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DESASSOSSEGO 11 | JUN/2014 | ISSN 2175-3180 DOI: http://dx.doi.org/10.11606/issn.2175-3180.v6i11p48-59 48 “A DAMA PÉ-DE-CABRA”: ENTRE O HISTÓRICO E O FANTÁSTICO Carla Carvalho Alves 1 RESUMO: Helena Carvalhão Buescu, ao analisar o conto fantástico de Alexandre Herculano, “A Dama Pé-de-Cabra”, orienta-se, entre outros parâmetros, pela relação entre predação e domesticidade, extraída da temática do caçador-caçado implicada na narrativa. Aproveitando as reflexões suscitadas pelo artigo de Buescu, principalmente no que se refere à questão da dimensão alegórica do conto e da temática da domesticidade aí ressaltada, buscaremos refletir também, de modo tangencial a essa proposta, sobre um aspecto relevante contido na estruturação narrativa: a alternância entre a periculosidade advinda do contexto interno, ou doméstico, e do externo, ou estrangeiro. PALAVRAS-CHAVE: Alexandre Herculano; fantástico; histórico “A DAMA PÉ-DE-CABRA”: BETWEEN THE HISTORICAL AND THE FANTASTIC ABSTRACT: Helena Carvalhão Buescu, when analyzing the fantastic tale by Alexandre Herculano "A Dama Pé-de-Cabra", is guided, among other parameters, by the relationship between predation and domesticity, extracted from the hunter-hunted theme implicated in the narrative. Considering the reflections raised by Buescu article, especially as regards the question of the allegorical dimension of the story and the theme of domesticity emphasized there, we seek also reflect tangentially to this proposal on a relevant aspect contained in the narrative structure: an alternation between the danger arising on the internal (or domestic) and the external (or foreign) contexts. KEYWORDS: Alexandre Herculano; fantastic; historical 1 Pesquisadora de pós-doutorado na Universidade de São Paulo (USP/FAPESP)

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  • DESASSOSSEGO 11 | JUN/2014 | ISSN 2175-3180 DOI: http://dx.doi.org/10.11606/issn.2175-3180.v6i11p48-59

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    A DAMA P-DE-CABRA: ENTRE O HISTRICO E O FANTSTICO

    Carla Carvalho Alves1

    RESUMO: Helena Carvalho Buescu, ao analisar o conto fantstico de Alexandre Herculano, A Dama P-de-Cabra, orienta-se, entre outros parmetros, pela relao entre predao e domesticidade, extrada da temtica do caador-caado implicada na narrativa. Aproveitando as reflexes suscitadas pelo artigo de Buescu, principalmente no que se refere questo da dimenso alegrica do conto e da temtica da domesticidade a ressaltada, buscaremos refletir tambm, de modo tangencial a essa proposta, sobre um aspecto relevante contido na estruturao narrativa: a alternncia entre a periculosidade advinda do contexto interno, ou domstico, e do externo, ou estrangeiro. PALAVRAS-CHAVE: Alexandre Herculano; fantstico; histrico

    A DAMA P-DE-CABRA: BETWEEN THE HISTORICAL AND THE FANTASTIC ABSTRACT: Helena Carvalho Buescu, when analyzing the fantastic tale by Alexandre Herculano "A Dama P-de-Cabra", is guided, among other parameters, by the relationship between predation and domesticity, extracted from the hunter-hunted theme implicated in the narrative. Considering the reflections raised by Buescu article, especially as regards the question of the allegorical dimension of the story and the theme of domesticity emphasized there, we seek also reflect tangentially to this proposal on a relevant aspect contained in the narrative structure: an alternation between the danger arising on the internal (or domestic) and the external (or foreign) contexts. KEYWORDS: Alexandre Herculano; fantastic; historical

    1 Pesquisadora de ps-doutorado na Universidade de So Paulo (USP/FAPESP)

  • DESASSOSSEGO 11 | JUN/2014 | ISSN 2175-3180

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    Em 1851, Alexandre Herculano reuniu, em volume, diversos textos literrios

    publicados entre os anos de 1838 e 1846, nas revistas O Panorama e A Ilustrao, intitulando

    a coletnea de Lendas e narrativas. A maioria dos textos foi escrita anteriormente a Eurico, o

    presbtero, O monge de Cister e O bobo. Oflia Paiva Monteiro, como outros autores, diz que

    esses contos e novelas histricos representaram para o escritor uma preparao para os

    seus romances (MONTEIRO, s.d., p.27). O prprio Herculano, na Advertncia da

    primeira edio de suas Lendas, diz que o mrito de tais textos e a razo da publicao em

    volume , justamente, por se encontrar a o marco inicial do romance histrico portugus:

