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ERIC REEVES: “NÃO HÁ, A CURTO PRAZO, A PERSPECTIVA DE PAZ NO DARFUR” ANO XVII Nº 175 TERÇA-FEIRA | 18 de DEZEMBRO, 2007 Director: Helder Almeida ENTÃO E O DARFUR? OPINIAO ERIC REEVES DANIELA NASCIMENTO 20 PÁGINAS EDIÇÃO ESPECIAL JOSE MANUEL PUREZA LUIS VICENTE ENTREVISTA NOE MONTEIRO PAULO F. SAPOLEK MIGUEL PORTAS OPHEERA MCOOM FOTOGRAFIA EVELYN HOCK ILUSTRACAO LUIS AFONSO

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Versão integral da edição n.º 175 do jornal universitário de Coimbra “A Cabra”. Edição especial sobre o Darfur. Portugal, 18.12.2007. Para consultar o jornal na web, visite http://www.acabra.net/ e-mail: [email protected] Visite outros sítios de Dinis Manuel Alves em www.mediatico.com.pt , www.slideshare.net/dmpa, www.youtube.com/mediapolisxxi, www.youtube.com/fotographarte, www.youtube.com/tiremmedestefilme, www.youtube.com/discover747 , http://www.youtube.com/camarafixa, , http://videos.sapo.pt/lapisazul/playview/2 e em www.mogulus.com/otalcanal Ainda: http://www.mediatico.com.pt/diasdecoimbra/ , http://www.mediatico.com.pt/redor/ , http://www.mediatico.com.pt/fe/ , http://www.mediatico.com.pt/fitas/ , http://www.mediatico.com.pt/redor2/, http://www.mediatico.com.pt/foto/yr2.htm , http://www.mediatico.com.pt/manchete/index.htm , http://www.mediatico.com.pt/foto/index.htm , http://www.mediatico.com.pt/luanda/ , http://www.biblioteca2.fcpages.com/nimas/intro.html

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Page 1: A CABRA – 175 – 18.12.2007

ERIC REEVES:“NÃO HÁ, ACURTOPRAZO, APERSPECTIVADE PAZ NODARFUR”

ANO XVII

Nº 175 TERÇA-FEIRA | 18 de DEZEMBRO, 2007 Director: Helder Almeida

ENTÃO E ODARFUR?

OOPPIINNIIAAOO ERIC REEVES DANIELA NASCIMENTO

20 PÁGINAS

EDIÇÃO ESPECIAL

JOSE MANUEL PUREZA

LUIS VICENTE EENNTTRREEVVIISSTTAA NOE MONTEIRO PAULO F. SAPOLEKMIGUEL PORTAS OPHEERA MCOOM FFOOTTOOGGRRAAFFIIAA EVELYN HOCK

IILLUUSSTTRRAACCAAOO LUIS AFONSO

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A diversidade étnica, a heterogeneidade política e adisputa territorial estão na

origem de um conflito que searrasta há meio século

João MirandaJoão Picanço

Cláudia Teixeira

“O Sudão é o maior país africano emexpansão”, defende o director–adjuntodo Instituto de Estudos Estratégicos eInternacionais (IEEI), Fernando JorgeCardoso, “e um dos mais importantespaíses do continente, sob todos os pon-tos de vista”, acrescenta.

Dividido em 25 estados, o país africa-no faz fronteira com o Chade, RepúblicaDemocrática do Congo, Quénia, Líbia,Etiópia, Egipto, Eritreia e a RepúblicaCentro Africana. É ainda banhado peloMar Vermelho.

O investigador do Centro de EstudosAfricanos do ISCTE (Instituto Superiorde Ciências do Trabalho e da Empresa),Manuel João Ramos, define o Sudão co-mo “um país com grandes disparidadeseconómicas e etnográficas”. A situaçãoleva à existência de uma “agriculturabastante intensa na zona do vale do Ni-lo, enquanto na região do Darfur, ge-ram–se grandes dificuldades” explicaainda o investigador.

Estas divisões estão também presen-tes na política interna. Fernando JorgeCardoso sublinha que “o Sudão é gover-nado por islamistas mais ou menos ra-dicais, estando as próprias elites árabesno governo de certa forma divididas”.

“Podemos dizer que existem três ‘Su-dões’ completamente diferentes, se nãoquatro”, defende Manuel João Ramos.“Há a zona de Cartum; o chamado Suldo Sudão; a zona do Darfur; e depois háuma região a leste, com uma distinçãocultural muito grande em relação às ou-tras”, acrescenta.

No âmbito da política internacional, oSudão é “vizinho do Egipto, com o qualtem boas relações e da Etiópia com aqual, pelo contrário, desenvolveu másrelações, tendo ainda um relacionamen-to de fornecimento de equipamento mi-litar à Eritreia” lembra o presidente doIEEI.

“A região do corno de África controlaas exportações petrolíficas, e vive–seuma situação politicamente complicadae que mais complicada se torna seolharmos para o caso da Somália” expli-ca Fernando Jorge Cardoso.

No que diz respeito à religião, o Sudãoé um país maioritariamente muçulma-no, principalmente na zona norte. Umpouco por todo o Sudão existe o culto dedeuses indígenas. A religião cristã pos-sui pouca expressão, e está essencial-

mente concentrada no sul e na capitaldo país.

Uma história de conflitosO docente de História Contemporâ-

nea da Faculdade de Letras da Universi-dade de Coimbra, Rui Cascão, esclareceque “o Sudão tem sido, desde há longosséculos, uma área de confluência étnicae racial, o que aumenta a grande com-plexidade do país”.

“O Sudão tem vivido numa situaçãode grande instabilidade, de forma quasepermanente, desde que alcançou a inde-pendência em 1965” lembra o professor.

A docente de Relações Internacionaisda Faculdade de Economia da Universi-dade de Coimbra, Daniela Nascimento,recorda que “o Sudão viveu, durantemais de duas décadas, uma guerra par-ticularmente violenta, opondo o gover-no ditatorial árabe–muçulmano do nor-te e os rebeldes cristãos e animistas dosul”.

Rui Cascão refere também que “houve

duas guerras civis (1955-1972 e 1983-2005), altamente mortíferas, que pro-vocaram cerca de um milhão de mortose cinco milhões de refugiados”.

“O conflito deveu–se às reivindica-ções das minorias cristã e animista dosul” que, segundo Cascão, “procuravamum maior grau de autonomia e contra-balançar a total hegemonia política,económica e social do norte árabe e mu-çulmano.”

Nos princípios de 1970, tiveram lugaralguns conflitos espontâneos entre tri-bos que se dedicavam à agricultura etribos que viviam da pastorícia. Estasdisputas eram resultantes da grande fo-me e seca que se instalou na região.

Em 1980, no sul do Sudão, gerou–seum conflito entre uma guerrilha deno-minada Sudan People’s Liberation Ar-my (SPLA) e o governo sudanês.

“Essa guerra no Sudão acabou por terum fim negociado, com a assinatura deum acordo de paz que prevê a participa-ção do SPLA no governo”, explica Fer-

nando Jorge Cardoso. “O acordo incluitambém a realização de um referendono sul do Sudão, em 2011, com duasperguntas sobre a integração no Sudãocom autonomia alargada e a indepen-dência e formação de um novo país”,acrescenta o especialista.

Contudo, o director–adjunto doInstituto de Estudos EstratégicosInternacionais, refere que “este conflito,que terminou há cerca de três anos, po-derá reacender–se à medida que nos va-mos aproximando da data do referen-do”.

As projecções realizadas por analistase agências presentes no Sudão indicamque existe uma predominância por par-te da população pela independência daregião sul do país.

“O conflito actual no Darfur deve as-sim ser lido e interpretado num quadromais amplo de instabilidade e violênciaque tem afectado todo o Sudão desde aindependência”, conclui Daniela Nasci-mento.

2 A CABRA OO CCOONNFFLLIITTOO 3ª feira, 18 de Dezembrode 2007

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Há quatro anos que se arrastaum conflito militar no Darfur.A comunidade internacional

descarta a possibilidadede intervenção na região

Patrícia CostaFilipa Faria

Cátia Monteiro

Do ponto de vista internacional, o Darfuré considerado a principal tragédia humani-tária ligada à utilização da violência sobre apopulação civil. Com o acordo internacio-nal, o regime do Sudão acabou por ser obri-gado a aceitar a presença de tropas inter-nacionais dada a extensão e importânciaque o conflito ganhou. Uma parte das for-ças estrangeiras tem já um papel de tam-pão relativamente aos crimes que eram co-metidos contra os Fur, a população maiori-tária do Darfur.

O envolvimento directo e empenhado depaíses ou de organizações regionais, como

a União Europeia (UE) ou a União Africa-na (UA), tem estado desde o início da criseno Darfur, limitado à partida pelos diferen-tes interesses envolvidos.

No caso dos Estados Unidos da América,“há claramente uma estratégia de prudên-cia no tipo de pressão imposta ao governode Cartum, com vista a não colocar em cau-sa a sua colaboração na guerra contra o ter-rorismo”, comenta Daniela Nascimento.

A China tem interesses directos no aces-so às abundantes e estratégicas reservas depetróleo, e o governo de Pequim não contamelindrar as boas relações económicascom o seu homólogo sudanês e, muito me-nos, arriscar uma retracção no investimen-to que tem vindo a fazer naquele país afri-cano. “A China tem uma influência fortesob o governo sudanês, porque para alémde ser o principal parceiro na compra dearmamento, escoa 60 por cento da produ-ção sudanesa”, conta Manuel João Ramos.

A UE, por seu lado, tem assumido umaposição bastante ambígua e sem qualquertipo de repercussão concreta e eficaz no

que respeita à resolução da crise. “As váriasdeclarações condenando as atrocidades co-metidas pelas milícias na região não têmsido seguidas de qualquer acção firme, pe-lo que a sua credibilidade tem sido bastan-te questionada”, afirma Daniela Nascimen-to. Ainda assim, a tentativa de não deixar oDarfur de fora da recente CimeiraUE–África resulta numa política externaeuropeia de maior pressão sobre o governosudanês.

Finalmente, e em relação à UA, torna–semuito complicado exigir uma atitude maisfirme a “uma organização cuja grandemaioria dos estados–membros tem um re-gisto bastante duvidoso no que diz respeitoao cumprimento e respeito pelos direitoshumanos”, continua. Apesar do seu grandepotencial, a realidade política da UA faz de-la uma organização extremamente frágil nacapacidade de persecução dos seus objecti-vos de manutenção da paz e estabilidaderegionais. Ainda assim, tem havido algumesforço no sentido de consolidar a presen-ça da UA no processo de resolução da crise

no Darfur, nomeadamente com a presençade 7 mil efectivos militares na região.

“Ausência de consenso aliada àfalta de vontade”

A região do Darfur é assolada, desde2003, por um conflito entre comunidadesmuçulmanas, que se tornou o mais violen-to dos últimos anos. O problema deve ser“interpretado num quadro mais amplo deinstabilidade, que tem afectado todo o país,desde 1956, ano da independência, e sobre-tudo desde a subida ao poder do actual pre-sidente, Omar al–Bashir”, conta DanielaNascimento.

Apesar dos desenvolvimentos e dosavanços conseguidos, “as perspectivas depaz no Sudão e o sucesso do acordo entreambos acabaram por ficar também depen-dentes dos acontecimentos no Darfur”, ex-plica a especialista.

Em 2003, os grupos rebeldes da regiãodenunciaram, à semelhança do que aconte-cia no sul, décadas de negligência e margi-nalização social por parte do governo, umavez que o Darfur foi progressivamente des-prezado, política e economicamente, pelossucessivos governos e regimes sudaneses,em particular pelo governo de al–Bashir.No entanto, o cerne do problema advémdum conjunto de razões mais antigas, co-mo os períodos de secas intensas e devasta-doras, de 1984-85, que fustigaram grandeparte do tecido agrícola e pastorício da re-gião. “Com o desaparecimento da água, osagricultores começaram a vedar o acessoaos pastores e o gado começou a ter dificul-dades em se alimentar. Foi uma revolta, oque criou um barril de pólvora”, esclareceMiguel Ramos.

Por outro lado, e segundo Rui Cascão,“não se trata de uma luta entre religiões,mas sim entre grupos étnicos diferentes”.Também Fernando Jorge Cardoso subscre-ve que “o problema é a cor da pele, porquea maior parte dos membros da tribo Fursão brancos e há a tentativa de ocupaçãodos seus territórios, por parte de sudanesesde origem árabe”.

Desde Julho de 2004 que se procurapressionar o governo de al–Bashir para ofim dos ataques das milícias. Tenta–se re-duzir o número de forças militares daUnião Africana com um acordo de cessar-–fogo em Abril de 2005, que é violado como rearmamento das milícias e o reinício dosataques contra a população, mantendo–seaté hoje. Só em Maio de 2006 é assinadoum acordo de paz que prevê pela primeiravez a aceitação, por parte do governo deCartum, de um contingente de capacetes-–azuis das Nações Unidas, com vista a re-forçar as forças da União Africana presen-tes no território. Mais uma vez, “a ausênciade consenso, aliada à falta de vontade dogoverno sudanês em cumprir os cessar–fo-gos, controlar as milícias e garantir a segu-rança das populações, tem–se traduzido naagudização da crise humana”, remata a in-vestigadora.

