aqui possam frequentemente intervir componentes cien-

tíficas, nomeadamente de carácter estatístico, até ao simples gerir da esfera das relações humanas), não consti-

tuindo o direito excepção a isto, supra n. 63. 80

Lembremos aqui, a propósito e num plano, em certa medida, contrastante, o fundamento cartesiano do

“penso, logo existo”. Naturalmente que, com o nosso posicionamento, não defendemos nenhuma posição

soplipsista. Ele possui um valor essencialmente plástico, apontando tão só para a importância que o acto de

conhecer detém. 81

Em sentido parcialmente semelhante, FIGUEIREDO DIAS, Liberdade, Culpa…, cit., pp. 55 e segs., repudiando

aquilo que designa por teorias da culpa da vontade. 82

Em certo sentido e apesar da separação operada, também por nós seguida, entre ciências empíricas e

ciências humanas, não poderemos em última análise deixar de referir a, em certa medida, artificial distinção

66

mação da existência de um absoluto determinismo só possível enquanto dogma, porque

simplesmente indemonstrável83, mas baseando-nos na afirmação de relações causais (quan-

do possíveis de demonstração) ou de probabilidade (na falta daquelas) entre múltiplos fac-

tores (internos e externos), ligados ao agir humano e logo contando com a possibilidade de,

a partir da regularidade dos fenómenos em causa, se fazerem previsões –, preferiremos a

solução de perspectivarmos as condutas humanas, como realidades sujeitas a múltiplos

condicionamentos, fundamentalmente e em princípio, derivados de uma amálgama de fac-

tores endógenos, isto é, derivados do interior do sujeito e de uma pluralidade de factores

exógenos, porque derivados de um meio envolvente84. Constituirá isto, deste modo, o con-

teúdo do nosso entendimento do ser humano, enquanto ser que age em contexto, de forma

“causal”, não como ser apolíneo, colocado em pedestais, como produto de abstractas con-

operada. Em verdade o ser humano participa de todas as características presentes nas diferentes ciências exis-

tentes, pois em si está sujeito às leis físicas, biológicas, psicológicas, ecológicas, etc. De resto, algumas das carac-

terísticas que parecem emergir da física quântica (não localidade, efeito fantasma à distância, mundos parale-

los...) podem, a serem provadas (algo que a existir implicaria um trabalho de demonstração no plano da ciência,

sobre isto, entre outros, RUSH, J.H., &…, Foundations of Parapsychology, Routledge & Kegan Paul, London, 1986),

revolucionarem de forma radical a nossa própria imagem e modo de agir, enquanto seres humanos, sendo por-

tanto legítimo perguntar se, não obstante as promessas emergentes da genética, não caberá em último termo à

física a obtenção dos maiores desejos da humanidade? 83

De notar, contudo, que a não demonstração do carácter determinista de toda a realidade não significa

necessariamente que o determinismo não exista, pelo menos em determinados sectores da realidade (pense-se

desde logo no caso da física clássica). Efectivamente foi a partir da observação e da experimentação (aliadas à

razão) que se concebeu a ideia do grande mecanismo de relógio a regular todo o real, em que o mais simples

determinaria o mais complexo (atomismo). Apesar de todo o carácter em larga medida utópico de tal visão, não

poderemos deixar de, em contraposição à liberdade, afirmar o seu sentido construtivo e mesmo a sua utilidade,

enquanto realidade posta ao serviço da humanidade no sentido da sua compreensão (e com isto derrogando os

mitos e a superstição), para além de todos os efeitos práticos derivados da sua concreta aplicação, como já dei-

xámos dito. Em contraposição, o conceito de liberdade, para além da sua inanição, nunca se autonomizando (no

plano positivo) da ideia de causalidade e revelando-se incongruente do ponto de vista negativo, serviu, no entan-

to (e diga-se que em boa hora), enquanto crença, de bandeira, no sentido de afirmar a proeminência do ser

humano, na sua individualidade política e jurídica – contribuindo historicamente para a fundamentação de novos

(em certa medida velhos, basta pensar na herança grega) paradigmas axiológico-políticos, como já deixámos

referido. 84

Naturalmente que este esquema, já por nós referido, de perspectivar as condutas humanas, clássico em

qualquer manual de psicologia, tem um valor, por um lado, apodíctico e, por outro lado (como muitas das afir-

mações deste teor), problemático. Efectivamente, a distinção entre elementos internos ou endógenos e elemen-

tos externos ou exógenos não pode ser considerada como absoluta ou sequer muito precisa, pois os problemas

de delimitação aparecem logo à partida (relações no seio dos átomos, nas células, ao nível do corpo humano, no

plano físico, biológico, psicológico, mental…), sendo assim frequentemente difícil realizar tal distinção, como já

anteriormente referimos, n. 12. De resto, dada a complexidade de factores inerentes a qualquer conduta huma-

na, mormente naquelas que expressam maior complexidade, como já deixámos referido, muitas vezes tornar-se

difícil, senão mesmo impossível, estabelecer relações causais, ficando-nos frequentemente pelas relações de

probabilidade ou mesmo perante juízos causais plurais (um mesmo facto é explicado de diferentes pontos de

vista igualmente válidos, porque conformes com a experiência, na psicologia, por exemplo, isso acontece fre-

quentemente). Por outro lado, nem sequer (em última análise) se podem excluir factores diferentes dos deriva-

dos do relacionamento causal ou probabilístico – consequência do relativismo do conhecimento humano senão

mesmo do seu carácter criativo, cf. n. 35.

67

cepções, mas na dimensão de um ser que, através do conhecimento, se constrói fundamen-

talmente a si mesmo – porque desse modo se apresenta a sua natureza85 –, construção esta,

de resto, realizada por um sem número de tentativas bem sucedidas, mas igualmente de

erros e fracassos86. Um ser que nunca abdicou do mundo causalmente significativo, antes

viu nele, vê nele a chave da sua sobrevivência (em certa perspectiva também da sua perdi-

ção)87. Um mundo que historicamente e de resto se revelou como o oposto do mundo das

trevas, colocando em larga medida ponto final a esse mundo de superstição e de obscuran-

tismo e desenvolvendo-se universalmente, constituindo-se assim como património da

humanidade88. De uma humanidade que se deseja e se assume de forma autónoma, cons-

85 Queremos com isto apenas mais uma vez reiterar que toda a acção humana (quer se trate de conhecer ou

de agir), porque desenvolvida por seres humanos e para ser humanos, há-de naturalmente reflectir a própria

natureza do ser, que a si próprio se realiza através do devir histórico. E que essa realização será tanto mais signi-

ficativa, quanto mais for aberta ao diálogo autêntico, expressão por excelência da plenitude do ser, que sucessi-

vamente se transcende na experiência do mundo da vida, de que necessariamente participa. 86

O que significa que o conhecimento científico, enquanto expressão de um saber total, não passa, pelo

menos por enquanto, de um mito, a ser colocado ao lado de outros mitos que habitaram a humanidade e ainda

hoje o fazem. Em todo o caso, deve-se notar que este mito é feito de luz, abertura, sentido crítico e de contínuos

confrontos com a observação do mundo exterior. É portanto também um anti-mito, destruidor de um sem

número de mitos, tendo, como tal, criado (ou permitido a criação) do seu próprio mito ou mitos. Sobre a questão

da abertura das sociedades num plano político, POPPER, Karl, The Open Society and its Enemies, vol. I, the High

Tide of Prophecy, 5.ª ed., RKP, London, 1966. 87

O problema em causa diz respeito, a nosso ver, fundamentalmente, ao facto de se ter assistido a um

desenvolvimento assimétrico entre as ciências empíricas e as ciências humanas. Efectivamente, enquanto estas,

pela sua complexidade e especificidade próprias, exigiam e continuam a exigir investimentos consideráveis, não

realizados de todo; as primeiras, porque mais simples, puderam mais cedo apresentar resultados e deste modo

cativar os investimentos adequados para o seu desenvolvimento. O desnível, entretanto verificado, criou pro-

blemas gravíssimos para a humanidade, tornada capaz de produzir complexas bombas atómicas, mas incapaz, ao

mesmo tempo, sequer de produzir adequados programas de saúde mental, logo nas escolas, como forma de

prevenção de posteriores danos no inter-relacionamento humano. Lembremos a este propósito, apesar da sua

unilateralidade e radicalidade, o conhecido contributo de Burrhus Skinner, particularmente na sua obra utópica

Walden II, de levar às escolas a sua psicologia comportamentalista, pretendendo, deste modo, prevenir (à sua

maneira…), antes que tratar, os males relativos à designada psique humana. Cremos deste modo que com um

mais profundo conhecimento de nós próprios, particularmente num plano psicológico (abrangendo naturalmen-

te a genética) e com uma responsável educação cívica se poderia evitar muitos dos males de que todos nós,

enquanto seres da sociedade, padecemos – seria, por exemplo, possível, através de uma adequada intervenção

psicológica, evitar o desabrochar de uma personalidade, indiscutivelmente problemática do ponto de vista psico-

lógico, como a de Hitler? O que quer que se pense sobre isto (e o ser humano não se resume ao seu perfil psico-

lógico, mas contém, como se sabe, múltiplas dimensões), também não se poderá obliterar este domínio do

homem, tão presente em todo o seu agir. 88

Efectivamente, foi este e o desenvolvimento das doutrinas dos direitos fundamentais (humanismo) prova-

velmente os dois maiores contributos (positivos) que a designada “civilização ocidental” trouxe ao mundo. Cons-

truída a partir do séc. XVI, como já referimos, não mais a ciência parou de crescer, ganhando, com mérito pró-

prio, o estatuto de realidade universal, porque pertença de todos e por todos podendo (e devendo) ser exercida.

Evoluindo particularmente a partir do séc. XVIII, não mais, até aos nossos dias, deixou a temática dos direitos

fundamentais de igualmente se afirmar (ainda que trespassada por cruéis fases da humanidade), como algo que

também constitui pertença de todos e naturalmente que por todos podendo (e devendo) ser exercida. De notar,

de resto, que estes dois contributos, longe de se acharem em oposição, pelo contrário e em nossa opinião, cami-

nharam lado a lado, como expressão de uma mesma realidade culturalmente significativa: a prevalência do

68

ciente de que o conhecimento constitui o verdadeiro poder, a chave da existência do ser

humano89.

Com o que desta maneira (repetimos) não enveredaremos por quaisquer dogmatismos,

que só poderiam ter lugar se se concebesse o ser humano e a própria realidade como

expressão apreensível de sistemas previamente determinados por um complexo conjunto

de causas encadeadas entre si de forma determinista, de resto, na realidade nunca passíveis

de demonstração, como já deixámos dito. Pelo contrário, porque para nós o ser livre não

existe, assim como o não livre não se encontra provado, então, a responsabilidade, a ter

lugar, só poderá ser encarada como uma realidade a construir no plano do contexto em que

se insira: meio social, sistema jurídico, família, profissão, etc. Nesta perspectiva, o problema

da liberdade perderá naturalmente em função de realidades de natureza diferente. Abrir-se-

-ão, deste modo, as portas a considerações para além desta. Algo que nunca poderá deixar

de tomar como referência aspectos tão elementares como o sentido ético da vida, o prag-

matismo a ela imanente, questões fundamentais para a compreensão da realidade jurídica e

que aqui não poderemos abordar90.

(*) Por vontade expressa do autor, este artigo segue as regras anteriores ao novo acordo ortográfico.

individualismo, com o seu criticismo próprio; o policentrismo assente na diferenciação e na autonomia (lembre-

mos desde logo o exemplo historicamente significativo da Grécia). 89

De notar contudo que a visão científica (empírica) do mundo nunca deverá ser encarada como a única pos-

sível. Não apenas pelas dificuldades epistemológicas de que enferma, derivadas dos seus métodos e dos próprios

limites do seu objecto, mas igualmente pelo facto de nos encontrarmos ainda provavelmente no patamar de

novos paradigmas, cujo sentido e alcance actualmente nos escapa. Os possíveis e inacreditáveis desenvolvimen-

tos da física, os inexplicáveis objectos da parapsicologia, particularmente tidos em consideração a partir dos

métodos estatísticos desenvolvidos primariamente por J. B. Rhine, na Universidade de Duke, constituem entre

outros enigmas, algo cujo desenvolvimento ignoramos em larga medida. Sobre este último tópico, entre outros,

RUSH, J.H., &…, Foundations of Parapsychology, cit. 90

Para uma abordagem nestes termos relativamente ao direito penal, o nosso artigo “Algumas Reflexões

Epistemológicas…”, cit., pp. 761 e segs.

As revistas e as buscas dentro dos poderes de

atuação das autoridades policiais e de segurança:

a responsabilidade e a cidadania no processo penal1

Flávia Loureiro

Sumário: I. Breves considerações introdutórias; II. As revistas e as buscas: meios

de obtenção de prova ou medidas cautelares e de polícia?; 1. As revistas e as

buscas no Código de Processo Penal; 2.As revistas e as buscas na Lei de Seguran-

ça Interna e no Regime Jurídico das Armas e suas Munições; 3. As medidas cau-

telares e de polícia do art. 251.º do Código de Processo Penal; 4. A busca domici-

liária; III. Notas finais.

I. Breves considerações introdutórias

Falar de responsabilidade e cidadania no âmbito jurídico-penal conduz-nos a duas dimen-

sões que por regra se encaram como opostas, mas que são simultaneamente complementa-

res: se, de um lado, temos sempre de exigir o compromisso de responsabilidade e cidadania

de todos os membros da comunidade, no respeito pelos valores societários que enformam o

sistema jurídico, do outro, o Estado há de igualmente oferecer uma, pelo menos idêntica,

conformação com tais bens e princípios. Incumbe ao Estado, de acordo aliás com imposições

constitucionais, a defesa intransigente da sua configuração democrática e de direito, como

caraterísticas essenciais do modelo político-jurídico adotado.

Tais exigências, como bem sabemos, são particularmente visíveis no direito penal e pro-

cessual penal, pois que aí se joga a relação mais tensa entre o poder do Estado e as garantias

1 Sendo as buscas e as revistas dois dos mais intrusivos instrumentos de que o direito processual penal dis-

põe, a reflexão acerca destes meios de obtenção de prova sempre nos ocupou. Foi, todavia, por altura do Semi-

nário “A atuação das forças de segurança nas relações de tensão entre o Estado e os particulares”, organizado

sob a direção do Comando Territorial de Braga da Guarda Nacional Republicana em parceria, nomeadamente,

com a Escola de Direito da Universidade do Minho, a 25 e 26 de junho de 2009, em Braga, que atentámos especi-

ficamente na dimensão que aqui se pretende explorar. O tema foi por nós retomado, em 18 de junho de 2011,

no 2.º Seminário “Perspetivas de Revisão do Código de Processo Penal”, realizado na Figueira da Foz pela Direção

Regional do Centro ASJP, pela Delegação da Figueira da Foz da Ordem dos Advogados e pelo Sindicato dos Magis-

trados do Ministério Público. As considerações que num e noutro lugar expendemos motivaram o aprofunda-

mento do estudo desta matéria, ajudando-nos a perspetivar o interesse teórico e prático da questão.

70

dos cidadãos. São, por isso, singularmente implicadas de significado as palavras que dão

mote a este trabalho quando operam nos limites da ciência jurídico-criminal, como preten-

demos demonstrar com um específico exemplo retirado do nosso quotidiano judiciário: as

figuras das revistas e dasbuscas.

Usualmente estudadas enquanto meios de obtenção de prova, são matéria de inquestio-

nável importância, pois que sobre tais instrumentos se constrói toda a dialética processual

penal. É, mau grado tal relevância, um tema a que porventura tem faltado reflexão e análise,

sobretudo – e essa é talvez a sua mais difícil caraterística – porque os seus problemas são

usualmente sentidos num momento inicial do iter processual, o da intervenção dos órgãos

de polícia criminal na atividade de recolha de prova2.

É, pois, indissociável – e não devemos nunca perdê-lo de vista – a problemática dos

meios (ou métodos, como alguns preferem) de obtenção de prova da sua específica dimen-

são de forma de atuação das forças policiais e de segurança. E se uma e outra realidade –

meios de obtenção de prova e atuação das forças policiais e de segurança – não são absolu-

tamente concêntricas, é exatamente através do conhecimento preciso das suas fronteiras

que pode surgir a resolução de algumas das questões que mais comummente se colocam a

este propósito.

Devemos, pois, começar por lembrar, embora já lugar-comum, que meios de obtenção

de prova se distinguem de meios de prova, pois que não são instrumentos de demonstração

do thema probandi mas, antes, meios de investigação e recolha de prova3. De facto, estes

métodos não têm, em si mesmos, a suscetibilidade de serem utilizados para, através da sua

perceção, serem fonte de convencimento, formarem e fundamentarem um juízo, mas estão,

antes, aptos a permitirem a recolha de objetos ou declarações que têm, esses sim, em si

próprios, capacidade probatória.

Muito embora a doutrina tenha vindo a trabalhar esta distinção, a verdade é que o nosso

Código de Processo Penal (CPP) não é particularmente explícito neste âmbito, sobretudo nas

disposições gerais do livro dedicado à prova, onde tanto faz referência à “prova” como a

2 Sobre as revistas e as buscas enquanto meios de obtenção de prova, cfr., nomeadamente, VALENTE, Manuel

Monteiro Guedes, Revistas e Buscas, Almedina, 2005 (2.ª ed.); DA COSTA ANDRADE, Manuel, Sobre as Proibições de

Prova em Processo Penal, Coimbra Editora, 2006; e MARCOLINO DE JESUS, Francisco, Os Meios de Obtenção de

Prova em Processo Penal, Almedina, 2011. 3 DA SILVA, Germano Marques, Curso de Processo Penal II, Verbo, pp. 209 e segs. Começando por fazer a dis-

tinção que se acompanha, o Autor chama a atenção para as circunstâncias em que um meio de obtenção de

prova acaba por ser também um meio de prova. Esse será, segundo ele, o caso da revista e da busca “enquanto

não conduzam à descoberta e recolha de elementos indiciadores da responsabilidade e possam, atentas as cir-

cunstâncias, ser valoradas nessa perspectiva” (p. 210).

71

“métodos proibidos de prova” para depois passar a utilizar apenas as designações “meios de

prova” e “meios de obtenção de prova”4.

E se da disciplina específica a respeito de cada um destes (meios de prova e meios de

obtenção de prova) se retira a diferenciação concetual e prática entra as duas categorias – o

que tem permitido à doutrina e à jurisprudência aprofundarem a análise sobre o tema –, já o

mesmo não se pode dizer sem mais acerca, por exemplo, da proibição de produção e proibi-

ção de valoração de prova5.

Não podendo tratar-se de todos estes aspetos nesta sede, nem sendo esse o nosso obje-

tivo, cumpriremos a delimitação que no título do trabalho gizámos e debruçar-nos-emos

sobre um objeto menos comummente tratado – as revistas e as buscas. Sobretudo porque,

o que é frequentemente esquecido, elas podem apresentar uma natureza, diremos, híbrida

ou dúplice, funcionando não apenas como meios de obtenção de prova, mas igualmente

como medidas cautelares e de polícia. O regime dos dois institutos é distinto, embora apro-

ximado em alguns aspetos, e nem sempre é fácil distinguir claramente se estamos num ou

noutro campo. Tentaremos trazer aqui algumas dessas perspetivas, desde logo por contra-

ponto das duas regulamentações.

Temos de sublinhar, desde logo, a importância decisiva que a Constituição da República

Portuguesa (CRP) desempenha em sede de compreensão do direito penal e processual penal

e a relevância dos princípios que aí são plasmados. Ora, de entre as “garantias de processo

criminal”, vertidas no art. 34.º da CRP, devemos salientar, desde já, aquela que consta do

seu n.º 4: “toda a instrução é da competência de um juiz, o qual pode, nos termos da lei,

delegar noutras entidades a prática dos atos instrutórios que se não prendam directamente

com os direitos fundamentais”.

O preceito em causa fala em instrução e não em inquérito, mas não parece curial que se

pretendesse aqui estabelecer uma reserva de juiz para todos os atos que afetassem os direi-

4 E, diga-se a propósito, muito embora este problema se levantasse já com toda a acuidade, a reforma de

2007 ao Código de Processo Penal, empreendida pela Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, não enfrentou esta ques-

tão. Os artigos relativos à prova, muito embora tenham sofrido alterações, permaneceram idênticos no que diz

respeito a este problema e à, desejada, clarificação conceptual e terminológica. Cfr., a propósito das alterações

introduzidas em 2007 e daquelas que não foram feitas, DA COSTA ANDRADE, Manuel, “Bruscamente no Verão

Passado”, a reforma do Código de Processo Penal. Observações críticas sobre uma Lei que podia e devia ter sido

diferente, Coimbra Editora, 2009, sobretudo, no que especificamente se relaciona com o que vai dito, pp. 104 e

segs. 5 Sobre esta questão, cfr., por todos, DA COSTA ANDRADE, Manuel, “Bruscamente no Verão Passado”…, cit.,

pp. 119 e segs. O Autor começa logo por sublinhar: “*o+ regime jurídico-normativo das proibições de prova era

outra das áreas problemáticas que, de forma mais patente e instante, esperavam e reclamavam a intervenção do

legislador de 2007. Era, de resto, um domínio em que a intervenção legislativa esperada e reclamada se deixava

antolhar mais aprofundada e inovadora. Mas este foi também o domínio em que a disponibilidade e a capacida-

de do legislador para afrontar com acerto e pertinência as questões acabaram por se revelar mais débeis”.

72

tos fundamentais quando fossem praticados durante a instrução, mas já não se quisesse

abrangê-los quando decorresse a fase de inquérito. Sobretudo quando esta, pelas suas cara-

terísticas definidoras, é mais suscetível de gerar atos que contendam – gravemente até –

com direitos fundamentais. Não pode senão compreender-se esta referência constitucional

a atos instrutórios em sentido ôntico ou substancial como feita a todas as atuações que,

materialmente, visem a recolha de prova, independentemente da fase processual em que

tenham lugar.

Uma nota, portanto, para recordar aqui que estamos perante atos que a Constituição

quis especificamente atribuir ao juiz e que este pode delegar noutras entidades, nos termos

da lei, a não ser que estejam em causa direitos fundamentais, circunstância em que são de

sua exclusiva competência. O que não pode senão ter um grande significado quando fala-

mos quer de recolha de prova quer da sua valoração e que, no caso de obtenção de prova,

tem especial relevância na conformação da atuação dos órgãos de polícia criminal.

Feitas estas advertências prévias – que não devemos nunca perder de vista – debrucemo-

-nos então, especificamente, sobre as revistas e buscas.

II. As revistas e as buscas: meios de obtenção de prova ou medidas cautelares e

de polícia?

1. As revistas e as buscas no Código de Processo Penal

Ora, nos termos do art. 174.º do Código de Processo Penal, a revista poderá ter lugar

quando haja indícios de que alguém oculta, na sua pessoa, quaisquer objetos relacionados

com um crime ou que sejam suscetíveis de servir de prova em processo-crime em curso. Já a

busca será levada a cabo se houver indícios de que, em certo lugar reservado ou não livre-

mente acessível ao público, se encontram objetos relacionados com um facto suscetível de

ser qualificado como crime ou que possam servir de prova ou pessoa que deva ser detida,

para ser presente à autoridade judiciária competente.

Assim, enquanto a revista é feita a uma pessoa, a busca é realizada a lugares reservados

ou não acessíveis livremente pelo público, sendo que, normalmente, há de ser ordenada ou

autorizada pela autoridade judiciária competente, que a leva a cabo (preferencialmente) ou

delega tal atuação num órgão de polícia criminal (de acordo com o n.º 3 do preceito, a auto-

ridade judiciária competente deve, sempre que possível, presidir à diligência). O despacho

73

da autoridade judiciária tem um prazo de validade: a diligência há de ser cumprida no prazo

de 30 dias, sob pena de nulidade6.

Além destas revistas e buscas, todavia, assim sucintamente descritas e que correspon-

dem ao regime regra, previstas no Código de Processo Penal como meio de obtenção de

prova, a realizar no decurso de um processo, normalmente na fase de inquérito, com autori-

zação prévia da autoridade judiciária7, outras há, todavia, estabelecidas tanto no CPP como

em legislação extravagante, que divergem deste modelo básico que acabámos de apresen-

tar.

Na verdade, enquanto as revistas e buscas previstas no art. 174.º do CPP se apresentam

como meios típicos de obtenção de prova, de acordo com aquelas caraterísticas que come-

çámos por imputar-lhes, outras há que se configuram como medidas preventivas ou cautela-

res e que importa conhecer e distinguir daquelas.

2. As revistas e as buscas na Lei de Segurança Interna e no Regime Jurídico das

Armas e suas Munições

De acordo com a Lei de Segurança Interna (Lei n.º 53/2008, de 29 de agosto8) deve o

Estado garantir a ordem, a segurança e a tranquilidade públicas, proteger pessoas e bens,

prevenir e reprimir a criminalidade e contribuir para assegurar o normal funcionamento das

instituições democráticas, o regular exercício dos direitos, liberdades e garantias fundamen-

tais dos cidadãos e o respeito pela legalidade democrática (art. 1.º, n.º 1), podendo, nessa

exata medida e respeitando os princípios da adequação e da proporcionalidade, lançar mão

de um conjunto de medidas previstas na lei, nomeadamente das medidas de polícia estatuí-

das nos arts. 28.º e segs.

Aí se prevê, entre várias outras medidas limitadoras de direitos fundamentais9, a possibi-

lidade da realização de buscas e revistas em viatura, lugar público, aberto ao públicoou

6 Este prazo é um aditamento feito pela Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, pois que se discutia muito, até

então, qual a validade temporal do despacho autorizativo da autoridade judiciária. 7 Assim, também, PINTO, Ana Luísa, “As buscas não domiciliárias no direito processual penal português”, in

Revista do Ministério Público, n.º 109, ano 28, Jan.-Mar. 2007, p. 34. 8 Retificada pela Declaração de Retificação n.º 66-A/2008, de 28 de outubro.

9 A Lei de Segurança Interna estabelece uma distinção entre medidas de polícia e medidas especiais de polí-

cia, nos arts. 28.º e 29.º, respetivamente, correspondendo grosso modo às hipóteses típicas e atípicas de atuação

policial. Curiosamente, o leque de medidas de polícia habituais – que parece ser taxativo – é muito mais estreito

do que o das ditas medidas especiais. Naquele cabem somente a identificação de pessoas suspeitas que se

encontrem ou circulem em lugar público, aberto ao público ou sujeito a vigilância policial; a interdição temporá-

ria de acesso e circulação de pessoas e meios de transporte a local, via terrestre, fluvial, marítima ou aérea; a

74

sujeito a vigilância judicial (portanto, buscas não domiciliárias, desde logo), com vista a dete-

tar a presença de armas, substâncias ou engenhos explosivos ou pirotécnicos, objetos proi-

bidos ou suscetíveis de possibilitar atos de violência e pessoas procuradas ou em situação

irregular no território nacional ou privadas da sua liberdade.

Tais medidas só podem ser utilizadas, contudo, em estrito respeito pelo princípio da

necessidade, pelo período de tempo indispensável para garantir a segurança e a proteção de

pessoas e bens e desde que haja indícios fundados de preparação de atividade criminosa ou

de perturbação séria ou violenta da ordem pública, nos termos do art. 30.º da Lei de Segu-

rança Interna. Mas são determinadas – ou podem sê-lo – pelas autoridades de polícia ou,

eventualmente, pelos próprios agentes das forças e dos serviços de segurança, sendo que as

mais graves, previstas no art. 29.º, devem ser comunicadas ao tribunal competente, no pra-

zo máximo de 48 horas, para apreciação e validação.

Anote-se, pois, que, neste caso, não estamos perante uma busca ou uma revista utilizada

como meio de obtenção de prova, mas, antes, face a estes instrumentos vistos sob uma

outra perspetiva, fora de um processo-crime em curso (a não ser quando se trate de pessoa

procurada ou privada de liberdade), encarados como um mecanismo preventivo, prévio, de

que as forças e os serviços de segurança podem lançar mão para evitar o cometimento de

crimes e para assegurar a ordem e tranquilidades públicas.

Exercem funções de segurança interna, de acordo com o art. 25.º, n.º 2, da Lei n.º

53/2008, a Guarda Nacional Republicana (GNR), a Polícia de Segurança Pública (PSP), a Polí-

cia Judiciária (PJ), o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), e, ainda, em alguns casos

determinados na lei, os órgãos da Autoridade Marítima Nacional e os órgãos do Sistema da

Autoridade Aeronáutica.

evacuação ou abandono temporários de locais ou meios de transporte; e a remoção de objetos, veículos ou

outros obstáculos colocados em locais públicos sem autorização que impeçam ou condicionem a passagem para

garantir a liberdade de circulação em condições de segurança. Já o segundo grupo é composto pelas seguintes

medidas: a) A realização, em viatura, lugar público, aberto ao público ou sujeito a vigilância policial, de buscas e

revistas para detetar a presença de armas, substâncias ou engenhos explosivos ou pirotécnicos, objetos proibi-

dos ou suscetíveis de possibilitar atos de violência e pessoas procuradas ou em situação irregular no território

nacional ou privadas da sua liberdade; b) A apreensão temporária de armas, munições, explosivos e substâncias

ou objetos proibidos, perigosos ou sujeitos a licenciamento administrativo prévio; c) A realização de ações de

fiscalização em estabelecimentos e outros locais públicos ou abertos ao público; d) As ações de vistoria ou insta-

lação de equipamentos de segurança; e) O encerramento temporário de paióis, depósitos ou fábricas de arma-

mento ou explosivos e respetivos componentes; f) A revogação ou suspensão de autorizações aos titulares dos

estabelecimentos referidos na alínea anterior; g) O encerramento temporário de estabelecimentos destinados à

venda de armas ou explosivos; h) A cessação da atividade de empresas, grupos, organizações ou associações que

se dediquem ao terrorismo ou à criminalidade violenta ou altamente organizada; i) A inibição da difusão a partir

de sistemas de radiocomunicações, públicos ou privados, e o isolamento eletromagnético ou o barramento do

serviço telefónico em determinados espaços.

75

Por outro lado, também a nova (renovada) Lei das Armas10, prevê a necessidade, o dever,

de as forças e serviços de segurança planearem e realizarem periodicamente operações

especiais de prevenção criminal, com o objetivo de “controlar, detetar, localizar, prevenir a

introdução, assegurar a remoção ou verificar a regularidade da situação das armas, seus

componentes ou munições ou substâncias ou produtos a que se refere a presente lei, redu-

zindo o risco de prática de infrações previstas no presente capítulo, bem como de outras

infrações que a estas se encontrem habitualmente associadas ou ainda quando haja suspeita

de que algum desses crimes possa ter sido cometido como forma de levar a cabo ou enco-

brir outros”11.

No âmbito de tais operações, poderão ser levadas a cabo identificações e revistas de pes-

soas, de viaturas ou de equipamentos (que, nestes dois últimos casos, deveria, propriamen-

te, chamar-se de buscas), e, quando haja indícios da prática daqueles crimes, risco de deso-

bediência ou de resistência ou necessidade de condução ao posto policial, podem ser reali-

zadas buscas nos locais onde se encontrem tais pessoas. Os espaços onde tais operações

podem ser levadas a cabo também são muito diversificados, abrangendo áreas como as

gares de transportes coletivos rodoviários, ferroviários ou fluviais, bem como o interior des-

ses transportes, portos, aeroportos, vias públicas ou outros locais públicos e respetivos aces-

sos, etc. De acordo com a nova versão de 2009, compete ainda à PSP (art. 109.º, n.º 4), nes-

te âmbito, a verificação dos bens referidos na mesma lei e que se encontrem em trânsito nas

zonas portuárias e aeroportuárias internacionais, com a possibilidade de abertura de volu-

mes e contentores, para avaliação do seu destino e proveniência.

Veja-se, pois, que estamos a falar de poderes bastante amplos atribuídos às forças e ser-

viços de segurança, fortemente restritivos de direitos, liberdades e garantias e que podem

ser utilizados de forma menos estreita e limitada do que aquela que resulta, por exemplo,

do CPP. Na verdade, muito embora aqui tenha de existir comunicação ao Ministério Público

(MP), que pode até acompanhar a diligência (por força do art. 110.º), a decisão a respeito

das medidas a tomar está sob a alçada das forças de segurança, que escolhem o seu quando,

o seu onde e o seu como. Ressalvando-se apenas, obviamente, a hipótese de ser necessária

10

Com mais propriedade, o Regime Jurídico das Armas e suas Munições, estabelecido na Lei n.º 5/2006, de

23 de fevereiro, com as alterações resultantes das Leis n.º 59/2007, de 4 de setembro, n.º 17/2009, de 6 de

maio, e n.º 26/2010, de 30 de agosto. 11

De acordo com o disposto no art. 109.º do diploma em causa.

76

a realização de buscas domiciliárias ou outras diligências que dependam sempre de despa-

cho judicial12.

Não é, pois, despiciendo o poder – e, concomitantemente, a responsabilidade – que atra-

vés destes dispositivos (talvez os mais significativos dentro da nossa legislação extravagante,

mas certamente não os únicos) se confere às forças de segurança, uma vez que ele bole com

o que de mais nuclear existe num Estado de Direito democrático. É preciso não esquecer

que é a própria CRP quem erige os direitos, liberdades e garantias a máximo baluarte do

nosso Estado, só permitindo a sua restrição em situações excecionais e apenas quando este-

ja em causa a proteção de outros direitos constitucionalmente protegidos.

E, nos casos das revistas e das buscas, estão em jogo os mais preciosos desses direitos: a

reserva da vida privada e a própria dignidade pessoal. Utilizar meios que sejam atentatórios

desses direitos fundamentais é decisão que tem de ser bem ponderada, seja o juiz, o MP ou

as forças de segurança a tomá-la, uma vez que deve sempre respeitar os princípios da abso-

luta necessidade, da adequação e da proporcionalidade.

E por isso dizíamos, quanto à discricionariedade que tanto na Lei de Segurança Interna

como no Regime Jurídico das Armas e suas Munições se atribui às forças de segurança, que

esse é um poder de particular responsabilidade, uma vez que as suas margens relativamente

dilatadas não podem ser confundidas com arbítrio ou com inexigibilidade de fundamenta-

ção. É, pois, um âmbito em que ganha relevo reforçado a noção de cidadania e a compreen-

são de que ela tem de servir de fundamento a todo o exercício que a este propósito se pre-

tenda fazer.

Essa a razão pela qual se nos apresentam como potencialmente perigosas – e, por isso,

merecedoras de especiais cuidados de aplicação – algumas medidas previstas nestas leis que

referimos. Tomemos como exemplo a medida estabelecida no art. 29.º, alíneaa), da Lei de

Segurança Interna, ao prever a possibilidade de realização de buscas e revistas em viaturas,

lugares públicos, abertos ao público ou sujeitos a vigilância policial, para detetar a presença

de armas, substâncias ou engenhos explosivos ou pirotécnicos, objetos proibidos ou suscetí-

veis de possibilitar atos de violência e pessoas procuradas ou em situação irregular no terri-

tório nacional ou privadas de liberdade.

A adoção desta medida é da competência das autoridades de polícia, podendo mesmo,

de acordo com a hipótese prevista no n.º 2 do art. 32.º da referida Lei, ser determinada

12

Nos termos do art. 111.º, n.º 1, do Regime Jurídico das Armas e suas Munições, “quando no âmbito de

uma operação especial de prevenção se torne necessário levar a cabo buscas domiciliárias ou outros atos da

exclusiva competência de juiz de instrução, são adoptadas as medidas necessárias ao acompanhamento por

parte deste magistrado, na modalidade tecnicamente disponível que se revele mais apropriada”.

77

pelos próprios agentes das forças e serviços de segurança, em casos de urgência e perigo na

demora, devendo, em todos os casos, ser levada ao conhecimento posterior do juiz para

validação.

Sucede, todavia, que qualquer destas medidas de polícia (à exceção da possibilidade de

remoção de objetos, veículos ou outros obstáculos colocados em locais públicos sem autori-

zação que impeçam ou condicionem a circulação em condições de segurança) obedece aos

critérios de aplicação previstos na Constituição e na Lei e, em especial, estabelecidos no art.

30.º: só quando tal se revele necessário, pelo período de tempo estritamente indispensável

para garantir a segurança e a proteção de pessoas e bens e desde que haja indícios fundados

de preparação de atividade criminosa ou de perturbação séria ou violenta da ordem pública.

Ora, tem a autoridade de polícia (ou o próprio agente, em alguns casos) de fazer o con-

veniente juízo a respeito da existência de indícios de preparação da atividade criminosa ou

de perturbação da ordem e tranquilidade públicas. E não de quaisquer indícios, de indícios

suficientemente fundados que permitam, nos termos na CRP, limitar direitos fundamentais

dos cidadãos. Não estamos, pois, aqui, face a uma ponderação que possa ser qualificada

como simples, desde logo porque da incorreta aplicação de uma destas medidas pode resul-

tar a afetação de um direito pessoal de reserva13.

Suponha-se, por ilustração, a busca ao veículo do cidadão X, realizada por decisão da

autoridade de polícia ao abrigo deste preceito. Se a posteriori se vier a considerar que não

havia fundamentos, no momento em que a decisão foi tomada, para agir daquela forma, o

que sucederá? O juiz de instrução competente não validará a aplicação da medida, nos ter-

mos no n.º 1 do art. 33.º, por exemplo. Com que consequências? Naturalmente, as provas

que hajam sido obtidas por virtude dessa busca não poderão ser consideradas em eventual

processo penal, como dispõe, aliás, o art. 33.º, n.º 4, da Lei de Segurança Interna. Mas ape-

nas isso? E a tutela do particular? E a responsabilidade, eventual, do agente que tomou a

decisão? Mesmo que nada tivesse resultado daquela busca – e, portanto, nenhum material

probatório existisse para desconsiderar – não ficaria prejudicado, violado ilegalmente, o

direito daquele cidadão X a não permitir a entrada na sua viatura e o conhecimento de

quaisquer objetos que aí transporte? Não poderia ele, por exemplo, exigir o ressarcimento?

E sobre quem impenderá essa responsabilidade?

Serve este exemplo comezinho apenas para demonstrar a cautela necessária, quanto a

nós, na utilização deste tipo de instrumentos preventivos, uma vez que se é certo que a

13

Chamando a atenção para o problema, ainda em sede de proposta de lei, DE SOUSA, Pedro Lourenço,

“Ministério Público, Órgãos de Polícia Criminal e Medidas Cautelares e de Polícia”, Reforma Penal e Processual

Penal. Jornadas de 2008, Politeia, ano VI/ ano VII – 2009-2010, pp. 283 e segs.

78

atuação prévia do Estado, através das entidades policiais, é essencial para a manutenção do

Estado de Direito e, especialmente, para evitar a criminalidade, também parece seguro que

a limitação de direitos, liberdades e garantias dos cidadãos é extraordinariamente sensível –

e difícil e evitável – quando estejamos fora de um processo-crime, a agir preventivamente, a

imputar factos hipotéticos e futuros.

Sobretudo porque, como resulta meridianamente claro desta hipótese, desses atos resul-

tam, em não poucos casos, provas que virão a fazer parte de um processo-crime específico.

3. As medidas cautelares e de polícia do art. 251.º do Código de Processo Penal

De particular importância para as entidades policiais parece-nos ser, igualmente, o pre-

ceituado no art. 251.º do CPP, que prevê a possibilidade de realização de revistas e buscas

como medidas cautelares e de polícia. Também aqui estamos, portanto, face a instrumentos

preventivos, não aplicados, pois, na sequência de um processo criminal instaurado, mas que

tomam a veste de um ato prévio.

Como sabemos, face a determinado facto suscetível de ser qualificado como crime, os

órgãos de polícia criminal têm um conjunto particular de deveres. O primeiro deles será,

naturalmente, o de comunicação de qualquer notícia de crime de que tenham conhecimen-

to ao MP, de acordo, aliás, com o art. 248.º do CPP14. Não menos importante, todavia, é o

dever de proceder imediatamente a investigações e praticar os atos cautelares necessários e

urgentes para assegurar os meios de prova, conforme dispõe o art. 249.º do CPP.

De entre tais medidas, prevê o legislador, pois, a possibilidade de os órgãos de polícia

criminal (OPC) procederem, sem prévia autorização da autoridade judiciária, à revista de

suspeitos em caso de fuga iminente ou de detenção e a buscas no lugar em que se encontra-

rem, salvo tratando-se de busca domiciliária, sempre que tiverem fundada razão para crer

que neles se ocultam objetos relacionados com o crime, suscetíveis de servirem a prova e

que de outra forma poderiam perder-se; à revista de pessoas que tenham de participar ou

pretendam assistir a qualquer ato processual ou que, na qualidade de suspeitos, devam ser

conduzidos a posto policial, sempre que houver razões para crer que ocultam armas ou

outros objetos com os quais possam praticar atos de violência.

14

Sobre a comunicação da notícia do crime, com reflexão acerca do respetivo prazo e dos poderes que,

durante esse período, cabem aos órgãos de polícia criminal, cfr. op. ult.cit., pp. 301 a 303. O autor sublinha:

“defendemos que o referido prazo de tempo, que não pode exceder 10 dias, nunca poderá ser entendido como

um espaço de liberdade investigatória por parte dos órgãos de polícia criminal”.

79

Estas medidas cautelares obedecem, pois, a regras muito estritas quanto aos seus fun-

damentos, uma vez que só se permite 1) a revista de suspeitos, em caso de fuga iminente,

de detenção ou quando devam ser conduzidos a posto policial, mas neste caso apenas se

houver razões para crer que ocultam armas ou outros objetos perigosos, e 2) a busca, não

domiciliária, do lugar onde se encontrarem suspeitos, mas somente se existirem motivos

fundados para acreditar que neles se ocultam objetos relacionados com o crime, suscetíveis

de servirem e prova e que de outra forma poderiam perder-se. São, por isso, verdadeiras

medidas de exceção, só possíveis de utilizar em casos limite, nomeadamente para assegurar

a recolha e preservação de provas em risco de perda15.

Se os OPC podem, como ficou dito, lançar mãos destes meios sem prévia autorização da

autoridade judiciária competente, isso não invalida que, aqui como nos exemplos que vimos

em legislação extravagante, tenham a obrigação de imediatamente comunicar a diligência

ao juiz de instrução, para apreciação e validação (de acordo com os arts. 251.º, n.º 2, e

174.º, n.º 6, do CPP). De notar que, muito embora o MP seja competente para autorizar as

revistas e as buscas durante o inquérito, no caso de tais diligências terem sido realizadas

sem prévia autorização é ao juiz de instrução que compete a validação.

Apesar de algumas vozes contra16, parece-nos bem que esta opção se justifica. Se é certo

que para a autorização da diligência bastaria decisão do MP, parece-nos que, quando o ato

já foi praticado e não foi precedido dessa autorização, a necessidade de apreciação aumen-

ta, uma vez que se trata de um ato fortemente atentatório dos direitos fundamentais dos

cidadãos, sobre o qual é preciso fazer um juízo valorativo acrescido: preencheria ele os pres-

supostos necessários para dispensar a autorização? Se lhe aditarmos o facto de, por ser rea-

lizada a posteriori, tal avaliação poder suscitar alguma “simpatia pelos resultados obtidos”,

parece-nos avisada a posição do legislador processual penal. Tanto mais que, como chama a

atenção Ana Luísa Pinto17, o mesmo se passa com as revistas e buscas que, no decurso de

um inquérito, prescindem de autorização prévia. Por maioria de razão, se assim é durante o

inquérito, faz sentido que o mesmo se passe antes dele.

15

SIMAS SANTOS e LEAL-HENRIQUES, Código de Processo Penal Anotado, vol. I, Rei dos Livros, p. 877. 16

Parte da doutrina entende que tal validação deveria caber ao Ministério Público, pois que é a ele que com-

pete autorizar a realização da busca, nos termos do n.º 3 do art. 174.º, e este ato não está especificamente elen-

cado no conjunto daqueles que, durante o inquérito, competem exclusivamente ao juiz de instrução (arts. 268.º

e 269.º do CPP). Neste sentido, FERREIRA, M. Marques, “Meios de prova”, in Jornadas de Direito Processual

Penal: O novo Código de Processo Penal, Centro de Estudos Judiciários, Almedina, 1988, p. 267; e VALENTE,

Manuel Monteiro Guedes, Revistas e Buscas, cit., p. 67. 17

Op. ult. cit., p. 32.

80

Também aqui, pois, nestas revistas e buscas cautelares estabelecidas no nosso Código de

Processo Penal, devem os órgãos de polícia criminal rodear-se de particulares cuidados, uma

vez que estão previstas como meios absolutamente excecionais, por isso restritivamente

utilizáveis, e sancionáveis com a nulidade de valoração da prova obtida sempre que desres-

peitem os requisitos estabelecidos.

E temos vindo a destacar estes regimes não só porque todos eles dizem igualmente res-

peito a revistas e buscas, mas porque, como pôde constatar-se, são genericamente mais

permissivos do que aquele que inicialmente enunciámos e que o CPP prevê para estes ins-

trumentos enquanto meios de obtenção de prova.

Deve, contudo, não esquecer-se a possibilidade, prevista no art. 174.º, n.º 5, do CPP, de

realização de revistas e buscas, no âmbito de determinado processo-crime, sem prévia auto-

rização da autoridade judiciária.

Na verdade, sendo certo que, por regra, as revistas e as buscas são autorizadas ou orde-

nadas por despacho pela autoridade judiciária competente, devendo esta, sempre que pos-

sível, presidir à diligência, por força do n.º 3 do art. 174.º do CPP, podem, em certos casos,

tais revistas e buscas serem efetuadas sem tal autorização: 1) quando se trate de terrorismo,

criminalidade violenta ou altamente organizada, quando haja fundados indícios da prática

iminente de crime que ponha em grave risco a vida ou a integridade de qualquer pessoa; 2)

em que os visados consintam, desde que o consentimento prestado fique, por qualquer

forma, documentado; ou 3) aquando da detenção em flagrante por crime a que corresponda

pena de prisão.

Estamos, pois, aqui perante uma restrição muito severa do direito à reserva da vida pri-

vada, ocorrida quando há já um inquérito instaurado, mas face a cujas circunstâncias enten-

de o legislador poder ser dispensada a exigência de autorização prévia18. O Tribunal Consti-

tucional, pronunciando-se sobre este tema19, decidiu não tratar-se de uma situação abusiva,

quer porque, no que às buscas respeita, estão aqui em causa somente buscas não domiciliá-

rias, quer porque a elas se impõe particulares limitações.

Efetivamente, além de poderem ter lugar apenas nos casos expressamente previstos nas

três alíneas no n.º 5 do art. 174.º do CPP, restringindo-se, portanto, o seu campo de atua-

ção, no caso de estarmos perante uma circunstância de terrorismo ou criminalidade violenta

ou altamente organizada, tais diligências estão também elas submetidas a posterior comuni-

cação ao juiz de instrução para validação, sob pena de nulidade.

18

Analisando igualmente esta modalidade de buscas, PINTO, Ana Luísa, “As buscas não domiciliárias no direi-

to processual penal português”, cit., pp. 39 e segs. 19

O Tribunal Constitucional abordou esta questão no Acórdão n.º 7/87, de 9 de fevereiro de 1987.

81

Estamos, assim, nestas hipóteses perante circunstâncias que não podem esperar o tempo

normal de uma autorização, sob pena de a diligência se tornar manifestamente inútil, ou

que não precisam de se submeter a tal decisão, uma vez que o interessado, o protegido pela

norma, expressou o seu consentimento. No caso da alínea a), especificamente, estamos

perante criminalidade muito grave, particularmente complexa e difícil de perseguir e para a

qual se tem defendido a necessidade de meios de investigação mais eficientes e céleres.

Sob uma outra perspetiva ainda, se as revistas e as buscas são permitidas, antes do

inquérito, sem necessidade de autorização, não se vê razão para que, em determinadas cir-

cunstâncias e obedecendo a certos requisitos, tal não possa suceder durante o inquérito.

4. A busca domiciliária

Temos, ainda, por último, um caso especial respeitante apenas a buscas, no caso, a busca

domiciliária20. Nos termos do art. 177.º do CPP, a busca em casa habitada ou sua dependên-

cia só pode ser ordenada ou autorizada pelo juiz e efetuada entre as 7 e as 21 horas. Há,

pois, aqui, como seria de esperar de resto, um reforço da tutela oferecida à reserva da vida

íntima e familiar da pessoa, protegendo-se o seu reduto último: o domicílio. Tal proteção,

aliás, deriva da própria CRP, que no seu art. 34.º, n.º 1, afirma a inviolabilidade do domicílio,

esclarecendo, depois, que a entrada no domicílio só poderá ser ordenada por autoridade

judicial e fixando mesmo quais os casos em que tal intromissão poderá ser levada a cabo

durante a noite.

Em conformidade, o n.º 2 do art. 177.º do CPP, reflete tal dispositivo, estatuindo que,

entre as 21 e as 7 horas só podem ser realizadas buscas domiciliárias em caso de terrorismo

ou criminalidade especialmente violenta ou altamente organizada, de consentimento do

visado, documentado por qualquer forma, ou de flagrante delito pela prática de crime puní-

vel com pena de prisão superior, no seu máximo, a 3 anos.

Muito relevante nesta matéria de interceção entre os meios de obtenção de prova e as

medidas cautelares e de polícia é o que vai estatuído no n.º 3 do mesmo art. 177.º, preven-

20

A respeito das buscas domiciliárias, cfr., nomeadamente, PINTO, Ana Luísa, “Aspectos problemáticos do

regime das buscas domiciliárias”, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 15, n.º 3, Julho-Setembro 2005,

pp. 415 e segs.; NUNES, Carlos Alberto Casimiro, “Dos meios de obtenção de prova: o caso das buscas domiciliá-

rias e das intercepções telefónicas”, Reforma Penal e Processual Penal. Jornadas de 2008, Politeia, ano VI/ ano

VII – 2009-2010, pp. 227 e segs.; e CASTANHEIRA NEVES, Alfredo, “Dos meios de obtenção de prova: o caso das

buscas domiciliárias – Breve sinopse legislativa e doutrinal”, Reforma Penal e Processual Penal. Jornadas de 2008,

Politeia, ano VI/ ano VII – 2009-2010, pp. 241 e segs.

82

do a possibilidade de realização de buscas domiciliárias sem autorização do juiz, podendo

ser ordenadas pelo MP ou simplesmente efetuadas por OPC: nos casos previstos no n.º 5 do

art. 174.º, ou seja terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada, quando haja

fundados indícios de prática iminente de crime que ponha em grave risco a vida ou a inte-

gridade de qualquer pessoa, quando os visados consintam, desde que o consentimento

fique documentado por qualquer forma, e aquando da detenção em flagrante por crime a

que corresponda pena de prisão, desde que, em todos estes casos, a busca se realize duran-

te o período diurno, ou seja, entre as 7 e as 21 horas; e ainda nos casos referidos nas alíneas

b) e c) do n.º 2 do art. 177.º, que são os casos de consentimento do visado e de flagrante

delito, quando o crime for punível com pena de prisão de máximo superior a 3 anos, aqui

entre as 21 e as 7 horas.

Surpreende-se, assim, também aqui, numa matéria tão delicada como a das buscas

domiciliárias, um momento em que as entidades policiais, enquanto OPC, podem ter um

poder particular: o de realizar uma busca domiciliária noturna sem autorização prévia do juiz

de instrução. Nesse caso, quando se trate de casos de terrorismo ou criminalidade violenta

ou altamente organizada, a busca ficará sujeita a comunicação ao juiz de instrução, que pro-

cederá à sua apreciação e validação.

III. Notas finais

Propositadamente, ao longo deste trabalho não falámos, além daquelas considerações

iniciais, a respeito do regime regra das revistas e buscas, previsto no art. 174.º, n.º 1 a n.º 4,

do CPP. Fizemo-lo, por um lado, por entendermos que é talvez aquele que, por ser típico,

menos questões levanta a quem diariamente tem de lidar com estes instrumentos, por

outro porque, à medida que fomos analisando os diversos regimes excecionais, acabámos

por, por comparação, falar também a respeito do regime regra, sem termos de sobre ele nos

determos especificamente, aproveitando, pois, a oportunidade para tecer algumas conside-

rações a respeito dos regimes mais sensíveis sobre revistas e buscas.

Se bem vemos, do que vai dito resulta, sobretudo, a peculiar sensibilidade dos instru-

mentos em causa, que ao tocar – como usualmente sucede em processo penal – os direitos

fundamentais dos cidadãos exigem da parte de quem os executa ou leva a cabo um especial

sentido de responsabilidade, uma perceção teleológica dos poderes que lhe estão cometi-

dos e, nessa medida, um específico e funcionalizado exercício de cidadania.

Incertezas em torno do poder sancionatório da

Administração Pública: certezas em torno da

fragilidade das garantias do sancionado1

Isabel Celeste M. Fonseca

Razão de ordem: 0. Prefácio – I. O universo do poder sancionatório das Entidades

Administrativas: incertezas – II. Garantias do sancionado no domínio contra-

-ordenacional: certezas quanto às suas fragilidades – III. Posfácio

0. Prefácio

É um facto que o tema do poder sancionatório da Administração Pública tem sido um

parente pobre dos administrativistas e um enfant chérie dos penalistas. Na realidade, este

assunto tem estado pouco presente na dogmática administrativa e escasseia, por isso, o seu

tratamento em manuais e em obras da especialidade.

Não se admira, pois, que em Portugal, do ponto de vista da ciência do direito administra-

tivo, se esteja longe de ver elaborada uma teoria geral do poder sancionatório administrati-

vo. Bem como também parece longínqua a possibilidade de se elaborar uma teoria geral da

infracção e da sanção administrativas. E mais distante ainda nos parece o projecto de cria-

ção de um procedimento sancionatório comum.

Para sermos rigorosos, até surpreende que assim seja: surpreende que exista uma desa-

tenção da ciência administrativa substantivista2 em relação ao próprio problema do funda-

1 Este texto serviu de apoio à autora na leccionação de uma aula na UC de Direito Administrativo II, no Curso

de Mestrado em Direito Administrativo, da Escola de Direito, no ano lectivo 2011/2012, na Universidade do

Minho. 2 Marcello Caetano (Princípios Fundamentais do Direito Administrativo, 1.ª Reimpressão portuguesa, Coim-

bra: Almedina, 1996, p. 307), a propósito do “processo administrativo gracioso”, faz referência ao processo san-

cionador, aludindo às figuras do “processo disciplinar” e do “processo de transgressão”. Na actualidade, contam-

se poucos textos publicados sobre o tema. A este propósito, importa ver a referência monográfica que se apre-

senta no final do artigo. E, especialmente, cumpre ver FARIA, Margarida Ermelinda Lima de Morais de, O sistema

de sanções e os princípios do direito administrativo sancionador, Tese de Mestrado, Universidade de Aveiro,

2007, p. 51. A autora estudou o tema e julgou “benéfico o reconhecimento legislativo, através de um código

84

mento do poder sancionatório. Afinal, interessante é saber, primo, qual a razão de ser desse

poder e se existe um poder sancionatório geral da Administração Pública (AP). Aliás, perti-

nente é apurar se “o programa Constitucional” permite ou não conceber a existência de um

poder sancionatório geral da AP, não reconduzível ao ilícito administrativo contra-

-ordenacional e disciplinar.

Depois, o problema da indefinição do universo do poder sancionatório também não

mereceria a quietude dos estudiosos das questões administrativas. Afinal, é urgente, secun-

do, distinguir os actos sancionatórios dos actos desfavoráveis; os actos sancionatórios prati-

cados em consequência de uma contra-ordenação versus outros actos sancionatórios não

contra-ordenacionais e não disciplinares.

De resto, urge classificar e distinguir esses actos, sobretudo do ponto de vista da protec-

ção dos sancionados. Aliás, tertio, ainda numa perspectiva substantivista, a necessidade de

pensar o acervo de garantias a que o sancionado tem direito pressupõe reflectir sobre as

garantias fundamentais [ex vi art. 32.º, n.º 10, da Constituição da República Portuguesa

(CRP)] do sancionado, mormente a de audiência prévia e plena defesa. Se pensarmos no

Regime Geral das Contra-ordenações (RGCO), logo se impõe saber se estas garantias funda-

mentais do sancionado estarão suficientemente densificadas nele. Aqui, importante é, ime-

diatamente, trabalhar o regime principiológico garantístico do sancionado e perceber o que

significam, neste contexto, os princípios da legalidade, tipicidade, nemo tenetur se ipsum

accusare, presunção de inocência, in dubio pro reo, ne bis in idem e o princípio que proíbe a

reformatio in pejus. Aliás, importa conhecer os regimes especiais contra-ordenacionais e

perceber quando é que os mesmos acolhem exceções a tais princípios. Estamos sobretudo a

fazer uma alusão a certos regimes que afastam o Código de Processo Penal e convocam

soluções pouco amigas do sancionado3. E no que respeita aos direitos a prestações proce-

dimentais igualmente se impõe saber se o direito à informação do sancionado é nele possí-

vel de concretização.

Ainda assim, a maior incerteza diz respeito às garantias impugnatórias do sancionado, a

começar pelas que se efectivam no seio da própria Administração Pública e a terminar

integrador e harmonizador de um Direito Sancionador Administrativo, que reduzisse a actual complexidade do

tema”. No mesmo sentido, vd. MOURA, Eugénia Maria de, Ilícito administrativo autárquico, Tese de Mestrado,

Escola de Direito da Universidade do Minho, 2010. 3 Veja-se por exemplo a Lei-quadro das contra-ordenações ambientais (Lei n.º 50/2006), a Lei da Concorrên-

cia (Lei n.º 18/2003, especialmente o art. 19.º) e o Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Finan-

ceiras, mormente o art. 222.º, n.º 1, alínea f), do Decreto-Lei n.º 298/92, onde se exclui o princípio da proibição

da reformatio in pejus. Sobre este assunto, vd. MONTE, Mário Ferreira, Direito das Contra-ordenações. Prolegó-

menos, AEDUM, 2011, Braga, pp. 169 e segs.

85

naquelas que se realizam junto de instâncias imparciais e independentes, mormente dos

tribunais. Mas que tribunais?

É aqui que importa parar um instante para dar conta de que a ciência administrativista

também tem estado desatenta em relação às dúvidas que o exercício das garantias conten-

ciosas dos arguidos em processos contra-ordenacionais tem suscitado. E isso surpreende-

nos sobretudo porque esta está normalmente mais atenta ao instrumentarium garantístico

de imposição constitucional e europeia e tem noção das imposições legiferantes que decor-

rem dos arts. 20.º e 268.º, n.º 4 e n.º 5, da CRP, dos arts. 6.º e 13.º da Convenção Europeia

dos Direitos do Homem (CEDH) e do art. 47.º da Carta Europeia de Direitos Fundamentais

(CEDF).

E aqui a desatenção surge sobretudo em relação ao ilícito administrativo de mera orde-

nação social e maxime em relação às decisões intermédias e finais proferidas no processo

contra-ordenacional. Na verdade, este é sobretudo um procedimento administrativo, termi-

na com um acto administrativo, a aplicação de coima, a que pode vir junto a sanção acessó-

ria. No seu decurso, podem ser praticados outros actos com eficácia externa (lesiva). Trata-

se de um procedimento conduzido por uma entidade administrativa, sendo certo que nele

exerce uma função administrativa: a sancionatória. A dúvida aqui presente é a de saber

como garantir a tutela jurisdicional efectiva ao sancionado e, especialmente, tendo em con-

ta a gravidade de certos castigos acessórios, saber como reagir perante a suspensão de

licenças ou a interdição do exercício de actividades ou de profissões. Estarão os tribunais

judiciais bem posicionados para reapreciar, do ponto de vista administrativo, os actos admi-

nistrativos que aplicam sanções deste tipo? A repartição de competências nesta matéria,

entre a jurisdição administrativa e a judicial fará sentido? Andou bem o legislador quando

recentemente veio criar o tribunal da concorrência, regulação e supervisão, afastando cada

vez mais este domínio do juiz administrativo?

Há quem considere inconstitucional o art. 61.º do RGCO, a ler-se no sentido de que ele

afasta da jurisdição administrativa o controlo da decisão administrativa condenatória (arts.

58.º, 59.º e 61.º do RGCO), designadamente das decisões com eficácia externa, tomadas no

decurso do processo de contra-ordenação (arts. 55.º e 61.º do RGCO). Enfim, são estes

alguns dos problemas que aqui serão tratados.

86

I. O universo do poder sancionatório da Administração Pública

1. Incertezas em torno da natureza e fundamentos do poder sancionatório

Uma primeira incerteza diz respeito à natureza e aos fundamentos do poder sancionató-

rio. Impõe-se, neste sentido, uma aproximação à noção de poder sancionatório: i) trata-se

de um poder conferido por lei a certas entidades públicas de aplicar sanções não penais a

outros sujeitos de direito (indivíduos ou pessoas colectivas); ii) é um poder público de auto-

ridade: o que pressupõe uma relação de supremacia-subordinação; iii) é conferido por lei a

uma entidade pública (ou equiparada) de aplicar sanções não penais: através de um acto

administrativo (acto administrativo punitivo ou impositivo), devendo ser precedido de um

procedimento sancionatório adequado.

