a dona pé-de-cabra, agonia e triunfo do feminino

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Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Literatura, língua e identidade, n o 34, p. 167-180, 2008 167 A DONA PÉ-DE-CABRA, AGONIA E TRIUNFO DO FEMININO Maria Lúcia Wiltshire de Oliveira RESUMO A dona-pé-de-cabra provoca indagações em torno da estigmatização do feminino em virtude de sua liber- dade excessiva e sua hipotética aliança com o diabo. Parte dessa fama se deve à versão misógina de Ale- xandre Herculano. No entanto, o texto medieval pode representar a agonia e o triunfo do modelo matriarcal de família em contraste com as Crônicas bre- ves de Santa Cruz de Coimbra, da mesma época, que ence- nam a vitória do direito paterno sobre o materno. PALAVRAS-CHAVES: Gênero; narrativa; medieva- lidade. D esde que foi resgatada da Torre do Tombo por Alexandre Hercula no, a famosa anedota medieval da dona pé-de-cabra, inserida nos Livros de Linhagens dos séculos XIII e XIV, tem provocado in- dagações em torno da personagem insólita, geralmente associada a estere- ótipos femininos negativos por sua suposta aliança com o diabo ou pela expressão excessivamente libertária de sua feminilidade. Grande parte dessa fama se deve à re-textualização da história pelo escritor romântico, num diálogo estilizante, nem paródico, nem parafrástico, que amplificou a nar- rativa primitiva, interpretando-lhe as lacunas segundo a moral misógina do século XIX. Efetivamente é difícil ler o texto primitivo sem os ecos da versão oitocentista por onde se disseminam os efeitos da dominação simbólica masculina então em pleno vigor na sociedade ocidental. A estigmatização do feminino que, sob os influxos iluministas, até então decorria de impulsos maléficos oriundos do demônio, encontrou

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Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Literatura, língua e identidade, no 34, p. 167-180, 2008 167

A DONA PÉ-DE-CABRA, AGONIA E TRIUNFO DOFEMININO

Maria Lúcia Wiltshire de Oliveira

RESUMO

A dona-pé-de-cabra provoca indagações em torno daestigmatização do feminino em virtude de sua liber-dade excessiva e sua hipotética aliança com o diabo.Parte dessa fama se deve à versão misógina de Ale-xandre Herculano. No entanto, o texto medievalpode representar a agonia e o triunfo do modelomatriarcal de família em contraste com as Crônicas bre-ves de Santa Cruz de Coimbra, da mesma época, que ence-nam a vitória do direito paterno sobre o materno.

PALAVRAS-CHAVES: Gênero; narrativa; medieva-lidade.

Desde que foi resgatada da Torre do Tombo por Alexandre Herculano, a famosa anedota medieval da dona pé-de-cabra, inserida nosLivros de Linhagens dos séculos XIII e XIV, tem provocado in-

dagações em torno da personagem insólita, geralmente associada a estere-ótipos femininos negativos por sua suposta aliança com o diabo ou pelaexpressão excessivamente libertária de sua feminilidade. Grande parte dessafama se deve à re-textualização da história pelo escritor romântico, numdiálogo estilizante, nem paródico, nem parafrástico, que amplificou a nar-rativa primitiva, interpretando-lhe as lacunas segundo a moral misóginado século XIX. Efetivamente é difícil ler o texto primitivo sem os ecos daversão oitocentista por onde se disseminam os efeitos da dominaçãosimbólica masculina então em pleno vigor na sociedade ocidental.

A estigmatização do feminino que, sob os influxos iluministas, atéentão decorria de impulsos maléficos oriundos do demônio, encontrou

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nas doenças, como a histeria e a ninfomania, a causa para o adultério e oesfacelamento da família nuclear idealizada pela economia liberal da épo-ca. Sob o risco de comprometer o funcionamento desta máquina produti-va, tornou-se necessário reafirmar o papel da mulher dentro do lar e juntoaos filhos, negando-lhe funções para além desses limites.