    Corrigindo-os e publicando-os de novo, para se ajuntarem a composies mais extensas e menos imperfeitas que j viram a luz pblica em volumes separados, ele [o prprio Herculano] quis apenas preservar do esquecimento, a que por via de regra so condenados, mais cedo ou mais tarde, os escritos inseridos nas colunas das publicaes peridicas, as primeiras tentativas do romance histrico que se fizeram na lngua portuguesa. (HERCULANO, s.d., p.VI)

    E, de fato, exceo de O proco da aldeia e do texto autobiogrfico De Jersey

    a Grandville, encontramos nessas narrativas a prevalncia da ambientao medieval, assim

    como, recortes de importantes fatos e lendas da histria nacional.

    Entre 1838 e 1839, Herculano publicou, na imprensa peridica, O castelo de

    Faria, O bispo negro, e A abbada, posteriormente, de 1841 a 1842, o autor lanou,

    tambm a, Arras por foro de Espanha. A Dama P-de-Cabra saiu no Panorama em

    1843, e, finalmente, foi publicado O alcaide de Santarm, entre 1845 e 1846

    (CARDOSO, 2003, p.168). Mas, esses contos representam uma seleo feita inicialmente,

    ao que tudo indica, pelo prprio Herculano, ficando outras narrativas, do mesmo perodo e

    de anos anteriores, fora dessa primeira publicao em volume. A maioria dos contos,

    inclusive, constava nas pginas de O Panorama sem assinatura dado o anonimato inicial da

    colaborao [de Herculano] dada revista. (CARDOSO, 2003, p.168).

    Margarida Cardoso levanta duas hipteses para a excluso de algumas narrativas em

    tal seleo realizada por Herculano: ou porque o Escritor os julgasse esteticamente fracos,

    ou porque quisesse deixar cair no esquecimento textos reinvestidos em obras de maior

    vulto ( o caso de Destruio de uria, que parece representar um avatar incipiente de

    Eurico) (CARDOSO, 2003, p.168).

    Os contos apresentados nas Lendas e narrativas so considerados por diversos

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    crticos como um trabalho, sobretudo, de pesquisa e recolha de lendas tradicionais,

    apresentando uma menor elaborao ficcional do que os romances ou novelas. Margarida

    Cardoso, por exemplo, faz o seguinte comentrio sobre a questo:

    [...]so textos breves, em que a articulao da tradio ou da verdade com a fico difcil escolha da novela histrica se faz com menos ousadia do que nos romances; limitam-se, com efeito, a dramatizar, com maior ou menor trabalho ficcional, relatos de nosso passado colhidos em obras antigas [...] (CARDOSO, 2003, p.169)

    Oflia Paiva Monteiro tece uma reflexo bastante semelhante sobre o assunto, ela

    diz que nesses textos curtos, Herculano quase se limita, por vezes, dramatizao de

    relatos do nosso passado colhidos em obras antigas (MONTEIRO, s.d., p.27). Percepo

    que se alinha ainda com a de Maria de Ftima Marinho ao dizer: [...] os textos de Lendas e

    Narrativas [...], na sua maioria, so quase a transcrio de captulos das crnicas medievais.

    (MARINHO, 1999, p.54). O problema de qualquer tentativa de apreciao geral da obra

    reside no fato de ela constituir-se de forma heterognea, a partir de contos que abarcam

    diversidades temticas e estticas, e cuja extenso varia da forma breve at textos bastante

    longos, comparveis, neste quesito, a O bobo ou Eurico.

    Na edio das Obras completas do escritor, publicada em 1970, pela Bertrand, tentou-

    se, inclusive, constituir outra disposio que organizasse de modo mais coerente e

    homogneo as Lendas e narrativas. Assim, o texto de temtica contempornea, O proco de

    aldeia, passou a fazer parte de um volume autnomo acrescido de outra novela, O

    galego, que havia sido publicada apenas nas pginas de A Ilustrao. Suprimiu-se tambm

    do volume referente s Lendas e narrativas o texto de cunho autobiogrfico, De Jersey a

    Grandville, que foi anexado ao volume Cenas de um ano da minha vida.