Não há dúvida de que este tema tem uma enorme relevância na actualidade. As entida-

des públicas, e, em especial, as entidades administrativas independentes, têm um poder

sancionatório crescente e severo, sobretudo, o de natureza contra-ordenacional, em diver-

sos domínios, e cada vez mais alargados, aliás, por actuação dos sujeitos e operadores eco-

nómicos que contrariem o direito administrativo económico, ambiental, das telecomunica-

ções, energético, sendo certo que as sanções normalmente previstas são gravosas. As coi-

mas têm molduras com mínimos e máximos de valores elevados. E as sanções acessórias são

diversificadas e podem impor restrições severas. Acresce a isto o facto de ser possível fazer

acompanhar estas decisões de medidas cautelares e de outras medidas de publicidade e de

comunicação a certos organismos públicos (por exemplo, no caso de aplicação de sanções a

industriais da construção civil, deve comunicar-se ao Instituto da Construção e do Imobiliá-

rio, I.P. a situação de transgressão)4.

E a centralidade do direito sancionador também tem que ver com a dignidade crescente

do bem jurídico a proteger. Hoje, o direito administrativo sancionador visa punir as ofensas

a bens jurídicos tão valiosos como sejam o meio ambiente, a segurança rodoviária, a higiene

e segurança no trabalho, o bom funcionamento dos mercados, a tutela dos consumidores e

a sustentabilidade financeira do Estado. A Administração Pública sancionadora tem, pois,

razões para existir.

4 Sobre o poder sancionatório destas entidades administrativas, vd. MONTE, Mário Ferreira, Direito das Con-

tra-ordenações. Prolegómenos, cit., esp. pp. 161 e segs.

87

2. Incertezas em torno do universo do poder sancionatório: a delimitação das res-

pectivas fronteiras

Do que se trata aqui é de perceber onde começa e onde acaba o universo do poder san-

cionatório da Administração Pública e de saber distinguir um acto sancionatório de um acto

desfavorável. Assim, por exemplo5, vejamos estas situações: o professor expulsa o aluno da

sala, a funcionária afasta o leitor barulhento da biblioteca, o Agente da PSP reboca a viatura

estacionada em local proibido, os serviços municipalizados capturam animais vadios. Eis as

nossas dúvidas: acabámos de dar exemplos de actuações sancionatórias das Entidades

Públicas? Vejamos outras situações: o concedente sequestra a concessão ao concessionário,

com todas as consequências que daí decorrem6, o dono da obra aplica uma multa a um

empreiteiro e rescinde, em seguida, unilateralmente o contrato; a Entidade Pública procede

à revogação da licença de funcionamento de um bar, por não cumprimento por parte do seu

beneficiário da cláusula acessória de modo que lhe vinha aposta; a Entidade Pública expulsa

um estrangeiro do território nacional, a Administração Fiscal aplica uma coima a contribuin-

te que entrega a declaração de IRS fora de prazo. Continuámos a falar de poder sancionató-

rio das Entidades Públicas? Mais exemplos, mais dúvidas: vigilante de Museu impede turista

semi-nu de entrar em Museu; Revisor de ALFA aplica multa a passageiro sem bilhete. De que

estamos a falar, na realidade?

Enfim, impõe-se, em primeiro lugar, procurar estabelecer uma diferença entre o domínio

do poder sancionatório administrativo e o domínio do poder sancionatório criminal e, aqui,

apraz convocar critérios de distinção. Mas quais? Eis mais um problema: i) o do bem jurídi-

co? Talvez este critério já não seja suficiente para o fazer, pois o direito administrativo san-

cionatório também sanciona e pune a lesão de valores caros à comunidade; ii) o da resso-

nância ética? Este levar-nos-ia a concluir erradamente que um sistema é neutro por oposi-

ção ao outro; iii) critérios de natureza formal e quantitativa para distinguir as sanções penais

das administrativas? Talvez seja o mais adequado. Pensemos no tipo de sanção: num caso é

a coima, no outro as penas. Pensemos na Entidade ou órgão competente para aplicar as

sanções: as penas são exclusivamente aplicadas pelos tribunais. E atente-se agora na classi-

5 Alguns dos exemplos são apresentados por Freitas do Amaral “O Poder Sancionatório da Administração

Pública”, cit., p. 218) como actos sancionatórios sem que sejam precedidos de procedimento. 6 O STA, por Acórdãos de 30.092004 e de 03.11.2004, classifica como infracção administrativa a constituição

em mora do concessionário de sala de jogo de bingo por dívidas ao Estado relativas a contribuições ou impostos,

punida com multa ou, quando a gravidade da infracção o justifique, com rescisão do contrato de concessão.

88

ficação político-legislativa: de facto, basta ver a noção de contra-ordenação, presente nos

arts. 1.º e 2.º do RGCO, para perceber: contra-ordenação é todo o facto ilícito e censurável

descrito e declarado passível de coima por lei anterior ao momento da sua prática. No caso

alemão, o legislador optou por definir como facto anti-jurídico e culposo que integra o tipo

de uma lei para a qual está estabelecida uma sanção pecuniária (Geldbusse).

Cumpre, agora, distinguir as decisões sancionatórias versus outras decisões de interven-

ção administrativa com carácter desfavorável para o visado. Vejamos, as medidas de polícia,

as medidas de segurança, as medidas de restauração da legalidade, a revogação de actos

favoráveis e a prática de actos desfavoráveis ou impositivos, sobretudo quando estes,

maxime, as medidas de restauração da legalidade, são emitidos antes ou ao mesmo tempo

que decorre o processo de contra-ordenação ou a par da decisão que aplica a coima, con-

fundindo-se com a medida acessória daquela.

Pois bem, a jurisprudência nem sempre distingue uniformemente as figuras e nem sem-

pre com base nos mesmos critérios: uma corrente não hesita em qualificar como acto admi-

nistrativo certas medidas de restauração da legalidade que são tomadas antes do processo

contra-ordenacional, independentemente de este vir a ser desencadeado ou até desembo-

car na aplicação de sanção. Por exemplo, foi neste sentido que decidiu o Tribunal de Confli-

tos, pelo Acórdão de 04.11.2008, proc. n.º 021/2007: tinha subjacente a decisão camarária

pela qual se impunha a realização de obras de conservação num prédio, por o mesmo se

encontrar em mau estado de conservação. O tribunal entendeu que se tratava de uma pro-

vidência limitativa da propriedade, aplicada com o fim de evitar danos sociais, em face da

mera existência objectiva do risco de produção desses danos, independentemente da possi-

bilidade de imputação de qualquer facto ou actuação ilícita àquele a quem é dirigida a pro-

vidência administrativa, pelo que não traduziria a aplicação de contra-ordenação. Antes

consubstanciava-se num verdadeiro acto administrativo, segundo o conceito vertido no art.

120.º do Código do Procedimento Administrativo (CPA), devendo o seu controle estar entre-

gue aos tribunais administrativos. E de igual modo também não hesita em classificar como

acto administrativo aquele que é emitido no decurso do processo de contra-ordenação, às

vezes a par da decisão sancionatória contra-ordenacional, classificando-o como verdadeiro

acto administrativo, de natureza não sancionatória, contenciosamente recorrível para os

tribunais administrativos. Por exemplo, o Supremo Tribunal Administrativo (STA) (por Acór-

dão de 03.06.03, proc. n.º 865/03) considerou que a decisão da entidade administrativa

local, que aplica ao munícipe uma coima e lhe ordena que proceda à reposição do terreno à

situação anterior à obra efectuada, demolindo as construções e repondo os materiais retira-

89

dos do desaterro, com modelação e compactação do terreno e reposição do coberto vegetal

autóctone, encerra duas ordens de estatuições de natureza diferente: uma trata-se de uma

coima com natureza sancionatória, a outra, a ordem de reposição do terreno ao estado

anterior à efectivação da obra, é um acto administrativo restaurador da legalidade adminis-

trativa, não se tratando, pois, de nenhuma medida acessória de contra-ordenação. Sendo

uma medida meramente administrativa aplicada por acto administrativo impositivo, o lesa-

do pode recorrer aos tribunais administrativos e lançar mão dos mecanismos previstos no

Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), podendo socorrer-se, em especial,

da acção administrativa especial e das providências cautelares conservatórias.

Mas a questão não é nada simples e está longe de ser resolvida de modo uniforme pelos

tribunais, pois há decisões emitidas antes ou no decurso do processo de contra-ordenação

que podem revestir a natureza de medida cautelar e nem sempre assim são entendidas,

como, por exemplo, a de apreensão de bens (que serviram ou estavam destinados a servir

para a prática de uma contra-ordenação), de encerramento de estabelecimento e de inter-

dição de actividade profissional, ou, designadamente, a de suspensão imediata de exercício

de actividades de estabelecimento, no âmbito de um processo contra-ordenacional. Ora

vejamos, os tribunais comuns têm entendido que tais decisões têm natureza cautelar

(podendo tratar-se de uma medida antecipatória da sanção aplicável e não um acto adminis-

trativo provisório) e delas cabe recurso para os tribunais comuns, respeitando-se o princípio

da unidade do sistema. Pensemos no Acórdão da Relação do Porto de 20.02.2008, proc. n.º

7172213: em causa estava uma decisão da ASAE, pela qual se procedeu à suspensão imedia-

ta do exercício da actividade de estabelecimento, no âmbito de um processo contra-

ordenacional. Desta decisão houve recurso para os tribunais comuns, por força do art. 55.º

do RGCO, sendo certo que o mesmo não teve efeito suspensivo.

São, de facto, muitas as incertezas em torno do poder sancionatório da Administração

Pública. Por exemplo: como distinguir as medidas sancionatórias das não sancionatórias,

mas igualmente lesivas? As medidas de polícia são ou não sanções? Entende-se que não são

sanções administrativas, pois elas procuram prevenir comportamentos ilícitos e não sancio-

ná-los. Elas têm por finalidade a defesa da ordem pública em sentido amplo. Neste contexto,

SÉRVULO CORREIA define a actividade de polícia como “a actividade da Administração Públi-

ca que consiste na emissão de regulamentos e na prática de actos administrativos e mate-

riais que controlam condutas perigosas dos particulares, com o fim de evitar que estas

venham ou continuem a lesar bens sociais cuja defesa preventiva através de actos de auto-

90

ridade seja consentida pela Ordem Jurídica”7. Assim, enquanto as medidas administrativas

sancionatórias têm uma função punitiva, repressiva e constituem uma reacção à violação

consumada de um preceito legal, as medidas de polícia são essencialmente preventivas,

prevalecendo o elemento finalístico da distinção: “elas visam a prevenção ou afastamento

de perigos gerados por comportamentos individuais para interesses públicos legalmente

reconhecidos”8.

E as medidas de segurança? Pois bem, a medida de segurança está necessariamente

conectada ao ilícito típico criminal, pressupondo a prática de um crime. A Entidade compe-

tente para aplicar a medida de segurança são os tribunais, sendo certo que a mesma só

pode ser aplicada post delictum ou ante delictum, tendo esta uma finalidade preventiva.

No que respeita às medidas de restauração de legalidade, o que dizer? Dizer que estas

não devem confundir-se com as sanções, pois, enquanto estas se traduzem num mal aplica-

do ao infractor, aquelas, embora possam ir de par com a aplicação de sanções, são outra

coisa. São a mera restauração da legalidade infringida. Pode bem acontecer, na verdade,

que um mesmo facto, por exemplo, a construção de um edifico sem licença, dê origem a um

procedimento sancionatório e a uma medida de restauração da legalidade (demolição) sem

que esta constitua uma sanção, embora possa ter consequências mais gravosas. E bem pode

suceder, nesse caso, que a sanção não seja aplicada por se concluir que o dono da obra não

teve culpa (disseram-lhe na câmara municipal que aquele tipo de obras não necessitava de

licença) ou porque, por exemplo, faleceu. Mas, mesmo que não seja aplicada a sanção, a

medida de restauração da legalidade mantém-se e o prédio deverá ser demolido (se as

obras não forem legalizáveis). A restauração da legalidade não tem, pois, em conta a culpa,

nem indaga quem é dono do prédio. Apenas considera o dever de repor a legalidade. Assim

sucede com a ordem de demolição de obras de construção não legalizáveis, pois o que se

pretende é restaurar a legalidade e a medida aplica-se contra o proprietário actual do pré-

dio, ainda que não tenha sido ele quem procedeu à construção, devendo notar-se que não

lhe pode ser imposta a coima respectiva.

Já no que tange à revogação de certos actos favoráveis, por incumprimento da condição

ou modo por parte dos destinatários9, cumpre dizer que há quem entenda, por exemplo,

que a revogação da licença de funcionamento de um bar, por ultrapassar os limites de ruído

7 CORREIA, José Manuel Ribeiro Sérvulo, “Polícia”, in Dicionário Jurídico da Administração Pública, Vol. VI,

Lisboa, 1994, pp. 393 a 408. 8 CORREIA, José Manuel Ribeiro Sérvulo, “Polícia”, cit., pp. 393 a 408.

9 Notar bem a classificação que Freitas do Amaral faz deste tipo de actos (“O poder sancionatório…”, cit., pp.

218 e segs.

91

que lhe foram impostos na licença atribuída, não é uma sanção administrativa, no sentido

que aqui lhe damos de um mal infligido por uma infracção, mas apenas o cumprimento da

obrigação que pesava sobre o dono do bar.

Enfim, que critério seguir nesta distinção? Como distinguir as sanções administrativas das

decisões de encerramento de um estabelecimento que funcione sem a necessária licença

administrativa, a ordem de demolição de obras de construção não legalizáveis ou de reposi-

ção do terreno no estado em que se encontrava? A sanção castiga um comportamento ilegal

do sujeito a quem é imposta, enquanto as outras medidas tendem a satisfazer interesses

públicos, independentemente de implicarem ou não um prejuízo para o destinatário. A san-

ção administrativa tem por base um ilícito administrativo (uma conduta ilícita) e tem uma

finalidade aflitiva ou punitiva, fazendo incidir sobre o sujeito a quem é imposta uma conse-

quência desvantajosa, seja ela a privação de um direito, seja o pagamento de uma quantia.

A sanção é aplicada a quem deixe de cumprir, sem justificação, um dever administrativo

certo e determinado normativamente imposto10.

3. Incertezas em torno do universo do poder sancionatório: as categorias e as res-

pectivas fronteiras

Importa, desde logo, perceber que o universo sancionatório inclui as sanções disciplina-

res, as sanções corporativas (disciplinares e outras), as sanções contra-ordenacionais (coi-

mas e outras penas acessórias) e outras sanções administrativas inominadas11.

10

Sobre estes problemas, vd. OLIVEIRA, António Cândido de, O poder sancionatório da Administração Públi-

ca, aula de 11 de Abril de 2011, pol. Escola de Direito da Universidade do Minho, ano lectivo 2010/2011. 11

Sobre este assunto, Freitas do Amaral “O Poder Sancionatório da Administração Pública”, cit., p. 225) con-

sidera que o poder sancionatório encerra três grandes áreas: a do ilícito disciplinar administrativo, a do ilícito de

mera ordenação social (ou contra-ordenacional) e a do controlo administrativo da licitude de certas actividades

públicas e privadas, que implicam uma colaboração especial do particular com a Administração Pública. Sobre

este tema, vd. MOREIRA, Vital, Apontamentos Curso de Estudos Avançados em Gestão Pública, INA.; Direito

Administrativo, 2.ª turma, 2003. Por seu lado, Margarida E. L. M de Faria (O sistema de sanções e os princípios do

direito administrativo sancionador, cit., p. 32), na senda de E. García de Enterría, distingue a sanção administrati-

va geral da sanção administrativa especial, elegendo como critério de diferenciação o tipo de relação jurídica

estabelecida entre a Administração sancionadora e o administrado sancionado. Assim, no primeiro caso, fala a

autora de uma sanção que se impõe no âmbito de uma relação geral de poder, que é aquela que se estabelece

entre a Administração e todos os cidadãos, independentemente da sua vontade, na medida em que todos estão

sujeitos à sua autoridade ius puniendi, visando com a sua efectivação a protecção do interesse público a que a

Administração está adstrita no exercício da sua actividade. A sanção administrativa especial incide sobre aquelas

pessoas que voluntariamente (ou por força da lei ou de uma decisão judicial) estabelecem uma ligação específica

com a Administração, uma relação especial de poder, mantendo-se o contacto e sob o controlo da entidade

administrativa a que se vinculam, afectando com os seus ilícitos interesses públicos mais específicos, enquanto

mais orientados à tutela da ordem administrativa interna, ao seu funcionamento interno.

92

Comecemos pelas sanções disciplinares para lhe traçarmos o respectivo âmbito. Aqui se

inclui as penas disciplinares aplicadas a trabalhadores que exercem funções públicas (nos

termos do Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores que Exercem Funções Públicas: Lei n.º

58/2008, de 9 de Setembro)12. De resto, a aplicação de penas aos funcionários constitui a

mais segura e incontestada manifestação do poder sancionatório da AP. Neste quadro, é

forçoso o reconhecimento de traços essenciais, como sejam a necessidade de procedimento

administrativo prévio (processo disciplinar), a garantia do fundamental Direito de Defesa do

arguido, o princípio da tipicidade legal das penas e a impugnabilidade administrativa e judi-

cial do acto sancionatório.

Notar ainda a existência de poder disciplinar acolhido em estatutos especiais. Aqui, como

exemplo, cumpre convocar o poder disciplinar sobre os militares e sobre os agentes da PSP e

GNR, que é mais apertado do que o dos funcionários civis, e o poder disciplinar sobre os

magistrados.

Notar também a existência de poder disciplinar sobre os utentes dos serviços que fun-

cionem na base de direito público, permitindo a configuração de relações especiais de

poder. Importa salientar o poder disciplinar sobre os reclusos de um estabelecimento prisio-

nal, que é um poder intenso13, o poder disciplinar sobre doentes internados em serviços

hospitalares e respectivos visitantes14, o poder disciplinar sobre alunos que frequentam

escolas em regime de internato, como por exemplo, os que integram o Colégio Militar ou

Instituto dos Pupilos do Exército, o poder disciplinar sobre os alunos das escolas públicas, ou

o poder disciplinar sobre utentes de bibliotecas, arquivos públicos museus e outros estabe-

lecimentos públicos15. Neste caso, trata-se de manter uma certa disciplina que assegure o

funcionamento do serviço.

Não podemos ignorar as penas disciplinares aplicadas a profissionais integrados em

Ordens ou Câmaras profissionais, uma vez que há uma disciplina interna a que estão sujeitos

os membros das associações públicas, designadamente Ordens Profissionais, podendo estas

corresponder à admoestação, suspensão de exercício e interdição definitivo de actividade

ou profissão16.

12

Sobre o tema, vd. CARVALHO, Raquel, Comentário ao Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores que Exercem

Funções Públicas, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2012. 13

Ver diploma legal: Decreto-lei n.º 265/79, de 1 de Agosto, designadamente arts. 128.º e segs. 14

Vd. Diploma legal e, por exemplo, Regulamento de visitas do Hospital de S. Marcos, em Braga. 15

Desafio: Cfr. Regulamento Geral de uma Biblioteca (consultar por exemplo o sui generis regulamento da

Biblioteca Geral da Universidade do Minho), Lei-Quadro dos Museus Portugueses (Lei n.º 47/2004, de 19 de

Agosto) e Regulamento Interno de um Museu. 16

Desafio: cfr. Estatuto da Ordem dos Advogados e o Regime Jurídico das Associações de Regantes.

93

A par das sanções disciplinares, há que distinguir as sanções que constituem ilícito con-

tra-ordenacional de outras sanções sem natureza contra-ordenacional. Ora, lembrando, o

ilícito contra-ordenacional pressupõe a aplicação de coima (e medida acessória) e tem sub-

jacente a prática de actos ilícitos pelos particulares a que já se deu o nome de transgressões

administrativas17. O poder sancionatório contra-ordenacional das Entidades administrativas

está disciplinado pelo Regime Geral das Contra-Ordenações, o Decreto-Lei n.º 433/82, de 27

de Outubro, com alterações posteriores, e pretende ser a lei-quadro integradora dos princí-

pios substantivos e procedimentais do direito contra-ordenacional português, à semelhança

da Lei Italiana n.º 689/91 ou da OWIG alemã.

São numerosos os casos que constituem ilícitos de mera ordenação social e são sancio-

nados com uma coima. Aliás, o domínio das contra-ordenações abrange distintas áreas do

Direito: da economia, do ambiente, do urbanismo. E há muitas contra-ordenações cuja san-

ção é da competência das Entidades Reguladoras Independentes que actuam no domínio da

concorrência, no mercado de valores mobiliários, na comunicação social, etc.18.

Assim, são exemplos de contra-ordenações no nosso sistema jurídico as infracções ao

Código da Estrada; as infracções ao Código do Trabalho; as infracções tributárias (Lei n.º

15/2001, de 6 de Junho, Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT); a violação de postu-

ras e regulamentos de natureza genérica das Autarquias Locais (Lei das Finanças Locais, a

que se deve aplicar o RGIT); as infracções às disposições legais relativas à aviação civil

(Decreto-Lei n.º 10/2004, de 9 de Janeiro); as contra-ordenações ambientais (Lei n.º

50/2006, de 29 de Agosto); as infracções no domínio dos regimes da Segurança Social

(Regime das Contra-Ordenações da Segurança Social).

Quanto à sua origem, como bem se sabe, umas provêm da descriminalização e têm na

sua origem uma infracção penal, resultando da transformação de anteriores contravenções

em contra-ordenações (ou, por outras palavras, resulta da transformação das contravenções

tidas como bagatelas em ilícito administrativo) e outras são criadas ex novo.

Aspectos fundamentais que caracterizam o regime procedimental das contra-ordenações

são a notícia, a averiguação e a prova dos factos ilícitos, a defesa do arguido e a emissão de

sanção (coima ou outra medida acessória, prevista no art. 21.º do RGCO, como, por exem-

plo, o encerramento de estabelecimento, a suspensão do exercício de actividade ou profis-

são). Em qualquer caso, há um procedimento administrativo que é conduzido por uma enti-

17

O Código Administrativo de 1936-40 previa a aplicação máxima da pena de prisão até um mês à violação

de regulamento e posturas municipais. 18

Desafio: ver, por exemplo, Estatuto da CMVM (art. 9.º, alínea p)); Estatutos da Autoridade da Concorrência

(art. 7.º, n.º 2); Estatutos da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (arts. 67.º e segs.).

94

dade administrativa e culmina na prática de um acto administrativo. O acto sancionatório é

impugnável nos tribunais judiciais e não nos tribunais administrativos, como acontece com

os demais actos sancionatórios das entidades administrativas (vd. arts. 87.º e segs. da Lei de

Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (LOFTJ))19. Estará esta solução bem,

sobretudo quando sabemos que o direito contra-ordenacional é direito administrativo20?

Voltaremos a este assunto.

Finalmente, a par do poder disciplinar e contraordenacional, existe ainda um poder san-

cionatório inominado. É pertinente, contudo, questionar o que acabámos de dizer. Aliás,

pode perguntar-se se o legislador pode prever outras medidas sancionatórias administrati-

vas, a par daquelas outras já mencionadas. Enfim, estamos a falar das sanções administrati-

vas inominadas: aquelas que se traduzem em sanções rescisórias de actos administrativos

favoráveis e se desenvolvem, tanto no âmbito de relações de supremacia especial da Admi-

nistração (empreitadas, concessões e outros contratos administrativos), como no âmbito de

actos administrativos, como as autorizações e as licenças, que se desenvolvem na esfera das

relações gerais entre a Administração e os particulares, na medida em que não resultam de

qualquer vínculo hierárquico estabelecido, nem da celebração de nenhum contrato entre

ambos (VITAL MOREIRA). Estas constituirão aquelas medidas que, por força de lei, não se

consubstanciam fatalmente na aplicação de uma coima, cuja aplicação é da competência da

Administração Pública e que estão previstas em normas cujo fim ou objectivo é, ainda que

não exclusivamente, castigar ou punir o particular pela violação de determinados deveres

administrativos.

Este tipo de sanções administrativas é constitucionalmente possível? A partir do art.

165.º, alíneas c) e d), poderia parecer que não. Contudo, lembremo-nos da medida de restri-

19

Como se sabe, há uma longa tradição, que vem já desde a revolução liberal, no sentido de que os tribunais

judiciais são mais credíveis para a defesa das liberdades e valores mais caros ao cidadão, como sejam a liberdade

individual e a propriedade privada. 20

Como afirma Freitas do Amaral “O Poder Sancionatório da Administração Pública”, cit., p. 223), “não se

estranhe, entretanto, que incluamos o chamado «direito de mera ordenação social» como parte do Direito

Administrativo: é a solução que há anos temos defendido no nosso ensino”. Vd., do mesmo autor, Manual de

Introdução ao Direito, I, Coimbra, Almedina, 2004, pp. 277 a 281. Sobre este assunto, escrevem Hans J.

Wolff/Ottobachof/Rolf Stober (Direito administrativo, Vol. I, tradução de António F. de Sousa, Fundação Calouste

Gulbenkian, 2006, p. 255) “O direito administrativo destina-se a ser respeitado por aqueles que por ele são atin-

gidos. Por isso, o direito das contra-ordenações, ao ocupar-se das circunstâncias de facto e da punição do ilícito

administrativo, é parte essencial do direito administrativo. (…) A relação com o direito administrativo resulta

sobretudo da competência das autoridades administrativas e da posição das circunstâncias de facto que, por via

de regra, se encontram no capítulo final das leis respectivas. A literatura dos manuais ignora geralmente este

aspecto”.

95

ção do uso de cheque (art. 10.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 14/84, de 11 de Janeiro)21: o Tribu-

nal Constitucional (TC) começou por considerar que o “programa constitucional relativo ao

direito sancionatório está definido nas alíneas c) e d) do art. 165.º, só admitindo ao lado do

direito penal, o direito disciplinar e o direito contra-ordenacional”. No caso em questão, o

TC considerou existir apenas uma inconstitucionalidade orgânica (e não material), pois cum-

priria à Assembleia da República ou ao Governo (devidamente autorizado pela Assembleia)

legislar sobre a medida restritiva do uso de cheque. Pois bem, o decreto-lei referido criou,

ao fim e ao cabo, uma sanção diferente das previstas naquele artigo, dando o seu aval à

existência de um ilícito administrativo atípico, não reconduzível a ilícito disciplinar, nem ao

contra-ordenacional. Pois bem, o TC aceitou, assim, que possa existir outro tipo de ilícito

administrativo para além do contra-ordenacional e que as Entidades Públicas possam aplicar

outro tipo de sanções para além das do tipo disciplinar e contra-ordenacional22.

Por conseguinte, à luz do nosso ordenamento jurídico, parece poder defender-se que é

“constitucionalmente aceitável a existência de sanções administrativas”. Coisa diferente é

saber se o art. 199.º, alínea g), da CRP pode sustentar a entrega de um poder geral de san-

ção à AP, máxime ao Governo? Pois bem, pode pensar-se assim, tanto mais que cabe ao

Governo praticar todos os actos e tomar todas as providências necessárias à promoção do

desenvolvimento económico-social e à satisfação de necessidades colectivas. E há, na reali-

dade, quem assim entenda23.

21

“A medida de restrição ao uso de cheque a que o presente capítulo se refere é uma providência de

natureza administrativa que envolve a proibição às pessoas a quem for aplicada de movimentar por meio de

cheques as contas de depósito de que sejam titulares em quaisquer instituições de crédito. A competência para a

aplicar é do Banco de Portugal”. E o Tribunal Constitucional chegou a sustentar que o “programa constitucional

relativo ao direito público sancionatório” estava definido nas alíneas c) e d) do actual art. 165.º da CRP só

admitindo, ao lado do direito penal e do direito disciplinar, o direito contraordenacional e submetendo-o a

reserva relativa de competência legislativa por parte da Assembleia da República. O Decreto-Lei em questão

seria, assim, duplamente inconstitucional: criava ilícitos administrativos diferentes do ilícito disciplinar e do ilícito

contraordenacional contrariando a Constituição e, por outro lado, violava a reserva relativa de competência

legislativa da AR, pois era um decreto-lei sem autorização legislativa. O Tribunal Constitucional, porém, acabou

por considerar apenas que havia uma inconstitucionalidade orgânica e não material. Ou seja, só por lei da AR ou

Decreto-Lei por esta autorizado poderia ser regulada a medida restritiva de uso do cheque. 22

Diz-se, a este propósito, no Acórdão do Tribunal Constitucional de 3 de Julho de 1991: “O que o Governo

fez foi criar um ilícito administrativo atípico, pois que não sendo ilícito disciplinar também se não reconduz ao

conceito de contra-ordenação, uma vez que a medida de restrição ao uso dos cheques não é uma coima. (…)

Ainda que haja de ter-se por constitucionalmente admissível a criação de ilícitos administrativos para além do

ilícito disciplinar e do ilícito contraordenacional, só a Assembleia da República ou o Governo por ela autorizado

hão-de poder criar tal tipo de ilícito e definir-lhe o respectivo regime, sob pena de se defraudar o sentido da

reserva parlamentar. Daí a inconstitucionalidade das normas em questão”. 23

Neste sentido, vd. OLIVEIRA, António Cândido de, O poder sancionatório da Administração Pública, cit., e

FARIA, Margarida Ermelinda Lima de Morais de, O sistema das sanções e os princípios do direito administrativo

sancionador, cit., p. 62.

96

Esta subcategoria do universo do poder sancionatório das Entidades Administrativas

incluirá, segundo FREITAS DO AMARAL, as seguintes modalidades24: sanções administrativas

aplicadas pelo poder central ao poder local, pelo não cumprimento de certos requisitos

legais ou condições e encargos constantes do próprio acto ou contrato que constitui o bene-

fício; a revogação de subsídios; a revogação de comparticipações, a revogação de isenções

fiscais, sendo certo que também são sanções administrativas inominadas as sanções admi-

nistrativas aplicadas a entidades particulares de utilidade pública, como seja a revogação ou

suspensão do estatuto de utilidade pública, a revogação ou a suspensão de benefícios fis-

cais, bem como os actos de rescisão contratual a título sancionatório e a revogação sancio-

natória25, id est a revogação de actos favoráveis aos seus destinatários e que dependem da

aceitação deles, por não cumprimento de modo, sendo certo que falamos neste caso da

revogação de autorizações, de licenças, de concessões. Vejamos um exemplo: revogação

pela Câmara Municipal de licença de ocupação da via pública, destinada à instalação do café,

numa esplanada, por incumprimento de obrigações decorrentes do alvará referentes às

formas de acomodamento do público.

Mais complicado é saber se estas sanções estão sujeitas ao princípio da reserva de lei. O

art. 165.º classifica como reserva relativa da Assembleia da República “a definição dos cri-

mes, penas e medidas de segurança e respectivos pressupostos, bem como o processo cri-

minal” (alínea c)) e o “regime geral de punição das infracções disciplinares, bem como dos

actos ilícitos de mera ordenação social e do respectivo processo” (alínea d)). Ora, há quem

entenda que, na Constituição, as infracções e penas não criminais não estão sujeitas ao prin-

cípio da reserva de lei parlamentar, sendo certo que o art. 165.º, alínea d), só reserva para

lei parlamentar (ou decreto-lei autorizado) o regime geral das contra-ordenações e das san-

ções disciplinares, o que há-de implicar, entre outras coisas, o elenco das sanções e respec-

tivos limites, bem como o processo de aplicação das sanções. Isto quer dizer que a compe-

tência para a definição concreta dos ilícitos administrativos pode caber ao Governo e às

Regiões Autónomas (naturalmente por via legislativa), mas pode também ser diferida por lei

(da Assembleia da República) para regulamento autónomo, local ou corporativo26. Há quem

aponte para o critério que atenda à exigência de emissão de uma lei, por existir uma cone-

24

Vd. AMARAL, Diogo Freitas do, “O Poder Sancionatório da Administração Pública”, cit., p. 225. 25

A este propósito, Freitas do Amaral (“O Poder Sancionatório da Administração Pública”, cit., p. 225.) refere

o seguinte: “a revogação sancionatória tem a particularidade singular de corresponder ao único caso em que um

acto administrativo válido e constitutivo de direitos pode ser revogado pela Administração sem o consentimento

do seu destinatário, ou até contra a vontade dele, e sem que ele tenha direito a qualquer indemnização”, sendo

certo que o autor dá carácter genérico à revogação sancionatória. 26

Neste sentido, MOREIRA, Vital, Apontamentos Curso de Estudos Avançados em Gestão Pública, cit., p. 214.

97

xão da infracção ou sanção com um direito fundamental, tanto mais que o art. 165.º, n.º 1,

alínea b), da CRP assim o exige.

II. Garantias do sancionado no domínio contra-ordenacional: certezas quanto às

suas fragilidades

Para além dos problemas, a que já fizemos alusão, decorrentes da dificuldade em distin-

guir o universo do poder sancionatório daquele que acolhe actos desfavoráveis sem esse

carácter, e de tudo o que em matéria de protecção com isso está relacionado, há que consi-

derar a diferença quanto à repartição de competências jurisdicionais, conforme se esteja no

domínio do ilícito de mera ordenação social ou no do demais ilícito administrativo não con-

tra-ordenacional.

De facto, não cabe ao juiz administrativo apreciar as decisões condenatórias e as demais

decisões emitidas no decurso do processo de contra-ordenação. Todos sabemos que razões

históricas e pragmáticas afastaram o contencioso contra-ordenacional do juiz administrati-

vo27. No preâmbulo do Decreto-Lei n.º 232/79, o legislador reconhecia “de boamente que a

pureza dos princípios levaria a privilegiar a competência dos tribunais administrativos (ponto

5), sendo certo que só por razões pragmáticas se optou pela atribuição da competência aos

tribunais judiciais”, sendo esta “pelo menos uma solução imediata e eventualmente provisó-

ria”28. A dogmática é unânime a considerar que juridicamente haveria razões para convocar

o juiz administrativo para estas questões, mas FREITAS DO AMARAL/M. AROSO DE ALMEIDA

falam de uma “indesejabilidade prática”.

De resto, não obstante a leitura dominante do art. 212.º, n.º 3, da CRP, que aceita a exis-

tência de uma reserva relativa de competência dos tribunais administrativos para os litígios

emergentes da relação jurídico administrativa, importaria reequacionar a vinda da temática

27 De facto, o primeiro diploma sobra a matéria (o Decreto-Lei n.º 232/79, de 24 de Julho) reconhecia que as

instâncias judiciais naturalmente competentes deveriam ser as judiciais administrativas. Contudo, também veio

estabelecer que só por razões pragmáticas, ponderadas as vantagens e desvantagens de qualquer das soluções,

se optou pelos tribunais comuns, sendo certo que a opção teria um carácter provisório. 28

De facto, diz-se aí o seguinte: após algumas hesitações, optou-se por atribuir aos tribunais comuns a com-

petência para conhecer do recurso de impugnação judicial. Reconhece-se de boamente que a pureza dos princí-

pios levaria a privilegiar a competência dos tribunais administrativos. Ponderadas, contudo, as vantagens e as

desvantagens que de qualquer das soluções comporta, considerou-se mais oportuna a solução referida, pelo

menos, como solução imediata e eventualmente provisória. E isso por ser a solução normal em direito compara-

do. E, ainda, por se revelar mais adequada a uma fase de viragem tão significativa como a que a introdução do

direito de ordenação social representa. Além do mais, afiguram-se mais facilmente vencíveis naturais resistências

ou reservas da comunidade dos utentes do novo meio de impugnação judicial.

98

para a respectiva sede própria. É certo que sempre se poderá obstar a essa ideia, afirmando

que ainda não há um quadro conjectural propício a esse encaixe, por, no contexto actual,

ainda não existirem em primeira instância juízos especializados em razão da matéria.

Ora, como afirmam GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, a aceitação do desvio pode ter

por base a existência de um “obstáculo intransponível, de ordem logística, ligado à insufi-

ciência de tribunais administrativos e pela necessidade de salvaguardar a tutela jurisdicional

efectiva, que poderia ficar comprometida pelo entupimento e irregular funcionamento

daqueles, se o legislador ordinário atribuísse, de imediato, aos tribunais administrativos o

julgamento de todos os litígios de natureza administrativa”.

Outros autores, como SIMAS SANTOS/JORGE LOPES DE SOUSA, consideram mesmo que a

atribuição de tal competência aos tribunais judiciais viola preceitos constitucionais (designa-

damente, os arts. 110.º, n.º 2, 211.º, n.º 1, e 212.º, n.º 3, da CRP)29. E assim é sobretudo

porque há diferença quanto ao rol de ferramentas de defesa judicial de que dispõe o san-

cionado, o que nos leva a questionar, designadamente, a possibilidade de os sancionados

lançarem mão das providências cautelares que considerem adequadas a salvaguardar os

seus interesses. No contexto das sanções sujeitas ao ilícito contra-ordenacional é possível

impugnar a decisão condenatória (arts. 58.º, 59.º e 61.º do RGCO) junto dos tribunais judi-

ciais (criminais, ou outros, conforme se dispõe na LOFTJ)30. Mais precisamente, nos termos

do art. 59.º, a decisão administrativa que aplica a coima é susceptível de impugnação judi-

cial. O recurso judicial da decisão (ou recurso de impugnação que, como diz A. CÂNDIDO

OLIVEIRA, é “coisa estranha”) de aplicação de coima (que deve conter alegações e conclu-

29

De resto, Manuel Simas Santos/Jorge Lopes de Sousa (Contra-ordenações, Anotação ao Regime Geral, 6.ª

ed., Áreas Editora, 2011, pp. 479 a 481) consideram que, nos termos daqueles preceitos, cabe ao legislador cons-

tituinte definir a formação, a composição, a competência e o funcionamento dos órgãos de soberania, sendo

certo que o legislador constituinte estabelece que os tribunais judiciais, não obstante serem os tribunais comuns

em matéria cível e penal, exercem jurisdição em áreas não atribuídas a outras ordens jurisdicionais. Ora, nos

termos do art. 212.º, n.º 3, o legislador constituinte estabelece que os tribunais administrativos são competentes

para dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas, sendo certo que, nestes casos, falamos

de um verdadeiro processo administrativo, de competência de autoridades administrativas, com o qual se pros-

seguem fins de interesse público incluídos nos objectivos das entidades que exercem a função administrativa e

que terminam com a emissão de uma cato administrativo. Isto é, o que resulta da leitura do preâmbulo do

diploma que introduziu o ilícito de mera ordenação em Portugal. Além disso, o direito de mera ordenação social

visa assegurar a realização de interesses públicos cuja prossecução se integra no âmbito funcional da AP. Ora,

como actividade administrativa que é, justifica-se, no entender destes autores, que, congruentemente, o contro-

le judicial da mesma fosse atribuído aos tribunais administrativos. 30

Assim, nos termos da LOFTJ (arts. 87.º, 89.º e 90.º), a impugnação de decisões administrativas proferidas

em procedimentos de contra-ordenação em matéria laboral e de segurança social deve ser dirigida aos tribunais

de trabalho, as contra-ordenações de comércio são julgadas pelos tribunais de comércio, as marítimas pelos

tribunais marítimos e as infracções tributárias pertencem aos tribunais administrativos e fiscais. As demais

impugnações são da competência dos tribunais criminais, dos de pequena instância criminal ou, na falta destes,

dos tribunais de competência especializada criminal.

99

sões) é feito por escrito e apresentado à autoridade administrativa que aplica a coima, no

prazo de 20 dias (a contar nos termos do art. 60.º, sendo dias úteis), após o seu conheci-

mento. A impugnação da decisão é apresentada na entidade administrativa que aplica a

coima (e não ao tribunal a que é dirigido), a fim de aquela poder reapreciar a decisão, à luz

das críticas que o arguido lhe fizer e com vista a poder ainda revogá-la (art. 62.º, n.º 2, do

RGCO), sendo certo que, aberta a via judicial, já não está em causa a apreciação da validade

da decisão administrativa sancionatória, mas a dedução de uma acusação (nos termos do

art. 62.º): este estabelece que recebido o recurso deve a entidade administrativa enviar os

autos ao Ministério Público (MP), que os remeterá ao juiz, valendo este acto de envio como

acusação, sendo certo que o MP se depara com uma decisão administrativa sem dela

conhecer mais nada, não sendo acompanhada do processo administrativo, havendo neces-

sidade de fazer a prova em julgamento. O recurso tem efeito suspensivo. Assim, nos termos

do art. 408.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal (CPP), subsidiariamente aplicável

ex vi art. 58.º, n.º 2, do RGCO, uma vez que este dispõe que a decisão apenas se torna defini-

tiva e exequível se não for judicialmente impugnada nos termos do art. 59.º do RGCO.

Chegados aqui, questionamo-nos se o efeito suspensivo do recurso accionado contra a

decisão que aplica a coima também abrange o recurso da decisão pela qual se aplicam as

medidas acessórias. De facto, o efeito suspensivo não deverá acontecer apenas em relação à

decisão que aplica a coima, pois, as sanções acessórias podem tratar-se de medidas de

enorme ingerência nos direitos fundamentais dos sancionados, de que pode resultar um

enorme sacrifício, tal como a limitação temporária da capacidade civil do exercício de direi-

tos, a proibição do exercício de profissão, a proibição do exercício de actividades económi-

cas, o encerramento de estabelecimentos, ou perda de bens31.

Uma outra dúvida tem que ver com a impugnação das decisões intermédias do procedi-

mento sancionatório. Vejamos melhor: é possível ao arguido, ou às pessoas contra as quais

se dirijam, impugnar as decisões com eficácia externa, tomadas no decurso do processo de

contra-ordenação (arts. 55.º e 61.º do RGCO)? Neste caso, falamos, pois, de decisões, des-

pachos e demais medidas tomadas pelas autoridades administrativas no decurso do proces-

31

O art. 21.º estabelece que a “lei pode, simultaneamente com a coima, determinar as seguintes sanções

acessórias, em função da gravidade da infracção e da culpa do agente: Perda de objectos pertencentes ao agen-

te; Interdição do exercício de profissões ou actividades cujo exercício dependa de título público ou de autorização

ou homologação de autoridade pública; Privação do direito a subsídio ou benefício outorgado por entidades ou

serviços públicos; Privação do direito de participar em feiras ou mercados; Privação do direito de participar em

arrematações ou concursos públicos que tenham por objecto a empreitada ou a concessão de obras públicas, o

fornecimento de bens e serviços, a concessão de serviços públicos e a atribuição de licenças ou alvarás; Encerra-

mento de estabelecimento cujo funcionamento esteja sujeito a autorização ou licença de autoridade administra-

tiva; Suspensão de autorizações, licenças e alvarás.

100

so que são susceptíveis de impugnação judicial. Por isso, a contrario, consideramos que não

são susceptíveis de impugnação as medidas que, não colidindo com os direitos e interesses

das pessoas, se destinem a preparar a decisão final de arquivamento ou a aplicação da coi-

ma. O recurso aos tribunais judiciais deverá seguir a forma do recurso previsto no art. 59.º,

uma vez que não tem previsão própria. Contudo, a questão é saber se tal recurso de deci-

sões com eficácia externa tomadas no decurso do processo contra-ordenacional tem ou não

efeito suspensivo. Não tendo, que é o que nos parece, a pergunta que de imediato se impõe

é a de saber se será possível lançar mão de providências cautelares perante as mesmas? E,

enfim, não sendo possível solicitar a suspensão da eficácia desses actos, tal como seria se os

tribunais administrativos fossem competentes (por força do art. 268.º, n.º 4, da CRP e dos

arts. 2.º, 112.º e 128.º do CPTA), perguntamos como pode afinal o arguido actuar em sua

defesa?

E, já agora, quando tais medidas revistam a natureza de medida cautelar, designadamen-

te de apreensão de objectos que serviram ou estavam destinados a servir para a prática de

uma contra-ordenação, como pode o arguido reavê-los? Podem ser declarados perdidos?

Por regra, só são restituídos depois de a coima assumir a natureza de definitiva.

E perante a medida de suspensão imediata de exercício de actividades de estabelecimen-

to, no âmbito de um processo contra-ordenacional, como pode o sancionado defender-se?

Como sabemos, os tribunais comuns têm entendido que tais decisões têm natureza cautelar

e delas cabe recurso para os tribunais comuns. Veja-se o Acórdão da Relação do Porto de

20.02.2008, proc. n.º 7172213, que teve subjacente a decisão da ASAE, pela qual se proce-

deu à suspensão imediata do exercício da actividade de estabelecimento, no âmbito de um

processo contra-ordenacional. Pois bem, nestes casos, tem-se admitido o recurso. E como

pode o arguido defender-se perante a admoestação? Bem se percebe que, quando a reduzi-

da gravidade da infracção e da culpa do agente o justifique, pode a entidade administrativa

limitar-se a proferir a (pena) de admoestação por escrito, não podendo o facto ser apreciado

como contra-ordenação. Contudo, a pergunta que aqui se deixa é se o sancionado pode

recorrer dela.

Enfim, uma última pergunta: é ou não tempo do legislador português criar um procedi-

mento administrativo sancionatório comum a integrar o CPA e de repensar a repartição de

competências entre os tribunais comuns e os tribunais administrativos?

101

III. Posfácio

Dito isto, demonstrada a necessidade do tratamento a partir do direito administrativo,

transformando o tema enfant chérie dos administrativistas, quer dos que estudam o direito

substantivo, quer dos que estudam o processual, importa reconhecer que deve ser feita uma

teoria geral do poder sancionatório da Administração Pública a partir do Direito Administra-

tivo. Deve tratar-se o problema do universo do poder sancionatório, distinguindo actos san-

cionatórios versus actos desfavoráveis; actos sancionatórios por contra-ordenação versus

outros actos sancionatórios.

A necessidade de pensar o acervo de garantias a que o sancionado tem direito é premen-

te. Importa considerar as garantias fundamentais (ex vi art. 32.º, n.º 10, da CRP) de audiên-

cia prévia e plena defesa e perceber se alguns dos princípios de inspiração penalista que

foram sendo acolhidos entre nós, desde 1979, no regime contraordenacional – por se

entender que os arguidos ficariam por eles mais salvaguardados – não são agora contraria-

dos por soluções que se inserem, cada vez mais, em regimes especiais contra-ordenacionais

e em diplomas que disciplinam a aplicação de sanções pelas entidades administrativas inde-

pendentes32. Neste sentido, impõe-se refletir se estas normas que aparecem em número

crescente em legislação especial que prevê procedimentos sancionatórios contra-

ordenacionais sectoriais não afastam designadamente o direito à não auto-inculpação

(nemo tenetur se ipsum accusare) e os princípios da presunção de inocência, in dubio pro

reo, ne bis in idem e o princípio que proíbe a reformatio in pejus, anulando as garantias fun-

damentais de defesa e outros direitos fundamentais do sancionado.

No que respeita precisamente às garantias procedimentais, merece destaque o direito à

informação do sancionado, cujo acesso não deve ser totalmente proibido com fundamento

no segredo de justiça.

Finalmente, importa reflectir sobre as garantias impugnatórias, sobretudo em relação

àquelas que se efectivam junto de instâncias imparciais e independentes. Ora, especialmen-

te desde a reforma constitucional de 1997 e a reforma da lei processual administrativa de

2002/2003, os tribunais administrativos estão apetrechados com um instrumentarium

garantístico relativamente adequado àquilo que nos é imposto do ponto de vista constitu-

cional e europeu, pelo que a solução provisória de 1979 já não se justifica e menos se justifi-

32

Alertando para o problema, vd. MONTE, Mário Ferreira, Direito das Contra-ordenações. Prolegómenos,

AEDUM, cit., pp. 169 e segs.

102

ca a desconfiança perante o juiz administrativo33. Aliás, diz-nos a experiência que o juiz dos

tribunais judiciais conhece menos o direito substantivo subjacente ao ilícito e respeita

menos os espaços próprios de valoração administrativa, não se acanhando de, mesmo cor-

rendo o risco de se perder na tecnicidade e complexidade crescente do direito administrati-

vo, substituir a Administração na valoração de prova, na apreciação dos factos, na aplicação

do direito e especialmente na determinação da sanção.

(*) Por vontade expressa da autora, este artigo segue as regras anteriores ao novo acordo ortográfico.

33 Lamenta-se, pois, que a opção do legislador vá em sentido contrário ao raciocínio exposto no texto. Refe-

rimo-nos à recente alteração à LOFTJ e aditamento à Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro, introduzida pela Lei n.º

46/2011, de 24 de Junho, pela qual se criam os tribunais de competência especializada da concorrência, regula-

ção e supervisão. Nos termos do art. 89.º-B da Lei n.º 3/99, compete aos tribunais da concorrência, regulação e

supervisão conhecer das questões relativas a recurso, revisão e execução das decisões, despachos e demais

medidas em processo de contra-ordenação legalmente susceptíveis de impugnação da Autoridade da Concorrên-

cia (AdC), da Autoridade Nacional de Comunicações (ICP-ANACOM), do Banco de Portugal (BP), da Comissão do

Mercado de Valores Mobiliários (CMVM), da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), do Instituto

de Seguros de Portugal (ISP) e das demais entidades administrativas independentes com funções de regulação e

supervisão.

103

Bibliografia muito sucinta

AAVV, Direito Sancionatório das Autoridades Reguladoras, Coord. PALMA, Maria Fernanda,

DIAS, Augusto Silva Dias e MENDES, Paulo de Sousa, Coimbra, Coimbra Editora, 2009

AAVV, in REVISTA do CEJ, 2.º semestre de 2010, n.º 14 (dossiê temático: Direito Contra-ordenacional),

ALBUQUERQUE, Paulo Pinto de, Comentário do Regime Geral das Contra-ordenações, ed. Univ. Cató-

lica, 2011

ALARCÓN SOTOMAYOR, Lucía, El Procedimineto Administrativo Sancionador y los Derechos Funda-

mentales, Civitas, Madrid, 2007

ALMEIDA, António Duarte, “O ilícito de mera ordenação social na confluência de jurisdições: tolerável

ou desejável?”, in Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 71, Setembro/Outubro 2008

AMARAL, Diogo Freitas do/ALMEIDA, Mário Aroso de, Grandes Linhas da Reforma do Contencioso

Administrativo, Coimbra, 2002

AMARAL, Diogo Freitas do, “O Poder Sancionatório da Administração Pública”, in Estudos Comemora-

tivos dos 10 anos da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, Livraria Almedina,

Coimbra, 2010

ANDRADE, José Carlos Vieira de, A Justiça Administrativa (Lições), 11.ª ed., Almedina, Coimbra, 2011

ANDRADE, Manuel da Costa, “Contributo para o Conceito de Contra-Ordenação (A Experiência Ale-

mã)”, in Revista de Direito e Economia, Anos VI/VII, Coimbra, 1980/1981, pp. 81-121

AZEVEDO, Tiago Lopes de, Da subsidiariedade no direito das contra-ordenações: problemas, críticas

sugestões práticas, Coimbra Editora, Coimbra, 2011

CORREIA, Eduardo, “Direito Penal e Direito de Mera Ordenação Social”, in Boletim da Faculdade de

Direito da Universidade de Coimbra, Vol. XLIX, Coimbra, Universidade de Coimbra, 1973, pp.

257-281

CORREIA, José Manuel Sérvulo, Direito do Contencioso Administrativo, Lex edições, Lisboa, 2005

CORREIA, José Manuel Ribeiro Sérvulo, “Polícia”, in Dicionário Jurídico da

Administração Pública, Vol. VI, Lisboa, 1994, pp. 393-408

COSTA, José Francisco de Faria, “A importância da recorrência no pensamento jurídico. Um exemplo:

a distinção entre o ilícito penal e o ilícito de mera ordenação social”, in Revista de Direito e

Economia, ano IX (1983) (republicado em Direito Penal Económico e Europeu (textos doutri-

nários), vol I, Coimbra Editora, 1998)

DIAS, Jorge Figueiredo, “O movimento da descriminalização e o ilícito de mera ordenação social”, in

CEJ (ed), Jornadas de Direito Criminal: o novo Código Penal português e legislação comple-

mentar, vol.I, Lisboa, 1983 (republicado em Direito Penal Económico e Europeu (textos dou-

trinários), Vol. I, Coimbra Editora, 1998)

DIAS, Jorge Figueiredo, “Para uma dogmática do Direito Penal secundário”, in Revista de Legislação e

de Jurisprudência, ano 116 (1983-84) e ano 117 (1984-85) (republicado em Direito Penal Eco-

nómico e Europeu (textos doutrinários), vol I, Coimbra Editora, 1998)

104

DIAS, Jorge Figueiredo, “Do Direito Penal Administrativo ao Direito de Mera Ordenação Social: das

contravenções às contra-ordenações”, in Temas básicos da doutrina penal, Coimbra Editora,

2001

DIAS, José Rosendo, “Sanções Administrativas”, in Revista de Direito Público, ano V, nº 9, 1991.

DIAS, Augusto Silva, “Delicta in se” e “delicta mere prohibita” (tese de doutoramento não publicada),

Lisboa, 2003

DIAS, Augusto Silva/RAMOS, Vânia, O direito à não auto-inculpação (nemo tenetur se ipsum accusare)

no processo penal e contra-ordenacional português, Coimbra, Coimbra Editora, 2009

FARIA, Margarida Ermelinda Lima de Morais de, O sistema das sanções e os princípios do direito

administrativo sancionador, Dissertação de Mestrado, Pol. Universidade de Aveiro, 2007

GARCÍA DE ENTERRÍA, Eduardo, “El Problema Jurídico de las Sanciones Administrativas”, in Revista

Española de Derecho Administrativo, n.º 10, Madrid: Civitas, 1976, pp. 399-430

GARRIDO FALLA, Fernando, “Los Medios de Policía y la Teoria de las Sanciones Administrativas”, in

Revista de Administración Pública, n.º 28, Madrid, Enero-Abril de 1959

GOMES, Vítor, “As sanções administrativas na fronteira das jurisdições. Aspectos jurisprudenciais”, in

Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 71, Setembro/Outubro 2008

HUERGO LORA, Alejandro, Las Sanciones Administrativas, Iustrel, 2007

FONSECA, Isabel Celeste M., Processo Temporalmente Justo e Urgência, Coimbra Editora, Coimbra,

2009

MOUTINHO, José Lobo, Direito das Contra-ordenações, ed. Univ. Católica, 2008

LUMBRALES, Nuno, Sobre o conceito material de contra-ordenação, ed. Univ. Católica, Lisboa, 2006

MACHADO, Miguel, “Elementos para o estudo da legislação portuguesa sobre contra-ordenações”, in

Scientia Iuridica, 1986 (republicado em Direito Penal Económico e Europeu (textos doutriná-

rios), vol I, Coimbra Editora, 1998)

CAETANO, Marcello, Princípios Fundamentais do Direito Administrativo, 1.ª Reimpressão portuguesa,

Coimbra: Almedina, 1996, p. 307

MIRANDA, Jorge/MEDEIROS, Rui, Constituição Portuguesa anotada, Tomo I, 2.ª ed., Coimbra Editora,

Coimbra, 2010, anotação ao artigo 20.º

MONTE, Mário Ferreira, Direito das Contra-ordenações. Prolegómenos, AEDUM, 2011, Braga.

MOURA, Eugénia Maria de, O Ilícito Administrativo Autárquico, Dissertação de Mestrado, texto poli-

copiado, Universidade do Minho, 2010

NIETO, Alejandro, Derecho Administrativo Sancionador, 4.ª ed. Revista e ampliada, Madrid, reimp.

2011

OLIVEIRA, António Cândido de, O poder sancionatório da Administração Pública, texto policopiado

que serviu de base à aula leccionada ao Curso de Licenciatura em Direito, em 11 de Abril de

2011

PALMA, Maria Fernanda/OTERO, Paulo, “Revisão do regime legal do ilícito de mera ordenação social”,

in Revista da FDUL, vol. XXXVII, 1996

105

PINTO, Frederico de Lacerda da Costa, “O Ilícito de Mera Ordenação Social e a Erosão do Princípio da

Subsidiariedade da Intervenção Penal”, in Direito Penal Económico e Europeu – Textos Dou-

trinários, Volume I, Problemas Gerais, Instituto do Direito Penal Económico Europeu da

Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Coimbra Editora, 1998

PINTO, Frederico Costa, “As codificações sectoriais e o papel das contra-ordenações na organização

do Direito Penal secundário”, in Themis, ano 3 (2002), n.º 5

PRATES, Marcelo Madureira, Sanção Administrativa Geral: Anatomia e Autonomia, Livraria Almedina

PRATES, Marcelo Madureira, “A punição administrativa entre a sanção contra-ordenacional e a san-

ção administrativa”, in Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 68, 2008

REBOLLO PUIG, Manuel/IZQUIERDO CARRASCO, Manuel/ALARCÓN SOTOMAYOR, Lucía/BUENO ARMI-

JO, Antonio, “Panorama administrativo sancionador en España. Los derechos y las garantias

de los ciudadanos”, in Estudios Socio-Jurídico, Bogotá, Colombia, 7(1), 23-74, 2005

REBOLLO PUIG, Manuel, “Prólogo” a Lucía Alarcón Stotomayor, El Procedimineto Administrativo San-

cionador y los Derechos Fundamentales, Civitas, Madrid, 2007

SANTOS, Manuel Simas/SOUSA, Jorge Lopes, Contra-ordenações, Anotação ao Regime Geral, 6.ª ed.,

Áreas Editora, 2011

A Debilidade do Direito de Participação Política

João Sérgio Ribeiro

Introdução

O artigo que se inicia tem como propósito integrar o anuário publicista do Departamento

de Ciências Jurídicas Públicas da Escola de Direito da Universidade do Minho que, no corren-

te ano, tem como tema a Cidadania e Responsabilidade. No sentido de abordar uma questão

que se possa reconduzir a este grande tema, decidimos dissertar acerca da debilidade da

participação política que é um fenómeno muito constatável na atualidade e que, segundo

nos parece, aí se enquadra perfeitamente. Pois, na verdade, a cidadania está intimamente

conexionada com o conjunto de direitos e deveres a que um indivíduo está sujeito em rela-

ção à sociedade de que faz parte. Ora, a debilidade do exercício do direito de participação

traduz-se ao fim ao cabo numa fragilidade da cidadania, podendo essa situação, dependen-

do das causas que estiverem na sua origem, ser eventualmente imputável ao cidadão, tra-

duzindo-se, por conseguinte, na possível existência de uma responsabilidade por parte des-

te. Surge-nos, portanto, como óbvia a ligação entre a Cidadania e Responsabilidade e a

reflexão que faremos acerca da debilidade do direito de participação política.

Trataremos do tema em 3 momentos. Começaremos por delimitar o conceito de direito

de participação política e dar conta do modo como se encontra enquadrado na Constituição

da República Portuguesa (CRP). Num momento seguinte, referir-nos-emos àquelas que, no

nosso entender, são as evidências da debilidade da participação. Num momento final, pro-

nunciar-nos-emos sobre as principais razões para essa debilidade da participação, imputan-

do a responsabilidade não tanto aos cidadãos, mas sobretudo ao Estado.

1. O direito de participação política

1.1. Conceito

O conceito de participação política será considerado na sua aceção literal, ou seja, no

sentido semântico geral, normalmente usado pelas ciências sociais. Dessa forma, participa-

ção será simplesmente entendida como a integração de um indivíduo num grupo. Porém,

107

não se trata da integração num qualquer grupo, mas numa sociedade política – grupo no

qual existe a consciência da existência de interesses derivados comuns, não suscetíveis de

ser satisfeitos individualmente, que surge a partir do momento em que as instituições

sociais se diferenciam para reger as manifestações do poder de direção no âmbito desse

grupo1. A participação nesse universo diz-se política.

Os direitos de participação política em análise reportam-se, portanto, à integração ativa

do indivíduo numa sociedade política, onde este é chamado a relacionar-se com o poder

instituído, concentrado de forma socialmente estabilizada nas instituições. Dada a emergên-

cia do Estado como instituição por excelência2 de concentração do poder3 político, poder-se-

á dizer que a participação política, na atualidade, se traduz essencialmente na ação dos indi-

víduos nos processos decisórios do Estado.

O âmbito dos direitos de participação política é muito alargado, na medida em que, para

além de incluir os direitos políticos dos cidadãos, abarca igualmente os direitos políticos de

certos grupos ou entidades coletivas de interesses sectoriais. Na Constituição da República

Portuguesa encontram-se alguns exemplos4: o direito das comissões de trabalhadores de

participarem na elaboração da legislação do trabalho e dos planos económico-sociais que

contemplem o respetivo sector5; o direito das associações sindicais de participarem na ges-

tão das instituições de segurança social e outras organizações que visem satisfazer os inte-

resses dos trabalhadores6; o direito das organizações representativas dos trabalhadores, das

atividades económicas e das famílias, das regiões autónomas e autarquias locais participa-

rem na elaboração de grandes opções e dos planos de desenvolvimento económico e social

no âmbito do Conselho Económico e Social7; o direito dos trabalhadores rurais e dos agricul-

tores participarem na definição da política agrícola, através das suas organizações represen-

tativas8; o direito de participação dos interessados na gestão efetiva dos serviços da admi-

1 Cfr. NETO, D. Moreira, Direito da Participação Política, Renovar, Rio de Janeiro, 1992, pp. 18 e segs.

2 Cfr. NETO, D. Moreira, op. cit., nota 5, p. 5: “Durante milénios a justificação do Estado, ou, pelo menos, da

concentração do poder político, se fez pelo Direito Natural: a partir do iluminismo diversificaram-se as posições,

surgindo as teorias radicais. A chamada ‘teoria da força’, nascida com HOBBES, acabou se esgalhando em muitas

conceções que têm, em comum, dar ao Estado o primado sobre o Homem. ‘O homem em ponto grande’, como

disse PLATÃO”. 3 Em “sentido lato, o poder é uma relação na qual a vontade tem capacidade de produzir efeitos desejados.