Sabemos que nem sempre foi assim. Segundo Philippe Ariès so-mente “a partir do século XIV, assistimos ao desenvolvimento da famíliamoderna”1, quando se inicia uma degradação paulatina dos poderes damulher. Com base nesse fragmento do autor da História social da criança e dafamília, é possível revisitar o episódio medieval como um texto de frontei-ra que alegoriza a agonia do padrão matriarcal, cujas raízes célticas, fincadasna Alta Idade Média, disputavam com a nova ordem românica e cristã.Embora Walter Benjamin revitalize a alegoria como chave de interpreta-ção da estética moderna, podemos aplicar esse fecundo conceito a textospré-modernos, já que na fábula medieval se conjugam história e ruínapara a produção de sentidos.

Leituras consagradas do texto primitivo acentuam a sua dimensãoa-histórica e fantasiosa, baseada nas ligações do seu imaginário, segundoMattoso, “com o mundo ou a mentalidade céltica, pela forma com quefazem intervir o sobrenatural na vida humana e pelas concepções mági-cas que pressupõem”2. Sabemos, no entanto, que a magia pode represen-tar o real de uma forma oblíqua, assim como o real pode provir da magia,tal como nos ensina Pessoa quando diz que a “lenda se escorre / A entrarna realidade. E a fecundá-la decorre”3. Se, por um lado, nos documentoshistóricos há sempre a possibilidade de uma manipulação do materialque se torna saturado de traços ficcionais4, por outro, os textos literários,apesar de seu estatuto ficcional, podem revelar importantes transfor-mações culturais, revelando muitas vezes um “outro” esquecido da His-tória como uma alegoria da passagem ou ruína que acena para o Textoque se tece a cada momento no cotidiano das sociedades.

1 ARIÉS, Philippe. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: Zahar, 1978. p. 214.2 MATTOSO, José (Sel. Int. e comentários). Narrativas dos livros de linhagens. Lisboa: Im-

prensa Nacional / Casa da Moeda, s.d. p. 65.3 PESSOA, Fernando. Obra poética. Rio de Janeiro: José Aguilar Editora, 1972. p. 72.4 Mattoso diz que o genealogista “preenche, talvez, lacunas de certas tradições, compõe,

arranja, quem sabe, até, se inventa” (op. cit., p. 12).

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Aproximando História, Antroplogia e Literatura, ousamos dizer quea tradição matriarcal agoniza na dona pé-de-cabra ao mesmo tempo emque a vitória do patriarcado é encenada na gesta de Afonso Henriques.Em ambos, dá-se a representação da família de linhagem assim como adisputa de poder entre as genes de direito materno e paterno. O textoconciso da anedota medieval atribui muita ambigüidade à figura femini-na, já que justapõe duas situações opostas: o seu desterro e a celebraçãodos seus poderes. Por sua vez, a gesta afonsina estabelece de vez o patriar-cado e a soberania do masculino – o pai e o filho – sobre a mãe, na gênesedo Estado português, afirmando-se a filiação patrilinear5. Num cruza-mento oitocentista, a vitória deste modelo se materializa na “leitura” feitapor Alexandre Herculano em que a dama misteriosa que conquistou oSenhor de Biscaia teria sua procedência e origem codificadas segundo umatábua valorativa do século XIX.

Com interesse especial pelo lugar do feminino, passaremos em re-vista os códigos culturais que se disseminam na versão de Herculano, paradepois, compará-la com o texto da anedota. Fechando o ciclo, retomare-mos o conflito feminino-masculino na gesta de Afonso Henriques paramelhor compreender a sua permanência na adaptação oitocentista, emcontraposição à feição libertária feminina da dona original.

A dama e os códigos

Para analisar Sarrasine, novela de Balzac, Barthes adotou a metodologiaestelar das lexias e dos códigos que as atravessam. Se “o código é uma pers-pectiva de citações”6, é possível investigar o arcabouço ideológico que sus-tenta o texto, observando o “sulco do já lido, já visto, já vivido, já feito”,pois ele é um reenvio ao “Livro” da cultura, da vida e da vida como cultura.Como força que se apropria do texto, Barthes o articula a vozes in off que seentrançam no tecido-texto, pluralizando a enunciação. Com essacategorização barthesiana7, também podemos identificar no texto de Her-culano vozes responsáveis por forte saturação ideológica.