    Desse modo, na nova edio das Lendas e narrativas, permaneceram as fices

    histricas e a novela fantstica, acrescidas de textos ficcionais, de ndole idntica,

    recuperados dos que o escritor, sem a assinatura ou s com as iniciais de seu nome,

    publicara nO Panorama (MONTEIRO, s.d., p.26). Os textos acrescidos so: Destruio

    de uria, O emprazado, O mestre assassinado, Mestre Gil, Trs meses em

    Calecut, O cronista e Os sete dormentes. Lembramos que, da configurao original

    da obra, permaneceram ainda as seguintes narrativas: O alcaide de Santarm, Arras por

    foro dEspanha, A abbada, O bispo negro, A morte do Lidador e aquela que

    talvez possa ser considerada a nica narrativa propriamente fantstica na produo de

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    Alexandre Herculano: A Dama P-de-Cabra.

    Conforme salientam Ana Mrcia Alves Siqueira e Felipe Hlio da Silva Dezidrio,

    perceptvel, nesta narrativa, tanto a inspirao gtica, possivelmente extrada das baladas

    anteriormente traduzidas pelo autor, como a influncia da ambientao lgubre presente

    nos textos de Walter Scott, autor assumidamente paradigmtico para Herculano:

    O escritor, neste conto, usa os procedimentos da escola gtica presentes nas baladas que traduziu e nos recursos descritivos de atmos-feras ttricas utilizados por Scott: o castelo e a floresta isolados, as vozes misteriosas, a noite profunda e, principalmente, as lutas e as angstias in-teriores de seus personagens. (SIQUEIRA; DEZIDRIO, 2012, p.70)

    Maria Leonor Calixto tambm relembra a importncia de Alexandre Herculano

    como introdutor de importantes baladas macabras, em Portugal, destacando algumas de

    suas mais notveis verses:

    [...] trabalhava Herculano nas verses das mais clebres baladas macabras, apresentando, em 1834, Leonor, em 1835 e 36 Affonso e Isolina, em verses diferentes, e ainda O caador feroz e A noiva do sepulcro. Foi igualmente por seu intermdio que Portugal conheceu a balada negra romntica, com O Cavaleiro de Toggenburg [...] (CALIXTO, 1955, p.53)

    De modo geral, considerando-se o contexto literrio portugus do perodo

    romntico, a pesquisadora destaca Herculano e Castilho como excees no que diz respeito

    prtica do romance gtico: Foram gticos o teatro e a balada, mas no o romance,

    com excepo de Castilho, por vezes Herculano, e pouco mais. (CALIXTO, 1955, p. 168)

    Ainda com relao ao elemento gtico presente nas narrativas de Alexandre

    Herculano, Calixto, como outros crticos, aponta, particularmente, a prevalncia dos

    componentes sobrenaturais no conto A Dama P-de-Cabra: O sobrenatural tentou

    Herculano, que nos deu A Dama P-de-Cabra; em O Monge de Cister, difcil delimitar os

    processos gticos. So vrias as dvidas de Eurico literatura de terror [...](CALIXTO,

    1955, p.117).

    De fato, tanto as narrativas de Eurico quanto de O Monge de Cister parecem

    circunscrever a caracterizao gtica a dois mbitos especficos: a ambientao,

    evidentemente medieval e sombria; e, de modo mais sutil, a passionalidade trgica,

    excessiva e soturna de seus personagens. Ao abordar os protagonistas das duas narrativas

    histricas, Maria Leonor Calixto vai enfatizar, precisamente, o modo como o terrfico vai se

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    manifestar atravs da expresso psicolgica desses personagens: nas lutas interiores dos

    seus heris, o negro psicolgico, as tempestades de paixes exacerbadas, que arrastam

    Vasco ao crime e Eurico ao desespero. (CALIXTO, 1955, p.117)

    Consideramos, assim, que, embora seja possvel identificar elementos fantsticos ou

    gticos (ou negros2, de acordo com a terminologia usada por Calixto) em alguns textos

    ficcionais de Alexandre Herculano, na maioria dos casos, tais fatores parecem limitados a

    contextos especficos, no contemplando o desenrolar geral da narrativa. Em A Dama P-

    de-Cabra, no entanto, o fantstico assume uma expresso mais abrangente, caracterizando

    no apenas a figura central do conto, e situaes especficas relacionadas a ela, mas

    perpassando tambm o contedo narrativo geral.

