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Agora é que são elas 2. Cartas na rua — Charles Bukowski 3. Mulheres — Charles Bukowski 4. On the Road — Pé na estrada — Jack Kerouac 5. O falcão maltês — Dashiell Hammett 6. O coração das trevas — Joseph Conrad 7. Haxixe — Walter Benjamin 8. Pra cima com a viga, moçada e Seymour, uma introdução — J. D. Salinger 9. Junky — William S. Burroughs 10. Amado meu — Pier Paolo Pasolini 11. A lua na sarjeta — David Goodis 12. A dama do lago — Raymond Chandler 13. Pergunte ao pó — John Fante 14. Almoço nu — William S. Burroughs 15. A chave de vidro — Dashiell Hammett 16. Os subterrâneos — Jack Kerouac 17. Misto quente — Charles Bukowski 18. Teorema — Pier Paolo Pasolini 19. Sob os olhos do Ocidente — Joseph Conrad 20. Vida sem fim — Lawrence Ferlinghetti 21. Agora é que são elas — Paulo Leminski 22. Um artista da fome — A construção — Franz Kafka 23. O longo adeus — Raymond Chandler A sair: Fogo fátuo — Pierre Drieu la Rochelle Rapazes da vida — Pier Paolo Pasolini Sonhos de Bunker Hill — John Fante Adeus a Berlim — Christopher Isherwood Bob Dylan James M. Cain Jean Cocteau John Lennon Agora é que são elas 1a edição 1984 2a edição 1984 Capa: Ettore Bottini Revisão: Maria E. Nejm editora brasiliense s.a. 01223 — r. general jardim, 160 são paulo — brasil CONTRA CAPA Ficção, re-ficção, uma história que desvenda o processo de todas as histórias, AGORA É QUE SÃO ELAS, uma novela com começo, meio e fim (não necessariamente nessa ordem, é claro). Um romance pra tocar no rádio.

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Agora é que são elas 2. Cartas na rua — Charles Bukowski 3. Mulheres — Charles Bukowski 4. On the Road — Pé na estrada — Jack Kerouac 5. O falcão maltês — Dashiell Hammett 6. O coração das trevas — Joseph Conrad 7. Haxixe — Walter Benjamin 8. Pra cima com a viga, moçada e Seymour, uma introdução — J. D. Salinger 9. Junky — William S. Burroughs 10. Amado meu — Pier Paolo Pasolini 11. A lua na sarjeta — David Goodis 12. A dama do lago — Raymond Chandler 13. Pergunte ao pó — John Fante 14. Almoço nu — William S. Burroughs 15. A chave de vidro — Dashiell Hammett 16. Os subterrâneos — Jack Kerouac 17. Misto quente — Charles Bukowski 18. Teorema — Pier Paolo Pasolini 19. Sob os olhos do Ocidente — Joseph Conrad 20. Vida sem fim — Lawrence Ferlinghetti 21. Agora é que são elas — Paulo Leminski 22. Um artista da fome — A construção — Franz Kafka 23. O longo adeus — Raymond Chandler A sair: Fogo fátuo — Pierre Drieu la Rochelle Rapazes da vida — Pier Paolo Pasolini Sonhos de Bunker Hill — John Fante Adeus a Berlim — Christopher Isherwood Bob Dylan James M. Cain Jean Cocteau John Lennon

Agora é que são elas 1a edição 1984 2a edição 1984

Capa: Ettore BottiniRevisão: Maria E. Nejmeditora brasiliense s.a.01223 — r. general jardim, 160são paulo — brasil

CONTRA CAPA Ficção, re-ficção, uma história que desvenda o processo detodas as histórias, AGORA É QUE SÃO ELAS, uma novela comcomeço, meio e fim (não necessariamente nessa ordem, é claro). Um romance pra tocar no rádio.

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As duas músicas cantadas neste romance-fuga são WatchWhat Happens, de LeGrand e Gimbel, e A House Is Not A Home, deBacharach e David. Devem ser imaginadas na voz de EllaFitzgerald, tal como Ella as imortalizou em duas insuperáveisperformances. “As aparências enganam, mas enfim, aparecem, o que já éalguma coisa, comparado com outras que, vamos e venhamos,talvez, nem tanto.” (Catatau. P. 113)ao delito de deixar o dito pelo não dito

CAPÍTULO 1 l Aos 18 anos, pensei ter atingido a sabedoria. Era baixinha, tinha sardas e tirei-lhe o cabaço na primeiraoportunidade. Não ficou por isso. A lei falou mais forte. E tive que me casar, prematuro comouma ejaculação precoce. Nem tudo foram rosas, no princípio. Nos pulsos ainda me ardem as cicatrizes de três malsucedidas tentativas de suicídio. Mas eu não posso ver sangue. Sobretudo, quando meu. Assim decidi continuar vivo. Principalmente porque o mundo estava cheio delas. De Marlenes. De Ivones. De Déboras. De Luísas. De Sônias.De Olgas. De Sandras. De Edites. De Kátias. De Rosas. De Evas.De Anas. De Mônicas. De Helenas. De Rutes. De Raquéis. DeAlbertos. De Carlos. De Júniors, De... (ihh, acho que acabo decometer um ato falho). De Joanas. De Veras. De Normas. 2 De Norma, me lembro bem. Como esquecer com quantas bocas se faz uma daquelas,aquela multidão de abismos em que ela consistia? Aquilo sim éque era uma buceta convicta. Cair ali era como, bem... 3 Com aquela cara de homem fingindo estar interessado nopapo de uma mulher apenas porque está com vontade de comê-la,com aquela cara de mulher costurando e bordando pensamentosapenas porque está a fim de ser comida por ele, cheguei,caprichei, relaxei, lembrei tudo que tinha aprendido em Kant eHegel, repassei toda a teoria dos quanta, a morfologia dos contosde magia de Propp, o vôo do 14-bis, cheguei e não perdoei: — Tem fogo? 4 O tem fogo saiu meio esquisito. Nem parecia que eu tinhaestudado três anos de mecânica celeste, dois de escultura emmetal e tinha sido, podem perguntar, um jogador pra lá derazoável na minha equipe.

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Não, balido baldio, urro estrangulado, você parecia um temfogo imbecil qualquer, um tem fogo dito por um corretor dequalquer uma dessas coisas que precisam de correção, a vidaemocional dos cangurus, as problemáticas trajetórias de Urano, osparticípios passados dos verbos da segunda conjugação. Apesar de você, jamais vou esquecer, deus nenhum medeixe, o fatal é que cheguei e disse aquilo, aquele palavrão quesignificava a irremediável intromissão da minha vida na vidadaquela figura, gesto cujas conseqüências os presentes vão poder,a seguir, apreciar em suas devidas dimensões. 5 Uma dessas confusões sorridentes onde as pessoas riemporque sabem que vão morrer no fim, e todo mundo disfarça aevidência de que tudo já está mortinho da silva, o vaso no centroda sala, a árvore estampada na cortina, e até os Stones na radiolajá exalam aquele fedor típico de múmia de faraó da vigésimadinastia, uma festa dessas em que alguém te chega, cigarro ereto,e fulmina: — Tem fogo? Seriam Stones ou Ella, como lembrar, tantas bucetas depois,como evitar este ponto de interrogação? 6 — Tem fogo? Isso lá é jeito de chegar numa dona, conversar com umasenhora, hein, seu isso e aquilo, que pensou ter atingido asabedoria? Mulher tem que ser abordada com vinte e cincocanhões de bolhas de sabão, princesa e flor do oriente, rosa deincenso, filé minhon da parte esquerda do meu cérebro, abre osbraços, isto é, os pássaros, isto é, faça-se a luz, paradise menow... 7 — A juventude pode acabar com uma pessoa. — Eu já vi essa religião. Deus morre durante a viagem. — Jotaerre?, dos Jotaerres de Birmingham!, mal possoacreditar que estou aqui, eu devo estar sonhando. — Vendo o apetite com que uma mulher chupa teu pau,nunca te ocorreu que pode não ser uma má idéia? — A lei, meu caro, só proíbe certos crimes porque são ótimosnegócios. — Inteligência em homem é que nem pau duro, mulheralguma resiste. — O crédito? É o câncer do mundo. — Qual é a ilusão que você me recomenda? — A inflação mundial, dinheiro produzindo dinheiro, sempassar pela produção, abstrações produzindo abstrações,sistemas puros, quero dizer, sem relação alguma com a realidade,porra, você me entende! — Milhões, milhões, milhões, um começou a gritar, umaidéia é a coisa mais cara que existe. E virando para todo mundo, todo mundo tinha cara, acomeçar por mim, de pânico, com aquelas luzes quem conseguianão ficar muito pálido, o pavor abaixo da pele, a bomba, a última

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guerra, o fim de. A idéia mais cara que existe. 8 Entrei no salão principal, um fósforo aceso no interior da luzabsoluta, adeus, matéria! A luz que sopra em cada partícula umvento em cada molécula que um vento sopra em cada instante emcada momento transformando tudo em luz, um halo só, a luzsuprema de uma festa, qualquer festa, bem-vindo, brilho, ossentidos que vão morrer te saúdam! A última coisa que vi, claro que foi, quem mais? Falavanuma roda de amigas, aquele ligeiro tédio de quem diz, não,querida, isso é impossível, a marquesa saiu às cinco horas. E lá vou eu, atraído pela lei da gravidade, até o óbvio, amatéria, a verdade, quem sabe. Ela irresistível como uma páginade papel em branco. Quem sabe a sabedoria, quem sabe, algumaoutra coisa. — Norma!, chegou alguém gritando como se. 9 Então, eu soube. Ela se chamava Norma. De normas, vocês sabem, o inferno está cheio. CAPÍTULO 2 l — Telefone para o senhor. Olhei para o mordomo, entre atônito e incrédulo. Telefonemapara mim? Aqui? Como? O professor Propp, meu analista, me garantiu, ninguém mereconheceria nesta festa. Segundo ele, nas histórias de magia e de mistério, onarrador está sempre ausente, nunca participando da festa, querodizer, das ações. Tentei explicar isso ao lacaio, que continuou impávido de pé,o telefone numa bandeja como uma lagosta, esperando,esperando, pergunta. Levei a mão ao aparelho, apavorado com a idéia de que tinhauma voz ali dentro, vinda de algum lugar, e tudo podia acontecer. O mordomo não mostrou sinais de vida quando minha mãoparou em pleno ar e comecei a lhe explicar os meandros dopensamento do professor Propp, para sua ignorância plebéia,eram menos interessantes que um peido, podia ver isso em suacara que consistia toda em uma superfície sem profundidade, umlago plácido com a fundura de uma folha de papel. O mordomo insistiu. Era comigo mesmo. Pensei, já quase suando. E se for “você sabe com quem estáfalando?” E que tal seu coração diante de um “fuja enquanto é tempo,tudo foi descoberto”? Insuportável imaginar um “desculpe, foiengano”. De qualquer forma, é contra meus princípios demonstrarfraqueza diante da criadagem. Levei a mão ao aparelho, com adeterminação de um coronel de hussardos de Napoleão levando amão ao sabre, bradando “carga!”. O telefone, agora, eu colava aquele búzio na orelha, e ouvi do

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outro lado o marulhar da vida, aquele silêncio febril de umformigueiro na primavera. As cacofonias da festa se multiplicavamem minha volta, enquanto me chegavam partículas de palavras,destroços de frases, poeiras de som: (...) tesão, o maior tesão (...),... me comer (...), meter de uma vez só (...), tudo aqui dentro (...)tudo, de uma vez (...). Tirei o telefone do ouvido, as orelhas ardendo com aquelaqueimadura. E olhei para o mordomo. Tentei olhar, isto é. Nadana minha frente, tinha se dissolvido naqueles rios de cabeçasgargalhantes, altos penteados, dentaduras escancaradas. Eu estava sozinho com um telefone no colo e, dentro dele,uma voz que dizia o que só se diz, bem, vocês sabem. Na mão esquerda, eu ainda segurava um cigarro poracender. Cheguei devagar o telefone no ouvido e do outro lado ouvi...merda!, tem uma coisa sobre a qual eu não quero falar. 2 Levantei os olhos devagar para o carnaval de luzes em minhavolta. Tudo parecia idêntico. As mesmas pessoas. As mesmasgargalhadas. Os gestos todos certos. A certeza. Só que tinha uma coisa errada. TUDO tinha mudado. Por segundos girei numa vertigem, sem saber o quê, em quê,por quê. Ah, por quês?, como atingir a sabedoria sem vocês, porquês,por quês, porquês, diabólica máquina das causas e efeitos. O quetinha mudado? Nenhum POR QUÊ?, por favor. TUDO. 3 De repente, tudo ficou pálido como se tivesse medo. Derepente, tudo ficou corado, como se tivesse vergonha. O ar ficoucorado. E tudo empalideceu, como, como é que foi mesmo que eunão dei pela ausência de Norma, aquela coisa gostosa entre asmulheres, sorvete reinando sobre meu reino de prazer com ummorango por coroa? 4 E como TUDO tinha mudado me dei ao direito de também.Meu rosto, de senhorial mudou para o desespero, de raivosopassou para o desânimo, em meu rosto, meu rosto mudou,rapidamente, flashes de slide projetados na cara de uma estátuapor uma máquina desgovernada. Me levantei, à procura de alguém conhecido, diante de mim,o desconhecido oeste selvagem, infestado de ursos e índiosantropófagos, nenhum amigo, nenhuma amiga, pratos célebres,unhas feitas por joalheiros inacessíveis, vozes estrangeiras,sotaques dissonantes. Levantar me fez bem. Circulei com segurança, sentindo meurosto voltar à forma primitiva, a cara que eu fazia antes, bemantes de começar este romance, meu romance com Norma. Respondi ao ligeiro cumprimento de um senhor parecidocom meu tio, provavelmente me confundindo com algum sobrinho,me aproximei soberano. — Os tempos estão mudando, comentei, certo de que otempo é um assunto universal bastante para interessar a todas as

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pessoas e de que a mudança é uma experiência geral. Ela não me respondeu. Seus olhos (opala? ágata?) meatravessavam, como se eu fosse uma vidraça entre ela e oMediterrâneo. Vamos mudar. Mas vai mudar assim na puta que o pariu. Me afastei com raiva em direção a um sofá que jazia numcanto, um hipopótamo verde-musgo e dourado, debaixo do granderelógio, que eu já sabia tinha pertencido ao tetravô do dono dacasa e da festa. Do dono da casa e da festa, já tinha ouvido falar muito.Sabia que era senhor de muitos recursos, e tinha se dedicado àcaridade, desde a morte da mãe, abastecendo com festas o tédiode gente como eu. Olhei para o relógio. Meia-noite e quinze, os ponteirosescreviam um L. Sentei e olhei em frente. Só existia uma verdade absoluta. TUDO tinha mudado. 5 Para melhor, para pior, pouco importa, essas palavras, beme mal, já não faziam diferença, não tinham mais nada a fazernaquele jogo, entende? Eu vivia uma circunstância absoluta, podiasentir os sintomas. Bem que meu analista tinha me prevenido.Mas eu lá tenho cara de quem vai atrás do papo de um judeuzinhoda Europa Central, óculos na ponta do nariz, a cabeça cheia deteorias e esquemas, caverna atravessada de teias de aranha, poronde voam vocês, morcegos milenares? A gente arrasta o rabo dodia-a-dia, os dias na esperança de um só dia, um momentomáximo, o campeonato nacional, a decisão, a final. Esta era afinal. Daqui para diante, só as florestas, os desertos, os pantanaise os céus da sabedoria. Mas foi triste que varei a sala, me debatendo entre as ondasde com licença e desculpe, perdão e tenha a bondade, até a mesado ponche. Jamais vou poder dizer se a tristeza, que me encheu como ovinho enche um copo, vinha da ausência de Norma ou deconstatar amargurado, e me resignar com a evidência gritante deque aquilo fosse o que era, a queda do império, a passagem docometa Halley, o primeiro lugar na lista dos sucessos, umabobagem dessas qualquer. Já era ciúme o que eu sentia com a desaparição de Norma?E o que fazer com a lição do professor Propp, mo não existe?Medo. Medo, sim. Quando senti medo, quase pude tocar com asmãos suas imensas distâncias, abismos intransponíveis, silênciosinsuportáveis, tudo aquilo que a gente sente diante do tigre, tudoaquilo que sobe e desce na espinha quando você pergunta: — É grave, doutor? O doutor Wiesengrund achava que quem sabe. E acreditavasinceramente que isso tudo tinha cura. Era da velha escola. Umpouco de ar puro, farta alimentação, muita abstinência de lipídios,e uma buceta de vez em quando. Para as senhoras, caralhos,evidentemente. Um pinheirinho de Natal, coruscante deesmeraldas e rubis, ao seu lado, a senhora Wiesengrund fazia quesim com a cabeça, a cada palavra que o eminente pentelho

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regurgitava. A cada minuto que passava, mais aumentava meu medo, eeu ficava cada vez mais feliz de poder gritar “terra à vista”, diantedaquele rato que me roía as entranhas, pólo ártico na boca doestômago, meu velho e querido amigo, enfim, um amigo, meuverdadeiro amigo, o pavor. A gente se conhecia desde a infância, o medo cresceucomigo. Quando eu era garoto, meu medo principal era que a casado meu pai desabasse. Mas era apenas o centro do terror. Destecentro se irradiavam miríades de medos, aquelas coisas que, comuma picada de frio na minha barriga, me enchiam a vida devibração e significado, os mínimos medos que cintilavam em volta,e se estendiam até os inumeráveis horizontes do desconhecido. Derepente, fiquei apavorado. A partir desse momento, não senti maisNADA. Estava na companhia de algo maior, muito maior,infinitamente maior que qualquer medo. TUDO tinha mudado. CAPÍTULO 3 l Aqui, ainda dá pra ver o cigarro por acender em minha mãoesquerda. Sou aquele mais magrinho ali no fundo da poltronaverde musgo, com cara de hipopótamo abatido. Ao meu lado, otelefone nas mãos do mordomo (naquele tempo, a gente chamavagarçons de mordomos: moravam em casa, nunca faziam cara feiae descendiam sempre de uma tradicional família de mordomos). Da esquerda para a direita, inúmeros nomes ilustres. Sentado no meio, o fotógrafo dirige a cena, sem se dar contaque a máquina estava fotografando sozinha. Atrás, na parede, o relógio marca meia-noite e quinze. Na foto, não saíram: o notável clitóris da Condessa Vronsky,as marcas de varíola do Coronel Hermógenes, boa parte das terrasdo Conglomerado União, representado no evento por seu vice-presidente, e o sorriso da cabeça de javali sobre a lareira está umpouco forçado, não passando, como se percebe, de uma relescontrafação do sorriso usado por Gary Cooper naquele filme deHoward Hawks, como é mesmo o nome, meu Deus, como amemória é solúvel em álcool! E Norma? Cadê Norma? Sua ausência grita nesta foto comoo mais agudo ahhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh que olhoshumanos já ouviram. A foto também não registra o cheiro de queimado que senti,desde o começo, mas, bem... Tem uma coisa sobre a qual eu nãoquero falar. 2 TUDO TINHA MUDADO. E uma angústia deste tamanhocomeçou a tomar conta. Um desassossego, que botou no chão, diante de mim, o ovode uma pergunta: que é que esta festa está comemorando? Quando me disseram para vir, só disseram, uma festa. E euvim sem saber o que se celebra. A idéia de uma festa sem objeto, uma festa que nãocomemora nada, me pareceu tão absurda quanto, sei lá, quanto asúbita visão de uma coisa-em-si. Ora, conforme o professor Propp,

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meu analista, as coisas em si só existem na imaginação. Ora, ora,não era o caso desta festa, coisa que todo mundo vai podercomprovar a seguir. Casamento, não era. Faltava no ar aquele clima venéreo,venusiano, dos casamentos, onde todo mundo ficava olhando paraos noivos, viajando nas sacanagens que eles logo vão estarpraticando, todo mundo vê nas bochechas vermelhas da noiva ofogo da expectativa de dali a pouco estar levando um apaixonadocaralho na buceta, no nervosismo do noivo, aquela perguntaclássica: por que é que esse bando de chatos não dá o fora logopra eu poder comer esta mulher em paz? Não, não havia esseclima. Olhei para o alto, e girei o olhar. Não havia cupidos voandoem volta da mesa. Busquei outros sinais, sinais de qualquer um dessesacontecimentos que vão da vida até a morte, batizados, bar-mitzvas, noivados, bodas de prata, colação de grau, exéquias, veló-rios, guardamentos. Nenhum sinal. Perguntei ao vestido das mulheres, a seuspenteados renascentistas, e nada. Não é do meu feitio suportar muito tempo coisas que eu nãoentendo. Esses lustres, esses candelabros, essa luz toda não memerecem. Minha integridade exigia uma medida enérgica, minhahonra tinha que ser lavada em distância. Levantei da poltrona verde-musgo e dourado. Deixei para trás o gratuito cacarejar das damas presentes, eme encaminhei para a porta. Saí da casa, e entrei no vento, caminhando em direção aocarro. Tive que manobrar muito para me desvencilhar de todasaquelas máquinas caríssimas como seus donos e donas. Lancei um olhar, não sei se de desprezo ou de despeito, paraaquele imenso casarão iluminado no meio do mato, onde rolavauma festa que não me queria. Peguei a estrada, e tomei a direção da cidade. Quando consegui estabilizar minhas emoções e atingi aqueleestado meio neutro, meio mecânico, que os carros exigem dosseus motoristas, algo entre o sono e a extrema vigília, nessemomento, a tempestade caiu. E veio com tudo. Tive que parar à margem da estrada, esperando passar.Passar a chuva. Passar o tempo. Passar a maldita vontade devoltar. Apanhei um cigarro. Mas cadê o isqueiro? Tinha certeza deter deixado aqui a caixa de fósforos de papel daquele hotel. Nada. Eu estava sem fogo. E tive que me resignar. Foi principalmente esta falta de fogo que me fez lembrarNorma. E só então me dei conta que não conseguia lembrar dasfeições do seu rosto, nem da cor dos cabelos. Nem saberia dizer seera jovem ou madura. Dos outros convivas eu lembrava com nitidez, a memória,dizia o professor Propp, é a minha grande virtude, e, por isso, afonte de todos os meus males.

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Propp sempre me diz: — Esquece, esquece mais. Esquecer faz bem. Eu prometo me lembrar disso. E ele diz: — Está vendo? Já está lembrando de novo. Contra o bloco nítido daqueles convivas todos, dos quais eulembrava cada detalhe, a figura de Norma se destacava como umamassa de amnésia. Devia estar muito distraído quando fiqueividrado nela. Não sabia quem era, mulher de quem, comida de quem,quem pagava seus luxos, a que casas, a que fortunas estavaligado seu destino. Que será que fazia? Exercia a caridade? Atacava osviandantes à noite? Desenhava modas? Tocava a 7a Sonata deChopin no piano? Cavalgava aos domingos? Assistia filmesproibidos em seções privadas? Batia no marido? Açoitava oscriados? Colecionava amantes? Freqüentava igrejas, capelas,terreiros? Todas essas perguntas empalideciam diante de uma: voltoou não volto? Dei meia-volta, e voltei para casa. 3 Faltava um quilômetro para chegar na casa, quando sentium problema no carro. Parei. Conferi tudo, nada. O sacolejo queeu tinha sentido era meu próprio coração batendo do lado dedentro, louco para sair. Lembrei (maldita memória!) que Propp tinha um conselhopara ocasiões em que o herói se encontra numa situação comoesta. Mas não consegui lembrar do conselho, maldito Propp, otratamento estava começando afazer efeito. Engoli, mandando meu coração voltar para as profundezasdonde tinha emergido, que lugar de coração é lá em baixo. Fiz a curva para entrar no caminho que levava até a porta dafrente da casa. Não gostei do que vislumbrei. A casa, completamente àsescuras. Um pedaço de treva mais escura contra a trevaligeiramente mais azul, depois da passagem de um dosrelâmpagos tardios da tempestade que se afastava. — A tempestade apagou a luz, pensei. Mas cadê aquela multidão de carros estacionados em frente? Apagou a luz e todo mundo fugiu para suas casas, mereconfortei. Ainda bem que o professor Propp sempre me alertou,a lógica não passa de uma média estatística, uma probabilidade:não era provável que eu estivesse nesta festa, que passasse porNorma e quase não a visse, que recebesse aquele telefonema, esaísse, e chovesse, e não tivesse fósforos, e eu voltasse, não eraprovável que eu saísse do carro, fosse até a porta e batesse. Bati uma vez. Esperei. Na orelha esquerda, nada. Na direita,nada. Mas será possível que não sobrou ninguém? Alguém deve terficado. Bati de novo. A chuva voltou a cair imediatamente, como sequisesse levar aquela casa a nocaute no segundo round, meucoração batia, punch, jab, cross, direto.