5 Daí para frente só homens ocuparão o trono, numa forma ibérica de ratificar lei sálica,com exceção da breve regência de D. Catarina, tia de D. Sebastião.

6 BARTHES, Roland. S / Z. Lisboa: Edições 70, 1970. p. 23.7 As categorias dos códigos são: da Empiria (ações, comportamentos), da Pessoa (os semas),

da Ciência (da cultura), da Verdade (código hermenêutico) e do Símbolo.

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Publicado inicialmente na revista O panorama e, depois, integradoao volume Lendas e narrativas, o conto de Herculano instala na sua aber-tura o “código da tradição” (ligado à Ciência / Cultura), quando umavoz ancestral, semelhante a de velhos narradores, se dispõe a contaruma história antiga para seus ouvintes, na tentativa de demovê-los docepticismo moderno.

Vós os que não credes em bruxas, nem em almas penadas,nem em tropelias de Satanás, assentai-vos aqui ao lar, bemjunto ao pé de mim, e contar-vos-ei a história de D. DiogoLopes, senhor de Biscaia. [...] E não me digam no fim -´não pode ser´- [...] [pois] quem descrê das tradições lá irápara onde o pague.8

O pacto exige do leitor / ouvinte a crença nas tradições popularestal como acontecia na sociedade medieval, agora substituídas pela crençana Razão que combate superstições. Não podemos esquecer que coube aHerculano a célebre contestação do milagre de Ourique em prol da ver-dade nos estudos da história do país. Por isso, a autoria ocupa um lugarirônico, de onde é feita a desconstrução ininterrupta do relato para osleitores do século XIX, entronizando um narrador ancestral e um leitorcrédulo, como nos contos de fada.

Ao longo do texto emerge um embate entre o imaginário céltico ecristão, iniciado com a abjuração do sinal da cruz por parte do cavaleiroem troca do amor da dama desconhecida que cantava sobre a penha.Trata-se de um caso de desobediência do filho que renega o sinal da cruzaprendido com a mãe, contrariando dois códigos, o familiar e o religio-so. Mais tarde, à noite, encantado pelas formas nuas da airosa dama, osenhor de Biscaia tenta eximir-se da culpa pela dupla transgressão: “Deque servem benzeduras? [...] Um presente ao Apóstolo e duzentas cabeçasde cães de Mafamede valem bem um grosso pecado”9.

Por sua vez o “código da cavalaria” e os juramentos de vassalagemnormatizavam as relações feudais, reforçando laços de solidariedade atra-

8 HERCULANO, Alexandre. Histórias heróicas. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, s.d.. p. 69.9 Idem, p. 71.10 Ibidem, p. 70.

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vés da lealdade e da fidelidade. Vemos Diogo de Biscaia prometer à dama,“a la fé de cavaleiro”, dar-lhe não uma, mas “milhentas palavras”10, servin-do-a eternamente.Também a dama mantém a sua promessa por anos “emboa paz e união”11. Outros códigos atravessam o texto, regulando a des-cendência, a caça, a hospitalidade, o luto, o amor cortês, a guerra (sob aforma de trocas de prisioneiros e tréguas) e as tradições pagãs (feitiçari-as). Mas sobretudo é o “código matrimonial” o que nos interessa mais deperto.