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Nome Oficial – República do Sudão

Capital– Cartum

Divisão Administrativa – 25 estados

Sufrágio – Universal para maiores de 17 anos

Chefe de Estado – Omar Hassan Ahmad al–Bashir

População – 39,400, 000

Esperança Média de Vida – 49 anos

Literacia – 61 por cento

Taxa de Natalidade – 34,86 por milagem

Taxa de Mortalidade – 14,39 por milagem

Principais organismos dos quais faz parte – ONU, UNCTAD,UNESCO, Interpol, FAO, OMI, UA

Religião – Muculmanos sunitas 70 por cento, Deuses Indígenas 25 porcento, Católicos 5 por cento

Área – 2.376000 km2

Dia da Independência – 1 de Janeiro de 1956

Responsável Administrativo – Autoridade Regional de Transição noDarfur

Divisão Administrativa – Três estados

População – 6 a 7 milhões

Área – 493,180 km2

Mortos – 450 mil (2006)

Deslocados – Dois milhões

Organizações que actuam no terreno – ONU, UA, ONGs

Dados da região Darfur

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18 de Dezembro de 2007, 3ª feira OO CCOONNFFLLIITTOO A CABRA 3

Dados do Sudão

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O conflito no Darfur é uma crise armadaem desenvolvimento na região de Darfur,no oeste do Sudão, que opõe essencialmen-te os Janjawid – milicianos compostos porelementos entre os Baggara, tribos nóma-das africanas de língua árabe e muçulma-nos – e os povos não–árabes desta área. Oconflito teve início em Fevereiro de 2003 edesde são várias as organizações interna-cionais que lutam pela paz na região e dãoassistência aos civis vitimados pela guerra.

Não é possível definir quantas mortes oconflito já provocou, mas estima–se que onúmero ande entre 50 mil e 450 mil víti-mas. A grande parte das ONGs aponta para400 mil mortes. O número de pessoas queforam já obrigadas, ao longo destes cincoanos, a abandonar as suas casas localiza–seentre os dois e os três milhões. Aldeias in-teiras foram destruídas. O número de des-locados no interior do país anda à volta dos1.9 milhões. No entanto, apesar dos eleva-dos números, até à altura as Nações Unidasainda não consideraram a crise no Darfurcomo um genocídio.

O conflito, descrito pelas Organizaçãodas Nações Unidas (ONU) como “uma daspiores crises humanitárias”, afecta cerca de3.6 milhões de pessoas. A UNICEF (Fundodas Nações Unidas Para a Infância) tem si-do um dos grupos mais activos na luta pelapaz e protecção dos civis darfurianos. A or-ganização avança que, neste momento, hácerca de 1.8 milhões de crianças afectadaspela crise. Quase dois milhões de jovens

convivem diariamente com a mais duraviolência: todo o tipo de doenças, má nutri-ção, insegurança e instabilidade familiar. AUNICEF acredita que esta situação vai dei-xar marcas profundas na geração vindourae prender, no futuro, as crianças que hojesão vítimas no Darfur, a um novo ciclo depobreza.

Tal como muitas outras organizações deluta pela paz, a UNICEF vê–se a braçoscom a falta de apoios financeiros, humanose técnicos para combater a crise no local.Os fundos disponíveis estão a esgotar–se.Qualquer uma das agências de ajuda huma-nitária possui hoje menos recursos do quehá três anos. O fundo da ONU para a infân-cia tem actualmente 160 pessoas no terre-no, que apoiam áreas como a água e o sa-neamento, a saúde e a nutrição ou a segu-rança. A educação também tem sido visadapelas acções, através da construção de es-colas provisórias, da formação de professo-res e do fornecimento de material escolar.

O Trabalho da Caritas Internacio-nal

A Caritas Internacional também tem tidoum importante papel no auxílio às vítimasdo conflito. No sítio oficial da associaçãopode ler–se que a Caritas gere e canaliza osmeios de cerca de 60 organizações católi-cas, protestantes e ortodoxas, tendo sidoresponsável por um dos maiores progra-mas de ajuda humanitária na zona Sul eOeste do Darfur.

Actualmente, a Confederação Internacio-nal da Caritas tomou a decisão de retirar doSudão a equipa de operações que tinha noterreno desde o início do conflito. De acor-do com um comunicado da Caritas Interna-cional os elementos da equipa vão ser tem-porariamente deslocados para Cartum, ca-pital do Sudão, e para o Chade, “devido àinsegurança na região”. Neste momento, aajuda da Caritas resume–se aos campos dedeslocados fora do Darfur.

A associação já cedeu auxílio essencial amilhares de pessoas e delineou um planoestratégico de acção até 2010. Actualmente,a organização actua em mais de 40 locais,de campos de deslocados externos a comu-nidades e populações afectadas. Desde oinício da crise humanitária a associação foiresponsável pela construção de 22 clínicase dois hospitais rurais, pela distribuição dealimentos e restauro de escolas, assim co-mo pelo desenvolvimento de projectos deacompanhamento e apoio psicológico dasvítimas.

Os médicos no terrenoOs Médicos Sem Fronteiras, presentes no

terreno desde o início, garantem que a si-tuação no Darfur é hoje muito mais compli-cada do que em 2003. Os grupos armadosdo início dividiram–se em grupos indepen-dentes com interesses distintos. As coliga-ções podem alterar–se a qualquer instantee os campos de refugiados temem ser ata-cados de surpresa, ameaça cada vez mais

real.Segundo descrições de médicos que já es-

tiveram no Darfur “as pessoas vivem no fioda navalha: à espera de uma chamada parapartir para um campo de refugiados”. Aajuda alimentar é restrita e os serviços mé-dicos são insuficientes. O apoio humanitá-rio diminui diariamente. Os sinais de má-–nutrição são cada vez mais visíveis.

Os Médicos Sem Fronteiras garantemque de 2007 a 2006 o número de criançasmal–nutridas que deu entrada no hospitalZalingei e no centro de saúde Niertiti, noOeste do Darfur, triplicou. Centenas decrianças estão a ser tratadas semanalmen-te.

Em certas áreas do Darfur o apoio huma-nitário tem decrescido durante os últimosdois anos porque é muito perigoso estar noterreno a ajudar. Em alguns casos os volun-tários são mesmo obrigados a evacuar asáreas por razões de segurança, afirmamainda os Médicos Sem Fronteiras.

Segundo os médicos, “trabalhar no Dar-fur é um desafio permanente. As organiza-ções de apoio devem ser flexíveis e estarprontas para dar resposta às dificuldades,providenciando apoio numa situação tãoinstável e em constante e iminente muta-ção”. No entanto, de acordo com os profis-sionais, as frustrações e restrições que asONGs enfrentam não podem ser compara-das com o que os habitantes do Darfur de-frontam diariamente. “A situação no terre-no só parece estar a piorar”, denunciam.

4 A CABRA OONNGG�SS NNOO DDAARRFFUURR 3ª feira, 18 de Dezembro de 2007

�������������������������������� ������A UNICEF, a Caritas Internacional e os Médicos Sem Fronteiras são três das organizações que mais têm apoiado

a crise do Darfur. As crianças, a alimentação e os cuidados básicos de saneamento são as suas maiores preocupações. Por Martha Mendes e Alexandre Oliveira

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Secção de Jornalismo,Associação Académica de Coimbra,Rua Padre António Vieira,3000 - CoimbraTel. 239821554 Fax. 239821554e-mail: [email protected]

���������������������������� ������Porque o lamento

não chega...“Como podem não intervir vendo tais atrocida-

des?”. A pergunta era lançada a um jornalista pelapersonagem principal de “Hotel Ruanda”, que rela-ta as barbaridades cometidas no país que dá o nomeao filme.

A verdade é que ninguém interveio. Todos sabiamo que se passava e ficaram quietos, sossegados, a as-sistir impávidos e serenos à carnificina. O resultadosoube–se pouco tempo depois: milhares de criançase mulheres violadas e brutalmente assassinadas,homens chacinados. A comunidade internacionalenvergonhou–se e comprometeu–se a não deixarque horror igual tornasse a acontecer.

Eis que surgem os problemas no Darfur, que searrastam há anos sem que ninguém tenha a cora-gem de fazer algo. Mais uma vez interesses econó-micos e políticos sobrepõem–se à vida humana. AONU, incrivelmente, nada faz e, mais uma vez, as-siste aos acontecimentos, como se nada pudesse fa-zer.

A CABRA decidiu lançar esta edição totalmentededicada ao Darfur. Porquê? Porque o que se passanaquela região africana é demasiado grave, dema-siado chocante para que não nos tenhamos quepreocupar. É uma situação que se arrasta há dema-siado tempo, com demasiadas complacências dequem tem poder para actuar mas não o faz. Quan-tas crianças e mulheres mais vão ter de ser violadase assassinadas para que se faça algo? Quanto san-gue mais vai ter de correr para que a comunidadeinternacional diga ‘basta!’?

Todos nós, estudantes, professores, cidadãos te-mos também um papel a cumprir. Não podemosdeixar que o que se passou no Ruanda se volte apassar no Darfur. Temos a obrigação moral de pres-sionar os nossos governantes para que ajam, paraque as luxuosas cimeiras na capital deixem de serum desfilar de palavras vãs sem efeitos práticos. Oque se passa no Darfur não pode continuar, é ur-gente que as vítimas de perseguição sejam protegi-das custe o que custar.

No final de contas, ninguém pode dizer que nãosabia o que se passava, ninguém pode dizer que nãotem nada que ver com isso. É um problema de to-dos, uma vez que é a humanidade que está a serposta em causa naquela região. Os nossos lamentosjá não bastam…

Helder Almeida

Cartas ao director podem ser enviadas [email protected]

Editorial

Jornal Universitário de Coimbra - A CABRA Depósito Legal nº183245/02 Registo ICS nº116759Director Helder Almeida Chefe de Redacção Rui Antunes Editores: Cátia Monteiro (Fotografia), Helder Almeida (Ensino Superior), Raquel Carvalho(Nacional), Rui Antunes (Internacional), João Miranda (Ciência), Patrícia Costa (Desporto), Martha Mendes (Cultura), Ângela Monteiro (Media), Carla Santos(Viagens) Secretária de Redacção Adelaide Baptista Paginação Rui Antunes, Sofia Piçarra Redacção Alexandre Oliveira, Ana Bela Ferreira, Ana Filipa Oliveira,Ana Margarida Gomes, Ana Raquel Melo, Andreia Silva, Cláudia Teixeira, Eunice Oliveira, Filipa Faria, Joana Gante, João Pimenta, Liliana Figueira, MartaCampos, Pedro Crisóstomo, Rafael Pereira, Raquel Mesquita, Sandra Camelo, Sofia Piçarra, Soraia Manuel Ramos, Wnurinham Silva Fotografia Carine Pimenta,Carolina Sá, Catarina Silva, Cláudia Teixeira, Daniel Palos, Fábio Teixeira, Fausto Moreira, Filipa Faria, José Marques, Liliana Lago, Mónica Pópulo, NunoBraga, Tiago Lino Ilustração José Miguel Pereira, Rafael Antunes Colaboradores permanentes Andreia Ferreira, André Tejo, Cláudia Morais, Emanuel Botelho,Fernando Oliveira, François Fernandes, João Alexandre, Laura Cazaban, Rafael Fernandes, Raphaël Jerónimo, Rui Craveirinha, Vitor André MesquitaColaboraram nesta edição João Picanço Publicidade Sofia Piçarra - 239821554; 913009117 Impressão CIC - CORAZE, Oliveira de Azeméis, Telefone.256661460, Fax: 256673861, e-mail: [email protected] Tiragem 4000 exemplares Produção Secção de Jornalismo da Associação Académica de CoimbraPropriedade Associação Académica de Coimbra Agradecimentos Reitoria da Universidade de Coimbra, Serviços de Acção Social da Universidade de Coimbra

18 de Dezembro de 2007, 3ª feira OOPPIINNIIAAOO A CABRA 5

Quanto mais me informo sobre oDarfur mais vergonha tenho de ser hu-mano. O conflito arrasta–se há mais dequatro anos e, naquela região, têm–secometido as maiores atrocidades contraos direitos humanos.

A comunicação social acordou tardepara a situação e a comunidade interna-cional tem tido uma postura “assassi-na”. “Tão culpado é o que vai à horta co-mo o que fica à porta”, já dizia a sabedo-ria popular. Os agentes internacionaissabem o que se passa no Darfur, masagem à deriva das conveniências eusam os eufemismos “crise” ou “situa-ção problemática” em prol de “genocí-dio” ou “limpeza étnica”.