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Bati de novo. E de novo. Até que ouvi aquela voz maravilhosade um trinco se abrindo numa porta que você quer abrir. O velho criado pôs a cabeça na fresta da porta entreaberta. — Está perdido, cavalheiro? — Não lembra de mim? Acabo de sair daqui. — Perdão, senhor? — Eu acabo de sair da festa. Mas voltei. — Que festa? — A festa que estava havendo aí quando eu saí. — Mas, senhor, a festa vai ser amanhã à noite. Nessa hora, um relâmpago estralou como um ovo que cai nafrigideira. Fiquei ali, anulado, esperando o trovão passar e ir fazerbarulho lá na puta que o pariu. O criado me trouxe de volta à vida: — Mas se o senhor quiser, está chovendo tanto, as estradasestão perigosas, se o senhor quiser passar a noite aqui, tenhocerteza que meu patrão terá o maior prazer em hospedá-lo,senhor? Disse meu nome e entrei, tirando o casaco molhado. A casa estava completamente às escuras. — Deixe-me acender alguma luz, o criado ouviu meuspensamentos. Fiquei ali, no escuro, aquela vergonha de perguntar o óbvio. Uma luz se fez. Outra. Velas acendiam velas. Candelabrosarreganhavam as dentaduras pela sala. Nada. Nenhum sinal defesta, havida ou por haver. Segurei. — Muita gente na festa amanhã?, perguntei. — Ah, senhor, isso ninguém pode dizer. Enquanto o criado acendia luzes e mais luzes, dei umPasseio pela sala. Estava tudo lá, a poltrona-hipopótamo, a cabeçade javali na parede, a mesa, o piano. Me aproximei. Sobre o piano,as fotos de gente cujas caras não me diziam nada. E, de repente, AQUILO! Pensei que já tinha visto tudo, mas aquilo tinha passado doslimites. Era um escândalo, um insulto à realidade, à santíssimalógica das coisas, e eu explodi: — Mas o que é isso?, gritei, agarrando a foto com uma mão ecom a outra o pescoço do criado. — Isso o quê?, meu senhor? — Esta foto. — É apenas a foto de uma festa. — Quando foi essa festa? — Não sei, meu senhor. Larguei o criado, que se afastou alisando o pescoço. Olhei bem para a foto, à luz de todos os candelabros. Não havia a menor dúvida. Era a foto que tinha sido tiradana festa, da qual eu tinha acabado de sair e, agora, não existiamais. — Quer comer alguma coisa antes de subir a seusaposentos, senhor?

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Nem ouvi a pergunta. Fiquei ali, estarrecido diante daquelafoto. Só que olhei um pouco mais atentamente. E descobri.Norma. Norma está nesta foto. E eu não estou. A vertigem subiu pelas minhas pernas como uma câimbra. Eu estava certo. Não podia mais haver engano. A verdade meatingiu no meio da testa. TUDO TINHA MUDADO. 4 Quanto tempo dormi na cama onde o criado praticamenteme jogou, depois do meu choque com a foto, depois que minhaconsciência colidiu com aquela imagem, como um avião se chocacontra uma montanha? Voltei a mim dentro da noite total. O quarto, treva pura. Mais treva não seria, se eu tivesse ficado cego. E daí comecei a ouvir aquele som, uma coisa doce vinda dealgum lugar e de toda parte ao mesmo tempo, uma voz, sim, erauma voz, uma voz de mulher, em algum lugar no espaço e notempo, uma mulher cantava, e coisas além do meu entendimentoqueriam que eu estivesse ali, escutando, como se ouvir aquela vozpudesse ser a razão de ser de toda uma vida, aquela voz doce queparecia iluminar a meia-noite com todas as vias-lácteas de que océu é capaz. CAPÍTULO 4 l Um dia, ainda vai ser conhecida a verdadeira natureza dasminhas relações com o professor Propp. Até hoje não sei comotantas intrigas puderam se tecer em torno de alguém com umabiografia tão exata quanto ele, figura dedicada, de corpo e alma, àciência, para ele, a rabínico-cossaco-prussiana disciplina dopensamento e da vida se organizando em esquemas. Propp escrevia seco, mas muito bem. Seu principal romance,porém, que merda!, ainda não saiu à luz. Esse escafandrista dasprofundezas humanas, discípulo direto de Freud, que discutiu,como ele invoca, com Reich, Férenczi e Jung, ele deixou umahistória que, se ainda houver um resquício de luz e amor nahumanidade, um dia, vai ser publicada. É a “Morfologia do Conto Maravilhoso”, admito, um nomeum pouco abstrato para uma obra de ficção. O singular no caso foi o uso que ele fez desse seu romanceno tratamento de gente como eu, como nós, nós, quefreqüentamos a caverna de Propp, e perguntamos: — Tem jeito? E ele diz: — Diga A. E nós todos dizemos, ah, hoje não vai dar. Com o perdão das senhoras presentes, me estendo umpouco mais sobre esse romance que viria a ter um papel tão, tão,tão, como direi?, em minha vida, por puro medo de que essahistória nunca venha a ser publicada, privando a espécie de umade suas obras mais, mais e mais, daquelas que dá pra segurar namão e brandir para as estrelas dizendo: vocês não perdem poresperar.

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Nada poderia ser mais estranho para o leitor habitual defábulas, ávido por emoções fáceis, detalhes picantes ou registrosagudos do cotidiano, arquiteturas redondas e enredos envolventes. Não Propp. Seu romance é abstrato. Quer dizer, um romance feito detodos os romances, seus personagens são todos os personagenspossíveis. Como isso foi possível, só o gênio do professor explica, e ogênio é inexplicável, como nós todos, seres gasosos dos pantanaisde Canópus, sabemos. O fato é que descobriu que todas as histórias, no fundo,constituem UMA SÓ HISTÓRIA. E aplicou-se a descobrir a cadeiade constantes, a lei lógica e matemática que rege a geração dosenredos, o vertiginoso movimento das constelações queconstituem uma intriga. Todo entrecho, para ele, reduz-se à combinação de algumasfunções básicas (trinta e uma, se não me engano: um dia,perguntei por que um número tão quebrado, por que não trinta ouquarenta, e ele me respondeu com uma frase latina, saiam dafrente, Virgílios e Cíceros, algo assim como “num-merus impardeis placet”, aos deuses agradam os números ímpares, e rematoudizendo que, por mais que a gente tentasse reduzir a realidade e avida aos números pares, elas sempre seriam ímpares, os paresnão passando de uma mera fantasia humana, o médico e omonstro, o casal perfeito, Sansão e Dalila). Em nosso último encontro, fantasiava uma psicanálise doímpar. — Ménage à trois, professor? Claro, o romance de Propp não era, apenas, mais umadessas obras destinadas, apenas, a proporcionar prazer a umleitor eventual. Propp não. Ele era médico. Queria curar. Quer dizer, dizerNÃO ao real, que quer a doença. Não à inexorável lógica última esuprema de todas as coisas e de todos os processos, aquela coisaque quer que a pedra caia quando jogada pra cima, o que querque seja que quer que as flores nasçam na primavera e no invernoa gente tenha que usar cinco (ímpar!) roupas sobre o peito. De Propp, fica esta idéia, tenho certeza. A saúde atravésdaquilo que ele chamava Funções dos Personagens, e suascambiáveis, mas previsíveis combinações. Não ficava perguntando se você já tinha alguma vez tido avontade de chupar a buceta de sua mãe para voltar ao útero, e,mamando, acabar com tudo isso, de uma vez por todas. Ou sevocê tinha fantasiado ver o saco do seu pai servido num prato aomolho pardo. Grande diretor de cena, em um minuto, você já estavapassando da Função 1 para a 4, da 3 para a 7, da 6 voltando à 2,uma máscara atrás de outra máscara atrás de. Cada uma das Funções, até 31, tinha um nome e umadefinição precisas (uns dois anos para decorá-las todas, no rigorda sua ordem: enquanto isso, quem vai ter tempo para terproblemas psíquicos?).

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O sucesso obedecia ao seguinte esquema, este é o esquemado fracasso do herói. A felicidade, lembro, seguia o esquema,personagem sai de casa, enfrenta os perigos do mundo,personagem volta pra casa. Nesse meio tempo, eu, você, Hércules, Ulisses, Kennedy,Alice, Fausto, Adão, Guilherme Tell, Robin Hood, Frankenstein, oherói, enfim, passava, a gente passava por certas peripéciasbásicas, sempre as mesmas, só mudava a ordem. Era confortador. E era apavorante. Gostoso saber que vocêpertencia a uma lógica maior que você, um fundo contra o qualtua figura se projetava. Mas eu me cagava de medo de saber queviver, então, era só isso, e assim, e não de outra forma. Preparava, pouco antes do seu trágico desaparecimento,urna retórica do desejo, que o tempo não permitiu acabar. Da“Retórica do Desejo”, guardo ainda algumas notas, pepitas de ourorecolhidas nas enxurradas da vida. 2 Acreditem ou não, era nele e seus esquemas que eu pensava,deitado lá dentro daquele quarto escuro, ouvindo aquela voz,aquela voz única, no fundo, a única que eu ouvia desde que tinhachegado naquela festa, festa, aliás, que não houve, ou não tinhahavido, ou, enfim, tinha caído num número ímpar qualquer, comoo professor Propp tinha previsto. Ou qualquer coisa assim. CAPÍTULO 5 1 Nem precisa dizer que levantei da cama, vestido comoestava, e tateei em volta. Enfiei a mão no bolso à procura defósforos. Andei até a parede, bati, e comecei a apalpar, procurandoa luz, vivendo naquela voz, como se vive dentro de uma vida, porquanto tempo não consigo determinar nem com precisãoaproximada: no escuro e no silêncio, tempo é coisa muito relativa. Quando consegui sair do quarto, desci uma escada edesaguei no grande salão, o salão da festa passada, a que nãohouve, o salão da festa que vai haver, e, que, provavelmente, quemsabe. A voz enchia o ambiente como um dia. 2 De repente, a voz parou, e eu me achei ali, acho, de pé,sozinho, no meio do salão, algo assim, assim como se, digamos,um rio que eu navegasse secasse de chofre, e a gente lá remandoque nem um idiota no meio do deserto. Uma fúria desgraçada tomou conta. E comecei a esmurraras paredes, gritando: mais, mais! — Chamou, senhor? O criado entrou estúpido na sala, fechando o roupão comouma banana que tentasse fechar sua casca depois de descascada. — A voz! Cadê a voz? — Voz, senhor? — Porra, a voz que estava cantando até agora mesmo! — Não ouvi voz nenhuma, senhor. Aliás, nem seria possível.Nesta casa, só estamos o senhor e eu. Vertiginei.

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A idéia de uma voz sem dono, passeando, enchendo a casa,não estava nos meus planos. Insisti: — Tem certeza? — Absoluta, senhor. Ainda bem que ainda tinha gente com certezas absolutas. Eu já não tinha mais nenhuma. Ou quase nenhuma, o que éainda pior. Dispensei o criado, com um olhar que agiu com o efeito deum golpe de judô, e voltei à minha perplexidade. Mal o serviçal se retirou, comecei a procurar uma portasecreta. Se bem me lembro, em alguns filmes, a chave secreta ficavapor aqui, quem sabe, aqui, ora, como é que não pensei nisso?Aqui! Não, não era aqui. Se não era aqui, onde? A voz que ouvi vinha de baixo. Para baixo, portanto, era paraonde eu devia ir. Nessa hora, ouvi a voz do professor Propp: — Em caso de dúvida, vai abrindo portas. E portas eu fui abrindo. Uma dava para uma escada quedescia. Adivinhe se eu desci. 3 Norma cantava. E então vi Norma. Vi no sentido mais pleno de ver. Ver comoquem nasce, como quem goza e morre. Lá estava ela, nua como um susto, deitada naquela cama,cercada pelos três paus duros. Repousava entre as pernas do maismoreno, cabeça inclinada sobre seu caralho, a cabeçorra roxadespontando entre seus cabelos. Um outro, parecia ser o maismoço, beijava sua bunda. E o mais avantajado olhava a cena,acariciando o pau de leve, como quem mantém calma uma pombapara que não voe. Congelei. — Sabia que você vinha, ela disse. Nunca tinha ouvido sua voz (ou tinha?). Mas sabia que era avoz que cantava ainda há pouco. E não havia dúvida, era a vozque eu tinha ouvido naquele telefonema durante a festa. Foi um momento, e ela me chamou com um aceno de dedo. Tirei a roupa, entrei no rolo e fui fundo. 4 No escuro e no silêncio, tempo é coisa muito relativa. Voltei a mim um pouco antes de amanhecer, aquela horaque, dizem, é a mais escura da noite. Tinha dormido com roupa e tudo, o criado só tinha mejogado uma coberta por cima, e senti as barras da calça aindamolhadas pela tempestade que atravessei para voltar até aqui. CAPÍTULO 6 l — Inclusive o monstro do Lago Ness. — Ness? Pior: tudo pode acontecer dentro do mesmo parágrafo,reclamava me sacudindo pelo colarinho, como se eu, logo eu!,pudesse fazer alguma coisa e impedir aquela história monstruosa

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de existir, avançar, recuar, rodopiar, corromper. Um dia, tinha que ser, a pergunta saiu naturalmente: — Que tal aplicar o esquema de funções a essa coisa? Talveztenha cura. Deus é grande, professor. Uma semana me olhando a zero graus centígrados. 2 — Quais vão ser os convidados?, fiquei pensando na cama,antes de levantar, o cigarro apagado numa mão. Imaginei uma festa que eu mesmo desse, uma festa, porexemplo, para comemorar o meu fim, digamos. Diria a cadaamigo, colega ou conhecido: — Olha, amanhã vou me matar, e gostaria antes de celebrarcom alguns amigos. Só o pessoal mais chegado. Uns trezentos,trezentos e cinqüenta. 3 Façam as listas, senhores, faites vos jeux, faites vos jeux,quem você convidaria? Deste lado, os entes imaginários maisqueridos, mamãe, papai, o professor Propp, tia Verônica, adoutora Margaret, a namorada do Marcelo, as irmãs Consuelo, ofilho do seu Djalma, o Eusébio e a Sheila e toda a família doMário. Isso sem falar nos Tavares de Lima, nos Cabral de Mello,nos Cavalcanti Proença, os da Silva Ramos, os Pereira Carneiro,os Leitão da Cunha, os Loyola Brandão, isso sem falar naquelesoutros lá, que estão olhando, com uma cara pedincha, esperandoentrar na lista a qualquer momento. Deste lado, as pessoas de carne e osso: King-Kong, BruceLee, Greta Garbo, O Homem Que Ri, O Velho E O Mar, JesseJames, Erik Leif o Vermelho, Madame Bovary, Hugh SelwynMauberley, Moby Dick, El Cid, Kublai Kã, Corisco, Rett Butler,Gregory Peck, Rrose Sélavy, a hipótese, Drácula, a medusa, D.Sebastião, o quadrado da hipotenusa, a felicidade universal,things like that. Todo mundo, menos Nostradamus, por favor. E quanto a você? Que tal, convidaria a si mesmo? Sem você, não vai ter a menor graça. E, não tem dúvida, vaiser uma festa e tanto. 4 Prezado Herr Doktor Proféssor, eu só queria saber por que nessa históriatodo mundo tem nome, menos eu atenciosamente, menos eu. CAPÍTULO 7 l Ainda tinha meio-dia e mais sessenta minutos pra fazer deconta que vivia um pouco, antes de tudo começar. O estupor luminoso que, dizem os seres gasosos dospantanais de Canópus, explode nos epiléticos treze horas antes deum ataque, o abismo lá no fundo, na boca do estômago, 31 grausabaixo de zero. Até esqueci, na excitação, não sei bem se no aeroporto ou narodoviária, o incidente besta da noite anterior, quando, ridículo,

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cheguei a pensar que a festa já tinha começado, quando, bem, todomundo sabe como é que são essas coisas. Era natural. Natural que tivesse esquecido tudo, o esboço defesta, minha saída, a tempestade, minha volta, a voz absoluta. Perfeitamente natural que eu tivesse esquecido Norma.Norma? Alguém se lembra? 2 Conheci uma Norma antigamente, mas não era esta, essaNorma dos meus contos dos bosques de Viena. Chamava-seNorma Propp, filha do meu analista. Como aconteceu, nemperguntar. Foi rápido, muito rápido, rápido como um rosto ficapálido. Não era grande coisa. Mas nos vimos coisas um no outro, e abesteira estava formada. A gente se foi a primeira vez numaporção de coisas. Sei lá que importância isso tem, mas as pessoastendem a atribuir virtudes mágicas às primeiras vezes. Seja lá doque for. E assim primeiras vezes fomos, Norma e eu, muitasprimeiras vezes. 3 Nunca te ocorreu não merecer tudo aquilo que você tem, outudo aquilo que você tem que suportar? Então, não conhece omelhor da vida. Norma Propp não era assim, exatamente. Não quefosse nenhuma maravilha. Ao contrário. Era sólida, algo assimcomo mulher dos signos de Leão, Touro ou Escorpião, uma coisasem mistério, escorregadia como os esquemas do pai. Dele, herdou algumas coisas. A precisão com que atingia teuolho na primeira porrada. O absoluto desprezo pela opinião alheia.A mania de coçar a orelha quando pensava. Da mãe, veio tudomais. A simplicidade camponesa. A virada imprevisível. A certezade estar sempre com a razão. CAPÍTULO 8 l Vejam bem, quando digo sabedoria, não estou querendodizer saber como as coisas funcionam. Isso é fácil. Um pouco denão sei quem, um pouco de como é mesmo o nome, e a leituradiária dos jornais, e uma cabeça de segunda imagina que sabe oque está aí. Mas o que se passa, mesmo? Quem sabe, ficar pasmos seja nosso papel, e isso é tudo. TUDO que ele sabia fazer por mim era me transformar numnúmero de um de seus contos de magia e maravilha, ora herói, àsvezes vilão, pivô da história num bangue-bangue bem vagabundo,desses que a gente já adivinha tudo desde a largada, desde oprimeiro tiro, desde o massacre da família do pistoleiro por umaquadrilha de mexicanos, até o duelo final entre o deserto e ossobreviventes. O caso com Norma Propp começou eu me queixando dessastécnicas do pai. Como não percebi logo que encontrá-la era (eu não sabia) avariante B da função 9, “herói se apaixona pela filha do pai”? Contei isso, ela riu, riu, mas riu tanto que seus peitos nusbalançavam como maçãs numa macieira chicoteada por umatempestade.

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2 Uma chance em um milhão que eu viesse a me apaixonar porNorma Propp. O que eu queria da vida não era v;da pra ela. Nem sei, aliás, se cheguei a estar apaixonado por NormaPropp. Afinal, o que é que significa isso? Quem não sabe, nofundo, amor é invenção do coração da mulher, que ela tentavender para o primeiro que aparecer e o seguinte, e o seguinte, e oseguinte, e assim por diante até aquela cena de sangue num barda Avenida São João, que só vem para provar, de uma vez portodas, que alguém e ninguém não são iguais, e dali saem paralamber o sangue de suas patas, meditando a próxima vingança.No fundo, toda diferença é insuportável. O ímpar do professorPropp, a gente quer tudo par. Norma era qualquer coisa assim como uma espécie deenfermeira e secretária do pai. Um dia, num encontro maisviolento, no fim do terceiro round, Propp exigiu que eu lhecontasse uma coisa que eu não digo nem pra mim mesmo. Acheium atrevimento, uma absurda invasão dos meus espaçosinteriores, mesmo vinda da parte de quem vinha, ou por issomesmo: — Tem uma coisa sobre a qual eu não quero falar, eu insisti. Propp insistiu. Eu perseverei. Ele reiterou. Eu recalcitrei. Elefez questão, eu também, e, no calor da luta, comecei a sentirvertigens, calafrios, enjôos, câimbras e ânsias de vômito. Propp chamou a filha, ela me levou até o banheiro, onde eudespejei no vaso três funções, quatro traumas, e só não saiuaquele dilema porque, bem, por quê? — Te amo, ela disse, enquanto segurava minha cabeçadentro da privada. Virei a cabeça, olhei para ela e sabia que estava perdido. CAPÍTULO 9 l A primeira vez com Norma, ela tomou a iniciativa já de cara,já veio de boca no filé minhon. Não era exatamente a idéia que eu fazia do verdadeiro amor. Ainda bem que mais apetite voltou logo, ela abriu as pernaspara mim, me segurou pelos cabelos, e me trouxe boquiaberto atésua fenda que sorria, vertical. Pulou na minha língua como sópula cavalo de raça à primeira chicotada. Agora, eu queria mais. Muito mais. Mais fundo. Abracei-a, emontei. Ela me empurrou, e eu caí de costas aos pés da cama, opau duro, apontando para o teto. — Pensei que você tinha entendido, ela gritou. Só então comecei a entender. Não era ainda a sabedoria.Mas já era alguma coisa. Enquanto ela se vestia, insultada e fula da vida pelaviolência do meu ataque, bolei mais uma categoria de Propp, oúnico jeito que achei para evitar o assassinato de Norma Propp. 2 Outras vezes, enquanto a gente rolava entre os lençóis,grudados de porra, molhados de todos os líquidos que se trocam

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na cama, ela me falava, meu pau duro badalando entre suascoxas brancas, louco pra mergulhar de volta aos oceanosprimordiais, antes da dor, da angústia e da consciência, mesmoali me falava de quanto aquilo era importante para ela. Não quequisesse com isso se valorizar para alguém futuro. Já tinharecusado várias propostas, uma, inclusive, milionária. Só que lherepugnava a idéia de alguém furá-la, dilacerar parte do seu corpo,com um órgão que funcionava como uma arma, a arma primeira eprotótipo de todas, a Ur-Waffe, dizia seu pai, e será por isso quevocês são tão violentos, por que têm essa coisa dura no meio daspernas, e nós já temos essa ferida pronta para receber o golpe, porque é que as coisas tinham que ser tão sangrentas? Dizia, quasechorando, e já caindo de boca, engolindo tudo, duro ou mole,como se voltasse para uma pátria muito querida e muito distante. 3 Tinha vez que eu saía diretamente das esbórnias com Normapara as teorias e esquemas do seu pai. E era muito estranho. Pai efilha tinham os mesmos olhos, azuis, agudos, lúcidos. Olhos dequem sabia. Só que Propp não sabia de nada entre eu e ela. Pensava quenossas relações eram as normais relações sujeito-objeto, entreenfermeira-paciente. E eu entrava em seus jogos de herói-sai-de-casa, herói-enfrenta-perigo, com o cheiro da buceta da sua filha em meusbigodes. Numa dessas vezes, entendi que eu não era louco. Tudo eramuito louco. 4 De noite, ia até o observatório cumprir o tempo que mefaltava para concluir o curso, aquele absurdo que minha famíliaabominava. — Só o que faltava. Filho meu passar a noite inteira olhandoestrela. Vai morrer de fome, e eu vou ter que pagar o enterro! Meu pai não tinha muita paciência com elas. Pior para ovelho. As estrelas iam durar mais que ele. Padecia de um dos males mais comuns da sua turma: ver ofilho médico, advogado, engenheiro, um filho cheio de dinheiro. Elá estava eu que não sabia nem para que o dinheiro servia. Nemimaginava que ele trabalha sozinho, que pode fazer milagressozinho, crescendo, num banco, como os pães e peixes que Jesusmultiplicava. Pois até no Observatório Norma ia me visitar. Me provocarcom suas coxas grossas em vestidos curtos. Me trazer de volta dasvastidões azuis do espaço para o ouro e o chocolate e o leite dapele humana, depois de exposta ao sol. Claro. Eu sempre saía. A gente tropeçava de motel em motel,até achar um lugar vago para se rolar, se chupar e se mascar. Quase cheguei a pensar que amor era apenas aquilo. Umacoisa lésbica, lingüística, deglutiva. Um dia, depois de três horas daquilo tudo, arrisquei: — Tem certeza que não está faltando nada? Ela hesitou. E quando entendeu:

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— Não, não está faltando nada. 5 Resolvi tirar todas aquelas lembranças da cabeça, tinha quepreparar o espírito para a festa. Ainda bem que estava com o sonoatrasado. Comi, e voltei para a cama. Fechei as cortinas, fingi que era noite, e dormi até bem maistarde. Bem mais tarde do que eu pretendia, confesso. CAPÍTULO 10 1 Acordei com uma explosão. Mais uma. E mais outra. A casatoda tremia com silvos e explosões. De duas, uma: ou a hora finaltinha soado. Ou a festa ia começar. Ou as duas coisas ao mesmotempo. Ou se tratava de uma terceira alternativa? Fui até a janela, e o céu estava em chamas. Rodas de fogoespirravam lágrimas de todas as cores, para todos os lados, umachuva de brasas, as estrelas tinham enlouquecido. Então lembrei vagamente de uma frase na festa sobre comotinham estado lindos os fogos de artifício. Eu estava assistindo ao começo da festa. 2 Uma vez, fui com Norma passar uns dias numa casa decampo que o professor Propp tinha, aquela que teve que venderpara pagar as aulas de violoncelo, instrumento que era a loucurado velho. A gente ficou, Norma e eu, deitados na grama, de mãosdadas, a cara dando direto para o céu pinicando de estrelas,aquela luz tão aguda que doía nos olhos. E começamos a chorar,sem nem mesmo saber a troco de quê. Talvez a gente chorasse porque elas estavam tão longe. Talvez fosse por que a gente ficava tãocoisa alguma debaixo daquilo tudo. Talvez a gente estava só comvontade de chorar, e pronto. E assim a noite estrelada passou por cima de nossaslágrimas, como um rei vitorioso passa a cavalo por cima doscadáveres do exército inimigo derrotado. Mas o frio da noite secava o que a gente chorava. E, na falta de ter alguma coisa para dizer, comecei: — Aquela é Andrômeda, na constelação de Órion. Era a filhade um sacerdote de Apolo, Júpiter se apaixonou por ela, novemeses depois ela deu à luz a uma menina. Júpiter, que queria umfilho homem, transformou a mãe em estrela e a filha num cometa,que, nas noites de julho, dá pra ver passando perto da estrela, é afilha de Andrômeda querendo mamar. E daí choramos mais ainda, choramos a dor da filha deAndrômeda, cometa engatinhando atrás dos seios da mãe. De repente, começamos a rir como dois imbecis. Aquilo eratudo ridículo. Dois adultos olhando para as estrelas, e chorando. Norma formulou, enxugando as lágrimas: — Primeira estrela que vejo, satisfaça meu desejo. Perguntei: — E o que é que você mais deseja? Uma noite e tanto. Voltamos para a casa, eu com o queixo