Segundo a imaginação de Herculano, na época dos reis godos, a donapé-de-cabra fora condenada por transgressão às normas da fidelidade con-jugal. No seu enterro, o marido vestiu a “grossa estamenha” da penitên-cia, não para cumprir penitência pelo assassinato, mas por ter sacrificadotempos atrás um onagro-fêmea que amamentava as crias, contrariando ospreceitos da caça e o juramento feito ao pai.12 Caçar e matar um animalnessa fase significava condenar os filhotes à morte, prejudicando o ciclo danatureza e, em conseqüência, pondo em risco os benefícios da atividade queera, em tempo de paz, a única forma de divertimento da classe senhorial.Ao se desequilibrar a relação especular e totêmica da classe dominante coma natureza, ficava comprometida a força da própria linhagem, asseguradapela descendência. A penitência do conde Argemiro decorre da infração aeste código de proteção da natureza, cuja vingança toma a forma de deson-ra do adultério, como lhe diz a estranha voz: “Por ti ficaram órfãos osfilhinhos do onagro, mas por via do onagro ficaste, ó conde, desonrado.Foste cru com as pobres feras: Deus acaba de vingá-las”13.

Quebrar um juramento - que “dizem ser feio pecado”14 - é maisgrave do que assassinar a esposa infiel. Como se nota, a transgressão dasexto mandamento – “Não matarás - não é alvo de punição neste caso,talvez porque a mulher seja considerada “a ruína do justo” no texto bíbli-co de Isaías. Desse modo, a codificação do matrimônio faz da mulher umser insignificante cujas culpas devem ser expiadas ad aeternum. O castigonão finda com sua morte violenta, mas, ao contrário, persiste no pé alei-

11 Ibidem, p. 71.12 Aqui também há desobediência a dois códigos: o da família e o da caça.13 HERCULANO, s.d.. p. 81.14 Idem, p. 88.

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jado e no interminável destino errante num território inominado entre océu e a terra. A dívida da pecadora é imperdoável e irresgatável, comomenciona o narrador referindo-se igualmente ao amante: “As almas dacondessa e do gardingo caíram de chofre no inferno, por terem deixado avida em adultério, que é pecado mortal”15 .

As razões que levaram Alexandre Herculano a introduzir o adul-tério em sua versão, que não existe na fábula original, provavelmente sedeve à necessidade de ajustar o texto à moral familiar patriarcal e cristãe denegrir o caráter matriarcal da cultura céltica que estava em decom-posição na época do relato original. Já o detalhe do pé-de-cabra, co-mum às duas versões, pode gerar explicações distintas. Se na versãoprimitiva revela a ligação da mulher à cultura pagã, na versão românti-ca pode revelar a sua aliança com o demônio, o que, em última análise,exprime a culpa do feminino, seja como bode/cabra expiatório, sejacomo a descendente da pecadora Eva que Deus marcou para não perderde vista no Juízo Final.

Apesar das intervenções ideologicamente conduzidas, o textooitocentista ainda conserva muito do mistério original. Seu autor man-tém o poder do filho da dama, cujas vitórias guerreiras infindáveis sãoobtidas graças à proteção do casal adúltero e em pecado, sob a forma dadona e seu cavalo Pardalo. Instala-se aí o paradoxo de que a guerra santacontra os mouros é ganha com a ajuda das forças do Mal e não com aajuda dos santos cristãos. Enfim, após semear valores cristãos e modernosao longo de um texto originalmente heterodoxo, indagamo-nos sobre amoral da história imaginada por Herculano. Teria ele a intenção de resga-tar uma história do passado para tão somente valorizar a herança portu-guesa segundo os preceitos românticos de valorização da memória nacio-nal? Sem a pretensão de responder a esta pergunta, verificamos que onarrador escapa ao dilema herético refugiando-se na doutrina cristã parapedir ao ouvinte / leitor que faça orações em favor daquele filho precitoda dama pé-de-cabra comandado pelas forças demoníacas e, “se não lheaproveitar” (pois Inigo, o filho, está afastado da Fé), que seja por ele,narrador, amém!

15 Ibidem, p. 81.

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A dona em agonia

Nos Livros de Linhagens o importante é a linhagem e a família nosentido burguês do termo, seja ela de direito materno ou paterno. Osnobiliários buscavam atender a uma necessidade social e, portanto, davida pública, regendo a vida privada das pessoas através da observação dagenealogia e dos graus de parentesco. Seu objetivo idealizado era “meteramor e amizade entre os nobres fidalgos”16, sob a forma de uma solidarie-dade mútua que lhes garantisse ajuda em situação de guerra contra o ini-migo. Valorizavam os laços de sangue “porque nenhua amizade nom podeser tam pura, segundo natura, come daqueles que descendem de uu san-gue”17. Estimulavam o serviço dos nobres “por serem de uu coraçom”18.Graças ao conhecimento dos ancestrais, os Livros serviam para evitar oscasamentos pecaminosos e para definir vários direitos da época, sendodocumentos utilíssimos a reger a vida na sociedade feudal.