Meia dúzia de jogos diplomáticos ereuniões “fantoche” tentam encobriruma das maiores vergonhas da Huma-nidade. Mas afinal, o que fazer contraos ditadores assassinos? Como sempre,Portugal tem boas ideias. Organizamosuma cimeira, trazemos alguns déspotasafricanos e damos abraços a honrososdemocratas como Omar–Al–Bashir,

Kadhafi ou Mugabe. Porreiro pá! Decerteza absoluta que depois da conversaprivada com Sócrates, Al–Bashir man-dou logo parar o genocídio… Portugalprometeu que o Darfur ia ser uma dasprioridades, mas tudo se ficou por duasreuniões.

Os media, tradicionalmente “grandespolícias da humanidade” continuam anegligenciar a cobertura do genocídio.A mudança de clube de um jogador defutebol tem muito mais destaque doque o Darfur. Façamos um teste mediá-tico: ao colocar a palavra “Darfur” noGoogle aparecem 17 milhões de entra-das, mas se escrevermos “Paris Hilton”,o número duplica. Isto diz tudo.

Todos somos culpados, mas uns sãomais que outros. A Rússia vende armasao Sudão, a China está interessada nopetróleo e os Estados Unidos não sequerem chatear. Depois temos figurasimpressionantes no feudo repressorafricano. Ditadores modernos, comoKadhafi, que fingiu organizar uma reu-nião sobre a situação do Darfur, ao

mesmo tempo que defende a ideia deque “os locais têm que se entender en-tre si”. E o genocídio continua…

As Janjaweed - milícias árabe apoia-das pelo governo sudanês – vão conti-nuar a matar os “fur”. Porquê? “Porquesão pretos”. É uma limpeza étnica, umextermínio ao jeito hitleriano da qualnos tornamos cúmplices se não agir-mos. Os senhores engravatados conti-nuam de braços cruzados. Complacen-tes, dezenas de políticos portugueses,que à frente das câmaras se dizem ami-gos de África e contra a situação doDarfur, recusaram–se a colaborar nestaedição. É o cúmulo da hipocrisia. Estaedição especial é a materialização deum sentimento de revolta de estudan-tes que não aguentam mais. Já chega.Chega de torturas, violações e assassí-nios no Darfur. Somos todos huma-nos, porra! Não sonhamos que pode-mos mudar o mundo, mas contemconnosco para que a questão não sejaesquecida.

Rui Antunes

BartoonPor Luís Afonso

Page 6: A CABRA – 175 – 18.12.2007

No Darfur é proibido dançar. Po-rém é através da música que, emPortugal, vários artistas tentam de-nunciar a crise humanitária na re-

gião sudanesa. Anjos, José Cid,Quinta do Bill, UHF, Pa-

dre Borga, Zé DiogoQuintela, Lúcia Mo-

niz, Paula Teixeira eMafalda Arnauthsão algumas dasp e r s o n a l i d a d e sque dão voz aoprojecto “Artistaspor Darfur”. Mi-guel Cardoso, um

dos organizadores,salienta que procura-

ram “juntar artistasmais consagrados eartistas da nova ge-

ração (ver caixa).Foi o critério da

transversalida-de aliado à

qualidade”.“Frágil” é

a condiçãodas crian-ças dar-furianas et a m b é mo títulodo álbum

l a n ç a d opela plata-

forma parasensibilizar a

sociedade e an-gariar fundos para o

apoio às populações do Darfur.Os artistas responderam de ime-

diato ao apelo lançado pela platafor-ma ‘mãe’, “Por Darfur”, para grava-rem a versão portuguesa da música“Frágil”, um original de Sting. JoséCid foi um dos cantores que não he-sitou. “É um privilégio poder contri-buir com o meu nome e voz numprojecto como este”, revela. Tam-bém a artista Paula Teixeira aderiuprontamente à campanha, até por-que dedica “grande parte da carrei-ra a projectos de solidariedade e,para esta causa, todo o apoio seriapouco”.

Já o padre Borga associou–se àgravação do tema por este ser umprojecto co-organizado por institui-ções religiosas. António Ribeiro, vo-calista dos UHF, ainda antes do iní-cio da campanha, já havia escritouma canção pelo Darfur que “umdia destes há–de ser gravada”.

O desconhecimento sobre a situa-ção é generalizado. Grande partedos artistas que participam no desa-fio reconhecem que não estavam in-formados sobre o conflito. RicardoAzevedo, Paula Teixeira e José Cid,admitem que tinham uma per-cepção superficial da crise. No en-tanto, o projecto proporcionou ummaior conhecimento da situação.“Penso que esta iniciativa levoumuita gente a procurar informar–sesobre a tragédia que acontece todosos dias no Sudão”, refere a locutorada RFM Joana Cruz. Um dos gran-des objectivos, apontado por todos,

é “ajudar a sensibilizar a opinião pú-blica sobre esta questão”, tal comoesclarece Carlos Moisés, vocalistados Quinta do Bill. Para que não sevolte a dizer que o Darfur é um no-me de um supermercado ou de umprograma de televisão, como jáaconteceu em ‘vox pop’s’ de telejor-nais. David Ripado vai mais longe eexpressa o desejo de que a campa-nha sirva para “pressionar os políti-cos e os seus governos a intervir”.

De onde vem, para onde vaie para que serve

A plataforma “Por Darfur”, queganha agora mediatização com oprojecto “Artistas por Darfur”, nas-ceu em Junho de 2007. A falta deinformação que então reinava nosórgãos de comunicação social cho-cou aqueles que trabalham como

voluntários nesta região, explica ocoordenador–executivo da platafor-ma, Filipe Pedrosa.

As organizações promotoras são aAmnistia Internacional, a FundaçãoGonçalo de Silveira, os MissionáriosCombonianos, a Comissão Justiça ePaz, a Rede Fé e Justiça Europa-–África e a Fundação Ajuda a Igrejaque Sofre. Estas organizações con-tam ainda com a ajuda da FundaçãoPró–Dignitate e de entidades comoo portal Sapo, a Associação MissãoPress, o canal Odisseia, a Rádio Re-nascença, as revistas Além–Mar eAudácia.

Para dar vida às campanhas desensibilização a plataforma teve quereunir um suporte financeiro. Se-gundo Filipe Pedrosa, “a plataformatem sido financiada através da par-tilha de recursos das organizações

66 A CABRA AARRTTIISSTTAASS PPOORR DDAARRFFUURR 3ª feira, 18 de Dezembro de 2007

AO SOM DOGENOCÍDIO“E amanhã a chuva levará o sangue que a luta deixou derramar”. Este primeiro ver-so do tema “Frágil” exprime o desejo dos mais de trinta artistas que se associaramà plataforma “Por Darfur”. A vertente musical da campanha contra o genocídio temvindo a contribuir para uma maior mediatização do conflito.Por Rui Antunes, Adelaide Batista, Ana Bela Ferreira e Ângela Monteiro

André Indiana Anjos Banda Jota Carlos Moisés(Quinta do Bill)

Carlos Vidal (Avô Cantigas)

Claudine Pinheiro Dany SilvaDavid Ripado Fernando Tordo França Joana Cruz

José CidKyrios Lúcia Moniz Mafalda Arnauth Mafalda Sacchetti Maria de VasconcelosOmaira Padre Borga Paula Teixeira Ricardo Azevedo Soulbizness Souls of FireTerceira Margem

Teresa SiqueiraTropicanosUHF Zé Diogo Quintela(Gato Fedorento)

Wellbi Madouglas Héber Marques RedzoneVozes de ÁfricaSérgio Godinho

Artistas por uma causa

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envolvidas e de donativos de particu-lares”. O lançamento do CD “Artistaspor Darfur” conduziu a “um acrésci-mo de despesas”, garante o responsá-vel. Neste momento “o saldo é muitopositivo em termos de informação,mas financeiramente é bastante nega-tivo” confessa Filipe Pedrosa. O factodas receitas reverterem na totalidadepara os projectos no terreno contribuipara o saldo negativo.

Quando surge uma campanha desolidariedade surgem dúvidas quantoao destino das receitas. António Ri-beiro faz questão de frisar que “a pla-taforma é feita por pessoas com umgrande coração e capacidade de tra-balho”, por isso, não tem dúvi-das: “o dinheiro vai lá parar”.Os artistas não recebem qual-quer percentagem dos lucros,que são “na totalidade em proldesta causa”, sublinha CarlosMoisés.

A plataforma apadrinha trêsprojectos. A construção deuma escola na localidade deNyala, no sul do Darfur, amanutenção do funcio-namento de outrasescolas na regiãoe ajuda ao pro-grama de emer-gência Caritas,que presta apoioem áreas como: sa-neamento, saúde, ali-mentação ou agricultura. Os artistassão unânimes quanto à importânciada ajuda, contudo o vocalista dos

UHF reconhece que não vão acabarcom a situação. “Vamos minimizar asnecessidades mais básicas que são aalimentação e a água”, considera.

Enquanto a situação não mu-dar, o lema é “continuar”

Segundo o padre Borga, “a campa-nha tem um sentido quase profético,pois não tem a ingenuidade de pensarque algo muda porque se canta, masalgo fica melhor porque se canta”. Opároco defende que há um dever dedar voz a estes dramas porque “o fac-to de ficarem esquecidos ainda os fazmais desumanos”.

A esperança que algo mude faz comque a plataforma “Por Darfur” conti-

nue a desenvolver campanhasque vão para além do

CD. A participaçãona iniciativa

mundial “Glo-bal Day forDarfur” e ameia–ma-

r a t o n ade Lis-

boa que“correu” pe-

lo Darfur foram algu-mas das actividades promo-

vidas nos últimos meses.Os artistas esperam que “a questão

humanitária esteja cada vez mais naagenda política, e consequentementeo caminho para a ajuda global e a re-solução do conflito”, como explicaJoana Cruz.

O som dos gritos das crianças tortu-

radas e das mulheres violadas no Dar-fur faz–se ouvir em Portugal pela vozdos artistas portugueses que se asso-ciaram à causa. Quem participou nacampanha não vai esquecer o que leunem as imagens que viu quando colo-cou “Darfur” na pesquisa do Google.Por isso, prometem que vão continuara denunciar a situação, mesmo quesejam rudes nas palavras, como o pa-dre Borga quando diz: “este drama é oemblema da estupidez humana”.

“Artistas Por Darfur” emCoimbra

Os “Artistas Por Darfur” andam apromover o projecto pelo País. Depoisde uma passagem pelo Porto foi a vezde Coimbra receber a comitiva, no dia12 de Dezembro.

Na FNAC, os responsáveis começa-ram por mostrar um documentário,produzido pelo canal Odisseia, quealerta para os abusos na região suda-nesa. Após o visionamento da peça,uma responsável da Amnistia Inter-nacional e um membro dos Missioná-rios Combonianos realizaram uma pe-quena palestra.

“Dois milhões e meio de refugia-dos”, “mais de 400 mil mortos”, “mi-lhares de mulheres violadas” e “tortu-ras que envergonham o conceito deHumanidade” foram alguns dos fac-tos escolhidos pelos oradores de for-ma a sensibilizar a audiência. Wellbi eMadouglas foram os únicos músicospresentes que, para além de falaremsobre a crise, interpretaram dois te-mas integrados no álbum “Frágil”.

18 de Dezembro de 2007, 3ª feira AARRTTIISSTTAASS PPOORR DDAARRFFUURR A CABRA 77

EVELYN HOCK

PALAVRAS PELO

DARFUR...“Todos juntos somos poucospara lutar por esta causa e vamos fazê–lo com as armasque nos são possíveis:a consciência, oamor e a soli-dariedade.”

“A minha ideia é esta: quecomprem este disco no Na-tal, uma oferta bonita e jásabem: o dinheirovai directamentepara uma causamuito nobre.”

“Urge termos umaatitude dinâmica elevantar a voz paraque toda a gentesaiba e estejasensibilizada.”

“Todos juntos so-mos fortes. Que-rer é poder. Va-mos lutar peloDarfur.”

José Cid

“O que não podemos resol-ver é bom que nãoesqueçamos.”

Padre Borga

AntónioRibeiro (UHF)

Carlos Moisés(Quinta do Bill)

Paula Teixeira

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Na sua opinião quais são as razõesque levaram à origem do conflito?

O conflito no Darfur é um dos que assolao corno de África. Não se consegue explicarnenhum destes conflitos sem ter em contadois factores: primeiro, os recursos natu-rais existentes naquela região, em particu-lar o petróleo; segundo, o modo como fo-ram traçadas as fronteiras, no período dasindependências, ou seja, colocando váriasetnias em diversos países. As fronteiras fo-ram definidas em função dos antigos pro-tectorados coloniais, sem terem sido exigi-das. Como é evidente, levantaram–se, comenorme facilidade, interesses antagónicose avivaram–se antigos conflitos de nature-za étnica. No caso do Darfur, estamos pe-rante um dos dois problemas que existemno Sudão. O problema mais urgente, é o daexistência de dois milhões de refugiados,que carecem de uma protecção eficaz e têmproblemas de ajuda humanitária muitograndes. Isto devido ao quadro de conflitosque existe entre o governo do Sudão e asguerrilhas daquela área.