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doído, e vários pentelhos presos entre os dentes. 3 Tinha que me apressar. Debaixo de mim, já podia sentir vidatrepidando, portas que batiam, passos de muita gente, vozes,ordens, copos tilintando, talheres tremendo nas bandejas, carrosfreando, motores batendo como um coração. A festa!, como é quepodia ter esquecido? Minha roupa estava um horror. Tinha apanhado muitachuva, ao voltar para a casa, quinze minutos batendo na porta atéo criado abrir. Dormindo, a roupa tinha secado. Mas eu estavatodo descomposto, a calça sem vinco, o paletó como um dessesbilhetes que a gente amassa, joga no lixo, depois se arrepende, vailá, desamassa e lê: — Oito horas sem falta... 4 De cara, encontrei um conhecido. É herdeiro de uma grandefábrica de fitas para máquinas de escrever, que exporta até para aGuatemala e a Tanzânia. A gente se conheceu no consultório do professor Propp. Tem uma idéia fixa. Meteu na cabeça que o Pentágonoimplantou uma microbomba atômica no interior do seu cérebro,um pouco abaixo do cerebelo. E lá está ela, esperando para seracionada. Está certo que a guerra atômica vai começar com aexplosão da bomba que carrega em seu cérebro. A bomba seráimediatamente detonada no momento em que disser umadeterminada palavra, evidentemente que não diz qual. Se disser, avibração exata daquelas consoantes e vogais ativa o mecanismo dabomba, e o mundo vai pelos ares, a começar pelo cogumelo que selevantará da sua cabeça. Propp sempre teve muita paciência com ele. Aquele jeito doPropp, vocês sabem, não diga nada, só fique aí, me conte tudodesde o princípio, não diga nada que não quiser dizer, dizer não étudo na vida, que tal um cafezinho, já ouviu falar na história dopríncipe que saiu de casa e encontrou o dragão, a bela que, nofundo, era uma fera? Me reconheceu assim que cheguei em sua frente. E já começou gritando: — Sai!, sai!, que eu digo a palavra. E virava para a vasta assembléia de penteados caríssimos ebigodes espantados: — Eu vou dizer a palavra! Eu vou dizer a palavra! Juro! 5 Me afastei discretamente até um casal ao lado, suportei oolhar crítico em direção ao amarfanhado das minhas roupas, earrisquei: — Beber sem comer é nisso que dá. Era uma frase idiota como qualquer outra das que estavamsendo ditas naquela festa. Melhor isso que a palavra do lunáticoque explodiria a bomba atômica implantada em seu cérebro. O casal comentou que era uma pena um cavalheiro deaparência tão distinta dar um vexame daqueles. Também achei. Ogarçom passou com uma bandeja. Me casei com um copo de

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uísque, e fomos felizes juntos durante alguns quinze minutos. Daí, eu vi. 6 — Coisa de velho. Sabedoria é coisa de velho, tesouro. Foi o que Norma me disse, um dia, depois de uma tardeinteira de, bem, vocês sabem, aquelas coisas todas que vocês nemimaginam. — Sempre fui velho, respondi, aquele sábio chinês que dizemque já nasceu com oitenta anos. — Também não vamos exagerar, ela respondeu, meagarrando pela cintura. — Norma, perguntei de repente, como se alguém estivesseapertando meus bagos, você chega a me amar? — A um velho como você? Não seja ridículo. Estava brincando, eu acho, é claro. Com as normas, nem ébom facilitar, nunca se sabe. Mas acho que sim, ah, vá sorrirdaquele jeito que sorria quando me via. — Não acredito, experimentei a bola no canto esquerdo. — Prove. — Você não deixa. — Que tal mudar de assunto? 7 Com aquela cara de homem fingindo estar interessado nopapo de uma mulher apenas porque está com vontade de comê-la,com aquela cara de mulher costurando e bordando pensamentosapenas porque está a fim de ser comida por ele, cheguei,caprichei, relaxei, e não perdoei: — Tem fogo? 8 Norma brilhava no meio de uma roda de amigas, contandoalguma história que as divertia demais. Minha chegada, além deinoportuna, era ligeiramente indelicada. Olhou para mim como quem tira os olhos do fundo do mar,polvos, lagostas, lulas e algas ainda palpitando nas pupilas. Meolhou como uma pessoa hipnotizada, sonâmbula, ausente, evoltou a contar sua história. — Morrer é apenas uma das coisas que podem acontecercom a gente. Talvez a menos importante. Uma mera formalidade. 9 Fiquei por perto. E a história me chegava em pedaços, essascoisas que descem o rio, em épocas de enchente, será que aquilo éum tronco ou um jacaré, raízes flutuando como esponjas ou bolosde barbante, a água mudando de cor, a cada momento, e a cadanovo olhar. Às vezes parecia estar contando um filme, algumas frasespareciam pessoais, num dado momento pensei ouvir Norma dizer:e o tolo imaginou que já tinha começado, imaginem, um dia antesda festa começar. Todos riram. Menos eu. Eu viajava nos RRR,nos SHHHHH, nos AHHHHHs, naquele U, que era algo como entreA e E, só passando ligeiramente pela região do U, um U meio W, enão me importava que aquilo não tivesse sentido, contanto que eupudesse continuar indo daquele F àquele Q, daquele P ao X, ao Y,

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ao Z. Eu sabia o que estava por vir. 10 — Telefone para o senhor. CAPÍTULO 11 l Na parede ao fundo, sobre o sofá onde Norma brilhava, omaldito quadro tirava o olhar de todo mundo para dançar. Perseumatando a Medusa. Cabelos de serpentes, a Medusa transformaem pedra todo mundo que a fita, fita, fita, pedra, pedra, pedra.Perseu chega, a espada numa mão, um espelho na outra. Vendo-ano espelho, corta-lhe a cabeça. O quadro representa Perseu noexato momento em que ergue a cabeça decepada da Medusa. Maso espelho onde viu, imune a seus poderes, o rosto do monstro,ainda jaz a seus pés. Nesse espelho, muita, muita, muita coisa. 2 Lancei até Propp o olhar mais parecido com uma perguntade que meus olhos foram capazes. — Vejamos. Fotos de mulheres nuas, gosta de ver? — Não mais nem menos que todo mundo. — Livros assim desses, você sabe? — Alguns lá em casa o senhor precisava ver. — Nome de algum? — “Sete Noites em Sodoma e Gomorra”, “Teatro dosPrazeres”, “A Noite das Massagistas”, “O Bem Dotado e Suas SeteAmantes”, “O Banho de Língua”, “Triângulo das Delícias”, coisasassim. — Escoptofilia. — Isso é ruim? — Quando criança assistiu alguma vez? — Assistir o quê? — Você sabe. Os dois. — Os dois? — É, papai e mamãe, você sabe, ora, como você sabe! — Pena que nossa história tenha que terminar assim, corteirente. Passei por Norma, e joguei o olhar que melhor significasse,assim não brinco mais, lamentável que tudo tenha que ter sidodesse jeito, não fui eu que inventei o mundo nem a vida nem amaldita hora em que me convidaram para vir virar pedra, pedra,pedra, fita, fita, fita, nesta festa filhadaputa, enfim, essa históriatoda está muito mal contada. 3 Me olhei no grande espelho do salão, e a festa atrás de mim,falsas marquesas e pseudo-virgens, semi-artistas e quase-milionários, mordomos solenes como cardeais e sujeitos de muitosnegócios e interesses. De relance, meu companheiro de consultasao professor Propp, aquele, vocês sabem, que acreditava ter umamicro-bomba-atômica implantada no cérebro. Estava mais calmo,dava um gole, e parecia ter desistido, por hora, de mandar omundo de volta para a puta ou para o deus que, um dia, o pariu.

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A bebida tinha amolecido seu coração, e se abraçava com ocorrimão da escada, beijando-o como se , fosse. O dono da casa e da festa passou e parou, o tipo que tinhaconversado comigo há pouco lá atrás. — Gostando?, começou, e logo estava me contando como suafortuna havia começado. Antes de tudo, tinha sido ladrão de arte sacra. E me contavaisso como se o sagrado dos retábulos e dos turíbulos, dasestatuetas e dos cibórios, como se a santidade dessas coisastivesse passado para seus milhões atuais. — Deve ter dado sorte, não acha? Devo ter respondido qualquer coisa relativa ao carátersagrado do dinheiro. Mas não me lembro bem, como, aliás, nãome lembro bem de nada. O diabo me coma o cu se eu estavaentendendo alguma coisa daquela coisa toda. 4 Só Norma que não. Uma porção de mulheres naquela festame mandando aquele olhar que a gente reconhece de longe. Elonge elas estavam, muito longe, Andrômeda, Órion, estrelas daUrsa Maior, maravilhas na distância, escoptofilia. Norma eu vi no espelho. E ouvi sua voz adocicada, coentro,pimenta, canela, cravo, salsa, creme de leite com queijo parmesãopor cima, uma voz com todos os temperos. Estava bebendo háhoras. Ou era anos, há séculos, há milênios? Era como se euestivesse bebendo desde o início dos tempos, desde o primordialera uma vez um universo que pensava que era feito só de matéria,bebia desde a eterna coisa alguma donde tinha vindo, bebendo atéo permanente nunca mais para onde eu, nós, a festa, a casa, tudo,irremediavelmente, íamos. — Ar!, pensei. Ar é sempre uma ótima idéia. E lá fui atrás de ar, com omáximo de elegância e sangue frio de que pude dispor no sufocodaquela euforia. 5 Não longe de Sírius, a mais brilhante das estrelas daconstelação do Cão Maior, um tênue ponto de luz, a estrela,consideravelmente menor, conhecida como o Cachorro. Embora dedimensões pequenas, seu núcleo contém matéria tão densa que aquantidade dessa matéria necessária para encher uma caixa defósforos (tem fogo?) pesaria 50 toneladas. Agora, imagine-se uma estrela feita de matéria tão densa quea quantidade dessa matéria suficiente para encher uma caixa defósforos pesasse 10000 milhões de toneladas. Nem mesmo a 1080milhões de quilômetros por hora — a velocidade da luz — seriapossível vencer a absoluta força de gravidade dessa estrela. Aprópria luz, com seus 300000 quilômetros por segundo, estariasujeita a essa força, o que tornaria essa estrela para sempreinvisível. Existem estrelas assim. 6 Não chovia mais. E a chuva tinha deixado entre as árvoresem volta da casa aquela sensação de vazio que a chuva tem amania de deixar depois que chove até o cu fazer bico. Um vazio

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rápido, como se fosse artificial. Então, eu ouvi: Se esta casa, se esta casa fosse minha, eu mandava, eu mandava ladrilhar... Não tinha ninguém fora da casa, todo mundo lá dentro,bebendo, comendo, se mostrando, aparecendo, descolandohomem, descolando mulher, fechando negócios, se abrindo,passando. Andei atrás da voz. Vinha de um caramanchão, no ladoesquerdo do jardim. Se esta casa, se esta casa fosse minha... Era uma menina cantando. Cheguei manso como quemchega para não assustar passarinho. Perguntei o nome. . Nem precisei ouvir para, mais que saber, TER CERTEZA. — Norma, ela disse, com aquela vozinha de derreter ocoração. CAPÍTULO 12 l Se esta casa, se esta casa fosse minha... A voz miúda foi diminuindo, diminuindo devagarinho, àmedida que eu chegava mais perto. De repente, não agüentei maise tive que perguntar: — E se fosse tua, que é que você fazia? — Se fosse minha?, ela disse quase gargalhando. Mas essacasa é toda minha. As pessoas que estão lá dentro são meusbrinquedos. Alguns eu inventei. Alguns meu pai comprou. Olhei para a casa, toda iluminada, e o que ela dizia pareciaser a única frase que fazia sentido em todo o universo. 2 Assim que se aproxima do buraco negro, o gás se torna invisível, penetrando no que é conhecido como o horizonte de acontecimentos. Até mesmo a atração gravitacional dos buracos negros deve ter um limite, e deve haver um ponto em que a luz não possa nem se libertar nem ser absorvida. Neste horizonte de acontecimentos, a luz permaneceria imóvel. Uma vez atravessado o horizonte de acontecimentos, um astronauta não poderia escapar. Na realidade, quanto mais se esforçasse para evitar o destino que o esperava, mais rapidamente este se avizinharia, pois a energia despendida na tentativa produziria um aumento de massa, intensificando a atração gravitacional. Estrelas de nêutrons, anãs brancas, gigantes vermelhas,notas altas, adeus. Desde que comecei minha história com Norma,nunca mais um dia de sossego. 3 Ainda estava com o cigarro por acender numa mão e,automaticamente, ia pedir fogo, aliás, pedi, só para ouvir: — Fogo? Não posso brincar com isso. Minha mãe diz, quembrinca com fogo mija na cama.

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Ela se balançava numa balança enquanto falava. Eu diziauma coisa, ela embalava a balança até lá em cima, e me respondiana volta, quando passava por mim. Subia, descia, subia. Comecei a ficar tonto. — Está ficando tonto?, ela perguntou numa passagem. — Um pouco. — Cuidado, ela alertou na passagem seguinte. E na seguinte: — Pode ser que eu troque você. E na seguinte: — Por algum outro. E: — ... brinquedo... 4 Uma vez que estes corpos não emitem luz nem ondas-raio, as teorias sobre sua existência baseiam-se apenas nos astros vizinhos, sujeitos à sua influência. Possuindo uma força gravitacional absoluta, atraem para dentro de si toda a matéria que surja em suas proximidades. Há mesmo uma teoria segundo a qual os buracos negros vão acabar por absorver tudo quanto existe no universo. Chega. Eu desisto. 5 Os ruídos da festa eram um estrondo lá longe, quando suamãozinha pegou na minha mão e lá vou eu: — Venha cá, vou lhe mostrar onde a festa começou. CAPÍTULO 13 1 Me levou até um descampado, levantou a mão para cimaapontando o formigar de estrelas, limpo depois da chuva. — Aqui, ela decretou, e nos sentamos na grama molhada. Entendia de estrelas mais que eu, que queria, um dia, serpago para saber delas. — Aquela é Mizar, na constelação da Ursa Maior. Eu repetia, extasiado: — Mizar, na Ursa Maior. — Aquela é a Achernar Austral, a alfa na constelação deErídano. — Achernar, eu repetia. — Adelbaran, Arcturus, Pólux, Canopus, Prócyon, Antares... O dedinho percorria o céu, tintim... por tintim, denunciandoaqueles mundos enormes, maiores que o sol. — Contar estrelas dá berruga no dedo, eu fale?. De repente, ela apontou o dedo, o braço tremendo como umgalho surpreendido pelo vento. — Está vendo?, é a Pólux Boreal, a alfa da constelação deGêmeos. Foi lá que a festa começou. 2 E começou a conversar com elas. — Oi, Andrômeda! Como você está bonita hoje! Que tal, oswarhoos conseguiram vencer os povos gasosos do planetaSmargh? E os pantanais de Kolúlu, continuam produzindo

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gronfos? Aposto que a terra de Naid ainda não, bem, você sabe. Moveu o dedinho e: — Betelgeuse, que vergonha! Você podia estar mais brilhantehoje. Mas como é que você poderia com todos aqueles proctoresenfristulando você? Tenho andado tão triste desde que os churrsmertriaram toda a tua tenoctília... Achei tudo aquilo perfeitamente natural, como o pedaço dedoce que ela me estendeu com seus dedinhos de contar estrelas,como se me oferecesse Mizar, Altair ou Arcturus. — Quer? Masquei o doce lembrando daquela vez, há milhões de anosatrás, quando olhei estrelas com Norma Propp, e a gente chorou, eaquilo tudo. Cuspi o doce, me lembrando que detesto doce, e me deuuma vontade desesperada de beber, beber pesado, e acabar comtudo aquilo de uma vez. Levantei, alisei a roupa e comuniquei: — Vou lá dentro apanhar uma bebida. Fique aí que eu jávolto. — Você não vai escapar de mim tão fácil. 3 Quando cheguei no salão, o pau comia. Ainda deu tempo dever um garçom descendo a bandeja de salgadinhos na cabeçacareca de um senhor que segurava pelo pescoço o meio palmo delíngua de um rapazinho que esperneava como um frango.Pendurado no lustre, o dono da casa se balançava até cair numbolo de gente, dando porradas e pontapés. As damas presenteslançavam altos brados, como as fêmeas dos babuínos, quando obando é atacado pelo leopardo, no meio de uma tempestade.Choviam copos, pratos, vasos, pedaços de bolo, pastéis, perucas,sapatos, dentaduras, cigarreiras de prata, isqueiros, relógios,colares de pérola cruzavam os ares como boleadeiras, todos osinsultos e pragas tinham saído de dentro do inferno daquelasalmas penadas. Já entrei dando cacete. Depois de uma rasteira numdesabusado que avançava para mim, empurrei uns dois, acerteium direto em cima do olho de um outro, e chutei a cara daquelepaciente do professor Propp que gritava sempre: — Eu digo a palavra! Eu digo a palavra! Eu tinha uma missão pela frente e a cumpriria nem quefosse com sangue pelos joelhos: tinha que chegar até um copo degin tônica. Num clic, tudo parou. A pancadaria cessou, as pessoascomeçaram a se limpar, a pedir desculpas uns aos outros, assenhoras voltaram. E por toda a sala se ouviam: — O senhor esteve ótimo. — Grande porrada a sua. — Espero contar com seu soco na cara na próxima. — Disponha. O senhor também bate muito bem. Por todo o campo de ruínas, os criados juntavam coisas,amontoavam pratos quebrados, reacomodavam as flores

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amarfanhadas nos vasos, uns já varriam. Procurei a causa daquele cessar-fogo instantâneo. No alto da escada, ela. Norma começou a descer, degrau após degrau, saboreandocada degrau como quem deglute uma fina iguaria. Tinha posto umvestido de gala, desses de cantoras e atrizes de antigamente. Esorria, democrática, para todos os lados. A sala logo está recomposta, pronta para ouvir. Um queoutro criado ainda dava jeito num cantinho mais convulsionado. Adistinta platéia ficou distinta de novo, sentando quietinha, nossofás, nas poltronas, nas almofadas, todos os olhares em Norma,todos se esforçando por produzir o silêncio que ela merecia, umsilêncio de vinte e quatro quilates. Norma avançou até o meio da sala. E então foi aquelenegócio. Começou com “Until The Real Thing Comes Along”, da EllaFitzgerald, e foi embora cantando, cantando tudo. Então, ouvi na plena luz dos lustres e candelabros aquelavoz que eu tinha ouvido (ou tinha pensado ouvir?) na noitePassada, quando voltei para a festa, durante a tempestade, nacasa vazia, só eu e o criado, e eu tive aquele sonho, se é que sonhofoi (e eu posso provar que não foi). De repente, alguma coisa começou a mudar. A voz de Normacomeçou a acelerar como uma gravação que ganha mais e maisrotações por segundo. Eu sabia! Eu sabia! 4 TUDO ESTAVA MUDANDO. Algo de maligno naquela casaimpedia que as coisas permanecessem como estavam. E senti denovo aquele cheiro de queimado, enquanto socorriam Norma que,durante um agudo mais lancinante, teve um desfalecimento, e foicaindo, caindo lentamente nos braços de vários circunstantes, queacudiram solícitos. Desmaiada, os cabelos soltos caindo para o chão, Norma foilevada nos braços pelo dono da festa até uma porta atrás do salão,e desapareceram, seguidos por vários homens e mulheres, quecochichavam como durante uma missa. Olhei para a cara dos presentes. Todos tinham mudado. Osrostos tinham adquirido uma expressão perversa, até a luz pareciater mudado, e o silêncio, depois da voz de Norma, era quaseinsuportável. Então, o mordomo começou a anunciar a cada grupo, emcada canto, com toda a polidez: — Está na hora, senhor. Minhas senhoras, está na hora. Solenemente, todos foram se levantando, ajeitando asroupas e caminhando, sem pressa, para a porta por onde tinhampassado Norma, nos braços do dono da casa e os outros. Me levantei também, e ia começar a acompanhar o séquitoquando alguma coisa em mim me disse, eu podia escapar daquilotudo, e eu tinha ficado de dar um telefonema antes de sair dacidade para um amigo qualquer, desmarcando um compromisso. Pedi um telefone ao mordomo e disquei o número. E a vozque atendeu ao meu alô só respondeu:

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— Os warhoos venceram os seres gasosos dos pântanos deAchernar, e quem estiborna agora são os comários de Quadrak. Depois, silêncio. Olhei, e os últimos convivas sumiam pelaporta por onde tinha saído Norma, nos braços do dono da casa.Olhei em volta, para o salão vazio, lustres e candelabros luzindopara ninguém. Me apressei e fui atrás. Eu não perderia aquilo por nadadeste mundo. Fosse lá o que fosse. CAPÍTULO 14 1 Um dia, nos surpreendeu, a Norma e a mim, em flagrantedelito. Acho até que a gente quis aquilo, alguma coisa, pelo menos,quis, pois não era lá uma idéia perfeitamente idiota partir para apesada, em pleno consultório, numa hora quando Propp podiavoltar a qualquer momento? — Hoje, quero romper a barreira do som, falei a ela,enquanto a gente arrancava a roupa um do outro, botões saltandopara todos os lados, gafanhotos pulando na grama de uma noitede verão. Norma não disse nada. Mas entre beijos e amassos sentiaque estava para o que desse e viesse, um daqueles momentos emque elas desligam toda a bateria antiaérea, e se tornam apenasaquilo, vocês sabem. Não deu tempo. Ao escancarar a porta, Propp aindasurpreendeu a cabeça do meu pau na boca de Norma. Que seria da vida sem esses momentos sublimes? Propp deixou a porta como estava, Norma como estava, eucomo estava, nem me perguntem como, nem como, nem como.Mas não saiu. Ficou sentado diante da mesa da saída, esfinge nocaminho de Édipo. Eu tinha que chegar até Tebas, um príncipe desangue real não vai se mixar para um velho, tão ancestral quantoa medicina que receitava sanguessugas. Num instante, me recompus, enfiei a sunga às pressas e,como estava, só de meias, todo despenteado, irrompi na sala deespera, bati continência, e me declarei: — Professor Propp, amo sua filha. E quero casar com ela. E Propp: — Será que você não vai aprender nunca? E eu, que me considerava apenas alguém em busca dasabedoria, caí chorando a seus pés, num soluço só: — Perdão, papai, perdão! Juro que não faço mais! 2 Durante duas semanas, não tive coragem de aparecer. Nãotive paz. E deixei de me olhar no espelho. No anoitecer de uma quarta-feira, me lembro bem, tinhatrabalhado pra burro a tarde inteira, e de noite tinha aula noobservatório, uma espécie de prova, decorar a lista das estrelasduplas e múltiplas, a beta da constelação do Cisne, a alfa daconstelação do Centauro, a gama de Leão, a gama de Virgem, erecebi um telefonema de Norma: — Papai está preocupado com você. Venha aqui amanhã. — E você? Como é que você está?

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— Eu vou estar aqui. Venha às quatro sem falta. Sabe comoele é com atrasos. Foi tudo. E eu fiquei lá como uma besta, aquele imbecildaquele telefone na mão fazendo tuim-tuim-tuim. Joguei oaparelho no chão, e comecei a chutá-lo, chutei bem uns dezminutos, até cansar. Deitei no tapete, peguei o aparelho, botei noouvido: silêncio absoluto. Fazia tempo que não me sentia tão bem. 3 E segui a multidão que descia, descendo escadas e maisescadas, os cochichos ecoando pelos corredores, escadas abaixo,mais abaixo, parecia que todos queriam chegar no pólo sul,atravessar todo o gelo, todo o frio, e desciam mais, e mais, e mais,como se depois do frio quisessem chegar até o inferno, aqueleinferno medieval que ficava no fundo da terra, no fundo dascoisas, no fundo das profundas de tudo, e onde mais ficaria? Até que chegamos ao lugar do sacrifício. Norma estava lá, deitada naquela cama de pedra,inconsciente. A multidão a cercou, o dono da casa disse: — A vítima está um pouco magra, não acham? O sacrifíciotem que ser gordo. Vamos engordá-la? Tirou o pau para fora, e a perfurou. Levou um tempo. Veiooutro. E mais outro. E outro, e mais outro. Todos se serviram, semtirar a roupa, rápidos. Então, alguém disse: — As senhoras presentes que quiserem se servir se sirvam. Começaram a chegar em Norma, como quem aproxima aboca de uma fonte, e longamente a beberam, todas elas. Norma apenas gemia, às vezes, como quem sonha algumsonho. Fui um dos que comeram e beberam Norma, aquela noite.Fui um dos que a assassinaram. 4 Voltei com o copo de gin tônica, para baixo das árvores, ládentro a festa ardendo como uma fogueira. Chamei: — Norma, e não tive resposta. Vi a balança subindo e descendo, e nem podia ser o vento. Apequena Norma acaba de sair daqui. Lá está ela me chamando daquela janela, logo acima daescada, logo depois do longo corredor, logo ali. Cheguei sem fôlego. Ela me olhou com desprezo: — Os warhoos tomaram o poder em Achernar, e você não feznada? E me atacando começou a chutar minhas canelas, que nãosão de ferro, como todo mundo pode imaginar. — Pare com isso, eu falei. Os warhoos caíram na nossaarmadilha. Ela parou. Afastou-se. E olhou para mim. — A atmosfera de Achernar é fatal para os warhoos. Eles sótêm dois mil anos-luz de vida, eu gritei.

