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ma mentira repetida mil vezes torna-se verdade”. Essa frase proferida por Joseph Goebbels, ministro de propaganda do governo nazista, marcou um momento histórico em que a “verdade” foi construída sob farsas e alegações mentirosas, que tinham apenas o intuito de legitimar o governo de Adolf Hitler. O führer e seus assessores tinham nas mãos o poder da comunicação. Dominavam a imprensa, o rádio e o cinema, veículos que exerciam uma forte penetração na sociedade. A partir desses meios foi possível que as mensagens de interesse governista se difundissem na Alemanha, gerando um forte sentimento de unidade e poder. No momento em que Hitler assumiu o poder político, a nação alemã carregava um sentimento de humilhação, resultado da derrota na 1ª Guerra Mundial. Ele, e seu principal aliado na construção da mística nazista, Goebbels, perceberam que o controle rígido da difusão cultural e das infor- mações era um grande aliado para fazer a expe- riência nazista triunfar. Mentira e verdade: dois conceitos muito próximos No III Reich o limite entre verdade e mentira foi muito tênue. De acordo com o professor de História do Mundo Contemporâneo da PUC-Rio, Maurício Parada, as informações criadas pelo governo nazista, geralmente tinham como base documentos que tornavam possível a construção de uma situ- ação real. “A questão não é tão distante assim. Basta você imaginar coisas mais recentes, do tipo: o Iraque tem armas de destruição em massa? Foi uma invenção para se tomar uma decisão grave de invasão de outro país, que teve apoio da população norte-americana, quando não fez nada contra. Você estimula o imaginário do povo e produz um conjunto de elementos favoráveis para que aquela mensagem tenha sentido”, explica o professor. Para poder viabilizar o imaginário que se formou em torno do Estado do nacional socialismo alemão, os órgãos governamentais criaram novas formas de organização, não apenas no que diz respeito à comunicação. Até a religião era manipulada pelas novas “verdades” propostas pelo III Reich. O jornalista do canal de televisão a cabo Globo News, José Carlos Monteiro, ex-editor internacional do Jornal do Brasil, diz que para a plena realização de seu projeto, Hitler contava com a simpatia de milhares de profissionais alemães que traba- lhavam em jornais, revistas e rádios e eram donos de uma postura declaradamente racista, antisio- Julho/Dezembro 2005 28 CECÍLIA FLESCH, CRISTINA RIBEIRO, JULIANA ABIRACHED E LETÍCIA KAMINSKI Triunfo da mentira Um projeto político fundamentado em mentiras, farsas e supostas verdades Goebbels, o chefe da propaganda política do III Reich

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ma mentira repetida mil vezes torna-severdade”. Essa frase proferida por JosephGoebbels, ministro de propaganda dogoverno nazista, marcou um momento

histórico em que a “verdade” foi construída sobfarsas e alegações mentirosas, que tinham apenaso intuito de legitimar o governo de Adolf Hitler.

O führer e seus assessores tinham nas mãos opoder da comunicação. Dominavam a imprensa, orádio e o cinema, veículos que exerciam uma fortepenetração na sociedade. A partir desses meios foipossível que as mensagens de interesse governistase difundissem na Alemanha, gerando um fortesentimento de unidade e poder.

No momento em que Hitler assumiu o poderpolítico, a nação alemã carregava um sentimento

de humilhação, resultado da derrota na 1ª GuerraMundial. Ele, e seu principal aliado na construçãoda mística nazista, Goebbels, perceberam que ocontrole rígido da difusão cultural e das infor-mações era um grande aliado para fazer a expe-riência nazista triunfar.

Mentira e verdade: dois conceitos muito próximos

No III Reich o limite entre verdade e mentira foimuito tênue. De acordo com o professor de Históriado Mundo Contemporâneo da PUC-Rio, MaurícioParada, as informações criadas pelo govern onazista, geralmente tinham como base documentosque tornavam possível a construção de uma situ-ação real. “A questão não é tão distante assim.Basta você imaginar coisas mais recentes, do tipo: oIraque tem armas de destruição em massa? Foiuma invenção para se tomar uma decisão grave deinvasão de outro país, que teve apoio da populaçãonorte-americana, quando não fez nada contra.Você estimula o imaginário do povo e produz umconjunto de elementos favoráveis para que aquelamensagem tenha sentido”, explica o professor.