Deste conceito pode derivar-se o de o poder político: uma relação social na qual a vontade tem capacidade de

produzir os efeitos desejados na condução da sociedade” in NETO, D. Moreira, op. cit., p. 55. 4 Cfr. MIRANDA, Jorge, “O quadro de direitos políticos na Constituição”, in Estudos sobre a Constituição, 1.º

Vol., Livraria Petrony, 1977, Lisboa, p. 180. 5

Art. 54.º, n.º 5, alínea d), da CRP. 6 Art. 56.º, n.º 2, alínea b), da CRP.

7 Art. 91.º, n.

os 1 e 2, da CRP.

8 Art. 98.º da CRP.

108

nistração pública, designadamente por intermédio de associações públicas, organizações de

moradores e outras formas de representação democrática9.

Apesar da extrema importância desses direitos de participação política dos grupos sociais

secundários10, o presente estudo limitar-se-á à abordagem dos direitos de participação polí-

tica dos cidadãos, que consideramos poderem ser reconduzidos ao direito genérico de parti-

cipação constante do art. 48.º da CRP.

1.2. Direito de participação política na constituição portuguesa atual

1.2.1. O artigo 48.º da Constituição da República Portuguesa

Entendemos que os direitos de participação política se reconduzem todos ao art. 48.º da

CRP11, na medida em que esta disposição funciona como um direito genérico de participação

política e, por isso, agregador de todos os demais direitos políticos. Podendo, por conseguin-

te, referirmo-nos aos direitos de participação política no âmbito de um direito cúpula que

decorre do referido art. 48.º. Será interessante recordar que este preceito teve como fonte

12 o art. 21.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem. Julgamos também que, pela

semelhança de formulação, o art. 21.º do Convénio Internacional Relativo aos Direitos Civis

e Políticos (PIDCP) terá por certo sido igualmente inspirador da disposição legal de que tra-

tamos.

O artigo considerado foi introduzido na ordem constitucional com a Constituição de

1976, tendo atualmente a redação que lhe foi dada pela revisão constitucional de 1982.

Inicialmente essa disposição tinha uma configuração diferente, englobando outros direitos

de participação política, para além dos que especificamente hoje incorpora. Digamos que

começou por conter direitos fundamentais inominados13, na medida em que na sua versão

inicial não tinha epígrafe. A partir de 1982, passou a reduzir-se a dois preceitos essenciais e a

contar com a epígrafe atual – participação na vida pública. É também a partir dessa altura

que os direitos neles contidos passaram a seguir o regime da maioria dos direitos fundamen-

9 Art. 268.º, n.º 1, da CRP.

10 Usando a terminologia de Diogo Moreira Neto. Cfr. NETO, D. Moreira, op. cit., p. 18

11 Art. 48.º

(Participação na vida pública)

1. Todos os cidadãos têm o direito de tomar parte na vida política e na direção dos assuntos públicos do país,

diretamente ou por intermédio de representantes eleitos.

2. Todos os cidadãos têm o direito de ser esclarecidos sobre atos do Estado e demais entidades públicas e de

ser informados pelo Governo e outras autoridades acerca da gestão dos assuntos públicos. 12

Cfr. MIRANDA, Jorge, “O quadro dos direitos políticos...”, op. cit., p. 178, nota 1. 13

Cfr. BACELAR GOUVEIA, J., Os Direitos Fundamentais Atípicos, Lisboa, 1995, pp. 122 e segs.

109

tais, ao ser enunciados com a atribuição de um nome14. Foi também com essa revisão que o

preceito ganhou especificidade. Em primeiro lugar pela epígrafe, em segundo lugar por ter

sido depurado de direitos de participação política mais detalhados, passando a limitar-se a

direitos de natureza genérica15.

O art. 48.º apresenta-se, por conseguinte, como uma norma residual face a todos os

outros direitos de participação política. Pretendemos com isso dizer que essa disposição

encerra a ideia genérica de participação política, sendo os outros direitos de participação

consagrados a nível constitucional, ou mesmo extraconstitucionalment16, igualmente direi-

tos de participação política, desde que suscetíveis de serem reconduzidos às ideias formula-

das de forma genérica nesse mesmo art. 48.º da CRP. Isto é, o preceito em foco encerra em

si o âmago da ideia de participação política, capturando o sentido que atravessa todos os

direitos políticos, servindo assim como denominador comum a todos eles17.

A formulação do art. 48.º é, com efeito, muito abrangente, de modo que será possível

considerar como formas de participação na vida política um número muito alargado de

direitos e institutos jurídicos dispersos pela Constituição e outros instrumentos normativos.

A título exemplificativo deixamos a seguinte referência a certos direitos e institutos, com

consagração constitucional, suscetíveis de serem reconduzidos ao direito genérico de parti-

cipação política plasmado no art. 48.º18: direito de sufrágio (arts. 49.º e 113.º da CRP); direi-

to de constituir ou participar em associações e partidos políticos (art. 51.º da CRP); direito

de reunião (art. 45.º da CRP); direito de acesso em condições de igualdade e liberdade às

funções públicas (art. da 50.º da CRP); direito de petição e ação popular (art. 52.º da CRP);

direito de requerer a providência do Habeas Corpus (art. 31.º, n.º 2); direito de queixa por

ações ou omissões dos poderes públicos ao Provedor de Justiça (art. 23.º da CRP); direito de

apresentação de candidaturas à presidência da República (art. 124.º, n.º 1, da CRP); direito

14

“Isso só não acontece nos casos em que o legislador constitucional apenas os enuncia sem mais, não intitu-

lando os respetivos preceitos por ter dúvidas acerca da sua natureza e não querer erroneamente vincular o

intérprete”. In BACELAR GOUVEIA, J., op. cit., p. 125; “Este trabalho de construção, que cabe à ciência jurídica

organizar, reflecte-se, por vezes, no próprio texto constitucional, que é redigido à partida ou alterado nas revi-

sões de forma a indicar expressamente e por extenso as diversas faculdades que constituem o direito, por vezes

autonomizando-as em termos de formar novos direitos que assim se fazem ‘derivar’ do direito originário”, in

VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 3.ª ed., Almedina, Coimbra,

2007, p. 174. 15

Aliás, mais consentâneos com a própria epígrafe. 16

Podendo esses direitos ter a natureza de direitos fundamentais não-enumerados, direitos fundamentais

em sentido material ou atípicos. Ver BACELAR GOUVEIA, J., op. cit., pp. 40 e segs. 17

Trata-se, por isso, de algo mais do que um princípio nomogenético ou fonte inspiradora, na medida em que

encerra em si mesmo normas. 18

Cfr. MIRANDA, Jorge, “O quadro...”, op. cit., nota 112.

110

de apresentação de candidaturas à assembleia de freguesia (art. 245.º da CRP)19; direito de

iniciativa de lei (art. 167.º, n.º 1); direito de participação nos plenários de cidadãos eleitores

que podem substituir as assembleias de freguesia nas freguesias de população diminuta (art.

245.º, n.º 2, da CRP); direito a tomar parte na administração da justiça (art. 207.º da CRP);

direito de participação em grupos de cidadãos eleitores a quem, nos termos estabelecidos

na lei, pode competir a iniciativa da lei e do referendo (art. 167.º da CRP); direito de consti-

tuir e fazer parte de organizações de moradores (art. 263.º da CRP); direito de participação

no referendo nacional (art. 115. º da CRP); direito de participação no referendo local (art.

240.º da CRP) e direito de participação no referendo regional (art. 232.º, n.º 2, da CRP).

1.2.2. O direito de participação política como um direito fundamental

Antes de falar do conceito de direitos fundamentais é necessário precisá-lo, dado que

podem ser concebidas várias dimensões. Para Vieira de Andrade, por exemplo, existem três

dimensões dos direitos fundamentais: (i) uma dimensão filosófica ou jusnaturalista, de acor-

do com a qual os direitos fundamentais são vistos como direitos de todos os homens inde-

pendentemente dos tempos e dos lugares; (ii) uma perspetiva estadual ou constitucional

que identifica os direitos fundamentais com os direitos dos homens enquanto cidadãos,

num determinado tempo e lugar, ou seja, num Estado concreto; (iii) e uma dimensão univer-

salista ou internacionalista que equipara os direitos fundamentais aos direitos de todos os

homens num certo tempo, em todos os lugares ou, pelo menos, em grandes regiões do

mundo20.

Apesar da pluralidade de significados e abrangência do conceito direitos fundamentais,

entendemo-lo numa perspetiva estadual ou constitucional, relegando a dimensão filosófica

internacionalista para a noção de direitos do Homem21.

Não obstante termos referido vários direitos de participação política não se justificará a

natureza de direito fundamental relativamente a cada um deles isoladamente, mas unica-

mente em relação ao direito geral de participação política de que são concretização, o qual

tem consagração no artigo 48.º da CRP. Utilizar-se-á para esse efeito o critério tríplice apre-

sentado por Vieira de Andrade que põe a tónica, segundo a terminologia do próprio autor,

no radical subjetivo, na função e na intenção específica – indícios da existência de um direito

fundamental.

19

Salvo a Assembleia da República. Cfr. art. 151.º, n.º 1, da CRP. 20

Cfr. VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais…, op. cit., pp. 15 e segs. 21

Cfr. VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais…, op. cit., p. 38, nota 63.

111

Nos direitos fundamentais, o radical subjetivo, enquanto constituído por posições jurídi-

cas subjetivas consideradas fundamentais e atribuídas a todos os indivíduos ou a categorias

abertas de indivíduos, torna-se preponderante na aplicação prática do conceito de direito

fundamental.

No que respeita à função, todos os preceitos relativos aos direitos fundamentais têm

como propósito a “protecção e a garantia de determinados bens jurídicos das pessoas ou de

certos conteúdos das suas posições ou relações na sociedade que sejam considerados

essenciais ou primários”22. Nestes termos, “os preceitos que não atribuam posições jurídicas

subjetivas só pertencem à matéria dos direitos fundamentais se contiverem normas que se

destinem diretamente ou por via principal a garantir essas posições jurídicas”23.

Finalmente a consagração de direitos fundamentais tem uma intenção específica que

consiste em explicitar uma ideia de Homem, ou seja, o princípio da dignidade humana

assente na autonomia ética da pessoa, enquanto ser livre e responsável24.

A título de síntese, podemos dizer que estamos na presença de um direito fundamental

quando o preceito considerado (i) consagra posições subjetivas individuais, (ii) se destina

diretamente a garantir bens jurídico-pessoais, e (iii) se refere à ideia de Homem e à sua dig-

nidade.

Aplicando este critério ao direito fundamental que nos ocupa – o direito de participação

política – vejamos se ele passa o teste.

(i) Em relação ao primeiro requisito, verifica-se que as manifestações do direito genérico

de participação política consagrado no art. 48.º da CRP conferem posições jurídicas indivi-

duais atribuídas a uma categoria aberta de indivíduos – os cidadãos.

(ii) No que se refere ao segundo requisito, pretende-se com o direito que consideramos a

proteção de uma posição na sociedade, considerada essencial ou primária. Tendo em conta

que a democracia é um valor essencial25 e que está na base da intervenção política (reco-

nhecida a todos os indivíduos), crê-se estar também verificado o segundo requisito necessá-

rio para que se esteja em presença de um direito fundamental.

(iii) Falta justificar em que medida o direito de participação política está ligado à dignida-

de da pessoa humana.

22

In VIEIRA DE ANDRADE, Os Direitos Fundamentais…, op. cit., p. 82. 23

Idem. 24

Idem. 25

A democracia está diretamente e indissoluvelmente ligada à liberdade.

112

De uma forma simplista poder-se-ia dizer que, sendo o direito de participação política a

base do sistema democrático26, regime garante fundamental dos direitos do Homem, a rela-

ção estaria justificada. Julgamos, no entanto, ser necessário fazer uma análise mais detalha-

da.

O direito de participação política é mais do que um direito de criação estadual. Trata-se

de uma liberdade fundamental do Homem em sociedade que preexiste às Constituições e

aos Estados. Este entendimento impõe-se, na medida em que se encontram hoje ultrapas-

sadas as doutrinas glorificadoras do Estado, com raízes no idealismo alemão, segundo o qual

o Estado teria um poder originário.

Hoje, o Estado é visto como uma instituição e não como uma produção cultural espontâ-

nea, como o clã, a tribo ou a nação27. Em consonância com esta visão, entende-se que o

poder do Estado resulta de um processo de concentração do poder, originariamente exis-

tente no Homem ou no grupo. Contudo, esse poder não se transferiu totalmente, ficando

uma reserva inerente à própria liberdade humana28, ou seja, para além do poder coletivo

integrado no Estado, subsiste um poder individual que é a expressão da liberdade humana e

que com ela se confunde29.

Face ao exposto e ao facto de a liberdade e autodeterminação serem expressões da dig-

nidade humana, entendemos estar igualmente verificado o terceiro requisito.

Conclui-se, da aplicação do critério tríplice de Vieira de Andrade ao direito genérico de

participação política, que o seu carácter de direito fundamental sai reforçado.

26 A democracia encontra-se de tal modo ligada à participação que normalmente o seu epíteto é função do

tipo ou nível de participação que nela ocorre ou se pretende que venha a ocorrer. São exemplo disso as noções

de democracia: representativa, direta, participativa e deliberativa. 27

Cfr. BURDEAU, George, O Estado, Publicações Europa América, 1970, p. 60. 28

O que se opõe ao contratualismo de Hobbes. Cfr. BURDEAU, George, A Democracia, Publicações Europa

América, 1975, pp. 9 e segs. 29

Cfr. NETO, D. Moreira, op. cit., p. 57: “Já JOHN LOCKE encontrava essa identificação ao afirmar que ‘poder,

vontade e liberdade constituem um todo coerente’, e, demonstrando dominar os conceitos de concentração e de

sinergia, propôs de forma pioneira, que sua projeção no contexto político deveria submeter-se a limitação e a

controle institucionais, reconhecendo, todavia o direito simétrico de resistência”.

113

2. Evidências da debilidade da participação

A debilidade da participação aflora não só no plano estritamente interno (se é que se

pode conceber um tal plano dada a interpenetração crescente deste como internacional),

mas também em grande medida, exacerbando as debilidades internas, no plano internacio-

nal.

Por uma questão sistemática, referir-nos-emos em primeiro lugar às evidências da debili-

dade da participação no plano interno, e num momento seguinte à forma como se apresen-

tam no plano internacional. Isso, sem prejuízo de a realidade dos factos não se compadecer

com uma divisão estrita dos dois planos.

2.1. Plano interno

É certo que em Portugal o direito de participação política tem vindo a ser aprofundado,

bastando para isso analisar o texto das várias constituições, desde a Constituição de 1822

até à Constituição atual, para evidenciar o facto de o elenco de direitos de participação polí-

tica ter vindo a ser aumentado30. Este aprofundamento não foi, obviamente, linear, tendo

havido avanços e recuos até à estabilização da tendência ascendente que hoje domina.

Para essa densificação contribui claramente o facto de, à luz da Constituição atual, o

direito de participação política, nas suas diversas expressões, beneficiar do regime de prote-

ção dos direito fundamentais31.

Denota-se, no entanto, que apesar do aumento dos direitos de participação política e

atenção crescente que é dada a uma democracia participativa, impera ainda o princípio da

representação política ligado de modo indissociável ao direito de sufrágio. Isso sem prejuízo

de esse modelo de democracia, que domina apesar de tudo a participação na vida políti-

30

Cfr. arts: 16.º e 34.º da Constituição, de 23 de Setembro de 1822; 145.º, § 13.º, e 63.º da Carta Constitucio-

nal, de 29 de Abril de 1826; 8.º da Constituição, de 4 de Abril de 1838; 74.º da Constituição, de 21 de Agosto de

1911; 8.º, §18.º, e 126.º da Constituição, de 11 de Abril de 1933, 48.º (versão inicial) da Constituição, de 2 de

Abril de 1976. Para aceder a estas Constituições ver MIRANDA, Jorge, As Constituições Portuguesas, Livraria

Petrony, Lisboa, 1976. 31

Entendemos que a participação política ganha importância sobretudo com a modernidade (em consonân-

cia com a polémica acerca da “liberdade dos antigos” e da “liberdade dos modernos” aflorada por Benjamin

Constant), a partir do momento em que se configura como um verdadeiro direito. Cfr. COLL, Ferran, Las Demo-

cracias, Editorial Ariel, Barcelona 1990, p. 75.

114

ca32/33, ter vindo a sofrer uma contestação crescente. Basta atentar nas elevadas taxas de

abstenção sempre que se realizam eleições.

Essa realidade justifica as tensões crescentes no sentido de aprofundar a participação e o

consequente surgimento de novos direitos, que segundo melhor opinião, por serem afins do

direito de sufrágio ou estarem enredados nalguma complexidade técnica nem sempre

dominada pelo comum cidadão, não têm resolvido o problema, dando por vezes origem a

uma participação direta informal, como a que ultimamente tem ocorrido com o apoio das

cada vez mais relevantes redes sociais que se constituem no ciberespaço.

As críticas que normalmente são apontadas ao modelo representativo traduzem-se nal-

gumas das ideias que passamos a expor.

Na realidade, o voto nas eleições não assegura grande intensidade de participação, dado

que a maior parte dos eleitores esgota a sua participação no momento da eleição, não tendo

mais envolvimento futuro no processo de decisão. Pois, em termos efetivos, participar pas-

sará apenas a ser possível para o representante eleito34. Curiosamente já Rousseau fazia

esta crítica aos governos representativos. Esta situação é agravada pelo facto de, normal-

mente, muitas das ações e normas emanadas pelos órgãos eleitos não terem sequer sido

consideradas durante a campanha eleitoral35.

Face às limitações da democracia representativa tem-se observado, como se referiu, uma

tendência no sentido de ultrapassar os seus esquemas clássicos, tal como se observa desde

logo através da profusão de direitos de participação na vida política que se têm vindo afir-

mar. Esta tendência diz respeito à intervenção dos cidadãos, individualmente ou através de

grupos, nas tomadas de decisão das instâncias do poder, ou nos próprios órgãos do poder,

32

“A moderna democracia, na maioria dos países ocidentais, assumiu, mais ou menos, o carácter de uma

democracia representativa de partidos, isto é, de uma democracia que se baseia nos partidos como unidades de

ação política. Sem intercessão dos mesmos, o povo, hoje, pura e simplesmente não estaria na situação de exer-

cer uma influência política sobre os actos do Estado e, desta maneira, intervir concretamente na esfera política.

Trata-se, nesta democracia representativa de partidos, na verdade, de uma forma de democracia que, na sua

estrutura fundamental, é diferente da tradicional democracia parlamentar representativo-liberal”, in LEIBHOLZ,

Gerhard, O pensamento democrático, Atlântida Editora, Coimbra, 1974, pp. 30-31. 33

Face ao domínio dos partidos políticos há quem tenha sugerido a evolução do modelo de democracia

representativa para um modelo de democracia plebiscitária. Ver in LEIBHOLZ, Gerhard, O pensamento democrá-

tico, op. cit., pp. 34 e segs. 34

Cfr. PARRY , G., “The idea of political participation”, in Participation in Politics, Manchester, 1972, p. 14. 35

O que aliás é perfeitamente normal na medida em que hoje em dia os deputados não sofrem por parte do

povo uma capitis diminutio, por influência decisiva de grupos de eleitores ou de outras organizações no que

respeita às suas tomadas de posição. “(...) um deputado, privado do seu poder de decisão, dependente da von-

tade de um mandante, seria degradado ao nível de um núncio e, por via disso, despojado do seu valor próprio e

do seu carácter representativo. Por esta razão o chamado 'mandato imperativo', independentemente da forma

em que for utilizado (eleitores ou partidos), contradiz as ideias do sistema representativo parlamentar-liberal”, in

LEIBHOLZ, Gerhard, O pensamento democrático, op. cit., pp. 12-13. Ver ainda VASCONCELOS, P. Bacelar, Teoria

do Controlo Jurídico do Poder Político, Edições Cosmos, Lisboa, p. 171.

115

explicando o facto de as manifestações de democracia participativa terem vindo a aumentar

ao longo das sucessivas revisões constitucionais. Destacamos a introdução do referendo e a

iniciativa popular, entre outros desenvolvimentos36. Aliás, o aprofundamento da democracia

participativa está prescrito no próprio texto constitucional (art. 2.º in fine), o que implica

que o adensar da participação política seja um processo dinâmico e não uma “categoria

abstracta, imutável uma vez atingida”37.

Todavia, sem prejuízo de as concretizações do direito de participação política terem vin-

do a ter uma afirmação ascendente38, contribuindo para isso, como já se disse, não só um

instigar nesse sentido por parte da própria Constituição, como, também, as aceleradas

transformações vividas quer a nível social quer a nível técnico39, os direitos de participação

ainda estão, e isso é inegável, demasiado ligados á democracia representativa.

2.2. Plano internacional

Tal como intuímos no início deste ponto, a vida política, ainda que considerada no domí-

nio de um determinado Estado, abrange igualmente as matérias internacionais, pelo que um

aprofundamento da participação que ignore a vertente internacional da vida política será

um contrassenso40.

36

“Relativamente à ideia de democracia participativa, com que a Constituição Portuguesa actual tempera a

democracia representativa, v.: de um lado, os arts. 2.º e 109.º, em que se prescreve, respectivamente, como um

dos objectivos da República Portuguesa o aprofundamento da democracia participativa e a participação directa

dos cidadãos na vida pública como condição e instrumento fundamental de consolidação do sistema democráti-

co; de outro, os arts. 9.º, alínea c), 56.º, n.º 2, alíneas a), b) e e), 60.º, n.º 3, 77.º, 98.º e 267.º, n.º 1, em que a

participação se apresenta como tarefa fundamental do Estado ou concretiza específicos direitos de participação

de determinados grupos ou categorias de cidadãos”, in NABAIS, Casalta, “O Princípio da Legalidade e os Actuais

Desafios da Tributação”, in Boletim da Faculdade de Direito, 2002, p. 35, nota 52. 37

Idem. 38

Na atualidade e em especial no que respeita à participação na função legislativa os meios de participação

ainda gravitam em torno da representação política. 39

Há contudo autores que já falam da afirmação futura de uma democracia deliberativa em que, como o

próprio nome indica, são os próprios cidadãos que participam na própria tomada de decisão (co-decisão). Entre

eles, Habermas. Cfr. HABERMAS, Jürgen, Raison et Légitimité, Paris, 1987; Cfr. KING, Cheryl Simrell; FELTEY,

Kathryn M.; SUSEL, Bridget O'Neill, “The Question of Participation: Toward Authentic Public Participation in

Public Administration”, in Public Administration Review, Vol. 58, n.º 4, Julho/Agosto 1998, p. 317. 40

“As to the second distinction between the ‘domestic and the ‘international’ realms, international relations

scholars tend to emphasise that the traditional division between domestic and foreign affairs is obsolete in an

age of globalisation and Europeanisation”, in BÖRZEL, T.; RISSE, T., “Who is Afraid of a European Federation?

How to Constitutionalise a Multi-Level Governance System”, Jean Monnet Working Paper, N.º 7/00, Symposium:

Responses to Joschka Fischer, Harvard Law School, Cambridge, 2000, p. 6 (http://www.jeanmonnetprogram.

org/papers/00/00f0101.html).

116

Com efeito, as comunidades nacionais deixaram de ser as únicas fontes das decisões polí-

ticas que exercem influência sobre a vida dos seus membros e as medidas implementadas

pelos governos nacionais não afetam unicamente os seus próprios cidadãos. Citemos alguns

exemplos elucidativos da crescente interdependência internacional: (i) a decisão de aumen-

tar as taxas de juro, com o objetivo de controlar a inflação ou estabilizar as taxas de câmbio,

frequentemente considerada uma decisão nacional, pode provocar alterações profundas em

outros países; (ii) o mesmo se diga da decisão de instalação de indústrias perigosas perto da

fronteira de outros países; (iii) flagrantes são ainda os casos das questões ambientais e das

telecomunicações que são hoje essencialmente assuntos de âmbito internacional (iv) para

não falar, reportando-nos agora ao caso específico português, da intervenção em curso do

Fundo Monetário Internacional, Comissão Europeia e Banco Central Europeu.

Vivemos num mundo caracterizado pela interconexão regional e global suscitando-se

interrogações várias acerca do processo de tomada de decisões a nível internacional41. Essa

problemática põe-se com especial acutilância a nível das decisões tomadas pelas organiza-

ções regionais ou supranacionais, como a União Europeia (UE), a Organização do Atlântico

Norte (NATO), o Fundo Monetário Internacional (FMI), a Organização Mundial do Comércio

(OMC)42, entre outras, na medida em que amiúde diminuem o espectro de decisões ao

alcance dos cidadãos nacionais de cada Estado, fundando recorrentemente a invocação do

défice democrático.

Verifica-se, portanto, que hoje a política doméstica e internacional estão intrincadas, o

que apesar de não ser um fenómeno novo, tem contornos e repercussões nunca anterior-

mente enfrentadas.

Consequentemente, a participação política não pode continuar a ignorar que a esfera

política nacional e a vida política internacional se encontram amalgamadas, sob pena de

truncar manifestações importantes da vida política de uma sociedade.

O entendimento que nos parece correto é, por conseguinte, o de considerar que a vida

política engloba também a dimensão internacional. Contudo, o aprofundamento da partici-

pação tem-se limitado às questões de ordem tendencialmente mais interna, não abrangen-

do as questões internacionais, em relação às quais, muitas vezes, nem sequer uma partici-

pação de tipo representativo é assegurada, sendo esta quase sempre muito fruste. Com

41

Cfr. Ali FARAZMAND, “Globalization and Public Administration”, in Public Administration Review, Vol. 59,

n.º 6, Novembro/ Dezembro 1999. 42

Dificilmente se encontrará um artigo ou obra que verse sobre a globalização que não se refira à Organiza-

ção Mundial do Comércio. Cfr. STIGLITZ, Joseph, Globalization and Its Discontents, W.W. Norton & Company,

Nova Iorque, 2002, p. 244.

117

efeito, essa perda de competência é visível pelo facto de os compromissos políticos assumi-

dos pelo governo à escala internacional serem apresentados ao Parlamento, na maior parte

das vezes, como factos consumados. Além disso, constata-se uma tendencial ausência de

ligações do parlamento nacional aos órgãos que tomam as decisões no plano internacional.

Isto porque a participação, quer nas estruturas formais (reuniões, comités, grupos de traba-

lho...), quer nas informais (encontros), está reservada ao executivo, sem que haja qualquer

participação por parte dos cidadãos, a esse nível. Este estado de coisas neutraliza, de certo

modo, alguns dos avanços alcançados no plano interno através do aprofundamento dos

direitos de participação política.

Verifica-se, por consequência, que um problema que já se apresenta sério no plano

interno, pois, tal como se sustentou, apesar de ter havido uma crescente densificação do

direito de participação política a participação por parte dos cidadãos apresenta debilidades,

no plano internacional esse problema exacerba-se43.

3. Razões para a debilidade de participação

3.1. A nível interno

No plano nacional já foram avançadas algumas razões para a debilidade da participação,

designadamente o facto de os novos direitos que têm surgido nesse âmbito estarem dema-

siado ligados ao direito de voto. Há, porém razões mais profundas que se podem considerar.

Desde logo, os vários direitos de participação estão imbuídos de um grande formalismo e

tecnicidade o que dificulta ao cidadão menos versado em questões legais, ou que tenha

dificuldade em obter apoio jurídico, o exercício desses direitos, implicando muitas vezes o

afastamento, ou a consideração de instrumentos alternativos como o já aludido recurso às

redes sociais.

Outro aspeto consideravelmente relevante, muitas vezes não devidamente aquilatado, é

o inflacionismo regulatório e o facto de após um período em que democracia significava a

responsabilidade do Estado perante os cidadãos, se passar agora para uma fase em que

crescentemente são cada vez mais os cidadãos que têm de prestar contas ao Estado pelos

seus comportamentos. Ora, esta fúria reguladora e as presumidas boas intenções do Estado,

ao proteger o cidadão de uma série de comportamentos que ainda há uns anos eram exclu-

43

Cfr. MINOGUE, Kenneth, The Servile Mind: How Democracy Erodes de Moral Life, Encounter Books, Lon-

dres, 2010, p. 122.

118

sivamente da esfera privada, condicionam o direito de participação, uma vez que os cida-

dãos estão demasiado ocupados a assegurar que a suas atuações e hábitos estão conformes

ao que o Estado deles exige44. É concebível, portanto, sustentar que o Estado se tem vindo a

apropriar de áreas da vida moral45, o que torna o cerco ao cidadão cada vez mais apertado.

Outra das razões invocáveis para a debilidade da participação é o insuficiente desenvol-

vimento do dever de participação política. Convém salientar que este problema não é exclu-

sivo do dever de participação política, afetando todos os deveres fundamentais que têm

sido descuidados pela doutrina e pela maior parte das constituições que não se referem a

eles ou o fazem de um modo muito incipiente46.

Centrando-nos, no entanto, exclusivamente no direito de participação política, podemos

dizer que normalmente só enquanto concretizado no direito de voto é que assume normal-

mente a dimensão de direito-dever, ou seja, um direito funcionalizado por ser pressuposto

da existência do próprio Estado democrático. Não obstante o caráter implícito de dever, não

existe no nosso país qualquer sanção para o seu não exercício, pelo que sai fragilizada essa

dimensão. Para além do mais, essa vertente de dever cívico esgota-se muitas vezes no direi-

to de voto e os direitos que lhes estão ligados de forma instrumental como, por exemplo, o

dever de recenseamento eleitoral e o dever de colaboração com a administração eleitoral,

não estando essa dimensão de dever imbuída nas restantes aceções do direito de participa-

ção política.

A circunstância de serem poucos os deveres fundamentais que se encontram consagra-

dos na Constituição e de mesmo nessas situações não serem diretamente aplicáveis, pres-

supondo uma intervenção do legislador47, torna estes deveres, incluindo o dever de partici-

pação política, especialmente débeis. Na verdade, os preceitos constitucionais que consa-

gram os deveres fundamentais ou os disciplinam “são preceitos dirigidos primordialmente

ao legislador ordinário a fim de este lhes dar conteúdo”48.

Esta fragilidade parece-nos, portanto, dever ser imputada em primeira linha ao Estado

não só pela desfasamento dos direitos existentes face ao perfil do cidadão comum, mas

também no que respeita aos direitos já existentes, por haver uma certo laxismo por parte do

legislador a quem incumbe verdadeiramente assegurar o lado de dever da participação polí-

tica.

44 Cfr. MINOGUE, Kenneth, The Servile Mind…, op. cit., pp. 2 e segs.

45 Cfr. MINOGUE, Kenneth, The Servile Mind…, op. cit., pp. 104 e segs.

46 Cfr. NABAIS, José Casalta, O Dever Fundamental de Pagar Impostos, Almedina, Coimbra, 1998, pp. 15 e

segs. 47

Cfr. NABAIS, José Casalta, O Dever Fundamental de Pagar Impostos, op. cit., pp. 113, 155 e 164. 48

In NABAIS, José Casalta, O Dever Fundamental de Pagar Impostos, op. cit., p. 149.

119

3.2. Plano internacional

Neste ponto daremos nota das razões, que no plano internacional, atestam a debilidade

da participação política. Faremos esse exercício advogando, num primeiro momento, que

assegurar um direito de participação política no próprio plano internacional é algo de impra-

ticável. De seguida, será sustentado que a proteção da participação na vida política interna-

cional passa pelo plano interno, não tendo até agora sido alcançado grande sucesso, o que

reforça ainda mais a ideia da debilidade desta.

a) Impraticabilidade de um direito de participação política no plano estritamente interna-

cional

Dada a ligação umbilical entre o direito de participação política e o modelo democrático,

a forma mais óbvia de o assegurar no contexto internacional seria transpor o modelo demo-

crático para esse plano49.

Essa transposição apresenta, contudo, uma série de limitações inerentes ao facto de o

plano de análise não ser o estadual, mas um espaço de interconexão nacional, regional e

local. Os problemas surgem não só no que respeita à delimitação da manifestação política

sobre a qual deve haver atuação (trata-se de algo distinto da ação juspolítica do Estado),

como essencialmente no que se refere à circunscrição da comunidade relevante para efeitos

de participação (não se trata da comunidade de um Estado).

“(...) de quem se justifica a participação, em decisões relativas, por exemplo, à

sida, à chuva ácida, ao uso de recursos renováveis, ou à gestão dos fluxos eco-

nómicos internacionais?”50

A resposta poderia ser: Aos cidadãos dos vários Estados.

Há, porém, limitações práticas difíceis de contornar relacionadas não só com (i) a frag-

mentação do poder na sociedade internacional, como com (ii) a debilidade do próprio Esta-

do.

(i) O facto de no plano internacional o poder se encontrar fragmentado, leva a sugerir

que as limitações da sociedade internacional atual, no que respeita à participação, não dife-

rem muito da sociedade medieval. Tal como se passava na Idade Média, também na socie-

dade internacional, pode apenas conceber-se uma participação política em termos fragmen-

49

As questões inerentes ao modelo democrático, como a forma adequada de cidadania, a natureza dos direi-

tos e deveres dos indivíduos e o alcance da participação e da representação continuarão a pôr-se igualmente no

plano internacional. 50

Cfr. HELD, David, La Democracia y la Orden Global, Ediciones Paidós Ibérica, Barcelona, 1997, pp. 39-40.

120

tados, sem que haja uma entidade supranacional que a proteja cabalmente. Com efeito,

para que exista um efetivo direito de participação reconhecido como fundamental e com

efetividade, é necessário um poder que o reconheça e o faça cumprir. Neste âmbito, pelo

facto de a sociedade internacional assentar em forças e grupos sobre os quais os cidadãos

não exercem mais do que um controlo mínimo, haverá escassa margem para uma participa-

ção, podendo aqueles apenas participar enquanto elementos dos principais atores da socie-

dade internacional (os novos grémios).

O excerto que a seguir se transcreve é disso sugestivo:

“Na cristandade ocidental da Idade Média (...) nenhum governante ou Estado

era soberano no sentido de ser a instância suprema dentro de um território

determinado; cada governante partilhava a sua autoridade com os vassalos

abaixo dele, e com o papa e (na Alemanha e Itália) o sacro imperador romano

por cima (...) Se os Estados modernos devem partilhar a autoridade sobre os

cidadãos, e a capacidade para dispor da sua lealdade, com as autoridades regio-

nais e mundiais por um lado, e com as autoridades sub-estatais e sub-nacionais

por outro, o conceito de soberania deixaria de ser aplicável e, então, poder-se-ia

falar da emergência de uma forma neomedieval de ordem política universal”.

David Held51

(ii) Alternativamente, poder-se-á defender que o próprio Estado, do qual os indivíduos

são nacionais, poderá assegurar a proteção do direito de participação dos seus indivíduos no

plano internacional. Contudo, esta possibilidade, ainda que estejamos perante uma super-

potência, tem grandes limitações.

A ordem internacional atual reúne características gerais que podem reduzir o número de

instrumentos suscetíveis de serem usados pelos governos e seus cidadãos, designadamente

densas redes de relações económicas regionais e globais que escapam ao controlo de qual-

quer Estado em particular (incluindo os Estados dominantes); extensas redes de relações e

comunicações eletrónicas instantâneas transnacionais sobre as quais os Estados exercem

escassa influência; uma vasta configuração de regimes e organizações internacionais que

podem limitar a margem de ação dos Estados mais poderosos; e o desenvolvimento de uma

ordem militar global, e a proliferação de armas concebidas para uma guerra total.

51

In HELD, David, La Democracia…, op. cit., p. 171.

121

O Estado, anteriormente encarado como a principal fonte de autoridade no sistema

internacional, é visto agora como vulnerável. Para uma maior fragilidade contribui o facto de

ter de rivalizar com outros Estados; com grupos de pressão; com organizações não gover-

namentais e com grupos económicos, que muitas vezes têm um poder superior ao seu.

Parece, por conseguinte, de alguma ingenuidade pretender que cada Estado assegure inter-

nacionalmente a participação dos seus cidadãos, quando, por vezes, é incapaz, ele mesmo,

de participar de forma efetiva nesse nível, face às limitações que se lhe impõem.

O que fazer, então, para que vingue uma proteção do direito de participação política no

plano internacional?

A solução poderia passar pelo estabelecimento de uma estrutura comum de ação política

que implicasse a colaboração permanente dos principais atores da ordem internacional (os

Estados, as organizações internacionais e os grupos internacionais) e o respeito por normas

constitucionais similares. Assim, através de uma estrutura supranacional, seria possível pre-

parar um futuro democrático e fazer face aos perigos de um novo medievalismo. Esta possi-

bilidade, já vislumbrada por Kant52, é denominada por David Held como modelo cosmopoli-

ta53 de autonomia democrática, enquanto sistema de governo que se organiza a partir das

diferentes condições e interconexões dos diferentes povos e nações que se adaptam a

elas54.

Se de facto fosse criada uma entidade supranacional, ou seja, se se afirmasse um consti-

tucionalismo global, poderia ser viável a proteção do direito de participação política a nível

internacional. Parece-nos, no entanto, que estamos longe dessa possibilidade e que no pla-

52

Kant via a cidadania mundial como horizonte ideal. Cfr. SOROMENHO-MARQUES, Viriato, A Era da Cidada-

nia, Publicações Europa-América, Mem Martins, 1996, p. 153. 53

David Held apresenta objetivos a atingir no curto e longo prazo no sentido de implementar o modelo cos-

mopolita de democracia. No curto prazo: “(1) Reforma do Conselho de Segurança da ONU (para atribuir aos

países em desenvolvimento uma voz significativa e capacidade de decisão efectiva); (2) Criação de uma segunda

câmara da ONU (seguindo uma convenção constitucional internacional); (3) Maior regionalização política (UE e

outras experiências) e implementação de um referendo transnacional; (4) Comparência obrigatória perante o

Tribunal Internacional. Criação de um Tribunal Internacional de Direitos Humanos; (5) Fundação de um novo

organismo de coordenação económica, no plano regional e global; (6) Criação de uma força militar internacional,

responsável e efectiva”. No longo prazo: “(1) Consolidação do direito cosmopolita democrático: nova Carta de

Direitos e Obrigações consagrada nos diferentes domínios de poder político, social e económico; (2) Parlamento

global ligado a todas as regiões, nações e localidades. Criação de um Tribunal de Questões Fronteiriças; (3) Sepa-

ração dos interesses políticos e económicos; financiamentos públicos das assembleias deliberativas e dos proces-

sos eleitorais; (4) Sistema legal global interligado, que incorpora elementos do direito penal e civil. Criação de um

Tribunal Penal Internacional; (5) Responsabilidade das instituições económicas internacionais perante os parla-

mentos e as assembleias regionais e globais; (6) Transferência permanente da capacidade coercitiva do Estado

para as instituições regionais e globais, com o objectivo de atingir a desmilitarização e erradicar a guerra”, in

HELD, David, La Democracia…, op. cit., pp. 171 e segs. A formulação destes objetivos foi feita em 1997 e como se

pode constatar, alguns deles estão em vias de ser, ou já foram mesmo, realizados. 54

Cfr. HELD, David, La Democracia…, op. cit., p. 174.

122

no estritamente internacional temos, por enquanto, de nos limitar a passos mais tímidos

como, por exemplo, integrar os Direitos do Homem no texto do direito das organizações

internacionais (na linha do que se fez na União Europeia), entre outras medidas tendentes à

democratização da vida internacional55.

b) Direito de participação na vida política internacional passa necessariamente pelo pla-

no interno

Apesar de a ideia de um constitucionalismo global ser aliciante e através dela poderem

eventualmente ser assegurados direitos de participação política aos indivíduos (cidadania

supranacional), encontra-se ainda muito longe da realidade, pelo que não a consideramos

como uma possibilidade efetiva no que respeita à proteção do direito de participação políti-

ca.

Além disso, ainda que enfraquecido, o Estado continuará a ser o principal ator nas rela-

ções internacionais e no direito internacional, afirmando-se como principal portador dos

direitos e deveres definidos pelo direito internacional. Continua a ser também o único agen-

te legal capaz de empregar a força e a ser fonte de ordem e das restrições do sistema inter-

nacional56. Concordamos com Gomes Canotilho na afirmação de que o paradigma ainda é o

constitucionalismo nacional, que assenta nas seguintes premissas:

“(1) soberania de cada Estado, conducente, no plano externo, a um sistema de

relações horizontais interestaduais e, no plano interno, à afirmação de um poder

ou supremacia dentro de determinado território e concretamente traduzido no

exercício das competências soberanas (legislação, jurisdição, administração); (2)

particular centralidade jurídica e política da constituição interna como carta de

soberania e de independência de cada Estado perante os outros Estados; (3)

aplicação do direito internacional nos termos definidos pela constituição interna,

recusando-se, em muitos Estados, a aplicação das normas de direito internacio-

nal na ordem interna sem a sua 'conversão' ou adaptação pelas leis do Estado;

(4) consideração das 'populações' ou 'povos' permanentemente residentes num

55

Cfr. PETTERSMANN, Ernst-Ulrich, “Time for Integrating Human Rights into the Law of Worldwide Organiza-

tions”, in Lessons from European Integration Law for Global Integration Law, Harvard working papers, 2001;

SCHMIDT, Vivien, “Democracy and Discourse in an Integrating Europe and a Globalising World”, in European Law

Journal, Vol. 6, n.º 3, Blackwell Publishers, setembro 2000. 56

Cfr. VASCONCELOS, P. Bacelar, Teoria do Controlo…, op. cit., p. 170.

123

território como 'povo do Estado' que só nele, através dele e com submissão a ele

poderão adquirir a 'carta da nacionalidade'” 57.

Tendo em conta a circunstância de termos entendido não ser possível uma proteção efi-

caz do direito de participação política no contexto internacional, torna-se ainda mais impor-

tante assegurar a sua proteção no domínio interno, dado ser o único forum onde se pode

assegurar a participação dos cidadãos na vida política internacional de forma efetiva.

Torna-se imprescindível que, internamente, a nível da própria constituição, se promovam

alterações no sentido de alterar a situação atual.

Tendo em conta que, sem motivação para participar, as estruturas que se possam criar

serão meramente decorativas, é necessário cuidar, em primeiro lugar, daquela motivação

(entendida como a capacidade que as pessoas creem ter para influir no governo e o seu

interesse nos assuntos públicos). É pacífico que a motivação para participar está relacionada

com a extensão da educação58. A divisão entre pessoas ativas e passivas no mundo da políti-

ca é em parte explicada pela falta de oportunidades adequadas para que todos os grupos de

cidadãos desenvolvam igualmente os seus talentos e confiança59. Nesse sentido, normas

como o art. 73.º da CRP60 devem ser mais do que programáticas, devendo configurar verda-

deiros direitos subjetivos.

Artigos como o 48.º da CRP, apesar de no nosso entender abrangerem, relativamente aos

assuntos públicos do país, quer matérias essencialmente internas quer de ordem internacio-

nal, deveriam ver alterada a sua letra de modo a fazer menção aos assuntos de ordem inter-

nacional que, talvez por serem considerados apenas de forma implícita, têm merecido até

então uma atenção muito deficiente.

57

In CANOTILHO, J.J. Gomes, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª ed., Almedina, Coimbra,

2003, op. cit., p. 1370, “(...) este modelo ainda permanece como paradigma básico da agenda das relações inter-

nacionais, mesmo que, noutros sectores, se avance decididamente na globalização e transnacionalização (ex.:

relações económicas)”. In CANOTILHO, J.J. Gomes, Direito Constitucional…, op. cit., p. 1371. 58

O desenvolvimento de talentos e habilidades depende da educação formal e informal que o ser humano

recebe ao longo da sua vida – um elemento indispensável das condições referidas para chegar a ser um membro

ativo da sociedade política. Os direitos em questão incluem o cuidado infantil e a educação universais, ambos

necessários para que o processo de aprendizagem seja acessível a todos os cidadãos independentemente da

classe, da raça do sexo e da idade. 59

Cfr. HELD, David, La Democracia…, op. cit., p. 219; FINER, S.E., “Groups and political participation”, in Par-

ticipation in Politics, Manchester, 1972 p. 77; KING, Cheryl Simrell; FELTEY, Kathryn M.; SUSEL, Bridget O'Neill,

“The Question of Participation…”, op. cit., p. 322. 60

“O Estado promove a democratização da educação e as demais condições para que a educação, realizada

através da escola e de outros meios formativos contribua... para o progresso social e para a participação demo-

crática na vida coletiva”.

124

Considerando que o elenco de direitos fundamentais não é taxativo a nível constitucio-

nal, e que se traduz numa enumeração aberta (“sempre pronta a ser preenchida ou comple-

tada através de novas faculdades para lá daquelas que se encontrem definidas ou especifi-

cadas em cada momento”61), julgamos que deveriam ser criados novos direitos de participa-

ção, essencialmente dirigidos às matérias internacionais, de forma a reforçar os direitos

políticos dos cidadãos.

Eventualmente poder-se-ia fazer algo semelhante ao que se passa na Dinamarca, local

onde se assegura uma participação mínima a nível de matérias internacionais, através da

intervenção do Parlamento, o que nos parece ser uma ótima prática. A introdução deste

mecanismo no nosso sistema permitiria obviar, desde já, aos problemas de representação a

nível internacional, assegurando, pelo menos naquele campo, uma democracia de tipo

representativo, enquanto não se afirmam mecanismos de democracia participativa.

Esse mecanismo consta da Secção 19 (3) da Constituição Dinamarquesa62 e implica que,

sempre que o governo dinamarquês desenvolva negociações no âmbito das organizações

internacionais, o faça no quadro de um mandato vinculativo ou imperativo conferido pela

comissão parlamentar nomeada para o acompanhamento dessas negociações. Consequen-

temente, o governo não pode negociar fora dos limites desse mandato, assegurando um

envolvimento e um controlo por parte do órgão representativo por excelência – o parlamen-

to. Para evitar que o mecanismo se torne demasiado limitador, o mandato é normalmente

conferido em termos genéricos, de maneira a permitir alguma liberdade de atuação ao

governo.

Verifica-se, portanto, que, apesar de a solução da proteção do direito de participação na

vida política internacional passar pelo domínio interno, o Estado tem falhado na prossecu-

ção desse objetivo.

Na mesma linha do que dissemos quando nos referimos ao plano estritamente interno,

parece-nos que as razões desta debilidade, são também aqui, de forma mais ostensiva do

que no plano interno, imputáveis mais ao Estado do que aos cidadãos.

61

In MIRANDA, Jorge, Manual de Direito Constitucional, Tomo IV, 3.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2000, p.

162. 62

“The Parliament shall appoint from among its Members a Foreign Affairs Committee, which the Govern-

ment shall consult prior to the making of any decision of major importance to foreign policy. Rules applying to

the Foreign affairs Committee shall be laid down by Statute”, in http://www.servat.unibe.ch/icl/da00000_.html.

125

Conclusões

Entendemos que todos os direitos de participação política na Constituição portuguesa se

reconduzem ao art. 48.º da CRP que funciona como um direito genérico de participação

política e por isso agregador de todos os demais direitos políticos.

Esse direito genérico assume a natureza de direito fundamental, tal como resulta da apli-

cação do critério tríplice de Vieira de Andrade, que assenta na consideração do radical sub-

jetivo, na função e na intenção específica, de um determinado direito.

A nível interno, apesar do aumento dos direitos de participação política e atenção cres-

cente que é dada a uma democracia participativa, impera ainda o princípio da representação

política ligado de modo indissociável ao direito de sufrágio.

A fragilidade da participação no plano interno deve ser imputada em primeira linha ao

Estado, não só pelo desfasamento dos direitos existentes relativamente ao perfil do cidadão

comum, mas também por, no que respeita aos direitos já existentes, haver uma certo laxis-

mo por parte do legislador que tem falhado em desenvolver o lado de dever desses direitos

de participação.

Nas matérias de natureza essencialmente internacional, o direito de participação política

mostra-se praticamente inexistente, não chegando sequer ao nível de uma participação

representativa. Com efeito, nesse contexto internacional, o Parlamento, órgão representati-

vo por excelência, é esbulhado da sua competência normativa.

Tendo em conta que assegurar um direito de participação política no próprio plano inter-

nacional é algo de impraticável, a proteção da participação na vida política internacional

deve passar necessariamente pelo plano interno. Todavia, não foi até agora alcançado gran-

de sucesso.

Também no domínio internacional, e de uma forma mais ostensiva, as razões da debili-

dade de participação política são imputáveis mais aos Estados do que aos cidadãos.

Breves reflexões sobre responsabilidade colectiva e

finanças públicas

Joaquim Freitas da Rocha

1. Interesse público e gestão de dinheiros públicos

Embora as retóricas dominantes possam apontar nesse sentido, o Estado constitucional

— entendido em sentido amplo e transnacional — não se cumpre apenas com a satisfação

das exigências inerentes ao Estado de Direito e à Democracia, mas reclama igualmente, e

em acentuada proporção, o cumprimento das demandas do Estado Social. Como se sabe,

nos quadros deste último, avultam uma série de imposições constitucionais que reflectem

necessidades de natureza colectiva (como a saúde, a educação e a protecção social), cujo

cumprimento não pode deixar de ser visto como um imperativo jurídico inafastável, sob

pena de se criar um modelo de existência meramente formal e até apelativo, mas carente

de conteúdo. Na verdade, viver numa estrutura societária na qual as leis são claras e deter-

minadas, a Administração observa a Lei, as decisões dos tribunais são respeitadas e todos

podem votar livremente, não significa muito se não existir concomitantemente cuidados de

saúde básicos, educação e formação de qualidade ou protecção e ajuda no desemprego e na

velhice. O cumprimento dessas imposições e a satisfação dessas necessidades, porém,

podem revelar-se extremamente problemáticos, contribuindo para tal a inevitável escassez

de recursos públicos e a necessidade de a gestão destes últimos ser feita com respeito e

observância das regras da legalidade, eficiência e transparência, ou, numa expressão sintéti-

ca, ser feita de acordo com o imperativo do Interesse Público1.

Aqui radica a conexão entre Finanças Públicas e Responsabilidade.

A utilização dos dinheiros públicos só pode ser efectuada com observância das finalida-

des para que os mesmos são pensados e obtidos — em rigor, e na maior parte das vezes,

arrecadados sob a forma de tributos ou outras formas onerosas — e com base num quadro

1 Para outros desenvolvimentos a respeito deste princípio da prossecução do Interesse Público em matéria

de Direito Financeiro Público, v. o nosso “Sustentabilidade e finanças públicas responsáveis. Urgência de um

Direito Financeiro equigeracional”, in Estudos em Homenagem ao Doutor José Joaquim Gomes Canotilho, Coim-

bra, em fase de publicação.

127

disciplinador preciso, embora com componentes de flexibilidade e adaptação. O incumpri-

mento desse quadro deverá obrigar o respectivo infractor a prestar contas e, sendo caso

disso, a incorrer em consequências gravosas e desfavoráveis, sob a forma de assunção de

responsabilidade aos mais diversos níveis: disciplinar (sujeitando-se a sanções hierárquicas),

civil (indemnizando eventuais lesados), criminal (sofrendo multas, penas de prisão ou outras

penas) e financeira (por exemplo, por via da reposição dos dinheiros em causa).

Todavia, não apenas dos pontos de vista individual e jurídico, estes problemas devem ser

analisados, pois descobrem-se com facilidade dimensões supra-individuais e éticas que não

podem ser desconsideradas ao nível da escolha ineficiente (ou deficiente) de bens públicos.

Basta pensar, por exemplo, na culpa que toda uma colectividade pode ter na degradação

dos recursos naturais, na deterioração dos cuidados de saúde e de educação, na delapidação

do património cultural e monumental, na corrosão do sistema de justiça ou na extenuação

do sistema democrático para se constatar que a responsabilidade envolve igualmente um

enfoque colectivo e um outro de natureza ética, transportando, para as gerações futuras,

encargos não desprezíveis.

Antes de procurar demonstrar se é possível falar numa responsabilidade colectiva em

matéria de finanças públicas numa perspectiva intergeracional — propósito nuclear do pre-

sente escrito —, será conveniente assentar algumas premissas de análise que perpassarão

todo este trabalho e que subjazerão a todas as considerações.

Em primeiro lugar, torna-se indispensável localizar o tema no quadro de uma adequada

teoria das finanças públicas – trata-se aqui de compreender que, mais do que opções locali-

zadas tomadas de acordo com critérios estritamente políticos, o que está em causa é a pro-

dução, criação e manutenção de bens públicos e semipúblicos com vista à satisfação de

necessidades financeiras e colectivas. Esses bens — como hospitais, centros de saúde,

estradas, universidades, escolas, prestações sociais, etc. —, evidentemente, não são produ-

zidos a custo zero, nem sequer a baixo custo, mas são financiados por via de receitas públi-

cas, quadro em que os impostos, as taxas, os empréstimos e as transferências públicas

ganham relevo. Neste contexto, importa desde agora salientar que construir o bem em

questão não é suficiente para satisfazer a(s) necessidade(s), sendo igualmente indispensável

projectar a sua manutenção e conservação em termos de utilização futura, bastando pensar,

por exemplo, na longevidade de equipamentos como um hospital ou uma linha de caminho

de ferro para se aquilatar da importância desta premissa.

Em segundo lugar, importa referir que a meta lucrativa dificilmente poderá ser estabele-

cida como o farol orientador da produção deste tipo de bens. Isto porque as componentes

128

sociais e jurídicas (constitucionais) que atravessam o fornecimento de bens públicos e semi-

públicos na maior parte das vezes não se compaginam com a viabilidade económica da sua

produção, pois estamos a falar de equipamentos e prestações cuja oferta e cuja procura não

se regem pelos tradicionais (?) critérios de mercado, em termos de se poder fixar um preço

em função do custo de produção ou das variações daquelas. Basta pensar que se os custos

de um serviço de saúde fossem equivalentes aos custos inerentes aos equipamentos adqui-

ridos por um hospital, muitos poucos utentes os poderiam pagar. Por outro lado, muitos

desses bens, devem ser disponibilizados gratuitamente — embora em termos económicos,

nenhum o seja, pois em última análise serão financiados por via dos impostos de todos —,

ou a um custo muito reduzido, pois visam satisfazer necessidades básicas e essenciais à dig-

nidade da pessoa humana, como acontece com a garantia de subsistência, a saúde ou a

educação. Em todo o caso, tendencial gratuitidade não significa absoluta gratuitidade, pois

os impostos, empréstimos e transferências financiam primacialmente a produção inicial dos

bens e não a sua manutenção, sendo razoável exigir dos utentes respectivos uma quota de

esforço na repartição dos custos, nomeadamente sob a forma de taxas de utilização.

Em terceiro lugar, cumpre enfatizar que a maior parte dos sistemas financeiros públicos

actuais atravessa um preocupante ciclo de crise e que a melhor forma de o combater e

superar passa pela diminuição da despesa pública, e não tanto pelo aumento das receitas,

em face do nível de saturação fiscal e de endividamento da maioria dos Estados. Aqui, com

Vito Tanzi entendemos que esta redução assenta essencialmente em três pilares, a saber: (i)

a adequada regulação do mercado e da concorrência, permitindo que certos bens possam

ser deslocalizados para os privados em termos de assegurar o seu fornecimento equitativo;

(ii) a redução da gratuitidade e o aumento da onerosidade, introduzindo taxas com o objec-

tivo de limitar a procura desnecessária de serviços públicos; e (iii) o aproveitamento dos

benefícios da globalização, concentrando a produção naqueles bens que com proveito

podem ser produzidos a nível interno, e importando aqueloutros que a baixo custo são pro-

duzidos noutros quadrantes2.

Em quarto lugar, finalmente, não pode ser perdido de vista que não são apenas os argu-

mentos financeiros stricto sensu que devem ser considerados no momento da ponderação e

da tomada de decisão em matéria de finanças públicas, havendo que atender igualmente a

outro tipo de juízos. Por exemplo, no momento de se considerar a redução da despesa

pública por via da diminuição do peso dos funcionários públicos, não podem ser deixadas de

2 V. TANZI, Vito, “Role of Government and public spending ina changing world”, in Rivista di Diritto

Finanziario e Scienza delle Finanze, ano LXIV, 3, 2005, p. 338.

129

parte as limitações que decorrem dos estatutos de cada funcionário, bem assim como as

diversas alternativas que podem concorrer no mesmo sentido: despedimento, valorização

dos trabalhadores através do estabelecimento de justos prémios de desempenho ou de

remunerações em função da produtividade, combate ao absentismo, etc. Em suma: decisão

financeira não é sinónimo de decisão financista.

Pois bem. Tudo o que foi dito tem como propósito enquadrar e subscrever a ideia de que

a gestão dos dinheiros públicos deve ser feita de um modo responsável3.

Procuremos agora ver de que modo essa responsabilidade pode emergir.

2. Teoria da deliberação prática e ética da responsabilidade

O correcto enquadramento da ideia de responsabilidade não pode deixar de ser efectua-

do sem o ancoramento do discurso nos domínios da escolha da direcção da conduta humana

– por outras palavras: no campo da deliberação prática. Com efeito, apenas será correcto

dizer que alguém é responsável por algo se esse alguém, em algum momento, puder esco-

lher um caminho a seguir de entre vários, o que equivale a defender que, de um ponto de

vista teórico, a teoria da responsabilidade se enquadra no domínio mais vasto da teoria da

ordenação da vontade. Nesta moldura lógica, fala-se em pautas da acção humana, i.é,

padrões de comportamento que servem de parâmetro aferidor da validade das condutas,

permitindo afirmar se estas são boas ou más, valiosas ou desvaliosas, num contexto de esco-

lhas e selecções, sacrifícios e renúncias.

Tendo presentes estas coordenadas, pode avançar-se com uma proposta de noção de

responsabilidade (meramente operativa para estes propósitos): nexo entre determinado

actor e o resultado das suas acções. Neste sentido, um sujeito actuante será responsável se

puder ser chamado a contas pelos seus próprios actos, o que pressupõe, por um lado, que

ele se determinou a si mesmo a actuar e, por outro lado, que ele poderia ter optado e

actuado de outro modo.

Intui-se claramente que a noção de responsabilidade, na maior parte das situações, com-

porta duas dimensões distintas mas sobrepostas e comunicáveis entre si: uma, íntima e psi-

cológica, que se legitima por si mesma e a que chamaremos dimensão moral; outra, externa

e jurídica, que já necessita de um processo de legitimação exterior ao sujeito e resultante da

3 V., para uma visão completa, “Finances publiques et responsabilité: l´autre reforme”, in Revue Française de

Finances Publiques, 92, Novembro 2005.

130

comunidade onde ele se insere4. Por outro lado, do ponto de vista subjectivo, é possível

falar-se numa responsabilidade individual por oposição a uma responsabilidade colectiva,

consoante o juízo de valoração dos actos tenha por referência e destinatário um sujeito

determinado e individualizado ou uma pluralidade de agentes, uma colectividade ou uma

comunidade, com os seus membros indistintamente vistos5. Da consideração destas duas

dicotomias classificatórias, é possível retirar um conjunto de quatro possíveis opções abs-

tractas de imputação de resultados da acção (tetracotomia da responsabilidade):

i) responsabilidade moral individual;

ii) responsabilidade jurídica individual;

iii) responsabilidade moral colectiva;

iv) responsabilidade jurídica colectiva.

Importa desde já assumir sem hesitações que se rejeita qualquer espécie de individualis-

mo extremo, colocando a centralidade exclusivamente no indivíduo e na sua acção, glorifi-

cando o eu e secundarizando os outros, advogando a amplificação dos direitos e das opções,

e reduzindo o espaço dos deveres e da responsabilidade. Porque se entende que tal postura

coloca em crise qualquer tentativa de solidariedade social6 — que defendemos —, enten-

demos que será preferível uma postura personalista, que coloque a centralidade na pessoa

(e não no indivíduo) e nas suas diferentes dimensões, individual e colectiva, e que possa

fundar uma verdadeira ética da responsabilidade solidária7.

3. A responsabilidade colectiva

3.1. A teoria gradualista da responsabilidade

Em matéria de finanças públicas e de decisões financeiras públicas, e não obstante outras

dimensões relevantes que serão aqui contornadas e afastadas (v.g., imputação disciplinar,

4 Assim, SOTELO, Ignacio, “Moralidad, legalidad, legitimidad: reflexiones sobre la ética de la responsabilidad”,

inIsegoria (Revista de filosofía moral y política), 2, 1990, p. 40, disponível em

http://isegoria.revistas.csic.es/index.php/isegoria/article/view/389/390. 5 V., a respeito do tema, MILLER, Seumas, The Moral Foundations of Social Institutions. A Philosophical Study,

Cambridge University Press, Cambridge, 2010, pp. 120 e segs. 6 V. CHAFUEN, Alejandro, “Personalismo vs. Individualismo: o seu impacto na política pública”, in Revista Por-

tuguesa de Filosofia, 65, 2009, fasc. 1-4, p. 235. V., ainda, BALAKRISHNAN, Uma, DUVALL, Tim, e PRIMEAUX,

Patrick, “Rewriting the Bases of Capitalism: Reflexive Modernity and Ecological Sustainability as the Foundations

of a New Normative Framework”, in Journal of Business Ethics, 2003, 47, p. 300. 7 Cfr., a propósito, TAM, Henry, Communitarianism. A new agenda for politics and citizenship, MacMillan

Press Ltd., London, 1998, pp. 14 e segs.