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— Mas os strelitz vão miricondar todos os prosnômios deKhandar! Quanto mais ela gritava, jurks, yaraconds, nelmeiam, osks,mais longe ia ficando, até que eu a via como quem vê alguém, umponto muito lá longe no começo de um infinito corredor, alguémaí? De repente, tudo mudou. E ela estava ali, na minha frente. — Para onde você acha que a estão levando?, perguntei. — Lá para baixo, é óbvio. — Alguém precisava fazer alguma coisa. — Nem me importo, vai ter o que merece. — Você não gosta dela? — Odeio. — Mas que foi que ela te fez? — Nada. Vive dizendo por aí que eu não existo, imagine. 5 — Quer ver o que vão fazer com ela?, me convidou com odedinho. Fiquei gelado. Não sabia o que iam fazer com ela, masimaginava que ia ser alguma coisa atroz, maligna, excessiva. — Até lá, não, eu falei. Vão matar a gente. — Conheço uma outra passagem até lá em baixo, e tem umajanelinha, dá pra ver tudo. — Tudo, o quê?, perguntei, quase em pânico. — Tudo o que fazem com ela, toda a primeira sexta-feira domês. — E o que é? — Eles a matam. Minha cabeça girou, dei mais um gole no gin tônica, eentendi tudo. Norma era a mãe desta menina, e ela assistia aosrituais horripilantes a que submetiam sua mãe. Então, ela disse: — Sei o que você está pensando. — Sabe? — Você pensa que Norma é minha mãe. Mas estácompletamente enganado. Eu sou a mãe dela. CAPÍTULO 15 l Como o professor entrou no rolo da minha vida, fica difícil deprecisar agora, nem me peçam para historiar quando começou afunção estudante olha pra cima e vê Propp. Logo eu que tinha tanto medo que mãos que não as daminha mãe tocassem na volátil película da minha subjetividade,quanto tempo você acha que eu passei procuração a ele paraatribuir significado aos atos da minha vida? Nosso primeiro encontro, ele me disse, o que você quer? Eurespondi, atingir a sabedoria, é claro. E ele me disse, o que é quevocê entende por isso? Eu respondi, e o senhor acha que, se eusoubesse, ia estar aqui perguntando? 2 — A primeira coisa é parar de tentar mudar os fatos compalavras, depois virão as outras, Propp falou, me deixou intrigado,

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e chamou a filha para fazer minha ficha, primeira vez que Norma eeu nos vimos, vimos? — Profissão, perguntou. — Imbecil. — Origem. — Desconhecida. E daí rolaram todas aquelas questões, números, endereços,telefones, internações anteriores, hábitos alimentares,preferências sexuais, escolaridade, hobbies, sinais característicos,passado esportivo, aptidões artísticas, militância política, filiaçãopartidária, quantas línguas domina, integração comunitária,acredita em Deus?, o que acha da atual administração?, já ouviufalar num disco chamado “New Jersey Nirvana”?, sua mãe éséria?, já praticou vudu?, vai regularmente ao banheiro?,masturba-se com freqüência?, consegue, de pau duro, atingir seupróprio cu com a glande?, sabe o que estamos fazendo aqui? 3 — E a gente aqui enquanto os warhoos massacram toda apopulação de Achernar. Olhei para os olhos dela, e meu olhar subiu, passageiro noseu, em direção ao alto. A máquina noturna do céu tinha giradoum pouco, a pressa, vocês sabem, que tem um relógio para ir dassete e vinte às onze e quarenta e sete. Meia-noite e quinze! Se a gente queria fazer alguma coisa por Norma, era bomagir certo, e rápido. 4 — A glória é o aplauso dos pais, disse Propp, me dando umtapinha na bunda, e me impelindo para o salão, onde entrei sobcataratas de palmas, que agradeci comovido, até descobrir. Erampara Norma, que descia as escadas, lá vai ela deliciar os presentescom tudo o que cantava. — Enfim, alguma coisa acontece nesta festa, ouvi umasenhora dizer ao meu lado, perua esticando o pescoço para abanda do vento donde vinha carne fresca. Nesse momento, o cheiro de coisa queimada, e senti como éduro o caminho até lá, até a sabedoria, se é que essa porra existe. 5 Nunca tinham sido raça de guerreiros, os warhoos, seudomínio indo dos pós de planetas entre Achernar Austral naconstelação de Eridano até os arredores de Pólux Boreal, naconstelação de Gêmeos. Seus tradicionais inimigos, os seresgasosos dos pantanais de Canopus, souberam aproveitar muitobem uma falha dimensional entre Vega e Adelbaran, e penetraramem seu sistema molecular. Os seres gasosos dos pantanais deCanopus sempre foram temidos em muitas galáxias pelahabilidade em aletrar, isto é, atrelar, isto é, alterar a estruturamolecular das suas vítimas. Para os de Canopus, qualquer serpode ser transformado em qualquer um. Com os warhoos, porém, um problema insolúvel pela frente.A principal característica destas figuras era exatamente PODERSE TRANSFORMAR EM QUALQUER COISA. Sendo assim, os seresgasosos corriam o risco de transformar um warhoo NELE MESMO,

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o que não era bom negócio pra ninguém. Essas crianças têm mesmo cada uma. 6 O dedinho me chamou em direção ao subterrâneo. Comeceia descer, escorreguei, e quase me dissolvi no chão de treva pura. — Espere, ela falou. Eu tenho fogo. Logo uma vela dizia pisa aqui, pisa ali, cuidado, esse degrau,parecia que não acabava nunca, eu estava descendo nas tripas dealguém em direção ao cu, e não tinha fim aquele intestino delgado,aquele intestino grosso, voltas e voltas, girando, girando, até eladizer: — Pare aí. É aqui. Pum!, eu parei, suando com o exercício daquela descida, acamisa empapada, roupa grudando, a casimira da calça pinicandoas pernas, sempre sentindo aquele cheiro de queimado, fervendode febre: eu queria ver, eu queria assistir aquilo, fosse o que fosse,ver era a felicidade, e talvez, talvez, talvez. No fim da escada,numa parede, aquela janela, pequena como um buraco, dava parao imenso salão, lá em baixo. Reconheci todo mundo em volta deNorma, ele, ela, aquele, eles dois, todos eles, todas elas. CAPÍTULO 16 l — Sinto a presença dos seres gasosos de Canopus, elasuspirou, enquanto a gente passeava debaixo das árvores. — Bobagem, é a neblina depois da chuva. — Não acredita em nada, não é mesmo? Pois você vai ver. Chegou mais perto de uma nesga de neblina e gritou: — Mizkolitz! Ganubar! Orref! A neblina se dissipou, em noite clara. — Viu?, ela perguntou. — Vi o quê? — Vai me dizer que não viu o gasoso ficar com medo, eevaporar de volta a Canopus? — Tudo o que eu vi foi a neblina sumir. — Será que você nunca vai entender? 2 Ainda teve outro incidente que nem mencionei, mas é quetem uma coisa sobre a qual não quero falar, bem, mas aconteceque aconteceu uma coisa na festa, e eu não posso continuar comessa história toda sem contar que lá um mordomo me procurou,me dizendo, desculpe, o senhor é o número dezessete, eu disse, oquê?, por que dezessete?, e ele disse, não, na lista aqui dosconvidados o senhor está como dezessete. O senhor não é fulanode tal, assim, assim, assado? Eu disse que não, nem era esse meunome, deve haver algum engano. Não havia engano. O convidadopara a festa não era eu. 3 — Telefone para o senhor. — Sim? — Ôi, tesão, e esse pau enorme continua durão? Umalambida nele. Reconheci a voz. E continuei ouvindo o festival de fantasias

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eróticas, em nome do pai, do filho e do espírito tonto. Pensei rapidamente, se meu nome não é aquele, se minhapresença aqui é um equívoco, estou recebendo o telefonemaendereçado a quem? E daí? E envenenei todas as frases: — Ai, lambida gostosa. Olha só como ficou. Até parece queestá maior. Passa, ai, a língua aqui, por aí, assim, assim, aí, bemaí. 4 Propp tinha uma brincadeira que o divertia muito, quandoeu lhe perguntava o por quê de alguma coisa: — Com por quê é mais caro, e só depois das cinco. Era a origem de todos os males da pele, do intestino e dacabeça. O mundo ia muito bem até nascer o por quê. E foi medizendo logo de cara, se eu queria atingir alguma coisa tinha queme livrar desse vício. No começo, é difícil. Sem por quê, viver, arrastar esses dias,um atrás do outro, é subir uma escada sem corrimão, entrarpelado no mar, andar no mato de olhos fechados, dormir aorelento e sem cobertas. Mas, enfim, a gente acaba se acostumandoa qualquer coisa. Me acostumei a viver sem perguntar por quê. Ea só freqüentar as questões periféricas, como?, quando?, onde? E lá estava ele, de novo, citando aquele velho rabino daIdade Média, não tente melhorar o mundo, você só tornaria ascoisas piores. Claro que eu não concordava. Mas Propp achava aresistência ao tratamento um sintoma seguro de recuperação, umsinal de boa vontade em relação à mudança. Pegue a função XI, por exemplo, da lista de funções, “o heróideixa a casa”. Para ele, isso era um fato absoluto, diante dissoqualquer por que era puramente ornamental. Era um tijolo da vida,uma entidade molecular, inútil buscar arquiteturas por trás. Ascoisas partiam daí. Para trás, apenas a imensa incógnita, que semedia em anos-luz como as distâncias entre os corpos celestes. Com isso, Propp me ensinou (seria essa a palavra?, acho queme adestrou) a ser um protagonista invisível da minha vida, opersonagem de vidro por onde a vida passa como um raio de luzpor um cristal. Não por um vitral, onde já está escrito tudo aquiloque a luz tem que significar. Ou quase, talvez. Essa era outra dasexpressões favoritas do professor. Quase, talvez. Na dupla dúvida,uma dúvida lançando desconfiança sobre a dúvida vizinha,equação de quarto grau, nessa vertigem imaginava Propp fundarsua certeza. Como todas as certezas, era apenas uma. Uma das Ncertezas, num universo onde todas são igualmente prováveis. Masera, enfim, uma certeza, quem sabe. Um dia, sonhei com ele. No sonho, era o dono de um bar,onde eu chegava e perguntava: — Tem cerveja? E ele respondia. — Não. — Tem certeza? — Também não.

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CAPÍTULO 17 l — Era uma vez, num reino muito distante, um técnico emcomputação que trabalhava num grande banco. E ele bolou umgrande golpe, que nem Deus ia notar. Programou o computadorpara retirar dez centavos de cada conta aberta no banco, e lançá-los no último nome possível da lista alfabética dos depositantes.Assim, ganhou fortunas, até que, um dia, abriu conta no bancoum certo senhor Zyzwet, o nome que não podia existir. Zyzwetestranhou que seu saldo subisse constantemente, ficou commedo, procurou a gerência, e assim acabou uma bela carreira. Um saco esses papos que a gente ouve nessas festas, merospretextos para praticar em voz alta o nome dos povos, as feéricasnotícias de jornal, esse saber que pensa saber tudo apenas porquesabe o que todo mundo sabe. 2 Pela pequena janela, assistimos ao destino que coube aNorma. O enorme fálus de couro que foi introduzido entre suasPernas por três dos cavalheiros presentes, seus estertoresviolentos, o filete de sangue escorrendo no canto dos lábios, asuspensão dos movimentos, a palidez cadavérica. Fiquei ali, vendo, lívido, o coração cheio de areia. — Ela está fingindo, disse meu anjo da guarda. — O sangue me pareceu real. — Você acredita em qualquer coisa que vê, don’t you? 3 Não estava fácil ser um warhoo, naqueles dias de dominaçãodos povos gasosos de Canopus. Todas as imaltz de Rpex tinhamsido silbt pelos flaflos de Schlept. Um klankt depois, e não haviaum só samp que não fosse travnik de Gosfrem. — Nem um só?, perguntei, cúmplice daquele despropósito. — Bem, tem o caso dos nunaks. Mas é que tem uma coisasobre a qual eu não quero falar. 4 Norma estava morta. Ainda bem que morrer nesta vida não étudo. Pela janela, assistimos aos preparativos para o funeral. Elaestava morta. Meu olhar a tinha matado. Os criados seaproximam. Cobrem o corpo nu com um manto, enrolam-na elevam embora o que restou. Ainda não é tudo. Os vivos precisamcelebrar a morte, o gelado não estar mais, o por quê, o outro ladodo lado de cá. 5 Não é que eu gostasse tanto de astronomia. Na realidade,nunca tinha me passado pela cabeça ficar a vida inteira olhandopra cima, de noite e de dia, dando para três esfinges de alunos,uma freira, um velho surdo e um garoto pálido que roía as unhas,a relação das 19 estrelas de primeira grandeza, depois de umsemestre ensinando o modelo de um catálogo de estrela. O que euqueria mesmo era ser médico, curar bastante gente, milionários depreferência, ficar rico e sair cometido mulheres bonitas naquelasfestas que tem de caviar pra cima. Não deu. O que eu sabia era

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muito pouco. Fiz uma prova ótima. Para ser médico, não deu. Masdava para escolher entre ser administrador do zoológico local,caseiro numa chácara a quinhentos quilômetros da minha casa,corretor imobiliário, contrabandista de radinho de pilha japonês,alcagüete da polícia ou zelador das jóias da coroa no MuseuImperial. Diante de tamanha riqueza de possibilidades de escolha,optei pela astronomia. Pelo menos, as estrelas estavam ali toda noite. A não ser quechovesse, é claro. 6 O mordomo irrompeu e anunciou: — O corpo está sendo velado na capela. E os senhores esenhoras presentes podem se servir a partir de agora. A voz de Norma ainda ecoava naquele salão, quando todoslargaram os copos, se levantaram e, com velocidades variadas, seencaminharam para os fundos da casa. — Coitada, sofreu tanto, um comentava. — Para morrer, basta estar vivo, arriscou uma dama maisfilosófica. — Quem diria? Tão moça e tão cheia de vida. — Descansou, afinal. — Pelo menos, não sofreu. — Cantava tão bem. — Quando chega a hora, minha filha. — A vida é assim, quando chega na metade, já estamos nofim. E lá fomos nós atrás do cadáver de Norma, na capela todailuminada e florida. Tantos gerânios! Ela era louca por gerânios. 7 Por um segundo, pensei que uma abelha ou qualquer outroinseto tivesse passado pela minha orelha, deixando aquelezuuuum tinindo. Olhei para trás. E vi a bala arrancar lascas deum tronco de árvore, a três passos de mim. Me encolhi olhando em volta, com aquele olhar primata. O próximo tiro acertou no chão, do lado da minha pernaesquerda, levantando estilhaços de pedra. Uma conclusão se impunha, estão atirando em mim. Corripara trás de uma árvore. Os tiros começaram a chover em cima demim. Em dois segundos, a pequena Norma estava me chamandode uma porta embaixo de uma escada, para onde eu corri, quemerda!, será que um astrônomo não pode curtir uma festa semlevar uma bala na cabeça? Decididamente, este planeta não serve mais pra mim. — A caçada começou, ela disse, ao fechar a porta, meestendendo a mão, aquela mesma mãozinha que distinguiaAchernar de Canopus. Segurei a pequena pelo braço. — Que caçada? — A tua. — Minha? Não sei de nenhuma caçada.

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— Você não está entendendo. Estão te caçando. — Me caçando? Por quê? Nisso, senti aquela dor aguda no lado esquerdo do peito, olado comandado por Propp. A dor que me mandava parar deperguntar por quê. — Sempre escolhem alguém. É sempre assim. Quando vocêapareceu, eu sabia, alguma coisa me dizia que hoje ia ser você. — Mas eu não fiz nada. — Existir basta. E depois tem aquilo que você fez. E me levou pela mão por uns caminhos escuros, corredoresintermináveis, subidas e descidas por escadas íngremes. De repente, parou: — Espere aqui, ela me disse. E sumiu. O silêncio veio para cima de mim como uma obsessão. Umsilêncio espesso, hora de dormir. E eu esperei, e esperei. O tiroque passou no meio das minhas pernas, quase me arrancando osaco, me deixou bem claro, eles não estavam brincando. 8 Os seres gasosos dos pantanais de Canopus levavam grandevantagem sobre os warhoos de Achernar. Não tinham corpo. Querdizer, tinham, mas só por um momento. A mais leve brisa, e elesnão estavam mais. A princípio, essa característica dos seresgasosos dos pantanais de Canópus representou umasuperioridade militar. Mas a astúcia dos warhoos já tinha lidadocom problemas bem mais complicados. Acontece que meu problema era mais imediato. Subi umaescada, mais outra, saí num corredor escuro, cego, louco depavor, tateando as paredes à procura de uma porta. Minha mãosentiu a doce forma de um trinco. Abri e entrei, no quartoiluminado. — Ôi, tesão. E esse pau, continua durão? Olhei bem, era Norma, a mesma voz, o mesmo rosto. Agorasim, agora tudo estava começando a fazer sentido. Nada como umpouco de lógica para acalmar os nervos da gente. CAPÍTULO 18 1 Dos trinta e um hábitos de Norma que me irritavam até apele, um em particular fazia tricô nos meus nervos, aquela muitosua mania de pronunciar “Bernardo”, com sotaque britânico,como quem dissesse “Bernárdou”. Bernardo vocês sabem quem é, aquele que tinha chegadonela com propósitos mais permanentes, e ela tinha repelido.Repelido é modo de dizer, estranho modo de repelir aquele de ficardizendo o nome do sujeito a três por dois, bernardo adoraria ouvirisso, bem que o bernardo podia, o tipo da coisa que nenhumhomem que fosse macho e não se chamasse bernardo agüentariapor mais de dez anos. Nossa vida, se é que dava pra chamar aquilo de vida, viviamal-assombrada pelo nome e pela presença de Bernardo, era sóeu me descuidar, e lá estava o nome materializando a figura. Durante um tempo, cheguei a pensar que o tal Bernardo não

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existia, não passava de uma figura imaginária, um ente de razãooperacional, inventado por Norma para manter, pela competição, omeu interesse aceso nela. Infelizmente, existia. Tinha sido colega dela, no curso deHistória, quer dizer, o filhadaputa ainda tinha sobre mim umavantagem histórica, havia um quilômetro dele com Norma, que,por mais que eu pedalasse, jamais chegaria a cobrir. Não me interpretem mal, nunca soube o que quer dizerciúme. Afinal, não se pode chamar assim esses ímpetos que mevêm, de vez em quando, de botar Bernardo para derreter em azeitefervendo. Norma não exagerava. Usava o nome de Bernardo só eminstantes estrategicamente importantes, às vezes passavasemanas sem falar nele. Quando eu menos esperava, lá vinha onome estragar o vôo de um belo momento, como uma pequenanoite que caísse, de repente, dentro de um meio-dia de domingo. Omais irritante é que Norma nunca falava dele de maneirasuperlativa. Era esperta demais para fazer um movimento tãodesajeitado. Não. Bernardo sempre aparecia de um jeito oblíquo,ambíguo, às vezes até dava impressão que era alguém por quemNorma tinha pena. Chegava até a me falar das coisas que nãoapreciava nele. Colocava-o em cotejos ridículos, comparando-ocom pessoas que a gente não gostava, fulano, sicrano. Mas ai de mim se fosse cobrar rente a verdadeira naturezadas suas relações com Bernardo. A gente se curte. Me deu a maiorforça. Coitado, gosta tanto de mim. — Coitado por quê?, eu perguntava. 2 Segunda, quarta, sexta, semana após semana, telefonei enada. Propp nunca tinha tempo. Minha história com sua filhaestava deteriorando rapidamente nossas relações. Comigo, nãoconseguia mais atingir a necessária isenção clínica. Quando agente se encontrava, cada um olhava para baixo, e para o chão, epara o lado, como se a gente tivesse perdido uma nota de mil. Contei isso a Norma, ela não deu a mínima. — Bobagem. Meu pai gosta muito de você. Até me disse ooutro dia que você era o personagem favorito dele. Ah, Norma, sempre brincando, sempre fazendo diferente doque eu esperava. Se pelo menos fizesse o contrário. Não, ela faziauma variante da minha expectativa, não sei se me exprimo bem.Com Norma, nunca se sabe, só se desconfia. O personagem favorito de Propp, eu, quem diria? Foi nessedia que me senti forte bastante, e perdi a fé nas miraculosaspílulas do professor. Me veio até um pensamento curioso, quando estava fazendoa barba, logo depois de cagar e tomar banho. O de que minha idaao consultório de Propp era apenas parte de um imenso complômundial para eu me apaixonar por Norma. Não há outro modo deexplicar como foi que perdi minha paz. Já tinha estado apaixonado antes, não tenho certeza. Alémdas mulheres, evidentemente, quem é que sabe o que é estarapaixonado? Talvez Norma soubesse. Talvez me passasse isso,

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como quem passa uma doença venérea. Tive certeza. Meu encontro com Propp era apenas umpretexto para eu me encontrar com Norma. Não me perguntem seela achava o mesmo. Não faço a menor idéia do que se passava nacabeça dela, quando a gente saía, se falava ou se chupava. Nãoque fosse imprevisível, ou qualquer coisa assim. Ela até que eralógica. Só que a lógica dela não fazia sentido. Mas o que mulher quer, Deus quer, dizia minha avó, queentendia de mulher como ninguém, como alguém que tinhabotado seis dessas estranhas criaturas no mundo, essas que sóexistem para tirar nosso sossego e mostrar o quanto somospequenos, mesquinhos, ridículos. Eu fazia tudo que ela queria. Ou tentava. Ela não fumava, edetestava o cheiro. Roí quilos de unhas tentando parar de fumardurante duas semanas inenarráveis. Em troca, o que é que me dava em troca? Se quiseremchamar de amor essa falta de sono, sigam em frente e dobrem aesquina. O consultório fica na Rua 3 de Outubro, 894. 3 Segundo a minha pequena guia nesses mundos, os seresgasosos viviam mais de duas miríades de iknatons. Quase tantoquanto uma ptyx, me segredou, como se tivesse medo que oswarhoos a escutassem. Como eu não fazia a mínima idéia do queera uma miríade de iknatons, nem sabia o que era um ptyx, fiqueisonhando em grandezas infinitamente pequenas e infinitamentegrandes, brincando de mistério com aquela menina meio pancada,que, vai ver, vai ver, era a única pessoa que fazia sentido naquelafesta. Lá dentro, passado o primeiro deslumbramento, o frêmitoinaugural, eu sufocava. Aqui fora vagavam os seres gasosos dos pantanais deCanopus, os rarefeitos enxames de moléculas, dotados de vida ede intenção. 4 Resolvi tirar Propp da cabeça. A merda é que quanto mais eutento escapar mais proppiano me torno. Estou sempre mesentindo dentro de uma função. Até o meu rompimento com ele ecom seu método deve fazer parte de alguma função do tipo “heróichupa a buceta da filha do professor, cai em desgraça e perde afé”. Eu estava perdido para o método. Me envolver com a filha dohomem foi a maior bobeira. Por esse caminho, eu nunca ia atingirnada. No máximo, ia ter umas noites mal fodidas, mal trepadas,maldormidas. E no final um coração partido. Mas talvez ter umcoração inteiro não fosse tudo na vida. E me foder de pai e de mãetalvez não fosse um mau negócio, quem sabe. Quanto a ela, era o que se sabe. Quando eu pensava quetudo estava voltando a seu curso normal, tudo fugia à norma. CAPÍTULO 19 l — Também você veio tão cedo, Norma meio que reclamou. — Três da tarde, cedo?