Para poder viabilizar o imaginário que se formouem torno do Estado do nacional socialismo alemão,os órgãos governamentais criaram novas formas deorganização, não apenas no que diz respeito àcomunicação. Até a religião era manipulada pelasnovas “verdades” propostas pelo III Reich.

O jornalista do canal de televisão a cabo GloboNews, José Carlos Monteiro, ex-editor internacionaldo Jornal do Brasil, diz que para a plena realizaçãode seu projeto, Hitler contava com a simpatia dem i l h a res de profissionais alemães que traba-lhavam em jornais, revistas e rádios e eram donosde uma postura declaradamente racista, antisio-

Julho/Dezembro 200528

CECÍLIA FLESCH, CRISTINA RIBEIRO, JULIANA ABIRACHED E LETÍCIA KAMINSKI

Triunfo da mentiraUm projeto político fundamentado em mentiras,

farsas e supostas verdades

Goebbels, o chefe da propaganda política do III Reich

nista e direitista. Monteiro lembra que “engolir afraude do revisionismo, de que os alemães nãosabiam, de que foram vítimas de manipulação semprecedentes, de que toda a população embarcavaalegremente nessa aventura, que quase levou aosuicídio da nação, não tem sentido”.

Diversas situações foram forjadas para que apopulação passasse a dar credibilidade ao discursoimposto verticalmente pelo governo nazista. Osalemães estavam um pouco desconfiados e céticos,ao mesmo tempo em que adotavam uma posturaentusiasmada e aderente. O incêndio do Reichstag,parlamento alemão, foi um pretexto para que listasde suspeitos fossem divulgadas com o intuito deprender comunistas, anarquistas, democratas radi-cais, liberais de esquerda, e todos aqueles que ogoverno considerasse como de oposição ao regime.

De acordo com Parada, outras farsas foram cri-adas, como os documentos sobre os sábios do Sião,em que ficava explícito um complô judaico. “Vocêcria uma dramatização, uma situação, uma falsifi-cação de documentos que pode criar condições paraestabelecer políticas normalmente restritivas deperseguição de minorias ou de grupos adversários”,afirma o historiador.

Na época, o anti-semitismo era uma posiçãotomada de forma aberta, discutida nos discursos edocumentos nazistas, no entanto, o extermínio dosjudeus era encoberto por uma política de campos deconcentração de trabalho. O fun-damento do discurso contra osjudeus era baseado em experiên-cias amparadas pela lógica epela ciência vigente nos anos1920 e 1930. O conceito da euge-nia, ou melhoramento das raças,era fundamentado nesses experi-mentos, que estudavam as mistu-rais raciais. Naquele tempo, essa era uma verd a d e .

A construção de uma verdade visualO professor de Teoria e Crítica Cinematográfica e

ex-crítico de cinema do jornal O Globo, FernandoFerreira, acredita que Hitler acreditava nas suaspróprias histórias, e foi seu fanatismo que o tornoutão perigoso. A essência de sua pregação era assu-mi-la como uma verdade. “Hitler não mediu

obstáculos para chegar onde desejava. A mentiranele era uma essência de uma pregação assumidacomo verdadeira. Os filmes produzidos em seu go-verno, em sua maioria pela cineasta Leni Rie-fenstahl, também serviram a essas mentiras, ape-sar dela ter dito até o fim da vida que não eranazista”, afirma Ferreira.