Acha que há falta de vontade políti-ca para resolver a situação?

Foi feito um acordo com o governo doSudão e grande parte das guerrilhas, en-volvendo a comunidade internacional. Es-se acordo previa a probabilidade da coloca-ção de uma força da Unidade Africana, deinterposição, que garantisse a solução daquestão humanitária. Esse acordo está fei-to, falta cumpri–lo mas há responsabilida-des repartidas. Responsabilidade do gover-no do Sudão, que não aceita que nessa for-ça esteja determinado tipo de tropas e de-terminado tipo de meios, em particular he-licópteros. Por outro lado, as guerrilhasnão aceitam um acordo de paz enquantonão estiver lá uma força de interposição.Estas guerrilhas são apoiadas pelo governodo Chade, que é protegido pela França eque tem também em mãos uma situação deconflito com as suas etnias do norte dopaís. Inversamente, o governo do Sudão éprotegido pela China que não quer proble-mas com os responsáveis sudaneses, parater acesso ao petróleo da região. O essen-cial é conseguir que o acordo que foi feitopossa entrar em execução.

Considera que a questão do Darfurdevia ter sido mais debatida na ci-meira União Europeia – África?

Creio que a questão do Darfur foi segura-mente falada durante a cimeira. No entan-to, não foi resolvida como muitas outrasquestões não foram. Digamos que a cimei-ra não tinha como objectivo resolver osproblemas reais.

Estará a União Europeia (UE) dis-posta a intervir humana e militar-mente?

Há uma disponibilidade por parte da UEpara participar nessa força multinacional.Essa disponibilidade tem que estar condi-cionada a um acordo das partes beligeran-tes com a UE. Entrar por um país a dentroe impor a sua paz, sem que as partes beli-gerantes concordem com isso, acaba por, acurto prazo, transformar–se num proble-ma em cima de outro problema. O que in-teressa saber é se uma intervenção de na-tureza militar contribui para o objectivo depacificação ou não. Neste caso, pode con-tribuir se for, não uma força de interven-ção, mas uma força de interposição e demanutenção de um acordo de paz, que éfeito entre as partes beligerantes.

Crê que ainda não se fez nada por-que não há contrapartidas económi-cas?

Não creio que seja esse o problema. Éevidente que não se trata de uma regiãocom fortíssimas riquezas, se elas lá estives-sem é certo e seguro que o assunto já teriasido tratado de outro modo. Na minha opi-nião, é necessário que as partes beligeran-tes aceitem as condições para que uma for-ça de interposição possa aparecer e colo-car–se no terreno, sem que se transformenuma força de ocupação

Porque é que a UE ainda não estáno local?

A União Europeia está no local de dife-rentes maneiras. Não está é militarmente,pela simples razão de que não há ainda umacordo com o governo sudanês para deter-minar o tipo de força que a UE quer insta-lar. Há aqui um problema que não pode serdescartado: os governos são soberanos sobos seus territórios; se entra lá uma forçaque não é negociada é, claramente, umaforça de ocupação.

Qual a responsabilidade europeiaface aos conflitos em África?

A responsabilidade histórica dos paíseseuropeus nos conflitos em África é muitogrande. Eu sou claramente favorável a umaparticipação europeia numa força de inter-posição que salvaguarde a ajuda humanitá-ria à população do Darfur. Da mesma ma-neira, sou a favor da função que está acor-dada. O que é preciso é que a UE e a UniãoAfricana exerçam pressão suficiente sobreo governo do Sudão, e sobre as guerrilhasque se recusam a assinar uma trégua. Po-rém, sou contra uma outra posição da UEem colocar uma missão no Chade, paraproteger o governo.

O que acha que deveria ser feito?No caso do Sudão, aumentar a pressão

sobre o governo, para que o acordo feitocom as forças seja solidificado. Ou seja,acabar com o jogo do gato e do rato. Aomesmo tempo, fazer a pressão suficientesobre as guerrilhas, que não têm participa-do nas negociações de paz, para que acei-tem esse acordo.

8 A CABRA EENNTTRREEVVIISSTTAA 3ª feira, 18 de Dezembro de 2007

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Miguel Portas - Eurodeputado

Uma semana depois da Cimeira União Europeia – África, A CABRA falou com o Eurodeputado Miguel Portasque é a favor da participação da Europa numa força de interposição para o Darfur.

No entanto, o político não está optimista relativamente ao futuro da região.Por Liliana Figueira e Alexandre Oliveira

D.R.

A responsabilidade histórica dos países europeus nos conflitos em África é muito grande

”“

Page 9: A CABRA – 175 – 18.12.2007

Há alguns meses atrás escrevi nestemesmo jornal que a tragédia humanano Darfur já não era novidade; lamen-tava–se, mas já não fazia manchete.Hoje, a situação dramática na regiãopouco ou nada mudou. Após a euforiamotivada pela aceitação de uma forçamilitar híbrida (composta por efectivosinternacionais e da União Africana)responsável pela manutenção da paz naregião, as promessas de paz e empenhodas partes beligerantes parecem cadavez mais vazias. De facto, e depois dequase cinco anos marcados pela degra-dação significativa da situação humani-tária no Darfur e pelos inúmeros im-passes num processo de paz envolven-do os mais altos representantes da co-munidade internacional, com váriosacordos de paz assinados para poste-riormente serem violados, a crise pare-ce estar longe de ser resolvida.

A violência no Darfur agudizou–sequando, em 2003, grupos rebeldes daregião procuraram retirar dividendosdas negociações com o Sul relativamen-te a questões de partilha de poder e ri-quezas, com a divulgação de relatóriosde organizações humanitárias, alertan-do para a ocorrência de massacres edeslocações forçadas de populações doDarfur, perpetradas pelas milíciasarmadas Janjaweed - alegada-mente com a conivência eapoio do regime de Cartum- e de confrontos com osdois principais grupos re-beldes da região – o SudanLiberation Mo-vement/Army(SLM/A) e oJustice andEquality Move-ment (JEM)que se insurgi-ram contra ogoverno.

A relação en-tre os dois con-flitos decorreem parte de umescalar da vio-lência em todo oterritório suda-nês, desde 1998,e de uma crescen-te e indiscutívelpolarização destesconflitos em tornodas ideias de raça eetnia, levada ao extre-mo com o golpe militarque, em 1989, colocou no poder um go-verno muçulmano e ditatorial lideradopelo ainda Presidente Omar–al-–Bashir.

Apesar de ser um país marcadamentemultiétnico e multi–religioso, o Sudãoé também um dos Estados mais racistasdo continente africano, com relaçõessociais baseadas em leis profundamen-te discriminatórias. Esta complexidadegeográfica, étnica e religiosa contri-buiu, desde sempre, para uma igualcomplexidade política alimentada porum governo interessado apenas emmanter o statu quo.

A repressão, a marginalização socio-económica e política de largos sectoresda população sudanesa e uma visãoprofundamente fundamentalista do Is-lão aplicada cegamente em todo o terri-tório e em total desrespeito pela diver-sidade étnica e religiosa, foram fomen-tando a instabilidade e o descontenta-mento profundo de muitos grupos queforam encontrando na rebelião armadauma, se não mesmo a única, forma decontestação e resistência ao governo deCartum.

O conflito actual no Darfur deve as-

sim ser lidoe interpretado num

quadro mais amplo deinstabilidade e violên-

cia que tem afectadotodo o Sudão des-

de a indepen-dência em

1 9 5 6 ,

mas sobretudo desde a subida ao poderdo actual Presidente.

A ausência de consenso relativamen-

te ao que fazer para pôr fim à crise, alia-da à falta de vontade do governo suda-nês em cumprir os cessar–fogos, con-trolar as milícias e garantir a segurançadas populações, tem–se, assim, tradu-zido num escalar diário da violência ena agudização de uma crise humanaque já provocou mais de 200.000 mor-tos e acima de 2 milhões de refugiadose deslocados internos.

A resolução do conflito no Darfur de-pende, pois, essencialmente da capaci-dade de chegar a um acordo, no seio doConselho de Segurança, relativamenteao tipo de pressão a exercer sobre o go-verno sudanês. É um facto que, tam-bém no longo e complexo processo depaz no Darfur, ambas as partes têm porvezes sucumbido a pressões externas.Se à primeira vista esta pressão inter-nacional poderia apresentar–se comoum elemento fundamental para pôr fimà tragédia humanitária na região, a ver-dade é que tal não tem acontecido. Enão tem acontecido porque uma pres-são efectiva implica que a paz e o suces-so dos acordos dependam significativa-mente de uma atenção continuada e doempenho real da comunidade interna-cional em fazer com que estes sejamcumpridos. E como tem ficado de-monstrado ao longo dos últimos anos,essa atenção e envolvimento nem sem-pre estão garantidos.

Os interesses dos vários actores en-volvidos são muitos e, acima de tudo,incompatíveis. EUA, China, União Eu-ropeia e União Africana partem depressupostos diferentes relativamenteàs prioridades e meios na resposta à

crise, pondo em causa

q u a l q u e rpossibilidade de consenso quanto à im-portância de imposição de real pressãosobre o governo sudanês, exemplar na

sua capacidade de ‘ludibriar’ os váriosinterlocutores internacionais, fazendoexigências relativamente à composiçãoda nova força híbrida de manutençãode paz na região, assim como aos timin-gs para entrada da mesma no territórioe às quais a comunidade internacionaltem, pela via da inércia ou da anuência,correspondido. O governo sudanês temassim conseguido, aos poucos, cumprirdois dos seus grandes objectivos: forçaro desarmamento dos grupos rebeldes eganhar tempo, sem ser responsabiliza-do directamente pelos atrasos e pelosfracassos nos acordos de paz.

Com a possibilidade de uma inter-venção humanitária efectiva arredadapela ameaça de veto no Conselho de Se-gurança pela China, empenhada emnão abalar a boa relação com o governosudanês (que lhe tem permitido acessoquase ilimitado às reservas petrolíferase uma participação de cerca de 50% nasprincipais companhias petrolíferas su-danesas), as perspectivas de resoluçãoda crise no curto–prazo são pouco ani-madoras, tornando claro que são acimade tudo constrangimentos de naturezapolítica, económica e geoestratégicaque têm estado na base da contínua pa-ralisia do Conselho de Segurança relati-vamente à situação no Darfur.

Neste cenário, o futuro do Darfurcontinua incerto. Parece claro, contu-do, que a resolução duradoura do con-flito terá obrigatoriamente de passarpela capacidade de reconhecer e res-ponder às causas mais profundas daviolência e, ao mesmo tempo, garantirque as partes estão verdadeiramentedispostas e empenhadas em pôr fim àviolência. Enquanto o governo de Car-tum, um dos principais responsáveisdeste conflito, continuar a gozar deuma quase total impunidade, por viada incapacidade de se chegar a acor-do no seio das Nações Unidas quan-to à tomada de uma acção mais fir-me, a situação tenderá a deterio-rar–se. E se nada for feito, entãocorremos o risco sério de não maisnos interessarmos pelo que sepassa no Darfur. E foi exactamen-te esse desinteresse e esqueci-mento que a comunidade inter-nacional prometeu, depois doRuanda, ‘nunca mais’ repetir. Es-

tejamos, então, à altura da pro-messa.

* Assistente do Núcleo de Rela-ções Internacionais da Faculdadede Economia da Universidade deCoimbra. (Desenvolve, neste momen-

to, a tese de Doutoramento sobre o con-

flito no Darfur)

������������������������ �������� �� �������������� ������������������Daniela Nascimento*

18 de Dezembro de 2007, 3ª feira OOPPIINNIIAAOO A CABRA 9

ILUSTRAÇÃO POR JOSÉ MIGUEL PEREIRA

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10 A CABRA FFOOTTOORREEPPOORRTTAAGGEEMM 3ª feira, 18 de Dezembro de 2007

Crise humanitária em imagens

Olh

os n

o D

arfu

rQuotidiano As populaçõesconcentram–se nos campos derefugiados onde nada funciona.Latrinas a céu aberto e semprecheias, cisternas de água potávelsecas, lixo empilhado ao ladodas tendas e um risco de epide-mias elevadíssimo. A falta deágua potável no interior doscampos força as mulheres a pro-curá–la fora da sua “protecção”.A procura é já difícil mas estasmulheres não podem respirar dealívio assim que descobremágua. A sobrevivência passa ain-da por evitar um “encontro” comas milícias Janjaweed. Todas asmulheres apanhadas são viola-das. A única forma de minimizaro problema: enviar mulheresque ainda não estejam em idadefértil de forma a evitar, pelo me-nos, que estas não engravidem.