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— Que três da tarde. Você passou aí pelas dez. — Diga de novo. — Vilma me disse, achei esquisito, tinha a impressão quevocê não acorda antes do meio-dia. Pessoal, ninguém vai acreditar, eu já estava passando porlugares antes de acordar. Cheguei em Propp, mais animado que um desenho animado. — Professor, tenho uma novidade! Só precisou dar uma passadinha de borracha no traço delápis que eu era na época. — Grande bosta. Não seja idiota, meu filho. Novidade, eu jálhe disse, é uma brincadeira de criança. — O senhor não quer dizer quê. — Quero sim. E quero dizer o que eu bem quiser. Quem e opai aqui? Eu sou o pai, eu sou o senhor, o mestre, o que dápresentes, o rei que derrota e a mãe que derrama leite na tuaboca, o sacerdote que te joga na frente da verdade. E esta é que éa verdade, meu adorado imbecil. NÃO EXISTE NOVIDADE. Abrabem as orelhas e ouça, tudo será como sempre foi, nada nuncamudou, tudo é igual, todas as coisas permanecem para todo osempre, ah, vá à merda, você não aprende nunca, sabia que nãodevia ter lido meu horóscopo hoje. Nativo de Virgem, cuidado queseu filho está passando dos limites. Tinha que dar um ponto final naquela história. Propp játinha me enchido o saco com suas fábulas e tabelas que nãosaíam do lugar. O problema era onde pôr Norma. Agarrei Normapelos cabelos, e cravei meu pau em sua boca. Pelo menos, era umjeito de ter paz. Com um pau na boca, pouca gente tem condiçõesde dizer Bernardo. 2 Precisava voltar para a festa imediatamente, antes quedessem pela minha falta. Ninguém ia se arriscar a me dar um tirono meio de um salão todo iluminado, diante de dezenas detestemunhas, entre elas algumas autoridades ligadas ao aparatode segurança do Estado. A festa era a única garantia de que iachegar vivo no dia seguinte, minha única salvação. MAS ONDEESTAVA O DIABO DA FESTA? Alguém tinha levado ela embora, eera a única coisa que eu tinha esta noite, essa coisa gasosa que eujá tinha visto se transformar em orgia, sacrifício, caçada, missanegra, funeral. — Oi, tesão, e esse pau, continua durão? Quando abri a porta e entrei no quarto iluminado e dei decara com Norma, alguém ficou petrificado, Perseu sem espelho,olhos nos olhos da Medusa, eu, e eu, ou eu e eu, ou. Lentamente, com um movimento tão lento como se umapedra me pensasse, mas definitiva como a pedra, alguma luz sefez em mim. Não, não se aproximem, não sei se era bem uma luz. Melhordizendo, era. Mas como algo que pudesse ser uma luz debrinquedo, uma falsa luz, uma coisa repugnante que tinhatomado o lugar da verdadeira luz, aquela boa e velha luz que faziacom que nossos avós vissem as coisas como elas são, simples,

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claras, necessárias. Essa coisa que tomava o lugar da verdadeiraluz teve um parto difícil em mim. Me recusei terminantemente areconhecê-la como minha legítima luz, a luz que eu esperava, aluz de que eu estava grávido desde que eu disse eu, olhei em voltae vi que aquilo. E foi à pseudo luminosidade dessa luz de mentiraque entendi tudo, ou quase. ESTA FESTA E ESTA CASA É UMA MÁQUINA, UMMONSTRUOSO MECANISMO QUE SE TRANSFORMA ETRANSFORMA O REAL EM CERIMÔNIAS. Era uma casa de espetáculos, e Norma a principal atração. Me ajoelhei diante dela. Ela não perdeu tempo. Levantou ovestido, avançou aquela floresta de pêlos, e pronunciou asentença. Depois, bem depois, várias vezes depois, deitados lado alado, nus na imensa cama, perguntei, a primeira dúvida quepratiquei: — Que foi aquilo que eu vi lá em baixo? — O que é que você acha que viu? — Você morta sendo velada. — Aquilo não era eu, meu anjo, meu príncipe, meu herói. — Então, quem? — Agora, venha. Quero que você ponha uma roupa bembonita. Vamos descer e anunciar nosso noivado. 3 Primeira coisa que vi, aquela manhã, diante do espelho, éque estavam me nascendo olhos, dois olhinhos, apertados quenem olho de japonês, um de cada lado do nariz. Mal nasceram e jácomeçavam a enxergar tudo em volta, ainda piscando com a luzforte. Eram azuis, eu acho, mas sob o efeito da luz foramescurecendo, verdes, castanhos, pretos. Quando ficaram bempretos, saí à rua. Agora, sim, vocês vão ver uma coisa. Eu ainda era um rapaz em formação. E ainda podia escolheralgumas coisas, o melhor ainda estava por vir. Escolhi ter umassim de uns 18 a 20 centímetros. Mas o que eu queria mesmoera ter mãos. Duas, de preferência. Dessas bem cheias de dedos. Aí sim é que eu ia poder fazer quase tudo. Fuçar o nariz.Alisar a bunda delas. Dar murros em ponta de faca. E baterpalmas para o passar do tempo, a única força no universo capazde me tirar aquela mulher da cabeça. Isso, é claro, quando e se euviesse, um dia, a ter a cabeça do pau maior que o cérebro. CAPÍTULO 20 l Com Norma Propp, fui muitas vezes até a casa de campo queo velho tinha, uma bosta de lugar, aquela velha chácara que deveter sido próspera uns trinta anos atrás. Agora, só não desmorona porque tem um casal de velhinhosque moram por ali por perto e de vez em quando vão lá tirar asteias de aranha, acender o fogo e dizer: meu deus, olha só comoisso aqui está! Nas muitas duas vezes que fui lá com Norma, ficamos, uma

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vez, uma tarde, na última, uma tarde e uma noite, só nós dois. Na primeira tarde, Norma se comportou como se fosse minhairmã. Riu muito, me elogiou várias vezes, até me deu um beijo.Mas eu podia ver, ela estava nervosa, alegria elétrica demais paraser apenas isso. Puxei o assunto várias vezes para nossa história. Mas elasempre tinha alguma outra coisa para observar: — Olha lá aquela cerca. Não parece um M deitado? Tentei descobrir o que ela achava que era viver com alguém.Me mostrou a casca oca de uma cigarra que tinha apanhado nopessegueiro em frente da casa. A segunda vez foi bem diferente. 2 Chegamos no topo da escada, Norma e eu, lá em baixo, anossos pés, a festa fervendo como uma fogueira. Ninguém jamais desceu uma escada como Norma. Em suadescida, cada degrau era um triunfo, cada passo um orgasmo,cada momento um récord. E assim descemos. Todo mundo estava ali para ouvi-la cantar. Então, ela disse: — Antes de cantar, quero anunciar meu noivado. Na sala, leques voaram como pavões por entre um mar demurmúrios. Deve ter se gastado em um meio minuto todo oestoque de Ós que daria para abastecer uma língua indo-européiapor um ano. 3 A segunda vez foi bem diferente. Norma nem me olhou pra cara. Ficava assim, olhando assimpra qualquer coisa, como se não estivesse nem ali, como seestivesse com saudades de um outro planeta. — Pra que ter vindo se era pra ficar com essa cara?,perguntei. — Ah, ela perguntava, pra lá de ausente, vinda do além. Durante o jantar, a gente comeu em silêncio, eu, uma gotade ácido sulfúrico na superfície fosforescente dos cricris dos grilos. De vez em quando, comentava: — O macarrão passou do ponto. E eu discordava: — Não, acho que chover não vai. De noite, me perguntou onde eu queria dormir. Com você, éclaro, eu respondi. É por isso que eu adoro você, ela falou. Mas faztua cama aí nesse canto, eu durmo aqui no sofá mesmo, legal pravocê? — Norma, que é que está acontecendo? Que história é essa?Vamos conversar um pouco. Onde é que foi parar aquilo tudo quehavia? — Tudo aquilo, o quê? — Ora, você sabe, não se faça de boba. — Você deve estar louco. Nunca houve nada entre nós. — Essa não, Norma. Invente outra. — Se houve, prove. Eu não podia provar nada. A única evidência que eu tinha deque TINHA HAVIDO ALGUMA COISA ENTRE NÓS, esse nó no

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peito, essa sensação de que tinham colocado uma rolha no gargalodo meu coração, e essa vontade de apertar seu pescoçodevagarinho até fazer o cérebro sair pelas orelhas que nem bostanum moedor de carne. Ou bater nela com um maço de notas demil, até ouvir ela gritar Bernardo. Uma navalha, por favor. 4 — Vai mesmo casar com ela? — Acho que sim, tudo foi tão súbito. — Pena. Eu tinha uma coisa pra te dizer. Ela suspirou. — Os seres gasosos dos pantanais de Canopus acabam deser atingidos pela ptyx, epidemia desconhecida, de origemextragaláctica. Os warhoos devem ter violado o tratado. Eu avisei,eu avisei! — Qual tratado? — O de nunca usar armas transfísicas. — E o que é que isso tem a ver com meu casamento comNorma? — Nada, se não tem importância pra você. De qualquerforma, você não vai poder mesmo casar com ela, não é mesmo? — Por que não, qual é? — Ora, você sabe. Nós vimos. Ela está morta. 5 Ao diabo com os seres gasosos de Canopus. Eu podia seratingido por um tiro, a qualquer momento, a lembrança meatingiu com a velocidade de uma bala. E voltei para lá, donde nunca deveria ter saído. A festa eraminha segurança. E meu noivado com Norma. Não importa quemeu nome não estivesse entre os convidados. Eu era a alma dafesta. 6 — O narrador é um fantasma, ele mal-assombra ashistórias, elas poderiam passar muito bem sem ele. Elas, as histórias. Elas, palavras. Elas, as estrelas. Elas,quem? Para Propp, as histórias se faziam sozinhas, por geraçãoespontânea, gracinha, sem precisar de intervenção humana.Chego a desconfiar que imaginasse, que existissem,platonicamente, num universo anterior, maior e superior aonosso. E que se materializavam, seres gasosos dos pantanais daCanópus. Só que com a filha dele não era bem assim. Nosso romancenão ia pra frente, sem intervenção humana. Humana quer dizerminha. E, afinal de contas, o que queria dizer “ir para a frente”?Pode ser que lá na frente não tenha nada. Ou tinha? CAPÍTULO 21 l Belo começo para um candidato à sabedoria, nem sabiacomo conseguir o que os galos, os antílopes e até os polvosconseguem sem maiores histórias. Insuportável, aliás, que a razão de ser da minha vida fosseoutra pessoa, pessoa, por sinal, que eu estava longe de saber

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dominar, quem dera!, se, pelo menos, a influenciasse. Uma pessoa que eu dizia: — Vamos lá. E ela respondia: — Que pena. Quem mandou ouvir conselhos de amigos, conhecidos edesconhecidos, que diziam maravilhas dos métodos de Propp?Quem mandou tomar nota do telefone do consultório. Quemmandou marcar um encontro (a palavra não era consulta). Quemmandou eu apertar a campainha da 27 de Setembro, 894. Quem mandou? Socorro! 2 Vamos imaginar. Suponhamos que você tenha uma bucetano meio das pernas. Uma mera suposição, é claro. A menos que aenfermeira tenha exclamado — é uma menina!, quando vocênasceu, lembra ainda?, que memória, menina!, se não for assim,suponhamos que você tenha uma buceta no meio das pernas. Como é que você acha que pensa a cabeça de alguém quetem uma no meio das pernas? Não vale dizer, como minha mãe,que essa fixação em mãe e Nova York é coisa de viado. Como é quevocê acha que pensa? Como quem?, como é que é mesmo?, tereiouvido certo?, terei ouvido duzentos mil?, duzentos e cinqüenta,duzentos e sessenta? Terei ouvido alguém dizer Norma Propp? 3 Propp dizia que não há profetas nas histórias dedeslumbramento. Seria intolerável, os esquemas rejeitariam imediatamente umpersonagem que aparecesse contando o que vai acontecer maisadiante. Seria negar toda a lógica da narrativa. Por isso, nas histórias de deslumbramento, todo profeta écrucificado assim que se manifesta. A morte desse profetaalcagüete está catalogada como a função alfa-37, depois damacrofunção, “Herói Enfrenta o Monstro”. Lembro que Propp riamuito quando falava dessa função. Ele lembrava do professorFreud, ele ria, ria, lembrando que Freud tinha dito que essafunção era apenas a projeção do pasmo infantil do menino,quando constatava que o pau do pai era maior que o seu. Um dia,confessei: — Professor, não agüento mais estes ímpetos de profetizar. — É comum nesse período. Para resistir pense no efeito quevocê vai causar, se não antecipar nenhum momento da história.Você tem que chegar até a função gama-42. Através de uma argumentação toda equipada de citações,Propp tinha me provado que o percurso da minha vida já tinhasatisfeito todos os primeiros estágios da sua lista de funções dospersonagens. Saúde era perfazer todo o percurso do Herói. Mal sabia ele que... bem, mas tem uma coisa sobre a qual eunem quero pensar. 4 Num caso, Propp admitia a existência de profetas nos contosde deslumbramento. A função dzeta-43, a do falso profeta, aquele

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que só profetiza um evento para que os presentes imaginem queele está pensando o contrário, e assim ele pensa o óbvio, e assimele faz completamente diverso, se é que isso faz algum sentido. Propp previu que ia precisar de mais uns cinco anos paraaprofundar a função desse personagem. Mau profeta, morreuantes. Em suas histórias, não havia modo de interromper a lógicaque conduzia até o invariavelmente irremediável final. CAPÍTULO 22 1 Nenhuma vaga para ela na lista dos personagens de Propp,chance alguma. No máximo, quem sabe coadjuvante na função ômicron-7.Só que essa função, além de não constar na lista, não era a queMai queria preencher na minha vida. Norma, não havia jeito de eu conseguir que ela notasse apresença de Mai. E como? Na minha vida, Mai era algo assimcomo uma mancha de água mineral num lençol branco. — Bem, se você não quer, eu tenho um outro encontro. — Outro encontro? Você? 2 Um dia, sonhei que alguém me obrigava a ler uma lista deendereços e telefones. Ao acordar, lembrei que era algo assim: Rua 27 de Setembro, 894, 234-4594 Rua 28 de Setembro, 895, 234-4595 Rua 29 de Setembro, 896, 234-4596 Rua 30 de Setembro, 897, 234-4597 Rua 31 de Setembro, 898, 234-4598Era o endereço do consultório de Propp. Era o número da bucetade Norma. Era demais. 3 Maior parte do tempo estão dizendo mais, muito mais, do quea gente gostaria que estivessem, como se sobrassem, como sequisessem viver uma vida maior do que a coisa que pretendemospara elas. Como se soubessem. Cuidado com as palavras, issotudo é pra dizer que nunca, cuidado com as palavras, a primeiracoisa que você tinha que saber antes de entrar numa com Norma.Tinha herdado do pai, a bandida, aquele dom de enxergarbrasílias submersas debaixo de cada frase, quanto mais inocentea cara, mais suspeita. De modo que o que você dizia não era bemo que você dizia. Pelo menos, não era bem assim. Era como sevocê sempre estivesse ligeiramente fora de foco, aquele ar ridículode fotografia mal tirada, vocês sabem. 4 — Você não deixar as diferenças existir! — Existir, não, professor. Existirem. — Está bem. Não deixar as diferenças existirem! — Não, professor, ainda não. Não deixa as diferençasexistirem. — VOCÊ NÃO DEIXA AS DIFERENÇAS EXISTIREM! E era ele que não deixar as diferenças existir. Ou existirem.Como Norma achar melhor.

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CAPÍTULO 23 1 Agora só tem pra frente. Olhou pra trás, vira estátua de salque nem a mulher de Lot. O que passou, passou, não deixe quePerseu vire pedra no olhar da Medusa. Nem pergunte por quê, sóiria estragar tudo entre nós. Com o tempo e muita Norma Propp,conseguia tirar a festa da cabeça, esquecia até o casamento queestava marcado. Esqueci completamente aquela casa monstruosa,onde todas as coisas reais sempre acabavam se transformando emcerimônias. Em ruínas da realidade. 2 — Cuidado, filho, Propp me alertou. Você está saindo daparte preparatória. Já está além da função gama-1, a proibição. Jápassou pela transgressão da proibição, a função delta-3. Agoraestá ingressando na zona A, a Região do Dano. De agora emdiante, todo cuidado é pouco. Mas pode confiar que vamos fazertudo que estiver a nosso alcance para que ultrapasse essa áreacom um mínimo de escoriações. 3 Parecia que nada ia adiante. TUDO TINHA MUDADO, estácerto. Mas tudo só mudava do parado para o parado. Minharelação com Norma passava meses sem que acontecesse nada.Não era o pior dos nadas, podia haver piores. A gente se via, atéfizemos algumas coisas, mas nada podia disfarçar aquele cheirode queimado, a gente cultivando aquela falta entre nós, duaspessoas cuidando juntas da mesma planta carnívora. 4 — O caixão está vazio, bobinho, ela sussurrou. Se vocêquiser, vamos lá ver. Cada um se vestiu como pôde, e lá fomos descendo escadasno escuro até a cena do velório. Não tinha ninguém. A únicapessoa que tinha era uma velha dormindo, de maneira querealmente não tinha ninguém. Chegamos até o caixão. Lá estava,lá dentro, aquela puta mulher, que cantava pra caralho, e com aqual eu sabia que, cedo ou tarde, ia ter que me casar. 5 Ficava muito bem como cadáver. Não era como esses mortosque ainda não assumiram, e ainda guardam aquela expressão deum vivo que foi surpreendido pelo apito do juiz marcando o finaldo segundo tempo. Difícil encontrar cadáver mais convicto. Ela não estavamorta. Estava ali, na fronteira entre dois mundos, quase sorrindo,no sorriso, quase dizendo, meu deus, ninguém imaginava que eratão fácil! 6 Para uma noite, era função de Propp demais pro cu de umsó. E minha alma de astrônomo não tinha motor de caminhão. Apróxima emoção que viesse ia ter que dormir no corredor, estácerto que eu sou o herói, mas assim também já é demais. Vai serherói assim na puta que o pariu. Por falar nisso, adivinhem quemeu vi ontem? Dou-lhe uma, dou-lhe duas, dou-lhe Norma Propp,se você adivinhar. Também não sei o que você vai fazer com ela.

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Eu nunca soube. Um dia, ela me disse: — Acho você um cara muito vazio, sabe? Olhei para mim, a luz me atravessava como se eu fosseapenas o actante de uma das funções. E eu queria ser real, ah,como eu queria ser real para que Norma me tocasse, meapalpasse, apertasse meu bíceps esquerdo e dissesse, que muque! Daí eu diria: — Você ainda não viu nada. E ela: — Também, você não me mostra. E, quando visse, ia querer e ia ganhar, e ia ganhar Norma,porque o caminho para o coração das mulheres entra por baixo,isso nem precisava ter atingido a sabedoria para perceber. 7 Naquele tempo, a gente mudava muito. Os preços dosaluguéis viviam subindo, passavam do limite do orçamento, e agente mudava, sempre para um lugar pior, mais longe, maisapertado e mais cheio de maridos espancando a mulher e criançaschutando os cachorros. E assim lá ia eu para a minha quinta mudança em um ano emeio. Norma ficou de me ajudar. Não era muita coisa, a tralha desempre de um estudante solteiro, livros, apostilas, discos,revistinhas de sacanagem, os posters de Guevara e Hendrix, aspeças de um sonho que a gente ia remontar num novo tabuleiro. Naquele tempo, sempre ia acontecer alguma coisa. Jesus iavoltar. A bomba ia cair. O preço da vodca ia subir. O telefone iatocar. Ia, ia, ia. Norma veio, mas veio tarde. Quando ela chegou, acaminhonete já tinha levado tudo (tudo?) para o novo endereço. Só restava a cama e o colchão, no canto de um quarto vazio.Pelas paredes, a ausência dos posters fazia marcas de sol, buracosnegros por onde eu podia meter a mão e (ai!) apalpar meusmachucados. Não consigo distinguir aquela sensação de quando a gentemuda de casa da emoção de estar ali sentado na cama de mãosdadas com Norma. — Não tenho sido legal com você, não é? — Um pouco. — Você tem que entender. Eu não sei o que é. Talvez algumacoisa. Mas tenho certeza que um dia. Afinal. Não é mesmo? Eu disse, claro. E Norma levantou, e começou a falar comoseria bom ter um quarto maior, com uma janela maior, nemperdeu a oportunidade de fantasiar uma varanda, explodindo emgaiolas de passarinho nas manhãs de sol. Naquele ano, parecia que todo mundo tinha enlouquecido.Como se algum cometa estivesse pra chegar. Quem nunca rezou, estava fazendo novena. Materialistasapareciam usando contas de Oxalá. Quem nunca roubou umpalito de fósforo, estava dando desfalque em banco. Os filhosestavam virando pais, aos milhares, e os pais e mães mijavam nas

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fraldas e pediam colo. Aquele ano, vocês sabem. CAPÍTULO 24 1 Dei o braço a Norma e descemos a escada com a elegânciaque uma pedra de gelo exige para voltar a ser água. Descemos a escada toda, sob pesado bombardeio deaplausos. Pensei que ia morrer de tanto amor, Norma estavadivina. E se distribuiu pela sala, como se fosse um saco demoedas repartidas entre os pobres. O mordomo se aproximou, com o quê mesmo na mão? Me adiantei. — Já sei, já sei, telefone pra mim. Ele foi gentil, já que era pago para isso. — Não sei como o senhor adivinhou. 2 Era um papo comprido sobre os warhoos e os seres gasososdos pantanais de Canópus, que eu já não tinha mais saco praagüentar. Que se fodam os quartzos de Randôri, os burle-marx denoigandres, os odradex de Íon. Tinha mais a fazer que ficarescutando os despropósitos de uma birutinha, que rondava a festacomo uma fera esperando a vítima acabar de morrer. 3 Por que é que não tive uma irmã? Por que é que não crescicom alguém que acordava se olhando no espelho, pintando osolhos, ajeitando o cabelo, mordendo os lábios até ficarem embrasa como uma maçã madura? Agora era tarde. Já estávamos na função lambda. 4 Recompondo a cena do crime. Eu estava ali com o telefoneem uma mão e a faca na outra. A vítima flutuava numa poça desangue. O pescoço tinha recebido um corte de orelha a orelha, quedeixava à mostra as cordas vocais, onde um dó maior com quintaaumentada ainda vibrava ao vento. O inspetor perguntou: — Quantas testemunhas? Os criados em coro: — Todos nós, senhor. E para mim: — O senhor quer ter a bondade de me entregar essa facaensangüentada? — Ora, inspector, esta faca está toda suja do sangue destamoça. Deixe eu apanhar uma limpinha para o senhor. — Não, eu adoro facas ensangüentadas. Fico com essa aímesmo. Ah, Norma Propp, se você soubesse tudo o que eu sinto porvocê. 5 — Se alguém tem alguma coisa a dizer contra estecasamento, fale agora ou cale-se para sempre. E todos realizaram aquele nosso mais fundo desejo infantil. Um gritou:

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— Eu tenho, reverendo! Essa mulher é uma vagabunda! — Ela trepou com o noivo antes do casamento! — Ela já é casada! — Ela tem um amante! — Ela cobra um absurdo pra chupar um pau! Foi com muita fleugma que virei a cabeça para olhar amassa dos fiéis, donde saíam aquelas vozes. Nisso, uma voz gritou: — Esse cara é viado! — A mãe dele está na zona! — Vi ele de sacanagem com a menininha lá fora! — Ele tem filho com tudo quanto é mulher! Enquanto diziam aquelas coisas da minha noiva, eu aindapodia tolerar. Mas essa súbita mudança da fortuna, desviando aartilharia de impropérios para cima da minha pessoa, eraintolerável. Localizei o cara, e gritei, que ecoou na igreja toda: — Viado é a puta que o pariu! E parti pra cima. Enfiei a aliança no mindinho da mãodireita, e já cheguei batendo. A primeira porrada com a aliançaacertou em cima do olho direito, e espirrou sangue. O filho do carame agarrou por trás, e eu fiz ele ajoelhar contrito com umacotovelada no saco. O padre pulou como um tigre, e gritou para o sacristão: — Protege o Santíssimo, o cibório, o ostensório, o turíbulo, ocálice e a patena, que eu vou mostrar a esses filhos da puta o queacontece pra quem não respeita a Casa do Senhor. Arregaçou a batina, e veio com tudo. Não deu para eu mevirar a tempo, e o homem de Deus me acertou um pontapé nosrins, que doeu que nem um gole de gim puro em jejum. Rolei nomeio das pernas de umas velhas, que caíram para trás, o primeirobanco derrubou o segundo, que derrubou o terceiro, e assim até aentrada da igreja, como se fossem pedras de dominó. Do alto do púlpito, o sacristão bombardeava a balbúrdia comhóstias, galhetas de vinho, mitras episcopais, versos em latim,gritando sem parar: — Mas que diabo de casamento é esse? 6 Telefone grudado na orelha pra abafar a algazarra da festa,perguntei, de saco cheio: — E daí?, que foi que os seres gasosos dos pantanais deCanópus fizeram? 7 — Vamos brincar de futuro? Só me faltava mais essa. Bem agora que já estava quase naporta de Norma, me aparece, bem, vocês sabem quem. Produzi a cara mais puta da vida que eu tinha no estoque decaras para essas horas quando uma garotinha pentelha chega pravocê e diz: — Vamos brincar de futuro? Contei 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 1 de novo, 2, e disse: — Puxa, como é que você adivinhou? Eu adoro brincar defuturo. Como é que é?

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— Ê assim, ela disse. Imagine por exemplo que você estácasado com Norma. — Sim, eu disse, estou casado com Norma. E daí? — Suponha que ela engane você. — Olhe aqui, garotinha, eu. — Espere. Suponha. — Ela nunca me enganaria. — Aí é que você se engana. — Como assim? — Você nunca notou, imbecil, ela não existe, nem nuncaexistiu? 8 Antes da matéria, existia uma coisa antes da matéria, antesda memória, assim como antes de todas as histórias sempre existeuma história. Difícil comparar a matéria com o que existia antes,impossível comparar esta história com as histórias que existiramantes. Gasosa, líquida, sólida, a matéria é muito pobre de estadosem comparação com o que existia antes. O que existia antes era,ao mesmo tempo, muito mais simples e muito mais complicado, seé que me exprimo bem. Afinal, as histórias de antes também erammais simples e mais complicadas. Mas sobre a coisa que existia antes da matéria, não ficaramhistórias. Essa menina precisava levar umas palmadas. CAPÍTULO 25 l — Norma ressuscitou! — Ela voltou à vida! — Viva a vida! No caixão, Norma abriu os olhos, olhou em volta, e se ergueuderramando flores por todos os lados. E nua como estava, ospeitões à mostra, sentada no caixão, começou a cantar e a gentedeglutindo, vidrados. Vários dos presentes tiraram o pau pra fora,e começaram a se masturbar como se a vida fosse terminar ali.Nem faltou que algumas senhoras levassem a mão ao grelo, ecomeçassem a acariciar o botão do amor, revirando os olhos,enquanto o carrossel das melodias subia e descia, fluindo da bocade Norma, ondas de luz quebrando nas praias da alma de todomundo. Até um sujeito meio vazio que nem eu sentia vontade de irpara o céu, se é que já não estava lá, quando ouvia Norma,naquilo: Cold, No, I wont believe your heart is cold, Maybe he is just afraid To be broken again... O dono da casa bateu palmas e gritou: — Bravo! Bravíssimo!, e se virou para todo mundo. — Isso merece uma comemoração. Que tal se a gente desseuma festa para Norma? Vamos comemorar a volta de Norma,pessoal. Um dos parasitas presentes se virou para a mulher e disse:

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— Sabe, querida, que é uma boa idéia? Como é que a gentenão pensou nisso antes? — Um dia antes, ela falou. Pensei comigo: — Pronto. É agora que essa porra dessa festa não vaiterminar nunca. 2 Um dia, o pai de Norma me chamou no consultório. Depoisde muitas histórias, deu a entender, tinha uma confissão a fazer.Era um segredo terrível, ele o arrastava há anos como uma bola deferro nos pés. — Ora, professor, eu disse. Entre nós, não existem segredos.Por acaso não lhe contei daquela vez em que entrei debaixo dascobertas e fiquei brincando com o pau do meu pai? E aquela outraem que vesti o robe de chambre da minha mãe, pintei os lábios efui para a frente do espelho me masturbar? E o prazer que eusentia quando era menino em jogar sapos vivos nas brasas deuma fogueira só para vê-los inchar, virar uma bola e explodir,enquanto eu aplaudia e gritava, bis, bis, bravo, bravíssimo! E vaime dizer que o senhor não conhece o conteúdo verdadeiro dasminhas relações com a fotografia de Odete Antunes? E tudo aquiloque lhe contei sobre a minha primeira relação com uma mulher,aquela que estava menstruada, lembra?, e eu tirei o pau e penseique a tinha matado? O senhor não pode esquecer tudo o quehouve entre nós. Não seja assim, professor. Seja bonzinho, e meconte tudo, tintim por tintim. Nessas alturas, o professor, comovido, já estava deitado nomeu colo, soluçando, e eu fiquei alisando seus poucos cabelosbrancos, e dizendo: — Calma, calma, meu velho. Tudo vai se arranjar, você vaiver. A vida não é tão péssima assim, veja tudo com olhos decriança, pense positivo, o pior já passou, o Natal está aí, e o amoraté existe. Quanto mais eu falava, mais o velho soluçava no meu colo,soluçava tão convulsivamente que, temendo alguma fratura grave,levantei um joelho, no joelho levantando a cabeça de Propp, comoquem retira uma azeitona de dentro de uma sopa. E espinafrei: — Qual é, cara? Vai ficar nessa a noite toda? Pensando oquê? Que meu colo é banco de praça? O professor se recompôs. Secou os olhos, puxou o lenço,enxugou os óculos, levantou o peito, olhou para fora, pigarreou,suspirou fundo e proclamou: — A minha teoria não é minha. Aquilo me fulminou como um raio, como se Norma tivessemordido a cabeça do meu pau. — Não é sua?, perguntei, indignado, sacudindo o velho peloscolarinhos. Mas então você me bota nessa fria, me mete nessahistória, me faz comer o pão que o diabo amassou, joga dragõesna minha frente, me introduz e me tira de festas cheias demeninas birutas, mulheres que morrem, bacanais que nãoacontecem, me obriga a encarar esses enredos de filmes de terrorclasse C, e agora vem você, e me diz que a teoria não é sua?