131

civil, criminal e financeira dos agentes faltosos), a noção de responsabilidade assume pre-

sentemente maior importância se for dimensionada numa perspectiva jurídica transpessoal

e colectiva, que procure buscar as consequências das más opções tomadas pela comunidade

no seu todo. Compreende-se que seja um caminho difícil de trilhar e no qual será complica-

do atingir resultados materializáveis e concretos, até porque se está a lidar com categorias

meramente lógicas e não ontológicas, como a “sociedade”, a “comunidade”, a “geração” —

que não têm existência física —, o que tradicionalmente tem impedido o estabelecimento

em termos práticos, conclusivos e peremptórios de um nexo de causalidade entre determi-

nada acção e determinado resultado. Contudo, os desenvolvimentos recentes da ciência

jurídica — particularmente no âmbito do direito criminal e contra-ordenacional — parecem

indiciar que o caminho a trilhar poderá ser outro.

Na verdade, tendo como pano de fundo a Collective Moral Autonomy Thesis, começa a

ser entendimento cada vez mais disseminado que um grupo ou uma comunidade podem

eles próprios ser responsabilizados — ou, no mínimo, ser chamados a prestar contas pelas

actuações individualizadas dos seus membros — e, mais do que isso, podem sofrer sanções.

Como facilmente se compreende, a aceitação — à qual se adere — da ideia de responsabili-

dade colectiva traz implícita a superação da concepção individualista ou personalista de

imputação, de acordo com a qual apenas os sujeitos individuais (pessoas singulares) são

susceptíveis de ser responsabilizados pelas suas acções, não aceitando que os grupos o pos-

sam ser, independentemente dos seus agentes ou componentes8. Pelo contrário, uma con-

cepção transpersonalista, defende que tais grupos podem e devem ser chamados a prestar

contas por algumas das suas actuações, exigindo-se ab initio que esse grupo tenha persona-

lidade jurídica, como acontece com as pessoas colectivas legalmente constituídas, particu-

larmente com as pessoas colectivas de Direito Público, e mais especificamente ainda com o

Estado.

É certo que, em última análise e em termos práticos, sob pena de se cair nos campos da

inconsequência, da ineficácia e da inoperatividade, a imputação colectiva há-de obrigar a

que os resultados da prestação de contas devam posteriormente ser imputados a alguns

membros dessa pessoa colectiva, uma vez que esta, não tendo existência física (embora

tenha existência jurídica), não poderá sofrer, ela própria, as consequências. Tais membros

chamados à responsabilidade podem sê-lo quer a título individualizado — através do exercí-

cio dos direitos de regresso, como acontecerá com os sócios ou administradores em relação

8 A respeito do tema, v. RISSER, David T., “Collective Moral Responsibility”, in The Internet Encyclopedia of

Philosophy [peer-reviewed], http://www.iep.utm.edu/ [02 de Outubro de 2011].

132

a uma sociedade ou com os legisladores que emanam uma má lei ou os juízes que aplicam

erradamente a lei em relação ao Estado —, quer a título não individualizado ou genérico, em

que a responsabilidade é disseminada por todo um grupo, como acontece quando as san-

ções impostas a um Estado se vão repercutir na esfera jurídica de todos os contribuintes por

vias do aumento dos impostos ou de outras restrições de direitos, liberdades ou garantias.

Podemos assim dizer que uma adequada teoria da responsabilidade colectiva pressupõe

dois momentos (teoria gradualista da responsabilidade): um primeiro momento de imputa-

ção da má acção ao grupo e um segundo momento de devolução dessa imputação aos ele-

mentos desse grupo. Porventura este segundo momento da imputação poderá ser injusto,

principalmente se a responsabilidade for disseminada por todo o grupo, pois alguns elemen-

tos podem não ter tomado parte no procedimento conducente à tomada da decisão errónea

ou se tenham mesmo oposto a ela. Contudo, não pode deixar de se aceitar que os grupos

não são biologicamente espontâneos, mas resultam de um consenso social entre os seus

membros no sentido de o formarem, o que traz a consequência de que não apenas os bene-

fícios mas também as desvantagens devem ser imputadas ao grupo e posteriormente devol-

vidas aos seus membros, isto é, o que afecta a comunidade, positiva ou negativamente,

afecta igualmente cada um dos seus elementos.

Evidentemente que tal pressupõe um indispensável sentimento de pertença e de co-

-direcção, que permita que todos se sintam parte de um todo (coesão social, a qual começa

a ser colocada em crise nos modelos societários actuais) e, mais do que isso, que todos se

sintam como condutores dos destinos desse todo, superando o individualismo e encontran-

do um momento de identidade transcendente.

Aqui chegados, um refinamento analítico se impõe: nos desenvolvimentos subsequentes

centrar-se-ão as considerações apenas na responsabilidade jurídica colectiva, e particular-

mente na questão de saber se a geração presente pode ser chamada a responder pelas más

actuações das gerações que as precederam. Em termos jurídicos práticos, e porque a gera-

ção não tem personalidade: se o Estado presente pode ser chamado a responder pelas más

actuações do Estado passado.

3.2. A responsabilidade entre gerações

Uma das dimensões juspublicistas mais relevantes da responsabilidade colectiva pode ser

encontrada no domínio da responsabilidade entre gerações, assumindo-se que o decisor

133

actual não é um “agente único” e rejeitando-se a clássica teoria do desconto na considera-

ção do valor das actuações (teoria essa que defende que na ponderação do valor social das

medidas actuais se “descontam” — ou não consideram — os impactos no futuro9).

Importa começar por salientar que o próprio conceito de geração se apresenta de um

modo inevitavelmente convencional, no sentido de se revelar um conceito útil apenas no

contexto em que está a ser utilizado, não sendo possível um conceito analítico, preciso e

determinado10. Como já foi várias vezes salientado, as pessoas pertencentes a um grupo não

nascem nem morrem ao mesmo tempo, além de que podem não desenvolver um sentimen-

to de pertença que as faça sentir como parte de uma mesma geração. Em todo o caso, para

os presentes propósitos e de um modo simples, entender-se-á por geração o conjunto

amplo de pessoas nascidas num mesmo lapso temporal que outras, de modo a que se possa

distinguir os que já não vivem (gerações passadas), os maiores que vivem (geração presente)

e os menores que vivem e os que ainda nascerão (geração e gerações futuras).

A partir desta precisão, é possível afirmar-se que a responsabilidade intergeracional é um

tipo de responsabilidade que se impõe em primeira linha como consequência de um dever

de natureza ética, um imperativo moral11 que impende sobre a sociedade no seu todo e

sobre cada um dos seus elementos em particular, no sentido de acautelar um projecto de

felicidade que supere as contingências temporais inerentes ao ciclo de existência de cada

um. Tal componente ética é — rectius: deve ser — posteriormente revestida por um invólu-

cro jurídico, em consequência do processo de desenvolvimento da consciência humana e da

maturidade cultural de um povo, fazendo impender sobre uma geração o resultado das

actuações de outra ou outras. Esta juridificação do imperativo resulta verdadeiramente

imprescindível, na medida em que as actuações espontâneas (v.g., o mercado), só por si não

reconhecem os direitos do futuro, havendo necessidade da sua imposição normativa, desig-

nadamente ao nível constitucional, como linha de comportamento12.

9 V. PADILLA ROSA, Emílio, Equidad intergeneracional y sostenibilidad. Las generaciones futuras en la evalua-

ción de políticas y proyectos, Instituto de Estúdios Fiscales, Investigaciones, n.º 1/02, Madrid, 2002, pp. 15 e 25 e

segs. 10

Cfr., a propósito, BUCHANAN, Neil. H., “What do we owe future generations?”,in George Washington Law

Review, 77, 2009, p. 1250. 11

V. BUCHANAN, Neil. H., “What do we owe future generations?”,cit., p. 1237. 12

Porém, e como muito bem observa PADILLA ROSA (ob. cit., p. 56), el simple reconocimiento constitucional

de los derechos del futuro no garantiza que éstos sean respectados en la práctica. Las generaciones futuras no

tienen representantes ni en los mercados ni en la gestión política. Consequentemente — prossegue o autor, e

aderimos à sua retórica — torna-se necessária a criação de instituições presentes que actuem como “represen-

tantes, defensores y tutores” dos direitos das gerações vindouras, fazendo com que estes sejam efectivamente

respeitados, sob pena de sanções reais (a aplicar no momento presente).

134

Reconhece-se assim um verdadeiro imperativo de intertemporalidade, uma ética do

futuro (Zukunftsethik)13, que comporta por um lado uma dimensão preventiva — no sentido

de demandar da geração presente o dever de acautelar o projecto de felicidade das gera-

ções futuras — e por outro lado uma dimensão repressiva — no sentido de a geração pre-

sente poder ser chamada a responder pelos erros das gerações passadas. Naturalmente que

de um ponto de vista jurídico, a responsabilidade entre gerações não pode assentar a sua

existência e efectividade no binómio clássico poder-dever, ao menos numa concepção sina-

lagmática que os conceba de modo equivalente, recíproco e interdependente. Isto porque,

quer na dimensão preventiva quer na dimensão repressiva acima apontadas, o outro pólo da

imputação ou pode ainda não existir (a geração futura) ou pode já não existir (a geração

passada). Além disso, não deve ser perdida de vista a ausência de forma dos sujeitos em

questão (as gerações), o que contribui para que um eventual nexo de responsabilidade se

revele fluido e quebradiço, levando a que se afirme que a relação intergeracional é uma

relação de natureza e estrutura difusa e subjectivamente descentrada14.

Outro embaraço jurídico resulta do facto de se estar em presença de uma relação que, ao

menos numa primeira análise, não faz nascer direitos justiciáveis, isto é jurisdicionalmente

demandáveis. Sobre este ponto, porém, reflectiremos adiante.

Por agora, procuremos direccionar as reflexões para um sentido diverso.

4. A responsabilidade entre gerações no domínio das finanças públicas

Como acima superficialmente se referiu, o imperativo de salvaguarda das gerações futu-

ras projecta-se numa dimensão preventiva e numa dimensão repressiva, consoante se tenha

em vista, respectivamente, uma finalidade de antecipação ou de consumação de resultados

das actuações de uma geração em relação a outra(s). Com o objectivo de evitar que a análi-

se se situe no superficial domínio das vaguidades e das trivialidades discursivas, procuremos

indagar as exigências inerentes a cada uma dessas dimensões, tomando como âncora de

praticabilidade o domínio do Direito Financeiro Público e das Finanças Públicas.

13

A propósito, v. IRRGANG, Bernhard, “Nachhaltigkeit als Ideologie?”, in Revista Portuguesa de Filosofia, 59,

2009, fasc. 3, pp. 778 e segs. 14

A respeito das dificuldades de enquadramento da relação intergeracional, v. KOSLOWSKI, Peter, “Gerech-

tigkeit zwischen den Generationen: Globale Perspektiven”, in Revista Portuguesa de Filosofia, 65, 2009, fasc. 1-4,

p. 506.

135

4.1. Dimensão preventiva

4.1.1. Selectividade da despesa pública e não oneração excessiva

Nesta primeira dimensão, a responsabilidade entre gerações consubstancia-se na exigên-

cia de que a geração presente deva procurar garantir um modelo de existência adequado

para as gerações que se lhe seguirão, ou, na linha do que já por outros foi referido, projectar

nos destinatários futuros um conjunto de condições abstractamente ponderadas que, na

sua globalidade, sejam melhores do que as condições vividas no momento presente (“The

better than me standard”)15.

Será importante enfatizar que a salvaguarda das gerações futuras não pode ser levada ao

ponto extremo de ser considerada uma vinculação para as mesmas – não se trata de impor

modelos de existência, nem amarrar os vindouros aos projectos actuais, mas tão-somente

de formular opções para o futuro que sejam tendencialmente imparciais, permitindo a exis-

tência de pressupostos igualitários e solidários. Uma leitura deste princípio que será de

rejeitar liminarmente será aquela que, ao estilo das sociedades pré-modernas, assuma uma

determinada concepção de felicidade e a imponha a todos, cerceando as suas escolhas. Por

outro lado, também não se pode pensar que se trata de uma promessa inquebrável, tendo-

-se sempre presente que, apesar de todos os esforços, as gerações presentes não conse-

guem assegurar nem garantir resultados certos, mas apenas possibilidades de obtenção de

resultados. O que se pretende é permitir no futuro o pleno desenvolvimento da personali-

dade de cada um, dentro dos limites do possível, não sendo legítimo esperar dos antecesso-

res um nível concreto de prestações ou realizações16.

Apesar das dificuldades de indeterminação do nível de adequação que poderá ser consi-

derado justo, sempre se pode afirmar que do ponto de vista jurídico se reclama — mais do

que isso: se impõe — que os decisores normativos presentes (o legislador lato sensu) tenha

um âmbito de projecção alargado, incluindo nas suas determinações cenários e quadros de

longo prazo, aos mais diversos níveis, mas principalmente aos níveis social, económico e

político. Exige-se-lhes que não se limitem (irresponsavelmente) a incluir no processo moti-

vacional apenas os efeitos circunscritos ao momento em que a decisão está a ser tomada e

15

Cfr. BUCHANAN, “What do we owe future generations?”,cit., pp. 1257 e segs. 16

Cfr., num sentido análogo, VAN PARIJS, Philippe, “Que é uma Nação Justa, um Mundo Justo, uma Empresa

Justa?”, in Revista Portuguesa de Filosofia, 65, 2009, fasc. 1-4, pp. 131 e segs.

136

que procurem antecipar efeitos que essa decisão poderá produzir no futuro (“consider the

future consequences of present actions”17).

Procurando concretizar este imperativo, pode afirmar-se que uma primeira exigência

concreta se materializa no princípio da selectividade da despesa pública: deve ser atribuída

prioridade e preponderância às despesas públicas de natureza reprodutiva, com utilidades a

ser irradiadas para momentos temporalmente diferidos, que permitam que os filhos e netos

dos que actualmente decidem também possam usufruir dos respectivos proveitos e vanta-

gens. Será o que se passa, designadamente, com a construção de equipamentos de ensino

(estabelecimentos pré-escolares, escolares, politécnicos e universitários), equipamentos de

saúde (centros de saúde, centros de ambulatório, hospitais), infra-estruturas de transportes

(linhas de caminho de ferro, instalações portuárias e aeroportuárias, estradas) ou equipa-

mentos culturais (teatros, museus, bibliotecas). Opostamente, serão de evitar as despesas

correntes, cuja utilidade tem tendência a esgotar-se no próprio período em que são efecti-

vadas. Contudo, importa ter presente que muitas destas despesas correntes podem ser for-

çosas e imprescindíveis (como, por exemplo, o pagamento de vencimentos a funcionários

públicos, a manutenção dos serviços públicos ou a atribuição de certos subsídios), de modo

que esta regra da evitabilidade se deve afirmar meramente tendencial. Este princípio da

selectividade, se for juridicamente bem dimensionado, fundamentará um verdadeiro direito

fundamental à boa despesa pública, considerando-se como “boa” aquela que respeite as

exigências do princípio da proporcionalidade, isto é, que seja absolutamente necessária,

adequada e quantitativamente proporcional, tendo o fim que se pretende atingir (a necessi-

dade a satisfazer).

Mas, ainda dentro desta dimensão preventiva e porventura mais importante do que o

tipo e a qualidade da despesa — ou, no mínimo, tão importante quanto isso — será o modo

de financiamento da mesma. A este respeito, o princípio em análise (responsabilidade inter-

geracional) exige que as gerações futuras não sejam sobrecarregadas com o pagamento das

despesas da geração actual, principalmente por via dos tributos que lhe sejam exigidos.

Como bem refere Becker, Die Schulden von heute sind die Steuern von morgen18. Com efeito,

se a geração presente efectua muitas despesas públicas, mesmo reprodutivas, e as financia

com recurso ao crédito, lógico se torna concluir que, se estivermos em presença de crédito

de médio e longo prazo, o ónus ou encargo do respectivo pagamento vai recair sobre quem

17

Assim, KRYSIAK, Frank C., “Risk Management as a Tool for Sustainability”, in Journal of Business Ethics,

2009, 85, p. 483. 18

Assim, BECKER, Andreas, “Generationengerechte Finanzpolitik”, in Handbuch Generationengerechtigkeit,

(org. Jörg Tremmel), Öko, München, 2003, p. 251.

137

não tomou parte na decisão despesista, agravando-se as consequências negativas se as uti-

lidades entretanto temporalmente diferidas forem reduzidas ou se forem diluindo com o

passar dos anos. Neste último caso, teremos uma geração a pagar bens públicos e semipú-

blicos relativamente aos quais pouca ou nenhuma utilidade retira19.

4.1.2. Domínios específicos de imposição de responsabilidade

Assumindo que existe um dever ético de salvaguarda das condições de existência das

gerações vindouras e que o mesmo se materializa posteriormente numa imposição de natu-

reza jurídica — cuja violação poderá fazer incorrer em responsabilidade, como adiante se

verá —, será conveniente densificar o conteúdo respectivo, sob pena de resvalar a retórica

para os campos da generalidade e do lugar-comum que se pretendem evitar.

A este respeito, dir-se-á que são muitos os domínios em que os decisores actuais devem

considerar e ponderar as consequências longínquas das suas actuações, se tal não se impu-

ser mesmo em todos os casos. Seja como for, no quadro de muitas outras áreas que pode-

riam ser atendidas — como o ordenamento território, a preservação do património cultural,

a salvaguarda do direito ao trabalho, etc. —, tendo em conta as limitações inerentes ao pre-

sente trabalho, sobrelevam-se aqui as seguintes: educação, recursos naturais e ambiente,

protecção social e saúde.

Serão estes os domínios específicos de imposição de responsabilidade.

Vejamos em que termos.

a) Ensino

O primeiro desses domínios a ser destacado – e aqui considerado porventura o mais

importante sob o ponto de vista ético e responsabilizador –, é o domínio da educação, preci-

samente por ser aquele no qual a componente preventiva e antecipatória melhores resulta-

dos pode atingir. Neste campo, as políticas públicas, em geral, e as despesas públicas, em

particular, devem ser fortemente direccionadas no sentido da aposta na formação de gera-

ções preparadas para enfrentar desafios e ambientes adversos, recusando o facilitismo e a

19

Em termos mais amplos e abrangentes, o princípio da salvaguarda das gerações futuras, traduz-se em limi-

tes constitucionais expressos, denominados como “regras de ouro das finanças públicas”. Entre elas, relevam a

regra de exigência de equilíbrio orçamental, a proibição do recurso ao crédito, o estabelecimento de tectos para

a despesa pública e a imposição de limites máximos para a dívida pública (Schuldenbremse). V., SOULAY, Carine,

“La «règle d´or» des finances publiques en France et en Allemagne: convergence au-delà dês différences?”, in

Revue Française de Finances Publiques, 112, 2010, pp. 187 e segs., e MAGIN, Christian, “Die Wirkungslosigkeit der

neuen Schuldenbremse. Warum die Staatsverschuldung weiterhin ungebremst steigen kann”, in

Wirtschaftsdienst, 90, 2010, pp. 262 e segs.

138

permissividade e acentuando a excelência, a exigência e o rigor. Por conseguinte, uma boa

gestão de dinheiros públicos e uma correcta política de despesa educacional deverá atribuir

preponderância a programas de financiamento de acesso e ao ensino e frequência do mes-

mo (promovendo a sua universalização e igualitarização) a cursos de formação avançada de

professores, a campanhas de promoção da excelência e da cidadania, e à aquisição de bens

duradouros e úteis (como bibliotecas ou centros de informática). Inversamente, deverão ser

evitadas as despesas em bens correntes ou que podem ser considerados supérfluos (v.g.,

campanhas públicas relativas a eventos desportivos de massas ou a concursos televisivos,

salas de jogos, centros de informática de carácter lúdico) ou então em bens que se afiguram

mesmo prejudiciais (por exemplo, bares de fast-food ou divulgação de reality-shows).

Do ponto de vista das receitas, o sistema educacional, no que concerne as suas dimen-

sões estruturais e fundacionais, deverá ser financiado principalmente por via dos impostos,

ao passo que as suas dimensões de manutenção e de conservação deverão procurar o finan-

ciamento em taxas de utilização, a pagar pelos respectivos utentes, mas sempre com um

regime legal enquadrado pela ideia de serviço público, nomeadamente prevendo isenções e

reduções em termos adequados e proporcionais. Consequentemente, a imposição de propi-

nas revela-se indispensável, embora deva ser feita com moderação.

O objectivo fulcral, num caso ou no outro, será sempre o de formar cidadãos activos,

preparados, e com espírito criativo e empreendedor20.

b) Recursos naturais e ambiente

Outro domínio que envolve elevados factores de ponderação, preservação futura e pre-

venção é o dos recursos naturais e ambiente, sendo mesmo uma área na qual, tradicional-

mente, se têm direccionado muitos trabalhos jurídicos. Aqui, procura-se sobrelevar o direito

que cada pessoa tem a uma capacidade económica e ecológica não deteriorada pelas actua-

ções dos antecessores21, o que passa obrigatoriamente, ao nível da despesa, pelo incentivo

aos “consumos verdes” (aposta política nas energias renováveis, redução nos serviços públi-

cos dos encargos em combustíveis tradicionais, estabelecer metas de poupanças de água e

luz, etc.) e ao nível da receita na introdução de eco-impostos e ecotaxas.

20

Algum paralelo, embora não identificação completa, com os objectivos estratégicos delineados pela União

Europeia. V. as Conclusões do Conselho de 12 de Maio de 2009 sobre um quadro estratégico para a cooperação

europeia no domínio da educação e da formação (“EF 2020”), disponível em http://eur-

lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=OJ:C:2009:119:0002:0010:PT:PDF. 21

V. PADILLA ROSA, Emílio, “Equidad intergeneracional y sostenibilidad...”, cit., p. 16.

139

Para a importância que o Direito do Ambiente tem vindo a assumir, contribui sobrema-

neira a imposição constitucional de preservação dos recursos naturais para as gerações futu-

ras, de modo a garantir a satisfação das suas necessidades22.

c) Protecção social

O sector mais problemático em termos de sustentabilidade financeira e que em maior

grau se exige o rigoroso cumprimento de um “contrato implícito entre gerações” é, sem

margem para dúvidas, o da protecção social, aqui encarada de um modo geral, e abrangen-

do as prestações sociais não específicas. Em termos pouco rigorosos, trata-se daquilo que

convencionalmente se designa por “sistema de segurança social”, sendo que a questão da

respectiva sobrevivência a longo prazo tem sido já bastante questionada por diversos acto-

res23.

Na verdade, verifica-se uma inegável falta de cuidado em termos de políticas públicas,

que em devido tempo não trataram de assegurar o ambiente económico e sociológico ade-

quado para que um sistema desta natureza pudesse sobreviver, descurando a produtividade

económica e o emprego — que contribuem para o manancial de quotizações — e não pre-

vendo as implicações da mudança das estruturas demográficas, nomeadamente ao nível do

envelhecimento das populações — assistindo-se a um cada vez maior número de beneficiá-

rios e um cada vez menor número de contribuintes. Naturalmente que, num sistema em que

poucos pagam e muitos recebem, a viabilidade fica posta em causa.

Acrescem as condicionantes jurídicas: a Constituição da República Portuguesa (CRP)

impõe um sistema subjectivamente universal (“todos têm direito à segurança social”) e

materialmente alargado (apoio “na doença, velhice, invalidez, viuvez e orfandade, bem

como no desemprego e em todas as outras situações de falta ou diminuição de meios de

subsistência ou de capacidade para o trabalho”) de protecção social24 e não está colocado

de parte o princípio da proibição do retrocesso social, o qual, embora não tenha previsão

constitucional expressa, merece dignidade constitucional, embora com a reserva do possí-

vel.

22

Cfr. art. 66.º, n.º 2, alínea d), da CRP. 23

Sobre a crise dos sistemas de protecção social, v. GOODIN, Robert E., “Treating likes alike, intergeneratio-

nally and internationally”, in Policy Sciences, 1999, 32, pp. 194 e segs., e o volume Las nuevas fronteras de la

protección social. Eficiencia y equidad en los sistemas de garantia de rentas, inHacienda Publica Española, Mono-

grafia 2003. Acerca das possíveis limitações constitucionais a tais reformas, v. o nosso “A solidez das finanças

públicas estaduais e o Direito da União Europeia. Em particular, o pacto de estabilidade e crescimento e o proce-

dimento relativo a défices excessivos”, in Direito da União Europeia e Transnacionalidade, Acção Jean Monnet

(Information and Research Activities), Quid Iuris, Lisboa, 2010, p. 152. 24

Cfr. art. 63.º, n.os

1 e 3, da CRP.

140

Além disso, outras condicionantes intrasistémicas contribuem igualmente para a debili-

dade do edifício garantístico, como sejam a atribuição de ajudas sem a sujeição à condição

de recursos e a substituição da “velhice cronológica” pela “velhice funcional”, possibilitando

o antecipar de reformas de modo irresponsável.

O respeito pelas gerações futuras impõe aqui, em maior grau, um conjunto de políticas

financeiras responsáveis que deverão passar desde logo por uma rigorosa gestão da despe-

sa, seja antecipando-as e evitando-as (por exemplo por via de campanhas de promoção da

boa saúde e do consequente prolongamento da vida activa e do aumento da idade das

reformas), seja conferindo uma maior selectividade na sua efectivação, controlando a atri-

buição de prestações (dando-as efectivamente a quem delas precisa)25. Ao nível da receita, o

caminho passa inevitavelmente pelo aumento das quotizações, o que poderá ser feito, por

exemplo, por meio da criação de incentivos e pela remoção dos desincentivos ao emprego

(pois aumentando o número de trabalhadores, aumenta o número de pagantes para o sis-

tema) e por meio do alargamento da base contributiva — incluindo nesta todas, mesmo

todas, as remunerações auferidas pelos trabalhadores, equiparando-se a base contributiva à

base fiscal (salários, indemnizações, prestações acessórias, abonos, comissões, gratificações,

etc.). Por outro lado, deve pensar-se na hipótese de diversificação das fontes de financia-

mento, por exemplo, através do “desvio” parcial deste do trabalho para o consumo, como

sucede em vários ordenamentos com a introdução do denominado “IVA social”, o qual con-

siste em transferir uma parte da receita deste imposto para o fim de protecção social (o que

poderá implicar um aumento do mesmo em termos eventualmente significativos e impetuo-

sos).

d) Saúde

Por fim, no quadro exemplificativo que nos propusemos apresentar, releva o sector da

saúde, como sendo um dos que reclamam uma cultura financeira de responsabilidade acres-

cida. Neste segmento de análise, cumpre começar por dizer que se rejeita a concepção que

nega à saúde a natureza de necessidade pública, bem assim como a sua não consideração

como bem social. Pelo contrário, entende-se que se está em presença de uma necessidade

que deve ser satisfeita por entes públicos, embora não exclusivamente por estes, até porque

as imposições constitucionais, também aqui, impõem essa conclusão26.

25

V., a propósito deste tema, uma vez mais, o nosso “A solidez das finanças públicas estaduais…”, cit., p. 151. 26

Neste sentido, cfr. art. 64.º, n.os

2 e 3, da CRP.

141

No que particularmente diz respeito à disciplina financeira, e a exemplo da metódica

expositiva anteriormente adoptada a propósito dos outros sectores que se destacaram,

importa discernir as medidas respeitantes à despesa e as medidas respeitantes à receita. No

que concerne à despesa com a saúde, a pedra de toque, também aqui, reside na selectivida-

de e na prudência na efectivação da despesa, o que poderá passar pela restrição dos cuida-

dos públicos assegurados, por exemplo, ao nível dos internamentos desnecessários ou do

atendimento em falsas urgências. Paralelamente, poder-se-á pensar na privatização de cer-

tas prestações não absolutamente essenciais à boa prestação de cuidados sanitários, como o

fornecimento de certas refeições, a efectivação de certos actos de enfermagem ou a realiza-

ção de certos transportes de doentes, de modo a aliviar o sistema de ineficiências e gastos

supérfluos.

No tocante às receitas, a grande ideia a reter é a de que a gratuitidade do sistema nacio-

nal de saúde é uma ilusão, inculcando a ideia errada de que existem bens públicos dados ou

sem custos para o utilizador. Assim sendo, o financiamento corrente deve ser apoiado por

via de taxas, que transfiram para o utilizador uma parte dos custos de exploração do serviço

e que, simultaneamente, restrinjam e moderem o acesso (taxas moderadoras), evitando que

ele seja desnecessariamente massificado.

Por outro lado, pode pensar-se na hipótese de financiamento por meio da consignação

de receitas fiscais, por exemplo, aumentando a taxa de IRS para os escalões mais elevados e

destinando o produto da respectiva receita exclusivamente para o sistema de saúde.

4.2. Dimensão repressiva

Chegou enfim o momento de saber quais as consequências jurídicas efectivas da violação

do dever de salvaguarda das gerações futuras e de preservação das suas condições de exis-

tência, em termos de se averiguar se se trata de um verdadeiro dever jurídico ou apenas de

uma imposição de natureza ética ou moral sem revestimento jurídico-normativo.

Pela nossa parte, não restam dúvidas que se trata de um verdadeiro dever jurídico e até

constitucionalmente ancorado e positivado. Com efeito, assume-se como absolutamente

indubitável que os decisores num determinado momento não podem levar à prática actos e

medidas, boas ou más, no pressuposto de que nada existiu antes deles e do seu momento

político, mas, pelo contrário, são obrigados a ter em consideração todas as envolventes rele-

vantes (sociais, políticas, económicas, jurídicas, etc.) que os rodeiam, nomeadamente as

vinculações. Concretizando o discurso: a decisão financeira presente não pode “fazer tábua

142

rasa” dos compromissos anteriores. Neste sentido, pode afirmar-se que o dever de equidade

intergeracional comporta a exigência de respeito pelas obrigações legais e contratuais ante-

riormente assumidas, estando-se mesmo em presença, como se disse, de um dever consti-

tucionalmente previsto (art. 105.º, n.º 2, da CRP).

Ora, com base neste enquadramento e colocando o acento tónico na dimensão colectiva

da responsabilidade, importa precisar, na medida do possível, os contornos desse dever,

indagando se é possível obter reparação pela sua violação.

Torna-se necessário assinalar que muito dificilmente o direito respectivo de pedir contas,

titulado pela geração presente, se assume como um direito ao qual possa ser atribuída a

condição da justiciabilidade, isto é, que possa ser jurisdicionalmente sindicável ao ponto de

um tribunal condenar uma geração por má gestão da coisa pública no seguimento de uma

acção contenciosa interposta por um eventual interessado (o que, desde logo, levantaria a

questão – que aqui contornamos – de saber quem teria legitimidade processual activa para

o fazer). Em todo o caso, não se pode dizer que se trata de um “direito sem sanção”, na

medida em que podem advir consequências jurídicas relevantes, ou muito relevantes, do

incumprimento do imperativo de salvaguarda das gerações futuras.

Isto porque a geração presente pode ser chamada a responder juridicamente pelos abu-

sos do passado, em termos de lhe serem impostas restrições de direitos, restrições essas

colectivamente imputadas, embora em momento posterior individualmente disseminadas.

Por outras palavras, e dando seguimento ao que já acima se defendeu: não é a geração ela

própria quem vai sofrer as consequências desfavoráveis (até porque não tem existência

física nem jurídica), mas serão sim os sujeitos que a compõem, enquanto elementos de um

agregado que levou à consecução medidas juridicamente desvaliosas.

Um exemplo paradigmático do que acaba de ser dito pode ser encontrado ao nível da

União Europeia e das exigências inerentes ao respectivo Pacto de Estabilidade e Crescimen-

to27, contexto no qual, devido à pretérita ausência de rigor financeiro (consubstanciada em

inúmeros fenómenos de desorçamentação, “derrapagens” financeiras, má estimação de

custos, etc.) são os sujeitos actuais chamados a suportar todo um conjunto de restrições de

direitos e, em alguns casos mesmo revogações. Basta ter presentes, de um modo mais con-

creto, as imposições de redução da despesa (que implicam diminuição de salários e maior

dificuldade de obtenção de ajudas e prestações sociais) ou a necessidade do aumento dos

impostos e das diversas taxas devidas pela prestação individualizada de serviços públicos no

sector da saúde.

27

Cfr. art. 126.º do Tratado sobre o funcionamento da União Europeia.

143

Enfim, como se disse, não se trata de um direito sem sanção, mas de um direito com uma

sanção “pulverizada”, mas nem por isso menos gravosa.

5. Conclusões

Como se pode constatar, será duvidoso concluir que uma geração possa ser perempto-

riamente responsabilizada pelo que fez de mal em termos financeiros públicos em relação às

gerações que a precederam, principalmente se tal responsabilização passar pela aplicação

de sanções efectivas e individualizadas.

Em todo o caso, não será correcto afirmar que todo o iter de raciocínio efectuado seja

desprovido de sentido e de utilidade, sendo possível identificar alguns tópicos reflexivos que

poderão indiciar um movimento no sentido dessa responsabilização.

Assim, começou por se colocar em realce que a utilização dos dinheiros públicos deve ser

sempre efectuada com base num quadro disciplinador preciso, embora com componentes

de flexibilidade e adaptação, e o eventual incumprimento deverá obrigar o respectivo infrac-

tor a ser chamado a prestar contas e, sendo o caso, a incorrer em sanções, sob a forma de

assunção de responsabilidade.

Assumindo-se que a responsabilidade consistirá num nexo entre determinado sujeito e o

resultado das suas acções, de um ponto de vista teorético e de localização metodológica,

constatou-se que a sua ideia encontra a localização preferencial no cosmos da deliberação

prática, defendendo-se igualmente que em tais questões se descobrem com facilidade

dimensões supra-individuais que não podem ser desconsideradas. Neste seguimento, rejei-

tam-se as teses de individualismo extremo, defendendo-se preferencialmente uma postura

personalista, que coloque a centralidade na pessoa (e não no indivíduo) e nas suas diferen-

tes dimensões, individual e colectiva, de modo a fundar uma verdadeira ética da responsabi-

lidade solidária.

De um ponto de vista da operatividade, uma adequada teoria da responsabilidade colec-

tiva pressupõe dois momentos (teoria gradualista da responsabilidade): um primeiro

momento de imputação da má acção ao grupo e um segundo momento de devolução dessa

imputação aos elementos desse grupo.

Por fim, direccionou-se o discurso no sentido pretendido e defendeu-se que uma das

dimensões juspublicistas mais relevantes da responsabilidade colectiva pode ser encontrada

no domínio da responsabilidade entre gerações, a qual comporta um imperativo de inter-

144

temporalidade, uma ética do futuro, numa dupla dimensão, preventiva e repressiva. Na

primeira, a responsabilidade entre gerações consubstancia-se na exigência de que a geração

presente deva procurar garantir um modelo de existência adequado para as gerações que se

lhe seguirão (por meio da selectividade da despesa pública e da não oneração excessiva

destas últimas), ao passo que na segunda se enfatizou que se trata de um verdadeiro dever

jurídico e até constitucionalmente ancorado e positivado, embora dificilmente justiciável.

Em todo o caso, não tratará de um “direito sem sanção”, na medida em que podem advir

consequências jurídicas relevantes, sendo os sujeitos futuros chamados a suportar todo um

conjunto de restrições de direitos.

(*) Por vontade expressa do autor, este artigo segue as regras anteriores ao novo acordo ortográfico.

Os deveres do comandante e a sua responsabilização

à luz do Direito Internacional Humanitário

M. Assunção do Vale Pereira

1. A existência de um comando responsável como elemento fundamental para a

verificação de um conflito armado

Ultrapassada a fase em que o Direito Internacional Humanitário (DIH) era aplicável às

guerras – que ocorriam necessária e exclusivamente entre Estados – e passou a ter o seu

campo de aplicação definido pela ocorrência de conflitos armados1, tornou-se fundamental

apurar este conceito, cujo início e termo não estão delimitados por procedimentos específi-

cos2. Recorde-se, a propósito, que só com a inclusão do art. 3.º, comum às quatro Conven-

ções de Genebra de 1949, é que o DIH passou a regular também os conflitos internos, do

que decorre a enorme importância desta disposição que define o que podemos considerar

um standard mínimo de proteção, aplicável em caso de conflitos não internacionais. Por isso

mesmo, a referida disposição tem já sido qualificada como um mini-tratado3, regulador de

conflitos armados que não apresentem um caráter internacional, tendo-lhe também sido

reconhecida a natureza de norma de jus cogens4.

1 Acerca do âmbito de aplicação do Direito Internacional Humanitário, veja-se PEREIRA, Maria de Assunção

do Vale, Noções Fundamentais de Direito Internacional Humanitário, Parte I, Braga: AEDUM, 2012, pp. 74 e segs. 2 Efetivamente, quando o DIH era aplicável ao “estado de guerra” era mais fácil de delimitar o âmbito da sua

vigência, uma vez que a verificação dessa situação estava subordinada a formalismos próprios (embora se verifi-

cassem casos em que os mesmos não eram respeitados). Assim, o “estado de guerra” iniciava-se com uma decla-

ração de guerra e concluía-se com a celebração de um tratado de paz, que era precedido por um armistício. Isto

tinha tradução nas Convenções aprovadas na Haia, em 1907. Assim, o art. 1.º da Convenção III da Haia, desse

ano, estabelecia: “As Potências Contratantes reconhecem que as hostilidades entre elas não devem começar sem

um aviso prévio e explícito, sob a forma quer de uma declaração de guerra justificada quer de um ultimato com

uma declaração de guerra condicional”. Por outro lado, nos termos do art. 36.º do Regulamento sobre as leis e

costumes da guerra, aprovado pela IV Convenção da Haia de 1907 (que reproduz, neste aspeto, o afirmado no

Regulamento sobre as leis e costumes da guerra, aprovado pela II Convenção da Haia de 1899), determinava que

“um armistício suspende as operações militares por acordo mútuo entre as partes beligerantes”. 3 Assim foi caracterizada por um delegado à Conferência diplomática que aprovou as Convenções em que se

insere. 4 Cf.PEREIRA, Maria de Assunção do Vale, Noções Fundamentais de Direito Internacional Humanitário, Parte I,

cit., pp. 44 a 47.

146

Percebe-se, por isso, quão necessário se torna definir os contornos do conceito de confli-

to armado, tanto mais que, apesar de múltiplas vezes referido nas Convenções de Genebra,

em nenhum dos seus preceitos é definido, sendo certo que a sua caracterização se torna

cada vez mais complexa face ao aumento substancial dos conflitos internos e à evolução que

os mesmos vêm sofrendo.

A determinação dos elementos constitutivos da noção tornou-se, por isso, objeto de dis-

cussão entre os cultores do Direito Internacional Humanitário. Se havia consenso na doutri-

na em relação à necessidade de se conjugarem alguns elementos para estarmos face a essa

realidade, deve atender-se a que o Tribunal Penal Internacional para o Ruanda deu, nesta

matéria, um importante contributo ao concluir que, para se poder falar de conflito armado,

é necessário verificar-se: 1) uma certa intensidade das hostilidades; e 2) organização das

partes.

Segundo o Tribunal5, “a expressão «conflito armado» evoca, em si, a existência de hosti-

lidades entre forças armadas mais ou menos organizadas. Dela são, portanto, excluídas as

perturbações e tensões internas”6. Esta característica remete-nos para a teoria da insurgên-

cia, a que está associada uma certa forma de subjetividade internacional, o que, desde logo,

permite a imputação dos atos praticados a esse sujeito de direito internacional.

Reunidas estas características, poderemos concluir estar face a um conflito armado,

caindo no âmbito de aplicação do Direito Internacional Humanitário. Portanto, a jurispru-

dência referida – bem como os critérios propostos no comentário do CICV ao art 3.º – reve-

lou-se da maior importância, como bem se percebe se atendermos à tendência, muitas

vezes verificada por parte dos Estados, para qualificar como situações de tensão os conflitos

que surjam no seu seio, de modo a evitar a sujeição ao DIH7. E precisamente porque não

5 Que evoca o comentário do Comité Internacional da Cruz Vermelha (CICV) ao art. 3.º comum, no qual se

propõem alguns critérios para a verificação de um conflito interno, a saber: a parte que se rebela contra o gover-

no possui uma força militar organizada, uma autoridade responsável pelos seus atos, atua num território deter-

minado e tem meios para respeitar e fazer respeitar as Convenções; por seu lado, o governo do país é obrigado a

apelar ao seu exército regular para combater os insurgentes organizados militarmente e dispondo de uma parce-

la do território nacional, reconhecendo-lhes a qualidade de beligerante (ou o grupo de revoltosos reivindicou a

qualidade de beligerante; ou o Estado reconheceu aos insurgentes a qualidade de beligerantes apenas para fins

de aplicação da Convenção; ou o conflito foi levado perante o Conselho de Segurança ou Assembleia Geral como

constituindo uma ameaça à paz internacional, uma rutura da paz ou um ato de agressão). Cf. Caso ICTR-96-4-T,

Procurador c. Jean-Paul Akayesu, Sentença da 1:ª Câmara, de 2 de setembro de 1998, par. 619. 6 Caso ICTR-96-4-T, Procurador c. Jean-Paul Akayesu, Sentença da 1:ª Câmara, de 2 de setembro de 1998, par.

620. 7 É sabido que, nos termos do n.º 2 do art. 1.º do II Protocolo Adicional, o DIH “não se aplica às situações de

tensão e de perturbação internas, tais como motins, atos de violência isolados e esporádicos e outros atos análo-

gos, que não são considerados como conflitos armados”. E o mesmo se podia já depreender do art. 3.º comum,

dado nele se afirmar expressamente só ser aplicável a situações de conflito armado. Segundo o CICV, as pertur-

bações internas remetem-nos para situações em que, sem que haja propriamente lugar a falar de conflito arma-

147

cabe ao Estado definir, a seu bel-prazer, se um conflito verificado no seu território é ou não

um conflito armado, para efeitos de aplicação do DIH, essa qualificação já tem sido sujeita a

apreciação – mesmo judicial – internacional8.

Do que afirmamos, decorre o caráter decisivo da existência de uma autoridade responsá-

vel pelos comportamentos das forças em luta – que traduz a ideia de organização dessas

forças – para que se verifique um conflito armado e, em consequência, para nos situarmos

no campo de aplicação do DIH, característica essa que, em relação aos conflitos internacio-

nais, se encontra afirmada, sem rebuço, no art. 43.º do I Protocolo Adicional às Convenções

de Genebra, de 1977 (I PA), em cujo n.º 1 se pode ler: “As forças armadas de uma Parte num

conflito compõem-se de todas as forças, grupos e unidades armadas e organizadas, coloca-

das sob um comando responsável pela conduta dos seus subordinados perante aquela Par-

te(…)”9.

2. Os deveres do comandante

Se se exige, para que haja conflito armado, um comando responsável, há que apurar

quais os deveres que incumbem a quem o exerce, bem como determinar se e em que ter-

mos ele pode ser responsabilizado pelos atos praticados no exercício das suas funções de

comando, bem como pelos crimes cometidos, no decurso dos conflitos, pelos seus subordi-

nados.

do não internacional, existe, no entanto, no plano interno, um confronto que apresenta um certo grau de gravi-

dade ou de duração, e comporta atos de violência, que podem revestir formas variáveis, indo do surgimento

espontâneo de atos de revolta à luta entre grupos mais ou menos organizados, e as autoridades no poder. Por

seu lado, as tensões internas indicam a existência de um clima de tensão grave (político, religioso, racial, social,

económico, etc.) ou surgem como sequela de conflitos armados ou perturbações internas que se caracterizam,

isolada ou conjuntamente, por: prisões maciças; elevado número de detenções por motivos políticos; provável

existência de maus tratos ou condições de detenção desumanas e degradantes; suspensão de garantias judiciá-

rias fundamentais em virtude, quer do estado de exceção, quer de uma situação de facto; alegações de desapa-

recimentos (cf. JUNOD, Sylvie-Stoyanka, “Protocole II – Article premier”, Commentaire des Protocoles Addition-

nels du 8 juin 1977 aux Conventions de Genève du 12 août 1949, Yves Sandoz, Christophe Swinarski, Bruno Zim-

mermann (eds), Genève: Comité International de la Croix Rouge/Martinus Nijhoff Publishers, 1986, p. 1379, pars.

4475 e 4476. 8 Assim, a Comissão Interamericana dos Direitos do Homem qualificou como conflito armado não internacio-

nal, os confrontos verificados na província argentina de Tablada, em 1989, contrariando o entendimento do

governo argentino; e o problema da qualificação da operação lançada pelas forças armadas croatas contra a

localidade de Knin, em 1995, levou o Procurador do Tribunal Penal Internacional para a ex-Jugoslávia (TPIex-J) a

abrir um inquérito para determinar se o Tribunal deveria tomar posição sobre a questão (MOMTAZ, Djamchid,

“Le droit international humanitaire applicable aux conflits armés non internationaux”, in RCADI, vol. 292, 2001,

pp.66-68). 9 Itálicos nossos.

148

No que aos deveres do comandante se refere, deve dizer-se que os primeiros documen-

tos de DIH não continham normas que regulassem especificamente essa matéria, embora

das suas disposições decorram tais obrigações, uma vez que muitas das determinações delas

constantes deverão ser asseguradas pelos comandantes na condução das hostilidades.

Atualmente, podemos referir, de entre os principais textos do DIH, a I Convenção de

Genebra, cujo art. 45.º determina: “Cada Parte no conflito, por intermédio dos seus coman-

dantes em chefe, terá de assegurar a execução detalhada dos artigos precedentes, assim

como providenciar, nos casos não previstos, em conformidade com os princípios gerais da

presente Convenção”10, do que decorre, para os chefes militares, a obrigação de conhecer o

direito humanitário vigente e de o divulgar, assegurando-se de que os seus subordinados

têm perfeito conhecimento das obrigações que lhes incumbem, de modo a evitar a ocorrên-

cia de violações das mesmas. Além disso, de outras disposições depreendem-se obrigações a

cargo do comandante, embora ele não seja especificamente referido11.

Com a adoção do I Protocolo Adicional às Convenções de Genebra, passamos a ter uma

norma – o art. 87.º – que tem precisamente por epígrafe “Deveres dos comandantes”, cujo

teor é o seguinte:

“1 – As Altas Partes Contratantes e as Partes no conflito devem encarregar os comandan-

tes militares, no que respeita aos membros das forças armadas colocadas sob o seu coman-

do e às outras pessoas sob a sua autoridade, de impedir que sejam cometidas infrações às

Convenções e ao presente Protocolo e, se necessário, de as reprimir e denunciar às autori-

dades competentes.

2 – A fim de impedir que sejam cometidas infrações e de as reprimir, as Altas Partes Con-

tratantes e as Partes no conflito devem exigir que os comandantes, consoante o seu nível de

responsabilidade, se certifiquem de que os membros das forças armadas colocadas sob o

seu comando conheçam as suas obrigações nos termos das Convenções e do presente Pro-

tocolo.

3 – As Altas Partes Contratantes e as Partes do conflito devem exigir que qualquer

comandante, que tiver conhecimento de que subordinados seus ou outras pessoas sob a sua

10

Itálicos nossos. 11

Nesse sentido, Wallach e Marcus referem que as Convenções de Genebra criaram responsabilidades e

deveres específicos para os comandantes, invocando, a título de exemplo, o art. 5.º da III Convenção de Genebra

que, ao determinar que, em caso de dúvidas acerca da qualificação de um indivíduo capturado como prisioneiro

de guerra, o seu estatuto deve ser estabelecido por um tribunal competente, está a afirmar implicitamente que o

comandante deverá nomear um “tribunal competente” sempre que necessário, bem como a sua responsabilida-

de pelos crimes decorrentes de não o fazer (Cf. WALLACH, Evan/ MARCUS, Maxine, “Command Responsibility”, in

Cherif Bassiouni, International Criminal Law (3rd Ed., 2008), p. 8, disponível em

http://lawofwar.org/command_responsibility.htm).

149

autoridade vão cometer ou cometeram uma infração às Convenções ou ao presente Proto-

colo, tome as medidas necessárias para impedir tais violações às Convenções ou ao presente

Protocolo e que, oportunamente, tome a iniciativa de uma ação disciplinar ou penal contra

os autores das violações”.

A primeira questão que, a propósito dos deveres aqui inscritos, se pode colocar é a de

determinar o que deve entender-se por comandante, para este efeito, atendendo a que esse

conceito não é definido, neste preceito ou em qualquer outro do documento em que o

mesmo se insere. Para tanto, deve ter-se em contaque, nas Atas das Conferências Diplomá-

ticas, se especificou que “a palavra «comandantes» visa toda a pessoa que tenha responsa-

bilidades de comando, desde os comandantes superiores até aos chefes que têm apenas

alguns homens sob suas ordens”12. Além disso, não são abrangidos apenas superiores milita-

res, mas também civis (como ministros, presidentes de circunscrições regionais ou locais,

etc.); nem tão-pouco se exige que a relação em causa seja “necessariamente uma relação

hierárquica de jure. A responsabilidade de comando de facto é suficiente para acarretar a

responsabilidade do superior hierárquico”13. Portanto, o conceito é um conceito amplo, não

se cingindo à cadeia de comando militar, sendo mesmo independente de um vínculo jurídico

formal.

Na referida disposição, define-se a obrigação, a cargo dos comandantes, de prevenir e

reprimir infrações por parte daqueles que estão sob o seu comando14, devendo as partes no

conflito, que tenham conhecimento de que tais infrações vão ser cometidas, ou já se verifi-

caram, exigir que os comandantes atuem de forma a impedir que as mesmas se verifiquem,

ou instaurem um processo disciplinar, ou penal, contra as violações ocorridas, conforme os

12

DE PREUX, Jean, “Article 86”, Commentaire des Protocoles Additionnels…, cit., p. 1043, par. 3544. 13

HENCKAERTS, Jean-Marie/ DOWALD-BECK, Louise, Droit International Humanitaire Coutumier, vol. I, CICV,

Bruxelles: Bruylant, 2006, p. 741. 14

E, para este fim, apenas se tem em conta “o superior que tem uma responsabilidade pessoal em relação ao

perpetrador dos atos em causa porque este, sendo seu subordinado, está sob o seu controlo. A ligação direta

que deve existir entre o superior e o subordinado decorre visivelmente do “dever de agir” expresso no parágrafo

1 [do art. 86.º]. Por outro lado, normalmente apenas esse superior está em condições de ter informações que lhe

permitam concluir, nas circunstâncias do momento, que esse subordinado cometeu ou vai cometer uma infra-

ção. Não deve, todavia, concluir-se que (…) se visa apenas o comandante sob cujas ordens diretas o subordinado

está colocado. (…) O conceito de superior (…) deve ser encarado numa perspetiva hierárquica que englobe o

conceito de controlo” (DE PREUX, Jean, “Article 86”, Commentaire des Protocoles Additionnels…, cit., p. 1037, par.

3544). O referido n.º 1 do art. 86.º estabelece: “As Altas Partes Contratantes e as Partes no conflito devem

reprimir as infrações graves e tomar as medidas necessárias para fazer cessar quaisquer outras infrações às

Convenções ou ao presente Protocolo que resultem de uma omissão contrária ao dever de agir”.

150

casos. Em consequência, a falta de atuação do comandante nestas situações pode gerar a

sua responsabilidade15.

Por outro lado, é também seu dever assegurar-se de que aqueles que se encontram sob o

seu comando conhecem as suas obrigações, nos termos do Direito Internacional Humanitá-

rio, o que acarreta uma outra obrigação implícita: a de que o próprio comandante conheça

esse Direito e as obrigações que dele decorrem16. Aliás, o facto de se ser comandante impli-

ca deter um papel decisivo na condução das hostilidades, pelo que necessariamente há o

dever conhecer as regras que devem ser respeitadas no decurso das mesmas. Até porque,

no caso de o comandante emitir ordens manifestamente ilegais, poderá ver o(s) seu(s)

subordinado(s) recusar(em) licitamente cumpri-las17.

3. A responsabilidade do comandante

Sendo definidas aquelas obrigações a cargo do comandante, há que apurar em que ter-

mos ele pode ser responsabilizado pelo incumprimento das mesmas, nomeadamente da

obrigação de prevenir e reprimir violações do DIH pelos seus subordinados, ou eventual-

mente ser responsabilizado pela ocorrência dos crimes praticados pelos subordinados se,

verificadas certas circunstâncias, não os preveniu ou deixou de reprimir os seus autores.

Trata-se de uma questão complexa que poderemos tratar no espaço reservado a este texto,

pelo que dela nos limitaremos a dar breve nota.

15

Aliás, segundo afirmado pelo Tribunal Penal Internacional para a ex-Jugoslávia, “*q+uando um superior hie-

rárquico não cumpre o seu dever de prevenir o crime ou de punir o perpetrador, deveria ser punido com um

pena mais pesada do que o subordinado que cometeu o crime, uma vez que essa falha traduz uma certa tolerân-

cia ou mesmo uma aprovação do superior hierárquico à comissão de crimes pelos seus subordinados, pelo que

contribui para encorajar a comissão de novos crimes. Não seria, de facto, consistente punir um simples perpetra-

dor com uma pena igual ou superior à do comandante” (TPIex-J, Prosecutor v. TihomirBlaškid, Casen.º IT-95-14-T,

Judgment, 3 March 2000, par. 789). 16

Obrigação essa expressamente estabelecida no n.º 2 do art. 83.º do I PA, nos termos do qual “As autorida-

des militares ou civis que, em período de conflito armado, assumirem responsabilidades na aplicação das Con-

venções e do presente Protocolo deverão ter pleno conhecimento do texto destes instrumentos”. 17

Isto mesmo decorre do art 33.º, a contrario, do Estatuto do Tribunal Penal Internacional, que determina

que o facto de um crime ser cometido no cumprimento de uma decisão emanada de um governo ou de um

superior hierárquico, quer seja militar ou civil, apenas isenta de responsabilidade criminal o seu autor se estive-

rem reunidas as seguintes condições: a) quem praticou o crime estivesse obrigado por lei a obedecer a tal deci-

são; b) não tivesse conhecimento de que a decisão era ilegal; e c) a decisão não fosse manifestamente ilegal.

151

3.1. Referência sucinta à evolução histórica da doutrina da responsabilidade do

comandante

a) Até à Segunda Guerra Mundial

É usualmente referido pelos autores, como raiz remota da doutrina da responsabilidade

do comandante, a obra de Sun Tzu – A Arte da Guerra –, que data do séc. IV a.C., em que o

autor sustenta ser dever dos comandantes assegurar-se de que os seus subordinados agem

de acordo com um certo padrão de civilidade18.

Já em 1439, Carlos VII de Orléans emitiu uma ordem nos termos da qual se determinava

que cada capitão ou tenente seria responsável pelos abusos e ofensas cometidos pelos

membros da sua companhia, estabelecendo-se, a seu cargo, o dever de, logo que recebesse

qualquer queixa, levar o ofensor à justiça, com a seguinte cominação: “Se não o fizer ou

encobrir o ilícito, o capitão será considerado responsável como se o tivesse cometido ele

mesmo”19.

No mesmo século, o ano de 1474 é apontado como aquele em que foi constituído um

dos primeiros tribunais internacionais, que julgou Peter von Hagenbach, com fundamento

no “seu papel”, ao permitir/facilitar, sob sua jurisdição enquanto governador do Alto Reno, a

prática dos crimes de violação, tortura, homicídio e contrabando. Von Hagenbach defendeu-

-se com base no facto de os atos em causa terem sido praticados em cumprimento de

ordens superiores (no caso, emitidas pelo Duque de Burgundy) e, no julgamento, terá afir-

mado: “Não é sabido que os soldados devem absoluta obediência aos seus superiores?”.

Apesar da argumentação foi condenado – e decapitado –, com o fundamento de ter sido

provada prática de “crimes que ele tinha o dever de prevenir”20.

Apesar do desenvolvimento que se foi verificando quanto à determinação de comporta-

mentos proibidos no decurso das guerras, quer a nível interno – como aconteceu por via do

famoso Lieber Code21 –, quer a nível internacional, designadamente com as Convenções da

18 Nesse sentido, veja-se LEVINE, Eugenia, “Command Responsibility. The Mens Rea Requirement”, in Global

Policy Forum, February 2005. 19

Cf. WALLACH, Evan/ MARCUS, Maxine, “Command Responsibility”, cit., p. 1.

20 MARKHAM, Max, “The Evolution of Command Responsibility in International Human Rights Law”, in

Washington Undergraduate Law Review, Vol. V, Issue I, 2011, pp. 36-37.

21Como ficou conhecido o documento Instructions for the Government of Armies of the United States in the

Field, de 24 de abril de 1863. O seu art. 71.º dispunha: “Quem intencionalmente infligir ferimentos adicionais a

um inimigo já totalmente incapaz de combater, ou matar um inimigo nessas condições ou ordenar ou incitar

soldados a fazê-lo, deverá sofrer a morte, se devidamente condenado, quer pertença ao Exército dos Estados

Unidos, quer seja um inimigo capturado depois de ter cometido tais ilícitos”. Diga-se, aliás, que o Código de

Lieber, apesar de ser um regulamento interno, recolhe o direito consuetudinário da guerra terrestre da época,

152

Haia de 1899 e 1907, não foram definidos mecanismos para apuramento de responsabilida-

des por violações graves das normas que os proibiam. Mesmo no final da I Guerra Mundial,

se o Tratado de Versalhes previa a criação de um Tribunal para julgar o ex-Imperador ale-

mão22, a verdade é que o mesmo não chegou a ser constituído23 e foram esparsos os casos

de julgamento de generais alemães por crime de guerra graves, em tribunais internos24.

b) A responsabilidade do comandante no pós-Segunda Guerra Mundial

Diz-nos Jenny S. Martinez que a teoria moderna da responsabilidade criminal do superior

teve início nos julgamentos que se seguiram à Segunda Guerra Mundial, sendo todavia a sua

maior falha o facto de “expressarem uma variedade de visões inconsistentes acerca dos

elementos mentais exigidos para a responsabilização – infelizmente, por vezes na mesma

decisão”25.

Apesar de não haver qualquer previsão expressa acerca desta questão na Lei de Conselho

de Controlo n.º 10, ou na Carta do Tribunal Internacional Militar para o extremo Oriente,

houve, nos julgamentos de Nuremberga, uma responsabilização dos comandantes por atos

praticados pelos seus subordinados no cumprimento de ordens por si emitidas com vista à

“solução final”26; ou seja, eles não foram condenados pela omissão do cumprimento de um

tendo constituído o ponto de partida para a codificação do Direito Internacional Humanitário, uma vez que o seu

exemplo foi seguido por vários outros países que, nos anos subsequentes, aprovaram também normas na maté-

ria. Nesse sentido, URBINA, Julio Jorge, “Protección de las Víctimas de los Conflictos Armados, Naciones Unidas y

Derecho Internacional Humanitario”, Valencia: Ed. Tirant lo Blanch, 2000, pp. 51-52, n.º 28. 22

O art. 227.º deste tratado rezava assim: “As Potências Aliadas e Associadas acusam publicamente Guilher-

me II de Hohenzollern, ex-Imperador alemão, de ofensa suprema à moral internacional e à autoridade sagrada

dos tratados.

Um tribunal especial será constituído para julgar o acusado, assegurando-lhe as garantias essenciais do direi-

to de defesa. Será composto por cinco juízes, um indicado por cada uma das seguintes Potências: os Estados

Unidos da América, a Grã-Bretanha, a França, a Itália e o Japão.

Na sua decisão, o tribunal orientar-se-á pelos mais elevados padrões da política internacional, com vista a

demonstrar o valor das obrigações solenes dos compromissos internacionais e a validade da moral internacional.

Será seu dever fixar a pena que considerar que deve ser imposta.

As Potências Aliadas e Associadas dirigirão um pedido ao Governo da Holanda para que lhes entregueo ex-

Imperador com vista a que possa ser julgado”. 23

Devido à recusa, pela Holanda, de satisfazer o pedido, formulado nos termos da disposição referida, de

entrega do ex-Imperador. 24

Recorde-se que, na sequência do estipulado no art. 228.º do Tratado de Versalhes, foi estabelecido um Tri-

bunal em Leipzig para julgar os criminosos alemães. 25

MARTINEZ, Jenny S., “Understanding Mens Rea in Command Responsibility. From Yamashita to Blaškid and

Beyond”, in J. Int. Criminal Justice, vol. 5, 2007, pp. 647-648. 26

O que leva Cassese a estranhar o texto do Princípio VII dos Princípios de Nuremberga, afirmando: “É sur-

preendente que neste princípio se aluda unicamente à cumplicidade, sem mencionar outras formas de respon-

sabilidade como as de planificar ou ordenar tais crimes ou incitar à sua comissão; além disso, o princípio tão-

pouco inclui a responsabilidade por omissão (a chamada “responsabilidade de comando”)”. E essa estranheza

decorre precisamente do facto de que, pela adoção do referido documento, “a Assembleia Geral confirmou os

153

dever, mas antes nos termos do art. 1.º do Regulamento da Haia de 1907, que determina

que as forças armadas devem “ser chefiadas por uma pessoa responsável pelos seus subor-

dinados”27. Também nos casos julgados no Extremo Oriente a questão esteve presente, sen-

do o julgamento mais famoso, neste contexto, o que foi proferido no caso Yamashita28. Nes-

te caso, estavam em causa crimes praticados – nomeadamente nas Filipinas – por tropas sob

comando do General Tomoyuki Yamashita29, que foi condenado à morte por uma comissão

militar norte-americana, decisão que foi confirmada pela Supreme Court dos Estados Uni-

dos. Segundo Jenny S. Martinez, este caso “permanece uma das mais controvertidas aplica-

ções da doutrina responsabilidade de comando, tanto devido aos procedimentos questioná-

veis usados no seu julgamento como atendendo à ambiguidade dasconclusões da comissão

acerca da mens rea”30.