Janjaweed A região do Dar-fur é, há quatro anos, palco deum conflito armado. Em oposi-ção, duas facções: os Janjaweed(“cavaleiros” em português), mi-lícias das tribos nómadas africa-nas de língua árabe e religiãomuçulmana, e os povos africa-nos negros naturais da região.Contudo, a luta é desigual. O go-verno sudanês, embora neguepublicamente, fornece armas,assistência e participa em ata-ques conjuntos com o grupo mi-liciano. Nesta região do tama-nho de França, os ataques às po-pulações ocorrem em redor dospróprios campos onde sobrevi-vem as populações deslocadas.

Refugiados Desde Fevereirode 2003, data do início do con-flito, morreram no Darfur pelomenos 200 mil pessoas. Os nú-meros chocam, mas esta não é apior estimativa: o especialistaEric Reeves calcula, por exem-plo, que o número de vítimasmortais ultrapasse os 400 mil.Vítimas da guerra, da fome ouda doença continuam a perder avida nesta região milhares de ci-vis indefesos.

Para além dos mortos, os refu-giados são a outra face das víti-mas deste conflito. Pelo menos2,3 milhões de pessoas foramforçadas a deixar as suas casas ea procurar abrigo em campos derefugiados. Aqui estão totalmen-te dependentes das organizaçõeshumanitárias. Ajuda que não ésuficiente para travar as mortesentre os refugiados.

D.R.

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18 de Dezembro de 2007, 3ª feira FFOOTTOORREEPPOORRTTAAGGEEMM A CABRA 11

Drama O conflito no Darfurhá muito que passou as frontei-ras do Sudão. Para além dosdeslocados internos muitos dosrefugiados fugiram para o Cha-de e para a República Centro-–Africana. Mesmo fora do paísas milícias Janjaweed conti-nuam a persegui–los.

Um dos maiores campos derefugiados tem, ironicamente, onome “Kalma”, aqui estão con-centradas cerca de 150 mil pes-soas.

Apesar, dos relatórios da ONUreferirem que o governo de Car-tum e as suas milícias cometemataques indiscriminados contracivis, não se levaram ainda a ca-bo acções concretas para pôr fima este sofrimento. As NaçõesUnidas apenas reconheceramque os responsáveis poderiamser acusados de crimes contra ahumanidade e processados noTribunal Penal Internacional deHaia.

Mas nem tudo são más notí-cias: a ONU anunciou o envio de26 mil soldados integrados nu-ma força conjunta com a UniãoAfricana. O objectivo é impul-sionar o processo de paz e porfim ao conflito no Darfur. Umpropósito nobre mas uma tarefadifícil.

Uma das situações mais ur-gentes é garantir a sobrevivênciadas cerca de 1,8 milhões decrianças afectadas. O impacto daviolência, as doenças e a má-–nutrição estão a deixar marcasprofundas na geração infantilactual. Comprometidos estão osseus futuros, as suas capacida-des e também a sua libertaçãoda pobreza.

É importante referir os núme-ros da tragédia, mas é precisonão esquecer que por de trás decada número está um rosto: deuma criança, uma mulher, umidoso, um pai. Não nos podemosperder nos números. Cada casoé um caso: “Abd el Wahab e aRaqui, 7 ou 8 anos, trabalhamcom e como os adultos à entradado campo refugiados de Kalma afazer tijolos: «Quero trabalharaqui, fazer e vender muitos tijo-los para fazer uma casa paramim e meus avós.» Os seus paise resto da família foram mortospelos Janjaweed.” Este é o teste-munho de um, dos 14 mil volun-tários, que estão no Darfur aapoiar as populações locais.

“A Casa dos Fur” é o palco da maior crise humanitária do mundo. Nesta regiãodo Sudão as milícias atacam impiedosamente civis desarmados, que tentamsobreviver deslocando–se para campos de refugiados onde a morte espreita acada esquina... Texto por Ana Bela Ferreira

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A ONU e a União Africana estãoa mobilizar–se para constituir amaior missão de manutenção depaz do mundo, que deverá estaroperacional no final deste mês. Oque é que esta união de esforços,com 26 mil homens, poderá mu-dar no Darfur? Na sua opinião,esta é uma atitude tardia ou pre-matura?

Não consigo prever, mas irá certa-mente ajudar a estabilizar esta região.No entanto, a Missão de manutençãoda Paz da ONU é, de certa forma, “fá-cil” e simplista demais. Duvido queconsiga solucionar por si só, porque,na minha opinião, para uma verdadei-ra paz é preciso um acordo político en-tre todos os partidos que resistirem –algo que será muito complicado.

No passado mês de Novembro,Jeffrey Gettleman escreveu no‘New York Times’ que “se fossemnecessárias provas de que o Dar-fur se transformou num pesade-lo para as forças de manutençãoda paz, 30 camiões de homensarmados forneceram–nas, no fi-nal de Setembro”. Concorda comesta ideia?

Tem sido sempre um pesadelo parapoucos tropas, devido também aos re-cursos escassos. Agora pior do quenunca porque há poucos “bons da fita”– mesmo os rebeldes, antes vistos co-mo “heróis” do conflito do Darfur, sãona maioria marginais, gangs de crimi-nosos, lutando uns contra os outros econtra a União Africana. Nesse senti-do, Cartum “venceu”.

Ao ser repórter nesse cenário,quais são as suas principais preo-cupações?

A minha segurança pessoal.

Provavelmente, às vezes, emprol da objectividade e da impar-cialidade, tem de conseguir sepa-

rar os sentimentos dodever de informar. Co-mo consegue lidar comisso?

Ninguém consegue. É hu-mano. Mas treino–me paraser o mais factual possível.Os leitores merecem a maiorclareza possível dos aconte-cimentos – e não as emoções.Para isso, podem integrar gru-pos activistas.

Quais os motivos que o leva-ram a aceitar trabalhar no Dar-fur?

Aceitei porque é um factor impor-tante na história de África. Como re-pórter sem fronteiras, não posso dizer“não” apenas porque é perigoso.

E nesse quotidiano, quais sãoos desafios que se lhe impõem?

São imensos os desafios a enfrentaraqui: a logística, a segurança, saber li-dar com a polícia secreta, manter a dis-tância adequada da guerra (numa po-sição neutra), as burocracias, etc.

Alguns comentadores compa-ram a situação actual do Darfurcom o que aconteceu na GuerraCivil da Somália, em 1990. Noseu ponto de vista, é possível es-tabelecer algum paralelismo?

Não conheço suficientemente bem asituação da Somália para acomentar, mas compa-ro o que aqui se passacom o leste do Con-go, uma guerra, cujofinal já conheçobem: uma total anar-quia.

Há possíveis vencedores e ven-cidos neste conflito. Quem?

Os únicos vencedores e vencidosdesta tragédia são as pessoas – os civis– do Darfur.

12 A CABRA EENNTTRREEVVIISSTTAA 3ª feira, 18 de Dezembro de 2007

O que viu quando che-gou ao Darfur?

Vi rostos que me choca-ram muito, de grande dor eansiedade, de muito sofri-mento. O que mais mechocou foi ver, também,aquelas crianças que apa-recem quando mostram

imagens de África na televi-são.

Enquanto jornalista, tem dese manter afastado do aconte-cimento, como é que se sen-tiu?

Mesmo com imagens de televi-são não conseguimos passar àspessoas a situação que se vive, nemo próprio cheiro que há dentro dastendas, muitas vezes com 40/50pessoas lá dentro. Houve criançasque vieram ter connosco e uma de-las sorriu muito; apesar de tudo, ti-vemos que pegar–lhe ao colo, por-que é impossível mantermo–nosafastados completamente daqueladesgraça.

Na sua opinião, o que é quepode ter originado o conflito?

Naquela região, como em toda aÁfrica, há questões tribais que sãoo principal motivo de todos aquelesconflitos. São os senhores da guer-ra que querem tirar o melhor das

riquezas do país. Acon-teceu no Sudão,

entre o Norte eo Sul do Dar-fur, e depois

foi–se alas-trando aos res-

tantes

Que organizações humanitárias es-tavam presentes no local?

Muitas organizações, não só das NaçõesUnidas, mas outras ONG’s que fazem, real-mente, um trabalho fantástico, porque

apoiam muito aquelas populações.

E estava lá alguma organizaçãoportuguesa?

Não. O que lá vimos foram, sobretudo,ONG’s italianas.

Acha que o mundo está suficiente-mente consciencializado para o quese passa no Darfur?

Penso que sim, sobretudo, as cidades on-de o Alto–Comissário para os Refugiados,António Guterres, tem ido para sensibilizaras pessoas. A ideia de colocar uma forçamultinacional, no Darfur, está a ser muitodifícil porque os países não estão dispostosa isso. Portanto, quanto mais tempo tardar,pior será. Recordo que toda aquela regiãodo Sul do Chade já está contaminada com aguerra do Darfur.

O que acha da cobertura dos mediano Darfur?

Acho que cada pessoa e cada jornalistaque vá ao Darfur, e que consiga transmitiraquela desgraça, está a consciencializar acomunidade internacional.

Durante quanto tempo mais é queacha que vai durar este conflito?

Os conflitos em África, ou perduram notempo ou terminam numa região e come-çam noutra. No Darfur, acho que é isso queestá a acontecer. O Sul do Sudão tem umgoverno provisório, para em 2010 haverum referendo nacional que decidirá se oSudão fica ou não independente do Norte.Penso que 2010 será crucial para se saberqual vai ser o resultado do conflito no Dar-fur, porque a paz que se instalou entre oNorte e o Sul do Sudão pode acabar, con-soante o referendo.

Qual é o futuro que vê para o Dar-fur?

Se a força multinacional africana que foilá colocada, e que está a ser reforçada, con-seguir ter o apoio das grandes potências,nomeadamente da França, o conflito podeestabilizar, até 2010.

Paulo F.Sapolek - Repórter Sem Fronteiras

“”

Correspondente do ‘Chicago Tribune’,Paul F. Salopek é formado em Engenharia

Ambiental pela Universidade da Califórnia em Santa Bárbara (EUA) e faz parte da organização

Repórter Sem Fronteiras. Já trabalhou em África,nos Balcãs e na Ásia Central e ganhou dois

prémios Pulitzer (1998 e 2001). Por Soraia Manuel Ramos

Noé Monteiro - Jornalista da RTP

”O jornalista da RTP, Noé Monteiro, acompanhou

o Alto–Comissário para os Refugiados,António Guterres, numa das visitas realizadas ao

Darfur, e explicou à A CABRA tudo o que viu e sentiu. O repórter acredita que se os agentes

externos forem eficazes, o conflito podeestabilizar dentro de poucos anos

Por Liliana Figueira e Alexandre Oliveira

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Apesar da horrível realidade no Darfur– centenas de milhares de mortos, doismilhões e meio de deslocados e mais dequatro milhões dependentes da ajuda hu-manitária – na região paira no ar uma ca-tástrofe ainda maior. Jornalistas no terre-no e oficiais das Nações Unidas relatamque Cartum planeia ataques aos camposde desalojados assim como a deslocaçãoinvoluntária destes civis já por si seria-mente vulneráveis. Tais acções ameaçamdispersar centenas de milhares de deslo-cados internos.

Negados os recursos humanitários ecom a segurança dos campos fisicamentelimitada, esta vasta população vai, prova-velmente, ficar sem alimentos, água e cui-dados médicos básicos. Os mais vulnerá-veis morrerão rapidamente. Dada a lógicada contra–insurgência que tem lideradoas acções do regime de Cartum, uma novalinha dianteira que se estenderia até aoscampos de desalojados iria constituir“uma solução final” horrenda. Os que nãosão árabes ou os grupos tribais africanos,vistos como a base de apoio civil para osgrupos rebeldes, cada vez mais divididos,enfrentam a destruição catalítica.

Os acampamentos, só por si, são já umcaldeirão de raiva e desespero, estandocada vez mais inundados em armas. AUnião Africana (UA) no Darfur há muitotempo que desistiu de tentar manter umaforça policial presente e o acesso às orga-nizações humanitárias é cada vez mais li-mitado por falta de segurança. A violênciainter–étnica, que nos últimos meses temfervido em lume brando, é agora espontâ-nea em muitos acampamentos, enquantoos líderes tradicionais – os Omdas e osSheiks – perdem influência para os ho-mens com armas. O poder é progressiva-mente desviado para os rebeldes infiltra-dos e para jovens frustrados ao ponto daviolência pelo tédio, impotência e amea-ças contínuas às suas famílias por partedos Janjaweed.