Dizem que, para amenizar a prosa insípida das genealogias, muitasanedotas divertidas foram agregadas aos relatos, hipótese que nem semprese sustenta por força da pluralidade de sentidos que elas encerram, unsconvergentes, outros divergentes em relação aos objetivos oficiais dosLivros. É o que ocorre com a “dona pé-de-cabra” cujo tempo da ação éanterior ao século XIII, talvez século XI, pela referência histórica a Toledosob o poder dos árabes que a tomaram no século VIII. A narrativa temum enredo seco e rápido que se pode dividir em três seqüências. A pri-meira é a do enamoramento do nobre pela formosa dona que ele encontrano campo, fora dos limites do castelo, com a qual se casa sob a promessade não persignar-se. Tomado de paixão, o nobre não só não se preocupaem investigar a verdadeira linhagem da dona nos Livros de Linhagem,como faz vista grossa para o aleijão no pé que não chega a comprometer aformosura do corpo. Na segunda seqüência, anos depois, a família estáreunida à mesa, a mulher ao lado da filha, o filho ao lado do pai, quandose dá a cena da vitória da cadela sobre o cão, fato considerado inusitado e,portanto, do domínio do demônio, o que leva o senhor de Biscaia a per-signar-se e assim a romper a união doméstica. No terceiro momento, a

16 MATTOSO, s.d.17 Idem, p. 303.18 MATTOSO, s.d.

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família está desfeita e o pai cativo dos mouros, quando o filho vai aocampo e consegue ajuda da mãe para libertá-lo.

A primeira e a última seqüência de ações acontecem no seio da natu-reza, para além dos limites da casa. Na segunda seqüência, à hora da refei-ção, a cena é de interior, mais ou menos privada, o que segundo Áries, émuito rara antes do século XIV. Ali se observa uma família conjugal que,segundo Duby, voltara a vigorar no século XIII com o restabelecimentodo poder paterno. No entanto, esse regime de dominação ainda era frágil.

Se essa época é a do restabelecimento do poder paterno, cabe aven-tar as razões que motivaram a mudança. De forma breve, podemos apon-tar para o desenvolvimento do comércio e da vida urbana que favoreceu oreaparecimento da separação entre o público e o privado como espaçosdestinados respectivamente ao masculino e ao feminino. Segundo Duby,até então “a feudalização traduz[ia] uma privatização do poder”19, semseparação entre “a casa e o pátio (cour)”, em que tudo estava sob a ordemcristã, a res privatae, a res familiaris e a res publica. Neste momento, para alémda cerca que protegia a casa e o pátio, ficava a natureza, lugar da dissidência,refúgio da heresia, do desconhecido e dos males de todo tipo, espaçohabitado por forças que o homem não podia controlar. As referênciaspagãs que reconhecemos no texto da dona pé-de-cabra são remanescentesde uma ordem anterior ao feudalismo que atravessaram a cultura feudalreligiosa e que entraram em colapso às portas da modernidade com a defi-nitiva re-entronização do modelo familiar patriarcal e do padrão romanode organização civil.

A separação entre os gêneros20 se manifesta no texto original da donapé-de-cabra pela disposição codificada das personagens à mesa, duplica-dos especularmente na representação dos cães de caça. Assim a dona tema seu lado a filha e o pai tem o filho; na sala está um alão (cão fila degrande porte) que pertence ao senhor, e uma podenga (pequena cadelapara caça de pequenos animais) de propriedade da senhora. No entanto,

19 DUBY, Georges. “Advertência”; “Do público ao privado”, “A vida privada nas casasaristocráticas da França feudal”. In: ARIÉS, P.; DUBY, G. História da vida privada. DaEuropa feudal à Renascença, v. 2. São Paulo: Cia das Letras, 1990. p. 9-161;p. 24.