Apesar de ter sido testemunhado em tribunal “a sua aprovação da execução de centenas

de guerrilheiros suspeitos sem julgamento, e de outros milhares sem qualquer tipo de pro-

cesso justo”31, o que a acusação veio sustentar foi que Yamashita, “enquanto comandante

das forças armadas do Japão em Guerra com os Estados Unidos da América e seus aliados,

ilicitamente ignorou e foi incapaz de cumprir o seu dever, enquanto comandante, de contro-

lar as operações dos membros do seu comando, permitindo-lhes cometer atrocidades bru-

tais e outros crimes graves contra o povo dos Estados Unidos, e dos seus aliados e depen-

dências, particularmente das Filipinas; e ele (…), em consequência, violou as leis da guer-

ra”32.

princípios de direito internacional reconhecidos pelo Estatuto do Tribunal de Nuremberga e sentenças do dito

Tribunal” (CASSESE, Antonio, “Afirmación de los principios de derecho internacional reconocidos por el Estatuto

del Tribunal de Nuremberg”, disponível em http://untreaty.un.org/cod/avl/pdf/ha/ga_95-I/ga_95-I_s.pdf, pp. 7 e

1, respetivamente). O texto dos Princípios de Nuremberga pode ver-se em PEREIRA, Maria de Assunção do Vale,

Textos de Direito Internacional, Coimbra: Coimbra Editora, 2010, pp. 249-250. 27

Cf. DE PREUX, Jean, “Article 86”, Commentaire des Protocoles Additionnels…, cit., p. 1032, par. 3533. 28

Embora outros casos, à época, tivessem tido também importância na matéria em análise, como aconteceu

com o julgamento do caso The Hostages, do caso German High Command, do julgamento de Tóquio ou do julga-

mento do Almirante Toyoda.Acerca desses casos, veja-se MARTINEZ, Jenny S., “Understanding Mens Rea in

Command Responsibility. From Yamashita to Blaškid and Beyond”, cit., pp. 650-652. 29

Que incluíam graves violações do DIH – nomeadamente da Convenção de Genebra de 1929, sobre prisio-

neiros de guerra – que se traduziram no homicídio, bem como na execução da pena de morte de pessoas a quem

não fora garantido o processo previsto naquela Convenção. 30

MARTINEZ, Jenny S., “Understanding Mens Rea in Command Responsibility. From Yamashita to Blaškid and

Beyond”, cit., p. 648. Por seu lado, é também apontado o facto de alguma da prova admitida contra Yamashita

ser altamente questionável (nesse sentido, WALLACH, Evan/ MARCUS, Maxine, “Command Responsibility”, cit., p.

7). 31

WALLACH, Evan/ MARCUS, Maxine, “Command Responsibility”, cit., p. 7. 32

Yamashita v. Styer, Supreme Court, 4 February 1946, disponível em

http://www.icrc.org/ihlnat.nsf/46707c419d6bdfa24125673e00508145/1d4c8a391cc93c38c1256d1700575bb2!O

penDocument.

154

Todos os intervenientes na decisão do caso – a comissão militar e o Supreme Court

(incluindo as opiniões dissidentes juntas à sentença) – responderam favoravelmente à ques-

tão da admissibilidade da responsabilização dos comandantes por crimes cometidos pelos

seus subordinados no decurso dos conflitos. O grande problema que, neste caso, surgiu

referia-se ao elemento subjetivo do crime, atendendo a que, no decurso no julgamento, não

foi feita prova direta do conhecimento que Yamashita teve dos crimes em questão. No caso,

a Comissão concluiu: “(1) que uma série de atrocidades e outros crimes graves foram come-

tidos por membros das forças armadas japonesas” sob comando de Yamashita “contra o

povo dos Estados Unidos, seus aliados, e dependências (…); que não eram de natureza espo-

rádica, mas em muitos casos eram metodicamente supervisionados por oficiais japoneses e

sargentos”; (2) que durante o período em questão, Yamashita “não controlou eficazmente

as (…) *suas+ tropas, tal como as circunstâncias exigiam”. Segundo afirmado pela Comissão,

“(…) onde o assassinato e a violação, bem como ações viciosas e vingativas são ofensas

generalizadas, e não há uma tentativa séria do comandante para descobrir e controlar os

atos criminosos, esse comandante pode ser responsabilizado, mesmo criminalmente, pelos

atos ilícitos das suas tropas, dependendo da natureza e das circunstâncias que os

rodeiam”33.

Portanto, deste caso, como de outros então julgados, resultou que a responsabilidade

dos superiores podia ser estabelecida, quer provando o seu efetivo conhecimento dos cri-

mes cometidos pelos seus subordinados, quer inferindo esse conhecimento a partir do cará-

ter generalizado dos mesmos. Além disso, foi também sugerido que “mesmo na ausência de

prova do conhecimento efetivo, podia ser estabelecida uma falha culposa na obtenção de

informação acerca da conduta dos subordinados”34.

Nesta breve nota acerca da evolução histórica da responsabilidade do comandante, deve

ainda ser referido um outro caso, apesar de um pouco posterior: o do julgamento do Gene-

ral Koster, em conexão com o que ficou conhecido como o massacre de My Lai. No caso,

“uma companhia ou um pelotão de tropas dos Estados Unidos envolveram-se em crimes

generalizados e indiscriminados, incluindo o assassinato de vietnamitas desarmados, na

localidade de My Lai, no Vietname, a 16 de março de 1968. Koster era comandante da 23.ª

divisão de Infantaria, do Exército dos Estados Unidos, e foi julgado por alegadamente não ter

conduzido uma investigação rápida e adequada às ações de certos membros dessa divisão.

33

Yamashita v. Styer, Supreme Court, 4 February 1946, cit. 34

MARTINEZ, Jenny S., “Understanding Mens Rea in Command Responsibility. From Yamashita to Blaškid and

Beyond”, cit., p. 653.

155

Tendo sido deduzidas acusações criminais contra ele, em 1970, as mesmas foram retira-

das no ano seguinte, tendo-se optado pela imposição de sanções administrativas35, das quais

apresentou recurso.

Num memorando apresentado pelo Secretário da Defesa, era clarificado que Koster não

estava a ser responsabilizado pelos atos cometidos pelos seus subordinados, mas por não

ter investigado devidamente esses atos: “No meu entender, o General Koster, embora livre

de responsabilidade pessoal em relação aos assassinatos, é pessoalmente responsável pelo

caráter inadequado das investigações subsequentes, a despeito de quaisquer outras falhas

que possam ter sido atribuídas a seus subordinados”. E continuava: “Um comandante não é,

evidentemente, pessoalmente responsável por todos os atos criminosos dos seus subordi-

nados. Ao analisar o caso do General Koster, tenho também de excluir, como fundamento

para a ação administrativa, os atos ou omissões isolados dos subordinados. Mas um coman-

dante deve claramente ser responsabilizado por aqueles assuntos que ele sabe serem gra-

ves, e a respeito do qual ele assume encargo pessoal. Qualquer outra conclusão tornaria

essencialmente sem sentido e inaplicáveis os conceitos de responsabilidade de comando,

que acompanha altos cargos de autoridade”36.

3.2. O regime atual da responsabilidade dos comandantes

Atualmente, deve atender-se, nesta matéria, a uma norma constante do I Protocolo Adi-

cional às Convenções de Genebra – o art. 86.º, com a epígrafe “Omissões” –, que permite

que o comandante seja responsabilizado no caso de não cumprir as suas obrigações. O n.º 1,

antecipando o que está determinado no supra transcrito art. 87.º, n.º 1 – embora agora

distinguindo entre as infrações que são graves e as demais – determina: “As Altas Partes

Contratantes e as Partes no conflito devem reprimir as infrações graves e tomar as medidas

necessárias para fazer cessar quaisquer outras contrárias ao dever de agir”. Estamos, por-

tanto, face a ilícitos resultantes de inação quando há um dever jurídico de agir (omissões

contrárias ao dever de agir), e esses deveres de agir estão inscritos ao longo do Protocolo37.

35

Essas sanções foram: a determinação da revogação da sua nomeação temporária como major-general; ser

colocada, no seu registo pessoal militar, uma carta de censura; ser-lhe retirada a Medalha de Serviços Distintos

com que fora agraciado (cf. Koster v. United States, 231 CtCl. 301(1982), disponível em

http://lawofwar.org/koster_v__us.htm). 36

Ibid. 37

Veja-se a enumeração desses deveres em DE PREUX, Jean, “Article 86”, Commentaire des Protocoles Addi-

tionnels…, cit., pp. 1033-1034, pars. 35353 e 3536.

156

Por outro lado, a distinção que é feita entre as infrações graves38 e as demais leva a que, no

caso das primeiras, se estabeleça um dever de as reprimir39, enquanto nas segundas, se

estabeleça apenas o dever de as fazer cessar, cabendo a decisão de punir – criminal ou dis-

ciplinarmente – os seus autores à autoridade de que estes dependem40.

Por seu lado, o n.º 2 afirma claramente a possibilidade de responsabilização do coman-

dante (do superior, como se lê no texto) por atos ilícitos praticados pelos seus subordinados,

verificadas certas circunstâncias. Nesse sentido, é afirmado: “O facto de uma infração às

Convenções ou ao presente Protocolo ter sido cometida por um subordinado não isenta os

seus superiores da sua responsabilidade penal ou disciplinar, consoante o caso, se sabiam ou

possuíam informações que permitissem concluir, nas circunstâncias do momento, que aque-

le subordinado cometia ou ia cometer tal infração e não haviam tomado todas as medidas

praticamente possíveis, dentro dos seus poderes, para impedir ou reprimir essa infração”.

Em consequência, uma infração cometida por um subordinado pode também acarretar a

responsabilidade – disciplinar ou penal – do seu superior por omissão, posto que este sou-

besse ou pudesse concluir, a partir das informações que possuía (i.e., “se sabiam ou pos-

suíam informações que permitissem concluir, nas circunstâncias do momento”41) que

determinado subordinado cometia ou ia cometer tal infração e não tivesse tomado “todas

as medidas praticamente possíveis dentro dos seus poderes” para o impedir ou reprimir42. A

previsão da possibilidade de sanção para o comandante que não cumpra essa sua responsa-

bilidade visa garantir que os subordinados cumpram as suas obrigações, pelo que “o objeti-

38

Para efeitos de determinação das infrações graves, veja-se o art. 85.º do I PA. 39

“O que implica a obrigação de promulgar legislação que preveja sanções penais efetivas para os infratores”

(DE PREUX, Jean, “Article 86”, Commentaire des Protocoles Additionnels…, cit., p. 1034, par, 3538). 40

Cf. DE PREUX, Jean, “Article 86”, Commentaire des Protocoles Additionnels…, cit., p. 1035, par, 3539. 41

De acordo com o Tribunal Penal Internacional para o Ruanda, “o critério “possuíam informações que per-

mitissem concluir” não exige que o conhecimento efetivo, provado de modo direto ou indireto, seja estabeleci-

do. Também não exige que a Câmara de primeira instância fique convencida de que o acusado sabia efetivamen-

te que tinham sido cometidos crimes ou que estavam em vias de ser cometidos. Exige apenas que a Câmara fique

com a convicção de que o acusado dispunha de “certas informações gerais, de natureza a pô-lo de sobreaviso

contra possíveis atuações ilícitas dos seus subordinados” (TIPRuanda, Le Procureur c. Bagilishema, Motifs de

l’arrêt, affaire n° ICTR-95-1A-A, 3 de julho de 2002, par. 28). 42

Cf. n.º 2 do art. 86.º que, como referido, tem precisamente por epigrafe “Omissões”. No mesmo sentido se

orienta o art. 28.º do Estatuto do Tribunal Penal Internacional, que se refere à Responsabilidade dos chefes mili-

tares e outros superiores hierárquicos e, antes dele, os arts. 7.º, n.º 3, e 6.º, n.º 3, dos Estatutos dos Tribunais

Penais Internacionais para a ex-Jugoslávia e para o Ruanda, respetivamente. A consagração destas normas deve-

-se precisamente ao facto de haver consciência de que, frequentemente, crimes cometidos por militares de baixa

patente se devem ao facto de os superiores não terem cumprido o seu dever de os prevenir ou reprimir (cf.

WILLIAMSON, Jamie Allan,“Some considerations on command responsibility and criminal liability”, in IRRC, vol.

80, N.º 870, 2008, p. 306).

157

vo da responsabilidade de comando é o de assegurar um amplo cumprimento do direito

internacional humanitário”43.

Estes deveres de quem detém o comando, apesar de definidos de forma não tão explícita

no II Protocolo Adicional às Convenções de Genebra de 1977 (II PA) são também aplicáveis

no contexto dos conflitos armados não internacionais.

Das disposições referidas, aquela que suscita maiores problemas de interpretação na

doutrina é, sem dúvida, a constante do n.º 2 do art. 86.º do I Protocolo Adicional, mormente

acerca do que é exigível para a responsabilização criminal do comandante com base no

pressuposto de que possuíam informações que permitissem concluir que o subordinado

cometera ou ia cometer determinada infração (não se distinguindo entre infrações graves e

não graves); ou seja, a questão mais complexa que a interpretação desta norma suscita é a

da “dificuldade de estabelecer o caráter intencional (mens rea) de uma omissão, particular-

mente em caso de negligência”44.

A propósito, deve começar por referir-se que não parece haver total harmonização entre

os textos francês e inglês, no que respeita à parte que foi traduzida, na versão oficial portu-

guesa, como “ou possuíam informações que permitissem concluir”. Efetivamente, em fran-

cês surge-nos “oupossédaient des informations leur permettant de conclure”, enquanto, na

versão inglesa, se diz “or had information which should have enabled them to conclude”, ou

seja, qualquer coisa como possuíssem informações que lhes deviam permitir concluir, o que

atenua a relação necessária entre a verificação dos factos e a informação detida pelo

comandante45. No comentário que faz a esta disposição, Jean de Preux, reconhecendo a

existência de “uma divergência sensível entre as duas versões”, considera que “deve ser

dada prioridade à versão francesa, na interpretação da norma”, porque é aquela que, aten-

dendo aos objeto e fim do tratado melhor concilia as duas versões46, não deixando de reco-

nhecer que, no decurso da Conferência, foram suscitadas dificuldades quanto à determina-

43

Judge MOLOTO, Bakone Justice, “Command Responsibility in International Criminal Tribunals”, Berkeley J.

Int’l L. Publicist, vol. 3, 2009, p. 13. 44

Cf. DE PREUX, Jean, “Article 86”, Commentaire des Protocoles Additionnels…, cit., p. 1036, par, 3541. 45

Aliás, esta discrepância entre as duas versões já tem sido referida em julgamentos dos Tribunais ad hoc.

Assim, o Tribunal para a ex-Jugoslávia afirma que parece retirar-se uma divergência entre as versões inglesa e

francesa do art. 86.º, 2). “Enquanto a primeira «prevê informações que deveriam permitir-lhe concluir» («infor-

mation which should have enabled them to conclude»), a segunda indica «informações que lhe permitam con-

cluir» («information enabling them to conclude»)” (Caso Blaškid, IT-95-14-T, sentença da Primeira Câmara, de 3

de março de 2000, par. 326). 46

Cf. DE PREUX, Jean, “Article 86”, Commentaire des Protocoles Additionnels…, cit., pp. 1037-1038, par.

3545). E, recorde-se que, nos termos do art. 31.º, n.º 1, da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados

entre Estados, “Um tratado deve ser interpretado de boa-fé, de acordo com o sentido comum a atribuir aos

termos do tratado no seu contexto e à luz dos respetivos objeto e fim” (itálicos nossos).

158

ção da responsabilidade do superior, no caso de este não ter tomadas as devidas medidas,

se possuísse informações que permitissem concluir, nas circunstâncias do momento, que os

ilícitos iam ser cometidos47.

E porque, em matéria criminal, esta redação deixa bastantes dúvidas em relação ao ele-

mento subjetivo do crime, a doutrina da responsabilidade do comandante tem sofrido

algumas críticas, na medida em que “aparentemente permite que os comandantes sejam

punidos na ausência da consciência do crime, usualmente associada à culpabilidade

moral”48; ou, dito de outro modo, permite a sua punição mesmo sem se verificar o elemento

que a doutrina anglo-saxónica apelida de mens rea. Ora, isto faz acrescer um outro proble-

ma que já se podia intuir do que fomos referindo: a falta de harmonização dos requisitos do

crime na linguagem jurídico-penal anglo-saxónica e do direito continental.

Como explica Pedro Freitas: “a conceção tradicional de crime conduz à conclusão de que

existem, em regra, dois elementos mutuamente implicativos: actus reus e mens rea. O pri-

meiro desses elementos constitutivos de um crime, o actus reus, compõe-se dos elementos

externos: a ação ou omissão, o evento, a consequência ou estado de coisas. O mens rea, por

seu turno, constrói-se dos elementos mentais ou intrínsecos ao agente. Torna-se evidente

então que, para que se possa imputar ao agente a prática de um crime, se deva provar (a) a

realização de um estado de coisas juridicamente desaprovado e (b) a atitude interna rela-

cionada com essa mesma realização. A este propósito, é comummente citada pela doutrina

e jurisprudência inglesas a máxima latina actus non facit reum nisi mens sit rea49 como signi-

ficativa da exigência de um princípio de coincidência, rectius, congruência entre o actus reus

e mens rea. Regra básica da punição do agente pela realização de um tipo de crime é, pois, a

presença simultânea e coincidente do conjunto de elementos objetivos ou externos que

conformam o actus reus e o mens rea aeles correspondente. Dito de outro modo, [t]he actus

reus amounts to a crime only when it is accompanied by the appropriate mens rea”50.

Percebe-se, por isso, que os problemas relativos à responsabilidade do comandante se

compliquem quando não se trata de exigir um efetivo conhecimento da situação, mas se

passa para o domínio do “deveria ter tido conhecimento”. E este problema é fortemente

47

Cf. DE PREUX, Jean, “Article 86”, Commentaire des Protocoles Additionnels…, cit., p. 1037, par. 3545. 48

MARTINEZ, Jenny S., “Understanding Mens Rea in Command Responsibility. From Yamashita to Blaškid and

Beyond”, cit., p. 639. 49

Habitualmente traduzida como “An act does not make a man guilty of a crime, unless his mind be also

guilty”. 50

FREITAS, Pedro Miguel Fernandes, O contempt of court inglês como limitação do princípio da publicidade

no processo penal. Contributos possíveis para o direito português, tese de mestrado (inédita), Universidade do

Minho, 2010, pp. 75-76.

159

agravado pelo uso de uma linguagem nem sempre uniforme – ou que, sendo uniforme, nem

sempre usa os termos num sentido unívoco – por parte das normas de direito interno, da

jurisprudência interna e da doutrina, no que se refere a aspetos como a consciência da ilici-

tude, o grau do risco, etc., o que obviamente não deixa de ter implicações no plano interna-

cional51. A verdade é que, no que se refere ao elemento subjetivo ou mental do crime, não

há sequer conceitos ou linguagem integralmente equivalentes entre a doutrina e as normas

anglo-saxónicas e da Europa continental. Ou seja, o referido mens rea não corresponde às

formas de culpa (dolo – direto, necessário ou eventual52 – ou negligência) do direito conti-

nental. Ora, este aspeto torna-se particularmente grave se tivermos em conta que as línguas

de trabalho dos tribunais penais internacionais são o francês e o inglês53.

3.3. A prática dos tribunais internacionais ad hoc em matéria de responsabilida-

dedo comandante

De acordo com os arts. 7.º, n.º 3, e 6.º, n.º 3, dos Estatutos do Tribunal Penal Internacio-

nal para a ex-Jugoslávia e do Tribunal Penal Internacional para o Ruanda, respetivamente,

“*o+ facto de um dos atos referidos nos arts. 2.º a 5.º [ou 2.º a 4.º54], do presente Estatuto

ter sido cometido por um subordinado não isenta o seu superior da sua responsabilidade

penal, se sabia ou tinha motivos para saber que o subordinado se preparava para cometer

tal ato ou já o tinha cometido e não tiver tomado as medidas necessárias e razoáveis para

impedir que o referido ato fosse cometido ou para punir os seus autores”. Também aqui não

se define o patamar necessário para responsabilizar o superior por inação, no caso de essa

responsabilização se fundar no pressuposto de que o mesmo tinha motivos para saber que o

subordinado ia cometer ou já cometera um crime.

Obviamente, para além destes casos, o comandante pode sempre – como qualquer outro

indivíduo – ser responsabilizado pelos seus atos se tiver “(…) planeado, instigado, ordenado,

51 Sobre este aspeto, veja-se MARTINEZ, Jenny S., “Understanding Mens Rea in Command Responsibility.

From Yamashita to Blaškid and Beyond”, cit., pp. 643-647. 52

Sendo que este último não tem qualquer correspondência no direito anglo-saxónico. 53

Cf. arts. 33.º, 31.º e 50.º, n.º 2, dos Estatutos do Tribunal Penal Internacional para o Ruanda, do Tribunal

Penal Internacional para e ex-Jugoslávia, e do Tribunal Penal Internacional, respetivamente. Jenny Martinez

exemplifica os referidos problemas com uma sentença proferida pelo Tribunal Penal para a ex-Jugoslávia, em que

le dol éventuel que surge na versão francesa é traduzido por ‘recklessness’, pelo menos uma vez, e por ‘negligen-

ce’, numa outra, na versão oficial inglesa (cf. MARTINEZ, Jenny S., “Understanding Mens Rea in Command Res-

ponsibility. From Yamashita to Blaškid and Beyond”, cit., p. 658). 54

Conforme se trate do Estatuto do Tribunal para a ex-Jugoslávia (fora de parêntesis) ou do Estatuto do Tri-

bunal para o Ruanda (entre parêntesis).

160

cometido ou, por qualquer outra forma, tiver ajudado e encorajado a planear, preparar ou

executar um dos crimes da competência (…)” desses Tribunais55.

O Tribunal Penal Internacional para o Ruanda, logo no primeiro caso que julgou56, explici-

tou: “Para as formas de participação previstas no art. 6.º, n.º 1, o seu autor não pode ser

criminalmente responsável se não tiver agido com conhecimento de causa, mesmo no caso

em que teria o dever de ter esse conhecimento. Esta é uma grande diferença em relação ao

art. 6.º, n.º 3 (…). O art. 6.º, n.º 3, não exige necessariamente que o superior tenha sabido

para que a sua responsabilidade criminal seja estabelecida; basta que tenha tido motivos

para saber que os seus subordinados se preparavam para cometer um crime ou o tinham

cometido, sem que ele tivesse tomado as medidas necessárias ou razoáveis para impedir

que o referido ato fosse cometido ou para punir os seus autores”57. No caso, o Tribunal con-

denou Akayesu – que fora burgomestre de Taba, de abril de 1993 a junho de 1994, tendo a

seu cargo funções executivas e de manutenção da ordem pública – a prisão perpétua, com

fundamentono art. 6.º, n.º 1.

A Câmara sustentou “que o acusado tinha motivos para saber e sabia efetivamente que

eram cometidos atos de violência sexual no interior ou próximo dos locais do bureau comu-

nal e não tom[ou] qualquer medida para impedir que esses atos fossem cometidos ou para

punir os seus autores”. Todavia, “apesar de terem sido produzidos elementos de prova que

autorizam concluir que existia uma relação de superior hierárquico/subordinado entre o

acusado e as Interahamwe que se encontravam no bureau comunal, a Câmara nota que não

houve qualquer alegação, no Ato de Acusação, de que os Interahamwe, chamados “milícias

locais armadas” fossem subordinados do acusado, pelo que não o vai julgar à luz do art. 6.º,

n.º 3, do Estatuto. Portanto, apesar de reconhecer que ele atuava como comandante, no

sentido dado ao termo nas Conferências que conduziram à aprovação do I Protocolo Adicio-

nal (isto é, sem a exigência de que se tratasse de um comandante militar), não foi pela sua

omissão enquanto tal que ele foi condenado, mas por ter ordenado, cometido ou, por qual-

55

Cf. arts. 7.º e 6.º dos Estatutos do Tribunal Penal Internacional para a ex-Jugoslávia e do Tribunal Penal

Internacional para o Ruanda, respetivamente. 56

Caso Prosecutor v. Akayesu (Caso ICTR-96-4-T, Sentença da Câmara de Primeira Instância, proferida a 2 de

setembro de 1998). 57

Caso ICTR-96-4-T, Sentença da 1.ª Câmara, par. 479. Recorde-se que o n.º 1 do art. 6.º do Estatuto do Tri-

bunal Penal Internacional para o Ruanda dispõe: “Quem tiver planeado, instigado, ordenado, cometido ou, por

qualquer outra forma, tiver ajudado e encorajado a planear, preparar ou executar um dos crimes referidos nos

arts. 2.º a 4.º do presente Estatuto, é considerado individualmente responsável por esse crime”; e ainda o teor

do referido n.º 3 da mesma disposição.

161

quer outra forma, ajudado e encorajado a prática de crimes, mormente de natureza

sexual58.

No que se refere ao Tribunal Penal Internacional para a ex-Jugoslávia, o primeiro caso em

que foi tratada a matéria da responsabilidade do superior – e, portanto, esteve em causa

aplicação do art. 7.º, n.º 3, do respetivo Estatuto – foi o caso Delalid (et al.), muitas vezes

designado como caso “Čelebidi Camp”, uma vez que os arguidos foram julgados por factos

que tiveram lugar nesse campo. A Câmara de Primeira Instância debruçou-se sobre a ques-

tão da existência do vínculo de subordinação59. Para tanto, começou por especificar o que

devia entender-se por “superior”, sendo certo que, tal como referimos constar da anotação

ao art. 86.º do I Protocolo Adicional às Convenções de Genebra, considera que o termo não

engloba apenas superiores hierárquicos militares, mas também civis (“a responsabilidade do

superior hierárquico prevista no art. 7.º, n.º 3, não se aplica apenas aos chefes militares,

mas também a toda a pessoa civil investida de uma autoridade hierárquica”60), assim como

não se limita a superiores de jure, antes abrangendo também superiores de facto61.

Quanto à questão, mais complexa, do estabelecimento da mens rea, também este julga-

mento foi importante. Por um lado, foi sustentado que o facto de não existirem provas dire-

tas de que o superior tinha conhecimento das infrações cometidas pelos seus subordinados

não conduz a que se deva presumir esse conhecimento, que deverá ser estabelecido com

recurso a provas circunstanciais, de que enumera vários indícios62.

58 Havendo testemunhos de que ele esteve algumas vezes presente, assistindo à violação de mulheres tutsis,

no Centro Cultural para onde eram levadas para o efeito, tendo numa dessas vezes dito em voz alta, dirigindo-se

aos Interahamwe: “nunca mais me perguntem qual o sabor de uma mulher tutsi” e “amanhã elas serão mortas”,

o que veio a acontecer à maioria delas. Acerca do julgamento de Akayesu por crimes de violência sexual – em

particular, pelo crime de violação –, veja-se PEREIRA, Maria de Assunção do Vale, “Algumas considerações acerca

da proteção da mulher no Direito Internacional Humanitário”, in Estudos em Comemoração do Décimo Aniversá-

rio da Licenciatura em Direito da Universidade do Minho, Coimbra: Almedina, 2003, pp. 572-583. 59

Como afirmou, tratou de “examinar o elemento que está no centro do conceito de responsabilidade do

superior hierárquico por omissão, a saber, o vínculo de subordinação” (Caso “Čelebidi Camp”,IT-96-21, sentença

de 16 de novembro de 1998, par. 364). 60

Caso “Čelebidi Camp”,IT-96-21, sentença de 16 de novembro de 1998, par. 363. 61

Segundo afirma, “para que o princípio da responsabilidade do superior hierárquico seja aplicável, é neces-

sário que o superior controle efetivamente as pessoas que violam o direito Internacional humanitário ou, dito de

outro modo, que tenha a capacidade de prevenir e de sancionar essas violações. Entendendo-se que tanto pode

tratar-se de um poder de facto como de um poder de jure (…), a doutrina da responsabilidade do superior hie-

rárquico só pode estender-se aos superiores civis na medida em eles tenham o mesmo controlo sobre os seus

subordinados que têm os chefes militares” (Caso “Čelebidi Camp”,IT-96-21, sentença de 16 de novembro de

1998, par. 378). 62

Caso “Čelebidi Camp”,IT-96-21, sentença de 16 de novembro de 1998, par. 386. Os indícios referidos eram

inter alia o número, o tipo ou alcance dos atos ilegais ou o seu caráter generalizado; o pessoal implicado ou local

em que se encontrava o comandante quando os mesmos ocorreram. Refira-se, por outro lado, que, para sua

salvaguarda, o comandante, ainda que dê ordens verbais, deve providenciar para que as mesmas sejam transcri-

tas, o que lhe permitirá provar designadamente que atuou com vista a evitar a comissão de um ilícito.

162

Quanto à problemática questão da interpretação da expressão tinha motivos para saber,

o Tribunal começa por afirmar não haver dúvidas de que um superior pode ser criminalmen-

te responsabilizado por incumprir gravemente os seus deveres se “ignora as informações

que tem efetivamente em sua posse e que o deviam levar à conclusão” de que esses atos

haviam sido cometidos ou estavam na iminência de o ser, para depois concluir: “Em contra-

partida, a incerteza permanece quando, por falta de ter supervisionado corretamente os

seus subordinados, o superior não dispõe dessas informações”63, revelando que a questão

continua longe de estar esclarecida. Depois de um brevíssimo périplo pela jurisprudência

pós-Segunda Guerra Mundial, afirma ter de se preocupar com a determinação do direito

costumeiro vigente à data da prática dos factos, fazendo uma análise do I Protocolo Adicio-

nal e das negociações que conduziram à sua aprovação. Socorrendo-se das regras da her-

menêutica, conclui que, para que um superior possa ser considerado criminalmente respon-

sável nesse caso, teria de ter “à sua disposição informações particulares que o advertissem

das infrações cometidas pelos seus subordinados. Essas informações não têm de ser neces-

sariamente tais que, por elas próprias, sejam suficientes para concluir pela existência de tais

crimes. É suficiente que o superior seja levado a pedir um complemento de informação ou,

por outras palavras, que lhe tenha parecido necessário realizar inquéritos complementares

para verificar se os subordinados cometiam ou se preparavam para cometer infrações”64.

No caso, entende que não tinha sido feita prova de que Delalid fosse superior do coman-

dante do campo onde decorreram os crimes em causa65. Tendo este caso sido reapreciado

pela Câmara de Apelação, ela corroborou, em larga medida, as conclusões da Câmara de

Primeira Instância, afirmando que “*o+ superior só pode ser responsabilizado pelos atos dos

seus subordinados se for demonstrado que ele “sabia ou tinha motivos para saber” deles. A

Câmara de Apelação não descreveria a responsabilidade do superior como uma doutrina de

responsabilidade vicária, na medida em que responsabilidade vicária pode sugerir uma for-

ma de imputação estrita da responsabilidade”66. Rejeita, portanto, o entendimento susten-

tado pela acusação segundo o qual a expressão “tinha motivos para saber” cobria, não só a

hipótese de o superior dispor de informações, que lhe indicavam ou o levavam a pensar que

63

Caso “Čelebidi Camp”,IT-96-21, sentença de 16 de novembro de 1998, par. 387. 64

Caso “Čelebidi Camp”, IT-96-21, sentença de 16 de novembro de 1998, par. 393. 65

Segundo afirmou: “a acusação não conseguiu provar este elemento, quer por meio de provas escritas, de

jure, quer pela atitude de facto de Delalid em todas as relações com o campo de detenção de Čelebidi” e os seus

guardas. Não conseguiu estabelecer esta ancoragem da responsabilidade do superior hierárquico em relação aos

atos dos seus subordinados, cassus cadit” (Caso “Čelebidi Camp”, IT-96-21, sentença de 16 de novembro de 1998,

par. 720). 66

Caso “Čelebidi Camp”, IT-96-21, sentença da Câmara de Apelação, de 20 de fevereiro de 2001, par. 239.

163

os seus subordinados tinham cometido crimes ou se preparavam para o fazer, como tam-

bém a hipótese de “esse mesmo superior não dispor dessas informações em virtude de uma

falha grave do seu dever de obter as informações gerais que lhe eram razoavelmente acessí-

veis”67, considerando que “o facto de se abster de se informar não surge nesse artigo *art.

7.º, n.º 3, do Estatuto+ como uma infração distinta. (…) A questão aqui não deve ser a de o

conhecimento poder ser presumido se a pessoa não cumprir o seu dever de obter as infor-

mações relevantessobre um crime, mas de presumir que ela tem os meios de saber e que

deliberadamente se absteve de os usar”68. Reconhecendo que o facto de um comandante

não estar constantemente informado dos comportamentos dos seus subordinados ou de

não implementar um sistema de controlo, possa constituir um incumprimento dos seus

deveres, suscetível de acarretar responsabilidade disciplinar, considera que tal não implica

necessariamente responsabilidade penal, sob pena de se chegar próximo da sua responsabi-

lidade penal por negligência (responsabilité [pénale] sans faute ou pour négligence, na ver-

são francesa; criminal liability on a strict or negligence basis, na versão inglesa)69.

Entretanto, a 3 de março de 2000 (ou seja, em momento em que já fora proferida a sen-

tença da Câmara de Primeira Instância, mas ainda não a da Câmara de Apelação, no caso

que acabámos de referir), o mesmo Tribunal Penal Internacional para a ex-Jugoslávia apre-

ciou um novo caso em que estava em causa a responsabilidade do comandante, cujas con-

clusões foram bem mais polémicas. Referimo-nos ao caso Blaškid. O General Tihomir Blaškid

havia sido nomeado, a 27 de junho de 1992, comandante do quartel-general das forças

armadas do HVO (forças armadas do Conselho de defesa croata), na Bósnia central. No caso,

a acusação prendia-se com violações graves das Convenções de Genebra de 1949, bem

como das leis e costumes de guerra, praticadas contra muçulmanos da Bósnia, por membros

das HVO, entre maio de 1992 e janeiro de 199470. Blaškid era acusado, nos termos do art.

7.º, n.º 1, do Estatuto “de ter, em concertação com membros do HVO, planificado, incitado à

comissão, ordenado ou por outra forma ajudado ou encorajado a planear, preparar ou exe-

cutar cada umdos crimes alegados; além disso, ou em alternativa, Tihomir Blaškid era tam-

bém acusado, em virtude do art. 7.º, n.º 3, do Estatuto, de ter sabido ou ter tido motivos

para saber que seus subordinados se preparavam para cometer esses crimes ou o tinham

67

Cf. Caso “Čelebidi Camp”, IT-96-21, sentença da Câmara de Apelação, de 20 de fevereiro de 2001, par. 224. 68

Cf. Caso “Čelebidi Camp”, IT-96-21, sentença da Câmara de Apelação, de 20 de fevereiro de 2001, par. 226. 69

Cf. Caso “Čelebidi Camp”, IT-96-21, sentença da Câmara de Apelação, de 20 de fevereiro de 2001, par. 226. 70

Cf. Caso Blaškid, IT-95-14-T, sentença da Primeira Câmara, de 3 de março de 2000, par. 7.

164

feito sem que ele houvesse tomado as medidas necessárias e razoáveis para impedir que a

comissão dos referidos crimes ou para punir os seus autores”71.

Acerca do aspeto mais problemático da interpretação das normas em causa, ou seja, do

sentido a dar à expressão tinha motivos para saber, constante do art. 7.º, n.º 3, do Estatuto,

a Câmara de Primeira Instância chega a uma conclusão diferente da apurada no caso Delalid.

Faz uma análise da jurisprudência surgida na sequência da Segunda Guerra Mundial, con-

cluindo que, após esse conflito, “foi estabelecido um padrão, de acordo com o qual um

comandante pode ser responsável pelos crimes dos seus subordinados «se não pôs em fun-

cionamento os meios de que dispunha para se manter informado da infração e se, nas cir-

cunstâncias, devia ter tido conhecimento dessa infração, a sua ignorância constitui uma

infração criminal»”72.

E, a verdade é que, nesta decisão, são várias as afirmações contestáveis ou proble-

máticas. Assim, em relação aos crimes ocorridos em três povoações do município de Vitez, a

Câmara do Tribunal conclui que “o general Blaškid é responsável pelos crimes cometidos

nessas três povoações com base no dolo eventual [dol éventuel/negligence], ou, noutros

termos, por ter ordenado ações que apenas razoavelmente podia ter previsto que conduzi-

riam a crimes”73. Por outro lado, em mais do que uma ocasião, o Tribunal não conclui defini-

tivamente acerca do conhecimento efetivo de Blaškid dos crimes cometidos pelos seus

subordinados, deixando no ar uma hipótese alternativa, como acontece quando se lê, a pro-

pósito de maus-tratos infligidos a prisioneiros civis: “A Câmara conclui, portanto, que o

general Blaškid tinha conhecimento das circunstâncias e das condições de detenção dos

muçulmanos (…). De todo o modo, o general Blaškid não atuou com a diligência razoável no

cumprimento dos seus deveres”74. Portanto, qual é o seu ilícito: teve conhecimento das

condições de detenção e não agiu? Ou não exerceu os seus deveres de controlo sobre os

seus subordinados?

Além disso, o Tribunal “não fez qualquer tentativa de distinguir amens rea [de Blaškid+ em

relação aos diferentes elementos dos crimes”75.

Estas razões levaram a que a sentença em causa fosse objeto de fortes críticas, não só

por parte da doutrina, mas fundamentalmente pela defesa de Blaškid, no recurso que inter-

pôs para a Câmara de Apelação. E, efetivamente, em sede de recurso, o Tribunal veio afastar

71 Caso Blaškid, IT-95-14-T, sentença da Primeira Câmara, de 3 de março de 2000, par. 322.

72 Caso Blaškid, IT-95-14-T, sentença da Primeira Câmara, de 3 de março de 2000, par. 322.

73 Caso Blaškid, IT-95-14-T, sentença da Primeira Câmara, de 3 de março de 2000, par. 562 (itálicos nossos).

74 Caso Blaškid, IT-95-14-T, sentença da Primeira Câmara, de 3 de março de 2000, par. 733 (itálicos nossos).

75 MARTINEZ, Jenny S., “Understanding Mens Rea in Command Responsibility. From Yamashita to Blaškid and

Beyond”, cit., p. 657.

165

as conclusões a que chegara a Câmara de Primeira Instância, seguindo a interpretação da

expressão tinha motivos para saber feita no caso Delalid76.

Posteriormente, no casoHalilovid, o Tribunal de Primeira Instância veio esclarecer que o

seu entendimento era ode que “nos termos do art. 7.º, n.º 3, a responsabilidade de coman-

do é responsabilidade por uma omissão. O comandante é responsável por deixar de cumprir

um ato exigido pelo Direito Internacional. Esta omissão é culpável porque o Direito Interna-

cional impõe um dever afirmativo aos superiores de prevenir e punir os crimes cometidos

pelos seus subordinados. Portanto, “pelos atos dos seus subordinados”, como é geralmente

referido na jurisprudência do Tribunal não significa que o comandante partilhe a mesma

responsabilidade que o subordinado que cometeu o crime, mas antes que, por causa dos

crimes cometidos pelos seus subordinados, o comandante deve assumir a responsabilidade

por não ter agido”77.

Tomando por base a análise que faz da jurisprudência destes Tribunais, Jenny Martinez

conclui: “Apesar de tudo, mesmo depois de anos de desenvolvimentos ponderados de

outros aspetos da doutrina, a ambígua articulação da exigência da mens rea feita pela Câma-

ra de Apelação no caso Delalid ainda permanece definitiva nos tribunais ad hoc”78.

3.4. A afirmação da responsabilidade do comandante no Estatuto de Roma do

Tribunal Penal Internacional

A possibilidade de responsabilização dos comandantes foi reafirmada com a adoção do

Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, cujo art. 28.º, com a epígrafe Responsabi-

lidade dos chefes militares e outros superiores hierárquicos, reza assim:

“Para além de outras fontes de responsabilidade criminal previstas no presente Estatuto,

por crimes da competência do Tribunal:

a) O chefe militar, ou a pessoa que atue efetivamente como chefe militar, será criminal-

mente responsável por crimes da competência do Tribunal que tenham sido cometidos por

forças sob o seu comando e controlo efetivos ou sob a sua autoridade e controlo efetivos,

76

Como se lê no acórdão então proferido, referindo-se ao entendimento adotado no caso Delalid: “não há

razão para a Câmara de Apelação se afastar dessa posição. A interpretação do standard [feita pela Câmara de

Primeira Instância] não é consistente com a jurisprudência da Camara de Apelação. Neste aspeto, tem de ser

corrigida em conformidade” (Caso Blaškid, IT-95-14-A, sentença da Câmara de Apelação, de 29 de julho de 2004,

par. 62). 77

Caso Prosecutor v. Sefer Halilovid, sentença da Primeira Câmara, de 16 de novembro de 2005, par. 54. 78

MARTINEZ, Jenny S., “Understanding Mens Rea in Command Responsibility. From Yamashita to Blaškid and

Beyond”, cit., p. 659.

166

conforme o caso, pelo facto de não exercer um controlo apropriado sobre essas forças,

quando:

i) Esse chefe militar ou essa pessoa tinha conhecimento ou, em virtude das circunstâncias

do momento, deveria ter tido conhecimento de que essas forças estavam a cometer ou pre-

paravam-se para cometer esses crimes; e

ii) Esse chefe militar ou essa pessoa não tenha adotado todas as medidas necessárias e

adequadas ao seu alcance para prevenir ou reprimir a sua prática ou para levar o assunto ao

conhecimento das autoridades competentes, para efeitos de inquérito e procedimento cri-

minal;

b) Nas relações entre superiores hierárquicos e subordinados, não referidos na alínea a),

o superior hierárquico será criminalmente responsável pelos crimes da competência do Tri-

bunal que tiverem sido cometidos por subordinados sob a sua autoridade e controlo efeti-

vos, pelo facto de não ter exercido um controlo apropriado sobre esses subordinados, quan-

do:

i) O superior hierárquico teve conhecimento ou não teve em consideração a informação

que indicava claramente que os subordinados estavam a cometer ou se preparavam para

cometer esses crimes;

ii) Esses crimes estavam relacionados com atividades sob a sua responsabilidade e con-

trolo efetivos; e

iii) O superior hierárquico não adotou todas as medidas necessárias e adequadas ao seu

alcance para prevenir ou reprimir a sua prática ou para levar o assunto ao conhecimento das

autoridades competentes, para efeitos de inquérito e procedimento criminal”79.

Como decorre, nesta norma englobam-se tanto os comandantes militares como outros

superiores hierárquicos, tratando-se em termos praticamente idênticos a possibilidade da

sua responsabilização por atos cometidos pelos seus subordinados, embora se denote uma

maior exigência quanto aos chefes militares80.

79 Em consonância, no Código de Justiça Militar português, o art 48.º, com a epígrafeResponsabilidade do

superior, estabelece: “O superior hierárquico que, tendo, ou devendo ter, conhecimento de que um subordinado

está cometendo ou se prepara para cometer qualquer dos crimes previstos no presente capítulo, não adote as

medidas necessárias e adequadas para prevenir ou reprimir a sua prática ou para a levar ao conhecimento ime-

diato das autoridades competentes é punido com a pena correspondente ao crime ou crimes que vierem efeti-

vamente a ser cometidos”. 80

Efetivamente, quanto a estes não é exigível, para que possa ser responsabilizado, que tivesse em seu poder

informação que indicasse claramente que os subordinados estavam ou se preparavam para cometer crimes da

competência do Tribunal, sendo suficiente, neste aspeto, que, em virtude das circunstâncias do momento,

devesse ter tido conhecimento de que forças sob seu comando estavam a cometer ou se preparavam para come-

ter tais crimes.

167

Deste conjunto normativo resulta a possibilidade de o superior hierárquico ser responsa-

bilizado não só pelos atos que diretamente cometeu, como ainda pelo facto de não ter

cumprido o seu dever na prevenção/punição dos crimes cometidos pelos seus subalternos.

No primeiro caso, integram-se não só os casos em que o comandante – como acontece

com qualquer indivíduo – comete materialmente o crime, mas outros casos de responsabili-

dade criminal previstos no art. 25.º do Estatuto do Tribunal Penal Internacional, como se

verifica inter alia quando se comete o crime por intermédio de outrem; no caso em que

ordena, provoca ou instiga sua à prática; no caso de ser cúmplice ou encobridor, ou de outro

modo colaborar na prática ou na tentativa de prática do crime; se contribuir de alguma

outra forma para a prática ou tentativa de prática do crime desde que reunidos os requisitos

da alínea d) do n.º 3 deste artigo; no caso da tentativa, verificadas as condições previstas na

alínea f) da mesma disposição81.

Estamos, portanto, face a atuações que exigem um comportamento positivo do indivíduo

no que, em última análise, se pode considerar um desenvolvimento do princípio VII dos

Princípios de Nuremberga, que se refere à cumplicidade como forma de crime.

4. Conclusão

Resulta do que afirmámos que o princípio da responsabilidade de comando esta inques-

tionavelmente afirmada quer nos textos jurídicos pertinentes, quer na jurisprudência dos

tribunais internacionais. Portanto, revela-se incontornável a possibilidade de o superior hie-

rárquico ser responsabilizado em virtude de crimes cometidos pelos subalternos, se não

cumpriu os seus deveres de os impedir ou reprimir82.

Apesar disso, a controvérsia mantém-se acerca do que deva entender-se pela expressão

possuíam informações que permitissem concluir (que os seus subordinados haviam cometido

um crime ou se preparavam para o fazer) como condição de responsabilidade do comandan-

te, em torno da qual se revela necessária uma clarificação. Veremos se a jurisprudência que

o Tribunal Penal Internacional venha a produzir na matéria ajuda a esclarecer as dúvidas que

persistem...

81

Para além destes casos, há ainda responsabilidade criminal pela comissão do crime de genocídio pelo inci-

tamento direto e público à sua prática. 82

Nesse sentido, tenha-se em conta que, tendo o CICV apresentado uma proposta consagrando essa regra à

Conferência diplomática que aprovou o I PA, a mesma não suscitou oposição de fundo, com uma única exceção

(cf. DE PREUX, Jean, “Article 86”, Commentaire des Protocoles Additionnels…, cit., p. 1030, par. 3526).

Posição, funções e responsabilidade democrática do

Ministério Público no modelo processual penal

português – algumas considerações

Mário Ferreira Monte

Margarida Santos

I. Enquadramento

Tendo como pano de fundo o tema da “Responsabilidade e Cidadania”, e revisitando um

tema por nós já aflorado1, é nosso propósito tecer algumas considerações acerca das fun-

ções do Ministério Público (MP) no quadro de uma sociedade democrática.

Na verdade, independentemente das diferenças estruturantes de modelo existente, o

MP tem adquirido uma importância crescente no “concerto dos sistemas judiciários”2. Está,

pois, em cena um sujeito com uma pluralidade de funções, “umas vezes novas, outras vezes

reconstruídas, mas invariavelmente repletas de plasticidade e, cada vez mais, impostas pela

reestruturação do Estado e pela complexidade social”3.

Na verdade, é necessário que os sujeitos processuais – em especial, para o que ora nos

interessa, o MP – se adequem aos novos ventos de exigência de uma justiça célere, eficaz e

eficiente4.

1 Sobre a função constitucional e poderes do Ministério Público no processo penal, na fase de inquérito, vd.

SANTOS, Margarida, A determinação do segredo de justiça na relação entre o Ministério Público e o Juiz de Ins-

trução Criminal – (in)compatibilidade com a estrutura do processo penal, Lisboa, Rei dos Livros, 2011, pp 51 e

segs. A propósito da criação de uma Procuradoria Europeia e das suas principais implicações, vd. MONTE, Mário

Ferreira, O Direito Penal Europeu de “Roma” a “Lisboa” – Subsídios Para a Sua Legitimação, Lisboa, Quid Juris,

2009,em especial, pp. 194 e segs. 2 A expressão é de CLUNY, António, “Prefácio”, in João Paulo Dias e Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo (coord.),

O Papel do Ministério Público – Estudo comparado dos países latino-Americanos, Coimbra, Almedina, 2008, p. 11. 3 Idem. Ibidem.

4 Como alerta FIGUEIREDO DIAS, Jorge de, Acordos sobre a sentença em Processo Penal: o “fim” do Estado de

Direito ou um novo “princípio”?, Porto, Conselho Distrital do Porto da Ordem dos Advogados, 2011, pp. 15-16,

face aos problemas relacionados com a crise no sistema da Justiça, em especial da justiça penal, é necessário

avançar no desenvolvimento de estruturas de consenso em detrimento de estruturas de conflito entre os sujei-

tos processuais. Neste cenário, para que o nosso modelo de processo penal (que deve permanecer intocado) se

adeque às novas exigências de eficácia processual, é necessário cooperação dos sujeitos processuais em prol do

favorecimento do processo, impondo-se como refere o Autor (pp. 111-114) “um espírito e uma atitude novos *,+

169

Acrescente-se que o debate acerca da importância do papel, funções e estrutura do MP

tem ultrapassado as fronteiras do Estado. A globalização e as suas implicações na criminali-

dade transnacional5 têm colocado no centro do debate o papel do MP. No que em especial

concerne à União Europeia – no desenvolvimento de um espaço de liberdade, segurança e

justiça –, discute-se a (eventual) concretização da figura do Ministério Público Europeu, e as

questões relacionadas com os seus poderes, as suas funções e a sua estrutura. Na verdade,

no art. 86.º, n.º 1, do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE) estabelece-

-se, pela primeira vez ao nível dos Tratados6, a possibilidade de o Conselho criar uma Procu-

(…) morais – dos juízes, dos procuradores, dos defensores, face à renovada intencionalidade e funcionalidade

comunitária das suas missões. Com o que poderia abrir-se uma nova era não só em matéria de acordos relativos

à sentença, mas de atuação cooperativa em outras fases, mesmo nas do inquérito ou da instrução” – cf. FIGUEI-

REDO DIAS, Jorge de, Acordos sobre …, cit., pp. 113. Numa palavra, o Autor apela, a uma nova prática judiciária,

não só com base em acordos sobre a sentença, como também, para o que ora nos interessa, na mentalidade dos

sujeitos processuais, em especial, do juiz, do ministério público e do defensor. 5 Quanto à influência da problemática da globalização sobre o direito penal, vd., entre outros, SILVA SÁN-

CHEZ, La expansión del Derecho Penal, Aspectos de la política criminal en las sociedades postindustriales, Madrid,

Civitas, 2001 (2.ª ed., revista e aumentada), pp. 81 e segs.; RODRIGUES, Anabela e MOTA, J. J. Lopes da, Para

uma Política Criminal Europeia. Quadro e instrumentos jurídicos da cooperação judiciária em matéria penal no

espaço da União Europeia, Coimbra, Coimbra Editora, 2002, pp. 13 e segs.; FARIA COSTA, Direito penal Económi-

co, Coimbra, Quarteto, 2003, pp. 88 e segs.. 6 Relembre-se que uma série de esforços já haviam sido realizados no sentido da criação de um Procurador

Europeu. Desde logo, em 1997, foi apresentada uma tentativa de criação do Corpus Iuris para a proteção dos

interesses financeiros da Comunidade, que veio a desembocar na proposta de Diretiva do Parlamento Europeu e

do Conselho [2001/0115 (COD)]. De referir, desde logo, que o Procurador Europeu seria independente em

relação às autoridades nacionais e comunitárias. Além disso, no plano da sua organização, competiria ao

Parlamento Europeu, a partir da Comissão Europeia, nomear o Procurador-Geral Europeu para um mandato de

seis anos, sendo que cada Estado-Membro indicaria os Procuradores que deveriam atuar no âmbito do seu

território, sendo a nomeação igualmente realizada pelo Parlamento. Acrescente-se que, em termos funcionais,

competiria ao Procurador Europeu investigar as infrações penais, iniciar a ação penal em juízo e zelar pela

execução das sentenças definitivas. Posteriormente, em 2001, a Comissão apresenta o Livro Verde sobre a prote-

ção penal dos interesses financeiros comunitários e a criação de um Procurador Europeu (vd. Livro Verde sobre a

proteção penal dos interesses financeiros comunitários e a criação de um Procurador Europeu disponível em

http://ec.europa.eu/anti_fraud/green_paper/document/green_paper_pt.pdf). Aí, salienta-se, indubitavelmente,

a necessidade da criação de um Procurador Europeu para a proteção dos interesses financeiros da comunidade.

A Comissão, no Livro Verde, propõe a nomeação de um Procurador Europeu, independente, que centralize a

direção das investigações e da ação penal, e que exerça a ação pública perante as jurisdições competentes dos

Estados-Membros, no campo da proteção dos interesses financeiros comunitários. Ainda assim, a União Europeia

não havia conseguido criar a figura do Procurador Europeu, adotando-se no Tratado de Nice, em sequência do

caminho aberto e trilhado pelo Tratado de Amesterdão, e pelo Conselho Europeu de Tampere, a Eurojust, um

novo órgão da União, com competências mais alargadas, criado por Decisão do Conselho de 28 de fevereiro de

2002. No Tratado que estabelece uma Constituição para a Europa (vd. Tratado que estabelece uma Constituição

para a Europa, aprovado na Reunião de Chefes de Estado ou de Governo, em Bruxelas, em 17 e 18 de junho de

2004, assinado em Roma em 29 de outubro de 2004, e publicado no JO, C-310, de 16-12-2004) surge a possibili-

dade de criação de uma Procuradoria Europeia, a partir da Eurojust, destinada a combater as infrações lesivas

dos interesses financeiros da União, nos termos do art. III-274.º. Refira-se, ainda, que de acordo com o disposto

no n.º 4 deste artigo, prevê-se a possibilidade de o Conselho Europeu, em simultâneo ou posteriormente, adotar

uma decisão europeia que altere as atribuições da procuradoria Europeia extensivas ao combate à criminalidade

grave com dimensão transfronteiriça. O projeto de Tratado que estabelece uma Constituição para a Europa (vd.

projeto de Tratado que estabelece uma Constituição para a Europa, na versão aprovada pela Convenção Euro-

170

radoria Europeia a partir da Eurojust. No n.º 2 deste artigo determina-se o âmbito de com-

petência material da Procuradoria Europeia: infrações lesivas dos interesses financeiros da

União contempladas no n.º 1. Ainda, nos termos do n.º 4 deste artigo, prevê-se a possibili-

dade de o Conselho estender as competências da Procuradoria ao combate à criminalidade

grave com dimensão transfronteiriça.

Efetivamente, e no que à União Europeia concerne, a abolição das fronteiras proporcio-

nou a ocorrência não só de um conjunto de novas realidades, como também possibilitou,

naturalmente, a prática de factos criminais que não se confinavam às fronteiras de cada

Estado, antes invadindo o espaço da União Europeia. Na verdade, a União Europeia vem-se

deparando perante um novo desafio: qual a forma de prever e de combater a criminalidade

que vai além-fronteiras e se estende por todo o território da União Europeia?

Tentando dar resposta a este desafio, almejando-se a efetividade do Direito da União

Europeia e, desta forma, a proteção efetiva dos direitos que esta reconhece aos cidadãos,

no âmbito de um caminho de reconhecimento mútuo, harmonização e de criação de órgãos

europeus, assume-se, pois, necessário avaliar se esta possibilidade de criação da Procurado-

ria Europeia contemplada no TFUE deveria ou não assumir real existência e, em caso afirma-

tivo, como se desenhariam os contornos desta entidade e qual o âmbito material (desejável)

da sua atuação7.

peia em 18 de julho de 2003) era mais ambicioso, consagrando uma “fórmula maximalista das competências da

Procuradoria Europeia: combater a criminalidade grave de dimensão transfronteiriça bem como as infracções

lesivas dos interesses da união” – cf.SOUSA, Alfredo José de, A Criminalidade Transnacional na União Europeia,

Um Ministério Público Europeu?, Coimbra, Almedina, 2005, p. 148. No mesmo sentido, vd., ainda, PITON, André

Paulino, LOUREIRO, Flávia Noversa, “O Tratado de Lisboa e a formação do Ministério Público Europeu”, in Ales-

sandra Silveira (coord.), Direito da União Europeia e transnacionalidade, Lisboa, Quid Juris, 2010, p. 94. O Tratado

que estabelece uma Constituição para a Europa não passou, contudo, no processo de ratificação em França e na

Holanda. Seguiu-se, inevitavelmente, um período de crise institucional, que viria a ser ultrapassada com a apro-

vação do Tratado de Lisboa, em 13 de dezembro de 2007. Aqui, adotou-se a solução consagrada naquele Tratado

relativamente à possibilidade de criação do Ministério Público Europeu. A Procuradoria poderá ser, deste modo,

criada mediante regulamento, pelo Conselho, por unanimidade, após aprovação do Parlamento Europeu, em

processo legislativo especial. 7 Sobre a temática, vd. por todos, com muito interesse, entre outros, DELMAS-MARTY, Mireille, “A Caminho

De Um Modelo Europeu De Processo Penal”,in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 9, junho de 1999, pp.

234 e segs.; RODRIGUES, Anabela Miranda, O Direito Penal Europeu Emergente, Coimbra Editora, 2008, e da

mesma Autora, “As Relações entre o Ministério Público e o Juiz de Instrução Criminal ou a Matriz de um Processo

Penal Europeu”, in Mário FerreiraMonte (coord.), Que Futuro para o Direito Processual Penal? – Simpósio em

Homenagem a Jorge de Figueiredo Dias, por ocasião dos 20 anos do Código de Processo Penal Português, Coim-

bra, Coimbra Editora, 2009, e MONTE, Mário Ferreira, O Direito Penal Europeu…, cit., em especial p. 195. Para

uma análise aprofundada sobre a figura do Ministério Público Europeu vd., entre outros, PERRODET, Antoinette,

Étude pour un Ministère Public Européen, Paris, L.G.D.J., 2001; LANZI, Alessio, RUGGIERI, Francesca, CAMALDO,

Lucio, Il Difensore e Il Publico Ministero Europeo, CEDAM, 2002; MUHM, Raoul, CASELLI, Gian Carlo, The Role Of

The Public Prosecutor – Experiences in Europe, Roma, Vecchiarelli Editore, 2005; Recentemente, vd. MARZBAN,

Ghaleh (dir.), Quelles perspectives pour un ministère public européen, paris, Dalloz, 2010; ZWIERS, Martijn, The

European Public Prosecutor´s Office – Analysis of a Multilevel Criminal Justice System, Antwerp, Intersentia, 2011;

171

Neste contexto, o campo de atuação da figura do MP, bem como os seus poderes e fun-

ções, são (ou serão), direta ou indiretamente, reconfigurados ou, pelo menos, repensados.

Não é nosso propósito aprofundar neste âmbito este debate, mas tão-só chamar a atenção

para ele.

Sem perder de vista o enquadramento traçado, e em que se move(rá) o MP, pretende-

mos, ora, refletir sobre o papel e funções do MP no processo penal português, desde logo,

por ser este o campo de atividade em que o MP se tem evidenciado8. Em especial, interessa

determo-nos no exercício da ação penal pelo MP, e no papel do MP na defesa dos direitos

fundamentais. Numa palavra, nesta temática delimitada, pretendemos apurar a responsabi-

lidade comunitária do MP9.

Conseil d’État, Réflexions sur l´institution d´un parquet européen – étude adoptee le 24 février 2011 par

l´assemblée générale plénière du Conseil d´État, 2011, disponível em http://www.conseil-etat.fr/fr/rapports-et-

etudes/vers-l-institution-d-un-parquet-europeen.html, e, ainda, INGHELRAM, Jan F.H., Legal and Institutional

Aspects of the European Anti-Fraud Office (OLAF)): An Analysis with a Look Forward to a European Public Prose-

cutor's Office, Groningen, Europa Law Publishing, 2011.

Apesar de muitas vozes apontarem não ser este o momento ideal para a criação de uma Procuradoria Euro-

peia diante da crise económica, financeira e política atravessada na Europa, em sentido divergente veja-se, muito

recentemente, o artigo de Mireille Delmas-Marty, publicado a 27 de junho de 2012, no Le Monde, disponível em

http://www.lemonde.fr/cgibin/ACHATS/acheter.cgi?offre=ARCHIVES&type_item=ART_ARCH_30J&objet_id=1197

966&xtmc=mireille_delmas_marty&xtcr=2. Segundo a Autora, “[l]e moment est venu de créer le parquet euro-

péen. (…) Il devient clair en effet qu'on ne sortira de la crise actuelle qu'en renforçant l'intégration, c'est-à-dire

l'Europe politique. Mais l'Europe politique ne se réduit ni à la gouvernance de la zone euro ni à l'impôt européen.