Mas os assaltos nos acampamentos –que estão a alastrar até conglomeraçõesde habitação humana desprotegida e es-palhada por áreas tão grandes como 3 mi-lhas quadradas – vão resultar em con-frontos explosivamente mortais. Tais ata-ques, assim como a deslocação forçada,têm precedentes. Em Setembro de 2005,os Janjaweed atacaram o acampamentode Aro Sharow, no Darfur Ocidental, ma-tando muitos e deslocando a população,composta por 5 000 pessoas deslocadasdo seu país. Em Outubro de 2006, os Jan-jawwed atacaram estabelecimentos civisna zona de Jabel Moon, incluindo umacampamento de deslocados internos queabrigava 3.500 pessoas. Houve outrosataques, mas os de Novembro de 2007nos acampamentos perto de Nyala, e node al–Hamidiya, no Darfur Ocidental, re-

presentam os desenvolvimentos mais as-sustadores e dão a indicação mais clara doquão desesperadamente a intervenção in-ternacional no Darfur está a tardar emchegar.

Testemunhas oculares dos acampa-mentos relatam que nestes ataques mui-tas cabanas foram queimadas e muitos ci-vis alvejados e mortos. Milhares fugiramdo acampamento de Kalma, muitos para oacampamento vizinho em Otash. As Na-ções Unidas relatam que a 28 de Outubrode 2007 Cartum levou à força centenas demulheres e crianças para destino desco-nhecido. Um representante das NaçõesUnidas condenou as acções de Cartum,que incluíam o uso de camiões protegidospor metralhadoras pesadas e soldadosempenhando paus e tubos de borracha.

As Nações Unidas afirmam tambémque as forças militares de Cartum cerca-ram al–Hamidiya, disparando tiros paradentro do acampamento, a 20 de Outubrode 2007. Acampamentos de outras áreasvoláteis correm semelhante risco de assal-tos, e, embora a estes acontecimentos setenha seguido um duro e tenso retraimen-to, a ameaça de violência pode vislumbrardispersões massivas.

A crise mostra a necessidade desespera-da de elementos de policiamento autori-zados pela força de segurança das NaçõesUnidas para o Darfur, particularmente as

“unidades policiais treinadas” especifica-das na Resolução do Conselho de Segu-rança 1769 (Julho 2007). Mas como aAmnistia Internacional e outros relata-ram recentemente, no Outono de 2007,Cartum envolveu–se num padrão previsí-vel de ocultação e já atrasou gravementeos esforços internacionais para a protec-ção de civis e do corpo de ajuda humani-tária. O regime recusa ceder terra apro-priada para permitir a aterragem deaviões de transportes pesados e recusaaceitar as propostas das Nações Unidaspara a composição de tropas e polícias.

Cartum está a impedir que se respeite aliberdade total de movimentos das Na-ções Unidas e da União Africana, força“híbrida” e autónoma na reportagem dasatrocidades. Este comportamento do regi-me de Cartum continua a minar sistema-ticamente as forças actuais da União Afri-cana, que foi destacada para o Darfur noverão de 2004.

Não há, a curto prazo, a perspectiva depaz ou mesmo de um cessar–fogo emDarfur. Conversações entre Cartum e osgrupos rebeldes iniciadas a 27 de Outubrode 2007, em Sirte, na Líbia, foram um fra-casso total. Cartum violou o cessar–fogoque tinha anunciado nesse mesmo dia.Esperar por um acordo de paz antes deenviar uma força de protecção forte é en-viar um número exorbitante de civis para

a morte por violência, doença e má nutri-ção.

A resolução de 1769 foi aprovada porunanimidade pelo Conselho de Seguran-ça, sob autoridade do Capítulo 7 da Cartadas Nações unidas, o que lhe conferia res-ponsabilidades reforçadas.

A comunidade internacional deve insis-tir para que os seis mil polícias civis auto-rizados pela resolução sejam enviados nu-ma base urgentemente expedita, com atotal protecção militar necessária (20 milsoldados também foram autorizados).

O desafio logístico de tamanho envio éextremamente assustador, mas a alterna-tiva é deixar continuar a deterioração dasegurança dos acampamentos, ameaçan-do não só a segurança de 2,5 milhões decivis deslocados, mas também dos volun-tários humanitários de quem os desloca-dos dependem para sobreviver. Falhar emconfrontar esta crise urgente de seguran-ça no Darfur garante que muitas centenasde milhares de vidas - especialmente mu-lheres e crianças – vão correr um risco in-suportável.

(tradução de Martha Mendes)

*Eric Reeves é autor do livro “ALong Day’s Dying: Critical Momen-ts in the Darfur Genocide”, e pro-fessor no Smith College, em Nor-thampton, Massachussetts, EUA

������������������������������ ���������� ������������������������������������Eric Reeves*

18 de Dezembro de 2007, 3ª feira OOPPIINNIIAAOO A CABRA 13

ILUSTRAÇÃO POR RAFAEL ANTUNES

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De que forma viveu a questão deDarfur?

Portanto, não estive directamente nazona do Darfur, mas estive lá perto. Osgrupos étnicos que estão implicados naregião são grupos que também estão noChade. Há grupos que continuam a via-jar e a viver nos dois lados da fronteira.Isso implica uma ligação com a popula-ção do Chade.

Mesmo antes da comunidade interna-cional falar de genocídio, já se falavadessa questão no Chade, porque nos che-gavam muitas informações sobre o quese passava no Darfur. Até porque, desdeo início do conflito, um grupo de refugia-dos sudaneses transferiu–se para o Cha-de. Nessa altura, falava–se de um projec-to do governador do Chade de deslocaros refugiados do Darfur de Oeste paraSul, de modo a fixá–los junto da popula-ção e para não dar grande credibilidadeao problema. Contudo, esse hipotéticoprojecto não foi avante.

Mas a verdade é que o governo chadia-no estava implicado nesse problema, jáque o presidente pertencia a uma etniade um povo que está no Darfur. De certamaneira a sua família [etnia] estava nopoder no Chade e pertencia a uma guer-rilha no Darfur, e isso desde o iníciotrouxe problemas para o Chade.

Nós, por falta de informação a nível dejornais e de rádio, só soubemos da realsituação do Darfur através de organiza-ções internacionais, como o Fundo Mo-netário Internacional.

Em que é que consiste a acçãodos Missionários Combonianos noDarfur?

Na região sudanesa temos uma comu-nidade de Missionários Combonianos,onde está um comboniano português e, écom ele que estamos sempre em contac-to. A nossa acção não é a de deslocar osrefugiados, mas a de trabalhar no terre-no com eles e com a população local,com as pessoas que vão chegando decampos de refugiados e de aldeias queforam destruídas.

Que medidas acha que devem sertomadas para a resolução desteconflito?

Há muitas medidas que podem ser to-madas. Claro que o fim do conflito terá

que ser uma iniciativa das partes envol-vidas, mas provavelmente será necessá-ria uma intervenção exterior.

Nós estamos a fazer uma campanhaem Portugal pelo Darfur, não só com osMissionários Combonianos, mas tam-bém com outras organizações. Criámos aplataforma “Por Darfur” para fazer pres-são junto do nosso governo, aproveitan-do a presidência portuguesa da UniãoEuropeia (UE) e, também a Cimeira UE-–África. Tudo isto para que se faça algu-ma pressão junto do governo sudanês eda ONU, de modo a favorecer a acção deajuda humanitária, o restabelecimentoda segurança e da calma no Darfur, a fimde se chegar a um acordo de paz global e,eventualmente, para se fazer justiça jun-to dos responsáveis pelos actos de guer-ra e genocídio. Também fizemos circularem Portugal uma petição nesse sentido,

no gabinete do primeiro–ministro. Alémdisso, lançámos um CD “Por Darfur”,com a participação de vários músicos,com vista à sensibilização das pessoasem geral para esta realidade.

Qual pensa que deve ser o papeldas organizações internacionaisnesta questão?

A comunidade internacional tem umpapel muito importante a desempenhar,no sentido em que pode fazer pressão.Porque o que se está a passar na regiãosudanesa é uma vergonha, um golpecontra a nossa humanidade. Nós tam-bém somos responsáveis pelo que se es-tá a passar no Darfur. É um crime donosso século, o crime maior dos últimosanos. O que se está a passar mostra quenós não aprendemos nada com o que sepassou no Ruanda e noutros países.

É verdade que a comunidade interna-cional pode fazer pressão sobre o gover-no do Sudão, porém ele não aceita ne-nhuma das recomendações. O Sudão es-tá concretamente a intervir nos camposdos refugiados para dispersar as pes-soas, para que estas voltem para as al-deias, que estão destruídas. As pessoasnão estão em segurança porque as milí-cias armadas destroem tudo, matam eviolam. A Organização das Nações Uni-das também já interveio para criar con-dições de estabilidade, de segurança pa-ra as populações, e também para que ascomunidades internacionais possamagir de maneira a fornecer ajuda huma-nitária. Este é um aspecto muito impor-tante, é necessário criar condições a ní-vel mundial para que a ajuda humanitá-ria seja encaminhada eficazmente paraas populações.

14 A CABRA EENNTTRREEVVIISSTTAA 3ª feira, 18 de Dezembro de 2007

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Tendo permanecido no Chade, local de fronteira com Darfur, durante uma década, o Padre Leonel Claro, de 45 anos, viveu deperto a questão sudanesa. O missionário comboniano revela como é viver em permanente estado de conflito.

Por Ana Margarida Gomes e Andreia Silva

D.R.

”“Padre Leonel Claro - Missionário Comboniano

“As pessoas não estão em segurança porque as milícias armadas destroem tudo, matam e violam”

Page 15: A CABRA – 175 – 18.12.2007

O Darfur é há anos palco de uma tra-gédia humanitária de enormes propor-ções, possibilitada por um crime de es-quecimento por parte da comunidadeinternacional. Os mais de 250 mil mor-tos, os dois milhões de refugiados e dedeslocados internos e os mais de doismilhões de pessoas totalmente depen-dentes da ajuda externa são o rosto in-contornável desta tragédia.

O Darfur – com uma extensão territo-rial comparável à da França – é apenasum dos capítulos, o mais recente, deuma extensa série de conflitos que têmatravessado o Sudão desde a sua inde-pendência em 1956. Como em tantosoutros pontos do globo, a divisão étnicae religiosa (70 por cento de muçulma-nos, 25 por cento de animistas e 5 porcento de cristãos) e entre diferentes mo-dos de vida (culturas sedentárias e cul-turas nómadas), não pode ser absoluti-zada enquanto causa dos conflitos. Éum ingrediente importante, sem dúvi-da, mas indissociável quer do peso deum passado colonial (anglo–egípcio)que separou o Norte do Sul, dando àselites do primeiro a primazia da gover-nação – desigualdade esta que a islami-zação, conduzida no país a partir de1969, durante a ditadura de Nimeiri,

veio radicalizar – quer do apetite inter-nacional pelas riquezas petrolíferas dopaís e das alianças por ele determina-das. O actual poder despótico, personifi-cado em Omar el–Bashir, não é, pois,mais do que um prolongamento de umpassado de profunda discriminação e deguerra interna.

Neste contexto de discriminação co-lectiva, o Darfur veio juntar–se – atra-vés do Exército de Libertação do Sudão(SLA) e do Movimento Justiça e Igual-dade – a outras revoltas contra a margi-nalização económica, política e social.Animaram essa mobilização sobretudotribos sedentárias como os Fur, os Mas-saleit ou os Zaghawa. A resposta das au-toridades de Cartum tem sido esmaga-dora e traduz–se sobretudo em acçõesdirectas de destruição por raids aéreos eno apoio às milícias Janjaweed e às suasacções de devastação das populações ci-vis e das suas fontes de sustento.

Mas além de uma longa história deconflito e de chacina, o Darfur é tam-bém uma história repetida de acordosde paz fracassados. O último dessesacordos, de Maio de 2006, mostrou–sedesde o início demasiado limitado querno elenco dos signatários quer nas obri-gações concretas dos que o assinaram.

Desde logo o Partido do Congresso Na-cional, no poder em Cartum, tudo temfeito para boicotar o acordo, designada-mente através da integração de mem-bros das Janjaweed nas forças policiaisregulares em vez de os desarmar. Poroutro lado, grupos rebeldes como algu-mas facções do Exército de Libertaçãodo Sudão (Minni Minawi) têm vindo aintensificar ataques contra populaçõescivis, especialmente em campos de des-locados.

Face a este estado de coisas, há muitoque urge estabelecer naquele territóriouma força internacional de paz, que po-nha termo aos desmandos dos diferen-tes grupos que chacinam a população ci-vil. O Conselho de Segurança da ONU,através de Resolução 1706, de Agosto de2006, aprovou o reforço da anteriorMissão das Nações Unidas no Sudão(UNMIS), mandatada para vigiar ocumprimento do Acordo Geral de Pazque pôs fim à guerra entre o Norte e oSul do Sudão. Está em causa o envio deuma força de 20.600 homens (no qua-dro restrito das Nações Unidas ou numquadro misto entre a ONU e a UniãoAfricana), complementados por pessoalcivil, especificamente para o Darfur. Ogoverno de Bashir, com fortes apoios

sobretudo na China, tem tido a liberda-de necessária para boicotar insistente-mente esta decisão. Até agora sem con-sequências.