    Os elementos fantsticos que compem o conto originam-se da configurao

    sobrenatural da personagem, que d ttulo narrativa, mas, como veremos a seguir, tal

    expresso de periculosidade ser confrontada, ao longo do texto, com outro tipo de ameaa

    advinda da presena de um elemento invasor, os mouros. Tal disposio viabiliza

    instigantes reflexes acerca dos dois tipos de ameaa abordados: o sobrenatural e o blico

    de fundo histrico. Na medida em que alguns personagens vivenciam tanto os riscos

    referentes presena fantstica e demonaca da Dama, como, ainda, aqueles relativos s

    lutas contra os mouros, possvel estabelecer uma analogia que relativize a importncia de

    uma ameaa em relao outra. Em alguns momentos, conforme veremos adiante, ocorre,

    inclusive, a neutralizao de um dos perigos pela atuao do outro. Tentaremos sintetizar, a

    seguir, os principais fatos que compem a trama narrativa para depois retomarmos, de

    forma mais consistente, as reflexes aqui iniciadas.

    Embora se trate de uma trama relativamente simples a organizao narrativa o

    que de fato constitui a complexidade do texto, perfazendo-se assim imbricadas relaes

    entre os diversos contextos a abarcados. Conforme salienta Oflia Paiva Monteiro, a lenda

    foi desenvolvida em vrios nveis narrativos, que implicam uma curiosa estruturao

    temporal [...]. (MONTEIRO, s.d., p.27)

    2 Em lugar de gtico, Maria Leonor Calixto utiliza o termo negro, assim explicando sua escolha: o termo

    negro que escolhi para designar toda esta literatura desenrolada num ambiente de terror, o que me pareceu mais adequado. Gtico, talvez mais clssico, embora legtimo quando empregado para a fase inicial da escola, no tem hoje significao, quando aplicado ao campo da literatura atual que se pode considerar descendente do horror gtico. O trao comum o seu ambiente sombrio, e da a classificao: no seu sentido mais lato, negro uma designao de ambiente, e nada mais. (CALIXTO, 1955, p.11)

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    A principal referncia ao tempo histrico remete poca da ocupao muulmana

    na Espanha, apresentando-se, mais especificamente, o XI sculo. interessante observar

    que, ao contrrio de outras obras de Alexandre Herculano, a representao dos mouros,

    nesse conto, manifesta-se, aparentemente, como elemento de fundo, constitutivo de parte

    do contexto histrico a contemplado.

    A trama, bastante conhecida, inicia-se com a unio entre D. Diogo Lopes, senhor

    de Biscaia, e certa dama que ele encontrara em uma penha, localizada na fronteira de suas

    terras. Depois que tiveram dois filhos, D. Inigo Guerra e D. Sol, confirma-se parte de um

    mistrio que vinha sendo prenunciado: a natureza assombrosa e diablica da mulher de D.

    Diogo. Certo dia, ao ver o seu cachorro ser morto pela cadela, que pertencia a sua esposa, o

    senhor de Biscaia quebra o juramento feito a ela, de nunca se benzer, e decorre ento a

    seguinte cena:

    Ui! gritou sua mulher, como se a houveram queimado. O baro olhou para ela: viu-a com os olhos brilhantes, as faces negras, a boca torcida e os cabelos eriados: E ia-se alevantando, alevantando ao ar, com a pobre D. Sol sobraada debaixo do brao esquerdo: o direito estendia-o por cima da mesa para seu filho, D. Inigo de Biscaia. E aquele brao crescia, alongando-se para o mesquinho, que, de medo, no ousava bulir nem falar. E a mo da dama era preta e luzidia, como o pelo da podenga, e as unhas tinham-se-lhe estendido bem meio palmo e recurvado em garras. (HERCULANO, 1987, p.119)

    Passa-se, assim, para a segunda trova, na qual se fica sabendo que D. Diogo Lopes

    est agora cativo dos mouros e que seu filho, j adulto, quer salv-lo. Aconselhando-se

    sobre o assunto com o pajem, Brearte, D. Inigo acaba contando-lhe outra histria,

    referente origem de sua me, a Dama P-de-Cabra. Narra-se, assim, a lenda do Conde

    Argimiro, o Negro, e Astrigildo Alvo. Argimiro, que ficara dois anos em Toledo, lutando

    nas guerras do Rei de Wamba, ao voltar pra casa descobre o adultrio da condessa, sua

    esposa, assassinando-a, por este motivo, junto com o seu amante Astrigildo.