Leni Riefenstahl foi perpetuadacomo colaboradora de Hitlerquando, em 1934, produziu odocumentário O triunfo da von-tade, um dos ícones da produçãocultural nazista, que mostrava omonumental Congresso do Par-tido Nazista, realizado em Nu-remberg. Em 1936, Leni filma

Olympia, sobre os jogos olímpicos de Berlim domesmo ano, e inova na linguagem cinematográfi-ca, com novas técnicas de montagem e angulaçãode câmera. Na obra, Hitler pretendia demonstrar asuperioridade da raça ariana, valorizando suabeleza e o vigor do corpo humano. Para infelici-dade do führer e comprovação de uma alegaçãofalsa, o atleta americano Jesse Owens ganhou qua-tro medalhas de ouro em provas de atletismo.

É tudo mentira!29

Hitler posava para as câmeras de Leni Riefenstahl

O controle rígido da difusão cultural e

de informações era o que iria fazer

a experiênciahitlerista triunfar

Julho/Dezembro 200530

“Os filmes de Leni são extraordinários, extrema-mente bem-feitos, ninguém teve tantos recursosdisponíveis para realizar uma produção. Todo fes-tejo wagneriano, característico das encenaçõesnazistas, foi programado para que ela pudesse tra-balhar com seu exército de câmeras na melhor luz,na melhor situação. A sua captação de imagens éesplêndida”, conta o crítico.

Ainda de acordo com Fernando Ferreira, Leni nãosaiu às ruas para acompanhar os cortejos de Hitler,ao contrário, era ele que se posicionava para que ascâmeras da cineasta pudessem enquadrá-lo da me-lhor forma. “Ninguém conseguiu fotografar Hitlercom tanta proximidade e intimidade quanto Leni.Acho que em nenhum momento da história um per-sonagem foi revelado com tanta intimidade quantoHitler em O triunfo da vontade”, comenta Ferreira. Ap roximidade da cineasta com o ditador era tama-nha, que muitos afirmavam que eram amantes, oque foi negado por ela até sua morte, em 2003.

Sabiam ou não sabiam?No filme A queda, de 2004, do diretor Oliver

Hirschbiegel, a secretária pessoal de Hitler, Tr a u d lJunge, afirma que nunca soube dos horro res cometi-dos pelo partido nazista. No documentário A deusai m p e rf e i t a, produzido nos anos 1990 pelo canal acabo GNT, foi a vez de Leni Riefenstahl afirmar quenão teve acesso ou ligações com tudo o que foi pro-movido pelo governo Hitler, inclusive as per-seguições, mortes e os campos de concentração.

F e rnando Ferreira não acredita na defesa de Leni:“Que ela fez um trabalho pelos nazistas, ela fez. E o

caso dela é grave. Ela aceitou viver a mentira e nãoteve, aparentemente ou claramente, nenhumescrúpulo de conviver com essa mentira”. Monteiroc o n c o rda com Ferreira: “Leni mentiu descarada-mente ao alegar que fora apenas incumbida derealizar enormes espetáculos para enaltecer a glóriado regime e do povo. Isso não convence minima-mente. Gente da maior grandeza intelectual, dizerque não tinha idéia do que estava fazendo com osjudeus e que ignorava os massacres cometidos con-tra os adversários do regime, não cola mais”.

E não era somente a elite política e intelectualque estava distante da realidade. A populaçãoalemã também se dizia distante dos fatos cometi-dos pelo III Reich. No entanto, Monteiro afirma quetodos estavam cientes do plano de governo nazistae colaboravam para o seu sucesso. Ele diz que asescolas e universidades formavam jovens simpati-zantes com a causa nazista e dispostos a servir oregime de forma plena. “Todos sabiam muito bemda extensão dos crimes cometidos pelo führer”,completa o jornalista.

No entanto, não é exatamente o que pensa o pro-fessor Maurício Parada. Para ele, a burocratizaçãocriava verdades, atestadas por carimbos e assina-turas, o que deixava a população acomodada. Oresultado foi um país que tinha a re a l i d a d eencoberta. As atrocidades cometidas pelo governoalemão ficaram invisíveis já que o povo se con-tentava com bons resultados econômicos e sociais,além de fatos atestados em papéis, sem se ques-tionar sobre os caminhos seguidos pela adminis-tração pública.