Está mais do que na hora de a comu-nidade internacional cessar a transigên-cia com os perpetradores do massacredo Darfur. A cessação imediata da ofen-siva militar contra o território, a plenacooperação das autoridades sudanesascom a força internacional de paz, o le-vantamento de todos os obstáculos bu-rocráticos à ajuda humanitária às popu-lações são exigências mínimas de cum-primento absolutamente inadiável. Háinstrumentos para garantir a sua satis-fação: sanções personalizadas contra osresponsáveis pelos massacres, vigilân-cia apertada sobre os rendimentos dosnegócios do petróleo e sobre os fluxosde investimento directo estrangeiro oufiscalização, sob a égide do Conselho deSegurança, das contas “offshore” dosmembros da direcção do partido maio-ritário, tudo pode e deve ser implemen-tado para limitar a chacina.

Assim haja vontade política.

* Faculdade de Economia daUniversidade de Coimbra e Núcleode Estudos para a Paz (CES/FEUC)

���������������������������� ��������������������José Manuel Pureza*

18 de Dezembro de 2007, 3ª feira OOPPIINNIIAAOO A CABRA 15

ILUSTRAÇÃO POR JOSÉ MIGUEL PEREIRA

Page 16: A CABRA – 175 – 18.12.2007

Darfur: uma região no leste do Sudão,sensivelmente do tamanho do território daFrança, que tem sido afectada por um con-flito desde Fevereiro de 2003, altura em queo Exército de Libertação do Sudão e o Movi-mento para a Justiça e Igualdade iniciaramuma revolta contra a discriminação e exclu-são deliberadas por parte do governo suda-nês.

A revolta resvalou para um conflito entreestas forças e o governo de Cartum, que nãose rogou a atacar as populações civis do Dar-fur. Esta situação cedo despoletou uma crisehumanitária, actualmente a contabilizar vá-rias centenas de milhares de mortes e mi-lhões de deslocados e refugiados a necessi-tar urgentemente do apoio da ONU e demaisagências humanitárias para garantirem oacesso de bens básicos à sua sobrevivência.

O regime sudanês tem invariavelmentecontrariado várias resoluções das NaçõesUnidas, mostrado intransigência tal que atem impedido de funcionar de facto no terri-tório. A Resolução 1769 do Conselho deSegurança da ONU de Julho passado autori-zou uma força de 26 mil forças militares epoliciais que pretendia agir em prol de 4,2milhões de darfuris – a UNAMID – foi en-tretanto obstruída pelo regime de Cartumque exigiu condições que tornariam imprati-cável uma força já de si débil. O Vice–secre-tário das Nações Unidas para as operaçõesde “peacekeeping”, Jean–Marie Guehènno,perspectivou que a resolução que autorizava

a UNAMID a agir no Darfur poderia serabortada. Nas palavras do próprio, “valerá apena avançar com uma força que não farádiferença, que não terá a capacidade de sedefender a si própria e que carrega consigo orisco da humilhação do Conselho de Segu-rança e das Nações Unidas e a tragédia dofalhanço para o povo do Darfur?”. Havendode momento apenas uma força da UniãoAfricana (UA) cujomandato deveria ter-minar com a entradada híbrida UNAMIDem cena, a confirmar-–se o abandono daUNAMID, estamostambém a reconhecerque a comunidade in-ternacional e em espe-cial os países do Con-selho de Segurança eda Aliança NorteAtlântica não se que-rem incomodar com o Darfur.

Com efeito, dos 12 helicópteros que se-riam necessários para garantir o mínimo defuncionalidade apenas no Darfur, nenhumúnico membro da NATO ofereceu sequerum – demonstrando a hipocrisia reinante.Se nenhuma força da ONU – híbrida ou não– entrar em cena, é bastante provável queapós o mandato da força até agora presente- a UNMIS – terminar, os países (africanos)que a compõem não tencionem permanecer

no Sudão, pelo menos sem um apoio cons-ciente e efectivo da ONU.

Desta forma, estamos a poucas semanasde confirmar que o regime encabeçado porOmar Al–Bashir não tem efectivamenteoposição externa à sua própria conduta. Éuma vitória do terror sobre a moral que oano de 2008 poderá vir a confirmar.

A acção da ONU também é criticada pelasforças rebeldes por ser vista co-mo parcial. Em abono da verda-de, a escolha da Líbia como anfi-triã de conversações de paz emOutubro promovidas pela ONU ea União Africana foi nada menosque desastrosa. O regime de Tri-poli há muito que fomenta a vio-lência na região, e a sugestão deKhadafi que o genocídio do Dar-fur era simplesmente uma ques-tão tribal iniciada por uma ‘que-rela por um camelo’ reforça a fal-ta de sensibilidade de que a ONU

teve ao aceitar a proposta da Líbia enquantoanfitriã às conversações de paz que, natural-mente, os principais líderes da resistênciaao regime sudanês se recusaram a compare-cer.

Ao aceitar um local hostil a uma das par-tes beligerantes como base de negociações, aimagem imparcial e credibilidade da ONU éobviamente afectada, com implicações quepoderão compremeter novas tentativas daorganização para pôr as partes em diálogo.

No fim, ficou a certeza de que o governo deCartum saiu reforçado das conversações deOutubro, ‘legitimando’ a sua intransigência.

Ninguém respeita o embargo de armas‘imposto’ pela ONU, nem o governo suda-nês, nem os grupos rebeldes armados, nemquem alimenta o conflito com o tráfico dearmas. Num conflito que cada vez mais secomeça a assemelhar ao vivido na Somáliade ‘todos–contra–todos’, o mais difícil nestemomento parece ser dar o primeiro passoconsequente para conseguir contrariar a es-calada de violência na região a partir dela enão do exterior. As experiências no Ruandaem 1994 e no Uganda em 1998 assemelham-–se a capítulos de uma história dramáticaque expõe os países desenvolvidos com ainércia que permite o enredo prolongar–se ecomplexificar–se ainda mais. Não aprender-mos com as lições do passado tem sido umdos dramas paralelos destas crises, indican-do que haverá ‘novos’ capítulos adiante...

Sem uma efectiva e orquestrada pressãodos actores externos iremos continuar a as-sistir revoltados pela televisão à impávidacomunidade internacional e ao inquietante-mente tranquilo desenrolar de mais um ‘fil-me’ que daqui a uns anos certamente estrea-rá sobre forma de drama – que mais poderiaser? – num cinema perto de si.

* Centro Interdisciplinar de Pes-quisa nas Relações Internacionaisde Coimbra

��������������������������������Alexandre de Sousa Carvalho*

“É uma vitória

do terror sobre

a moral que

2008 poderá vir

a confirmar”

16 A CABRA OOPPIINNIIAAOO 3ª feira, 18 de Dezembro de 2007

ILUSTRAÇÃO POR RAFAEL ANTUNES

Page 17: A CABRA – 175 – 18.12.2007

A África integra 17 por cento do cobertoflorestal do Mundo. Nos últimos doze anos52,6 milhões de hectares de floresta foramconvertidos em deserto a um ritmo mais rá-pido do que em qualquer outro ponto doplaneta. A desertificação, que afecta 46 porcento do continente e 485 milhões dos seushabitantes, leva à destabilização das baciashidrográficas e do clima, e às consequentessecas e inundações.

E o capital, ávido de lucros rápidos, pro-move a desertificação à custa da exploraçãodesenfreada dos recursos naturais de África.Consequentemente, na sua insustentável re-lação com a Natureza, o capital promove osmaiores dramas humanitários do Planeta,porque a exploração da Natureza é tambéma exploração das pessoas.

Vejam–se apenas dois exemplos paradig-máticos. Um do passado recente no Ruanda,e um bem presente, o dos Maasai no Quénia.

Há bem poucos anos, em 1994, o genocí-dio no Ruanda estava na ordem do dia. Osmedia ocidentais, alimentados pelos centrosde diversão ideológica do imperialismo,avançavam explicações atabalhoadas queinterpretavam os acontecimentos de entãocomo mais uma rivalidade étnica levada àssuas últimas consequências, reflectindo ins-tintos tribais, de base genética, associados auma outra causa “enraizada no ambiente ena demografia”. Dizia–se que o crescimentodemográfico ultrapassara a capacidade pro-dutiva da terra e então, “os soldados adoles-centes Hutus e Tutsis ter–se–iam dedicadoa resolver o problema populacional da ma-neira mais directa possível”.

Significativamente, ignoravam–se dadosfundamentais. Ignorava–se que Hutus eTutsis sempre se casaram entre si, não ha-vendo qualquer distinção biológica entreeles. Que os colonialistas europeus arbitra-riamente tinham criado uma distinção étni-ca, e usado a minoria Tutsi para, indirecta-mente, impor o seu domínio sobre os Hutus.Ninguém estava interessado em referir queo Fundo Monetário Internacional e o BancoMundial impunham reformas agrícolas e fi-nanceiras que alteravam o uso secular daterra, no sentido de transformar uma agri-cultura tradicional de subsistência numaagricultura subjugada às regras de mercadocapitalistas, com sobrevalorização da pro-dução de café para exportação. Enfim, igno-rava–se o que está mais que demonstrado,ou seja que a fome e a guerra em África re-sultam do imperialismo e não da sobrepo-pulação. Estados Unidos e França, em con-formidade com os seus interesses, armarame apoiaram as diferentes facções do Ruanda.Atribuíam–se à natureza humana e à sobre-população as culpas do genocídio, absolven-do o capitalismo.

O segundo exemplo tem a ver com a situa-ção presente dos Maasai no Quénia. O go-verno queniano, aconselhado pelos seusamigos imperialistas, monta uma gigantesca

fraude onde se mistura, num cozinhadocomplicado, o imperativo de redução da dí-vida externa com a urgência em conservar aNatureza.

No Parque Nacional de Amboseli, o qualintegra os principais recursos aquíferos dosnómadas Maasai em época de seca, expulsaos povos que tradicionalmente dependemdesses recursos sob a tola desculpa da in-compatibilidade entre a conservação da Na-tureza e o uso milenar que dela fazem os po-vos indígenas. Marginaliza os Maasai paraas regiões mais desérticas e oferece o espaçoagora “livre” a essa nova oportunidade denegócio que é o turismo de Natureza.

Esses marginalizados, tradicionalmentenómadas e dependentes da transumância,são então divididos em dois grupos. A um éproposta a sedentarização, sendo aliciadocom títulos de propriedade e novas riquezas,para que se dedique à agricultura intensivade acordo com os interesses de acumulaçãocapitalista. Aos outros oferece o deserto, aescassez e a fome, gerando assim a confli-tualidade com os primeiros... nada de muitodiferente daquilo que o Fundo MonetárioInternacional e o Banco Mundial impuse-ram no Ruanda... ver–se–ão os resultados.

Estes, são exemplos iguais a tantos outros,do que se vai passando em África sob o jugoimperial do capitalismo internacional. Nor-

malmente é a avidez do saque dos recursosnaturais, outras vezes a simples necessidadede afirmação imperial.

Mas muitos outros dramas subsistem, co-mo o gerado pelo domínio territorial deMarrocos sobre a República Árabe SaharauiDemocrática, ou o que se agudiza cada vezmais no Darfur, com contornos gravíssimosde limpeza étnica... e, como pano de fundodestas histórias, temos sempre a pilhagemimperialista dos recursos naturais.

É significativo o facto de George W. Bushconsiderar Salan Abdallah Gosh um “aliadoestreito” no Sudão. Não por ser um homemde paz, que não é, mas por dar informaçõessobre a Al Qaeda e, principalmente, por terprometido conceder às empresas norte-–americanas os seus campos petrolíferos.

Os E.U.A. “denunciam” os Janjaweed, mi-lícia super–equipada ligada ao governo, co-mo se fossem apenas “tribais descontrola-dos e selvagens”. Esta milícia “selvagem”, noentanto, possui equipamento de alta tecno-logia, como helicópteros e aviões. Isso de-monstra claramente que por detrás desteconflito estão os interesses da “democracia”imperialista.

Além dos EUA, a França e a China tam-bém têm demonstrado interesse no petróleosudanês. O Caso do Darfur é assim paradig-mático. Torna–se urgente lançar um alerta

para os riscos eminentes decorrentes deuma intervenção militar imperial da UniãoEuropeia, a qual de inocente nada tem.

Noventa e cinco por cento das armas usa-das no continente africano têm origem nor-te–americana e europeia. A situação deguerra permanente faz com que milhões depessoas sofram as consequências da ganân-cia dos que enriquecem à custa da sua misé-ria. Em 15 anos, pelo menos 23 conflitos fo-ram suficientes para reduzir em 15 por cen-to o PIB africano, isto é, 18 mil milhões dedólares por ano. Essa quantia poderia resol-ver a crise da SIDA, prevenir a tuberculose ea malária, fornecer água potável, saneamen-to e educação.