    O episdio descrito com elementos fantsticos e representa, na verdade, a

    punio quebra de uma promessa feita por Argimiro ao seu pai, de nunca matar fera em

    cama e com cria (HERCULANO, 1987, p.124). A mulher morta em estado de adultrio

    seria, assim, a prpria Dama que, centenas de anos depois, D. Diogo viria a encontrar nas

    penhas. Seu amante, Astrigildo, transformado em um nagro, ser tambm retratado

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    posteriormente, na histria referente D. Diogo e seu filho: Desde esse tempo, as duas

    miserveis almas tm aparecido a muita gente nos desvios de Biscaia: ela vestida de branco

    e vermelho, assentada nas penhas, cantando lindas toadas; ele retouando a perto, na figura

    de um nagro. (HERCULANO, 1987, p.130)

    A referncia ao Rei de Wamba, naquela passagem, revela um importante elemento

    temporal do texto, pois, considerado o ltimo rei godo, esse personagem histrico teria

    vivido no VII sculo. Assim, entre o plano narrativo concernente histria de D. Diogo

    Lopes e aquele, relativo origem da Dama P-de-Cabra, h uma diferena temporal de

    aproximadamente quatro sculos.

    Prosseguindo a trama narrativa, D. Inigo Guerra, aconselhado por Brearte, decide

    procurar sua me para pedir que o auxilie a salvar D. Diogo do cativeiro mouro em Toledo.

    Assim, em cenas permeadas por fatos sobrenaturais, a Dama e um certo nagro, que seria a

    representao de Astrigildo, ajudam a resgatar o pai de D. Inigo. Ao fim da narrativa, fala-

    se da proximidade estabelecida entre D. Inigo Guerra e sua me, a Dama P-de-Cabra,

    insinuando-se, tambm, um pacto com belzebu e a existncia de vrios outros mistrios

    ocorridos no castelo depois de sua morte, que no foram retratados na narrativa.

    D. Diogo pouco tempo viveu: todos os dias ouvia a missa; todas as semanas se confessava. D. Inigo, porm, nunca mais entrou na igreja, nunca mais rezou, e no fazia seno ir serra caar. Quando tinha de partir para as guerras de Leo, viam-no subir montanha armado de todas as peas e voltar de l montado num agigantado nagro. E o seu nome retumbou em toda a Espanha; porque no houve batalha em que entrasse que se perdesse, e nunca em nenhum encontro foi ferido nem derribado. Diziam boca pequena em Nustrio que o ilustre baro tinha pacto com Belzebu. Olhem que era grande milagre! Meio precito era ele por sua me; no tinha que vender seno a outra metade da alma. (HERCULANO, 1987, P.145)

    Helena Carvalho Buescu, considerando a possibilidade de entendimento de A

    Dama P-de-Cabra como narrativa alegrica, funcionando ao modo de uma parbola

    construda sobre um gesto metafrico (BUESCU, 2005, p.88), elabora uma anlise

    bastante interessante do conto. A autora orienta-se, entre outros parmetros, pela relao

    entre predao e domesticidade, extrada da temtica do caador caado, implicada na

    narrativa.

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    Lembramos que tanto D. Diogo Lopes quanto o Conde Argimiro so caadores de

    animais e tambm de pessoas. Em ocasies diferentes, o primeiro parte para as disputas em

    Toledo, para caar mouros, e o segundo vai para a Guerra do Rei de Wamba. Mas, ambos

    teriam sido tambm, de algum modo, caados pela mesma mulher, que os levaria runa e

    perdio e, ainda, por suas prprias caas, conforme veremos adiante.

    H que se considerar o espelhamento entre a motivao primeira das desgraas, que

    se abateram sobre Argimiro e sobre D. Diogo, e das respectivas consequncias desses

    eventos. Argimiro descumpre a promessa feita ao seu pai, de nunca matar fera em cama e

    com cria (HERCULANO, 1987, p.124), e tal atitude tem como resultado o retorno

    fantstico do nagro, levando a Condessa ao adultrio e seu marido desonra e perdio.