Distante ou não do povo, a verdade estava longedas atrocidades cometidas nos campos de concen-tração. Judeus e pessoas que se opunham ao regimeeram levados de forma mentirosa para os campos,e quando lá estavam, iam para as câmaras de gás,achando que estavam indo para um banho coleti-vo. “Essas pessoas eram selecionadas, classificadase deslocadas, de forma falsa, para os campos, paraentão morrerem em situações absolutamente regu-lares. Os alemães não os colocavam diante de umpelotão de fuzilamento, era tudo muito bemesquematizado”, lembra Parada.

E o resto do mundo? Será que este estava ciente doimpacto das atitudes nazistas? Monteiro afirma

O povo alemão foi enganado pelos nazistas?

que sim. Sem internet ou meios de comunicação emnível mundial, o que permitia que o mundosoubesse do que acontecia eram diplomatas,espiões e exilados, que fugiam dos horrores daditadura alemã e contavam o que estava se pas-sando no país.

Ainda que todos estivessem conscientes – edescontentes – com as estratégias de Hitler paradominar a política mundial, é inegável que ele con-seguiu se manter forte e com um país bem estrutu-rado por ao menos uma década. E isso não seriapossível sem a potente máquina de propagandapensada por Goebbels. Fundamentais para a per-feita difusão dos valores nazistas, as técnicas pen-sadas e utilizadas pelo ministro de Hitler per-manecem até os dias atuais, o que comprova a suaeficácia. Dentre algumas delas estão: o conteúdode uma mensagem deve ser simplificado ao máxi-mo, visando sua compreensão imediata; o melhorhorário para a transmissão de determinada men-sagem é à noite, quando a pessoa chega cansadaem casa e está com menos disposição para pensar;a idéia central do que se quer estabelecer deve serrepetida o maior número de vezes possível, emtodos os meios de comunicação disponíveis.

De 1933 a 1945 a Alemanha foi o palco da,talvez, mais perfeita máquina difusora de idéias eideais. O mundo puro, que Hitler prometeu durarpor no mínimo mil anos, acabou em 12, vítima daprópria neurose de quem o construiu. Mesmo comdiscordâncias e dúvidas sobre até onde iam as(in)verdades produzidas pelo regime nazista, umacoisa é certa: mais que do que inventar grandesmentiras, Hitler e seus companheiros souberammuito bem criar versões verossímeis para osalemães sobre a realidade econômica, social epolítica do país.

Ficção e realidade

A política de controle da informação adotada pelos Estadosautoritários tornou-se temática para que o indiano, de famíliainglesa, George Orwell, produzisse, em 1949, o livro 1984. Nahistória, o personagem Winston Smith vive em uma sociedadecontrolada pelo regime do Big Brother, em que a vida de todosos cidadãos é controlada fortemente pelos meios de comuni-cação, especialmente a partir de um sistema de câmeras quevigia o cotidiano das pessoas e monitores que veiculam o que éde interesse do governo.

Diariamente as pessoas assistiam pelos monitores os “dois mi-nutos de ódio” quando eram transmitidos os discursos deGoldstein, inimigo voraz do regime, e era assim que o povo tinhaconhecimento de todas as suas traições, atos de sabotagem, here-sias e desvios. Durante as sessões, os personagens demonstramgrande fúria contra aquela figura tida como maligna.

O controle da informação na sociedade descrita em 1984 eratão rigoroso, que existia um departamento responsável pelacriação e recriação de notícias e acontecimentos. Qualquerquestionamento que pusesse em risco a palavra do Estado, automaticamente passava por um processode construção de verdade, em que qualquer registro anterior, que fosse capaz de legitimar a dúvida eratransformado ou apagado. Além disso, a população sofria lavagens cerebrais e até torturas quando serevoltava contra o Big Brother, seu regime ou sua ideologia

É tudo mentira!31

As reuniões do partido nazista se transformavam emespetáculo