Elle passe aussi par la lutte contre une fraude qui vide systématiquement les caisses de l'Union européenne”. 8 Sem querer, naturalmente, desvalorizar as restantes funções do MP. Como alerta MOREIRA, Vital, “*a+ par-

tir do momento que se comece por afirmar que o Ministério Público existe sobretudo na sua conexão com a

instrução criminal, está-se de facto a restringir, a afunilar a concepção do Ministério, a desvalorizar as suas

outras funções, que (…) em certas circunstâncias *são+ mais importantes do que a sua participação na instrução

criminal. (…) A redução, digamos assim, criminalística do Ministério Público começa por ser um dos elementos

nocivos no que respeita a uma definição correcta da função e do estatuto do Ministério Público” – cf. Sindicato

dos Magistrados do Ministério Público (org.), A Revisão Constitucional, o Processo penal e os Tribunais, Lisboa,

Livros Horizonte, 1981, p. 129. A este propósito, com muito interesse, vd. CARVALHO,Inês Seabra Henriques de,

Em Defesa da Legalidade Democrática – O Estatuto Constitucional do Ministério Público Português, Lisboa, Sindi-

cato dos Magistrados do Ministério Público, 2012, pp. 127 e segs. A Autora interroga se as exigências relativas ao

Estatuto do Ministério Público se perdem ou se se relativizam no que concerne à defesa da legalidade democrá-

tica por comparação com as exigências associadas ao núcleo central da intervenção do Ministério Público no

exercício da ação penal. Sobre as várias funções do MP, vd., com muito interesse, MIRANDA, Jorge, MEDEIROS,

Rui, “Artigo 219”, Constituição Portuguesa Anotada, tomo III, Coimbra, Coimbra Editora, 2007, pp. 215 e segs., e

CUNHA RODRIGUES, Em nome do povo, Coimbra, Coimbra Editora, 1999. 9 Neste âmbito, estamos a utilizar a expressão com o sentido – ou pelo menos com um dos sentidos – atri-

buído por FIGUEIREDO DIAS, “Autonomia e responsabilidade comunitária do Ministério Público: um equilíbrio

difícil”, in Procuradoria-Geral da República, 25 Anos do Estatuto do Ministério Público (sessão comemorativa),

Coimbra, Coimbra Editora, 2005, pp. 71 e segs. Nesta sede, o Autor refere-se ao princípio da responsabilidade

comunitária do MP e à sua concordância prática com o princípio da autonomia. O Autor (p. 72) explicita o alcance

do conceito de responsabilidade socorrendo-se das formulações utilizadas por Gomes Canotilho “responsivness”,

na aceção de“necessidade e imprescindibilidade de os representantes e outros cargos públicos terem (ou toma-

rem) em consideração os interesses, as expectativas e as necessidades dos cidadãos”; e de “accountability”,

enquanto “dever de (…) os responsáveis de cargos públicos prestarem contas à comunidade, seja relativamente

172

Advirta-se, ainda, que abordar a questão dos poderes e funções do MP implicará, neces-

sariamente, mergulhar na evolução a que foi sendo alvo este sujeito ao longo dos tempos, e

no seu estatuto.

II. Posição do Ministério Público no processo penal português

O perfil de atuação do MP no processo penal em particular terá sempre de ser analisado

à luz do sistema jurídico-constitucional de cada Estado e do respetivo modelo de estrutura

de administração e de poder, bem como das opções de política criminal do Estado10.

Cumpre tecer um breve apontamento sobre a evolução histórica do MP português11, pois

nela assenta o entendimento das suas funções e poderes assumidos.

É no séc. XIV que se encontram os primeiros antepassados do MP português, enquanto

organização estável e permanente12. Existia uma figura denominada “Procurador da Coroa”

com funções de perseguição dos criminosos e defesa de pessoas socialmente vulneráveis,

estando, por isso, esta figura associada à defesa de interesses comunitários, e não à

prossecução dos interesses do monarca. Em 1832, com o liberalismo e com a monarquia

constitucional, seguiu-se o modelo de MP de inspiração napoleónica, embora com

contornos próprios. Neste sentido, a magistratura do MP e a judicial configuravam um corpo

único, com um só Conselho Superior. Também o MP era vestibular da judicatura. Outra

às suas actuações funcionais, seja relativamente aos resultados da execução que lhes caiba das políticas mais

diversa (…)”. Ora, é com aquele primeiro sentido de “responsivness” que pretendemos socorrermo-nos do con-

ceito de responsabilidade democrática, e é com este âmbito que o utilizaremos ao longo deste trabalho. Sobre o

conceito de responsabilidade, comunidade e justiça vd., com muito interesse, BARATA-MOURA, José, “Respon-

sabilidade comunitária da justiça”, in Sindicato dos Magistrados do Ministério Público (org.), A responsabilidade

comunitária da justiça, o papel do Ministério Público, VII Congresso, Lisboa, Sindicato dos Magistrados do Minis-

tério Público, 2007, pp. 29 e segs. 10

Para maiores aprofundamentos, vd. por todos, MESQUITA, Paulo Dá, Direcção do Inquérito Penal e Garan-

tia Judiciária, Coimbra, Coimbra Editora, 2003., p. 36. Vd., igualmente, JÚNIOR, Arthur Pinto de Lemos, “O Papel

do Ministério Público, dentro do Processo Penal, à vista dos Princípios Constitucionais”,in Revista do Ministério

Público, n.º 93, ano XXIV, jan.-mar. 2003, pp. 12 e 13. 11

Sobre a evolução histórica do MP vd., entre outros, CASTRO, Manuel de Oliveira Chaves e, A organização e

competência dos tribunais da justiça portuguesa, F. França Amado, 1910; CUNHA RODRIGUES, Para uma refor-

mulação do Ministério Público, Lisboa, Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, 1976 e do mesmo Autor,

Em nome do…, cit., em especial pp. 35 e segs.; SOUTO DE MOURA, José, Direito ao Assunto, Coimbra Editora,

2006, p. 62 e segs.; DIAS, João Paulo, AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli de (coord.), O papel do Ministério Público –

estudo comparado dos países latino-americanos, Coimbra, Almedina, 2008, em especial, pp. 28 e segs., e CARVA-

LHO, Inês Seabra Henriques de, Em Defesa da…, cit., pp.23 e segs. 12

A “doutrina (…) convém em que o aparecimento do Ministério Público, como organização estável e perma-

nente, se verificou (…) no século XIV” – cf. CUNHA RODRIGUES, “Ministério Público”, in Dicionário Jurídico da

Administração Pública, Vol. V, Lisboa, 1993, pp. 510 e 511.

173

característica do MP português era a organização hierarquizada, estando no topo o

Procurador-Geral. Neste quadro, havia uma subordinação do MP ao poder executivo, na

medida em que cabia ao Ministério da Justiça a gestão de quadros, a inspeção, a progressão

na carreira, a ação disciplinar e a designação do Procurador-Geral.

A Constituição de 197613 (CRP), a Lei Orgânica do MP de 1978 e o Estatuto do MP de

1986 introduziram e consolidaram importantes alterações, relativamente ao regime vigente

anteriormente. Assim, por um lado, passaram a existir duas magistraturas independentes e

paralelas, a dos juízes e a do MP com carreiras próprias e Conselhos Superiores separados.

Por outro lado, o Ministério da Justiça deixou de poder dar instruções ao MP, deixando de

lhe caber a gestão de quadros, a inspeção, a progressão na carreira e a ação disciplinar.

Neste quadro, José Souto de Moura concretiza este “movimento de emancipação do

Ministério Público” em três vertentes fundamentais: a separação da magistratura do MP da

judicial, o autogoverno e a autonomia relativamente ao Ministério da Justiça14.

O modelo de MP traçado na Constituição de 1976 assenta, no essencial, no princípio da

autonomia, da hierarquia e da responsabilidade (art. 219.º, n.os 3 e 4, da CRP)15.

O MP assume, desde logo, a sua autonomia com a Constituição de 1976, autonomia

relativamente à tutela do executivo e relativamente à magistratura judicial. No que

concerne em especial a esta última, a Constituição de 1976, bem como as legislações

ordinárias posteriores consagraram a independência orgânica da carreira do MP

relativamente à da magistratura judicial. No que concerne à primeira, a autonomia do MP

13

A Constituição de 1976 consagra o MP no Capítulo IV, inserido no Título IV que trata dos “Tribunais”,

denominando os agentes do MP como “magistrados” (art. 219.º, n.º 4, da CRP). De acordo com MESQUITA, Paulo

Dá, Direcção do Inquérito…, cit., p.36, “*a+ Constituição Portuguesa de 1976 introduziu quanto à inserção do

Ministério Público nas estruturas de administração e poder um verdadeiro terramoto [a expressão é de COSTA,

Eduardo Maia da, “Ministério Público, para um novo modelo”, inRevista do Ministério Público, ano XI, n.º 41, pp.

180] que se expressou, desde logo, em dois vectores: – Constitucionalização de normas básicas sobre o

Ministério Público no âmbito da Constituição judiciária [art.224.º a 226.º da CRP de 1976], rompendo com uma

tradição de omissão constitucional; – Densificação da posição do Ministério público através de uma matriz

polifuncional associada às garantias dos seus membros e ao imperativo de organização e estatuto próprios”.

Como refere SOUTO DE MOURA, José, “Inquérito e instrução”, inJornadas de Direito Processual Penal, O Novo

Código de Processo Penal, Coimbra, Almedina, 1989, p. 107, com a consagração da autonomia na CRP

“*m+anifestamente, houve a pretensão de abolir a dependência do MP relativamente ao Ministro da Justiça, que

o antigo Estatuto Judiciário, especialmente nos seus arts. 170.º e 171.º, consagrava”. 14

SOUTO DE MOURA, José, Direito ao Assunto…, cit., p. 62. 15

Vd.CANOTILHO, José Joaquim Gomes, MOREIRA, Vital, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol.

I, 4.ª ed. Revista, Coimbra, Coimbra Editora, 2007, pp. 601 e segs.; CARMO, Rui do, “A autonomia do…”, cit.

, p.

106. A propósito da 1.ª Revisão Constitucional, e da discussão em torno da questão da autonomia, vd., com

muito interesse, Sindicato dos Magistrados do Ministério Público (org.), A Revisão Constitucional…, cit., pp. 106 e

segs., e MENDES, Armindo Ribeiro, “O Ministério Público, a Constituição de 1976 e a jurisprudência constitucio-

nal”, in Figueiredo Dias et al. (org), Estudos em homenagem a Cunha Rodrigues, Vol I., Coimbra, Coimbra Editora,

2001, pp. 605 e segs.

174

evidencia que não há dependência hierárquica do MP relativamente ao Governo, não lhe

podendo este emitir ordens ou instruções16.

Nos termos do art. 76.º do Estatuto do Ministério Público, “*o+s magistrados do

Ministério Público são responsáveis e hierarquicamente subordinados. A responsabilidade

consiste em responderem, nos termos da lei, pelo cumprimento dos seus deveres e pela

observância das directivas, ordens e instruções que receberem”. A sujeição do MP às

diretivas, ordens e instruções nos termos descritos – “…numa evidência da aplicação do

princípio da responsabilidade e como fundamento diferenciador (…) da independência

atribuída aos juízes – (…) tem hoje no Estado de Direito Democrático uma importante

função, a qual, inclusive, sobrepõe-se em vantagens à total independência dos membros do

Ministério Público”17. Assim, se por um lado, faz sobressair a responsabilidade do agente do

MP, por outro, possibilita a uniformidade de critérios de valoração durante a prossecução

processual do MP, a melhor execução da política criminal definida pelos órgãos de

soberania, e o controlo hierárquico dos atos do MP, através, designadamente, do

mecanismo de aceleração processual, previsto no art. 108.º do Código de Processo Penal

(CPP), e da intervenção hierárquica prevista no art. 278.º do CPP18.

Uma questão que se tem revelado controversa é aquela relacionada com o lugar

institucional do MP. Como bem adverte Figueiredo Dias, a posição do MP no âmbito do

processo penal só se alcançará distinguindo, por um lado, a função de administração da

justiça da função judicial em sentido estrito e, por outro lado, da função administrativa

comum, e se entenda a posição do MP como uma verdadeira ponte entre o exercício destas

16

Esclareça-se que só após a revisão constitucional de 1989 é que o MP adquiriu expressamente a autono-

mia, que o “veio apetrechar com a plena capacidade de intervenção no campo processual penal sem a angústia

do poder político, e robusteceu, assim, o acervo garantístico subjacente à distribuição pelas autoridades judiciá-

rias das competências atinentes à investigação criminal…” – cf. GASPAR, Jorge, “Titularidade da Investigação

Criminal e Posição Jurídica do Arguido”, in Revista do Ministério Público, n.º 87, Ano XXII, julho-setembro 2001, p.

13. Como relembra Figueiredo Dias, “…a solução da autonomia do MP é aquela que melhor realiza o princípio

democrático e a posição funcional precípua desta magistratura. Seja perante os órgãos de soberania à luz da sua

legitimação constitucional num Estado de Direito democrático e da sua estrutura como órgão de administração

da justiça penal; seja no seio do sistema penal…” – cf. FIGUEIREDO DIAS, “Autonomia e responsabilidade…, cit., p.

73. Conclui o Autor, a propósito da compatibilização entre a autonomia e a responsabilidade comunitária do MP

(p. 85) que “(…) não pode existir autonomia, no alto sentido jurídico-constitucional que lhe cabe, sem do mesmo

passo ela integrar a exigência democrática de responsabilidade comunitária. De a integrar, por um lado, numa

relação de necessidade: autonomia sem responsabilidade comunitária tornar-se-ia em mero privilégio profissio-

nal e burocrático-corporativo, que não haveria razão para que assumisse relevo jurídico-constitucional. E de a

integrar, por outro lado, numa relação de proporcionalidade directa: a autonomia do MP será tanto mais perfeita

e mais plena quanto mais extenso e transparente for o seu dever de prestar contas à comunidade pelas suas

formas de actuação passadas e presentes, bem como pelos resultados da sua actuação na execução das políticas

que lhe são cometidas, nomeadamente da política criminal legitimamente definida”. 17

JÚNIOR, Arthur Pinto de Lemos, “O Papel do…”, cit., p. 16. 18

JÚNIOR, Arthur Pinto de Lemos, “O Papel do…”, cit., p. 16.

175

duas funções19. Na verdade, o MP “trata-se de um órgão autónomo cuja actividade se não

deixa reconduzir exactamente nem à ‘função administrativa comum’ nem à ‘função

judicial’”20.

Refira-se, ainda assim, que no âmbito da estrutura acusatória, ao passo que o juiz integra

uma magistratura que se poderia designar de “reativa”, na medida em que é chamado a

resolver as questões que outrem lhe coloca, a magistratura do Ministério Público enquadra-

se na “magistratura de promoção ou de postulação”21. Na fase de inquérito, o MP encerra

em si um poder/dever sobre o objeto do processo e a sua prossecução. Podemos, por isso,

equiparar o juízo que o MP tem de realizar, essencialmente na fase de inquérito, ao juízo a

realizar pelo juiz22. Na esteira de António Cluny, o MP, no exercício da sua função, “(…)

produz (…) um juízo idêntico ao formulado pelo juiz, motivado pelo mesmo desígnio, por

causa da função constitucional deste e coberto por uma certa irrevogabilidade, que tem em

vista a protecção do mesmo valor que é atribuído ao caso julgado formal do juiz”23.

19 Cf. FIGUEIREDO DIAS, Jorge de, “O dever de obediência hierárquica e a posição do Ministério Público no

Processo Penal (anotação ao Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Junho de 1972)”, in RLJ, Ano 106.º, n.º

35000, 1 de outubro de 1973, p. 175. 20

Idem, ibidem. Vd., igualmente, FIGUEIREDO DIAS, Jorge de, “Sobre os sujeitos processuais no novo Código

de Processo Penal”, in Jornadas de Direito Processual Penal, O Novo Código de Processo Penal, Almedina, Coim-

bra, 1989, p. 26. Entendendo, apesar de tecer alguns esclarecimentos, que o MP “não pode deixar de ser um

órgão do poder judicial” vai CUNHA RODRIGUES, Em nome do…, cit., p.99. Na esteira do Autor, esta classificação

prende-se com o facto de o MP constituir “um órgão autónomo, constitucionalmente sistematizado no título

relativo aos tribunais, com regras de organização, estatuto e funcionamento fundados em princípios que caracte-

rizam uma magistratura, prosseguindo fins que condicionam a intervenção jurisdicional ou visam conformá-la

com os níveis de normatividade a que está sujeita…”. Contudo, e como adiantámos, o Autor (p. 100) esclarece

que tendo por base o conceito técnico-jurídico de jurisdição, o MP não configura um órgão jurisdicional, embora

sejam jurisdicionais as suas atribuições, uma vez que estas se realizam “segundo princípios, fins, objecto, organi-

zação e estatuto próprios do poder judicial”. 21

SOUTO DE MOURA, José, Direito ao Assunto…, cit., p. 64. 22

Assim CLUNY, António, “Pensar o Ministério Público Hoje”, in Cadernos de Justiça do Ministério Público, pp.

60 e 63, e GASPAR, Jorge, “Titularidade da Investigação…”, cit., pp. 79 e segs. 23

Cf. ANTÓNIO CLUNY, CLUNY, António, “Pensar o Ministério Público Hoje”, cit., pp. 60 e 63. A este respeito,

merece ser citado Edmondo Bruti Liberati, segundo o qual “[n]ão basta um juiz independente para que a justiça

também o seja; esta não será independente se o Ministério Público, o órgão que tem o poder, pelo menos em

matéria penal, de pôr em movimento a justiça, não o for. É justamente pelo facto de serem os magistrados do

Ministério Público quem garante a igualdade dos cidadãos perante a lei que eles devem poder exercer as suas

funções de forma autónoma relativamente ao poder político. Assim, o principio segundo o qual os juízes só estão

submetidos ao direito e à lei deve aplicar-se também aos magistrados do Ministério Público. (…) Pouco importa a

garantia da independência dos juízes se o poder executivo, através do controlo do Ministério Público, tiver a

possibilidade de, na prática, impedir a investigação”. – LIBERATI, Edmondo Bruti, citado por CARMO, Rui do,“A

autonomia do Ministério Público e o Exercício da Acção Penal”, in Revista do CEJ, 1.º Semestre, p. 106.

176

III. Funções do Ministério Público no modelo processual penal português

Nos termos do disposto no art. 219.º da CRP e nos arts. 1.º e 3.º do Estatuto do MP,

compete ao MP representar o Estado e defender os interesses que a lei determinar,

participar na execução da política criminal definida pelos órgãos de soberania24, exercer a

ação penal orientada pelo princípio da legalidade e defender a legalidade democrática25.

O exercício da ação penal constitui, segundo cremos, a função mais importante do MP,

sendo que a estrutura do processo penal lhe confere uma “posição de quase monopólio da

acção penal”26. Este órgão é detentor de uma competência funcional exclusiva, concretizada

na aquisição da notícia crime27, na realização dos atos de investigação na fase de inquérito28

e no impulso da intervenção do Juiz de Instrução Criminal29.

Na verdade, o MP é a autoridade judiciária com maior evidência na fase de inquérito,

tendo tal facto subjacente a decantada autonomia que o MP alcançou relativamente ao

executivo, concretizada na independência necessária para presidir a investigação em

inquérito. A autonomia assume-se, neste quadro, indissociável do perfil da intervenção do

MP no âmbito do processo penal, e constitui um elemento fundamental na forma como é

estruturada a ação penal30.

24 Na revisão constitucional de 97, introduziu-se no art. 219.º, n.

os 1 e 2, da CRP (correspondente ao art. 3.º,

n.º 1, alínea b), do EMP), a competência do MP para participar na execução da política criminal definida pelos

órgãos de soberania, salvaguardando-se o facto de o MP gozar de “estatuto próprio e de autonomia nos termos

da lei”. Poderia colocar-se a questão de saber se se afigura possível a concretização prática entre esta participa-

ção na execução da política criminal e o respeito pelo princípio da legalidade no exercício da acção penal que

deve igualmente o MP observar por imperativo constitucional. De acordo com SOUTO DE MOURA, José, Direito

ao Assunto…, cit., pp. 65 e segs. “tem-se assinalado que é na faixa da estreita da chamada discricionariedade

técnica que tal compatibilização há-de ter lugar”, sendo que é na ponderação que vai fazendo o MP que deve

estar presente esta orientação da política criminal, que como, salienta Souto de Moura, “por ser política lhe não

compete definir mas por ser criminal lhe compete, à sua medida, executar”. 25

Neste quadro, o MP, “enquanto titular da acção penal, assume não só a direcção técnica e substantiva do

inquérito, como a gestão da política criminal positiva concreta, reivindicando para si a posição principal na dinâ-

mica do processo de consenso que constitui hoje a pedra angular do sistema jurídico-penal” – cf. LÚCIO, A. Labo-

rinho, “Sujeitos do Processo penal (Algumas considerações)”, in Jornadas de Direito Processual, O Novo Código de

Processo Penal, Coimbra, Almedina, 1989, p. 53. 26

A expressão é de PINTO, João Fernando Ferreira, “O papel do Ministério Público na ligação entre o sistema

tradicional de justiça e a mediação vítima-agressor”, in A Introdução da Mediação Vítima-Agressor no ordena-

mento jurídico português: Colóquio, 29 de Junho de 2004, FDUP, pp. 61. Como refere Paulo Dá Mesquita “… o

exercício da acção penal (…) associado à estrutura acusatória do processo penal implica a avaliação de uma

reserva do Ministério Público na jurisdição penal” – cf. MESQUITA, Paulo Dá, Direcção do Inquérito…, cit., p. 38. 27

Vd. art. 241.º, 243.º, n.º 3, 244.º, 245.º e 248.º, n.º 1, do CPP. 28

Vd. art. 263.º, 267.º e 270.º, n.º 1, do CPP. 29

Vd. art. 194.º, n.º 1, e 268.º, n.º 2, do CPP. 30

Vd., neste sentido, o Ac. de Uniformização de Jurisprudência do STJ, de 24.12.2009, publicado no DR, I

série, de 24 de Dezembro de 2009.

177

O exercício da ação penal pelo MP da forma como se encontra concretizado no CPP, tem

subjacente um conjunto de pressupostos que sustentam a constitucionalidade do modelo

adotado31, em especial, a autonomia, sendo esta só passível de ser concretizada se aliada a

princípios de objetividade e legalidade no exercício das suas funções, traves norteadoras da

atuação do MP, quer na fase de inquérito, quer ao longo de todo o processo.

A atuação assente em critérios de objetividade significa que não compete ao MP “acusar

a todo o custo, mas apenas quando os elementos probatórios – recolhidos ‘à charge et à

décharge’ – apontem nesse sentido”32. O MP deve investigar e contra-investigar, visando

atingir “uma verdade processualmente válida, mesmo que o resultado não favoreça a

acusação, e implique o exercício de um papel ambíguo”33. Surgindo o MP, ao lado do

tribunal, como um órgão da administração da justiça, com a função de “colaborar com o

tribunal na descoberta da verdade e na realização do direito”, nos termos do previsto no art.

53.º, n.º 1, do CPP, a sua postura não pode ser a de “interessado na acusação, antes

obedece*ndo+ a critérios de estrita legalidade e objectividade”34. Neste sentido, o MP “não é

interessado na condenação mas unicamente na obtenção de uma decisão justa”35. A

vocação do MP, como salienta Figueiredo Dias, “não é a de ‘parte’, mas a de entidade

unicamente interessada na descoberta da verdade e na realização do direito”36. Daí que se

possa afirmar com razão que “o Ministério Público representa já não o interesse em que a

pretensão proceda mas o interesse em que se faça justiça”37.

Por outro lado, a atuação assente em critérios de legalidade38 significa, com base no

contemplado no art. 283.º, n.º 1, do CPP, que o MP tem o dever de acusar, se existirem

indícios suficientes da prática do facto e se se conhecer o seu agente.

O princípio da legalidade, como refere Anabela Rodrigues, constitui “o ponto de partida

da modelação do sistema” por se encarar a opção entre o princípio da legalidade e o da

oportunidade como “tópicos privilegiados para caracterizar o modelo processual em

31

LOPES, José Mouraz, Garantia Judiciária no…, cit., p. 66. 32

RODRIGUES, Anabela Miranda, “O inquérito no novo Código de Processo penal”, in Jornadas de Direito

Processual Penal, O Novo Código de Processo Penal, Almedina, Coimbra, 1989, p. 74. 33

JÚNIOR, Arthur Pinto De Lemos, “O Papel do…”, cit., p. 24. 34

DIAS, Jorge De Figueiredo, “Sobre os sujeitos …”, cit., p. 25. 35

Idem, ibidem, p. 31. 36

Idem, ibidem. 37

CUNHA RODRIGUES, “A posição institucional e as atribuições do Ministério Público e das polícias na inves-

tigação criminal”, in BMJ, n.º 337, p. 18. 38

O critério da legalidade vem contemplado, desde logo, no EMP. Face ao EMP, a autonomia é analisada

quer com base no critério da objectividade, quer no da legalidade. Nos termos do art. 2.º, n.º 2, do EMP vem,

assim, plasmado que “*a+ autonomia do Ministério Público caracteriza-se pela sua vinculação a critérios de lega-

lidade e objectividade e pela exclusiva sujeição dos magistrados e agentes do Ministério Público às directivas,

ordens e instruções previstas nesta lei”.

178

vigor”39. De acrescentar que o CPP “tempera o princípio da legalidade, em certas hipóteses

concretas, por meio de um cauteloso reconhecimento do princípio da oportunidade”40.

Segundo o princípio da legalidade, o MP está, pois, obrigado a promover o processo

penal, abrindo inquérito, e, se tiver recolhido indícios suficientes de se ter verificado crime e

de quem foi o seu agente, o MP é obrigado a deduzir acusação. Só nestes moldes se

assegurará a igualdade na aplicação do direito, evitando-se tentações ao arbítrio e à

parcialidade, geradoras de desconfiança por parte da comunidade na objetividade da

administração da justiça. Neste quadro, a atividade do MP desenvolve-se sob o signo da

estrita vinculação à lei, e não segundo considerações de oportunidade.

Na verdade, “*q+uando se fala em princípio da legalidade, normalmente tem-se em vista

um sentido específico, algo diferente da ideia geral segundo a qual os órgãos de soberania

em geral, e em particular os que aplicam a justiça, estão sujeitos à lei”41. O princípio da

legalidade é, neste sentido concreto, composto por dois deveres que incumbem ao MP,

sendo eles, “o dever de abrir inquérito sempre que tenha notícia de um crime (art. 262.º, n.º

2, do CPP) – dever de investigação; [e] o dever de deduzir acusação sempre que tenha

indícios suficientes de que certa pessoa foi o autor do crime (art. 283.º, n.º 1, do CPP) –

dever de acusar”42. Estes dois deveres derivam do art. 219.º, n.º 1, da CRP onde se

estabelece que compete ao MP o exercício da ação penal, orientada pelo princípio da

legalidade43.

39 RODRIGUES, Anabela Miranda, “O inquérito no…”, cit., p. 74.

40 Idem, ibidem, pp. 74 e 75.

41 Vd. BELEZA, Teresa Pizarro, com a colaboração de ISASCA, Frederico e GOMES, Rui Sá, Apontamentos de

Direito Processual Penal, Vol. I, Lisboa, AAFDL, 1991/92, p.99. 42

CAEIRO, Pedro, “Legalidade e oportunidade: a perseguição penal entre o mito da ‘justiça absoluta’ e o feti-

che da ‘gestão eficiente’ do sistema”, in Revista do Ministério Público, n.º 84, Ano XXI, 2000, p. 32. 43

Existem, contudo, limitações a este princípio da legalidade, no sentido de concessões ao juízo de oportuni-

dade. No processo penal estão contemplados alguns mecanismos que constituem uma abertura ao princípio da

oportunidade, uma flexibilização do princípio estrito da legalidade. Referimo-nos, sobretudo aos institutos como

os da suspensão provisória do processo, do arquivamento do processo em caso de dispensa de pena e do proces-

so sumaríssimo. Contudo, como salienta João Fernando Ferreira Pinto, não se configura este um mecanismo

particularmente representativo do princípio da oportunidade, mas essencialmente um exemplo

“…representativo de um espírito de consenso que começa a despertar entre nós (…) tenta*ndo+ diluir o cariz

conflitual do processo penal, apelando para a colaboração entre o arguido e o tribunal, isto é, (…) evit*ando+ o

julgamento e a estigmatização nele (…) implícita” – cf. PINTO, João Fernando Ferreira, “O papel do…”, cit., pp. 67

e 68. Sobre estes institutos, vd., entre outros, ANDRADE, Manuel da, “Consenso e oportunidade”, inO novo Códi-

go de Processo Penal, Jornadas de Direito Processual Penal, Coimbra, Almedina, 1992; COSTA, José De Faria,

“Diversão (desjudiciarização) e mediação: que rumos?”, in Separata do vol. LXI do Boletim da Faculdade de Direi-

to da Universidade de Coimbra, 1985;Pedro Caeiro, “Legalidade e oportunidade…” cit.; cf. CARMO, Rui do, “A

autonomia do…”, cit., p. 119; TEIXEIRA, Carlos Adérito, Princípio da Oportunidade – Manifestações em Sede Pro-

cessual e sua Conformação Jurídico-Constitucional, Coimbra, Almedina, 2006, Reimpressão da Edição de 2000;

RODRIGUES, Anabela Miranda, “Os processos sumário e sumaríssimo ou a celeridade e o consenso no Código de

Processo Penal”, in RPCC, ano 6, fasc. 4.º, e da mesma Autora “Política criminal – Novos desafios, velhos

179

IV. Consideração final – a responsabilidade democrática do Ministério Público,

em especial, o papel do Ministério Público na defesa dos direitos fundamentais dos

cidadãos

Pretendemos, ainda, refletir sobre o papel do MP na defesa dos direitos dos cidadãos,

nomeadamente, descortinar até que ponto o modelo assim instituído – onde ao MP

compete, desde logo, o exercício da ação penal – incorpora e promove a defesa dos direitos

dos cidadãos, em especial, os do arguido.

Entendemos que a resolução desta problemática só pode passar por um entendimento

que valorize o papel do MP na defesa dos direitos fundamentais dos cidadãos, e de um

modo muito especial, do principal visado pela investigação.

Em primeiro lugar, cumprindo o MP as suas principais competências – exercício da ação

penal, em regra, segundo o princípio da legalidade, direção da investigação criminal e

promoção e criação de ações de prevenção criminal, e participação na execução da política

criminal definida pelos órgãos de governo (n.º 1 do art. 219.º da CRP e arts. 1.º e 3.º do

rumos”, in Liber Discipulorum para Jorge de Figueiredo Dias, Coimbra, Coimbra Editora, 2003; MONTE, Mário

Ferreira, “Do Princípio da Legalidade no Processo Penal e da Possibilidade de Intensificação dos Espaços de Opor-

tunidade”, in Revista do Ministério Público, Ano 26, jan.-mar. 2005, n.º 101; FIDALGO, Sónia, “O processo suma-

ríssimo na revisão do Código de Processo Penal”, in Revista do CEJ, N.º 8 (especial), 2008; CALADO, António

Marcos Ferreira, Legalidade e Oportunidade na Investigação Criminal, CoimbraEditora, 2009, e CORREIA, João

Conde, “Concordância Judicial à Suspensão Provisória do Processo: equívocos que persistem”, in Revista do

Ministério Público, Ano 30, jan.-mar. 2009, n.º 117. Com muito interesse, analisando as alterações introduzidas

no CPP, com a revisão operada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, no que concerne à suspensão provisória do

processo, verificando se aperfeiçoaram este instituto e em que medida contribuíram para dar resposta a imper-

feições e dificuldades encontradas na prática judiciária, vd. CARMO, Rui do, “A suspensão provisória do processo

no Código de Processo Penal revisto: alterações e clarificações”, in Revista do CEJ, N.º 8 (especial), 2008. Segundo

o Autor, em termos gerais, a resposta é afirmativa: as alterações ajudaram a clarificar os pressupostos de aplica-

ção do instituto.

Recentemente, neste cenário da consensualização processual, a propósito da admissibilidade das conversa-

ções e acordos sobre a sentença em processo penal, vd. DIAS, Jorge de Figueiredo, Acordos sobre a sentença…,

cit. Como alerta Figueiredo Dias, face aos problemas relacionados com a crise no sistema da Justiça, em especial

da justiça penal, é necessário responder, adaptando o nosso «paradigma» ou modelo – o de um processo penal

de estrutura basicamente acusatória integrado por um princípio supletivo de investigação oficial – que deve

permanecer intocado – cf. DIAS, Jorge de Figueiredo, Acordos sobre a sentença em Processo Penal: o “fim” do

Estado de Direito ou um novo “princípio”?, Porto, Conselho Distrital do Porto da Ordem dos Advogados, 2011, pp.

15-16. Segundo o Autor (p. 16), o nosso modelo de processo penal para se adequar às novas exigências de eficá-

cia processual, “*tem+ de ser integrado num paradigma assaz diferente do que até há pouco presidiu a toda a

concepção europeia continental. (…) deve*ndo+ dar passos decisivos na incrementação, em toda a medida possí-

vel, de estruturas de consenso em detrimento de estruturas de conflito entre os sujeitos processuais”. Neste

contexto, as conversações e acordos sobre a sentença em processo penal é algo que deve ser implementado na

vida judiciária. Esse acordo assenta no significado e utilidade da confissão, a que se ligam as conversações e

acordos sobre sentença em processo penal. Para maiores desenvolvimentos, vd. DIAS, Jorge de Figueiredo, Acor-

dos sobre a sentença…, cit.

180

Estatuto do MP) –, promove este magistrado a proteção dos direitos fundamentais

enquanto defesa de bens jurídico-penais44.

Ademais, a atuação do MP é, indubitavelmente, a primeira a evidenciar o caráter

antitético das finalidades do processo penal45, surgindo como entidade situada de modo

privilegiado para a defesa dos direitos fundamentais das pessoas46. Por outro lado, o MP,

não encarnando propriamente o poder judicial, assume-se como magistratura de promoção

ou postulação47.

Acrescente-se, ainda, que competindo ao MP a direção do inquérito, tem esta entidade

que atender na efetiva garantia da posição do arguido. Segundo cremos, e utilizando as

palavras de Jorge Gaspar, “*n+ão admitiríamos uma concepção das investigações criminais

que atribuísse a responsabilidade pela sua direcção a uma entidade à qual, em seguida, e

por causa dessa mesma atribuição, não viesse a caber redobrados cuidados no efectivo

desempenho da sua tarefa”48. Como salienta este Autor, “*n+o núcleo dos cuidados

fundamentais que o Ministério Público não pode descurar em matéria de investigação

criminal deve ter-se por incluído o respeito pelos direitos processuais dos cidadãos como um

limite ao poder de direcção do qual é titular”49. Nesta perspetiva, ainda que se entenda que

o MP detém a disponibilidade material na condução das investigações – num espaço de

liberdade e responsabilidade – somos de opinião que esta condução deve ser conformada e

balizada pela necessidade de se considerar a perspetiva dos outros sujeitos processuais, em

especial, o arguido.

44 Assim, MOURA, José Souto de, Direito ao Assunto…, cit., p. 64.

45 Vd supra Cap. I. Cf. JÚNIOR, Arthur Pinto de Lemos, “O Papel do…”, cit., p. 8. De acordo com este Autor (p.

24) “*a+o mesmo tempo em que a boa investigação criminal reflete no maior ou menor êxito da acção penal, ela

é a primeira atividade que pode comprometer a dignidade da pessoa humana, os direitos individuais do cidadão

e contrariar o Estado de Direito. Por isso, para assegurar o fim precípuo do direito e da Justiça desde o início do

processo, é fundamental que todas as dinâmicas actividades do inquérito estejam sob a efetiva responsabilidade

política da magistratura ministerial”. 46

Assim, entre outros, MOURA, José Souto de, Direito ao Assunto…, cit., p. 64. 47

Neste sentido, e como bem ilustra Souto de Moura, espera-se desta magistratura “a capacidade para sentir

e interpretar o pulsar social. E é nesta capacidade de ouvir e de dialogar, é neste espaço de mediação entre a

sociedade e os tribunais, que os magistrados do Ministério Público encontram o seu caminho, a razão de ser da

sua função e o seu espaço de realização social” – cf. MOURA, José Souto de, “Discurso do Procurador-Geral da

República”, in Procuradoria-Geral da República (org.), 25 Anos do Estatuto do Ministério Público (sessão

comemorativa), Coimbra, Coimbra Editora, 2005. 48

GASPAR, Jorge, “Titularidade da Investigação…”, cit., pp. 52 e 53. 49

Idem, ibidem.

181

Numa palavra, o MP constitui, pois, uma “imprescindível magistratura do Estado de

Direito Democrático”, pela sua relevância crescente “no límpido, correcto, imparcial e

objectivo desempenho do poder de julgar”50.

Nesta perspetiva, as três características estruturantes do MP – autonomia, hierarquia e

responsabilidade –, e a sua compatibilização, assumem-se essenciais no cumprimento da

vocação do MP, enquanto entidade que simultaneamente usa a veste (uma das vestes!) de

investigador e acusador e de defensor dos direitos fundamentais dos cidadãos. Neste

contexto, o punctum crucis estará, como adverte Figueiredo Dias, precisamente, na

compatibilização do princípio da autonomia com o da responsabilidade comunitária, para

que, nomeadamente, “possam ser melhorados os níveis de êxito e de eficiência do MP, dos

quais depende o cumprimento da sua função social e, em último termo, a defesa dos

direitos fundamentais das pessoas e da comunidade”51. Até porque, além do mais, como

relembra o Autor, “(…) a autonomia do MP e a sua responsabilidade comunitária

constituem, para além de formas institucionais das magistraturas, direitos fundamentais dos

cidadãos e da sociedade”52.

Em síntese, o MP assume-se uma magistratura com variadíssimas e pluriformes funções,

cuja concretização reclama, no âmbito das novas exigências de uma justiça célere, eficaz,

eficiente e que promova a defesa dos direitos dos cidadãos, uma reflexão. Assistimos, pois, a

“uma renovada intencionalidade e funcionalidade comunitária das suas missões”53. De resto,

é no aprofundamento do princípio da autonomia, da hierarquia e da responsabilidade que o

Ministério Público deverá assumir a sua responsabilidade democrática.

50

Cf. COSTA, José de Faria da, “O Papel da Universidade na formação dos magistrados”, in Revista do Minis-

tério Público, ano XXI, n.º 82, p. 29. 51

Cf. DIAS, Jorge de Figueiredo, “Autonomia e responsabilidade…”, cit., p. 75. 52

Idem, ibidem. 53

Cf. DIAS, Jorge de Figueiredo, Acordos sobre …, cit., p. 113.

A cidadania como instrumento de inclusão

Significado e alcance da promessa de uma cidadania cívica

da União Europeia

Patrícia Jerónimo

O desenvolvimento da política europeia comum em matéria de imigração e asilo teve

sempre subentendida a necessidade de temperar o carácter inevitavelmente restritivo das

regras relativas à admissão dos nacionais de países terceiros no território dos Estados Mem-

bros com medidas dirigidas à boa integração desses nacionais nas respectivas sociedades de

acolhimento1. A lógica “securitária”2 não deixou, por certo, de prevalecer, corroborando a

ignominiosa imagem de uma “Europa fortaleza”3, mas o discurso oficial mantém, até hoje, a

questão da integração dos nacionais de países terceiros no topo da agenda política, como

bem demonstram os sucessivos Programas de Tampere (1999)4, da Haia (2005)5 e de Esto-

colmo (2010)6. O Tratado de Lisboa, entretanto, introduziu uma menção expressa à integra-

ção dos nacionais de países terceiros, no art. 79.º, n.º 4, do Tratado sobre o Funcionamento

da União Europeia (TFUE)7, “constitucionalizando” este assunto.

Entre os instrumentos de integração ensaiados na última década avulta o conceito de

cidadania cívica (civic citizenship), cunhado pela Comissão Europeia, na sua comunicação

relativa a uma política da Comunidade em matéria de imigração, de 20008, e concebido

1 Cf. PEERS, Steve – “Building Fortress Europe: The Development of EU Migration Law”, in Common Market

Law Review, 35, 1998, pp. 1236-1238. 2 Cf. HUYSMANS, Jef – “The European Union and the Securitization of Migration”, in Journal of Common Mar-

ket Studies, vol. 38, n.º 5, 2000, pp. 752-753 e 756-762. 3 Cf. GEDDES, Andrew – Immigration and European Integration. Towards Fortress Europe?, Manchester,

Manchester University Press, 2000, pp. 6, 15-17 e 26-27;CRAIG, Paul e BÚRCA, Gráinne de – EU Law. Text, Cases,

and Materials, 3.ª ed., Oxford, Oxford University Press, 2003, p. 752. 4 Definido pelas conclusões do Conselho Europeu de Tampere, de Outubro de 1999. O texto das conclusões

está disponível em http://www.europarl.europa.eu/summits/tam_pt.htm [21.04.2012]. 5 Plano de Acção do Conselho e da Comissão de Aplicação do Programa da Haia sobre o Reforço da Liberda-

de, da Segurança e da Justiça na União Europeia, in Jornal Oficial da União Europeia (JO) C 198, de 12.08.2005. 6 Programa de Estocolmo – Uma Europa Aberta e Segura que Sirva e Proteja os Cidadãos, in JO C 115, de

04.05.2010. 7 Nos termos deste preceito, o Parlamento Europeu e o Conselho, deliberando de acordo com o processo

legislativo ordinário, podem estabelecer medidas para incentivar e apoiar a acção dos Estados Membros destina-

da a fomentar a integração dos nacionais de países terceiros que residam legalmente no seu território, excluin-

do-se qualquer harmonização das disposições legislativas e regulamentares dos Estados Membros. JO C 83, de

30.03.2010. 8 COM (2000) 757 final, de 22.11.2000.

183

como forma de assegurar o tratamento equitativo dos nacionais de países terceiros legal-

mente residentes no território dos Estados Membros, através do reconhecimento a estes

indivíduos de direitos e deveres comparáveis aos dos cidadãos da União (um dos marcos de

Tampere). A designação é equívoca, na medida em que parece aludir às “virtudes cívicas”,

associadas à participação responsável dos cidadãos na res publica, quando o que se preten-

de é descrever um status intermédio entre cidadão e estrangeiro, a partir de uma acepção

de cidadania mais inclusiva do que aquela que resulta da equiparação entre cidadania e

nacionalidade9. Para além disso, os termos em que o novo conceito foi apresentado pela

Comissão são extremamente vagos, não sendo muito claro se o que está em causa é o esta-

belecimento de um estatuto jurídico autónomo, a coexistir com a cidadania dos Estados

Membros e com a cidadania da União, ou se se trata sobretudo de uma referência genérica

ao conjunto de direitos e deveres a reconhecer pelos Estados Membros aos seus imigrantes

de longa duração10. A tratar-se de um estatuto jurídico autónomo, como defendido por Rai-

ner Bauböck11, também não é claro se se tratará de um estatuto provisório, prévio à natura-

lização, ou de um estatuto permanente, e, neste caso, se o estatuto será conferido pelas

autoridades dos Estados Membros ou, como admite Bernhard Perchinig, directamente pelas

instituições da União Europeia12.

9 A designação civic citizenship é comummente traduzida como cidadania cívica e é essa a tradução que pre-

ferimos e adoptamos no texto. Importa, no entanto, ter presente que, na versão portuguesa dos textos das

comunicações da Comissão Europeia que introduziram o conceito, e que analisaremos infra, civic citizenship

aparece traduzida como cidadania civil, provavelmente por influência das traduções alemã e francesa desses

textos, que usam os termos Zivilbürgerschaft e citoyenneté civile. Entendemos que, à semelhança do que se

passa com a alternativa civic citizenship/civil citizenship, não existem vantagens, do ponto de vista da clareza e

rigor conceptual, em optar pela designação cidadania civil, desde logo, porque o conceito avançado pela Comis-

são Europeia não engloba apenas direitos civis e sociais, mas também direitos políticos. Cf. BAUBÖCK, Rainer –

“Civic Citizenship: A New Concept for the New Europe”, in Rita Süssmuth e Werner Weidenfeld (eds.), Managing

Integration: The European Union’s Responsibilities towards Immigrants, Gütersloh, Bertelsmann Stiftung, 2005, p.

126. 10

A utilização da expressão com o segundo destes sentidos pode encontrar-se nos estudos promovidos pelo

Migration Policy Institute e pelo British Council, em que a cidadania cívica serve para designar um conjunto de

políticas em matéria de integração de imigrantes, incluindo aspectos como direitos de residência, reagrupamen-

to familiar, naturalização e combate à discriminação. Cf. NIESSEN, Jan, PEIRO, María José e SCHIBEL, Yongmi –

Civic Citizenship and Immigrant Inclusion. A Guide for the Implementation of Civic Citizenship Policies, Bruxelas,

Migration Policy Group, 2005; GEDDES, Andrew, et al. – European Civic Citizenship and Inclusion Index, Bruxelas,

British Council Brussels, 2005. 11

Cf. BAUBÖCK, Rainer – “Civic Citizenship: A New Concept for the New Europe”, cit., p. 122. 12

Cf. PERCHINIG, Bernhard – “EU Citizenship and the Status of Third Country Nationals”, in Rainer Bauböck

(ed.), Migration and Citizenship. Legal Status, Rights and Political Participation, Amesterdão, Amsterdam Univer-

sity Press, 2006, p. 82. Esta hipótese será, certamente, aliciante do ponto de vista da autonomização de um

estatuto de cidadania supranacional, mas não tem apoio nas propostas da Comissão, que analisaremos infra e

que expressamente situam o desenvolvimento do conceito de cidadania cívica ao nível dos Estados Membros.

184

Apesar de tudo, o conceito tinha (e poderá ter ainda) potencial para reconfigurar os

modelos de pertença na União Europeia e aproximar o estatuto jurídico dos nacionais de

países terceiros daquele de que gozam os cidadãos dos Estados Membros no seu país de

origem e quando se deslocam no espaço da União13. Necessário é que haja vontade política

nesse sentido, o que não se tem verificado. Depois de ter servido de inspiração14 ao estatuto

de residente de longa duração, instituído pela Directiva 2003/109/CE, de 25 de Novembro15,

a cidadania cívica perdeu momentum e a expressão caiu praticamente em desuso nos meios

políticos europeus16. O Manual de Integração para Decisores Políticos e Profissionais, elabo-

rado em nome da Comissão Europeia, continua a fazer-lhe referência, em termos muito

genéricos17, mas a própria Comissão parece ter abandonado o conceito18. Agora, a palavra

de ordem é cidadania europeia activa, a fórmula escolhida para designar a mais recente

tentativa de cativar os cidadãos da União, incentivando a sua interacção com as instituições

europeias e, de um modo geral, o seu envolvimento nas reflexões e debates sobre a cons-

trução da União Europeia19. As medidas adoptadas neste domínio dirigem-se, em primeira

linha, aos cidadãos da União, ainda que sejam pontualmente alargadas a todos os residen-

tes20. Não está em causa, de resto, a atribuição de direitos ou sequer a imposição de deve-

13

Cf. BAUBÖCK, Rainer – “Civic Citizenship: A New Concept for the New Europe”, cit., pp. 124-125. 14

Cf. VITORINO, António – “Uma Política Comum de Imigração”, in AAVV, I Congresso Imigração em Portugal

(Diversidade, Cidadania, Integração), Porto, ACIME, 2004, p. 36. 15

Directiva 2003/109/CE, do Conselho, de 25 de Novembro de 2003, relativa ao estatuto dos nacionais de

países terceiros residentes de longa duração. JO L 16, de 23.01.2004. 16

É possível encontrar referências à cidadania cívica no Parecer do Comité das Regiões sobre o Relatório de

2010 sobre a cidadania da União, mas aqui com um sentido muito diferente do pretendido pela Comissão Euro-

peia, já que o que parece estar em causa é a facilitação da livre circulação de cidadãos da União e respectivos

familiares oriundos de países terceiros, através de uma maior divulgação dos direitos de livre circulação dos

cidadãos da União junto da população. JO C 166, de 07.06.2011. 17

O Manual de Integração para Decisores Políticos e Profissionais (2010) está disponível em

http://www.migpolgroup.com/public/docs/173.Integration_Handbook_III_15.04.10_PT.pdf [25.04.2012]. 18

Cf. BAUBÖCK, Rainer – “Why European Citizenship? Normative Approaches to Supranational Union”, in

Theoretical Inquiries in Law, vol. 8, n.º 2, 2007, p. 472. 19

Decisão do Conselho, de 26 de Janeiro de 2004, que estabelece um programa de acção comunitária para a

promoção da cidadania europeia activa (participação cívica), JO L 30, de 04.02.2004; Decisão n.º 1904/2006/CE,

do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Dezembro de 2006, que institui para o período 2007-2013 o

programa “Europa para os cidadãos”, destinado a promover a cidadania europeia activa, JO L 378, de 27.12.2006. 20

A Decisão n.º 1983/2006/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, relativa ao Ano Europeu do Diálogo

Intercultural (2008), dispôs expressamente que, para os seus efeitos, “a noção de ‘cidadania europeia activa’

deve abranger não só os cidadãos da UE na acepção do art. 17.º do Tratado CE, mas também qualquer pessoa

que viva a título permanente ou temporário na UE”. A Decisão n.º 1904/2006/CE, relativa ao programa “Europa

para os cidadãos”, pode ler-se que, “*para] aproximar a Europa dos seus cidadãos e lhespermitir participar ple-

namente na construção de umaEuropa cada vez mais unida, é necessário chegar a todosos nacionais e residentes

legais nos países participantes eimplicá-los em intercâmbios e acções de cooperaçãotransnacionais, contribuindo

assim para fomentar umsentimento de partilha de ideais europeus comuns” (itálicos nossos). O Manual de Inte-

gração para Decisores Políticos e Profissionais também usa a noção de cidadania activa, como “forma não jurídi-

ca de cidadania”, associando-a à participação dos indivíduos na sociedade civil, na comunidade e na vida política,

185

res, apesar da importância dada à participação cívica dos cidadãos21. A cidadania activa não

substitui, por isso, a cidadania cívica, tal como este conceito foi proposto pela Comissão

Europeia no início da década passada.

Resta saber se ainda valerá a pena resgatar esta ideia, cujo potencial ficou em larga

medida por cumprir, ou se não será preferível deixá-la cair por completo, atentos os conhe-

cidos obstáculos à sua viabilização política e jurídica. É o que nos propomos averiguar, a

partir de uma análise dos termos em que a cidadania cívica foi apresentada nas comunica-

ções da Comissão Europeia e de uma sua comparação com a cidadania da União (o estatuto

jurídico de referência) e com a tutela assegurada aos nacionais de países terceiros pela Carta

dos Direitos Fundamentais da União Europeiae pelo estatuto de residente de longa duração.

1. A apresentação do novo conceito

O Conselho Europeu, reunido em Tampere, em Outubro de 1999, afirmou a necessidade

de a União garantir o tratamento equitativo (fair treatment) dos nacionais de países tercei-

ros legalmente residentes no território dos Estados Membros, argumentando que proceder

de outra forma seria contrário à “tradição europeia”. Um tratamento equitativo – disse-se

então – exigiria uma política de integração vigorosa, apta a assegurar a estes indivíduos

direitos e deveres comparáveisaos dos cidadãos da União, para além de reforçar as medidas

de combate à discriminação na vida económica, social e cultural e de combate ao racismo e

à xenofobia.

Desenvolvendo a primeira ideia, o Conselho Europeu observou que o estatuto jurídico

dos nacionais de países terceiros deve ser aproximado do dos nacionais dos Estados Mem-

bros e acrescentou que uma pessoa, que tenha residido legalmente num Estado Membro

por um certo período de tempo e possua uma autorização de residência prolongada, deve

beneficiar, no Estado Membro de residência, de um conjunto de direitos uniformes, tão

próximos quanto possível22 dos titulados pelos cidadãos da União. Como exemplos, o Conse-

com o objectivo de contribuir para a formação de um capital social colectivo, a partir da partilha de valores

comuns como os direitos humanos, a democracia e a compreensão intercultural (pp. 108 e 128). 21

Também aqui, os cidadãos da União continuam a ser tratados sobretudo como consumidores, que importa

aliciar, sem sobrecarregar. Cf. WEILER, Joseph H. H. – “The European Union belongs to its citizens: Three immod-

est proposals”, in European Law Review, 22, 2, 1997, p. 152. 22

O rascunho inicial das conclusões do Conselho Europeu ia mais longe, usando a fórmula “direitos iguais”.

De qualquer modo, as conclusões de Tampere não deixaram de ser bastante arrojadas, tendo em conta que, ao

tempo, a legislação da maioria dos Estados Membros discriminava abertamente contra os nacionais de países

terceiros. Cf. BAUBÖCK, Rainer, et al. – “Migrants’ Citizenship: Legal Status, Rights and Political Participation”, in

186

lho Europeu referiu o direito a residir, estudar ou trabalhar, como subordinado ou por conta

própria, e o direito a não ser discriminado em relação aos cidadãos do Estado de residência.

O Conselho Europeu disse ainda subscrever o objectivo de proporcionar aos nacionais de

países terceiros residentes de longa duração a oportunidade de obter a nacionalidade do

Estado Membro em que residam.

Em linha com as conclusões de Tampere, a Comissão Europeia apresentou, em Novem-

bro de 2000, a comunicação relativa a uma política da Comunidade em matéria de imigra-

ção. Sublinhando o facto de a integração dos imigrantes ser um processo de longa duração,

que requer a adaptação, tanto da parte do imigrante, como da sociedade de acolhimento, a

Comissão defendeu, como princípio subjacente à política comum de imigração, que as pes-

soas regularmente admitidas deviam gozar, em termos gerais, dos mesmos direitos e obri-

gações que os nacionais dos Estados Membros (sobretudo no tocante às condições de traba-

lho e de residência), ainda que esses direitos e obrigações pudessem ser graduais e relacio-

nados com o período de estada previsto nas respectivas condições de entrada.

Neste contexto, a Comissão avançou o conceito de cidadania cívica, que explicou como

“incluindo um conjunto comum de direitos e obrigações fundamentais”, a reconhecer, “num

determinado Estado Membro”, aos nacionais de países terceiros, para facilitar a sua integra-

ção na sociedade de acolhimento e, porventura, constituir um primeiro passo no sentido da

aquisição da nacionalidade desse Estado. A Comissão propôs que o estatuto jurídico dos

nacionais de países terceiros fosse baseado numa concessão gradual de blocos de direitos e

deveres – semelhantes aos dos nacionais, mas diferenciados em função do período de esta-

da – até culminar na obtenção do estatuto de residente permanente e, a longo prazo, even-

tualmente, na concessão de “uma forma de cidadania cívica”, fundada nos Tratados e inspi-

rada pela Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.

A Comissão voltaria a este ponto em duas comunicações posteriores – a comunicação

relativa a um mecanismo de coordenação aberto da política comunitária em matéria de

imigração, de 200123, e a comunicação relativa à imigração, à integração e ao emprego, de

200324. O texto de 2001 limitou-se a insistir na necessidade de examinar “a validade do con-

ceito de cidadania cívica através da definição dos direitos e responsabilidades que garantam

o tratamento equitativo dos nacionais de países terceiros legalmente residentes”, mas, em

2003, a Comissão foi mais longe, explicando que a cidadania cívica garantiria um conjunto

Rinus Penninx, Maria Berger e Karen Kraal (eds.), The Dynamics of International Migration and Settlement in

Europe. A State of the Art, Amesterdão, Amsterdam University Press, 2006, p. 84. 23

COM (2001) 387 final, de 11.07.2001. 24

COM (2003) 336 final, de 03.06.2003.

187

comum de direitos e obrigações fundamentais dos imigrantes (incluindo direitos de partici-

pação política), a conceder de forma gradual, ao longo de um dado número de anos, de

modo a permitir que os imigrantes fossem tratados da mesma forma que os nacionais do

Estado Membro de residência, sem terem necessidade de adquirir a nacionalidade desse

Estado.

A Comissão reconheceu que a aquisição da nacionalidade do Estado Membro de residên-

cia não tem de ser o objectivo principal do processo de integração e também que a naturali-

zação não evita, por si só, os problemas decorrentes da discriminação e da exclusão social.

Isso não a impediu, no entanto, de afirmar que a cidadania cívica pode ser um passo para a

obtenção da nacionalidade do Estado Membro de residência e que o acesso à nacionalidade

facilita a integração, por habilitar os seus portadores a uma participação plena, de jure,na

vida política, cívica, cultural, social e económica do Estado Membro e, desse modo, encora-

jar o sentimento de pertença à vida nacional. Pressupondo ser “conveniente que os imigran-

tes se tornem cidadãos”, a Comissão disse ser razoável relacionar o acesso à cidadania com

a duração da estada no país e facultar aos “imigrantes de segunda/terceira geração” o aces-

so automático ou semi-automático à cidadania do Estado de residência. A Comissão reco-

mendou ainda que o processo de naturalização fosse rápido, seguro e incondicional, basea-

do em critérios claros, exactos e objectivos, e susceptível de controlo judicial.

À semelhança dos textos anteriores, a Comissão apontou a Carta dos Direitos Fundamen-

tais como enquadramento básico para a cidadania cívica, chamando a atenção para o facto

de alguns dos direitos previstos na Carta serem conferidos a todas as pessoas legalmente

residentes na União. Entre os direitos a englobar pela cidadania cívica, a Comissão destacou

os direitos de participação política, por entender que a concessão de direitos políticos aos

imigrantes residentes de longa duração é importante para o processo de integração destes

indivíduos nas respectivas sociedades de acolhimento25. Depois de observar que vários Esta-

dos Membros reconhecem o direito de voto nas eleições locais a todos os residentes legais,

verificadas certas condições, a Comissão disse ser óbvio que, numa perspectiva de apoio à

integração, o direito de voto nas eleições locais deve decorrer da residência permanente e

não da nacionalidade, acrescentando que os Tratados deveriam fornecer a base para essa

solução.

25

Esta ideia já fora aflorada na comunicação de 2000, ainda que de forma muito superficial. Aí se pode ler

que a “concessão da igualdade respeitante às condições de trabalho e acesso aos serviços, juntamente com a

atribuição de direitos cívicos e políticos aos migrantes residentes de longa duração, implica responsabilidades e

promove a integração” (itálicos nossos).

188

Em suma, a cidadania cívica é apresentada como um conjunto de direitos e deveres, a

reconhecer, em toda a União, aos nacionais de países terceiros ao cabo de um período de

residência no território de um dos Estados Membros. Mais do que um instrumento para

facilitar a integração, a cidadania cívica parece constituir um prémio à integração26, na

medida em que tem pressuposta a prévia aquisição de uma autorização de residência per-

manente e a progressiva titularidade de blocos de direitos, em condições de igualdade com

os nacionais do Estado Membro de residência, à medida do prolongamento da estada. A

cidadania cívica agrega todos os direitos previamente adquiridos e outros a definir por refe-

rência à Carta dos Direitos Fundamentais, devendo incluir direitos de participação política,

pelo menos a nível local, e podendo incluir o direito à aquisição da nacionalidade do Estado

de residência.

Como já observado, não é muito claro se a cidadania cívica foi originariamente concebida

como um estatuto jurídico autónomo, a titular exclusivamente pelos nacionais de países

terceiros e paralelo à cidadania dos Estados Membros e à cidadania da União, ou se foi

sobretudo pensada como uma antecâmara da aquisição da nacionalidade dos Estados

Membros. A Comissão prefere a naturalização, como instrumento de integração por exce-

lência, mas também admite que esta não é, nem necessária, nem suficiente. Seja como for,

os direitos e deveres de cidadania cívica devem ser tão próximos quanto possível dos titula-

dos pelos nacionais dos Estados Membros no respectivo país de origem e quando se deslo-

cam no espaço da União, o que permite antecipar uma diminuição dos incentivos à naturali-

zação27.

O Parlamento Europeu, o Comité das Regiões e o Comité Económico e Social Europeu

saudaram a iniciativa e acolheram favoravelmente o novo conceito28. O Conselho Justiça e

26 De forma não muito diferente do que se passa com a aquisição da nacionalidade dos Estados Membros. Cf.

ERSANILLI, Evelyn e KOOPMANS, Ruud – “Rewarding integration? Citizenship regulations and the socio-cultural

integration of immigrants in the Netherlands, France and Germany”, in Journal of Ethnic and Migration Studies,

vol. 36, n.º 5, 2010, p. 774. 27

Em idêntico sentido, cf. BAUBÖCK, Rainer – “Civic Citizenship: A New Concept for the New Europe”, cit., p.

129; HEALY, Claire – Cidadania portuguesa: a nova lei da nacionalidade de 2006, Lisboa, ACIDI, 2011, p. 45. 28

O Parlamento Europeu “*regozija-se] com o facto de se inserir na Comunicação o conceito de cidadania

[cívica], que permita aos nacionais de países terceiros com residência legal na União Europeia beneficiar de um

estatuto que lhes confira direitos e deveres económicos, sociais e políticos, incluindo o direito de voto em elei-

ções locais e para o Parlamento Europeu, mas salienta que tal implica mais do que dar execução a iniciativas

legais; sublinha a importância da cidadania [cívica] para o sentimento de pertença a uma comunidade e, por

conseguinte, para a integração; solicita à Comissão que continue a sublinhar a necessidade de os Estados-

Membros velarem por que os seus requisitos em matéria de cidadania não sejam discriminatórios, tendo em

conta, em particular, o disposto no art. 13.º do Tratado”. Resolução do Parlamento Europeu sobre a comunica-

ção da Comissão relativa à imigração, à integração e ao emprego (COM(2003) 336 - 2003/2147(INI)), JO C 92 E,

de 16.04.2004.

189

Assuntos Internos, ao definir, em 2004, os princípios básicos comuns da política de integra-

ção dos imigrantes na União Europeia, subscreveu muitas das ideias avançadas pela Comis-

são, mas não fez qualquer referência à cidadania cívica29.

2. A cidadania cívica e a sua circunstância

As propostas da Comissão Europeia foram apresentadas numa altura em que as críticas

contra o carácter exclusivo da cidadania da União e a ausência de um estatuto jurídico uni-

forme para os nacionais de países terceiros estavam ao rubro.