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Enquanto eu dizia tudo isso, percutia o velho professor namuralha de coleções encadernadas, que batiam continência emsua estante. A inspiração passou, e eu larguei ele como quem desiste deuma idéia. — Não é minha, ele confessou, quase ganindo. Quem aformulou era um velho professor russo, maníaco por folclore, elepegava as histórias populares, as fábulas e as anedotas, e asreduzia a funções num jogo algébrico, que era sempre o mesmo, eque dava sempre na mesma. Li seu livro, que passou despercebidona época porque, você sabe, naquela época, as pessoas estavammuito preocupadas em viver para prestar atenção nos problemasdas histórias. Jung, Ferenczi, Adler, Reich, todos os meus colegastinham suas próprias teorias, variantes dignas do pensamento domestre. Só eu não tinha. Todo o esforço que eu fazia nessa direçãoredundava em fracasso. Para mim, o dentro do homem era umadoença incurável. A subjetividade, uma ilusão de ótica e deacústica. A alma apenas o subproduto de uma pessoa ficarsozinha. Para mim, não tinha nada lá dentro, entende? Como éque eu ia, imagine como é que eu ia conseguir criar algum sabersobre alguma coisa que eu nem tinha certeza que sequer, talvez,existisse? E, de repente, ali estavam os esquemas, suas lógicasindiscutíveis, suas álgebras impecáveis. Me apossei daquilo, etransformei suas teorias na minha. Nessa em que você está, meufilho. Sacudi o velho e perguntei, frenético: — Qual era o nome dele? O nome dele! — Meu filho, será que você nunca aprende mesmo? Evidenteque o nome é Vladimir Propp, às suas ordens, para ser preciso. 3 Os warhoos não eram tão aqueles quanto eu imaginava. Nãoé que os idiotas em vez de concentrar todo o seu esforço nacriação de oms, não, os imbecis preferiram entnong com os seresgasosos de Canópus. Ela me contou tudo, tudinho, miríades depalinuros já tinham esclumps tronx, até que os ninurtmestrinquem gagindas. Não podia ser pior. CAPÍTULO 26 1 — Falou de novo no assunto. — Quem falou? — Ele. Quando Norma dizia ele daquele jeito, eu já sabia, lá vinhaalgum bernardo dar aqueles nozinhos apertados no meu sistemanervoso. Eu, todo travado, as palavras tropeçando na boca, ospensamentos se embrulhando na cabeça que nem indigestão. — Ele falou?, eu não sabia que ele falava, quero dizer, queótimo, você falou alguma coisa? — O que é que eu podia? O que é que Norma podia ter dito? Insuportável nas normasdesta vida é que elas não tenham uma tela de TV na testa para agente poder ver o que está comprando, tudo o que Norma medissesse já era uma interpretação, uma seleção olímpica de frases

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e palavras militarmente escolhidas para provocar determinadoefeito sobre mim. O que eu queria era uma fita gravada da conversa toda, comseus ahhhs, seus uhnnns, seus sussurros e meio-tons, na íntegra. Só havia um jeito de eu conseguir isso. Virar Bernardo. 2 — Tem uma coisa que eu não te contei ainda. Tiro de carabina na minha orelha esquerda, facada nos rins,soco de enfarte, agulha de derrame cerebral, bem-vindos! Por queé que Norma tinha que vir, de vez em quando, com aquele, comaquela, com aquilo, tem uma coisa que eu não te contei ainda? Vaiver era por isso que eu vivia com aquela sensação pavorosa de quealguma coisa horrível ia acontecer a qualquer momento. Às vezes até que não era tão terrível assim. Norma não tinhaestado num lugar onde tinha dito que tinha estado, por exemplo,era o caso mais comum. Eu já sabia que a história ia estar cheiade bernardos como pulgas num cachorro de rua. Eu levavaapenas o tempo que uma puta leva para escolher seu nome deguerra, e repetia: — Sabe muito bem que não me deve satisfações. — Sempre esqueço, ela falava. A merda é que aquilo de ela me prestar conta dos seus atos,como se me devesse satisfações, começou a criar em mim umapreocupação por ela, que eu preferiria não sentir. — Norma, por favor, eu dizia. Não me conte mais nada. Eunão quero saber. — É só pra você me conhecer melhor. Mas eu não significonada pra você, não é mesmo? — Norma, você sabe que não é isso. Você significa tanto. — Só sei o que eu vejo. E olhava através de mim como se eu fosse feito de vidro, eu,que era seu espelho de estimação, a menos, é claro, que algumbernardo tivesse uma outra história para contar. 3 — A fantasia erótica é a origem da ficção. E contar um sonhofoi a primeira modalidade de fábula, o proto-gesto que fundoutodo o fabular. Ou seria um efeito de brincar demais com bonecas,na primeira infância? Quando Propp começava com esses papos, eu não tinhadúvida, desligava a máquina e ficava projetando tudo o que eu iafazer com Norma no próximo capítulo. 4 Segundo Propp, depois do Dano, vem a carência do herói.Ainda bem que não era ele que, bem, todo mundo sabe. Mas temuma coisa sobre a qual eu não quero. De jeito nenhum. O que eu precisava mesmo era voltar para aquela festa, comchuva ou sem. Lá pelo menos tinha alguma coisa pra dizer. Nemque fosse: — Tem fogo? Norma olhou pra mim com aquele ar que a gente faz quandovira o rosto em direção ao vento, farejando cheiro de queimado. E mandou contra o vento:

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Cold, No, I wont believe your heart is cold. Lindo, mas não era o que eu queria aquela hora. O que eubuscava tateando no escuro com dez mil dedos era um botão paraapertar e mandar Norma, todas as normas, pelos ares, que era seulugar. 5 Ninguém mais agüentava os papos sobre aqueles seresgasosos que, tomara, já deveriam ter dizimado de tédio todos oswarhoos. Ninguém mais, no caso, era eu mesmo. CAPÍTULO 27 1 Misturando bem todas as cartas, talvez desse uma coisaparecida com isso que se combinou chamar de vida. Só ia ficarfaltando vida, é claro. Mas a dita tem formas estranhas de semanifestar. Afinal, que é que uma Augustifólia PermanensPraguensis, um bacilo, uma cascavel, um golfinho, o que é que essas coisas têm que os esquemas de Propp nãotinham? O que é que eu tinha? Dramático como um autômato se ajoelhando diante daúltima plantinha, Propp não quis nem saber: — Você não tem nada. Ninguém tem nada. É tudo um malsem cura. Um mau negócio, muitos prejuízos, alguns lucros nocomeço, alguns lucros no final, talvez. O dinheiro? A mulher? Aglória? O poder? Quem sabe. Olhei para ele, a idade escrita no corpo. Ele tinha razão. Maseu também tinha. 2 Depois de um tempo em que a gente se entendeu às milmaravilhas, um e o outro estava começando a virar estranho de novo. Várias vezes, quando a gente se encontrou, eu sabia que elasabia e ela sabia que eu sabia que estávamos procurando um jeitopara sufocar uma coisa que nem bem tinha começado. Um rapaza caminho da sabedoria, como eu, tinha que ficar atento aosmínimos detalhes. Às vezes me parecia tão difícil quanto amarduas mulheres ao mesmo tempo. Dizem que as mulheresconseguem amar mais de um homem ao mesmo tempo. Afinal,uma mãe não ama com o mesmo amor dois, três, cinco, dez filhos,saídos da sua barriga? Acho que falei essas coisas, e disse algo como: — Você é uma figura estranha, sabia? — Nem todo mundo acha, ela respondeu, apanhando suasroupas, espalhadas por todo o chão do quarto, misturadas queestavam com as minhas. 3 Lembro dessa época com muita nitidez. A escada de madeirarangendo, enquanto eu subia e descia do consultório. A lâmpadaverde em cima da mesinha de Norma. O cheiro de éter e livrosvelhos que emanava do professor Propp, embora não tivesse éter

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no consultório e as lombadas das suas coleções de livros luzissemcomo uniformes de oficiais em dia de parada. Mas nunca fui bom observador de detalhes. Não era pramenos que continuava sendo o aluno mais fraco da turma deastronomia. O que eu lembrava mais dessa época eram ossentimentos que eu temia, coisas que tinham nome. Ciúme,inveja, paixão, teimosia, receio. As coisas que eu sinto hoje estãoalém das palavras. E tenho saudade daqueles sentimentos tãoprecisos que eu podia transformá-los em deuses, em pequenosídolos, com seu templo, sua liturgia, seus momentos sagrados. Isso passa, felizmente. E a gente sempre volta à perplexidadeinicial, donde nunca deveríamos ter saído, eu acho, melhor, tenhocerteza. 4 Numa festa como aquela eu não precisava de coisa alguma,muito menos de encontrar o professor Propp, conversando, comose fosse três, numa roda, com um copo de uísque na mão, ele quenunca bebia. Num primeiro instante, julguei estar sendo vítima de umaalucinação. Firmei os olhos, e não havia dúvidas. Era ele mesmo.Me aproximei, meio de lado, pedindo licença e trocandoamenidades monossilábicas com aqueles ilustres obstáculos queme separavam do professor. Enfiei a cabeça na roda, me acomodeientre um velho magro que ria, balançando a barriga, e um rapazgordo que escutava, os olhos quase caindo das órbitas. Foi quando eu disse: — Professor!, o senhor aqui? — Perdão?, ele perguntou. — Que bom o senhor aqui. — Desculpe a pergunta, cavalheiro, ele falou. Mas nós já nosvimos antes? 5 — Tá bem. Quero conhecer o Bernardo. Ela parou, um passo em minha frente. — Sério? Não sei se você vai gostar. Vocês são tão diferentes. — Escute aqui, Norma. Não sei o que você sente por mim,mas isso não te dá o direito de me fazer de palhaço. Ou você meapresenta esse cara, ou então a gente não se vê mais, está bempra você? — Já que você insiste. Nas semanas que se seguiram, a gente continuou se vendo.Uma vez até que foi bem legal. Como antigamente. Em outras, tevemomentos de botar na garrafa térmica, para ter no dia seguinte, eno outro, e no outro. Mas nada do tal Bernardo. E eu me sentindonaquela de quem telefona, e de duas, uma, ou ninguém atende,ou está ocupado. Tinha ido não sei pra onde. Estava fazendo nãosei o quê. Coitado, quem mandou ter uma mãe como aquela. Já tefalei da mãe dele? Paga todas as contas dele, nunca trabalhou,você sabia? Perdi a paciência. — Olha aqui, Norma, eu não sou criança. Essa tua históriajá está começando a me encher o saco.

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E estava mesmo. Norma marcava um encontro entre nóstrês, ou nós quatro, contando com uma vaga noiva que ele pareciater. E não acontecia nada. Mais desculpas. Mais não deu. MaisBernardo. Resolvi agir por conta própria. Um dia, cheguei mais cedo noconsultório, a porta não estava trancada, como eu sabia, entrei efui direto para a gaveta da mesa de Norma. Peguei o caderno deendereços, e desfilou diante dos meus olhos aquele absurdoexército de nomes e sobrenomes da agenda de qualquer pessoaestranha. Alguns eu conhecia, clientes de Propp, como aquelebiruta que achava que o Pentágono tinha implantado umaminibomba atômica na base do seu cérebro e que, se ele dissesseuma determinada palavra, as ondas das vogais e das consoantesiam fazer a bomba explodir, dando início à solução final doproblema da existência humana. Bem, essas coisas. Li e reli aquela agenda, como um crente lê a Bíblia. De A a Z,de trás pra frente. E nenhum Bernardo. Não precisava inventar nenhum Bernardo. A gente,realmente, tinha muita coisa em comum. A gente não existia, porexemplo. CAPÍTULO 28 1 Do alto da pirâmide dos quarenta séculos da minhasuperioridade militar, fulminei: — Olha aqui, Norma. Por que é que você não vai etc., etc.,etc.? — É o que você quer? — Não, e você? Ficou perdida, e era a minha primeira grande vitória. Nãosabia que eu tinha vasculhado sua agenda de telefones eendereços, não havia nenhum Bernardo. De repente, aquele frio na espinha, subindo como o mercúriono termômetro: — E se ele não tivesse endereço nem telefone? Absurdo,pensei de volta, como se eu tentasse sublinhar uma palavra antes de ela ser escrita. Puro absurdo, pessoassem endereço nem telefone não existem. Mas, e se existissem, seteimassem em existir? E se Bernardo fosse uma delas? E seNorma me levasse a sério, e fosse embora com ele? O que eu tinhanão era muito, era apenas tudo o que eu tinha. 2 Lá fora, um maníaco, louco para acertar um tiro bem aquina minha cabeça. A festa era minha única segurança. Daqui não saio, daquininguém me tira, refleti, pescando um morango daquela enormetaça de nata. Quase cuspi, quando senti o gosto de podre. Aeducação me deteve, e eu engoli. Bem a tempo, o mordomo jáestava ali do lado, servindo o maldito telefone dizendo você, você,você. Você, no caso, claro, era eu. — Diga que eu não estou, melhor, diga que eu não sou, istoé, aliás, vamos parar de bobagem, diz logo que eu, digamos, porexemplo, estou numa reunião, pronto. Anote o recado e mande

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ligar depois. Depois, por favor. Tudo vai ficar para depois. 3 Minha vida sexual se resumia em peidar na cama e tomarbanhos que duravam uma hora e meia. Nessas épocas, meu ciúme piora. Era como se eu culpasseNorma pelo peso do desejo dentro de mim. Aliás, não sei bem seera ciúme, quem é que sabe, com certeza? Mas, se não era, o queé que poderia? E meu, digamos assim, na falta de algum termomais sangrento, escolhia formas aberrantes de se manifestar, e meinfernar a vida. Tinha vez que aparecia na fúria de uma palavra, um talvezqualquer, onde eu sentia, num relâmpago, a presença do inimigo,a passagem do perigo, aquela sombra na parede podia, bem quepodia ser ele, um dos seres gasosos dos pantanais de Canópustinha furado a barreira de antimatéria e os contracorpos doswarhoos, eu warhoo, sabia. Norma cultivava meu desassossego com aqueles desvelos dejardineiro oriental, arrancava essa muda daqui, plantava aliadiante, trocava a terra e regava, uma verdadeira mãe, todasaquelas plantas carnívoras que viviam de bicar meu coração. Então, com uma precisão micrométrica, Norma sempre diziaa palavra errada. Digamos um vocábulo qualquer, uma palavra comum, umapalavra qualquer de oito letras, uma como Bernardo, por exemplo.Escolhi essa, é claro, como podia ter escolhido qualquer outra,estão me entendendo? Claro que eu podia ter escolhido outra,afinal de contas, as palavras são tantas, tantas, tantas, Normas,Márcias, Vilmas, Kátias, Célias, Lúcias, várias. E não tem força nocéu nem na terra que nos impeça de inventar todas as que a gentebem entender. O pior é que essa palavra, quero dizer, qualquer uma dessasme botava num estado, bem, digamos assim, entre o ódio e umaoutra coisa que, daí, sim, não encontro palavras para dizer. Mas,enfim, quem foi que disse que palavras são tudo na vida? Esse meio pânico se confundia com o desejo. E meu pauficava duro de ódio. CAPÍTULO 29 1 — Boa noite, senhores. — Boa noite, professor, respondemos em coro, e Propp foiaté o quadro-negro, a mão cheia de pedaços de giz, e começou aencher o quadro de letras, números e sinais algébricos, até formaruma bela equação, que brilhou na noite, a constelação de Erídanonuma madrugada de verão. As mãos de Propp tremiam enquantoele escrevia. Apagou umas letras, pôs outras no lugar, até que deuum passo para trás, e ficou contemplando a obra. Virou-se paranós, com solenidade episcopal, limpou o giz das mãos no lenço,bafejou nos óculos, esfregou-os no paletó e anunciou, com asimplicidade com que diria “não quero que minha filha se casecom você”: — Senhores, hoje à noite, quero lhes comunicar, em

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primeiríssima mão, minha mais sensacional e recente descoberta,que representa anos de trabalhos, estudos e pesquisas. Avançou um passo, estendeu o braço para o quadro com aexuberante equação, e não deixou por menos: — Senhores, aqui está o segredo da vida eterna. Nem me perguntem como foi que aquilo tudo foi setransformando nessa cena ridícula, todo mundo sentadinho,alunos silenciosos do professor. Propp falou, deu aquele branco, e todo mundo começou acochichar. O professor tolerou os cochichos com a paciência deuma estrela esperando os aplausos acabarem. Então, perguntou: — Quem está interessado na vida eterna? A sala começou a gritar, e levantar o braço: — Eu! Eu! — Quero duas! Uma pra mim, outra pro meu pai! — Vida eterna! Vida eterna! Propp começou a conferir os braços levantados, todos,menos um, apontavam para o teto. — O senhor aí, ele falou. Por que não levanta o braço? — É que é o seguinte, professor. O senhor sabe como é, osenhor vai me desculpar, mas eu não estou interessado numavida eterna. Durante o agudo segundo de silêncio que se seguiu, senti denovo aquele cheiro de queimado, agulha de acupuntura entrandona minha narina até o cérebro. Propp falou para a turma: — Aqui temos, senhores, o caso curioso de alguém que nãoquer a vida eterna. E ironizou: — Será que o senhor poderia dizer pra nós todos o que é queo senhor tem contra a vida eterna? Conhece alguma melhor? E piscou para a turma, que explodiu numa gargalhada só. Deixei que rissem de mim até as lágrimas, até o delírio, até oorgasmo. Quando todo mundo já tinha gozado, era minha vez: — Não, não conheço. Mas essa aí demora muito. Ninguém riu, muito provavelmente porque já tinhamesgotado todo seu estoque de risos por uma hora. Propp se recompôs: — Vocês querem explicação? O auditório ficou de pé, no brado: — Explica! Explica! Explica! Senti uma dor na barriga, e filosofei: tenho que cagar.Levantei, pedi licença ao professor, e saí da sala em direção aobanheiro, por aquele corredor como uma tripa, que serpenteavapela casa até o cu de uma privada. O chão era uma areiamovediça de papéis cagados, camisas-de-vênus cheias de porra,paninhos vermelhos de menstruação, boiando no vômito e nomijo. Sentei na privada sem tampa, encaixando a bunda naquelaroda gelada, e caguei, caguei como um deus, caguei com o fervorde Jesus suando sangue no Horto das Oliveiras. Bem na minha

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frente, a janelinha estava aberta, e eu podia ver um pedacinho docéu estrelado. Como não tinha nada pra ler, e quando a gentecaga a gente precisa ler pra esquecer que é bicho, comecei aobservar a massa de estrelas que me era dado ver. A delta do CãoMaior? A alfa do Centauro? Ah, aquela ali não me engana, comaquelas pernas, aquele cabelo, aquela bucetinha apertada, sópode ser, você, a gama da constelação de Virgem, Cassiopéia?Pensei em Norma, e meu pau começou a ficar duro, só que acabeça bateu na borda fria da privada, e o pau voltou, paralelocom um troço que saía do meu cu para mergulhar, olímpico, nosoceanos infinitos das cloacas. Mais uma almôndega, e o casoestava encerrado. Peguei uma nota de cinco mil, limpei o cu, e jáia levantando as calças, quando vi que meu pau ainda dava sinaisde vida. Fantasiei com Norma até ejacular, porra para a porra,vida para a vida. Só então lembrei que, lá na sala, me esperava a equação davida eterna. 2 Quando voltei, estranhei o silêncio. Abri a porta, e ascadeiras estavam todas vazias. Na pedra, ainda, a equação doprofessor Propp resumia todas as possibilidades da vida humana,e alguma incógnita ali ainda prometia a vida eterna. — Você perdeu, ouvi uma voz dizer atrás de mim. Era umadas senhoras da festa, uma moreninha que, de tanto me notar,acabei notando. — O que foi que eu perdi? — A explicação da equação da vida eterna. — Acabou? — Não ainda, ela disse. Ainda faltam uns detalhes. Mas, nogeral, é negócio fechado. — E onde é que foi todo mundo? E o professor? — O pessoal está no recreio. Ele deve estar na sala dosprofessores. Com licença, professor. O senhor aqui? Onde mais? — Venha me ver no próximo capítulo. Tem muito praconversar. 3 — O pessoal está no recreio. O professor deu uma hora pragente ensaiar ao vivo. — Ao vivo?, eu perguntei. — É, ele mandou cada um assumir um personagem,escolher suas funções e partir para a vida. — A vida? — Claro, está todo mundo brincando de 31. Você conta até31, e eu, bem, você sabe o que é 31. — Eu conto, e você se esconde. — Não é justo. Par ou ímpar. Quem ganhar, se esconde. — Par. — Impar. — Dois. — Três. — Cinco. Ímpar. Ganhei. Eu me escondo.

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— Um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, vinte, vinte enove, trinta, trinta e um. Trinta e dois, trinta e três, trinta e quatro, trinta e cinco, afebre começava a aumentar, trinta e seis, trinta e sete, trinta eoito, trinta e nove, a febre de procurar, atrás de cada arbusto,dentro de cada sombra, abrir todas as portas, levantar todas aspedras, olhar em todos os buracos, e de repente um tiro arrancarum pedaço de pedra da coluna onde você está encostado, a quatrodedos da tua orelha esquerda. 4 Me encolhi e me agachei, roxo de pânico. Tinha caído denovo na armadilha. Eu estava fora da festa. Corri até um arbusto,me joguei no chão, e engatinhei por dentro do mato, piolhobuscando uma saída dentro de uma floresta de pentelhos. Descimais com a língua e a ponta deu a volta no clitóris, a parte dohomem que fala dando pinceladas de Van Gogh na parte damulher que só diz: ahhhhhhh, é demais, iiiihhhh, eu vou morrerde novo, uuuuuuuui, como é bom. Entre as pernas, o pau, batendo que nem rabo de cachorroquando vê o dono, vai ter que ficar quieto, enquanto eu acabo estetrabalho. Calma, calma, rapaz, você já vai. Aquela fumaça lálonge, aquela nuvem de poeira, não são comanches nem apaches.Parece bem mais a boca de Norma Propp, que vem para jantar. 5 Durante o jantar, Norma e eu falamos pouco, como já estavavirando uma tradição entre nós, digna de ser tombada peloInstituto Histórico e Geográfico. Levou o garfo aos lábios, com a mesma naturalidade comque engolia o que eu tinha de mais eterno, os milhões deespermatozóides com minha programação genética, pululando emmiríades, numerosas como as estrelas do céu. Pela bilionésima vez, não soube o que dizer. — Não está sentindo um cheiro de queimado? — Quem, eu?, eu perguntei, separando as batatas fritas doarroz que tentava atacá-las como glóbulos brancos atacando umacélula amarela de câncer. — Não, Bernardo, um teu antepassado, ela ironizou. Fiquei sem ter o que falar, mas não havia força no mundoque me impedisse de despejar molho em cima daquele monte defarinha, que coroava meu prato, a pirâmide de um faraó no meiodo deserto. Com uma colherada de queijo ralado, enterrei parasempre o pedaço de carneiro, que continuava insistindo emmanter excelentes relações diplomáticas comigo. — Você acha que esse carneiro está queimado?, euperguntei. Cheirou o prato, levantou as narinas, a luz nos olhos azuis. — Não, vem de mais longe. Arrependido, desenterrei o pedaço de carneiro debaixo daduna de queijo ralado, e já ia transformá-lo em parte de mim,quando quis saber: — Por que é que você me chamou de Bernardo?, perguntei,sério.