20 DUBY, op. cit., p. 91.

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na disputa do osso atirado da mesa, esta codificação masculino / femini-no se corrompe com a vitória da podenga sobre o alão. O acontecido éinsólito, pois contraria a ordem natural e cultural do mundo, segundo aqual a cadela é mais fraca e destinada à derrota. Tamanho espanto causaao Senhor de Biscaia, que toma o episódio como arte do demônio, per-signando-se, como já mencionamos antes. Na expressão de Maria Lúciadal Farra, “pelos vistos, no paço de Dom Diego Lopes, o território éfeminino [...]”21.

Ao se persignar, Dom Diego Lopes renova a sua fidelidade ao cristi-anismo, rompendo o pacto matrimonial anterior e, conseqüentemente,liberando a mulher do compromisso, o que a leva a passar a mão nafilha, escapando ambas como “deus[as] ex-machina” por uma fresta doteto. É preciso notar que não se dá a rejeição da dona pé-de-cabra; elaprópria se exclui do ambiente familiar, exilando-se para além da cerca,nos montes, na natureza onde, destituída de direitos civis, tecerá sortilé-gios para o bem e para o mal. Daí para frente exercerá seu pontificadonum território fora da ingerência dos senhores feudais. Como se podeobservar, seu comportamento “desviante” é tão somente a decorrênciado erro do marido que não cumpriu o juramento devido.

Apesar de excluída da sociedade, a dona pé-de-cabra conserva pode-res mágicos que a colocam numa posição superior às contingências, poissó ela é capaz de salvar o próprio marido do cativeiro com a ajuda docavalo voador (o amante). Apesar de proscrita, manterá o seu compro-misso com sua cria (o filho), protegendo-a como manda a lei da natureza.Por força desta leitura que fazemos, soa irônica a omissão dos nomesfemininos (da mãe e da sua filha), em contraste com a nomeação comple-ta do pai, D. Diego Lopes, e do filho, Enheguez Guerra, numa situaçãoanáloga às práticas da história oficial que em muitos casos enaltece perso-nagens famosos em detrimento de outros que são esquecidos.

A bem dizer, o texto medieval autoriza várias leituras, a começar pelainterpretação de Alexandre Herculano que introduziu, anacronicamente,os fantasmas da monogamia feudal ou oitocentista na sociedade dos godos

21 DAL FARRA, Maria Lúcia. A dama, a dona e a sóror. In: FILIZOLA, A. Verdade, amor,razão, merecimento; coisas do mundo e de quem nele anda. Curitiba: Editora da UFPR,2005. p. 245.

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e celtas germanizados. Uma outra leitura nos permite compreender o cará-ter exemplar da fábula nos Livros de Linhagens como uma advertência aosincautos que devem ser criteriosos na escolha de parceiros. Segundo Duby,a maior parte das uniões se concluía na época “[..] após madura reflexão dasduas parentelas: avaliação por cada uma da honorabilidade da outra e nego-ciação conduzida pelos chefes da casa”22. Esta situação não foi acatada porDom Diego Lopes que, movido pela paixão, infringe as normas dos ho-mens, deixa de consultar os mais velhos e os livros e, portanto, acaba porter muitos dissabores. Segundo tal hipótese, justificar-se-ia a inserção dafábula no Livro de Linhagem como emblema do que Duby chama de“ideologia de filiação” 23.

Uma terceira leitura, de matiz feminista, pode compreender o textocomo protesto contra a redução do poder e da posição social das mulhe-res na sociedade. Reage, assim, contra a convenção da separação dos gê-neros, já que a terceira parte da narrativa enfatiza a participação da donapé-de-cabra no resgate do marido, retratando o valor do feminino numasociedade em vias de não mais reconhecê-lo.