A cidadania da União foi, desde muito cedo, censurada por, na sua dependência face às

cidadanias dos Estados Membros30, discriminar os nacionais de países terceiros com resi-

dência prolongada em solo europeu, condenando-os à condição de cidadãos de segunda

O Comité das Regiões manifestou a sua inquietação perante o que lhe pareceu, em Fevereiro de 2004, ser

um retrocesso da Comissão em relação “à preocupação manifestada na sua Comunicação relativa a uma política

da Comunidade em matéria de imigração, que aludia a um estatuto jurídico para os nacionais de países terceiros,

numa base de igualdade com os nacionais da União Europeia, que poderia levar a conceder uma forma de cida-

dania *cívica+ baseada no Tratado CE”. Parecer do Comité das Regiões sobre a “Comunicação da Comissão ao

Conselho, Parlamento Europeu, Comité Económico e Social Europeu e Comité das Regiões relativa à imigração, à

integração e ao emprego” (2004/C 109/08), JO C 109, de 30.04.2004.

O Comité Económico e Social Europeu foi o mais entusiasta, mas interpretou erradamente o novo conceito

como significando um alargamento da cidadania da União aos nacionais de países terceiros com residência per-

manente num dos Estados Membros. “O CESE considera que a proposta de cidadania cívica da Comissão tem o

mesmo objectivo que a sua própria proposta de cidadania da União, isto é, que os nacionais de países terceiros

que residam de maneira estável ou por um longo período na União Europeia disponham dos mesmos direitos e

deveres que os nacionais dos Estados-Membros, isto é, os cidadãos europeus. Com uma cidadania europeia

plural, inclusiva e participativa como o CESE propôs (incluindo o direito à participação política, isto é, o direito de

voto activo e passivo nas eleições municipais e nas europeias), podem-se favorecer consideravelmente todos os

processos de integração dos imigrantes. [O] Comité solicita à Conferência Intergovernamental, incumbida de

elaborar o Tratado Constitucional com base na proposta da Convenção, que o novo Tratado conceda a cidadania

da União aos nacionais de países terceiros que nela residam de maneira estável ou após um longo período”.

Parecer do Comité Económico e Social Europeu sobre a “Comunicação da Comissão ao Conselho, Parlamento

Europeu, ao Comité Económico e Social Europeu e ao Comité das Regiões relativa à imigração, à integração e ao

emprego” (COM(2003) 336 final)(2004/C 80/25), JO C 80, de 30.03.2004. 29

O Conselho reconhece, nomeadamente, que o acesso dos imigrantes, em condições de igualdade com os

nacionais do Estado Membro de residência, às instituições e a bens e serviços, privados ou públicos, é crucial

para a sua boa integração; que a participação dos imigrantes no processo democrático e na formulação das

políticas de integração, sobretudo a nível local, contribui para a sua integração (o que requer das sociedades de

acolhimento que estas criem oportunidades para a plena participação económica, social, cultural e política dos

imigrantes, incluindo, se possível, o reconhecimento do direito de voto e de participação em partidos políticos); e

que a hipótese de adquirir a nacionalidade do Estado Membro de residência pode constituir um importante

incentivo para a integração. Conselho Justiça e Assuntos Internos, documento 14615/04, de 19.11.2004, disponí-

vel em http://www.consilium.europa.eu/ueDocs/cms_Data/docs/pressData/en/jha/82745.pdf#zoom=100

[25.04.2012]. 30

Cf. SØRENSEN, Jens Magleby – The Exclusive European Citizenship. The case for refugees and immigrants in

the European Union, Aldershot, Avebury, 1996, p. 103; WEILER, Joseph H. H., HALTERN, Ulrich e MAYER, Franz –

“European democracy and its critique. Five uneasy pieces”, EUI Working Paper RSC n.º 95/11, p. 25.

190

categoria31. No seu formalismo, a cidadania da União acaba por não reflectir os laços sócio-

-culturais existentes entre os indivíduos e as sociedades europeias de acolhimento32 e frus-

tra uma das suas principais promessas, a de proporcionar um meio para acomodar a dife-

rença33. Várias sugestões têm vindo a ser feitas no sentido de rever o conceito – adoptando

uma “cidadania europeia multicultural”34 que, sendo atribuída com base na residência35 ou

nascimento no território da União, inclua tanto os nacionais dos Estados Membros como os

nacionais de países terceiros –, ou, em alternativa, criar um estatuto autónomo de quase-

-cidadania para os nacionais de países terceiros, que lhes proporcione todos ou quase todos

os direitos associados à cidadania da União36.

Quanto ao estatuto jurídico dos nacionais de países terceiros, este era, ao tempo da

apresentação das propostas da Comissão, extremamente incerto, porque resultante da con-

jugação de disposições dispersas de Direito nacional (legislação em matéria de imigração),

de Direito Comunitário (normas relativas à política de vistos) e de Direito internacional (Con-

venção Europeia dos Direitos do Homem e Acordos de Associação concluídos pela Comuni-

dade com países terceiros37), bem como de soluções ad hoc adoptadas no quadro da coope-

31

Não apenas por comparação com os nacionais do Estado Membro onde residam, mas também por compa-

ração com os estrangeiros a residir nesse Estado que sejam nacionais de outro Estado Membro e, por isso, titula-

res da cidadania da União. Cf. SØRENSEN, Jens Magleby – The Exclusive European Citizenship, cit., p. 152; Thierry

DEBARD – “La citoyenneté européenne et le Traité d’Amsterdam”, in Christian Philip e Panayotis (dirs.), La ci-

toyenneté européenne, Montréal, Université de Montréal, 2000, pp. 258-261. 32

A cidadania da União é conferida automaticamente a todos os que sejam nacionais de um Estado Membro

(aqueles que possam provar esse laço jurídico), mas negada aos nacionais de países terceiros, ainda que estes

tenham desenvolvido um genuíno sentimento de pertença à Europa por força de uma longa residência em terri-

tório europeu. Cf. WIENER, Antje – “Promises and resources. The developing practice of ‘European’ citizenship”,

in Massimo La Torre (ed.), European citizenship: an institutional challenge, A Haia, Kluwer Law International,

1998, p. 410. 33

Cf. GARCÍA, Soledad – “Europe’s fragmented identities and the frontiers of citizenship”, in Soledad García

(ed.), European identity and the search for legitimacy, Londres, Pinter Publishers, 1993, pp. 6-7 e 25-26. 34

Nesse sentido, cf. DELGADO-MOREIRA, Juan M. – Multicultural citizenship of the European Union, Hamp-

shire, Ashgate, 2000, pp. 28-30. 35

A hipótese de dissociar a cidadania da União das cidadanias dos Estados Membros foi defendida, na déca-

da de 90, por várias organizações não governamentais e think tanks, como o European Migrants’ Forum, para

quem a cidadania da União deveria ser atribuída directa e automaticamente aos nacionais de países terceiros ao

fim de cinco anos de residência. Cf. BAUBÖCK, Rainer – “Civic Citizenship: A New Concept for the New Europe”,

cit., p. 128. Em defesa de uma place oriented citizenship se pronunciou, igualmente, o Parlamento Europeu, nos

relatórios Outrive e Imbeni sobre a cidadania da União, de 20 de Outubro de 1993. Na doutrina, esta hipótese foi

defendida, entre outros, por Catherine Wihtol de Wenden. Cf. DE WENDEN, Catherine Wihtol – “European citi-

zenship and migration”, in Rémy Leveau, Khadija Mohsen-Finan e Catherine Wihtol de Wenden (eds.), New Euro-

pean identity and citizenship, Aldershot, Ashgate, 2002, p. 86. 36

A doutrina divide-se quanto aos direitos a incluir e a excluir do estatuto. Cf. BAUBÖCK, Rainer – “National

community, citizenship and cultural diversity”, in Political Science Series, n.º 62, 1999, pp. 22-23; DELGADO-

MOREIRA, Juan M. – Multicultural citizenship of the European Union, cit., pp. 196-197. 37

Muito por força da jurisprudência do Tribunal de Justiça, que desempenhou um papel proeminente no

estabelecimento e desenvolvimento dos direitos individuais contidos nos Acordos de Associação. Cf. HEDE-

191

ração em matéria de Justiça e Assuntos Internos38. Um puzzle normativo que em muito con-

tribuía para a extrema vulnerabilidade em que se encontravam os nacionais de países tercei-

ros a residir no espaço da União Europeia.

A possibilidade de conceder aos nacionais de países terceiros um estatuto jurídico uni-

forme para toda a União e comparável ao estatuto gozado pelos cidadãos dos Estados

Membros, sem lhes ser exigido que adquirissem a nacionalidade desses Estados, parecia vir

responder a estas preocupações. Nesse sentido se pronunciaram, nomeadamente, Rainer

Bauböck e Bernhard Perchinig. Segundo Bauböck, a cidadania cívica permitiria pôr cobro ao

estatuto inferior dos nacionais de países terceiros em domínios ainda não cobertos pelas

directivas anti-discriminação39 e contribuiria para a coesão social e para a igualdade política

na União Europeia, por proporcionar aos nacionais de países terceiros um estatuto jurídico

seguro e a oportunidade de participarem nos processos de decisão política a nível local, em

condições de igualdade com os cidadãos da União40. Para Perchinig, o conceito de cidadania

cívica tinha potencial para vir a revelar-se o elo que faltava entre a cidadania da União, as

medidas de combate à discriminação e a política de imigração na União Europeia. Ao prote-

ger os nacionais de países terceiros contra a discriminação em razão da nacionalidade e ao

atribuir-lhes o direito de voto nas eleições locais, a cidadania cívica permitiria, não apenas

colmatar as lacunas das directivas anti-discriminação, mas também garantir um estatuto

jurídico comum a todos os imigrantes no espaço europeu (fossem eles nacionais de países

terceiros ou cidadãos da União a residir num Estado Membro diferente do da sua nacionali-

dade) e até pôr em causa o nexo ainda existente entre a cidadania da União e a nacionalida-

de dos Estados Membros41.

MANN-ROBINSON, Martin – “An Overview of Recent Legal Developments at Community Level in Relation to Third

Country Nationals Resident within the European Union, with Particular Reference to the Case Law of the Euro-

pean Court of Justice”, in Common Market Law Review, 38, 2001, pp. 534-535. 38

Cf. STAPLES, Helen – The Legal Status of Third Country Nationals Resident in the European Union, A Haia,

Kluwer Law International, 1999, pp. 3-6; HEDEMANN-ROBINSON, Martin – “An Overview of Recent Legal Devel-

opments...”, cit., pp. 525-528. 39

Directiva 2000/43/CE, de 29 de Junho, que aplica o princípio da igualdade de tratamento entre as pessoas,

sem distinção de origem racial ou étnica, JO L 180, de 19.07.2000, e Directiva 2000/78/CE, de 27 de Novembro,

que estabelece um quadro geral de igualdade de tratamento no emprego e na actividade profissional, JO L 303,

de 02.12.2000. 40

Cf. BAUBÖCK, Rainer – “Civic Citizenship: A New Concept for the New Europe”, cit., pp. 124-125. 41

“The suggested introduction of a ‘European status’ for third country nationals via the concept of civic citi-

zenship deserves attention. The concept, which stresses the prohibition of discrimination based on nationality

and the right to vote at local level, might be the missing link between Union citizenship, antidiscrimination policy

and EU migration policies. [It] could become a tool for gradually harmonising the status of third country nationals

with Union citizens and guaranteeing a common legal status for immigrants in all Member States. It could finally

question the still existing nexus between Member State nationality and European citizenship”. Cf. PERCHINIG,

192

As propostas da Comissão Europeia foram, no entanto, acolhidas com interesse e entu-

siasmo moderados. O conceito de cidadania cívica parece designar apenas aquilo que vem a

ser referido na doutrina como denizenship, ou seja, um status intermédio entre estrangeiro

e cidadão, reconhecido pela generalidade dos Estados aos imigrantes que residem de forma

regular e continuada nos seus territórios42. Não traz, por isso, nada de substancialmente

novo, ainda que tenha o inegável mérito de conferir a esta prática dos Estados uma clara

dimensão europeia43. Também não elimina a disparidade de estatutos dos nacionais de paí-

ses terceiros, já que abrange unicamente aqueles que tenham residência permanente num

Estado Membro44. Mesmo aceitando, como faz Rainer Bauböck, que se trata de um estatuto

jurídico autónomo, diferente da cidadania dos Estados Membros e da cidadania da União,

poder-se-á dizer que a cidadania cívica fica muito aquém das propostas de uma cidadania

europeia pós-nacional (ou multicultural) baseada na residência, já que o seu referente últi-

mo continua a ser a cidadania estadual, a forma por excelência de pertença à comunidade

política. Como observa Ricard Zapata-Barrero, a cidadania cívica não afecta minimamente a

Bernhard – “EU Citizenship and the Status of Third Country Nationals”, cit., p. 81 (aspas no original, interpolação

nossa). 42

Como explica Rainer Bauböck, o conceito de denizenship foi introduzido por Tomas Hammar, em 1990,

para referir a actual tendência dos Estados democráticos para dissociar os direitos de cidadania da nacionalidade

formal e baseá-los na residência. Uma tendência que também pode ser designada como “cidadania residencial”

(residential citizenship) e que faz parte de um fenómeno mais vasto de “cidadania transnacional” (transnational

citizenship), a par do reconhecimento de direitos de naturalização, de uma crescente aceitação da múltipla

nacionalidade e do reforço dos laços dos emigrantes com os seus países de origem, o que Bauböck designa por

“cidadania externa” (external citizenship). Cf. BAUBÖCK, Rainer – “Civic Citizenship: A New Concept for the New

Europe”, cit., p. 126. 43

Cf. ZAPATA-BARRERO, Ricard – “Interpretando el Proceso de Multiculturalidad en España y la Propuesta de

Ciudadanía Cívica de la UE”, in Arbor, CLXXXI, 713, 2005, p. 112. O Autor hesita entre considerar que a cidadania

cívica constitui um salto qualitativo importante e admitir que esta não passa de uma mera reformulação de

velhas ideias. Recorrendo à imagem do copo meio cheio e meio vazio, Zapata-Barrero admite que o conceito

pode ser interpretado como uma proposta política inovadora, associada a uma política de imigração aberta e

inclusiva, ou como apenas mais um aspecto da tradicional política de aquisição da cidadania estadual, associado,

por isso, a uma política de imigração fechada. É certo que a cidadania cívica reflecte uma nova percepção do

papel que os imigrantes podem ter na construção europeia e tem subjacente uma noção de pertença muito mais

ampla e inclusiva do que a cidadania da União. No entanto, a concessão da cidadania da União e dos direitos de

participação política aos imigrantes continua a estar nas mãos dos Estados, que fazem depender o acesso a uma

e a outros da aquisição da respectiva nacionalidade. “Desde el punto de vista de construcción de una ciudadanía

que tenga en cuenta la realidad multicultural en Europa, [reconozco] que tengo una interpretación ambivalente.

Con el análisis del debate entre instituciones sobre la ciudadanía cívica y su ubicación dentro de los grandes

marcos de referencia discursivas políticas de la UE (Tampere, Salónica, la Haya) podemos ver la botella media

vacía (Tradición) o media llena (Innovación)”. Cf. ZAPATA-BARRERO, Ricard – “Interpretando el Proceso de Multi-

culturalidad en España y la Propuesta de Ciudadanía Cívica de la UE”, cit., p. 112 (interpolação nossa, itálicos no

original). 44

Continuaremos, portanto, a ter uma hierarquização da população migrante no espaço da União Europeia –

os nacionais de países terceiros sem autorização de residência permanente, os titulares de cidadania cívica e os

cidadãos da União Europeia. Cf. ZAPATA-BARRERO, Ricard – “Interpretando el Proceso de Multiculturalidad en

España y la Propuesta de Ciudadanía Cívica de la UE”, cit., p. 112.

193

cidadania da União, que continua a ser uma cidadania derivada ou de segundo grau, na

inteira dependência da vontade dos Estados Membros45. Mais arrojada foi a proposta do

Comité Económico e Social Europeu de adoptar uma “definição lata de cidadania europeia,

cujo âmbito de aplicação inclua os nacionais de países terceiros que residem estavelmente

em qualquer Estado-Membro da União Europeia”46. Uma definição lata de cidadania que o

Comité entendeu, erradamente, corresponder ao conceito de cidadania cívica avançado pela

Comissão.

Ao propor a cidadania cívica como instrumento de integração dos nacionais de países

terceiros, a Comissão Europeia deixou deliberadamente intacto o nexo existente entre a

cidadania da União e a nacionalidade dos Estados Membros. A hipótese de alargar a titulari-

dade da cidadania da União aos nacionais de países terceiros continua a ser defendida como

o instrumento de integração ideal por académicos e activistas de direitos humanos47, mas a

União Europeia mostra-se incapaz de dar esse passo48 e parece optar pela segunda hipótese

alternativa, a de instituir uma forma de quase-cidadania, que seja tão próxima quanto possí-

vel da cidadania da União, sem, no entanto, prejudicar o peso específico deste estatuto, que

se mantém privativo dos nacionais dos Estados Membros. Não surpreende que assim seja,

atenta a conhecida oposição dos Estados àquela primeira hipótese, nem isso tem de ser

necessariamente mau. O acesso directo dos nacionais de países terceiros à cidadania da

União não é, de resto, isento de problemas, já que implicaria uma desvalorização do estatu-

to aos olhos dos seus actuais titulares e acabaria por não garantir a plena participação políti-

ca dos nacionais de países terceiros nos assuntos europeus, uma vez que, estando privados

45

“Lo que se está haciendo es construir una categoría de residente permanente a imagen estatal, sin nada de

innovador ni cambio cualitativo. El cambio revolucionario seria que la ciudadanía cívica sea el criterio para la

ciudadanía europea, sin necesidad de depender de criterios de acceso a la nacionalidad de un Estado Miembro”.

Cf. ZAPATA-BARRERO, Ricard – “Interpretando el Proceso de Multiculturalidad en España y la Propuesta de Ciu-

dadanía Cívica de la UE”, cit., p. 112. 46

Parecer do Comité Económico e Social Europeu sobre o “Acesso à Cidadania da União Europeia” (2003/c

208/19), JO C 208, de 03.09.2003. O Comité viria a pronunciar-se em idêntico sentido no parecer a que fizemos

referência supra, sobre a Comunicação da Comissão relativa à imigração, à integração e ao emprego, e que foi

emitido pouco tempo depois. Os reptos do Comité Económico e Social Europeu não foram ouvidos, mas, segun-

do Ricard Zapata-Barrero, não deixam de ser significativos, na medida em que o Comité é a voz oficial da socie-

dade civil europeia.Cf. ZAPATA-BARRERO, Ricard – “Una nueva ‘filosofía’ de la UE: Tradición versus Innovación en

la propuesta de ciudadanía cívica”, in AAVV, II Seminario Inmigración y Europa. Cinco Años Después de Tampere,

Barcelona, Fundación CIDOB, 2005, p. 66. 47

Cf. WIESBROCK, Anja – “Granting Citizenship-related Rights to Third-Country Nationals: An Alternative to

the Full Extension of European Union Citizenship?”,in European Journal of Migration and Law, 14, 2012, pp. 89-

90. 48

Cf. BAUBÖCK, Rainer, et al. – “Migrants’ Citizenship: Legal Status, Rights and Political Participation”, cit., p.

84.

194

de participar nas eleições legislativas a nível nacional, estes indivíduos continuariam a não

estar representados no principal órgão decisor da União, o Conselho49.

Enquanto estatuto jurídico alternativo à cidadania dos Estados Membros e à cidadania da

União, a cidadania cívica presta-se à dupla função de preservar o status quo, como é do inte-

resse dos Estados, e de “revolucionar” o estatuto dos nacionais de países terceiros, propor-

cionando-lhes um conjunto de direitos e deveres tão próximos quanto possível dos titulados

pelos cidadãos da União, sem lhes exigir que adquiram a nacionalidade de um Estado Mem-

bro. Contrariamente ao que é defendido por Bernhard Perchinig50 e outros, o conceito de

cidadania cívica não visa pôr em causa o nexo existente entre a cidadania da União e a

nacionalidade dos Estados Membros, mas sim preservá-lo. Se os nacionais de países tercei-

ros dispuserem de um estatuto jurídico forte, que lhes assegure direitos comparáveis aos

dos cidadãos da União, as críticas ao carácter exclusivo e discriminatório desta cidadania e

as propostas no sentido de alargar a sua titularidade aos nacionais de países terceiros perde-

rão muita da sua pertinência. É precisamente aqui que reside, em nosso entender, o poten-

cial do conceito de cidadania cívica. Não enquanto estatuto provisório, mera etapa no cami-

nho para a obtenção da nacionalidade de um Estado Membro (e, por aí, da cidadania da

União), mas como um estatuto jurídico permanente, apto, pela qualidade dos direitos nele

implicados, a tornar inteiramente dispensável o “fardo”51 da naturalização. Um tal estatuto

seria mais do que uma quase-cidadania ou uma forma de denizenship. Constituiria uma

cidadania plena, reflexo dos laços sociais e políticos existentes entre os nacionais de países

terceiros e a comunidade política europeia em que participam e perante a qual titulam um

conjunto de direitos e deveres especiais. Uma verdadeira cidadania pós-nacional, como a

cidadania da União não consegue ser.

Para cumprir este potencial, a cidadania cívica deveria ser desenvolvida como um estatu-

to jurídico autónomo, a prever expressamente no texto dos Tratados, ao lado da cidadania

da União Europeia. Este estatuto seria concedido, segundo critérios uniformes, aos nacionais

de países terceiros com residência estável num Estado Membro e titulado por um documen-

to próprio, válido para todo o espaço da União. O carácter europeu da cidadania cívica seria

reforçado se, como admite Perchinig, o estatuto fosse concedido pelas instituições euro-

peias e não pelas autoridades nacionais, mas este não é um aspecto crucial. Mais importan-

te seria que os direitos contidos no estatuto fossem efectivamente comparáveis aos dos

cidadãos da União e cobrissem os principais factores de vulnerabilidade dos nacionais de

49

Cf. BAUBÖCK, Rainer – “Civic Citizenship: A New Concept for the New Europe”, cit., p. 128. 50

Cf. PERCHINIG, Bernhard – “EU Citizenship and the Status of Third Country Nationals”, cit., pp. 81-82. 51

Cf. PERCHINIG, Bernhard – “EU Citizenship and the Status of Third Country Nationals”, cit., p. 82.

195

países terceiros, como são a discriminação em razão da nacionalidade, os direitos de partici-

pação política a nível europeu e local, o acesso ao território e a protecção contra medidas de

expulsão52.

Afastamo-nos em boa medida do modelo proposto pela Comissão Europeia, que concebe

a cidadania cívica sobretudo como uma etapa a caminho da cidadania dos Estados Mem-

bros. Permitimo-nos fazê-lo por considerarmos, com Rainer Bauböck e Ricard Zapata-

-Barrero, que os termos extremamente vagos em que o conceito de cidadania cívica foi

apresentado autorizam desenvolvimentos muito diferentes, consoante a vontade dos acto-

res políticos europeus, pelo que, em último termo, o potencial do conceito dependerá

daquilo que quisermos fazer com ele53. Fundamental é que não percamos de vista o objecti-

vo, definido em Tampere, de proporcionar aos nacionais de países terceiros um tratamento

equitativo, assente no reconhecimento de um conjunto de direitos uniforme e tão próximo

quanto possível dos direitos dos cidadãos da União Europeia.

3. Os termos de referência

3.1. A cidadania da União Europeia

A cidadania da União Europeia foi instituída pelo Tratado de Maastricht54, em 1992, com

o assumido propósito de simbolizar a identidade europeia comum55 e de reconciliar os

52

Os titulares do estatuto de cidadania cívica devem ter o direito de aceder ao território dos Estados Mem-

bros e de ser protegidos contra medidas de expulsão em termos idênticos aos aplicados para os cidadãos da

União que se desloquem ou encontrem a residir num Estado Membro diferente do da sua nacionalidade. Estes

são direitos da maior importância, porque constituem uma condição para o exercício de todos os demais direitos

de cidadania no espaço da União Europeia. Como observa Kees Groenendijk, “without the right to enter, stay in

and return to the country and the certainty that one cannot be expelled, the right to vote and access to public

office are only conditional. Expulsion will effectively end the enjoyment of those rights and of most other politi-

cal, economic and social rights in the former country of residence”. Cf. GROENENDIJK, Kees – “The status of

quasi-citizenship in EU member states: Why some states have ‘almost-citizens’”, in Rainer Bauböck et al. (orgs.),

Acquisition and Loss of Nationality. Policies and Trends in 15 European States, vol. 1, Amesterdão, Amsterdam

University Press, 2007, p. 412. 53

Cf. BAUBÖCK, Rainer – “Civic Citizenship: A New Concept for the New Europe”, cit., pp. 126-127; ZAPATA-

BARRERO, Ricard – “Interpretando el Proceso de Multiculturalidad en España y la Propuesta de Ciudadanía Cívica

de la UE”, cit., p. 113. 54

JO C 191, de 29.07.1992. 55

Se não reflexo de uma prévia identidade europeia, pelo menos, o instrumento ideal para a forjar no futuro.

Desde os primeiros debates sobre a instituição de uma cidadania europeia, na década de 70, esta sempre surgiu

indissociavelmente ligada ao propósito de construir ou espelhar uma identidade europeia comum. Como nota

Antje Wiener, “policy makers have continuously aimed at creating a European identity, a sense of community

196

europeus com o projecto Europa, contrariando o seu persistente desafecto56 e contribuindo,

desse modo, para dar maior legitimidade às políticas definidas em Bruxelas57. Segundo reza

a lenda, o estabelecimento da cidadania da União ficou a dever-se à iniciativa do Primeiro-

Ministro espanhol, Felipe González, que, no último minuto, terá sugerido que “se fizesse

alguma coisa a respeito da cidadania”58, alterando aqueles que eram os planos iniciais dos

redactores do Tratado. A ideia, porém, vinha a ser acalentada há muito59 e tinha já tradução

em diversas “práticas de cidadania”60, como o sufrágio universal e directo para o Parlamento

Europeu e a criação de um passaporte europeu único.

Seja como for, houve, efectivamente, uma proposta espanhola de introduzir no Tratado a

noção de cidadania europeia, com direitos e deveres correspondentes. Dela nos dá conta a

Comissão Europeia, que cedo subscreveu a ideia, acrescentando, porém, que a nova cidada-

nia deveria ganhar forma gradualmente61, sem prejudicar as cidadanias nacionais, a que

cabia complementar e não substituir. Segundo a Comissão, a base da cidadania europeia

poderia ser um catálogo de direitos e deveres centrados num conjunto de direitos humanos

fundamentais (por referência à Convenção Europeia dos Direitos do Homem) e de direitos

específicos dos cidadãos europeus, a consagrar no texto do Tratado, incluindo o direito de

circulação e residência para todos, mesmo os não activos economicamente, e direitos de

and shared history while pursuing citizenship policy”. Cf. WIENER, Antje – “Promises and resources. The develop-

ing practice of ‘European’ citizenship”, cit., p. 390. Cf., igualmente, MENÉNDEZ, Agustín José – “A rights-based

Europe?”,in Erik Oddvar Eriksen et al.(eds.), Constitution-making and democratic legitimacy, Oslo, ARENA, 2002,

pp. 130-131;DE BÚRCA, Gráinne – “The quest for legitimacy in the European Union”, inThe Modern Law Review,

vol. 59, n.º 3, 1996, p. 355.

56

Cf. WEILER, Joseph H. H. – The Constitution of Europe. “Do the New Clothes Have an Emperor?” and Other

Essays on European Integration, Cambridge, Cambridge University Press, 1999, pp. 329-330. 57

Cf. FOLLESDAL, Andreas – Union citizenship: unpacking the beast of burden, in “Law and Philosophy”, n.º

20, 2001, pp. 314-318 e 322. 58

Parafraseamos Joseph Weiler. Segundo o Autor, esta lenda não passa disso mesmo, mas, a ser verdade,

serviria certamente para explicar a forma apressada como o art. 8.º do Tratado da União Europeia foi redigido.

Cf. WEILER, Joseph H. H. – The Constitution of Europe, cit., p. 332. 59

Pense-se, nomeadamente, no Relatório Tindemans, de 1976, sobre a União Europeia e no Projecto de Tra-

tado que estabelece a União Europeia, aprovado pelo Parlamento Europeu, em 1984, cujo art. 3.º criava a cida-

dania da União. Os textos do Relatório e do Projecto de Tratado estão disponíveis em

http://aei.pitt.edu/942/1/political_tindemans_report.pdf e http://www.eurotreaties.com/spinelli.pdf

[06.06.2012], respectivamente. 60

Cf. WIENER, Antje – “Promises and resources. The developing practice of ‘European’ citizenship”, cit., pp.

392 e 397; PIRES, Francisco Lucas – “Múltiplos da cidadania: o caso da cidadania europeia”, in Antunes Varela et

al. (orgs.), AB VNO AD OMNES. 75 Anos da Coimbra Editora 1920-1995, Coimbra, Coimbra Editora, 1998, pp.

1276-1277. 61

Uma ideia recorrente no discurso da Comissão Europeia, como pode verificar-se nas propostas relativas à

cidadania cívica.

197

voto nas eleições europeias e municipais. Para uma fase posterior ficaria a definição dos

direitos e deveres civis, económicos e sociais dos indivíduos62.

O Conselho Europeu, reunido em Roma, em Dezembro de 1990, recomendou que a Con-

ferência Intergovernamental sobre a União Europeia, prestes a começar, atentasse nos

temas da legitimidade democrática e da cidadania63. Dando conta do consenso existente

entre os Estados Membros sobre a oportunidade de examinar o conceito de cidadania euro-

peia, o Conselho recomendou que fosse ponderada a viabilidade de consagrar, no Tratado,

um conjunto de direitos capazes de dar substância ao conceito – o direito de participar nas

eleições para o Parlamento Europeu (e até mesmo em eleições municipais) no país de resi-

dência, a liberdade de circulação e residência independentemente do envolvimento numa

actividade económica, a igualdade de oportunidades e de tratamento para todos os cida-

dãos da Comunidade e protecção diplomática fora das fronteiras comunitárias –, bem como

a instituição de um mecanismo para defesa dos direitos dos cidadãos no tocante aos assun-

tos comunitários, semelhante ao Ombudsman escandinavo64.

O Tratado de Maastricht acolheu, no essencial, estas recomendações. Uma nova Parte II,

com o título “A cidadania da União”, foi aditada ao Tratado que Institui a Comunidade Euro-

peia (Tratado CE). Aí se decretou instituída a cidadania da União e se esclareceu que é cida-

dão da União qualquer pessoa que tenha a nacionalidade de um Estado Membro (art. 8.º,

n.º 1, do Tratado CE). Quanto aos direitos titulados pelos cidadãos da União, o Tratado dis-

pôs, em termos gerais, que estes gozam dos direitos e estão sujeitos aos deveres nele pre-

vistos (art. 8.º, n.º 2, do Tratado CE), mas acrescentou um conjunto de direitos específicos

de cidadania – o direito de circularem e de permanecerem livremente no território dos

Estados Membros (art. 8.º-A do Tratado CE)65; o direito de elegerem e de serem eleitos nas

eleições municipais e nas eleições para o Parlamento Europeu no Estado Membro de resi-

62

Parecer da Comissão de 21 de Outubro de 1990 sobre o Projecto de Revisão do Tratado que Institui a

Comunidade Económica Europeia relativo à União Política, COM (90) 600 final, de 23 de Outubro de 1990. 63

Já antes, em Outubro desse mesmo ano, o Conselho Europeu defendera a definição de uma cidadania

europeia, a somar às cidadanias dos Estados membros, como meio de promover a legitimidade democrática da

União. As conclusões do Conselho estão disponíveis em https://infoeuropa.eurocid.pt/registo/000030840/

[06.06.2012]. 64

O Conselho Europeu do Luxemburgo, de Junho de 1991, na apreciação que fez ao projecto de Tratado

avançado pela Presidência luxemburguesa, com base nos trabalhos até então desenvolvidos no quadro das duas

Conferências Intergovernamentais, voltou a insistir nestes e outros aspectos, sublinhando expressamente a

importância de estabelecer uma cidadania da União como elemento fundamental na construção da Europa. 65

O mesmo preceito ressalvou, no entanto, que este direito é reconhecido aos cidadãos da União “sem pre-

juízo das limitações e condições previstas no presente Tratado e nas disposições adoptadas em sua aplicação”.

Nos termos do n.º 2 do art. 8.º-A, o Conselho pode adoptar disposições destinadas a facilitar o exercício dos

direitos a que se refere o número anterior, deliberando, salvo disposição em contrário do Tratado, por unanimi-

dade, sob proposta da Comissão e após parecer favorável do Parlamento Europeu.

198

dência, nas mesmas condições que os nacionais desse Estado (art. 8.º-B do Tratado CE)66; o

direito de beneficiarem, no território de países terceiros em que o Estado Membro de que

são nacionais não se encontre representado, de protecção por parte das autoridades diplo-

máticas e consulares de qualquer Estado Membro, nas mesmas condições que os nacionais

desse Estado (art. 8.º-C do Tratado CE); o direito de petição ao Parlamento Europeu e o

direito de se dirigirem ao Provedor de Justiça, o novo órgão, criado pelo Tratado de Maas-

tricht, para receber queixas respeitantes a casos de má administração na actuação das insti-

tuições ou organismos comunitários (art. 8.º-D do Tratado CE)67. Admitindo expressamente

o carácter dinâmico do estatuto68, o art. 8.º-E do Tratado CE impôs à Comissão Europeia o

dever de apresentar, de três em três anos, um relatóriosobre a aplicação das disposições da

Parte II, “tendo em conta o desenvolvimento da União”, e admitiu a possibilidade de, com

base nesses relatórios, o Conselho vir a aprovar disposições destinadas a aprofundar os

direitos ora previstos.

A instituição da cidadania da União não suscitou a reacção esperada, como se sabe. O

novo estatuto, longe de cativar os europeus, fê-los temer pelas respectivas identidades

nacionais e o Tratado de Maastricht só foi ratificado depois de os dinamarqueses, que rejei-

taram o Tratado em referendo, terem assegurado que não estariam vinculados pelas dispo-

sições relativas a esta matéria69. Isto apesar de o Tratado incluir uma Declaração relativa à

66 À semelhança do preceito anterior, este artigo esclareceu que o direito em causa será exercido sem prejuí-

zo das modalidades a adoptar pelo Conselho, deliberando por unanimidade, sob proposta da Comissão e após

consulta do Parlamento Europeu, e admitiu que essas regras podem prever disposições derrogatórias sempre

que problemas específicos de um Estado Membro o justifiquem. 67

Estes direitos devem ser exercidos nos termos definidos pelos arts. 138.º-D e 138.ºE do Tratado CE, dois

preceitos introduzidos pelo Tratado de Maastricht. Segundo o art. 138.º-D, qualquer cidadão da União, mas

também qualquer outra pessoa singular ou colectiva com residência ou sede estatutária num Estado Membro,

tem o direito de apresentar, a título individual ou em associação com outros cidadãos ou pessoas, petições ao

Parlamento sobre qualquer questão que se integre nos domínios de actividade da Comunidade e lhe diga direc-

tamente respeito. Segundo o art. 138.º-E, o Provedor de Justiça é nomeado pelo Parlamento Europeu e tem

poderes para receber queixas apresentadas por qualquer cidadão da União, mas também por qualquer outra

pessoa singular ou colectiva com residência ou sede estatutária num Estado Membro, respeitantes a casos de má

administração na actuação das instituições ou organismos comunitários, com excepção do Tribunal de Justiça e

do Tribunal de Primeira Instância no exercício das respectivas funções jurisdicionais. As pessoas que apresentem

queixas têm o direito de ser informadas do resultado dos inquéritos realizados pelo Provedor de Justiça. 68

E a sua abertura ao aprofundamento da integração europeia. Cf. CANOTILHO, J. J. Gomes e MOREIRA, Vital

– Constituição da República Portuguesa anotada (artigos 1.º a 107.º), vol. I, 4.ª ed. revista, Coimbra, Coimbra

Editora, 2007, pp. 361-362. 69

Apesar de ter assegurado o opt-out em relação à cidadania da União no Acordo de Edimburgo, em Dezem-

bro de 1992, a Dinamarca reiterou a sua recusa do novo conceito com uma declaração anexa ao instrumento de

ratificação do Tratado, em que esclareceu que a cidadania da União é inteiramente distinta da cidadania de um

Estado-nação e que, de modo algum, poderá dar a um cidadão de outro Estado Membro o direito de obter a

cidadania dinamarquesa ou os direitos privativos dos cidadãos dinamarqueses. Cf. DE GROOT, Gerard-René –

“Towards a European Nationality Law”, in Electronic Journal of Comparative Law, vol. 8.3, 2004, disponível em

199

nacionalidade de um Estado Membro, onde se esclarece que, sempre que no Tratado é feita

referência aos nacionais dos Estados Membros, a questão de saber se uma pessoa tem a

nacionalidade de determinado Estado Membro é exclusivamente regida pelo Direito nacio-

nal desse Estado Membro70. Esta Declaração foi reiterada pelos Chefes de Estado e de

Governo reunidos no Conselho Europeu de Edimburgo, em Dezembro de 1992, que afirma-

ram ainda que as disposições da Parte II do Tratado CE relativas à cidadania da União confe-

rem aos nacionais dos Estados Membros direitos e garantias adicionais e não substituem, de

modo algum, a cidadania nacional71. Os receios dinamarqueses não foram, no entanto, intei-

ramente aplacados e o Tratado de Amesterdão72 acabou por aditar ao art. 8.º, n.º 1 (renu-

merado art. 17.º, n.º 1), a menção de que a cidadania da União é complementar da cidada-

nia nacional e não a substitui73. A titularidade da cidadania da União permanece definida,

até hoje, nos mesmos termos74.

A cidadania da União é, portanto, uma “cidadania dupla”75, que se adquire, indirecta-

mente, através da cidadania de um Estado Membro. Não é uma cidadania pós-nacional76,

http://www.ejcl.org/83/art83-4.txt [08.06.2012]; John Erik FOSSUM – “Identity-politics in the European Union”,

Arena Working Paper, n.º 17, 2001, p. 16. 70

A Declaração ainda esclarece que os Estados podem indicar, a título informativo, mediante declaração a

depositar junto da Presidência, quais as pessoas que devem ser consideradas como seus nacionais, para efeitos

comunitários e podem, se for caso disso, alterar esta última declaração. 71

Decision of the Heads of State and Government, meeting within the European Council, concerning certain

problems raised by Denmark on the Treaty on European Union, anexo I às conclusões da Presidência do Conselho

Europeu de Edimburgo, de 12 de Dezembro de 1992. O texto encontra-se disponível em

http://www.europarl.europa.eu/summits/edinburgh/b1_en.pdf [08.06.2012]. 72

JO C 340, de 10.11.1997. 73

Cf. CRAIG, Paul e DE BÚRCA, Gráinne – EU Law..., cit., p. 33; MANCINI, Federico – “Europe: the case for sta-

tehood”, inEuropean Law Journal, vol. 4, n.º 1, 1998, pp. 31-32. 74

O art. 20.º, n.º 1, do TFUE dispõe: “É instituída a cidadania da União. É cidadão da União qualquer pessoa

que tenha a nacionalidade de um Estado-Membro. A cidadania da União acresce à cidadania nacional e não a

substitui”. O art. 9.º do Tratado da União Europeia (TUE) repete que é cidadão da União qualquer pessoa que

tenha a nacionalidade de um Estado Membro e que a cidadania da União acresce à cidadania nacional e não a

substitui. Como nota Jo Shaw, a substituição do verbo complementar pelo verbo acrescer não constitui uma

mudança substancial, vindo unicamente reforçar a ideia, expressa em Edimburgo, de que a cidadania da União

apenas pode adicionar direitos e não substituir-se às cidadanias nacionais. A repetição de parte do art. 20.º, n.º

1, do TFUE, no art. 9.º do TUE, é má técnica legislativa, mas, explica Jo Shaw, tornou-se inevitável face à insistên-

cia dos representantes do Parlamento Europeu na Conferência Intergovernamental que adoptou o Tratado de

Lisboa, segundo os quais a importância da cidadania da União ficaria prejudicada se esta não fosse mencionada

no Tratado da União. Cf. Jo SHAW – “Citizenship: Contrasting Dynamics at the Interface of Integration and Consti-

tutionalism”, in Paul Craig e Gráinne de Búrca (eds.), The Evolution of EU Law, 2.ª ed., Oxford, Oxford University

Press, 2011, pp. 599-560. 75

Uma forma de cidadania que encontra antecedentes no constitucionalismo alemão, mais propriamente, na

Constituição imperial de 1871. Cf. ZILLER, Jacques – “National constitutional concepts in the new Constitution for

Europe”, inEuropean Constitutional Law Review, n.º 1, 2005, pp. 247-257. É interessante notar, a este respeito,

que já o Projecto de Tratado que estabelece a União Europeia, aprovado pelo Parlamento Europeu, em 1984,

previa a cidadania da União como dependente da cidadania dos Estados Membros. No art. 3.º, com a epígrafe

“citizenship of the Union”, podia ler-se: “The citizens of the Member States shall ipso facto be citizens of the

200

mas sim um estatuto de estrangeiro privilegiado, que permite aos seus titulares o gozo, nos

Estados Membros de que não são nacionais, de direitos em princípio reservados aos cida-

dãos desses Estados, independentemente de qualquer alteração da sua nacionalidade77. A

cidadania da União não só não pretende substituir-se às cidadanias nacionais, como é intei-

ramente dependente destas, já que só serão cidadãos da União aqueles que forem cidadãos

de um dos Estados Membros e estes são livres para definir as suas próprias condições de

pertença78. O Tratado de Maastricht não conferiu à União Europeia qualquer competência

em matéria de nacionalidade79 e a União abstém-se de interferir na fixação dos critérios

utilizados pelos Estados Membros para reconhecer os seus nacionais, como resulta da

Declaração anexa ao Tratado de Maastricht e tem sido, em boa medida, confirmado pela

jurisprudência do Tribunal de Justiça, não obstante a exigência de respeito pelo Direito

Comunitário (Micheletti) e pelo princípio da proporcionalidade (Rottmann)80. A autonomia

dos Estados Membros na definição das condições de acesso à respectiva nacionalidade e,

por aí, à cidadania da União, dá origem a um quadro jurídico confuso e potencialmente con-

Union. Citizenship of the Union shall be dependent upon citizenship of a Member State; may not be indepen-

dently acquired or forfeited”. 76

Cf. VINK, Maarten – Limits of European citizenship. European integration and domestic immigration poli-

cies, Nova Iorque, Palgrave Macmillan, 2005, pp. 158-160. 77

Cf. RAMOS, Rui Manuel Moura – “Nacionalidade, plurinacionalidade e supranacionalidade na União Euro-

peia e na Comunidade dos Países de Língua Portuguesa”, in Boletim da Faculdade de Direito, 2003, pp. 710-711. 78

Cf. WEILER, Joseph H. H., HALTERN, Ulrich e MAYER, Franz – “European democracy and its critique. Five

uneasy pieces”, EUI Working Paper RSC n.º 95/11, p. 25; CRAIG, Paul e DE BÚRCA, Gráinne – EU Law…, cit., p.

759. 79

Cf. RAMOS, Rui Manuel Moura – Das Comunidades à União Europeia. Estudos de Direito Comunitário,

Coimbra, Coimbra Editora, 1994, p. 280. 80

O Tribunal de Justiça reconhece, desde Micheletti (acórdão Mario Vicente Micheletti e outros contra Dele-

gación del Gobierno en Cantabria, de 7 de Julho de 1992, proc. C-360/90), que a competência que cabe, nos

termos do Direito Internacional, a cada Estado Membro para definir as condições de aquisição e perda da respec-

tiva nacionalidade deve ser exercida no respeito pelo Direito Comunitário, mas nunca explicitou quais os limites

que poderão decorrer desse respeito para a liberdade dos Estados de determinar quem são os seus nacionais.

Recentemente, em Rottmann (acórdão Janko Rottmann contra Freistaat Bayern, de 2 de Março de 2010), o

Tribunal afirmou que o Direito da União não se opõe a que um Estado Membro revogue a nacionalidade conce-

dida, por naturalização, a um cidadão da União Europeia, quando esta tenha sido obtida de modo fraudulento,

“desde que a decisão de revogação respeite o princípio da proporcionalidade”. Segundo o Tribunal, compete ao

órgão jurisdicional nacional averiguar se a decisão de revogação respeita o princípio da proporcionalidade,

devendo este ter em conta, “dada a importância que o direito primário atribui ao estatuto de cidadão da União”,

as eventuais consequências que essa decisão implica para o interessado e, eventualmente, para os membros da

sua família, no que respeita à perda dos direitos de que goza qualquer cidadão da União, e verificar, nomeada-

mente, se essa perda se justifica em relação à gravidade da infracção cometida, ao tempo decorrido entre a

decisão de naturalização e a decisão de revogação e à possibilidade de o interessado readquirir a sua nacionali-

dade originária. Sobre os limites do acórdão Rottmann para implicar uma dissociação entre cidadania da União e

cidadanias nacionais, cf. WIESBROCK, Anja – “Granting Citizenship-related Rights to Third-Country Nationals…”,

cit., pp. 72-73.

201

traditório81, para além de criar a situação paradoxal de a União reconhecer direitos às pes-

soas sem poder intervir na definição das condições determinantes para a aquisição e o gozo

desses direitos82.

A todos estes aspectos soma-se, como vimos, o facto de a cidadania da União, precisa-

mente por causa desta dependência, excluir os nacionais de países terceiros residentes no

território dos Estados Membros. Poder-se-á dizer que, em bom rigor, não é a cidadania da

União que exclui, mas sim as leis de nacionalidade dos Estados Membros. A cidadania da

União será tão aberta quanto a mais aberta das legislações nacionais, ao mesmo tempo que

será tão fechada quanto a mais fechada dessas legislações. Ainda que admitamos, no entan-

to, uma capacidade indómita dos nacionais de países terceiros para o forum shopping, sem-

pre terá de reconhecer-se que, em relação aos Estados Membros com condições de natura-

lização mais restritivas, a cidadania da União poderia, se fosse autónoma, proteger directa-

mente os indivíduos que mais necessitam dela e funcionar como excelente instrumento de

integração. Nesta medida, a cidadania da União exclui ou, pelo menos, não inclui quando

deveria fazê-lo. A declaração dinamarquesa em Edimburgo mostra, todavia, que pretender

dissociar a cidadania da União das cidadanias nacionais é inteiramente irrealista.

As críticas à cidadania da União não se prendem unicamente com os termos em que está

definida a sua titularidade, mas também com o facto de o estatuto ser pouco mais do que

inconsequente na prática, atento o magro conjunto de direitos que lhe corresponde83 e a

total ausência de deveres84. A cláusula evolutiva85 contida no art. 8.º-E do Tratado CEE (ago-

ra art. 25.º do TFUE) permitiu, no entanto, sustentar algum optimismo quanto a desenvol-

81

Cf. DELGADO-MOREIRA, Juan M. – Multicultural citizenship of the European Union, cit., p. 167. Rainer

Bauböck recomenda, mesmo por isso, que a União promova a harmonização dos critérios nacionais de atribuição

da cidadania. Deste modo se obteria um sistema coerente, com a vantagem para os Estados Membros de deixa-

rem de ter de suportar a entrada livre no seu território de cidadãos oriundos de países com leis mais permissivas

e de obterem um reforço das fronteiras face a nacionais de países terceiros. Cf. BAUBÖCK, Rainer – “National

community, citizenship and cultural diversity”, cit., pp. 15-18 e 22-27. 82

Cf. RAMOS, Rui Manuel Moura – Das Comunidades à União Europeia…, cit., pp. 280 e 341-342. 83

Direitos consagrados, de resto, em termos muito limitados. Cf. RAMOS, Rui Manuel Moura – Das Comuni-

dades à União Europeia…, cit., pp. 284-289 e 346-354.Joseph Weiler observa que muitos dos direitos reconheci-

dos, ou são anteriores a Maastricht, ou não são privativos dos cidadãos da União, o que prejudica a pertinência e

o peso específico do estatuto.WEILER, Joseph H. H. – The Constitution of Europe, cit., pp. 325-326.Importa, para

além disso, não ignorar que, mesmo para este magro conjunto de direitos, continuam a existir sérias dificuldades

de satisfação efectiva. Cf. DE BÚRCA, Gráinne – “Fundamental rights and citizenship”, in Bruno de Witte (ed.),

Ten reflections on the Constitutional Treaty for Europe, Florença, EUI-RSCAS/AEL, 2003, p. 14; LEHNING, Percy B.

– “European citizenship: a mirage?”, in Percy B. Lehning e Albert Weale (eds.), Citizenship, democracy and justice

in the new Europe, Londres, Routledge, 1997, pp. 187-188. 84

Cf. CRAIG, Paul e DE BÚRCA, Gráinne – EU Law…, cit., p. 760; RAMOS, Rui Manuel Moura – Das Comuni-

dades à União Europeia…, cit., pp. 340-341; WEILER, Joseph H. H. – The Constitution of Europe, cit., p. 326. 85

Cf. WIENER, Antje – “Promises and resources. The developing practice of ‘European’ citizenship”, cit., p.

388; RAMOS, Rui Manuel Moura – Das Comunidades à União Europeia…, cit., p. 290.

202

vimentos futuros86 e o estatuto tem vindo, efectivamente, a ser reforçado pelas sucessivas

reformas dos Tratados, pela legislação secundáriae através da jurisprudência do Tribunal de

Justiça.

O Tratado de Amesterdão aditou ao elenco dos direitos de cidadania a faculdade de

comunicar por escrito com as instituições e órgãos comunitários, numa das línguas da

Comunidade, e de obter uma resposta redigida na mesma língua (art. 21.º, 3.º §, do Tratado

CE)87, e, fora da secção especificamente dedicada à cidadania da União, reconheceu a cida-

dãos e residentes o direito de acesso aos documentos do Parlamento Europeu, do Conselho

e da Comissão (art. 255.º, n.º 1, do Tratado CE)88. O Tratado de Lisboa reconheceu, a todas

as pessoas, o direito à protecção dos dados de carácter pessoal que lhes digam respeito (art.

16.º TFUE); introduziu um novo direito de participação política, através da iniciativa de cida-

dania (arts. 11.º do TUE e 24.º, 1.º §, do TFUE)89; estabeleceu uma relação explícita entre a

cidadania da União e a proibição da discriminação, ao agrupar estas matérias na Parte II do

TFUE90; e, o que é mais importante, dotou a Carta de Direitos Fundamentais de carácter

86 “The importance of the TEU citizenship provisions lies not in their content but rather in the promise they

hold for the future. The concept is a dynamic one, capable of being added to or strengthened, but not dimin-

ished”. Cf. O’KEEFFE, David – “Union citizenship”, in D. O’Keeffe e P. Twomey (eds.), Legal issues of the Maas-

tricht Treaty, Londres, Wiley Chancery Law, 1994, p. 106. No discurso oficial da Comissão e do Parlamento Euro-

peu tornou-se recorrente a referência à cidadania europeia como um conceito em evolução (developing con-

cept). No seu primeiro relatório sobre a cidadania da União, a Comissão sublinhou precisamente este aspecto –

“it must be stressed that the provisions of Part II of the EC Treaty are not static, but are essentially dynamic in

nature. This is plainly spelled out in Article 8E itself, in so far as it envisages that these provisions be strengthened

or supplemented in the future”. COM (93) 702 final, de 21.12.1993. 87

Hoje, art. 24.º, 4.º §, do TFUE. 88

Hoje, art. 15.º do TFUE, que adopta uma formulação mais abrangente – “documentos das instituições,

órgãos e organismos da União, seja qual for o respectivo suporte” –, mas exclui o Tribunal de Justiça, o Banco

Central Europeu e o Banco Europeu de Investimento quando não estejam a exercer funções meramente adminis-

trativas. Este direito deve ser exercido dentro dos limites impostos pela salvaguarda de interesses públicos ou

privados e de acordo com as regras de procedimento adoptadas para o efeito pelas instituições em causa. 89

O art. 11.º do TUE, depois de, no seu n.º 1, estatuir que as instituições dão aos cidadãos e às associações

representativas a possibilidade de expressarem e partilharem publicamente os seus pontos de vista sobre todos

os domínios de acção da União, reconhece o direito de iniciativa de cidadania, prevendo, no n.º 4, que um

milhão, pelo menos, de cidadãos da União, nacionais de um número significativo de Estados Membros, possa

tomar a iniciativa de convidar a Comissão Europeia a, no âmbito das suas atribuições, apresentar uma proposta

adequada em matérias sobre as quais esses cidadãos considerem necessário um acto jurídico da União para

aplicar os Tratados. O art. 24.º, 1.º §, do TFUE incumbe o Parlamento Europeu e o Conselho de estabelecerem,

por meio de regulamentos adoptados de acordo com o processo legislativo ordinário, as normas processuais e as

condições para a apresentação de uma iniciativa de cidadania, incluindo o número mínimo de Estados Membros

de que devem provir os cidadãos que a apresentam. 90

Cf. SHAW, Jo – “Citizenship: Contrasting Dynamics at the Interface of Integration and Constitutionalism”,

cit., p. 586.

203

jurídico vinculativo, para além de ter estipulado a adesão da União à Convenção Europeia

dos Direitos do Homem (art. 6.º do TUE)91.

Interessa notar que vários dos direitos reconhecidos pelos Tratados aos cidadãos da

União não são privativos destes, mas titulados também pelos nacionais de países terceiros

legalmente residentes no território de um Estado Membro. É o que se passa com o direito

de petição ao Parlamento Europeu e ao Provedor de Justiça, com o direito de acesso aos

documentos das instituições, órgãos e organismos da União e com o direito à protecção dos

dados de carácter pessoal que lhes digam respeito.

A Directiva 2004/38/CE, do Parlamento e do Conselho, de 29 de Abril de 2004, relativa ao

direito de livre circulação e residência dos cidadãos da União e dos membros das suas famí-

lias no território dos Estados Membros92, confirmou a cidadania da União como “estatuto

fundamental dos nacionais dos Estados-Membros”93 quando estes exercem o seu direito de

livre circulação e residência. A Directiva simplificou as condições e formalidades para o exer-

cício do direito de residência, abolindo o sistema de autorizações de residência para os cida-

dãos da União; reforçou os direitos dos membros da família, alargando o direito de reagru-

pamento familiar para os companheiros em união de facto; criou um direito incondicional de

residência permanente em benefício dos cidadãos da União que residam contínua e legal-

mente por um período de, pelo menos, cinco anos num Estado Membro que não o da res-

pectiva nacionalidade; e reforçou a protecção contra a expulsão de cidadãos da União e seus

familiares por razões de ordem e saúde públicas94.

Nos termos da Directiva, os cidadãos da União têm direito a sair do território de um

Estado Membro a fim de se deslocarem a outro Estado Membro, bastando que estejam

munidos de um bilhete de identidade ou passaporte válido (art. 4.º). Uma vez aí, têm direito

a residir por período até três meses, sem outras condições ou formalidades (art. 6.º)95, e por

período superior a três meses, desde que exerçam uma actividade assalariada ou não assala-

91

Sobre a importância da incorporação da Carta nos Tratados para o reforço da cidadania da União, cf. ZIL-

LER, Jacques – La nouvelle Constitution européenne, Paris, Editions La Découverte, pp. 7 e 26. 92

JO L 229, de 29.06.2004. 93

Reiterando a formulação enfática do Tribunal de Justiça, no acórdão Rudy Grzelczyk contra Centre public

d'aide sociale d'Ottignies-Louvain-la-Neuve, de 20 de Setembro de 2001, proc. C-184/99, segundo a qual o “esta-

tuto de cidadão da União tende a ser o estatuto fundamental dos nacionais dos Estados-Membros que permite

aos que entre estes se encontrem na mesma situação obter, independentemente da sua nacionalidade e sem

prejuízo das excepções expressamente previstas a este respeito, o mesmo tratamento jurídico”. 94

Quinto Relatório da Comissão sobre a Cidadania da União, COM (2008) 85 final, de 15 de Fevereiro de

2008. 95

Desde, no entanto, que não se tornem uma sobrecarga não razoável para o regime de segurança social do

Estado Membro de acolhimento (art. 14.º, n.º 1). De qualquer modo, o recurso ao regime de segurança social do

Estado Membro de acolhimento pelo cidadão da União ou por membros da sua família não deve ter como con-

sequência automática uma medida de afastamento (art. 14.º, n.º 3).

204

riada no Estado Membro de acolhimento, ou disponham de recursos suficientes e de uma

cobertura extensa de seguro de doença nesse Estado, ou estejam inscritos num estabeleci-

mento de ensino e disponham de uma cobertura extensa de seguro de doença, bem como

de recursos financeiros suficientes, ou então que sejam membros da família de um cidadão

da União que preencha uma das condições anteriores (art. 7.º). O direito de residência per-

manente, adquirido ao cabo de cinco anos consecutivos de residência legal96, só se perde

devido a ausência do Estado Membro de acolhimento por um período que exceda dois anos

consecutivos (art. 16.º). Todos os cidadãos da União que residam no território do Estado

Membro de acolhimento beneficiam de igualdade de tratamento em relação aos nacionais

desse Estado Membro, no âmbito de aplicação do Tratado (art. 24.º)97.

A imposição de restrições à livre circulação e residência dos cidadãos da União e dos

membros das suas famílias só é admissível por razões de ordem pública, segurança pública

ou de saúde pública e as medidas restritivas devem obedecer ao princípio da proporcionali-

dade (art. 27.º). Antes de tomar uma decisão de afastamento do território por razões de

ordem pública ou de segurança pública, o Estado Membro de acolhimento deve tomar em

consideração, entre outros aspectos, a duração da residência da pessoa em questão, a sua

idade, o seu estado de saúde, a sua situação familiar e económica, a sua integração social e

cultural no Estado Membro de acolhimento e a importância dos laços com o seu país de

origem (art. 28.º). Qualquer decisão restritiva da livre circulação e residência dos cidadãos

da União e dos membros das suas famílias deve ser notificada por escrito às pessoas em

questão (art. 30.º) e estas devem ter acesso às vias judiciais e administrativas no Estado

Membro de acolhimento para impugnar a decisão (art. 31.º).

Os nacionais de países terceiros que sejam membros da família98 de um cidadão da União

que se desloque ou resida num Estado Membro diferente daquele de que é nacional benefi-

ciam igualmente da protecção da Directiva, ainda que esta preveja, pontualmente, alguns

requisitos adicionais para estes indivíduos. Os nacionais de países terceiros têm direito a sair

96 A Directiva prevê um conjunto de situações em que o direito de residência permanente é reconhecido

antes de decorridos os cinco anos consecutivos de residência (art. 17.º). 97

Os Estados Membros podem, todavia, não conceder o direito a prestações de assistência social durante os

primeiros três meses de residência e, até ser adquirido o direito de residência permanente, podem não conceder

ajuda de subsistência, incluindo a formação profissional, constituída por bolsas de estudo ou empréstimos estu-

dantis, a pessoas que não sejam trabalhadores assalariados nem não assalariados, que não conservem este esta-

tuto ou que não sejam membros das famílias dos mesmos (art. 24.º, n.º 2). 98

Nos termos do art. 2.º, n.º 2, da Directiva, são membros da família o cônjuge; o parceiro com quem um

cidadão da União contraiu uma parceria registada com base na legislação de um Estado Membro, se a legislação

do Estado Membro de acolhimento considerar as parcerias registadas como equiparadas ao casamento; os des-

cendentes directos com menos de 21 anos de idade ou que estejam a cargo, assim como os do cônjuge ou do

parceiro; os ascendentes directos que estejam a cargo, assim como os do cônjuge ou parceiro.

205

do território de um Estado Membro a fim de se deslocarem a outro Estado Membro desde

que estejam munidos de um passaporte válido para todos os Estados Membros e para os

países de trânsito (art. 4.º). Em princípio, o passaporte basta para serem admitidos no terri-

tório de um Estado Membro, mas podem ser sujeitos à obrigação de visto de entrada nos

termos do Regulamento (CE) n.º 539/200199 ou por força da legislação nacional. Nestes

casos, os Estados Membros devem dar-lhes todas as facilidades para a obtenção dos vistos

necessários, emitindo os vistos gratuitamente, o mais rapidamente possível e por tramitação

acelerada (art. 5.º, n.º 2).

O direito de residência (até três meses e por mais de três meses) reconhecido pela Direc-

tiva aos cidadãos da União é extensivo aos familiares destes que sejam nacionais de países

terceiros (arts. 6.º, n.º 2, e 7.º, n.º 2). Do mesmo modo, os nacionais de países terceiros têm

direito de residência permanente no Estado Membro de acolhimento se tiverem residido

legalmente neste Estado, com o cidadão da União, por um período de cinco anos consecuti-

vos (artigo 16.º, n.º 2)100. Os nacionais de países terceiros que, nos termos da Directiva,

sejam titulares de um direito de residência num Estado Membro têm o direito de aí exercer

uma actividade como trabalhadores assalariados ou não assalariados (art. 23.º) e beneficiam

de igualdade de tratamento em relação aos nacionais desse Estado Membro, no âmbito de

aplicação do Tratado (art. 24.º, n.º 1). As regras relativas às restrições ao direito de entrada

e de residência por razões de ordem pública, de segurança pública e de saúde pública,

incluindo as referentes às garantias processuais, são as mesmas que valem para os cidadãos

da União.