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— Ninguém chamou você de Bernardo. — Como não? Você falou tão alto que todo mundo ouviu.Quer ver uma coisa? Levantei, fui até a mesa mais próxima, e perguntei ao senhorpresente. — O senhor está de prova. Esta mulher me chamou deBernardo. Ele me olhou como um sapo olhando para a Mona Lisa. E foimeu fim: — Desculpe, meu senhor. Mas eu ainda não acabei dechegar. 6 Coisa sobre a qual eu não quero falar, não me obrigue a lhedizer umas verdades. Não me obrigue a lhe dizer que, bem, vocêsabe muito melhor que eu que não é bem assim. Você que vive nosilêncio, Photoblepharon Palpebratus fosforescente nas trevas dasprofundidades abissais do oceano, silêncio seja teu elemento,coisa maior que todas as palavras juntas, coisa ruim, coisa à-toa,coisa qualquer, qualquer coisa, menos falar. Ah, se Propp me visse agora. CAPÍTULO 30 1 Atendi o chamado do professor, e fui ao consultório tirar alimpo aquela história de vida eterna. — Que história é essa?, já entrei perguntando. Vida eterna éa puta que o pariu! O senhor mesmo me disse que um terceirolugar já é uma marca e tanto. Me deixou desabafar os dez minutos regulamentares.Obtemperei. Ele tergiversou. Prorroguei. Ele indeferiu. Desabafei àvontade, Propp ouviu, desviou os olhos, ouviu de novo, e ouviu, edisse: — Uma coisa que eu quero dizer faz muito tempo, nuncaachei um jeito. Você sabe, certas coisas não são fáceis de dizer.Seu filho morreu, você está com câncer, está despedido. Nemsempre dá pra dizer “eu te amo”, você compreende isso? E começou a chorar, coisa que eu detesto. A gente não sabeo que fazer. Dar um soco na nuca? Chamar os bombeiros? Gritar“o senhor é meu pastor, vamos pastar”? — O senhor está ganhando tempo. Vamos ao que interessa,professor. — Muito bem, Propp disse, ajeitando a roupa amarfanhada.O caso é que você, digamos assim, você não é necessário. Gelei. — Necessário, necessário como? — É. Isso. Não é preciso você existir. Essa é a raiz do seumal. Mas não se preocupe, a gente vai dar um jeito. Logo, logo,você vai ter a sua função, e daí você vai se sentir sólido como umparalelepípedo e vai ver a vida com outros olhos. — À merda com os outros olhos, eu gritei. Quero ver com osmeus. — Tarde demais, disse Propp. Agora, eu percebo, você não éapenas desnecessário. É um elemento nocivo. Não vou deixar que

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contamine meus outros personagens com essa mania degrandeza. Caso ainda não saiba, eu sou um warhoo, e, pelo crimede me encher o saco, eu condeno você, ser gasoso dos pantanaisde Canópus, a ser congelado em palavras no planeta Terra, eexilado para sempre até o próximo capítulo. 2 O problema é que eu não podia sair da festa. Um buraco debala bem no meio da testa não era bem minha idéia de felicidade. Cigarro apagado entre os dedos, continuei procurando fogo,até uma vasta senhora, da boca saía uma piteira, elegante fio decapim balançando ao vento. Ao ouvir minha pergunta, me olhou de cima a baixo ecomeçou a fazer, entre baforadas, um discurso contra os perigosdo fumo. E de como era muito mais feliz no tempo em que nãofumava, também era a época em que eu estava com aquele,aquele, como é mesmo o nome? Fui salvo a tempo por aquela mão que me segurou o braço epela voz que me disse: — Alguém gostaria de vê-lo, senhor. — Mas eu não quero ver ninguém, esbravejei. Considerando, porém, que era uma chance de escapar dasbaforadas da piteira, pedi licença e acompanhei o serviçal. Ele me levou por várias portas até os fundos da casa,subimos umas escadas e, de repente, eu parei: — Espere aí. Se for pra ir lá fora, não conte comigo. Lá fora,tem um maluco querendo acertar uma bala bem aqui na minhacabeça. — Não se preocupe, senhor. Já estamos chegando. Abriu uma porta e me introduziu no recinto, uma casa debonecas, povoada por enormes ursos de pelúcia. Quando me viu, Norminha veio correndo até mim, gritando: — Ele está vindo! Ele está vindo!, e se agarrou nas minhaspernas com tanta força que quase caí para trás. — Calma, calma, eu falei. Eu já vim. Olha eu aqui. E fiquei passando a mão em seus cabelos. — Não estou falando de você, ela se afastou. Estou falandodo cometa. — Cometa? Que cometa? — Quer ser astrônomo e não sabe? O cometa Halley vem aí! Claro, claro, como é que eu podia ter esquecido? O Halleyvoltava em 1986. — O Halley vem aí, eu disse. E daí? — Ele vem pra me apanhar, ele vem me pegar, e chorava umchoro feito de todas as desgraças. — Não chore, tentei consolá-la. Eu estou aqui, não voudeixar nenhum cometa pegar você. Ela me soltou, e recuou de novo: — Mas você não entende nada, não é mesmo? Enxugou os olhos com as costas das mãozinhas, e revelou: — Ele vem pra me apanhar, eu vou voltar pra casa. 3 Quase entendi:

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— Duas histórias, meu filho, não podem ocupar o mesmolugar no espaçotempo. Logo personagem algum pode dar conta demais de um enredo no mesmo lapso. Mas me fiz de desentendido bem a tempo: — A cada dia que passa as coisas vão ficando cada vez maiscomplicadas, à medida que o tempo vai passando, passando,passando, vão se complicando ainda mais, mais e mais. Ê por issoque as pessoas morrem, morrem, morrem. Morrem porque nãoagüentam mais tamanha complicação, complicação, complicação. 4 Enquanto isso, ela não parava de cantar: O, P, Q, R, S, tire da cabeça essa idéia maluca, a alma só cresce quando se machuca. 5 — Ah, vamos mudar de assunto, não tem nada mais chatoque lembranças dos tempos de escola. Todo mundo igual, todomundo os mesmos problemas, todo mundo aquelas coisas, atéparece os esquemas do meu pai. — Por falar nisso, Norma, uma coisa que nunca perguntei.Você acredita mesmo, mas acredita mesmo, naqueles esquemasdele? Já viu alguém ficar bom com aquele tratamento? — Bem, ela falou. Ainda é cedo pra dizer. Afinal, você é oprimeiro. CAPÍTULO 31 1 Passava, aparentemente indiferente, por um grupo deconvivas, quando ouvi, claro, de um deles: — Na Flandres, e mais na Alemanha, é proeza de altagalantaria, singeleza e boa lei, beberem os homens tanto, queperdem a tramontana. Mas esta tal usança não pode desmentirnem honrar o desvario que há nela, porque aquela demasia é deseu natural injuriosa. — Senhor, há aí umas coisas que não são fastas nemnefastas, e só as faz assim o prolongado costumar. Folgara eumuito que vossa excelência me dera por adivinhado, sem meinstar a ostentar exemplos mais sobejos. Claro, eu estava sendo vítima de uma alucinação acústica. E intuí que as emoções da noite e os estímulos do encontrome fizeram ouvir aquilo que, talvez, na realidade, tinha sidoapenas algo como: — Se não for o bastante, muito mais a gente apanha, foi umfato que nenhum juiz em boa fé duvidaria, viver com ela é umencanto, mas isso fica por conta do marido. O pior é que isso fazia ainda menos sentido. E daí?, fazersentido não é tudo na vida, já dizia minha tia. E viva Propp!, nãoqualquer um, é claro, mas só aquele que um dia me disse: — A lógica? A lógica morreu de um tumor cerebral, no verãode 1878, em Clichy, uma pequena aldeia no interior da França,quase na fronteira com a Alsácia-Lorena.

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2 Cara a cara com aquela buceta, não pude deixar de meperguntar: — O que é que um lugar como esse está fazendo numagarota como você? Pelos anéis de Saturno!, do pouco que eu entendo demulher, e das algumas em quem cheguei mais perto, ou maisdentro, tem menos diferenças entre o céu e a terra do que entreuma buceta virgem e uma que já levou pau. Na de Norma, eu sempre sentia outra coisa: alguma coisaassim que ver com um certo cheiro de queimado. 3 — Acho que estou grávida. Nem olhem pra mim. Saliva não emprenha ninguém. Mas medeixem olhar pra essa mulher que diz que vai ser mãe, e que melambuza com aquele olhar de Nossa Senhora dos Prazeres, e que,de repente, começo a chamar de tudo, e nem levem em conta issode eu cair numa crise de choro, ajoelhado a seus pés, agarrandoseus joelhos, aquele desejo de morrer me estragandocompletamente a estúpida vontade de gritar para sempre quecomeçava a ferver dentro de mim. Sobretudo, me deixem perguntar: — É dele? — Dele quem? — Você sabe de quem. — Não sei, não. Você sabe? — Se você não sabe, que tal a gente esquecer esse assuntotodo? Difícil esquecer um assunto que, dentro de nove meses, vaiestar dando trabalho numa maternidade, bebendo rios de leite demulher e de vaca, acordando a vizinhança na madrugada,cobrando caro em creches e colégios, vivendo às tuas custas, edizendo, sempre que possível, você não está mais com nada. Pensei em escrever uma carta para uma dessas revistasespecializadas nas sacanagens da vida dos outros: prezadosenhor, é possível alguém engravidar sem? E quase ouvi a revistaresponder: meu amigo, isso só foi possível uma vez na história, onenê nasceu robusto, e foi crucificado trinta e três anos depois. Noatual estágio da ciência, etc., etc., etc. Achei melhor perguntar a um colega do curso, o tal que,como eu, pretendia fazer medicina, mas só conseguiu notas parafazer a opção de astronomia. — Depende, ele falou. — Depende de quê? — Bem, do tipo de coisas que vocês, bem, você sabe. — Deixa pra lá, encerrei a consulta, me lembrando daquelavez quando esporreei bem em cima dos pentelhos ruivos deNorma, e esfreguei a geléia real naquele chumaço de pêlos, comose estivesse passando sabão para barbeá-los. Podia acontecer quealgum espermatozóide mais esperto tivesse se insinuado até aboca da buceta de Norma, tivesse passado toda a barreira desecreções ácidas, tivesse galgado as montanhas da entrada da

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vagina e, depois, seguindo viagem, tivesse chegado até os rios quelevam ao ovário, e, olimpicamente, sozinho, tivesse se atirado decabeça num óvulo de Norma, pára se dissolver no jogocaleidoscópico e psicodélico do encontro de rios do códigogenético, a fantástica troca de traços hereditários de cor da pele,forma dos olhos, orelha do avô, cabelos da mãe, estatura dosancestrais, vida saindo da vida, tradução da tradução da traduçãoda. Podia acontecer. Ou não podia? 4 Um perfeito idiota, um dia, perguntou: — Você é, Norma? — Não seja idiota. Você sabe perfeitamente que sim. — Não leve a mal. Perguntei só por perguntar, é que vocêestá, você sabe, e daí, eu pensei, bem, imagine. — Tem muitos modos de ficar, ela protestou. — Não fique tão assim. Eu pensei que só tinha um. Fiquei ali, mexendo o gelo dentro da vodca, aflito com o quepodia ter acontecido às zooms warhoos em seu último ataque aosseres gasosos dos pantanais de Canópus. Dei um gole, levantei e gritei: — Achernar até a morte! Aquele dia, tinha havido um clássico. E pensando que eubrindava ao time vencedor, os torcedores das mesas em volta selevantaram, copos na mão, gritando, em coro: — Até a morte! Até a morte! 5 A primeira mulher que eu comi, passou o lenço lilás nabuceta, e me disse: — Se eu fosse juntar todos os paus que já levei, dava prafazer mais de um quilômetro e meio, de eu atravessar na cordabamba por cima da baía da Guanabara. Nem se esqueceu de acrescentar: — O teu não é dos piores. O tipo grosso é dos meusfavoritos. Quando minha buceta alarga, sinto que estou ficandoenorme, do tamanho de um homem. A porra é que não duramuito. Ainda bem que homem é o que não falta. Tinha que perguntar, gostou? — Escuta aqui, garoto. Está falando com uma profissional.Ainda falta muita buceta pra você virar um campeão. Cala a boca,e chupe aqui, assim, bem aqui, ó. 6 A fila das fatias de rosbife (ou eram pedras de dominó?), nafila, todas as fatias me olhavam com a cor e a cara da buceta deNorma Propp. Viciado, avancei de garfo em punho, e fisguei uma lasca, quecaiu no meu prato como uma puta nos braços do próximo. Foi provar e cuspir. Estava podre. Podre como aquelemorango. Podre como um cachorro morto e podre num terrenobaldio. TUDO TINHA MUDADO. E eu filosofei, com toda a raiva: — Merda. O serviço nessa festa está cada vez pior. 7

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Pior que o cheiro de queimado, era aquela sensação de estarsempre caindo, o pulo num precipício, girando no ar, como umtrapezista que, no salto tríplice sem rede, de olhos vendados,procura no vazio as mãos do parceiro de vertigem. Que outra coisa sentir quando você se acomoda numa roda eouve que dizem coisas como: — Para que é atinar outro siso nem conceito? Agora creio oque diz aquele prócer, que o ventre achou o engenho, e a carênciaé mestra. Isso não era tudo. Falavam de naufrágios no Mar do Norte,mulheres inesgotáveis, o futuro está no fundo do mar. — Isso se houver futuro, alguém observou. E perguntou: — Quem tem? Fiquei quieto, com aquela certeza miúda e quentinha pordentro. Eu tinha futuro. 8 Bem mais fácil, se elas não tivessem essa mania besta de terpais, irmãos, tios, cunhados, filhos, toda essa gente que dá tiros,porradas, entra com processos, faz perguntas, como essa quePropp me fazia: — E agora? — Agora, o quê?, fiz de conta que não era comigo. — Você sabe, o estado de Norma. — É, ela tem estado esquisita ultimamente. — Sabe muito bem que não é disso que estou falando. — Então do que é que é? — Ela não lhe disse que está? — Disse? — E você? — Desejei que o parto seja normal, o bebê nasça saudável,com dois bracinhos só, dois olhinhos no meio da cara, que nãosejam gêmeos e, se forem, que não sejam xifópagos. — Só? — Só. O que mais eu podia querer? Não sou eu quem vai tero bebê. Além do mais, ela é maior de idade, e deve saber o que faz. — Aí é que você se engana. Ela mal completou dezessete. Malditos números ímpares, para sempre malditos o 1, o 3, o5, o 7, o 9. O 31. E, sobretudo, o 17. — Mas ela me disse que tinha feito vinte e um. — Dezessete, ele repetiu. E estou disposto a levar as coisasàs últimas conseqüências. — E que conseqüências são essas? — Bem, você sabe, existem leis. E as leis não gostam quenamorados andem por aí engravidando suas namoradas.Principalmente, quando elas são menores de idade. A pena, paraesses casos, é o casamento. Me ajoelhei diante da superioridade absoluta de Propp,levantei os braços para o alto, me agarrei em suas pernas, e ganicomo um cachorro que cai de um caminhão de mudança. — Não, por favor, professor. Qualquer coisa, menos isso.Acabe comigo agora mesmo, mas não me condene a essa morte

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lenta. E levando a mão ao chaveiro, tirei meu cortador de unha, e oapertei na palma da mão de Propp. — Taí, pegue, corte minha jugular, mas não deixe que mecasem. — O que está feito, está feito, ele disse. E se levantou, melargando no chão, bife mal passado prostrado diante de um ídoloimplacável. 9 Como explicar ao pai que não era bem assim, que certascoisas não engravidam, que não era tão óbvio que eu fosse Propp,melhor dizendo, como explicar a Propp que eu não era o pai? Falarem Bernardo seria o mais lógico, mas, me lembrei, não háregistros dele, nem endereço, nem telefone. Nada mais fácil paraNorma que negar que ele existisse, e provar que tudo não passavade uma invenção minha. Fantasiei uma fuga para o Mato Grosso do Sul, a Austrália,a Legião Estrangeira. O problema é que eu não conhecia ninguémnesses lugares, e viver num lugar assim, Deus me livre, prefirominha festa, onde, pelo menos, eu sei que tem alguém tentandosinceramente acertar um tiro na minha cabeça. 10 A house is not a home, a home is not a house, when the two of us has fallen apart and one of us has a broken heart, sim, Ella, Ella Fitzgerald, tenho certeza, uma gravação de1957, não, minto, dezembro de 56, Ella, mas quem canta comoElla? Saio atrás da voz, mas a casa multiplica os ecos, o zumbidoda festa lá atrás, uma espécie de silêncio ficando velho. Sair láfora, por razões óbvias, nem pensar. Então, vai ser aqui dentromesmo que eu acerto contas com a putinha dessa cantora metidaa grande dama, quando, de grande, só tem a buceta depois delevar um cacete deste tamanho. A última vez que eu a tinha visto,estava bem ali, se abrindo para uns três caras, atenção especialpara um deles, aquele que está encostado na parede, com umaperna levantada, o pé na parede, como se estivesse na rua,encostado num poste, esperando a buceta de Norma passarcantando. Odiei o cara na hora, aquele sorrisinho boçal, o jeito desubir o cigarro até a boca e baixar, o olhar de quem tinha certeza.Se eu estivesse armado, ia até lá, jogava um copo de cianureto depotássio na cara dele e dizia, olhe aqui, seu viadinho, a próximavez, vamos lá pra fora, a próxima vez, eu vou lhe acertar um tirobem no meio da cara. Essa tinha sido a última vez que eu tinhavisto Norma, depois, ela tinha sumido. Aliás, o cara também. 11 — Falei com teu pai ontem. — Eu sei. Ele me disse. — Disse o quê? — Disse. — E agora?

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— Agora é que são elas. — Como assim? — Sei lá. Como é que pode alguém, bem, vocês sabem, tem uma coisasobre a qual de uma vez por todas, eu não quero falar. Mesmo assim, falei, como é que vai ficar agora? — Agora, quando? — Você sabe, ele pra nascer, a gente junto, essa coisa toda. — Tem certeza que as coisas vão se passar dessa maneira? Eu quero esse filho, Norma. Quero que, por causa dele, agente tenha que casar. Só assim vou ter uma vida inteira pra mevingar de tudo o que você já me fez, essa coisa pegajosa e lambidaque eu sinto por você. Uma vida inteira, por Deus! Segundos,minutos, dias, semanas, meses, anos e anos de tortura lenta,chinesa, dedos de ourives no nervo mais exposto! Ia passar dadefesa para o ataque, estava para atingir alguma coisa muitomaior que a sabedoria. 12 No dia seguinte, procurei Propp, e já entrei dizendo com todaa clareza e sinceridade de que meu coração era capaz: — Professor, bem, o senhor sabe, eu, isto é, bem que a gentepodia, o senhor não acha? — Me mostre a língua. Derramei na frente de seus olhos meio palmo daquelaalcatra que lambia e fazia as delícias da gota de filé minhon quesua filha tinha no meio das pernas. Examinou-a bem com umalupa. — Exatamente o que eu pensei, diagnosticou. Você está paraentrar na função H, a luta contra o malfeitor, num combate emcampo aberto. — Mas, professor, eu repliquei, sua filha está esperando umfilho meu, e o senhor fica aí com esses joguinhos ridículos. Eu nãoacredito mais nisso. Não sei se o senhor reparou, mas, agora, eusou real. O que eu fizer, de agora em diante, é pra valer. — Bravo, meu filho, assim é que se fala, ele disse. A dúvidaquanto à validade do método é típica da passagem da função Hpara a I, o estigma, a marca imposta ao herói. Você vai chegar lá. — Lá onde?, perguntei, oblíquo. — Se eu contar o trajeto seguinte, e o final, vamos estragartodo o tratamento. Você tem que confiar em mim, meu filho. É aúnica chance que você tem. — Chance? Chance de quê? — De sair vivo e ileso desta história, seu imbecil! 13 Saio atrás da voz, mas a casa multiplica os ecos, o zumbidoda festa lá atrás, uma espécie de silêncio ficando velho. E, derepente, a impressão de já ter visto aquilo tudo, isso sem falarnaquela sensação de carregar o mundo nas costas, nas minhasorelhas de elefante aquele eco, outra vez, outra vez, outra vez, aque o eco respondia, nevermore, nevermore, nevermore, nuncamais! A house is not a house, a home is not a house, a room isstill a room, even if there is no thing there. Perguntei a alguém por

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ali, se tinha visto uma senhora assim e assim, aquela, claro,aquela, isso mesmo, aquela? Ele me respondeu por gestos comoum cacique comanche: três luas, mulher partir, estar para chegargrande cometa, grande bola de fogo viu meu avô, ano bom, muitopeixe, búfalo gordo, muita mulher bonita. Segui a pista, o coraçãome beliscando que eu ia encontrar Norma se agarrando comaquele carinha em algum canto escuro do jardim. Só que saindo láfora eu arriscava levar uma bala de carabina bem aqui ondeNorma dói e eu só penso bobagens. Eu tinha que acertar oatirador antes que ele me acertasse. Fui até a cozinha, abri umagaveta e hesitei. Machado de açougueiro. Faca de carne. Espeto dechurrasco. Para cortar uma garganta de orelha a orelha, bommesmo é uma faca. Mas para furar um olho, nada se comparacom um espeto de churrasco, esses de aço, bem fininhos que nemagulha de tricô. Já para abrir um crânio, que tal um machadovibrado por mão firme? Hesitei, hesitei. Por via das dúvidas, leveios três. Quem sabe o cara era desses tais que teimam em fazer deconta que não são desses que morrem. Ou que são desses que nãomorrem. 14 — Os dixies de arroubarim galj gorgs de Noméria. Corria até a janela e gritava para o além. — Menops! Menops!, auaiam, auaiam gorgs elafobélion! Agarrei-a pelos ombros, sacudi-a para tirá-la do transe, elame olhou, um céu em cada olho, e eu perguntei: — Quem está atirando em mim, Norminha? Você sabe, eusei que você sabe! Onde ele está? De onde ele atira? Ela continuava apontando para a janela. — Medved surts rinforcs! Odradek! Odradek! 15 Só havia um modo de eu descobrir. Me expondo. Assim,cheio de armas brancas, saí para fora, olhando com mil olhos emtoda a minha volta. Em minha frente, descia o jardim, arbustos multiplicando asluzes da festa pelos restos de pingos de chuva que caiu ainda hápouco, passando pelas áreas de sombra, até os escuros totais,donde saíam os monstros encarregados de me atormentar. Nas minhas costas, a casa, aquela coisa horrível, chaga nanoite, grávida de uma festa, acendia e apagava como o painel deum computador, onde a luz jogava os supremos fliperamasinfinitesimais do amor e da dor. A casa toda me olhava pelos olhos quadrados de dezenas dejanelas, o olhar polígono das moscas e das abelhas. Em qualqueruma das janelas (ou em várias?), alguém-lee-oswald, olho na miratelescópica do rifle, a cruz cruzando na minha têmpora direita, otesão de acertar. Uma gargalhada explodiu lá dentro da festa, e me pôs emsobressalto. Por instinto, aquele gesto primata, levei a mão aomachado de cortar carne, só vikings que morrem de arma na mãosão bem recebidos no walhala, dizia Propp. O susto só durou um arrepio. Logo tudo estava quieto denovo, muito vento tentando consolar a noite de tudo que tinha

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chovido. Pus a cabeça num raio de luz, um segundo, dez, trinta, umminuto: nada. Caminhei uns passos em direção a um canteiro deplantas rasteiras, girando a cabeça e olho aceso em todas asjanelas, norte, sul, leste, oeste, me virei de frente para a casa.Então, pela primeira vez, a vi em todo o seu esplendor. Era tãolinda, com todas aquelas luzes. Pena que queria me matar. Fiqueicaminhando em círculos, num ponto onde todas as luzes dasjanelas faziam um clarão. Pode atirar, seu filho da puta, mas ébom acertar o primeiro tiro, eu vou descobrir onde você está, e voucortar tua espinha com este machado que nem quem derrubauma bracatinga. Mais um minuto, mais umas voltas, e nada. Ué, pensei,desistiu? Fui até o centro da luz, abri as pernas e os braços, e griteique ecoou no pátio todo, e ricocheteou pelos corredores: — Atira, seu filho da puta, corno, viado, te mostra, covarde,ou só sabe atirar pelas costas, num homem desarmado? Ou só sabe atirar pelas costas, num homem desarmado, eujá disse meio desanimado, a voz baixando como quem desliga orádio bem devagar pra não passar muito rápido do show para osilêncio. Nada. Aliás, nada não, que eu vi aquela janela apagar lá nosegundo andar, a terceira da esquerda para a direita. 16 Um dia, cheguei no consultório mais cedo do que decostume, e os surpreendi. Falavam de mim, eu tinha certeza. — Acha que já está na hora de suspender o lobo? — Nada disso, ele sentenciou. Muito cedo. A retirada do lobosó é aconselhável depois da passagem da função J para a K, entrea vitória sobre o agressor e a reparação do dano. — Não acha que ele já sofreu bastante? — O coração, minha filha, é um imbecil. Quem não sabefazer sofrer, não sabe ensinar. Se for me guiar pelo que sinto,nunca vou conseguir fazer bem. O lobo fica. (— OK, professor, vou lhe mostrar com quantos plágios sefaz um original). 17 Naquele tempo, a vida andava muito cara. E eu fiqueipensando no que ia ser de Norma, de mim e do nenê, se tudo fossedepender apenas das escassas e esparsas aulas de matemáticaque eu dava a uns sonolentos vestibulandos em algumas tardesde sábado. No fundo, me passou pela cabeça, meu pai tinha razão.Devia ter dedicado meus melhores anos a aprender um ofício quedesse dinheiro, muito dinheiro. Agora era tarde. Dinheiro nãogosta de quem não gosta dele. Norma, o nenê e eu, a gente iamorrer de fome. A menos que eu fizesse alguma coisa. Mas o quê?Tudo o que eu sabia fazer na vida era saber que o cometa Halleyestava pra chegar. 18 1, 2, 3, a terceira janela da esquerda para a direita. É essa,