    D. Diogo Lopes, de certa forma, quebra um vnculo religioso (de benzer-se), substituindo-

    o pela promessa de caar mouros, mas, ao invs disso, torna-se prisioneiro dos

    muulmanos, em Toledo. Em ambos os casos, os caadores foram arruinados, exatamente,

    por exercerem de forma prepotente o ato da caa, colocando-a acima de um compromisso

    moral. A consequncia final de seus excessos e arrogncia que eles acabam sendo vtimas

    de suas prprias caas.

    Assim, aproveitando as reflexes suscitadas pelo artigo de Buescu, principalmente

    no que se refere questo da dimenso alegrica do conto e da temtica da domesticidade

    a ressaltada, encontramos tambm, tangencialmente a essa proposta, um aspecto relevante

    contido na estruturao narrativa: a alternncia entre a periculosidade advinda do contexto

    interno, ou domstico, e do externo, ou estrangeiro.

    A figura feminina, representada pela Dama P-de-Cabra, na histria de D. Diogo

    Lopes, e pela Condessa de Biscaia, do sculo VII, no episdio referente ao Conde

    Argimiro, estaria, a princpio, circunscrita ao espao interno ou domstico. Lembramos

    que, embora exeram o papel de predadoras, exatamente no mbito caseiro que elas

    realizam as aes, que vo fomentar o processo de runa dos seus pares: o adultrio da

    Condessa de Biscaia e a transformao assombrosa da Dama em uma figura demonaca.

    Por outro lado, D. Diogo Lopes, D. Inigo Guerra e Argimiro, que seriam as figuras

    masculinas de maior destaque na narrativa, alm do mbito domstico, transitam, tambm,

    pelo espao externo, participando, os dois primeiros, como foi visto, das guerras contra os

    mouros, e o Conde Argimiro, quatro sculos antes, lutando contra rebelies contrrias ao

    rei de Wamba, tambm na regio de Toledo.

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    A presena moura no conto parece, mesmo, pontuar passagens importantes da

    lenda referente a D. Diogo Lopes e ao seu filho, D. Inigo Guerra. Conforme mencionamos

    anteriormente, D. Diogo, ao prometer Dama que nunca mais faria o sinal da cruz,

    apresenta, como compensao falta religiosa, a possibilidade de matar um grande nmero

    de mouros, como disposto a seguir: De que servem benzeduras? Matarei mais duzentos

    mouros e darei uma herdade a Santiago. Ela por ela. Um presente ao apstolo e duzentas

    cabeas de ces de Mafamede valem bem um grosso pecado. (HERCULANO, 1987,

    p.117). Depois, quando ocorre o episdio assombroso da transformao de sua mulher, D.

    Diogo, tentando se refazer da desgraa sofrida, decide ir a Toledo caar mouros:

    D. Diogo Lopes viveu muito tempo triste e aborrido, porque j no se atrevia a montear. Lembrou-se, porm, um dia de espairecer sua tristura, e, em vez de ir caa dos cerdos, ursos e zebras, sair caa de mouros. (HERCULANO, 1987, p.120).

    E, finalmente, ele acaba sendo aprisionado pelos mouros, e por esse motivo que

    D. Inigo Guerra, com intento de salv-lo, procura sua me. interessante observar, nesse

    ponto, que, o perigo interno, representado pela Dama, acaba sendo utilizado para revogar o

    perigo externo, que seria o cativeiro mouro, no qual se encontra D. Diogo Lopes. Atravs

    dos encantamentos urdidos pela Dama, D. Inigo consegue resgatar seu pai do poderio dos

    mouros.

    J a histria de Argimiro , de certa forma, determinada pela luta contra os

    estrangeiros, pois pela necessidade de ir para Toledo lutar pelo Rei de Wamba, que ele se

    ausenta de sua casa e, ao retornar, descobre a traio da esposa.