Sob o ponto de vista narrativo, o texto é simples como um conto defadas, enquadrando-se no gênero maravilhoso em que o natural e o so-brenatural coexistem lado a lado. Neste invólucro formal, os elementospagãos (o pé-de-cabra da dona, os poderes mágicos, o cavalo Pardalo, etc.)estabelecem um contraste com a cultura cristã, desacreditando-a ou, nomínimo, relativizando-a. No entanto, a narrativa não é uma simples fá-bula inventada para portar uma mensagem moral, ainda que sua primeiraparte possa ter efeito exemplar. No seu desfecho, a situação volta ao equi-líbrio graças à intervenção da figura da Mulher-Mãe, o que acaba por jus-tificar e potencializar a escolha apaixonada de Diego, uma vez que destamulher lhe veio a salvação final, como antes dela viera a felicidade. Domesmo modo, o filho é beneficiado pela dona, graças ao cavalo com quecolhe todas as vitórias possíveis. Em suma, a dona pé-de-cabra medieval,em vez de ser assimilada ao estereótipo demoníaco (o diabo tem pés forca-dos), aproxima-se muito mais da figura da Deusa-mãe, mito que expressa

22 DUBY, 1990, p. 130.23 Idem, p. 97.

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o poder da associação entre a Mulher e a Natureza cultuadas pelas socie-dades bárbaras que se seguiram à derrocada de Roma.

Essa concepção encontra respaldo entre os germanos, conforme in-forma Tácito. Havia muitos vestígios do direito materno nestes povos,entre os quais o fato de considerarem a mulher como sagrada e com donsproféticos, o que lhes dava a condição de conselheiras decisões importan-tes. Diz Engels que, no século XI, a monogamia ainda não tinha sidoimplantada de todo entre os celtas24, que a castidade era pouco recomen-dada e o divórcio não prejudicava os direitos das mulheres. Elas votavamem assembléias populares e o máximo que um homem podia fazer emcaso de adultério era o espancamento, nunca o desterro. Para o generosoprotetor de Marx, os germanos amenizaram a antiga monogamia de in-fluência romana, suavizando a autoridade do homem na família. Deram àmulher uma situação mais elevada do que ela conhecera no mundo clássi-co, respeitando a herança ainda viva dos tempos do direito materno. Estaposição mais privilegiada da mulher nas culturas bárbaras que se assimila-ram à cultura romana vai se esbatendo pouco a pouco no processo decristianização.

Como um remanescente desse hibridismo, a versão original dadona pé-de-cabra é simples apenas na superfície. Os seus componentestextuais se vingam diante do declínio da posição social da mulher pormeio da sua vitória no plano do maravilhoso. Também encenam a se-paração dos gêneros e a condenação ao desterro daquela que vive soba ordem pagã. A rigor, a interpretação da fábula não está asseguradapor um quadro de valores exclusivamente cristão ou exclusivamentepagão, o que nos aproxima do conceito da alegoria benjaminiana. Des-prezando-se uma interpretação mágica, o texto poderia ser lido à luz daHistória como a alegoria da “degradação progressiva e lenta da situaçãoda mulher no lar que perde direitos” 25. Se a cultura cristã negou a igual-dade da mulher e sepultou a diversidade cultural em nome da Doutri-na, o texto original seria a expressão do “outro” esquecido da História,cuja ruína se dissimula nas entrelinhas do discurso.

24 ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do estado. 5. ed. Rio de Janei-ro: Civilização Brasileira, 1979. p. 147.

25 ARIÈS, 1978, p. 213-214.

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Disse Mattoso que algumas narrativas dos Livros de Linhagens “te-riam nascido da preocupação de transmitir aos vindouros a maneira comona família se defende a honra [...]”26. No entanto, o texto medieval anali-sado não segue este preceito à risca, em virtude de seu caráter inacabado,paradoxal e ambíguo, lacunas estas que foram quase todas preenchidas naversão de Herculano.

A vitória do direito paterno

Embora Fernando Pessoa homenageie a figura de D. Tareja como“mãe de rei e avó de impérios”27, sua presença na História de Portugal égeralmente depreciada, seja porque era filha bastarda de Afonso de Leãoe Castela, seja porque teria traído o filho ao se aliar ao conde galegoFernandes Peres de Trava depois de enviuvar, comprometendo as preten-sões de independência do novo reino.