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foi aqui que apagaram a luz, quando eu me expunha no pátio, mearriscando a levar um tiro entre meus dois braços abertos. Bato ou arrombo? Olhei bem para a porta, não era do tipoque parece que vai cair ao primeiro golpe de ombro. Bati, bati,nenhuma resposta, levei a mão ao trinco, aberta! Entrei, olhei emvolta, ninguém, fui até a janela. Batata. Olhando pra baixo, viexatamente, num facho de luz, o lugar onde eu tinha me exposto,lá no meio do pátio, entre os canteiros de plantas rasteiras. Tinhauma cadeira voltada para a janela, pus a mão no assento, estavaquente, ALGUÉM ESTAVA SENTADO AQUI HÁ MENOS DE UMMINUTO. No ar, o azedo e o amargo do perfume de Norma, e aquelecheiro chato de queimado, lembrando vagamente o cheiro do fumodo cachimbo de Propp. 19 Primeiro pensamento, telefonar para Norma. Se hão estivesseem casa, bem, não quero nem pensar. O mordomo cortou minhas asas: — Impossível, senhor. Com essa chuva, a casa só estárecebendo. A hora que a gente puder falar para fora, o cavalheirovai ser o primeiro a saber. Essa era muito boa. Estava preso numa festa que não sabianem o que estava celebrando, e onde eu só tinha entrado parapedir fogo. Alguém estava querendo que eu parasse de fumar. A essas alturas, já nem sabia mais se o que mais queria erapoder conversar com alguém, ou comer uma fatia de rosbife, quemsabe alguma batata frita, creme?, não, obrigado, estou numregime danado, nada de sal, a geléia, por favor. — A geléia eu não recomendaria. — Não me interessa o que o senhor recomendaria. Passe ageléia. — Depois não reclame, eu digo, esse gosto de podre. 20 — Tem umas coisas, acho, que nunca ficaram bem clarasentre nós, fui falando logo de cara. Norma já estava conformada. — E nem nunca mais vão ficar. — Ê, agora, não vão mesmo. — Quem diria. — Veja só. — Pois é. Um dia, Propp chegou e disse: — Me conte sua história favorita. A primeira que lhe vier.Vamos lá, vamos, já, o que é que está esperando? — Espere, professor, espere um pouco, já sei, vejo ummenino perdido numa floresta. — Ora, come on, ele disse. You can do better than that. Tryagain. Deu um tempo, e corrigiu: — Perdão, eu não quis dizer isso. — Pare um pouco de falar e escute. Era uma vez uma

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constelação de estrelas que queria virar alguma coisa destemundo. Olhou-se numa poça d’água, e pensou estar vendoimaginou estar vendo um sapo apenas um sapo mergulhandonum poço. E quis muito ser aquilo. E ser uma raiz de árvore. E sero andar de um velho. E ser o número num talão de cheques. Atéque, por fim, quis ser apenas só aquilo mesmo, um punhado deestrelas soltas, algumas palavras de uma história ouvida empedaços na balbúrdia de um bar depois da meia-noite e quinze. Acontece que tem uma coisa sobre a qual eu não quero falar,e fiquei com medo que Propp percebesse que estava evitando ahistória que diria mais do que convém que uma história diga. Claro que o velho perdigueiro percebeu, e me fez começartodas as histórias possíveis, recusando uma após a outra, até euficar exausto de tanto imaginar, até eu cair no abismo sem fim dofim de todas as histórias. 21 — Não, disse Propp, já que você quer saber. Só nas históriasde deslumbramento, estamos livres da maldita moral. Um actantenão obedece a normas. Sua única ética é perfazer a trajetória dasua ação. Seu dever é atravessar as peripécias, superar os perigose chegar vitorioso ao final. Ofegava, ao concluir: — Um actante só obedece a uma lógica militar, e deu ummurro na mesa que fez a coruja de Minerva dançar um sambarasgado. Jamais suspeitei instintos bélicos naquele velhinho judeu,cuja vida parecia toda dedicada à plácida busca da sabedoria e dasaúde. Era a hora, e eu explodi: — E A VIDA, PROFESSOR? ONDE É QUE A VIDA ENTRANISSO TUDO? — Vida?, ele disse. E quem falou em vida? Você anda lendohistórias demais ultimamente. A vida, meu filho, só existe nessesromances água-com-açúcar, esses mesmos que estão estragandotua vista. Posso ver por seus olhos vermelhos que tem passadomadrugadas em claro. Deixe-me ver. E, clínico, abriu cada um dos meus olhos (por que eu sótenho dois?), e olhou bem dentro deles um olhar obsceno, imoral,um olhar frio, sem emoção, nem afeto, um olhar onde brilhavaapenas a branca luz de neon da lógica. Mergulhei naquele abismo, onde ouvia milhares de vozesconversando como as malditas vozes daquela maldita festa, asilusões perdidas dos irmãos karamázov estão à procura do tempoperdido, e a hora que encontrarem vai correr sangue, o xerife WyatEarp e Doc Holliday já estão nos arredores de O. K. Corral,Lampeão e o bando dormem na Cova dos Anjicos, Marco Polo nacorte do Khan em Cambaluc, a escalada do Everest pela faceNorte, o lobo, agora cão, ouve ao longe, esfarrapados na nevasca,os primeiros acordes de The Call Of The Oscar Wild, vira para aloba de Roma e diz, querida, estão tocando nossa música,Nosferaru espera a luz baixar, o abominável homem das nevesencontra o monstro da lagoa negra, Nostradamus profetiza, os 3

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Mosqueteiros cruzam as espadas, um por todos, todos por um,Quetzalcoatl parte numa jangada para o leste, o rei D. Sebastiãovai voltar, voltar, voltar, voltar, todos vão, os 3 Reis que seguiramuma estrela e visitaram um certo menino recém-nascido, um certosábio que fez um pacto com o diabo, um certo “hidalgo, de esos delanza en astillero” que obrigou seu rei a jurar sobre a bíblia quenão tinha matado seu irmão, uma, duas, três vezes, voltar, voltar,voltar, Nostradamus profetiza, era uma vez quatro rapazes deLiverpool que resolveram montar uma banda de rock, alguém éprocessado por um crime cuja natureza desconhece, o ego deFernando explode em mil pessoas, uma sonda espacial seaproxima de Saturno, um capitão perneta persegue uma baleiabranca pelos sete mares, Marighela recebe a bênção dos doisdominicanos, Getúlio não morreu, Nostradamus profetiza,ninguém morreu, calma, calma, calma, ninguém nunca morreu,ainda reina Ramsés III. . Mariel estaciona seu carro branco no sinal fechado, o falcãomaltês sobrevoa a Casa de Usher, os nus e os mortos sentam namesa de Bugs “Bigknife” Malone e pedem um breakfast atTiffany’s, à sombra do sorriso do retrato do artista quandomonalisa, romances água-com-açúcar!, o que eu não daria paraviver um pouco, nem que fosse dessa vida efêmera, de milésimosde segundos, que vivem certos elementos radioativos da tabelaquímica de Mendeleiev! Da vida? Da vida, não fala um actante de Propp. Mas eu falo,falo, falo. Falo até ficar rouco. Até gastar a língua, e ela ficar assimdeste tamanhinho, do tamanho do grelo de Norma Propp. Tem acoragem de cortar a garganta de alguém? Passar a navalha nopescoço de um, abrindo aquela buceta de orelha a orelha? Essa éa única questão realmente filosófica. Propp larga meus olhos, pisco e olho em volta, em quembotar a culpa, o ovo do diabo? Já cumpri com meu dever de ser claro. Acho que, a essasalturas, já conquistei o direito de ser obscuro e confuso. Sei que não devia estar dizendo as coisas desse jeito. Propptinha me dito para eu sentir COM COISAS. Com fatos.Acontecimentos. Assim fazem os verdadeiros heróis, ele dizia,invocando Napoleão. Sinto desapontá-lo, mas não sou imbecil o suficiente paraAPENAS contar uma história com o corpo da minha vida.Desculpe, professor, mas eu comecei A PENSAR. Sei que talvezseja um pouco cedo. Talvez não leve a nada. Sei até o que o senhor vai dizer: você, PENSAR? Mas é isso,seu monstro sem coração, eu estou pensando. Sim, eu, eu, eu,actante de Propp. Vai fazer o quê? Chamar a Gestapo, a CIA, aKGB, o raio de Zeus? Vai tomar no seu cu, antes que eu meesqueça. Porque quando eu esqueço é o naufrágio do Titanic.Desaparece você, desaparece essa festa, a tua filha, nossocasamento, seu neto por nascer, desaparece essa história toda. Quer ver? Pronto. Eu esqueci. Esqueci o telefone de Norma.O endereço da casa. Esqueci até o que a gente veio fazer aquineste planeta que apodrece como um repolho no lixo.

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Você não me conhece, professor. Eu sou capaz de esquecerCOMPLETAMENTE. 22 Devem estar lembrados daquele cavalheiro na festa, o tal quetinha uma bomba atômica implantada no cérebro, e que podiaexplodir se dissesse uma determinada palavra, o tipo chegou bemdo meu lado, todo mistérios, encostou, levou a boca até minhaorelha, e eu pensei, ihhh, mais um!, nunca falta!, mas não, eleapenas sussurrou: — Estão dizendo que tem um ladrão aqui dentro da festa. — Só um?, perguntei quase sem querer, olhando em volta,dois, três, quatro, cinco, pelo menos, uns vinte e cinco, calculei,assim meio por cima. Então, ele pulou de lado, e me apontou com o dedo, gritandopra todo mundo: — Pega ladrão! Como nunca me interessei muito por esses papos sobreproblemas jurídicos, pedi licença e fui saindo meio devagar, meiodepressa, mais depressa, e saí correndo os cem metros rasos,seguido por uma multidão apoplética de damas e cavalheiros,gesticulando. — Pega ladrão! — Agarra! — Allah hu-Akbar! — Fura o olho! — Chuta o saco! — Come o cu dele! Todo mundo que já tentou sabe como é difícil manter aelegância a quarenta quilômetros por hora. Mas Deus étestemunha de Jeová que eu tentei. Morrer é apenas uma das coi-sas que podem acontecer com a gente. Talvez, a menos impor-tante. Uma mera formalidade. O único problema é que de morrerninguém tem muita experiência. Morrer, tudo bem. O que eu nãopodia tolerar era ser ofendido assim diante de tanta gente distinta. O que me valeu mesmo na minha retirada da laguna é queeu estava conhecendo muito bem a geografia daquele jardim, ondetinha passado momentos maravilhosos, levando tiros na cabeça,fugindo que nem ratos em pânico, sempre aquela perguntamartelando e doendo tudo aqui por dentro, what am I doing here,after all? 23 — Onde é que ele foi parar? — Como é que pode? — Como se atreve a fugir desse jeito? — Quem tem um fósforo? — Até que tamanho você agüenta? — Quem somos? Donde viemos? Para onde vamos? As vozes dos meus perseguidores zumbiam em volta doarbusto onde eu estava agachado, moscas varejeiras em volta deum monte de merda fresca. Ah, Propp, você me botou nessa, vocêainda me paga. Tudo fedia, fedia a queimado, quando ouvi alguém gritar,

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com a voz do dono da casa: — OS CACHORROS! TRAGAM OS CACHORROS! CHAMEMHERR DOBERMANN! QUERO TODOS OS CACHORROS AQUI,AGORA MESMO! 24 Norma andava com enjoos. — Quantos meses você acha? — De enjôo? — Não, você sabe. — Ah, sim, uns dois ou três. — Está demorando. — Sempre demora. Tudo estava demorando. Pedi mais um conhaque, peguei amão de Norma, e fiquei olhando pra ela pensando se não eramelhor pedir uma felicidade em vez da sabedoria. Dizem que,nesses casos, os garçons atendem mais depressa. 25 Querido papa, situação insustentável. Parto hoje com Bernardo. Função E , desmascaramento de falso herói. Não comunico nosso destino por razões óbvias. Notícias assim que nosso nenê nascer, nada pessoal, Norma Propp me estendeu o bilhete como quem diz, está vendo, éassim mesmo. E eu senti uma dor no peito como se meu coração tivessesido atravessado por um agudo da vocalista dos Big Brothers andThe Holding Company. Nem precisei ler. Aliás, nem li. Peguei, vacilei, e devolvi,como quem vomita. Lá estava. Aconteceu o que eu mais desejava,tinha acabado de acontecer o que eu mais temia. Nem sabia como,mas sabia que estava livre daquela situação ridícula. Finalmente,eu ia poder voltar, voltar a que mesmo? O que não quer dizer queeu não me senti o mais miserável dos mortais. — São assim, Propp falou, tentando me consolar daexpressão de absoluta calamidade pública que tinha desabado emcima da minha cara. — O que é que são assim?, ainda achei forças de perguntar. — As coisas. — Ah, as coisas! Claro, as coisas são terríveis, gani,enquanto olhava em volta, procurando alguém que eu pudessecortar a golpes de gilete. 26 Arf, au, au, argh, ouvi os cães ao longe, Herr Dobermann,aquele cachorro, ia despejar em cima de mim aquela avalanche dedentes e garras e olhos faiscantes. Nenhum segundo a perder, senão quisesse virar uns doze mil cruzeiros de bifes de alcatra, oumenos. 27 Do arbusto, eu podia ver, bem em minha frente, um garotocom cara de pavor, que segurava uma tocha, olhando em volta,

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como se seu pai e sua mãe estivessem para chegar a qualquerhora, e ele estivesse chupando o pau do motorista negro dafamília. Me joguei de cabeça na barriga dele, em cheio!, e sentiquando ele passou por cima de mim, saco de batatas que já nãotinha a menor importância. E me atirei na porta que dava paraaquela escadaria que levava até o segundo andar, saindo naquelecorredor todo cheio de portas, onde, num dos quartos, tinhaalguém dando tiros na minha cabeça. Quando entrei, os cães lá em baixo latiam como unsdesgraçados. 28 — Por favor, professor, eu falei, vai mais devagar. O senhornão está acostumado, vai passar mal. — Não estou acostumado? Não estou acostumado? Você nãome conhece, meu filho. Garçom, garçom, mais um, mais um!Duplo! Não! Triplo! Triplo! E com os olhos doidos de álcool Propp me agarrou pelobraço: — Não te falei dos porres que a gente tomava no Círculo deMoscou e depois no de Praga? Que tempos, rapaz! Que tempos!Não pense que a gente passava o tempo todo só falando de sílabastônicas e estruturas da narrativa. O que a gente bebia, meu Deus!O que a gente bebia! E fodia! Rios de vodca, cerveja, vinhobranco!, coristas, atrizes! E punha a mão em concha sobre os olhos, como quem fazforça para enxergar lá longe, por cima de um amazonas de vodca ecerveja, uma fila de coxas dançando o cancã. — Como foi que você acha que eu cheguei às minhasconclusões mais fundamentais? Durante o dia, eu elaborava. Masas intuições máximas foram todas rabiscadas em guardanapos demesa de bar, costas de cardápios, coxas, peitos, bundas, quandonão na própria toalha, que a gente puxava da mesa, enrolava emetia no bolso, e a gente saía com aquelas toalhas no bolso,aqueles lenços enormes de um gigante gripado. Aquilo sim eramdias! Um mundo desabava, e a gente discutia, sílaba por sílaba, asleis do verso russo, tcheco, croata! Era preciso coragem, meu filho!Coragem! Um jovem tenente cossaco não era mais valente quenós! Invadimos todos os terrenos da teoria, sem medo, chorando,com o rosto brilhando de alegria! Fomos mais longe que qualquertropa! O mundo ainda vai levar um século para compreender comonós fomos longe! Schklóvsky! Tiniânov! Óssip! Eikhenbaum!Roman! Bakhtin! De pé, Propp gritava gesticulando como se quisesse chamarde volta do reino dos mortos os seus companheiros de juventude ede aventura. Como se fosse um deles, o garçom veio depressa trazendoum copo fundo, cheio de mais bebida, e me derramou um olhardaqueles que dizem, ou você acalma esse velhinho, ou a gente jogaele no fosso dos jacarés. — Por favor, puxei Propp pelo braço, e ele caiu sentadoolhando para o copo cheio, kha, trumph, plunft, zaúm, fazendo

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tanto sentido quanto uma sílaba isolada. Levou a mão ao copo, que eu afastei: — Não foi pra isso que viemos aqui, professor, eu falei, efiquei pensando que naquele bar tinha dois homens comcinqüenta anos de diferença, segurando dentro, com toda a força,a agonia sem comparação de quem se sente trocado por um outro.Sei lá de que jeito era a dor dele, mas a minha dor a reconhecia,os seres gasosos dos pantanais de Canópus têm todos o mesmocheiro. Segurei a mão de Propp, e continuei segurando, apertando eafrouxando como se eu estivesse querendo bombar vida forte,vinho de vinte anos, luz de estrelas supernovas, para dentrodaquela alma, buceta estuprada, que sangrava como uma moringaque caiu no chão. E o que eu sentia não é o que se sente diante do pai,campeão do rei, será que eu posso com ele?, pau nosso que estásnos céus. Era mais o que se sente diante de avô, alguma coisaalém do pai, alguma coisa que fosse alguma coisa que fosse algoassim como algo mais que um pai, o pai além do pai, uma obra dearte feita com a matéria-prima de que um dia um pai foi feito, avôé assim mesmo, bem mais complicado que pai, o pai do outro ladodo vidro da vida. Propp não estava nada bem. Mas falava como se fosse aúltima coisa que fazia. — A vida é subliterata, meu filho. Vai pelos esquemas dashistórias de deslumbramento, que você vai mais longe. Não largava da mão de Propp, e com sua mão na minha eracomo se estivesse segurando a mão de Norma, tinham mãos tãoparecidas, e de repente larguei a mão dele como se tivesse tocadonum sapo. Minha profissão não permitia que eu bebesse muito. Afinal,para distinguir entre uma constelação e outra é preciso umamente clínica e lúcida. Eu bebia muito raramente, dois conhaquescomo aquele eram o bastante para provocar o estouro da boiadade todos os meus mil demônios. Principalmente um, que, bem,tem uma coisa sobre a qual, nem com dois mil conhaques. — Não foi pra isso... Não foi pra isso... Não foi pra isso... ouviuma voz ecoar, bater nas paredes e voltar pra cima de mim, chuá!,uma onda das grandes que batesse nas pedras. Diante de mim, Propp, uma figura lamentável. E eu sentiauma grande ternura diante da grandeza de sua miséria e do seuabandono. Aquele velho pedaço de desgraça era o que davasentido à história toda. Mas estava na hora de fechar. E eu tinha que levar tudoaquilo que se chamava Propp até um lugar onde pudesse dormirseu porre em paz. — Está na hora, professor, eu falei, ele levantou, devagarmas com segurança, os olhos vendo só o que seus olhos viam, efomos. No carro, ninguém disse nada. Dirigi até o consultório, queficava mais perto do que sua casa. Também, pra que é que ele iriapra casa? Não tinha mais ninguém lá.

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Lá ficou no sofá do consultório, onde caiu dormindo, assimque o larguei. Antes de sair, dei uma última olhada. Ele seencolhia de frio. Procurei um cobertor, e joguei por cima daquelevelho encolhido como um caracol, uma criança com as fraldasmolhadas no meio da noite. Passei a mão pelo branco dos seusraros cabelos, e disse: — Adeus, meu velho. Foi uma aventura e tanto. 29 Era a hora de simular a manhã, e as gravações depassarinhos gorjeavam sabiás, rouxinóis, toutinegras, cacatuas,araras, aves de todos os 125 continentes de Achernar. A luz quesimulava um sol estava num ano inspirado, e o dia era como umimpério que devia durar mil anos. Os seres gasosos dos pantanaisde Canópus suspenderam a respiração, e começou a contagemregressiva. Vai, Halley, vai fazer o que tem que ser feito. Lochs, mex, onkh, jak, rek, trunf, lept, três, dois, ALELUIA! Lá se vai ele, o cometa, os espaços te sejam propícios! Asondas magnéticas dos oceanos de poeira cósmica se abram diantede você como os pentelhos de uma buceta diante de um pau! Quevocê passe incólume entre as tempestades de meteoritos! Teussensores e radares não sejam danificados pelas interferênciaswarhoos! Vinda, vida e vitória a ti, cometa, vai e justifica aexistência de toda a matéria! Nem que seja por um instante,mesmo que seja já! 30 Minha Nossa Senhora dos Corredores, fazei com que asegunda porta à esquerda esteja aberta e esses cães não meatinjam!, ordenei, me atirando pra dentro do quarto, onde acadeira vazia olhava, pela janela, para o pátio iluminado. A chaveestava para o lado de dentro, e girei, uma, duas, três, quatro,cinco, vinte, trinta, trinta e uma vezes, como quem gira o segredode um cofre. Virei, e, ofegante, colei as costas na porta, sentindona espinha a madeira do outro lado ser arranhada pelas unhasdos mastins, baskervilles e dobermans, que queriam o meusangue e minha alma. Então, olhei para a cadeira diante dajanela. A janela ainda continuava aberta. Mas a cadeira nãoestava mais vazia. Ela virou para mim, com um rifle no colo e umsorrisinho nos lábios, quando eu disse: — Você? Claro, tinha que ser você. Era você o tempo todo. — Você não está entendendo, você nunca entendeu nada.Claro que era eu, o tempo todo. Mas não era em você que eu atireitrês vezes. — Uma das balas quase arrancou minha orelha. Se não eraem mim, então, em quem? — Warhoo, você vai ver agora os poderes dos seres gasososdos pantanais de Canópus. Norminha levantou, encostou o rifle na parede e avançou atéa porta, onde os cães se atiravam de unhas e dentes. Traçou umcírculo no tapete, jogou gasolina e atirou um fósforo, o fogo deuuma volta, e logo o quarto parecia um fornalha. Tentei apagarenquanto gritava, menina biruta, você vai matar todo mundo. Em segundos, não havia mais nada que eu pudesse fazer, a

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não ser cair fora dali, e o mais rápido possível. Do segundo andaraté o chão era uma queda e tanto. Só que a essas alturas eu já eraum mestre na arte de saltar de precipício, cair de pé e saircorrendo como um alucinado desses lugares perigosos que o acasocoloca em nosso caminho. 31 Quando acordei, meu primeiro pensamento foi para o velhoPropp, que eu tinha deixado dormindo no sofá do consultório, anoite anterior. Telefonei direto, 223-7866, uma, duas, três, trinta e umavezes, e nada. Levantei preocupado, me vesti e fui até lá. Cheguei, empurreia porta e lá estava ele, sentado na mesa, com a cabeça desabadadentro de uma mancha vermelha, um sangue enorme que escorriada mesa e continuava no chão. Na mão de Propp, uma pistolalúguer, dessas de oficial nazista da Segunda Guerra, apontavapara um buraco na têmpora direita. Na parede estavam grudadospedaços de massa cinzenta, que pareciam pedaços de borrachaescorregando e deixando riscos vermelhos, como se toda a paredechorasse. Gelado., dei um passo até o fato consumado, fiquei ali,perplexo, e então vi o bilhete, e o bilhete dizia tudo, e eu amassei,fiz um bolo e engoli. Foi então que eu peguei a lúguer, limpei asimpressões digitais de Propp, apertei a arma na mão até tercerteza que ela ia ter minhas impressões. Só então peguei otelefone, e telefonei polícia, alô, polícia?, acabo de matar alguém,em quanto tempo vocês podem estar aqui?, quinze minutos?,ótimo, eu espero, o endereço?, claro, o endereço. Nenhumadvogado vai me convencer da minha inocência. Eu quero sercondenado. Eu não quero a vida eterna, professor. EU QUERO OINFERNO. Curitiba, XXXIII Olimpíadas Sobre o Autor Paulo Leminski Filho, nascido em Curitiba, Paraná, 39 anosatrás (24 de agosto, Virgo). Mestiço de polaco com negro, sempreviveu no Paraná (infância no interior de Santa Catarina). Publicou: Catatau (prosa experimental), em 1976, Curitiba, ed.do autor. Não Fosse Isso e Era Menos / Não Fosse Tanto e EraQuase e Polonaise (poemas, 1980, Curitiba, ed. do autor). Publicoupoemas, com fotos de Jaque Pires, no álbum Quarenta Cliques,Curitiba, 1979, Curitiba, ed. Etcetera. Ex-professor de História e Redação em cursos pré-vestibulares, é diretor de criação e redator de publicidade.Colaborador do Folhetim da Folha de S. Paulo, resenha livros depoesia na Veja. Poemas e textos publicados em inúmeros órgãos (CorpoEstranho, Muda, Código, Raposa etc.) de Curitiba, São Paulo, Rio eBahia. Teve seus primeiros poemas publicados na revista Invenção,em 1964, então, porta-voz da poesia concreta paulista. Faixa-preta e professor de judô, vive em Curitiba com a

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poetisa Alice Ruiz, com a qual tem duas filhas. Foram publicados pela Brasiliense Cruz e Souza (EncantoRadical), 1983, Caprichos e Relaxos (Cantadas Literárias), 1983,Matsuó Bashô (Encanto Radical), 1983, e Jesus a.C. (EncantoRadical), 1984.Esta obra foi digitalizada e revisada pelo grupo Digital Source para proporcionar,de maneira totalmente gratuita, o benefício de sua leitura àqueles que não podemcomprá-la ou àqueles que necessitam de meios eletrônicos para ler. Dessa forma, avenda deste e-book ou até mesmo a sua troca por qualquer contraprestação étotalmente condenável em qualquer circunstância. A generosidade e a humildade éa marca da distribuição, portanto distribua este livro livremente.Após sua leitura considere seriamente a possibilidade de adquirir o original, poisassim você estará incentivando o autor e a publicação de novas obras.Se quiser outros títulos nos procure :http://groups.google.com/group/Viciados_em_Livros, será um prazer recebê-loem nosso grupo.