Mas não são apenas as armas que vêm dospaíses imperialistas. São também as guerrasque resultam directamente dos interessesimperialistas em controlar importantes re-cursos naturais. Neste sentido, o continenteafricano reflecte claramente os efeitos da ex-ploração capitalista. Exploração capitalistaque absorve toda a riqueza natural do conti-nente, deixando milhões de pessoas à mercêde uma morte lenta e agonizante, mostran-do que o capital, através dos seus agentesimperialistas, é o responsável pelos mais he-diondos crimes contra a humanidade.

* Vice–presidente do Conselho Por-tuguês para a Paz e Cooperação

���������������������������� ������������������������������������������������Luís Vicente*

18 de Dezembro de 2007, 3ª feira OOPPIINNIIAAOO A CABRA 17

ILUSTRAÇÃO POR RAFAEL ANTUNES

Page 18: A CABRA – 175 – 18.12.2007

18A CABRA HHIISSTTOORRIIAA 3ª feira, 18 de Dezembro de 2007

1982-1983

Na Guatemala travou-se a mais longa guerra civil da América Latina, num total de 36 anos de conflitos in-ternos entre as guerrilhas e as forças governamentais.

Perante o cenário caótico, a instabilidade política era constante e não havia governo que durasse muitotempo.

A 23 de Março de 1982 deu–se um golpe de estado para impedir a subida ao poder do General Aníbal Gue-vara, imposto arbitrariamente. A opção dos líderes da sublevação caiu em Efraín Ríos Montt, antigo directorda Academia Militar.

Uma das primeiras medidas tomadas por Montt foi a nomeação de uma Junta Militar para poder anular aConstituição de 1965. De seguida, o líder dissolveu o Congresso, suspendeu os partidos políticos e anulou a leieleitoral. A Junta Militar, por si presidida, foi destituída e nomeou–se “Presidente da República”.

Montt iniciou uma luta constante contra as guerrilhas, pretendendo a sua eliminação total. Encetou umaperseguição aos índios Maias, alegadamente cúmplices de guerrilhas comunistas. Para tal, criou as Patrulhasde Autodefesa Civil (PAC), que não passavam de grupos armados compostos por civis obrigados a tomar par-te nesta autêntica carnificina.

Uma razão para a apatia e até mesmo complacência da comunidade internacional, perante a violação dos di-reitos humanos na Guatemala, talvez tenha sido, como refere a BBC, o apoio que os EUA davam ao governode Montt. No total cerca de 200 mil pessoas morreram neste período sangrento, que durou pouco mais de umano.

Guatemala

Outros massacresOs atropelos aos direitos humanos que acontecemdiariamente no Darfur, não são inéditos na história. Aolongo de vários séculos ocorreram chacínios de povosinteiros. Ironicamente, o “civilizacional” século XX,viu a vergonha da humanidade espelhada em váriasguerras sangrentas. Por Adelaide Batista, JoãoRibeiro e Carla Santos

A 11 de Julho de 1991, o Exército Sérvio da Bósnia invade Srebrenica. Os dias seguintes viriam a resultar nomaior genocídio europeu desde o Holocausto. Cerca de 8 mil homens e mulheres muçulmanos bósnios entre os12 e os 77 anos foram presos, mortos e enterrados em valas comuns. O general Ratko Mladic comandou a ope-ração com o apoio dos “Escorpiões”, uma unidade especial sérvia.

A localidade de Srebrenica era uma das “zonas de segurança”, no território bósnio, decretadas pelas NaçõesUnidas. Abrigava milhares de civis protegidos por 450 capacetes azuis holandeses, que nada puderam fazer pa-ra proteger os inúmeros refugiados que não conseguiram fugir para a base mais próxima da ONU, em Potocari.

O massacre é apenas um dos muitos atropelos aos direitos humanos que se verificaram durante a desintegra-ção da Jugoslávia, nomeadamente na Guerra da Bósnia (1992-1995), onde morreram mais de 100 mil pessoas.Lutaram croatas, sérvios e bósnios, praticantes da religião católica–romana, cristã–ortodoxa e muçulmana, res-pectivamente. Em jogo estavam ímpetos nacionalistas, religiosos e territoriais, uma vez que a Bósnia era um ter-ritório ocupado pelos três povos e todos defendiam esta região como sendo sua.

Bósnia-Herzgovina 1992-1995

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1992-actualidade

18 de Dezembro de 2007, 3ª feira HHIISSTTOORRIIAA A CABRA 19

Um ano depois do início da I Guerra Mundial, a 24 de Abril, 600intelectuais arménios foram deportados e assassinados, em Istam-bul. Estima–se que a limpeza étnica tenha sido decidida e perpetra-da pelo partido dos Jovens Turcos, que ocuparam o poder em 1909.Durante dois anos a minoria arménia residente na Turquia foi pre-sa, sequestrada e morta. O povo arménio, maioritariamente católi-co, ansiava por se tornar independente no Império Otomano. Aperda gradual de poderes políticos e segregação na Turquia muçul-mana culmina num massacre entre 1915 e 1917. A Arménia avançaum número de pelo menos um milhão e meio de assassínios e con-sidera que foi este o primeiro holocausto europeu.

O governo turco nega que tenha havido genocídio nas suas fron-teiras e afirma que houve apenas 300 mil mortos. Na versão turcaeste número é associado a uma guerra civil que deflagrou então nodecadente Império Otomano.

O Cambodja foi palco, durante os anos 70, deum dos maiores extermínios humanos de que omundo tem memória. Cerca de 1,7 milhões depessoas foram mortas por um regime extremista.

Em Abril de 1975, as forças da guerrilha maoís-ta Khmer Vermelho tomaram a capital PhnomPenh, destituindo o general Lon Nol. O líder doKhmer, Pol Pot, tornou–se o chefe de estado.

A ideologia pela qual o líder se guiava era mar-cadamente radical e autoritária, descrita comoum maoísmo extremo. Foi abolida a propriedadeprivada, a liberdade de imprensa e de associação.Proibiu–se o culto religioso e todos deviam pres-tar contas ao governo.

Pol Pot encetou uma limpeza étnica maciça,que chocou o mundo. Começou por eliminar to-dos os que fizeram parte do governo de Lon Nol:políticos, polícias e militares, juntamente com assuas famílias. O Khmer Vermelho foi destituído,finalmente, em 1978, na sequência de uma inter-venção militar do vizinho Vietname. Só em No-vembro de 2007 é que se iniciou o julgamento dosresponsáveis, ainda vivos, desta barbárie.

Cambodja

Turquia

Somália

A tensão entre as duas tribos ruandesas, hutu etutsi, aumentaram depois da queda do avião ondeviajavam o Presidente do Ruanda e do Burundi(país vizinho). O incidente deu espaço ao confrontoentre os rebeldes tutsi e os seus opositores. Posteri-ormente, os hutus encetaram uma limpeza étnica.Tutsi e hutus moderados foram perseguidos pelamaioria étnica do Ruanda (hutus). Hutus foram in-citados a uma matança sem precedência tendo oexército disponibilizado armas a civis. Estima–seque pelo menos 800 mil pessoas tenham morrido.

Os media veicularam mensagens de ódio. Tanto arádio como os jornais e a televisão difundiram o no-me e a localização de pessoas que deveriam ser ex-terminadas. O conflito levou a um êxodo massivo derefugiados para os países vizinhos, estima–se queaproximadamente 2 milhões de ruandeses. Pos-teriormente, a Frente Patriótica tomou o poder ehouve novamente uma fuga massiva do Ruanda,desta feita eram os hutu que temiam uma retaliaçãopor parte dos tutsi. Em 1996, 150 mil refugiados fo-ram expulsos do Zaire, actual República Democráti-ca do Congo. A comunidade internacional criou umTribunal Criminal na Tânzania para o julgamentodos crimes que aconteceram durante os 100 dias demassacre. Segundo dados de 2004 da BBC, 500 fo-ram os condenados à morte pelo tribunal e aproxi-madamente 1oo mil pessoas continuam presas.

1975-1978

Desde 1992, a Somália vive mergulhada num ambiente de caos, corrupção, rivalidade e guerra constantes. Apósa derrota contra a Etiópia na Guerra de Ogaden, em 1978, o país entra numa grave crise e o descontentamento dapopulação é geral. Em 1986, o ditador Siad Barre inicia uma onda de repressão, que conduz a uma guerra civil. Bar-re deixa o poder em 1992, após mais de vinte anos, e são vários os movimentos, liderados pelos chamados senho-res da guerra, que se digladiam pela soberania do Estado somali. Em 2004, face à anarquia que dominava o país,é eleito, em Nairobi, um governo de transição, reconhecido pela comunidade internacional. No entanto, as cortesislâmicas, que aplicam a Sharia como sistema judicial, têm um grande apoio popular, dada a larga predominânciade muçulmanos na Somália. Em virtude desse apoio, a autoridade destes tribunais aumenta e em 2006 controlammesmo a capital Mogadíscio.

Os EUA vêem um potencial perigo neste crescente domínio de uma instituição muçulmana e, em Dezembro de2006, apoiam uma invasão etíope, com o objectivo de depor a União dos Tribunais Islâmicos.

Neste momento, a Somália tem um governo transitório, patrocinado pela Administração Bush. O exército etío-pe continua a estar presente em Mogadíscio, tendo a função de silenciar todos os opositores ao actual regime. Maisde mil pessoas foram mortas, em 2007, nos confrontos entre militares etíopes e insurgentes.

Ruanda

1975-1978

1994 (Abril a Junho)

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Cartoon por José Miguel Pereira

Desenhos de crianças do Darfur

Aos olhos de quem vive o dia–a–diano Darfur, como descreve a situaçãoactual da região? O Darfur tornou–se numa situação de segu-rança caótica. Não é clarividente quem con-trola o quê. Para além de uma dúzia de fac-ções rebeldes e comandantes locais (quenem sempre obedecem aos actuais líderespolíticos), também tribos árabes, que origi-nalmente não estavam envolvidas, estão aser arrastadas para conflito. Devido à vio-lência nos territórios e pelo que os oficiaisdas Nações Unidas consideram ‘uma cultu-ra generalizada de impunidade por qual-quer crime”’, a situação será difícil de con-trolar, mesmo por quaisquer pacificadores.

Tendo em conta esse cenário, nãotem medo de trabalhar como repór-ter no Darfur?Aqui a principal preocupação a ter em con-ta é a segurança. Isto pode parecer óbviomas até há um ano ou um ano e meio, ain-da era seguro pegar no carro e ir ter com osrebeldes sem receio ou sem sofrer qualquerataque porque havia um sentimento gene-ralizado de que a maioria dos combatentesapenas agiriam uns contra os outros ou como objectivo de saquear veículos de assistên-cia médica. Todavia, isso mudou e o Darfurtornou–se muito mais perigoso por causada impunidade. Esta situação tem comoconsequência crimes, que agora se torna-ram mais violentos, quer para homens,quer para mulheres. É comum haver viola-ções até sobre os membros das instituiçõesde ajuda humanitária e parece haver umacerta tendência para piorar.

Para seguir os princípios do jornalis-mo, não tem que, por vezes, separar-–se das emoções e do lado humano?Não é nada fácil lidar com isso. E torna–se

mais complicado a cada dia que passa. Mastenho de me manter objectiva principal-mente porque há poucos repórteres objecti-vos no Sudão e sinto–me responsável porser objectiva tanto quanto possível e dar aconhecer todas as partes, de forma a seguiros critérios exigentes da Reuters.

Então porque continua a trabalharnessa zona? O que a move desde o iní-cio?Fui uma das primeiras jornalistas ociden-tais a estabelecer contacto com os rebeldesdo Darfur, em 2003. A Agência Reuters co-meçou a interessar–se pelo Darfur quandogrande parte das pessoas ainda nem tinhaouvido falar desta zona. Viajei para o Sudãomuitas vezes e conheci os “protagonistas” ea história muito bem e foi por isso que aagência decidiu enviar–me para abrir umescritório aqui, no Sudão. Para mim, foiuma escolha entre o Iraque e o Sudão e euoptei pelo segundo porque se tratava deuma situação menos conhecida e represen-tava um maior desafio.

O que pensa da missão de manuten-ção de paz que a ONU e a União Afri-cana querem formar? É cedo ou tardedemais para tomar esta medida? O actual comandante Martin Luther Agwaijá clarificou que esta força não estará pron-ta até ao final de Dezembro e eu concordocom ele. Há imensos problemas que se po-dem depreender de todos os trabalhos jor-nalísticos dos últimos cinco anos e daí per-cebe–se que é tarde demais. Os civis espe-raram desde o início pelas tropas e estão aficar impacientes dia após dia. Em qualquerconflito há vencedores, mas neste quem saia perder é o Darfur.

Por Soraia Manuel Ramos

“Há violações até sobre membrosda ajuda humanitária”

De origem inglesa, Opheera McDoom, de 49 anos, é aúnica enviada especial da Reuters ao Sudão,

onde trabalha desde 2003