Na gesta de Afonso Henriques, um dos mais antigos documentosem galego-português onde se narram as peripécias do fundador da naci-onalidade, o enredo é sabidamente traumático para os padrões familia-res modernos. Em nome da honra e dos interesses dos barões que habi-tavam a região de Entre-o-Douro e o Minho, o filho do Conde deBorgonha, após a morte do pai, opõe-se ao padrasto e à ascendênciamaterna e não hesita em meter cruelmente “sa madre em ferros”28. Naluta pela posse do condado, dá-se uma disputa entre a linhagem da mãee a do filho, com a vitória do último, ao conjugar interesses pessoaiscom posições políticas na estruturação do novo reino para além do jugodo imperador de Leão e Castela. Os barões da região, sedentos de ter-ras e de olho nos benefícios das “relações de feudo-vassalagem”, apói-am o Infante, formando uma espécie de “família” de convívio com aqual seu pai, o duque de Borgonha, se identificava. As casas de linha-gem de sangue, ligadas ao rei de Leão, primo de Afonso Henriques,apóiam as forças de Dona Tareja.

Para dar fidedignidade ao relato sobre a criação do reino de Portu-gal, a crônica desse episódio está em terceira pessoa numa voz

26 MATTOSO, s.d., p. 12.27 PESSOA, 1972, p. 73.28 MATTOSO, s.d., p. 40.

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Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Literatura, língua e identidade, no 34, p. 167-180, 2008 179

pretensamente isenta e imparcial, o que disfarça a autoria monástica deSanta Cruz de Coimbra, cuja missão foi a de caucionar pelo discurso aelevação de Afonso Henriques e a independência do condado. Mas, paraalém de seu teor político, a narrativa representa o estabelecimento dopatriarcado e a soberania do masculino – o pai e o filho – sobre a mãe, nagênese do Estado português, afirmando-se a filiação patrilinear quedoravante dominará a sucessão dinástica, à exceção do ligeiro reinado noséculo XVI de D. Catarina como regente.

Conclusão

Ao contrário da lei sálica, que impede a mulher de reinar, a narra-tiva original de Biscaia alude a um período anterior à fundação dos rei-nos ibéricos em que a mulher era dotada de poderes e de liberdade.Embora tenha perdido sua importância na sociedade, sua força perdu-rou na anedota e representa a permanência e o vigor do direito mater-no, cujos vestígios a civilização cristã pretendeu exterminar ou estigma-tizar, como se nota na versão deliciosa, mas ideologicamente codifica-da, de Herculano. Por essa razão, a fábula primitiva revela simultanea-mente o triunfo e a agonia do feminino nos primórdios da modernidade,apontando, ao mesmo tempo, para o fim de uma era e o início do longoperíodo de embates travados pela mulher na família e no mundo delíngua e cultura portuguesas.

A partir deste tempo, homens e mulheres passarão a ocupar posi-ções assimétricas e desiguais, impedidos de estabelecer acordos em igual-dade de condições tal como fizeram a dona e o Senhor de Biscaia.Doravante, a mulher será afastada do jogo social, mantendo-se útil apenasno interior da casa, submetida à dominação masculina e aos valores bur-gueses em expansão. No entanto, algumas mulheres poderão encarnar omodelo de “donas-pé-de-cabra”, ainda que tenham de pagar um alto preçopela ousadia.

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RÉSUMÉ

La dame “pé-de cabra” est un personnage féminin trèsliberé qui montre une alliance avec le diable surtoutdans la version misogyne d’Alexandre Herculano.Cependant, le texte médiéval peut représenterl’agonie et le triomphe du modèle matriarcal defamille en contraste avec les Crônicas breves de Santa Cruzde Coimbra, de la même époque, qui mettent en scènela victoire du droit paternel sur le maternel.

MOTS-CLÉS: Genre; récit; médiévalité.