    Percebe-se, assim, que a ao narrativa movida pela alternncia entre um perigo

    externo, representado pelos estrangeiros, sejam eles mouros ou apenas invasores vindos de

    outras regies da Europa, e pela ameaa interna, representada nos dois casos pela mesma

    figura feminina. A ameaa externa relaciona-se aos fatos histricos ocorridos na pennsula

    Ibrica, mas no componente interno e domstico que residem as questes mais

    assombrosas, elaboradas na narrativa com elementos fantsticos. importante ressaltar

    que, a personagem da Dama P-de-Cabra, elaborada por Alexandre Herculano, cuja lenda

    teria sido extrada do livro de Linhagens do Conde D. Pedro (MONTEIRO, s.d., p.27),

    no tem realmente nenhuma herana familiar moura, conforme enfatizado no seguinte

    excerto da narrativa:

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    De nunca dar trguas mourisma, nem perdoar aos ces de Mafamede? Sou bom cristo. Guai de ti e de mim, se s dessa raa danada! No isso, dom cavaleiro interrompeu a donzela a rir. (HERCULANO, 1987, p.117)

    Lembramos ainda que, se na lenda original do livro de linhagens no h nenhuma

    referncia a esse assunto, em algumas lendas populares, entretanto, as mouras so

    apresentadas com os ps de cabras, como o caso da lenda da Torre de Dona Chama,

    que tem como figura principal uma princesa moura com pernas de cabra (PARAFITA,

    2006, p.85). Assim, identificamos na citao acima uma opo, no arbitrria, por manter

    essa personagem to misteriosa, com traos certamente demonacos, como um fruto

    apenas da alta linhagem da famlia ibrica. a prpria Dama, quem afirma a D. Diogo

    Lopes: Sou de to alta linhagem como tu; porque venho do semel de reis, como tu, senhor

    de Biscaia. (HERCULANO, 1987, p.116). Apreendemos aqui uma dimenso ainda mais

    ampla para o contexto de domesticidade ao qual associamos a figura da Dama. Se, como

    afirmamos anteriormente, no espao domstico, em um jantar familiar, que ela revela sua

    natureza assombrosa, tal natureza no est, de forma alguma, vinculada a qualquer herana

    mourisca ou estrangeira. Desse modo, a domesticidade concernente Dama, diz respeito

    tambm evidenciao, apresentada na narrativa, de sua origem nacional ou ibrica.

    Os mouros, reificados como uma caa, pouco mais importante que cerdos e ursos,

    funcionam, em um primeiro momento, como forma de remisso para a culpa de D. Diogo

    pelo casamento com a Dama. Depois, em um movimento circular, como vimos,

    exatamente a interveno da Dama P-de-Cabra que define o salvamento de D. Diogo

    Lopes do cativeiro mouro ao qual ele foi submetido, em Toledo. Assim, os perigos

    externos, representados pelos mouros ou outros estrangeiros, parecem, de fato, convergir

    para uma fora maior, localizada em um mbito interior, que seria a um tempo a origem

    mesmo desses perigos, mas tambm a possibilidade de sua soluo.

    Delineia-se, dessa forma, no conto de Alexandre Herculano, uma oscilao entre a

    longnqua periculosidade externa, representada pelos muulmanos, e o perigo interno mais

    premente e constante associado assombrosa figura feminina da Dama. Como vimos, a

    questo principal endgena e diz respeito aos problemas domsticos ou nacionais, que

    poderiam associar-se a um lado obscuro da alta linhagem ibrica, qual pertence a Dama.

    Os mouros e outros estrangeiros so a referidos apenas como elementos adjacentes a essa

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    trama, funcionando como instrumento de remisso para os erros ou pecados cometidos no

    mbito interno, sendo a sua derrota e morte, por exemplo, objeto de barganha religiosa.

    importante lembrar aquelas palavras, j mencionadas, de D. Diogo Lopes, sobre o escambo

    das benzeduras pelas cabeas de mouros, para evidenciar a instrumentalizao qual

    referimos.

    Observamos finalmente que, enquanto a Guerra do Rei de Wamba e a ocupao

    moura em Toledo foram sinteticamente traadas com caractersticas histricas realistas, a

    periculosidade interna, associada, como vimos, ao contexto ibrico, foi elaborada com

    elementos assombrosos e sobrenaturais. Tal configurao fantstica poderia significar, em

    uma vertente interpretativa alegrica, a crtica denunciadora dos problemas endgenos em

    detrimento dos conflitos externos. Afinal, a recorrncia de um mesmo problema

    domstico, traado com elementos fantsticos e assombrosos, o que constitui, de fato, os

    principais conflitos presentes narrativa.

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    Artigo recebido em 15 de abril de 2014

    Artigo aceito em 09 de junho de 2014