As formalidades administrativas aplicáveis aos membros da família que não tenham a

nacionalidade de um Estado Membro são diferentes das previstas para os membros da famí-

lia que sejam cidadãos da União, mas os requisitos são sensivelmente os mesmos. Aos

nacionais de países terceiros não é emitido um certificado de registo, mas sim um “cartão de

residência de membro da família de um cidadão da União”, válido por cinco anos a contar da

data da sua emissão ou para o período previsto de residência do cidadão da União, se infe-

rior a cinco anos (arts. 9.º a 11.º). A Directiva confere uma maior protecção aos membros da

família que sejam cidadãos da União do que aos nacionais de países terceiros em caso de

99 Regulamento (CE) n.º 539/2001 do Conselho, de15 de Março, que fixa a lista dos países terceiros cujos

nacionais estão sujeitos à obrigação de visto para transporem as fronteiras externas e a lista dos países terceiros

cujos nacionais estão isentos dessa obrigação, JO L 81, de 21.03.2001. A mais recente alteração a este Regula-

mento foi feita pelo Regulamento (CE) n.º 1932/2006, de 21 de Dezembro, JO L 405, de 30.12.2006. 100

Este direito é titulado por um “cartão de residência permanente”, renovável automaticamente de 10 em

10 anos (art. 20.º).

206

morte ou partida do cidadão da União (art. 12.º)101 e em caso de divórcio, anulação do

casamento ou cessação de parceria registada (art. 13.º)102. Os nacionais de países terceiros

que, nos termos definidos pela Directiva, mantenham o seu direito de residência, apesar da

morte de cidadão da União ou de divórcio, anulação do casamento ou cessação da parceria

registada, adquirem o direito de residência permanente após terem residido legalmente por

um período de cinco anos consecutivos no Estado Membro de acolhimento (art. 18.º).

O Tribunal de Justiça tem contribuído de forma decisiva para o alargamento do âmbito

ratione personae e ratione materiae da cidadania da União103, através de uma interpretação

extensiva das disposições dos Tratados e do Direito secundário à luz dos princípios funda-

mentais do Direito da União, como o princípio da igualdade e da proibição de discriminação

em razão da nacionalidade (Martínez Sala104, Grzelczyk), o princípio da proporcionalidade

101 O direito de residência dos nacionais de países terceiros só não é prejudicado, em caso de morte, se estes

já residiam no Estado Membro de acolhimento há, pelo menos, um ano à data do falecimento, para além dos

requisitos de auto-suficiência financeira impostos nos termos gerais. Em caso de partida do cidadão da União, os

nacionais de países terceiros só não perdem o seu direito de residência se tiverem a guarda efectiva dos filhos do

cidadão da União e estes estiverem inscritos num estabelecimento de ensino do Estado Membro de acolhimen-

to. O direito de residência do progenitor nacional de país terceiro manter-se-á, neste caso, até ao final dos estu-

dos dos seus filhos. 102

O direito de residência dos membros de família que não tenham a nacionalidade de um Estado Membro

só não será prejudicado se estes cumprirem os requisitos gerais de auto-suficiência financeira e se se verificar

uma das seguintes condições: o casamento ou a parceria tiver durado, pelo menos, três anos, dos quais um ano

no Estado Membro de acolhimento; a guarda dos filhos do cidadão da União tiver sido confiada ao cônjuge ou

parceiro que não tem a nacionalidade de um Estado Membro; se verifiquem circunstâncias particularmente

difíceis, como violência doméstica; ou se o cônjuge ou parceiro que não tem a nacionalidade de um Estado

Membro tiver direito de visita a uma criança menor, desde que o tribunal tenha decidido que a visita deve ter

lugar no Estado Membro de acolhimento. 103

Cf. WIESBROCK, Anja – “Granting Citizenship-related Rights to Third-Country Nationals…”, cit., p. 63. 104

Acórdão María Martínez Sala contra Freistaat Bayern, de 12 de Maio de 1998, proc. C-85/96. Neste que

foi o acórdão fundador da sua jurisprudência proactiva em matéria de direitos de cidadania, o Tribunal afirmou

que o direito de não sofrer qualquer discriminação em razão da nacionalidade faz parte do conjunto de direitos e

deveres ligados ao estatuto de cidadão da União, por força da cláusula geral do art. 8.º, n.º 2, do TCE (hoje, art.

20.º, n.º 2, do TFUE), e concluiu que um cidadão da União legalmente residente no território de um Estado

Membro diferente do da sua nacionalidade pode invocar o art. 6.º do TCE (hoje, art. 18.º do TFUE) para todas as

situações que caiam no âmbito ratione materiae do Direito comunitário, incluindo o acesso a uma prestação

social concedida pelo Estado Membro em causa a todas as pessoas legalmente residentes no seu território.

Como notam Paul Craig e Gráinne de Búrca, a Sra. Martínez Sala foi protegida da discriminação em razão da

nacionalidade por ser cidadã da União, independentemente do seu envolvimento numa actividade económica, o

que constituiu uma inovação muito significativa face à jurisprudência anterior em matéria de liberdade de circu-

lação de pessoas. Cf. CRAIG, Paul e DE BÚRCA, Gráinne – EU Law…, cit., p. 758. Em Baumbast, o Tribunal tornou

mais explícita esta dissociação entre cidadania e envolvimento numa actividade económica, ao notar que “o

Tratado da União Europeia não exige que os cidadãos da União exerçam uma actividade profissional, assalariada

ou independente, para gozarem dos direitos previstos na parte II do Tratado CE, relativa à cidadania da União”.

Acórdão Baumbast, R contra Secretary of State for the Home Department, de 17 de Setembro de 2002, proc. C-

-413/99.

207

(Baumbast105, Trojani106, Morgan107)e o respeito pelos direitos fundamentais, particularmen-

te o direito à protecção da vida privada e familiar (Carpenter108, Baumbast109, Akrich110). Em

muitos casos, a intervenção do Tribunal reflecte-se positivamente, ainda que de forma indi-

recta, sobre o estatuto dos nacionais de países terceiros que são membros da família de um

105

Um dos muitos méritos do acórdão Baumbast foi o de afirmar que odireito de residir num Estado Membro

diferente do da respectiva nacionalidade é um direito directamente aplicável e, por isso, exige que as limitações

e condições que podem ser impostas ao seu exercício, ao abrigo do art. 18.º do TCE (hoje art. 21.º do TFUE),

respeitem os princípios gerais de Direito comunitário, designadamente, o princípio da proporcionalidade. A

afirmação da aplicabilidade directa do direito de residir num segundo Estado Membro resultou, segundo Jo

Shaw, de uma interpretação judicial criativa, mas foi entretanto confirmada pela Directiva 2004/38/CE, que, no

seu parágrafo 11, estatui que o “direito fundamental e individual de residir num outro Estado-Membro é conferi-

do directamente aos cidadãos da União pelo Tratado e não depende do cumprimento de formalidades adminis-

trativas”. Cf. SHAW, Jo – “Citizenship: Contrasting Dynamics at the Interface of Integration and Constitutional-

ism”, cit., p. 586. 106

Acórdão Michel Trojani contra Centre public d'aide sociale de Bruxelles (CPAS), de 7 de Setembro de 2004,

proc. C-456/02. 107

Acórdão Rhiannon Morgan contra Bezirksregierung Köln e Iris Bucher contra Landrat des Kreises Düren, de

23 de Outubro de 2007, processos apensos C-11/06 e C-12/06. 108

Em Carpenter, o Tribunal afirmou que um Estado Membro só pode invocar razões de interesse geral para

justificar uma medida nacional que seja susceptível de entravar o exercício da livre prestação de serviços se essa

medida for conforme aos direitos fundamentais cujo respeito o Tribunal de Justiça garante. O Tribunal conside-

rou, a este propósito, que excluir uma pessoa de um país onde vivem os seus parentes próximos pode constituir

uma ingerência no direito ao respeito da vida familiar tal como vem protegido no art. 8.º da Convenção Europeia

dos Direitos do Homem, o qual faz parte dos direitos fundamentais que são protegidos na ordem jurídica comu-

nitária. “Semelhante ingerência – concluiu – viola a convenção se tal decisão não cumprir as exigências do n.º 2

do mesmo artigo, ou seja, se não estiver «prevista na lei» e não for inspirada por uma ou várias finalidades legí-

timas à luz do referido número e «necessária numa sociedade democrática», isto é, justificada por uma necessi-

dade social imperiosa e, nomeadamente, proporcionada ao objectivo legítimo prosseguido”. Acórdão Mary

Carpenter contra Secretary of State for the Home Department, de 11 de Julho de 2002, proc. C-60/00. 109

Em Baumbast,o Tribunal entendeu ser necessário interpretar o Regulamento CEE n.º 1612/68, de 15 de

Outubro de 1968, relativo à livre circulação dos trabalhadores na Comunidade, à luz da exigência do respeito da

vida familiar previsto no art. 8.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, uma vez que este respeito faz

parte dos direitos fundamentais que, de acordo com jurisprudência constante, são reconhecidos pelo Direito

comunitário. O Tribunal concluiu que o direito reconhecido pelo art. 12.º do Regulamento n.º 1612/68 ao filho

de um trabalhador migrante de prosseguir, nas melhores condições, a sua escolaridade no Estado Membro de

acolhimento implica necessariamente que o referido filho tenha o direito de ser acompanhado pela pessoa que

assegura efectivamente a sua guarda e, consequentemente, que essa pessoa possa residir com ele no referido

Estado Membro durante os seus estudos. O Tribunal adoptou uma interpretação semelhante em Chen, ainda que

sem referência expressa à Convenção Europeia dos Direitos do Homem, ao afirmar ser manifesto que o gozo do

direito de residência por uma criança de tenra idade (cidadã da União) implica necessariamente que essa criança

tenha o direito de ser acompanhada pela pessoa que efectivamente a tem à sua guarda e, portanto, que essa

pessoa esteja em condições de residir com ela no Estado Membro de acolhimento durante essa residência.

Acórdão Kunqian Catherine Zhu, Man Lavette Chen contra Secretary of State for the Home Department, de 19 de

Outubro de 2004, proc. C-200/02. Em Zambrano, o Tribunal acrescentou que a recusa de permanência (e a recu-

sa de autorização de trabalho) a uma pessoa, nacional de um Estado terceiro, no Estado Membro em que resi-

dem os seus filhos de tenra idade, nacionais do referido Estado Membro, e que essa pessoa tem a seu cargo, tem

como efeito privar os cidadãos do gozo efectivo do essencial dos direitos conferidos pelo seu estatuto de cidadão

da União e é, por isso, contrária ao art. 20.º do TFUE. Acórdão Gerardo Ruiz Zambrano contra Office national de

l’emploi (ONEm), de 8 de Março de 2011, proc. C-34/09. 110

Acórdão Secretary of State for the Home Department e Hacene Akrich, de 23 de Setembro de 2003, proc.

C-109/01.

208

cidadão da União. Mais interessante para o que aqui essencialmente nos ocupa é o facto de

o Tribunal estar a aplicar estes mesmos princípios fundamentais do Direito da União a situa-

ções que envolvem exclusivamente nacionais de países terceiros. Como observa Anja Wies-

brock, o Tribunal começou, nos últimos anos, a interpretar as disposições relativas aos

nacionais de países terceiros por analogia com a sua jurisprudência em matéria de cidadania

da União, o que, para a autora, constitui uma alternativa viável à extensão, reivindicada por

académicos e activistas de direitos humanos, da cidadania da União aos nacionais de países

terceiros111. Em Chakroun112, por exemplo, o Tribunal afirmou que as disposições da Directi-

va 2003/86/CE do Conselho, de 22 de Setembro de 2003, relativa ao direito ao reagrupa-

mento familiar, devem ser interpretadas à luz dos direitos fundamentais e, mais particular-

mente, do direito ao respeito da vida familiar consagrado pela Convenção Europeia dos

Direitos do Homem e pela Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. No processo

que opôs a Comissão Europeia aos Países Baixos113, a respeito das taxas impostas aos cida-

dãos turcos com direito de residência neste Estado Membro ao abrigo do Acordo de Asso-

ciação entre a CEE e a Turquia, o Tribunal aplicou os princípios da proporcionalidade e da

não discriminação, tendo concluído que as taxas em causa eram desproporcionadas e dis-

criminatórias, logo, incompatíveis com o Direito da União. Apesar de os sinais serem positi-

vos e de o Tribunal ser conhecido pela sua jurisprudência proactiva em matéria de direitos

fundamentais, esta orientação jurisprudencial é ainda incipiente e largamente ambígua,

como Wiesbrock reconhece114, pelo que haverá que esperar por novos desenvolvimentos

para que possamos expressar sem reservas o nosso optimismo.

3.2. A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia

A Carta dos Direitos Fundamentais foi elaborada com o assumido propósito de conquis-

tar o apoio dos cidadãos, tornando mais visível aos olhos de todos a importância atribuída

pela União ao respeito e à defesa dos direitos humanos115. Formalmente, os redactores da

111 Cf. WIESBROCK, Anja – “Granting Citizenship-related Rights to Third-Country Nationals…”,cit., pp. 68-69.

112 Acórdão Rhimou Chakroun contra Minister van Buitenlandse Zaken, de 4 de Março de 2010, proc. C-

-578/08. 113

Acórdão Comissão Europeia contra Reino dos Países Baixos, de 29 de Abril de 2010, proc. C-92/07. 114

Cf. WIESBROCK, Anja – “Granting Citizenship-related Rights to Third-Country Nationals…”, cit., p. 74. 115

“This was clearly to be a visibility exercise, a way of pronouncing and providing both what the European

Union already claimed to have done in the area of human rights, and a way of declaring its commitments in a

public process which would help to secure a degree of popular legitimacy for a political entity which continues to

be contested and questioned”. Cf. DE BÚRCA, Gráinne – “The drafting of the European Union Charter of Funda-

mental Rights”, in European Law Review, n.º 26, 2001, p. 130.

209

Carta não pretenderam inovar, mas apenas fazer um apanhado dos direitos já reconhecidos

pela ordem jurídica da União, através de uma depuração criativa das normas de Direito

Comunitário, de Direito Internacional e dos Direitos Constitucionais dos Estados Membros

que haviam servido de sustento à actuação do Tribunal de Justiça ao longo dos anos116. Ain-

da assim, as alterações implicadas, no plano simbólico e no plano prático, pela adopção da

Carta e, finalmente, pela sua “integração” no texto dos Tratados não são, de modo algum,

despiciendas, como tem sido justamente notado na doutrina117. Desde logo, pelo reforço

que a Carta implica para o estatuto dos nacionais de países terceiros que são abrangidos por

muitas das suas normas.

As principais críticas dirigidas ao conteúdo da Carta dos Direitos Fundamentaisprendem-

se com a ambiguidade e a debilidade de muitas das suas disposições, a não inclusão de cer-

tos direitos (como os direitos das pessoas pertencentes a minorias) e o facto de deixar mui-

tas questões por resolver, desde logo, a da sua relação com outros instrumentos constitu-

cionais e internacionais de direitos humanos118. As disposições da Carta, nos termos do seu

art. 51.º, n.º 2, têm por destinatários as instituições, órgãos e organismos da União, na

observância do princípio da subsidiariedade, bem como os Estados membros, apenas quan-

do apliquem o Direito da União, o que restringe seriamente o seu campo de aplicação119 e a

sua capacidade de influir sobre as práticas dos Estados Membros que sejam lesivas dos

direitos fundamentais consagrados.

Encimada por um Preâmbulo onde são invocados os valores indivisíveis e universais da

dignidade do ser humano, da liberdade, da igualdade e da solidariedade, a Carta desdobra-

-se em seis Títulos temáticos dedicados, precisamente, à dignidade, às liberdades, à igual-

dade, à solidariedade, e ainda à cidadania e à justiça, terminando com um conjunto de dis-

posições gerais sobre a interpretação e a aplicação dos seus preceitos. Estão lá todos os

116

Cf. CRAIG, Paul e DE BÚRCA, Gráinne – EU Law..., cit., pp. 358-359. 117

Nesse sentido, cf. WALKER, Neil – “The Charter of Fundamental Rights of the European Union: legal, sym-

bolic and constitutional implications”, in P. J. Cullen e P. A. Zervakis (eds.), The Post Nice Process: Towards a

European Constitution?, Nomos Verlagsgesellschaft, 2002. 118

Em vista da adesão, finalmente admitida, da União à Convenção Europeia dos Direitos do Homem, põe-se,

nomeadamente, o problema de saber como articular este documento com a Carta, evitando os conflitos de

jurisdição entre o Tribunal de Justiça das Comunidades e o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH). O

art. 52.º, n.º 3, da Carta, que versa especificamente sobre a Convenção Europeia dos Direitos do Homem, não

contempla os termos em que há-de manter-se o relacionamento entre os dois Tribunais, mas pode deduzir-se,

com Paul Craig e Gráinne de Búrca, que se pretende que o Tribunal de Justiça continue a mostrar deferência face

ao TEDH. Este problema não é, aliás, privativo da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. Na verdade,

porque não se pretende substituir aos demais instrumentos de protecção de direitos humanos em vigor no espa-

ço em que se aplica, a Carta tem de coexistir ainda com as Constituições dos Estados Membros e com os acordos

internacionais de que estes sejam parte.Cf. CRAIG, Paul e DE BÚRCA, Gráinne – EU Law..., cit., pp. 43-44 e 361. 119

Cf. MENÉNDEZ, Agustín José – “A rights-based Europe?”, cit., pp. 136-141.

210

direitos habituais em qualquer Bill of Rights – os direitos à vida (art. 2.º), à integridade física

e mental (art. 3.º), à liberdade e segurança (art. 6.º), ao respeito pela vida privada e familiar

(art. 7.º), à liberdade de pensamento, de consciência e de religião (art. 10.º), à liberdade de

expressão e de informação (art. 11.º), à educação (art. 14.º), à propriedade (art. 17.º), a

tratamento não discriminatório (arts. 20.º e 21.º), entre outros.

O Título V, que versa especificamente sobre cidadania, elenca os direitos já reconhecidos

aos cidadãos da União pelos Tratados – o direito de eleger e de ser eleito nas eleições para o

Parlamento Europeu (art. 39.º), o direito de eleger e de ser eleito nas eleições municipais

(art. 40.º), o direito de acesso a documentos (art. 42.º), o direito de petição ao Provedor de

Justiça Europeu (art. 43.º) e ao Parlamento Europeu (art. 44.º), o direito de circular e de

permanecer livremente no território dos Estados Membros (art. 45.º), o direito a protecção

diplomática e consular por Estado Membro que não o da respectiva nacionalidade (art.

46.º).

A estes direitos, soma ainda o direito a uma boa administração (art. 41.º). Por força do

n.º 1 deste artigo, todas as pessoas têm direito a que os seus assuntos sejam tratados pelas

instituições, órgãos e organismos da União de forma imparcial, equitativa e num prazo

razoável, o que compreende, nomeadamente, o direito de qualquer pessoa a ser ouvida

antes de a seu respeito ser tomada qualquer medida individual que a afecte desfavoravel-

mente; o direito de qualquer pessoa a ter acesso aos processos que se lhe refiram; e a obri-

gação, por parte da administração, de fundamentar as suas decisões. Todas as pessoas têm

direito à reparação, por parte da União, dos danos causados pelas suas instituições ou pelos

seus agentes no exercício das respectivas funções (art. 41.º, n.º 3). Cabe ainda neste direito

a possibilidade, já antes reconhecida, de os indivíduos se dirigirem às instituições da União

numa das línguas dos Tratados e de receberem resposta na mesma língua (art. 41.º, n.º 4).

Na sua grande maioria, os direitos reconhecidos pela Carta são referidos a todas as pes-

soas. Isto vale mesmo para alguns dos direitos contidos no Título V. Expressamente reserva-

dos aos cidadãos da União são apenas a liberdade de procurar emprego, de trabalhar, de se

estabelecer ou de prestar serviços em qualquer Estado Membro (art. 15.º, n.º 2); o direito

de participar nas eleições para o Parlamento Europeu e nas eleições municipais do Estado

Membro de residência (arts. 39.º e 40.º); o direito a protecção diplomática e consular por

autoridades de Estado Membro diferente do da respectiva nacionalidade no território de

países terceiros em que este não esteja representado (art. 46.º); e o direito de circular e

permanecer livremente no território dos Estados Membros, ainda que o n.º 2 do art. 45.º

admita a possibilidade de conceder liberdade de circulação e de permanência aos nacionais

211

de países terceiros que residam legalmente no território de um Estado Membro. Apesar do

seu carácter eminentemente universalista, a Carta não deixou de ser criticada por reservar

este conjunto de direitos para os cidadãos da União, o que foi visto como um reforço das

diferenças que separam os cidadãos da União dos nacionais de países terceiros120.

Seja como for, apesar desta restrição e do limitado campo de aplicação das disposições

da Carta, é inegável que a sua entrada em vigor trouxe uma melhoria importante para a

protecção jurídica ao alcance dos nacionais de países terceiros legalmente residentes num

Estado Membro da União. A Carta reconhece-lhes, desde logo, o direito ao respeito pela

vida privada e familiar, protege-os de qualquer forma de discriminação e consagra o princí-

pio do superior interesse da criança121, para além de lhes reconhecer vários direitos sociais,

como a protecção contra o despedimento sem justa causa e a aplicação de legislação nacio-

nal e comunitária em matéria de condições de trabalho122. Compreende-se, por isso, que a

Carta constitua a base e o quadro de referência dos direitos a incluir no estatuto de cidada-

nia cívica. Claro que, como vimos, o estatuto de cidadania cívica proposto pela Comissão

Europeia inclui direitos que a Carta não reconhece aos nacionais de países terceiros.

4. O sucedâneo possível da cidadania cívica: o estatuto de residente de longa

duração

Como observou António Vitorino, a essência implícita no conceito de cidadania cívica

está claramente evidente na Directiva 2003/109/CE, de 25 de Novembro, que instituiu o

estatuto de residente de longa duração, em particular no que toca ao acesso ao emprego, à

educação e à protecção social, a liberdade de associação e a liberdade de circulação, entre

outros direitos123. A Directiva propôs-se o duplo objectivo de, por um lado, ultrapassar os

problemas postos pelo carácter fragmentado e ad hoc do regime até então aplicado aos

nacionais de países terceiros, e, por outro lado, proporcionar a estes indivíduos um trata-

120

Nesse sentido, cf., nomeadamente, WIESBROCK, Anja – “Granting Citizenship-related Rights to Third-

-Country Nationals…”, cit., p. 75. 121

Aspectos sublinhados por Anja Wiesbrock. Cf. WIESBROCK, Anja – “Granting Citizenship-related Rights to

Third-Country Nationals…”, cit., p. 75. 122

Aspectos sublinhados pela Comissão Europeia na sua comunicação relativa a uma política da Comunidade

em matéria de imigração. COM (2000) 757 final, de 22.11.2000. 123

Cf. VITORINO, António – “Uma Política Comum de Imigração”, cit., p. 36. Em idêntico sentido, cf. GEDDES,

Andrew, et al. – European Civic Citizenship and Inclusion Index, cit., pp. 4-5.

212

mento equitativo, ou seja, um estatuto jurídico comum tão próximo quanto possível daque-

le que é gozado pelos cidadãos da União.

A Directiva tem o mérito inegável de reunir num único diploma os aspectos essenciais de

um estatuto europeu comum para os nacionais de países terceiros, substituindo o que, até

aqui, mais não era do que um emaranhado de normas dispersas por instrumentos jurídicos

de vária natureza. O conjunto de direitos e deveres que daí resultava – variável, como era,

consoante o país de origem, o país de residência ou os laços com cidadãos europeus – tor-

nava-se de muito difícil compreensão, contribuindo largamente para a já grande vulnerabili-

dade dos seus titulares. Agora, os nacionais de países terceiros legalmente residentes pas-

sam a poder adquirir e beneficiar do estatuto de residente de longa duração em condições

muito semelhantes em todos os Estados Membros. Sob este ponto de vista, portanto, os

nacionais de países terceiros beneficiaram claramente, em certeza e segurança jurídicas,

com a Directiva.

Outro tanto não pode dizer-se no que respeita às condições de aquisição do estatuto e

aos direitos que nele vão implicados, domínios em que a Directiva ficou aquém das expecta-

tivas. O estatuto pretende-se aberto a todos os nacionais de países terceiros legalmente

residentes no território de um Estado Membro e aí instalados de forma duradoura, mas a

sua concessão não é, de modo algum, automática, contrariamente ao inicialmente aventado

pela Comissão Europeia, dispondo os Estados Membros de uma muito ampla margem de

apreciação. Os Estados Membros devem conceder o estatuto de residente de longa duração

aos nacionais de países terceiros que tenham residência legal e ininterrupta124 no seu terri-

tório durante os cinco anos que antecedem imediatamente a apresentação do respectivo

pedido (art. 4.º, n.º 1), mas isto não significa que os nacionais de países terceiros tenham um

direito subjectivo à concessão deste estatuto, que só obterão se fizerem prova de que dis-

põem de recursos estáveis e regulares suficientes para a sua subsistência, sem recorrer ao

sistema de assistência social do Estado Membro em causa, e de um seguro de doença que

cubra todos os riscos normalmente cobertos para os nacionais desse Estado (art. 5.º, n.º 1).

A Directiva autoriza, para além disso, os Estados Membros a exigir o preenchimento de con-

dições de integração, em conformidade com o Direito nacional (art. 5.º, n.º 2), o que se afi-

gura problemático, na medida em que – em vista da ausência de um consenso europeu

sobre o que seja admissível exigir aos estrangeiros em nome da integração e do silêncio da

Directiva sobre quaisquer critérios –, tanto pode significar a realização de testes de aptidão

124

Importa notar que o cumprimento do requisito de residência ininterrupta é aqui apreciado em termos

muito mais restritivos do que os fixados, para os cidadãos da União, pela Directiva 2004/38/CE, para obtenção do

direito de residência permanente.

213

linguística ou de conhecimento da história e cultura da sociedade de acolhimento, como a

exigência de conformidade estrita com os valores fundamentais do Estado anfitrião, legiti-

mando, por aí, preocupantes formas de exclusão125. Sobre tudo isto, os Estados podem ain-

da recusar-se a conceder o estatuto de residente de longa duração invocando razões de

ordem pública ou de segurança pública (art. 6.º, n.º 1).

A Directiva reconhece aos titulares do estatuto de residente de longa duração o direito

de circularem e de residirem por período superior a três meses num Estado Membro dife-

rente daquele em que tenham sido inicialmente admitidos (art. 14.º)126, o direito a igualda-

de de tratamento numa série de domínios relevantes (art. 11.º)127 e o direito ao reagrupa-

mento familiar com os membros da sua família nuclear no segundo Estado Membro onde

fixem residência (art. 16.º, n.º 1), para além de lhes conceder uma protecção reforçada con-

tra a expulsão (art. 12.º)128. No entanto, a Directiva deixa abertas várias possibilidades de os

Estados Membros se eximirem ao respeito por estes direitos ou de lhes restringirem o

125

Para uma leitura de idêntico sentido, cf. BAUBÖCK, Rainer – “Civic Citizenship: A New Concept for the New

Europe”, cit., p. 131; ACOSTA ARCARAZO, Diego – The Long-Term Residence Status as a Subsidiary Form of EU

Citizenship (Immigration and Asylum Law and Policy in Europe, Amesterdão, Martinus Nijhoff Publishers, 2011. 126

Este é o aspecto mais ambicioso da Directiva e aquele que maior impacto tem na pretendida aproximação

de estatutos entre nacionais de países terceiros e cidadãos da União. Mais uma vez, porém, há consideráveis

limitações a ter em conta. Desde logo, o que os residentes de longa duração têm é o direito de requerer um

título de residência junto das autoridades competentes de um segundo Estado Membro. Não há, aparentemen-

te, restrições quanto aos motivos pelos quais um residente de longa duração possa pretender residir no território

do segundo Estado, ainda que a Directiva identifique duas motivações principais, o exercício de uma actividade

económica por conta de outrem ou por conta própria e a realização de estudos ou formação profissional. 127

O residente de longa duração beneficia de igualdade de tratamento perante os nacionais do Estado Mem-

bro que concedeu o estatuto no acesso a uma actividade profissional por conta própria ou por conta de outrem,

condições de emprego e de trabalho; no acesso ao ensino e formação profissional, incluindo subsídios e bolsas

de estudo; no reconhecimento de diplomas profissionais, certificados e outros títulos; no acesso à segurança

social, assistência social e protecção social; no acesso a benefícios fiscais; no acesso a bens e serviços, incluindo

alojamento; no exercício da liberdade de associação e sindical, sem prejuízo das disposições nacionais em maté-

ria de ordem e segurança pública; e no livre acesso a todo o território do Estado Membro, dentro dos limites

previstos na lei por razões de segurança. Nos termos do art. 11.º, n.º 5, os Estados podem decidir conceder o

acesso a outros benefícios e igualdade de tratamento em outros domínios para além destes. 128

De modo não muito diferente do previsto para os cidadãos da União e membros das suas famílias, pela

Directiva 2004/38/CE, as decisões de expulsão só podem ser decretadas quando o residente de longa duração

representar uma ameaça real e suficientemente grave para a ordem pública ou a segurança pública e não podem

ser fundadas em razões económicas, devendo sempre tomar em consideração a duração da residência no terri-

tório, a idade da pessoa em questão, as consequências para essa pessoa e para os seus familiares e os laços com

o país de residência ou a ausência de laços com o país de origem. Em caso de decisão de expulsão, o residente de

longa duração tem o direito de interpor recurso judicial no Estado Membro em questão e, se não dispuser de

recursos suficientes, beneficia de apoio judiciário nas mesmas condições das praticadas para os nacionais do

Estado (um aspecto, curiosamente, não coberto pela Directiva 2004/38/CE). Se o residente de longa duração for

expulso de um Estado Membro que não o que lhe concedeu o estatuto, o primeiro Estado Membro é obrigado a

readmiti-lo, e à sua família, imediatamente e sem formalidades (art. 22.º, n.º 2).

214

alcance129 e omite alguns direitos da maior importância, como são o direito de acesso à Jus-

tiça e aos tribunais, o direito ao livre exercício de actividades culturais e religiosas e os direi-

tos de participação política, incluindo o direito de voto nas eleições locais e europeias130.

5. Considerações finais

O estatuto de residente de longa duração, apesar do inegável reforço que trouxe à posição

jurídica dos nacionais de países terceiros a residir no espaço da União, dificilmente poderá

ser considerado um estatuto de quase-cidadania e não remove alguns dos obstáculos essen-

ciais a uma efectiva aproximação ao estatuto gozado pelos cidadãos da União. Não pode,

por isso, dizer-se que a adopção da Directiva 2003/109/CE tenha esgotado o efeito útil do

conceito de cidadania cívica. O mesmo vale para as conquistas representadas pela atribui-

ção de carácter jurídico vinculativo à Carta dos Direitos Fundamentais e por alguma juris-

prudência recente do Tribunal de Justiça. Os nacionais de países terceiros continuam a não

dispor de direitos de residência equiparáveis aos dos cidadãos da União, continuam a não

ser cabalmente protegidos contra a discriminação com base na nacionalidade e continuam a

não poder votar ou ser eleitos nas eleições locais e nas eleições para o Parlamento Europeu

no Estado Membro de residência, apesar do consenso aparentemente existente sobre a

importância dos direitos de participação política como condição indispensável para uma boa

129

Desde logo, os Estados podem reservar a igualdade de tratamento em matéria de ensino, segurança

social, benefícios fiscais, acesso a bens e serviços e liberdade de associação aos casos em que o local de residên-

cia legal ou habitual do titular do estatuto, ou dos familiares para os quais pede benefícios, se situe no seu terri-

tório (art. 11.º, n.º 2). Para além disso, os Estados podem continuar a impor restrições ao acesso a actividades

profissionais por conta própria ou por conta de outrem se, nos termos da legislação nacional ou comunitária em

vigor, essas actividades forem reservadas a nacionais, a cidadãos da União ou do Espaço Económico Europeu [art.

11.º, n.º 3, alínea a)]. E podem limitar às prestações sociais de base a igualdade de tratamento no que respeita à

assistência social e à protecção social (art. 11.º, n.º 4). No que respeita ao direito de residir num segundo Estado

Membro por período superior a três meses, os Estados Membros podem subtrair-se ao encargo de admitir estes

estrangeiros se o mercado de trabalho determinar a aplicação dos procedimentos nacionais no que se refere aos

requisitos para o preenchimento de vagas ou para o exercício das actividades ou se a política do mercado de

trabalho determinar a preferência por cidadãos da União ou por nacionais de países terceiros que tenham resi-

dência legal e recebam subsídio de desemprego no Estado em causa. Para além disso, os Estados Membros

reservaram-se o direito de limitar o número total de pessoas susceptíveis de beneficiar do direito a residência,

quando essa limitação já tivesse sido estabelecida na legislação em vigor aquando da aprovação desta Directiva. 130

Para referir apenas os direitos cuja inclusão foi recomendada pelo Conselho Económico e Social e pelo

Parlamento Europeu. Sobre a fundamental importância dos direitos de participação política para a integração nas

sociedades de acolhimento se pronuncia, nomeadamente, a Comissão Europeia na sua recente comunicação

sobre uma agenda europeia para a integração dos nacionais de países terceiros. COM (2011) 455 final, de

20.07.2011. Cf., ainda, BAUBÖCK, Rainer – “Civic Citizenship: A New Concept for the New Europe”, cit., pp. 133-

-134.

215

integração nas sociedades de acolhimento. A promessa de uma cidadania cívica da União

Europeia continua, assim, largamente por cumprir. O que é de lamentar.

(*) Por vontade expressa do autor, este artigo segue as regras anteriores ao novo acordo ortográfico.

A cooperação transfronteiriça no domínio do

meio-ambiente

sic uteretuo ut alienum non laedas

Wladimir Brito

I. Características gerais e comuns dos organismos de cooperação

1. Introdução

Nesta nossa comunicação, em que iremos fazer uma breve análise do direito aplicável na

cooperação transfronteiriça meio-ambiental, direito que, em nossa opinião, a máxima latina

“sic uteretuo ut alienum non laedas” condensa e reflecte. Começaremos por uma sucinta

análise das características gerais e comuns da cooperação transfronteiriça, qualquer que

seja o seu domínio, indicando as regras jurídicas estruturantes do regime jurídico dessa coo-

peração. De seguida, abordaremos a questão da cooperação transfronteiriça no domínio do

meio-ambiente, essencialmente para assinalar as regras jurídicas estruturantes do regime

jurídico geral dessa cooperação, assinalando a necessidade de respeitar as várias Conven-

ções sobre o meio-ambiente e de se aditar a essas regras jurídicas outras específicas de cada

concreto tipo de cooperação transfronteiriça nesse domínio.

Com esta nota estamos já a assinalar que, em nossa opinião, a cooperação transfronteiri-

ça no domínio do meio-ambiente pode ter uma natureza geral, como pode, em sede da

cooperação entre autoridades locais, recobrir um dado e concreto domínio meio-ambiental,

como, por exemplo, o da protecção de certo e determinado eco-sistema, da protecção de

um rio ou lago, de uma floresta, do meio-ambiente aéreo contra poluição industrial, da pro-

tecção fito-sanitária, etc., o que obviamente postula a consagração de normas específicas.

Para além disso, importa salientar que, na feitura dos respectivos Protocolos constituti-

vos de organismos de cooperação e dos seus Estatutos, devem ser escrupulosamente res-

peitados os princípios rectores convencionalmente consagrados para constituição e funcio-

namento desses organismos de cooperação.

217

2. Algumas características gerais e comuns

No que se refere às características gerais e comuns da cooperação transfronteiriça, fala-

remos aqui especificamente dos mais importantes que são: o diálogo, a homogeneidade, a

funcionalidade, a coordenação e a representatividade.

a) O diálogo

Podemos dizer que o diálogo horizontal, para usarmos a expressão de Charles Kiss, entre

as regiões e colectividades territoriais é uma característica sobredeterminante, na medida

em que condiciona e determina a afirmação de todas as demais. Por outras palavras, mesmo

que todas as demais características estejam presentes, sem diálogo não há cooperação.

De facto, todo e qualquer organismo de cooperação transfronteiriça deve a sua criação

ao diálogo entre as colectividades locais, sendo, portanto, em primeira linha produto desse

diálogo consciencializador da importância e da necessidade da cooperação transfronteiriça

num ou em diversos domínios; por outro lado, a subsistência e funcionalidade desses orga-

nismos depende, também e em primeira linha, desse diálogo, agora travado no seu interior.

Contudo, agora, esse diálogo tem de ser permanente e sempre renovado pela dinâmica evo-

lutiva dos interesses comuns que estão a ser prosseguidos e pelo aparecimento de outros

que, consequentemente, inauguram novos domínios de cooperação.

O diálogo, importa esclarecer, não é só interno, mas é também, tem de ser necessaria-

mente, externo, isto é, com entidades nacionais ou internacionais que podem participar na

ou contribuir para a realização dos interesses prosseguidos pelo organismo.

A diferença entre o diálogo interno e externo é dada pelos sujeitos que nele participam.

No interno, são os órgãos representativos de cada colectividade parte do organismo de coo-

peração que, no seio dos competentes órgãos desse organismo, dialogam, com vista a iden-

tificar interesses comuns e a estabelecer estratégias para os realizar; no externo são já os

órgãos do organismo de cooperação que dialogam com órgãos de outras entidades, com

vista a prosseguir os interesses do próprio organismo de cooperação já definidos pelas

colectividades territoriais que o compõem.

Contudo, em ambos os casos, o diálogo é o elemento determinante da coordenação e

concertação de esforços para a identificação e resolução dos problemas comuns. É, portan-

to, pelo diálogo que reconhecem e assumem a existência de uma relativa homogeneidade

218

espacial e sócio-económico e de problemas comuns que têm vantagem em resolver em

comunhão de esforços e de meios1.

b) A homogeneidade

Chegamos assim a uma outra característica comum, também determinante da criação e

subsistência dos organismos de cooperação transfronteiriça. Esta característica é a homoge-

neidade, que tantopode serespacial, geográfica ou sócio-económica.

Com efeito, os organismos são normalmente criados por entidades e colectividades terri-

toriais de uma região com forte homogeneidade sócio-cultural e económico-social de que

resultam problemas comuns que podem e devem ser resolvidos em conjunto, com grande

vantagem para todos, em especial, sob o ponto de vista de economia de meios e/ou de

recursos.

A forte proximidade cultural, a enorme carência de meios, o nível de desenvolvimento

humano muito semelhante e a longa história de contactos quotidianos entre os povos de um

e do outro lado da fronteira, o reconhecimento de que a relativa homogeneidade espácio-

-cultural e económico-social sempre foi e continuará a ser causa de problemas e de interes-

ses comuns e a sentida e reconhecida necessidade de conjugação de esforços e de coorde-

nação de meios para resolver os seus problemas comuns, facilitam o diálogo entre os povos

e as suas entidades e colectividades e a criação desses organismos.

c) A funcionalidade, a coordenação e a representatividade

São outras importantes características gerais da cooperação transfronteiriça. De facto, as

entidades e colectividades que as constituem com a sua criação expressamente aceitam que

pretendem agir em conjunto na e sobre a região em que se inserem, e, para o efeito, através

desses organismos planeiam e executam políticas públicas de interesse comum com vista a

retirarem o maior proveito das potencialidades de cada uma das colectividades e/ou entida-

des associadas e a promoverem conjuntamente desenvolvimento sócio-económico de toda

a área territorial e das colectividades humanas que nelas vivem e trabalham.

1 Sobre o diálogo, veja-se, por todos, BRITO, Wladimir, Convenção-Quadro Europeia sobre a Cooperação

entre as Colectividades e Autoridades Territoriais, Coimbra Editora, Coimbra, 2000, p. 410.

219

Para tanto, têm de coordenar a realização conjunta dos seus interesses e têm de concer-

tar esforços para os prosseguir com os meios comuns disponíveis postos ao serviço desses

interesses comuns.

Contudo, isto só é possível porque essas entidades e colectividades representam legiti-

mamente os interesses das comunidades que os integram quer interna quer externamente,

sendo essa representatividade funcional a fonte de legitimação interna da acção das entida-

des e/ou colectividades e, externamente, é o próprio organismo de cooperação que se apre-

senta como legítimo representante das comunidades que o constituíram e integram no diá-

logo com outros entes públicos ou privados.

3. Princípios gerais e comuns estruturantes da Cooperação Transfronteiriça

Importa agora assinalar a existência de um conjunto de regras gerais e comuns estrutu-

rantes dos acordos de cooperação em qualquer domínio, convencionalmente consagradas,

que são dominantemente constituídas pelos seguintes princípios:

a) Princípio da concertação, já consagrado pelo art. 4.º na Convenção-Quadro Europeia

sobre a Cooperação Transfronteiriça entre as Colectividades ou Autoridades Territoriais,

princípio de acordo com o qual, diz-nos o Rapport Explicatif dessa Convenção, “comporte

essentiellement la consultation réciproque, l’échange d’informations, les discussions et les

études communes ainsi que la coordination, c’est-à-dire la définition en commun de lignes

d’action, soit dans le domaine de la réglementation, soit dans celui de certainesréalisations

concrètes”. É claro que esse recorte do princípio é demasiado abrangente para o singularizar

como princípio distinto do da informação e da coordenação.

Por essa razão, entendemos que esse princípio deve ser recortado como harmonização

de condutas pela via do diálogo entre os parceiros da cooperação com vista a um consenso.

Trata-se assim de um princípio que impõe antes de mais a busca do consenso através de um

prévio acordo sobre os interesses comuns e a elaboração de planos de acção para a sua rea-

lização. Essa busca de consenso implica flexibilidade do processo e dos métodos de acção e

diálogo permanente.

b) Princípio do consenso, que implica uma activa participação de todas as partes na busca

conjunta das soluções mais adequadas em cada momento para os problemas que têm de

resolver ou, se se quiser, para a definição e realização dos interesses comuns.

c) Princípio da acção comunicativa ou do diálogo de acordo com o qual a acção dos par-

ceiros da cooperação deve ser coordenada através de comunicação orientada para o recí-

220

proco entendimento, não podendo nunca ser imposta por uma das partes. Trata-se de um

princípio que consagra o diálogo como meio de interacção entre as partes, com vista a esta-

belecer o sentido e os objectivos da acção concretizadora dos seus interesses. Numa pala-

vra, e dizemo-lo com Habermas, consagra o diálogo como meio de formação do consenso.

d) Princípio da paridade, de acordo com o qual é obrigatória a representação paritária

das partes em todos os órgãos dos organismos da cooperação.

e) Princípio da Vizinhança geográfica, que estabelece que só entidades jurídico-

-administrativas geograficamente contíguas e com tendencial homogeneidade podem esta-

belecer relações de cooperação transfronteiriça. Consagra esse princípio que a cooperação

transfronteiriça é uma cooperação de Vizinhança (geográfica) – cfr. art. 2.º do Tratado de

Valência. Esse princípio apela e convoca necessariamente não só o conjunto de princípios

rectores da Vizinhança internacional – como por exemplo, o que impõe o dever geral de

abstenção, de precaução, de informação e consulta, de responsabilidade internacional do

Estado – e pressupõe a Boa Vizinhança internacional, como o princípio regulador das rela-

ções de Vizinhança e promotor da cooperação entre países geograficamente contíguos.

Em nossa opinião, esses são os mais relevantes princípios estruturantes da cooperação

transfronteiriça em qualquer domínio, sendo que a questão da protecção e preservação do

meio-ambiente deve ser analisada com base nessas características gerais e princípios

comuns, que acabámos de falar, mas essencialmente tendo em conta alguns importantes

princípios rectores do direito internacional de Vizinhança e da Boa Vizinhança.

II. A cooperação transfronteiriça no domínio do meio-ambiente: o direito apli-

cável

1. Introdução

Se é certo que a Vizinhança e a Boa Vizinhança internacional são fundamentos de toda e

qualquer cooperação transfronteiriça, não é menos certo que, na questão da cooperação no

domínio do meio-ambiente e da sua protecção, as normas reguladoras da Vizinhança e da

Boa Vizinhança internacional assumem especial relevância.

Na verdade, temos defendido que a cooperação transfronteiriça implica necessariamente

a ideia (e a prática) da Boa Vizinhança, que exige, em primeiro lugar, aos Estados e, de

seguida, às autoridades locais um bom relacionamento em todos os domínios, incluindo,

221

portanto, o da protecção meio-ambiental. Exige ainda a Boa Vizinhança um mais intenso

respeito pelas específicas normas do Direito de Vizinhança e de Boa Vizinhança Internacio-

nal, exactamente porque com elas se pretende regular uma densa e complexa rede de rela-

ções humanas e materiais produtora de uma forte e natural interdependência global, a nível

dos Estados, e local, a nível das colectividades locais.

Por isso mesmo, a Vizinhança e a Boa Vizinhança impõem “condutas mais rigorosas e

regulamentadas por um conjunto complementar de normas especialmente editadas em vir-

tude da amizade e da cooperação mais intensas que mantêm entre si”, e entre essas normas

estão as que regulam a protecção e defesa do meio-ambiente.

A cooperação transfronteiriça meio-ambiental, embora possa ser autonomizada como

um dos diversos domínios de cooperação, em boa verdade, acaba por recobrir todos os

demais domínios, sendo, portanto, uma cooperação (tal como o próprio meio-ambiente)

com uma natureza encapsuladora. Por essa razão, ela acaba por ter de ser regulada não só

pelas normas gerais e comuns da cooperação no domínio do meio-ambiente em geral, como

por específicas normas de cada concreto tipo de cooperação meio-ambiental. Isto obvia-

mente sem esquecer as convenções sobrea cooperação transfronteiriça, bem como as nor-

mas relativas à protecção do meio-ambiente.

Na verdade, estando os homens completa e inexoravelmente envolvidos pelo meio-

-ambiente em que têm de viver, as comunidades territoriais onde habitam tanto podem

cooperar em específicos domínios meio-ambientais, como por exemplo, protecção e salva-

guarda do meio aquático e da sua flora e fauna, do meio aéreo, nomeadamente a defesa da

qualidade do ar, terrestre controlo sanitário, fito-sanitário e da poluição e contaminação dos

solos e através deles das redes freáticas, como estão necessariamente interessados em par-

ticipar, mesmo que num plano secundário, na cooperação transfronteiriça meio-ambiental

em geral, isto é naquela que é promovida e desenvolvida globalmente pelos Estados e que

afecta directa ou indirectamente o seu meio-ambiente.

Pretendemos com isso assinalar que, sob o ponto de vista do meio-ambiente, a coopera-

ção não pode ser encarada exclusivamente como uma questão local, mas também e de for-

ma crescente como um problema global, quer a nível estatal quer até continental, posto que

ela é, como dizíamos em 1999, “o resultado não só da contiguidade geográfica e proximida-

de física geradora dos diversos tipos de Vizinhança (…), mas também, hoje em dia, em virtu-

de do desenvolvimento tecnológico, da Vizinhança a nível continental ou até planetário”2.

2 BRITO, Wladimir, A Convenção-Quadro, cit., p. 140.

222

De facto, estando como está em causa a protecção do meio-ambiente e com ela a luta

contra as mais diversas formas de poluição, de outros actividades prejudiciais ao meio-

-ambiente, de entre elas a destruição de eco-sistemas, a predação das espécies, a transmis-

são de doenças, etc., a cooperação transfronteiriça aqui tem de ser necessariamente enten-

dida em dois sentidos, a saber: um muito amplo, que é aquela que diz respeito aos Estados,

e outra, mais restrita, que já se circunscreve às colectividades territoriais situadas na zona

fronteiriça. Ambas podem ser desenvolvidas separadamente, mas é seguro que implicam a

coordenação de esforços e de actividades entre a Administração Central e as colectividades

territoriais e os seus organismos de cooperação, e, em certos domínios, devem ser até for-

temente complementares, sob pena de ineficácia.

A nós interessa-nos essencialmente essa cooperação entre as colectividades locais, mas

esse interesse não nos pode fazer perder de vista que, como já tivemos a ocasião de dizer,

em sede de cooperação transfronteiriça todos os específicos regimes jurídicos de coopera-

ção estão subordinados a, e têm, portanto, de ser conformes com normas – regras e princí-

pios – gerais de cooperação, estruturantes da cooperação transfronteiriça, qualquer que

seja o seu domínio. Em nossa opinião, por estas últimas normas serem exigências feitas a

todo e qualquer regime jurídico da cooperação e por representarem postulações eliciadas

de, pelo menos, dois dos vários fundamentos dessa cooperação, que são a Vizinhança e a

Boa Vizinhança internacionais, elas transcendem os concretos regimes de cooperação local.

2.

É de assinalar que, por o meio-ambiente não conhecer fronteiras e por a sua preservação

ser um dever da própria humanidade, o problema da cooperação no domínio meio-

-ambiental é, originariamente, reconhecido e assumido como uma questão inter-estatal,

apesar de, por regra, as suas consequências negativas ou positivas afectarem, em primeira

linha, as regiões fronteiriças.

Exactamente por essas razões, a sua discussão em sede jurisdicional foi feita pela primei-

ra vez em casos que consubstanciaram conflitos jurídico-políticos provocados por poluição

meio-ambiental entre Estados, como aconteceu no caso da fundição Trail (1935-1941) e,

mais tarde, no caso do Lago Lanoux (1956), em que a questão foi discutida de forma apro-

fundada e projectada para uma dimensão universal.

Dessa discussão, polarizada pela máxima latina “sic uteretuo ut alienum non laedas”,

resultou a consagração de normas e princípios dela extraídos, que passaram a ser reconhe-

cidos como fundamentos últimos do direito de Vizinhança e de Boa Vizinhança internacio-

223

nal, e, em consequência, pilares estruturantes do direito da cooperação transfronteiriça,

nomeada e especificamente, no domínio do meio-ambiente.

É, portanto, a nível inter-estatal e no quadro da Vizinhança e da Boa Vizinhança interna-

cional que o problema da cooperação transfronteiriça no domínio do meio-ambiental come-

ça a ser analisado e resolvido, o que permitiu a consensualização, em sede de Conferências

Internacionais promovidas pelas Nações Unidas, do reconhecimento desse problema como

uma questão universal e da consagração de um conjunto de princípios gerais sobre a protec-

ção do meio-ambiente, todos extraídos daquela máxima latina acima referida. Hoje esses

princípios integram normas jurídico-internacionais reguladoras da protecção do meio-

-ambiente e enformam e conformam as convenções e os protocolos sobre a cooperação

transfronteiriça em todos os domínios, em especial, o meio-ambiental.

3.

Posto isto, interessa agora referenciar essas normas para denunciar a sua origem e o seu

conteúdo, para depois esclarecer a sua aplicabilidade na cooperação a nível local.

Começaremos por relembrar que, se a fonte originária dessas normas é a acima referida

máxima latina “sic uteretuo ut alienum non laedas”, e o mesmo princípio que dela se extrai

por decorrer das relações de Vizinhança e de Boa Vizinhança3, acaba por ser a expressão da

soberania territorial exercida com respeito não só pelos direitos soberanos dos Estados vizi-

nhos, como pelos direitos dos cidadãos desses Estados. Nessa medida, esse princípio é a

manifestação jurídica da consciência da existência de um dever jurídico que se impõe a

todos os Estados e que é o princípio que impõe ao Estado o dever de não causar prejuízos

aos seus vizinhos ou a terceiros com a utilização do seu território e dos seus recursos natu-

rais, técnico-científicos ou industriais.

Assim, essa máxima-princípio jurídico ao mesmo tempo que é a manifestação do princí-

pio da soberania, consagra uma obrigação jurídico-internacionalmente imposta a todos os

Estados (erga omnes, portanto) de se absterem de praticar nos seus territórios actos que,

pela sua natureza, possam causar prejuízos ao território dos seus vizinhos.

Também emerge como corolário natural desse princípio da soberania, uma norma inter-

nacionalmente aceite, segundo a qual o Estado tem o direito de utilizar o seu próprio terri-

tório e os seus próprios recursos, mesmo os da zona fronteiriça no seu próprio interesse, o

que nos permite dizer que daquele princípio “sic uteretuo ut alienum non laedas” são extraí-

3 Nesse sentido, VISSCHER, Charles de, La responsabilité Internationale des États pour les Dommages

d’Origine Technologique et Industrielle, Ed. Pedone, Paris, 1976, p. 35.

224

das duas importantes normas do direito internacional da cooperação transfronteiriça no

domínio do meio-ambiente, sendo uma – esta última – atributiva de direitos e a outra, a

acima referida, impositiva de obrigações.

Essas duas normas foram unificadas numa única regra jurídica formulada pelo Tribunal

Arbitral Especial na decisão proferida no caso da Fundição Trial, quando aí se afirmou a exis-

tência de uma regra do Direito Internacional segundo a qual “nenhum Estado tem o direito

de usar ou de permitir o uso do seu território de forma a causar dano por fumos noutro

Estado ou danos a bens ou pessoas nesse Estado quando as consequências são graves e o

dano está provado de forma clara e convincente”.

Consagra-se, assim, nessa decisão, a principal norma do direito de protecção do meio-

-ambiente, norma essa que compatibiliza aquela norma-corolário do princípio da soberania

com a obrigação erga omnes de abstenção da prática de actos prejudiciais ao território dos

Estados vizinhos e/ou às pessoas e bens aí localizados.

Ficam assim lançadas as estruturas bases do direito de Vizinhança e de Boa Vizi-

nhança internacional, que, como temos vindo a defender, são o fundamento de toda a coo-

peração transfronteiriça e, com ela, fica também consagrado o princípio segundo o qual os

Estados têm o dever de evitar que agentes seus ou particulares façam do seu território um

uso prejudicial para os seus vizinhos, princípio este que Charles de Visscher com proprieda-

de designou como “princípio da utilização não prejudicial do território”.

4.

Essas regras e princípios acolhem os aplausos unânimes da doutrina e da jurisprudência e

passaram a ser aplicados, com maior ou menor amplitude, na generalidade dos casos sub-

metidos à apreciação jurisdicional ou arbitral4, acabando por ser consagradas pela Confe-

rência de Stockholm e na Acta Final da Conferência de Helsínquia, como normas fundamen-

tais da protecção do meio-ambiente, e ponto de partida para a criação de um ordenamento

jurídico internacional protector do meio-ambiente.

Ora, esse ordenamento jurídico começou a ser estruturado pelo Conselho da Europa, em

matéria da poluição do meio-ambiental, pela via das várias Resoluções do Conselho de

Ministros5 e, de seguida, em Stockholm em 1972, na United Nations Conference on the

4 Como por exemplo, no Nuclear Test Cases, que opôs a Austrália e a França em 1974, no Fisheries Jurisdic-

tion Case, entre o Reino Unido, a Islândia e a Alemanha (1974), e a Stichting Greenpeace Council contra a Comis-

são da União Europeia (1998). 5 Como por exemplo as seguintes Resoluções: Res. 822/9.2/20 de Dezembro de 2003 – Convenção sobre a

Conservação da Vida Selvagem e o Habitat Natural na Europa; Res. (71) 5E/26 de Março, de 1971 – Poluição do

225

Human Environment com a consagração, por um elevado número de participantes, na

Declaração aí produzida, de 26 princípios, e com a adopção de 106 recomendações sobre o

meio-ambiente. De seguida, a Conferência de Helsínquia sobre a Segurança e Cooperação na

Europa dedicou na sua Acta Final uma secção à questão da defesa do meio-ambiente, rea-

firmando aí alguns princípios já consagrados em Stockholm.

De facto, o Conselho de Ministros do Conselho da Europa na Res. (68) 4E/8 de Março de

19686, consagrou o princípio da prevenção, e a Declaração de Stockholm consagrou o princí-

pio segundo o qual os Estados, embora tenham o direito de explorar os seus recursos natu-

rais e de prosseguir as suas políticas meio-ambientais, têm o dever de assegurar que as acti-

vidades exercidas no interior dos seus territórios não causem prejuízos meio-ambientais aos

Estados vizinhos7 e também o princípio da responsabilidade pelos danos meio-ambientais

causados por actividades desenvolvidas nos seus territórios8, princípios estes que foram

reafirmados na Conferência de Helsínquia.

Desses princípios, em especial do primeiro, decorrem as regras gerais de deverosidade,

que estabelecem um dever geral de abstenção, um dever geral de precaução, um dever de

informação e de consulta, bem como da responsabilidade pelos danos causados, deverosi-

dades essas que visam, em última análise, não só assegurar o respeito pelo meio-ambiente,

como impor às entidades públicas nacionais ou locais condutas protectoras e salvaguarda-

doras desse mesmo meio.

Esses princípios e essas regras, que são, antes de mais, normas integradoras do direito da

Vizinhança e da Boa Vizinhança, regulam de forma adequada as relações de Vizinhança

meio-ambientais, relações estas que estão na base, que são os fundamentos últimos, da

cooperação transfronteiriça, que, de facto, outra coisa não reflecte do que a Boa Vizinhança

não só entre os Estados contíguos, mas essencialmente entre as comunidades localizadas

num e noutro lado da fronteira. Essas relações impõem, natural e necessariamente, um mais

escrupuloso respeito por essas normas – regras e princípios –, exactamente porque é aí, nas

Ar na Zona da Fronteira; Res. (70) 11E/07 de Março de 1970 – Sobre o Plano de Coordenação de Esforços por

cidades e vilas e sobre a Poluição do Ar; Res. (69) 37E/31 de Outubro de 1969 – Poluição do Mar; Res. (68) 4E/08

de Março de 1968 – Aprova a Declaração de Princípios sobre a Poluição do Ar; Res. (66) 23E/29 de Março de

1966 – Poluição do Ar. 6 Res. (68) 4E/08 de Março de 1968, aprova a Declaração de Princípios sobre o controlo da Poluição do Ar.

7 Princípio 21 “States have, in accordance with the Charter of the United Nations and the principles of interna-

tional law, the sovereign right to exploit their own resources pursuant to their own environmental policies, and

the responsibility to ensure that activities within their jurisdiction or control do not cause damage to the environ-

ment of other States or of areas beyond the limits of national jurisdiction”. 8 Princípio 22 “States shall cooperate to develop further the international law regarding liability and compen-

sation for the victims of pollution and other environmental damage caused by activities within the jurisdiction or

control of such States to areas beyond their jurisdiction”.

226

zonas fronteiriças, entre as comunidades aí localizadas que são sentidas de forma mais pro-

funda e intensa os laços de interdependência e os efeitos negativos ou positivos da degrada-

ção ou da protecção do meio-ambiente.

5.

Ora, se nos lembrarmos que a Vizinhança e a Boa Vizinhança implicam a contiguidade

geoterritorial produtoras de relações especiais, não será difícil intuir que essas relações

assumem distinta natureza, de acordo com o concreto tipo de Vizinhança – terrestre, sub-

terrânea, aérea, aquática (fluvial, lacustre e marítima) e meio-ambiental – e, por isso mes-

mo, não podem ser reguladas por um único, mas sim por diferentes regimes jurídicos trans-

fronteiriços, que tenham como normas estruturantes aquelas regras e princípios acima indi-

cadas. Na verdade, o regime jurídico rector da Vizinhança marítima, por exemplo, dominada

por convenções internacionais relativas ao direito do mar, de natureza dominantemente

multilateral, não é nem pode ser idêntico ao regime jurídico regulador da Vizinhança terres-

tre e subterrânea assente em convenções de natureza dominantemente bilaterais e propi-

ciadora de uma maior tendência para acordos transfronteiriços entre comunidades locais

fronteiriças.

Queremos com isso significar que as normas de deverosidade acima referidas estão pre-

sentes em todas as relações de Vizinhança e de Boa Vizinhança, logo, nas relações de coope-

ração transfronteiriça, incluindo a meio-ambiental, presença que se manifesta, mesmo que

não sejam expressamente referenciadas, nas convenções reguladoras dessas relações, exac-

tamente porque elas conformam e enformam a estrutura nuclear do regime jurídico da Vizi-

nhança e da Boa Vizinhança internacional, logo a da cooperação transfronteiriça em todos

os domínios.

Contudo, isso não significa uma absoluta uniformização do regime jurídico da Vizinhança

e de Boa Vizinhança internacionais, e/ou da cooperação transfronteiriça, nomeada e especi-

ficamente na cooperação no domínio meio-ambiental, visto que, em nossa opinião, esse

regime jurídico, embora deva ser necessariamente conformado por aquelas regras e princí-

pios jurídicos, não pode deixar de ser singular, isto é, específico para cada concreta situação

da cooperação no domínio meio-ambiental. Significa isso que, em nossa opinião, cada regi-

me jurídico contém necessariamente um conjunto de outras regras jurídicas específicas de

cada concreto tipo de cooperação, regras que têm de ser conformes com aquele ordena-

mento jurídico regulador da Vizinhança e da Boa Vizinhança internacional a que nos referi-

227

mos acima e que, em última análise, são instrumentos normativos indispensáveis à realiza-

ção prática da cooperação.

III. Conclusão

Podemos agora concluir dizendo que em sede de cooperação transfronteiriça no domínio

do meio-ambiente impõe-se o respeito antes de mais pelas Convenções Internacionais sobre

a Vizinhança e a Boa Vizinhança Internacional, especialmente a máxima-princípio “sic utere-

tuo ut alienum non laedas” e o “princípio da não utilização prejudicial do território” que dele

decorre, as normas que regulam directa e especificamente a protecção internacional do

meio-ambiente, os princípios típicos – comuns e gerais – do Direito da Cooperação Trans-

fronteiriça, consagrados na Convenção-Quadro Europeia sobre a Cooperação entre as Colec-

tividades e Autoridades Territoriais, de 21 de Maio de 1980 (do Conselho da Europa), as

Convenções inter-estatais (bi ou multilateriais) entre Estados vizinhos, e as regras gerais de

deverosidade, corolário daquela máxima-princípio que estabelecem um dever geral de abs-

tenção, um dever geral de precaução, um dever de informação e de consulta, bem como da

responsabilidade pelos danos causados.

(*) Por vontade expressa do autor, este artigo segue as regras anteriores ao novo acordo ortográfico.